colecao musica Cida Moreira A Dona das Canções Thiago Sogayar Bechara Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Governo do Estado de São Paulo Sumário Prefácio Capítulo 1 – Serra da Boa Esperança Capítulo 2– Charutos do Brasil Capítulo 3 – Para Inglês Ver Capítulo 4 – Na Trilha de uma Estrela Capítulo 5 – A Voz da Dona Capítulo 6 – Pedacinhos do Céu Capítulo 7 – Arte por Opção e Teimosia Agradecimentos Referências Bibliográficas Notas Créditos fotográficos Mas sempre será o tempo de cantar canções contundentes, sem meias palavras; pois os tempos também são cabaretianos, escan­carados na dor e na beleza. A ideia é um espetáculo emblemático, com o melhor da música de cabaré filtrada pela personalidade de uma artista que não se dobra, não se dobra... (...) Narrarei estórias, levando ao extremo essas imagens sonoras que são crônicas que falam dos excluídos, dos menos afortunados, mais conscientes e mágicos talvez, porque sabem do estranhamento que os consome. Para os que hão de vir. Para nós mesmos, renovados, que também temos que vir, e reconhecer, enlouquecer e amar a realidade para transformá-la através da Arte. Trecho do release escrito por Cida Moreira para o cabaré Aos que estão por vir Prefácio Depois de ouvir pela primeira vez Angenor, um dos trabalhos mais recentes de Cida Moreira, e em vão eu já tentava traduzir em palavras as minhas im­pressões, o emaranhado das emoções não me permitiu ir além de uma frase: Cida, você agora é uma cantora do rádio. Pois ela reagiu em inteira sintonia com o meu laconismo, fazendo-me reconhecer, no que eu dizia, a síntese fiel dos nossos percursos como ouvintes e espectadores, bem como de sua trajetória como artista no cenário da música popular. E eis-me agora diante de um livro-perfil que, ao esboçar essa trajetória, vem iluminar justamente esse momento das nossas trajetórias pessoais e da nossa vida cultural – Cida e eu somos contemporâneos –, que a escassez de palavras, agora compreendo aliviado, muito bem sintetizara. Pois Angenor traz a sonoridade dos auditórios das emissoras de rádio em nossas infâncias. De resto, como convinha mesmo à leitura – fidelíssima – da obra de Cartola, Cida recria os regionais daquela época, reunindo, ao redor de dois violões inspirados, o cavaquinho, o bandolim ou a viola caipira; ao lado da flauta, outrora solitária, uma variedade de instrumentos de sopro; onde antes reinava um pandeiro solitário, hoje o requinte da percussão jazzística; e um piano a ocupar o lugar do acordeão. E ela própria, em colaboração com os músicos, a responsável pelos arranjos, que nos levam de volta às raízes mais fecundas da sensibilidade brasileira que se manifesta primordialmente através da canção popular. Ao vê-la estrear esse trabalho no palco do Auditório Ibirapuera, em julho último, pude ver que, à sua tão decantada postura teatral, ela passava a incor­porar o gestual tão próprio dos nossos grandes artistas do rádio. Do teatro, Cida trouxe para a música popular um jeito de fazer as coisas que a distingue da maioria de nossas intérpretes. Cada espetáculo resulta de meses de pesquisa musical e propriamente dramatúrgica, acompanhadas pela vivência intensa das particularidades de cada gênero ou canção. Em entrevista recente, ao rechaçar a tentativa de enquadrá-la, ainda, como integrante da chamada vanguarda paulistana, Cida reclamava que as pessoas se esquecem de que ela, antes de tudo, é uma cantora brasileira. E é essa, a meu ver, a grande contribuição deste livro, a de assentar, em definitivo, que Cida é antes de tudo uma cantora brasileira, especialíssima, que desfruta do luxo de poder prescindir de rótulos, modismos ou consensos, a reunir e a construir o melhor nas nossas manifestações culturais e artísticas dos anos 1960 a esta parte. Cida é de uma geração que teve o privilégio de conviver, musicalmente, no dia a dia, com uma leva incomparável de artistas, que, além de grandes criadores, souberam resgatar a rica tradição das décadas anteriores. Da Rádio Marconi, de Paraguaçu Paulista, à era de ouro da MPB, que vivemos juntos como ouvintes e espectadores, passando por festivais interioranos e shows universitários, Cida foi desembocar nos palcos de São Paulo, Rio e outras praças, sempre ligada ao que de mais avançado se fazia no país e no mundo, tendo bebido de todos os mananciais mais substanciosos e con­vivido com pessoas à altura das suas aspirações. E só poderia mesmo ter surpreendido com o ecletismo de suas escolhas, provando ser, em todas elas, a artista completa que é, senhora absoluta de sua voz, de sua emoção e do espaço que ocupa nos palcos e na vida dos que a rodeiam. E não sei se no plano mundial se vai encontrar expressão tão acabada do casamento de música e teatro, com um repertório que inclui Brecht e Kurt Weill (às vezes, Hans Eissler ou Paul Dessau), Chico Buarque, as canções do cinema brasileiro, Adoniran Barbosa, as modinhas de Mário de Andrade, Tom Waits e, agora, Cartola. Para não falar de suas participações em homenagens a Paulinho da Viola, Maysa e Dolores Duran. Deveras, um repertório considerável, sendo ela, a intérprete singular, expressão de algo que, entre nós, apenas os circos-teatro e os chamados teatros de alumínio das nossas infâncias tiveram. Enfim, uma cantora de repertório, como se diz que o teatro alemão, por exemplo, é um teatro de repertório. O livro de Thiago Sogayar Bechara reúne, de certa forma, tudo o que me faltava para dizer à Cida da minha grande emoção por vê-la realizada neste momento grandioso da sua trajetória, quando, ao lançar Angenor, ela mantém no ar esse fabuloso repertório, essa incrível variedade de espetáculos e interpretações, vale frisar, em permanente estado de aprimoramento. Em outras palavras, este livro confirma o acerto da minha lacônica formula­ção depois de ouvir Angenor. Cida Moreira, cuja presença nos palcos sempre esteve associada ao teatro, hoje se produz em cena – são dela a concepção, a direção, o desenho de luz e o ajuste de cada detalhe – como uma cantora do rádio. E assim ela me deixou mudo de emoção ao ouvir o CD e ao assistir extasiado ao espetáculo. Que importa se rádio já não há. Se a música popular brasileira já não cabe, felizmente talvez, numa sigla formada por suas iniciais. Se o ouvinte brasileiro continua a ser massacrado por tanta invencionice e disparates alheios a sua sensibilidade. Importa que Cida Moreira é agora – em voo destemido para fora do tempo – uma cantora do rádio, com seu lugar garantido no panteão das nossas maiores intérpretes. Importa que este livro chega, em muito boa hora, para ajudar a fazê-la reconhecida pelo que ela verdadeiramente é: uma cantora brasileira entre as mais originais e entre as maiores de todos os tempos, com uma história de vida e de dedicação à canção popular que se confunde com a história da formação da nossa sensibilidade. José Pedro Antunes Outubro de 2008 Capítulo 1 – Serra da Boa Esperança Nós, os poetas, erramos porque rimamos também Os nossos olhos nos olhos de alguém que não vem (Serra da Boa Esperança, Lamartine Babo) No pequeno camarim do Teatro Franco Zampari em São Paulo, entre canapés e champanhe, Cida Moreira se preparava para entrar em cena. Do lado de fora, o frenético vaivém de produtores e assessores se misturava ao som das bandas no palco. Outros artistas já haviam feito suas apresentações no Especial de vinte anos do Metrópolis da TV Cultura e, às 11 horas da noite, Cida sentaria ao piano para os primeiros acordes de Summertime. O apresentador do programa entrou para combinar detalhes da entrevista. Em cinco minutos subiriam. Estou nervosa. Vou desafinar! Fiquem aí para eu dar uma voltinha. E sumiu. O que se viu da plateia, minutos depois, chegou também aos lares de toda a cidade com alguns dias de atraso. Ela cantou, depois de dar em primeira mão o lançamento do novo disco, oitavo de sua carreira, em tributo ao centenário de Cartola, chamado Angenor: Chegou hoje à tarde da gravadora. Mas na sua voz algo vibrou em especial naquela noite. Summertime cindiu qualquer laço possível entre a plateia e o espaço físico onde estávamos. Rompeu o ar e não tardou a envolver o teatro num clima denso, de silêncio profundamente sonoro e respirações suspensas. Em seguida, atacou de Tom Waits, acompanhada de seu piano e de um violão. E nova­mente enredou a todos numa marginalidade dignificada pela maldição de seus gestos. Num irônico e desafiador olhar de perversidade consoladora. Foi aplaudida em cena aberta e não desafinou. Com emoção e segurança; a segurança de uma vida dedicada à magia dos palcos. Como se, a cada show, revivesse dentro dela o antigo auditório da Rádio Marconi, onde cantou pela primeira vez, em 1957, aos 6 anos. Desde então, na pequena Paraguaçu Paulista, o talento de Cida já pulsava mais forte. A cidade situada na região de Marília, São Paulo, tinha, na época, cerca de 23 mil habitantes. E o rádio ainda era o grande agregador cultural do Brasil. A música nos últimos anos da década de 1950 renascia de modo a abrir espaço para a diversidade de gêneros, após ter sido marcada pelo fim da grande onda de big bands brasileiras, inspiradas, em sua maioria, pelo estilo de Glenn Miller e por um repertório de sambas-canções dolentes e melodiosos, na linha do ninguém me ama, ninguém me quer, chamados também sambas de fossa, que tinham, em Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Antônio Maria e Nora Ney, alguns de seus principais expoentes. O rádio foi fundamental na carreira de Cida Moreira, sobretudo no início de sua formação artística. Foi por ele que, ainda menina, entrou em contato com nomes consagrados do cancioneiro popular como Carmen Miranda, as irmãs Batista e Ângela Maria. Toda uma geração de artistas, em sua maioria mulheres, que exerceu forte influência sobre nomes não menos notáveis como Gal Costa, Maria Bethânia e Elis Regina. Com Cida, não foi diferente: Gostava de estar em casa ouvindo rádio, música, novelas à noite com minha mãe, enquanto eu fazia tricô e a ajudava a corrigir provas e lições de seus alunos, pois era professora. Liberdade total e contato absoluto com tudo de mais natural e saudável. Ao contrário da vida que hoje todos levamos. Novos acontecimentos apontavam para essa mudança de rumos na estética musical do país, acompanhados pelo notável amadurecimento da indústria fonográfica que se profissionalizava a olhos vistos. A Bossa Nova come­çava a dar seus primeiros passos, numa geração de cantores considerados precursores do estilo, como Dick Farney, Lúcio Alves, Dóris Monteiro, Silvia Telles, Johnny Alf, Luís Bonfá, João Donato, Tito Madi, Dolores Duran e Billy Blanco. O ano de 1958 foi o marco do movimento que consagrou João Gilberto para além do território nacional, como pai da revolucionária batida que mais do que depressa foi associada aos ideais desenvolvimentistas de Juscelino Kubitschek. O presidente mineiro – que prometia cinquenta anos de desen­volvimento em cinco e começava a construir Brasília, a abrir estradas de rodagem e a implantar parques industriais pesados1 – passou a personificar o estilo, símbolo de um Brasil que dava certo, representado pelas vozes e harmonias de artistas da nova geração como Tom Jobim, Nara Leão, Vinícius de Moraes, Newton Mendonça, Aloysio Oliveira e Carlinhos Lyra. Como lembram os versos do samba Presidente Bossa Nova, de Juca Chaves: Bossa Nova mesmo é ser presidente / Desta terra descoberta por Cabral / Para tanto basta ser tão simplesmente / Simpático, risonho, original. O baião que, a partir de 1946, havia explodido nos grandes centros urbanos com Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira – responsáveis pela estilização da canção nordestina no sul do país –, começava nesse momento a entrar em seu tão difundido período de ostracismo, até ser relembrado novamente na década de 1970 por Caetano e Gil durante o Tropicalismo. Mesmo assim, a fama e o prestígio do velho Lua, o Rei do Baião, não abandonaram o sanfo­neiro, sobretudo nas cidades do interior do país onde, independente da apatia da “classe média” ou da imprensa de modo geral, ele levava às praças, multidões que variavam entre 5 e 10 mil pessoas, aproximadamente. Nas rádios, cantoras como as arquirrivais Marlene e Emilinha Borba – esta última, inclusive, responsável pela gravação número um da canção Paraíba, de Gonzaga e Teixeira, em 1950 – ainda mantinham seu lugar garantido. A disputa ingênua, mas ardorosa, entre os fãs-clubes de Marlene e Emilinha é um fenômeno até sociológico da história da cultura popular brasileira, que só pode ser entendido a partir de um país que vivia entre uma época de esperança de prosperidade que não chegava nunca e a ocultação renitente de graves injustiças sociais – que persistiriam até hoje. Um país cujos maiores traumas coletivos de então tinham sido a derrota na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã, contra o Uruguai, e a perda do título de Miss Universo pela baiana Martha Rocha, por culpa das inesquecíveis duas pole­gadas a mais. Era então um país que desfilava em passarelas. Que sofria, mas não sabia2. No ano de 1951, Dalva de Oliveira consagrou-se como Rainha do Rádio. Em 1956, Cauby Peixoto emplacava seu grande sucesso, o samba-canção Conceição, de Jair Amorim e Dunga. E as irmãs, Linda e Dircinha Batista, até a década de 1960, também estiveram presentes no cenário artístico brasileiro, ainda que, nesse momento, o romantismo da chamada Era do Rádio já estivesse ficando para trás, numa transição marcada por figuras como a sempre polêmica Maysa que, segundo o jornalista Lira Neto, acabou funcionando como espécie de ponte entre a velha guarda e os novos ares que começavam a soprar nos estúdios, emissoras e, claro, nas agulhas de todo o país. Maysa era, enfim, uma das nossas últimas grandes ‘cantoras do rádio’ e uma das primeiras celebridades da tevê e do chamado show business brasileiro3. E Cida apropriou-se como pôde de toda essa riqueza, também começando a cantar na emissora de Paraguaçu, embora, para sua família, isso não signifi­casse mais do que uma simples diversão. A Rádio Marconi nasceu nesse período. Foi fundada no dia 15 de agosto de 1947, dez anos após a morte de Guglielmo Marconi (1874-1937), tido pela História como o grande inventor do rádio. A emissora sobrevive até hoje com grande popularidade não só na pequena cidade onde Cida morou – que conta, atualmente, com quase 43 mil habitantes – mas também em municípios próximos4. A Marconi era um importante difusor de cultura, principalmente musical, de sua região, assim como também o foram quase todas as rádios da época, conforme frisou o maestro Julio Medaglia: O rádio em termos gerais no Brasil sempre foi muito forte, criativo. Era uma linguagem que sabia usar a magia do som para provocar a imaginação das pessoas. As sonoplastias daquelas novelinhas ingênuas da Rádio Record ou da São Paulo Rádio Difusora, por exemplo, eram nada menos que os clássicos Sagração da primavera, Noite transfigurada. Segundo o maestro, que muito tem contribuído com a música do país, a força das rádios advinha de uma estrutura altamente profissionalizada. Era o caso da lendária Rádio Nacional. A emissora teve todas as características de uma grande empresa e chegou a ser patrocinada pelo governo de Getúlio Vargas. Se, por um lado, isso propiciava que cantores como Francisco Alves propa­gandeassem o sorriso do velhinho em suas canções, por outro, viabilizava uma rádio brilhante, repleta de ideias e grandes orquestras sinfônicas. Uma verdadeira máquina que não parava de lançar artistas. Depois chegavam os discos que documentavam e sedimentavam o trabalho desses cantores por todo o país. Com a diferença de que, nessa época, gastava-se 20% na divulgação e 80% na produção de um disco, e hoje se tem exatamente o contrário. Está aí o resultado, avaliou o maestro taxativo, referindo-se à queda de qualidade da música brasileira constatada por ele nos últimos anos. O alcance das rádios no Brasil dessa época foi, de fato, impressionante. Era a primeira mídia na cultura ocidental a ter acesso direto e imediato aos lares das pessoas, acompanhando-as em vários momentos ao longo do dia e da noite. A família se reunia em torno do rádio ligado na sala5. Por ser um veículo “quente”, ao contrário da televisão, em que o espectador assume uma posição mais passiva diante do material editado, o rádio viabili­zava, nas palavras de Julio Medaglia, uma espécie de rastreamento cultural pelo país, lançando o que houvesse de melhor em termos musicais e mobi­lizando efetivamente seus ouvintes. Grandes artistas viajavam pelo interior apresentando-se, o que era sempre um grande acontecimento nas cidades que paravam para receber nomes como Orlando Silva ou Luiz Gonzaga. Foi assim que Cida, ainda pequena, viu Ângela Maria pela primeira vez no auditório da Rádio Marconi. O mesmo no qual ganharia o concurso de calouros que lhe rendeu espaço num programa infantil, aos domingos de manhã, como ela mesma conta. Na rádio, havia um regional que nos acompanhava. Lembro do seu Antenor que era um acordeonista maravilhoso. Ele morreu há pouco tempo, já bem velhinho. Eu cantava num vestido de laise amarela enviesado de azul, com fita também azul no cabelo e sandália branca. O microfone era daqueles enormes e o seu Antenor ficava atrás de mim tocando sanfona, lembrou Cida carinhosamente. O professor Osório Lemaire de Morais foi gerente da Rádio Marconi e lecionou no mesmo colégio que a mãe de Cida. Ele citou também alguns amigos do regional: Além do Antenor Martins de Oliveira, tínhamos o Brasilíseo de Castro (Baduzinho) no violão, que foi meu aluno, e o Salomão, que era pandeirista. A primeira música que Cida cantou na rádio foi Serra da Boa Esperança (1937), de Lamartine Babo (1904-1963), composta também no mesmo ano da morte de G. Marconi. O samba-canção foi inspirado em uma garota mineira chamada Nair, com quem o compositor e radialista se correspondia platonicamente. Quando, tempos depois, Lalá – como Babo era carinhosamente chamado entre amigos – decidiu ir a Dores de Boa Esperança, cidade da menina, para conhecê-la finalmente, descobriu, para seu espanto e decepção, a verdadeira autoria das cartas. Seu admirador na realidade era um homem, tio de Nair, o dentista Carlos Alves Neto6. Eu cantava de tudo. Foi então que, no meu aniversário de seis anos, ganhei este piano do meu pai, contou Cida apontando para o M. Schwartzmann na sala de sua casa. Sobre ele, alguns porta-retratos com fotos suas e de sua filha figuram sobre a toalha de renda branca recaída, vinda da Ilha da Madeira: lembrança da mãe. Família Seu nome de batismo é Maria Aparecida Guimarães Campiolo. Ela mora, desde o dia 16 de julho de 1982, num apartamento no bairro dos Jardins, em São Paulo, cidade em que nasceu a 12 de novembro de 1951. Entre discos e livros, vive com sua filha, Júlia Porto, e uma cadelinha chamada Billie Holiday Duncan, uma basset hound dada pela cantora e amiga Zélia Duncan, dias após a morte de Bessie Smith, a beagle com quem dividiu treze anos e meio de sua vida, desde quando a ganhou da madrinha da filha, Maria Helena Weber, sua amiga há quatro décadas, no aniversário de 6 anos de Júlia. Cida é quase sempre irreverência pura. Mas conduz sua carreira com mãos de quem sabe onde quer chegar. A cantora divide toda a densidade de seu temperamento artístico com uma vida cotidiana bastante comum. E faz questão que seja assim. Curte as bobagens da tevê, como ela diz, e cozinha como ninguém. Em sua geladeira não faltam frutas, legumes, queijos, iogurte e Coca-Cola. Tudo bem variado para quem, como ela, se aventura nas artes culinárias desde criança. Gosto de fazer qualquer prato, de qualquer cozinha, orgulha-se. Ela já cantou em países como Itália, Argentina, Alemanha, Portugal, Argélia, França, Uruguai, Espanha. E logicamente ama viajar: Qualquer viagem é boa para o meu espírito itinerante. Seu lugar preferido no mundo é Veneza, para onde já foi quatro vezes e ainda pretende voltar por mais algumas. Quer morrer na cidade italiana, e não tem medo da morte. Lido muitíssimo bem com isso. Acredito em outras vidas, o que independe da religião que eu tenha. Aliás, sou muito religiosa. Tenho muitas religiões, embora a de origem seja católica. Para mim, Deus é a possibilidade de elevação a todo momento. E Ele não tem de vir até nós. Nós é que temos de ir a Ele, se quisermos. Para subir ao palco, entretanto, nada de superstições ou rezas. Segundo Cida, o ofício de cantar trata-se, antes, de algo concreto. A emoção corre sempre paralelamente a um processo racional de criação. Por isso, basta um aquecimento vocal e alguns exercícios respiratórios para que a cantora, sempre muito inquieta antes de entrar em cena, possa, já maquiada e devidamente vestida, deixar a coxia com naturalidade. Considera-se solitária, ama o silêncio e define-se como inteligente e desiludida, o que nunca a impediu de sonhar: Há muitas coisas que não realizei, pois estou sempre sonhando obsessivamente. No momento, meu sonho é ser uma pessoa mais calma, que não se importe tanto com tudo e com todos em demasia. Meu sonho é ser serena, sábia, e uma velhinha muito solta no mundo outra vez, depois de toda uma vida compromissada com tudo. Chegando em sua casa para a nossa primeira entrevista, logo ouço sua voz do outro lado da porta responder lentamente um inconfundível Eeentraaa, ao soar da campainha. E a sempre calorosa recepção de Billie que se levanta do sofá azul correndo em minha direção. A porta estava destrancada e no canto direito da sala, logo se vê o antigo piano-estante. Ele também, como a porta, passa grande parte de seu tempo aberto. E guarda histórias e coin­cidências como sua própria origem: a mesma do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, um dos autores mais presentes na carreira de Cida. O instrumento chegou em um caminhão a Paraguaçu via Porto de Santos, trazido da Alemanha, e está com ela desde que o ganhou de seu pai, a quem se refere sempre com grande emoção: Era filho de imigrantes, plantador de café. Um roceiro! Mas um homem de grande sensibilidade. Chamava-se Antônio Campiolo e, mesmo não sendo ligado à música, foi quem comprou o instrumento para a filha. Os seus pais, avós de Cida, chamavam-se Fortunato e Elvira. O casal foi morar em Rio Claro, passando a trabalhar na lavoura de café, como também fizera o filho, até formar-se guarda-livros, antiga desig­nação para o ofício de contador. Assim como as circunstâncias em que se conheceram, devido às origens italiana e portuguesa, respectivamente, a data do casamento de Fortunato e Elvira é indefinida embora se estime algo em torno de 1910 e 1912, conforme Cida explicou. Com vinte e dois anos, Antônio conseguiu seu primeiro emprego numa loja de tecidos chamada Casa Camponesa, em Jaboticabal, deixando o serviço na lavoura. Já conhecia, então, a futura companheira, Maria Aparecida Santos Guimarães, que dava aulas para os imigrantes de uma fazenda próxima. Em dois anos, Antônio comprou a loja e os dois se casaram na antiga basílica de Aparecida, onde Cida, terceira filha do casal, foi batizada com um mês. No início da década de 1940, o avô paterno de Cida, Fortunato, comprou um sítio entre Arapongas e Rolândia. Nessa época, despontavam cidades no norte do Paraná, com uma base econômica assentada na cultura do café. Assim como seu pai, Antônio também comprou um sítio, que batizou de Granada e, em 1954, levou a Casa Camponesa para Astorga, nas proximidades daquela região do Estado, ainda em desenvolvimento. A loja foi um dos primeiros estabelecimentos comerciais da cidade, que havia sido fundada apenas três anos antes, em 1951. Dessa forma, seus negócios ficariam mais próximos. Em Astorga, a cerca de 65 km de Londrina, o pai de Cida poderia administrar o sítio mais facilmente, além de planejar a compra de outras terras. O que não estava previsto era que a esposa Maria Aparecida, ao transferir-se de Estado com o marido, perderia seus dezoito anos de magistério. A solução foi mudar-se com os filhos para a cidade mais próxima da divisa de São Paulo com o Paraná, enquanto Antônio se dividisse entre a casa e a loja. Por isso, em 1954, Cida passou a morar em Paraguaçu Paulista, onde permaneceu até 1966, ano da aposentadoria de sua mãe. Durante esse tempo, a família passou por três endereços, como lembrou Juvenal Augusto Campiolo, o segundo irmão de Cida: Eram casas simples e grandes, com poço, galinheiro, horta e muitas árvores no quintal. Como a diferença de idade entre os irmãos era grande, quase não brincávamos juntos, mas a Cida gostava basicamente das mesmas coisas que as outras meninas da idade dela. Saía para a rua com os amigos, sem restrição nenhuma de espaço. Como ela reforçou: Tudo de melhor que existe nesse mundo para uma criança. Juvenal é médico e trabalha, atualmente, em São Paulo e Santo André. Ele se diverte lembrando os apelidos de infância. Será que eu podia contar?, brincou. Todos no diminutivo, como completou Cida, dias após a conversa com ele. Eu era Nequinha, de bonequinha. E ele Juvenalzinho. Escuta, esse livro não é sobre a minha carreira?, bronqueou entre risos. Com o piano em Paraguaçu, Nequinha iniciou seus estudos de música. O primeiro professor foi João Galhardo. Em seguida, dona Clélia. Eles ensinaram à menina as primeiras notas, enquanto ainda era alfabetizada por Dona Carmen, em 1959, como confidencia a cantora em seu prefácio para o livro Solistas dissonantes: história (oral) de cantoras negras, de Ricardo Santhiago. [Dona Carmen] e seu marido, professor Saturnino, eram os únicos professores negros da cidade. Com aquela mulher de uma nobreza imensa, aprendi a ler, a escrever e a conviver. Desde então, mais que admirar, compreendi para além do banal de uma criança que o valor dos homens está em todos. Dona Carmen é uma linda e vívida lembrança da minha infância, da minha formação7. Tempos depois, Cida entrou no conservatório de Edgard Reis, com 7 anos e, posteriormente, em outro, na cidade de Assis, para onde passou a viajar toda semana. Galhardo me iniciou no piano. Era um jovem talentoso, solar, de quem tenho uma lembrança pouco nítida, porém forte. Um artista que logo foi embora daquela cidadezinha e que possivelmente não fez jus ao seu talento e modo de ser. Era expressivo, alegre, elegante. A dona Clélia era amiga da minha mãe de magistério. Uma mulher sóbria, discreta, bonita. Muito, muito séria. Com ela, se aprendia ‘na marra’. Aprendi muito de disciplina, antes de ingressar no conservatório do Edgard Reis, grande professor. São lembranças opacas nas cores, mas fortes nas sensações que me trazem. Fundamentais, revelou a cantora. Nesse período, Cida cursava o Grupo Escolar que terminou em 1961. Dividia-se entre a rádio, as aulas de música e as missas e festas católicas para as quais passou a ser sempre requisitada como cantora e pianista. Em seguida, entrou num colégio protestante. Era o Colégio Paraguaçu, escola americana mista onde aprendera canções que passaria a cantar nas assembleias, para a diversidade de sua formação musical. Foi nesse período que ela se mudou de cidade novamente, seguindo dessa vez para Londrina, Paraná, no dia 6 de janeiro de 1966. Seu irmão Juvenal já fazia o cursinho em São Paulo para Medicina, e Paulo Sérgio, o caçula, com 9 anos apenas, ainda cursava o primário. O pai, entretanto, continuou dividindo­se entre o sítio, a loja e a família. Maria Aparecida só foi para Astorga viver com o marido em 1975, quando Paulo entrou na faculdade de Engenharia, em Lins. Ela morou com o companheiro até 1985, ano em que Antônio morreu. Só então foi para São Paulo, pela proximidade dos filhos, onde permaneceu por quatro anos, até o fim da vida. Cida falou do irmão mais velho, Antônio Campiolo Júnior, falecido aos 30 anos. Tato, como era chamado, nasceu em 1942, com sete meses, pesando 1,1 quilo, e tinha síndrome de Down. A mãe contava 23 anos e o pai estava em Natal, pronto para embarcar dali a três dias para a Itália, onde serviria na Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Por conta do nascimento do filho, conseguiu dar baixa no Exército e voltar para casa. É incrível como meus pais, tão jovens, e tendo de enfrentar em 1942 uma realidade tão assustadora como esta, conseguiram ser absolutamente extraordinários até o fim. Nascer nessa família foi difícil, pois o espaço para os outros filhos era pequeno, na realidade, e isso nos afetou, a cada um, de um jeito. Mas o Tato era o centro da família, nosso anjo da guarda. Um espírito superior, que nos ajudou a ser o que somos, e teve o papel afetivo central nessa família difícil, de gente tão diferente entre si. O grande elo de tudo foi sua existência e a luta dos meus pais pela sua vida. Uma vivência especial, intransferível, única, dificílima, mas bela. Ele me amava. Eu tocava piano para ele, e ele adorava. Era carinhoso, gentil, um príncipe, que fazia jus ao nome Antônio Campiolo Júnior. Eu o amava, eu o amo e sinto sua falta, sua força e sua presença até hoje, com clareza e saudades, confidenciou Cida emocionada. A mãe da cantora casou-se com Antônio no dia 23 de junho de 1940. O avô materno de Cida chamava-se Juvenal França Guimarães e tinha ascendência portuguesa, tendo sido professor por toda a vida. Pertencia à tradicional família Galvão de França, de Guaratinguetá, e possuía parentesco direto com Frei Galvão, como garantiu a cantora. Já a avó, Maria das Dores França Guimarães, tinha ascendência austríaca e vinha de uma família quatrocentona. Também era professora e, dificilmente, o casamento da filha com um roceiro, um carca­mano, como chamavam, seria plenamente festejado por eles, que haviam sido, inclusive, donos de escravos antes da abolição, em 1888, e defendiam valores burgueses, tradicionalistas, ainda que posteriormente o enlace tenha sido aceito. A filha de Juvenal e Maria das Dores nasceu em São Paulo e formou-se profes­sora no Colégio Caetano de Campos, em 1938, aos 19 anos. Pegou o trem sozinha e foi, com essa idade, trabalhar perto de Rio Claro, numa fazenda de italianos, alfabetizando filhos de imigrantes. O resto da história não é difícil deduzir: Nessa fazenda, ela morava com os Della Colleta, uma família italiana que já estava se ramificando no Brasil e da qual somos amigos até hoje. Ela nos contava que a casa era de chão batido. E foi assim, sendo professora na roça, que conheceu meu pai. Por se tratar de uma mulher de grande cultura, a mãe de Cida a incentivava em sua relação com a música. O que talvez não suspeitasse é que a filha levaria o interesse tão a sério. Ao contrário de Maria Aparecida, Antônio não fazia propriamente a mesma coisa. No entanto, além do piano para a filha, foi ele quem comprou um acordeom para Juvenal, que também estudou música por algum tempo. Naquela época, era de bom-tom uma menina estudar piano, e o rapaz, sanfona. Mas o futuro médico desistiu do instrumento, ao contrário da irmã. Quando Cida completou 14 anos, passou formalmente a dedicar-se à música. Entrou para o conservatório do Colégio Mãe de Deus, onde estudava em Londrina. Passou a ter, então, uma visão acadêmica de teoria musical. Algo, segundo ela, mais completo e realmente importante. Terminei o piano com 18 anos. Mas a partir dos 14 comecei também a fazer teatro amador. Eu era pianista no coral da Universidade de Londrina. A gente viajava cantando e tocando músicas eruditas, relembrou. No colégio, Cida também teve aulas de canto. Continuou sua atividade como artista amadora, intensa e determinadamente como convém a uma boa escorpiana. Foi ainda em Londrina que ela se lembra de ter visto pela primeira vez o compositor Arrigo Barnabé, com quem trabalharia anos mais tarde. Dessa época, o compositor guarda uma vaga lembrança, mas explica: Eu não me lembro de tê-la conhecido efetivamente em Londrina, mas tenho a sen­sação de que nos cruzamos em algum momento sim, até porque tínhamos amigos em comum. Eu namorava a Marta Furtado que era quem ensaiava as meninas do Colégio Mãe de Deus para o 7 de Setembro. Elas desfilavam atrás da fanfarra do Colégio Marista que era onde eu estudava. E eu tocava também na fanfarra, então estávamos todos ali. Engraçado, porque eram nessas ocasiões que os rapazes do Marista tinham alguma chance de conversar com as meninas do Mãe de Deus, já que era separado por sexo. Não tinha homem no Mãe de Deus, nem mulher no Marista. No desfile, elas usavam um bonezinho branco, meia três-quartos, luvas, era um uniforme superchique. Então não me lembro de ter visto a Cida, mas essa era uma situação em que muito provavelmente ela estava presente. De Londrina, Cida seguiu para São Paulo, com quase 19. Ficou pouco mais de um ano na cidade onde nasceu. Durante esse período, manteve-se distante da música. Pensava ter abandonado o instrumento, pois nunca imaginou ser pianista erudita. Para isso, precisaria ter mantido um ritmo de estudos muito mais intenso, algo em torno de oito horas por dia, o que, definitivamente, não estava em seus planos. Não sei bem o que me influenciou. De qualquer forma, o fato é que isso era uma coisa minha. Um dom mesmo, assumiu a cantora. Julio Medaglia parece concordar com o que ela diz, ao defini-la como uma personagem do nosso cancioneiro popular. Não é apenas uma cantora de melodias, porque tem ideias. A música dela faz parte de todo um contexto de atuação, em que a voz é apenas um dos elementos e, por isso, talvez ela seja uma das únicas cantoras inteligentes vivas do país, elogiou. Cabe aqui mencionarmos a crítica escrita pelo maestro e publicada no livro Em branco e preto, sobre as divas do matriarcado musical brasileiro, em que Medaglia reafirma sua visão sobre Cida, ao citar: (...) Mas o predomínio vocal feminino em nossa música popular acontece também nos dias de hoje. É só passar uma vista d’olhos na programação de nossos Palaces e Canecões. Shows masculinos que eventualmente ocorrem, como os de Gil ou Caetano, se dão mais pela personalidade criadora de músicas e ideias dessas figuras do que por suas vozes isoladamente, o que não é o caso das cantoras que constantemente se apresentam em grandes espetáculos, nos quais o cultivo dos recursos vocais e interpretativos é evidente. E aqui a paleta é grande e diversificada: Gal, Bethânia, Marisa Monte, Rita Lee, Simone, Marina, Ângela RoRo, Zizi Possi, Cida Moreyra, Ná Ozzetti, Tetê Espíndola, Elza Soares e tantas outras (...)8. O maestro, que morou por dez anos na Alemanha, explicou também que Cida é um tipo de cantora cuja linguagem cênica deriva dos típicos cabarés europeus, em que o artista comenta suas canções fazendo uma espécie de crônica de costumes de seu tempo. Um bom exemplo desse cabaretismo está nas obras dos alemães Kurt Weill e Bertolt Brecht, responsáveis pela popularização internacional do estilo que determinou, desde o início, os rumos tomados pela carreira profissional da jovem cantora. Não à toa, um dos prin­cipais trabalhos gravados de Cida é todo dedicado às canções de Brecht, em parte compostas com Weill, a quem ela também reverencia permanentemente. Kurt Weill nasceu em Dessau, Alemanha, no ano de 1900. O compositor era filho de judeus e seu pai cantava numa sinagoga, o que talvez tenha sido decisivo para que o talento do garoto fosse, desde cedo, revelado. Começou a compor, tendo escrito sua primeira ópera aos 11 anos. Quando completou 16, entrou no Conservatório de Berlim, para estudar composição com Ferrucio Busoni. Em 1927, conheceu Bertolt Brecht, de quem se tornou importante parceiro em peças como Ópera dos três vinténs e Ascensão e queda da cidade de Mahagonny. Mudou-se, em 1935, para os Estados Unidos, onde morreu quinze anos depois, tendo feito, por lá, uma carreira brilhante. Foi autor de um teatro social e político, assim como Brecht, ainda que ambos tenham se distanciado ideologicamente a partir de certo período de suas vidas. Sobre Brecht, de quem se falará melhor mais adiante, Cida é categórica: Eu sou aquela pessoa. Aquilo é minha vida. Conheci aproximadamente aos 14 anos e logo descobri o mundo dos excluídos, do qual faço parte. Foi e é minha maior descoberta até hoje. Adoro o espanto do público toda vez que eu o canto. E isso é espetacular! Se eu tivesse essa capacidade sempre... Na minha opinião, esse é o papel do artista. Adoro ser desconcertante. Assis e São Paulo Apesar de toda a dedicação de Cida Moreira aos estudos de música ainda em Londrina, seu objetivo ao chegar a São Paulo não foi outro senão entrar na universidade. Terminado o período do cursinho, ela passou, em 1971, na faculdade de Psicologia da Unesp, em Assis, para onde se mudou. Morou novamente no interior paulista, dessa vez por três anos, até pedir transfe­rência e terminar o curso na PUC, em São Paulo, capital. No início dessa década, os grupos de teatro amador tinham forte atuação em Assis, embora o cinema na cidade ainda fosse uma forte opção de entretenimento, mesmo com o surgimento da televisão que, em seus primórdios no Brasil, era ainda constituída dos artistas vindos das rádios e, portanto, muito influenciada, é claro, por essa linguagem, ao contrário da europeia, por exemplo, mais liga­da ao cinema, à literatura e ao cabaré. Em nossa conversa, Julio Medaglia fez uma afirmação categórica contra os rumos que a TV toma no período atual, tendo como referência a época dos grandes festivais, dos quais ele fez parte ativamente. Quanto mais subia a qualidade da música, maior era a audiência. O público não é esse idiota que os canalhas que tomaram conta dos meios de comunicação pensam que é. O Festival da Record de 1967 foi parar no livro dos recordes, como a maior audiência da televisão mundial, comparou. No ano anterior ao da chegada de Cida a Assis foi criado o grupo de teatro da Fafia – Faculdade de Filosofia de Assis, que se ramificou posteriormente em outros importantes, dos quais Cida não participou, ainda que tenha bebi­do de toda essa fonte cultural e dessa movimentação artística. O município de Assis foi fundado em 1917. Quatro anos depois, com a construção de uma igreja de alvenaria, a madeira que restou da demolição do antigo templo foi reutilizada na construção do Teatro D. Carlos, que posteriormente passou a se chamar D. Antônio José dos Santos, nome do primeiro bispo da diocese da cidade, recém-criada no ano de 1928. Foi nessa época que começaram a acontecer as primeiras montagens de teatro amador em Assis. No começo da década de 1970, fase que coincide com a ida de Cida para a Unesp, grupos como o da Escola Estadual Professor Ernani Rodrigues, fundado em 1973, ou o do Seminário São José, de 1974, marcaram a produção de teatro da cidade que já havia recebido, na década anterior, artistas profis­sionais como Tônia Carrero, Paulo Autran, Cacilda Becker, Walmor Chagas e Ziembinsky. No entanto, o movimento teatral do município nascia também da periferia, caso do Tavo – Teatro Amador da Vila Operária. O grupo, que montou peças como Os transviados, de Amaral Gurgel, ou Morre um gato na China, de Pedro Bloch, além de se apresentar em outras regiões de As­sis, foi para cidades como Marília, Cândido Mota e Paraguaçu Paulista. Desde que começou a faculdade, Cida envolveu-se integralmente com o universo acadêmico. Foi quando ouvi falar de Cida Moreira. Nessa época ela já era conhecida na cidade, considerou Arrigo Barnabé. Fui passar um tempo em Assis, pois tinha um amigo de lá que havia perdido o irmão, e me lembro da Cida, já com seu espaço garantido. Mas mesmo assim continuamos sem nos conhecer pessoalmente por algum tempo. Além do seu curso propriamente dito, Cida entrou para o diretório dos estu­dantes e começou a participar da organização de fóruns culturais, peças de teatro, palestras e shows, sempre às voltas com uma intensa atividade polí­tica. Era uma vida muita rica, avaliou a cantora. O Brasil era outro país. Vivía­mos uma ditadura que, apesar de ser duríssima, era um inegável momento de efervescência cultural, sociológica, pessoal, exatamente na mão contrária do que se tem hoje. Para Cida, o país passa atualmente por um achatamento da vida criativa do povo, da vida imaginária, da poesia, da literatura, da música, manifestações que lhe soam precárias comparadas ao modo como aconteciam naquela época: Isso eu falo sem nenhum tipo de saudosismo porque sou uma artis­ta do tempo de hoje, mas lamento pelas novas gerações. Pela sua, pela da minha filha que, apesar de estarem muito sedentas de saber, ficam perdidas com tanta informação. Foram anos de imenso aprendizado. Cida frequentava aulas nas faculdades de Filosofia, História, Letras e lembra-se de grandes figuras como o impor­tante professor de História Ulisses Guariba, o professor e escritor Wilcon Pereira e o diretor de teatro Sérgio Nunes Farias, com quem aprendeu muito da arte de representar. Ele foi o primeiro homem de teatro com quem me relacionei. Daí eu ter aprendido tanto com ele. Figura controversa, maldita, genial. Amava o teatro para além de tudo e viveu coerentemente com isso até sua morte. Um verdadeiro rei em cena, um ator maravilhoso. Amigo amado, homem lindo. Enfim, um artista, disse Cida. Sérgio Nunes morava em Ourinhos, interior de São Paulo, e daria uma en­trevista para este livro no mês de agosto de 2008, quando estaria na capital para um check-up. O diretor, grande incentivador cultural da região, sofria de uma grave anemia em função do câncer no rim e da hepatite. Lamentavel­mente, ele morreu poucos dias após nossa conversa, aos 59 anos. Por tele­fone, Sérgio chegou a lembrar alguns nomes como os de Arnaldo Contier e José Pedro Antunes, também amigos de Cida do tempo em que moravam em Assis. Juntos – e com um espírito ingênuo, segundo a cantora –, Cida e Sérgio montaram na universidade, ainda em 1973, a peça Lux in tenebris, de Brecht, com uma tradução até um pouco tosca, feita por eles. Cida estudou em escola pública até o quarto ano primário. Depois foi para o colégio protestante, que era particular. Em seguida, entrou num colégio de freiras em Londrina, até chegar à universidade pública, que terminou em São Paulo, novamente numa entidade particular. Passou por todas as ramifica­ções possíveis de ensino, além de ser filha de uma professora aposentada com 32 anos de magistério e ser, ela própria, professora. Tem, portanto, conhecimento de causa para falar sobre educação no Brasil. Segundo ela, aí está uma área cujo cenário não se revela nada promissor: Acho que posso dizer: o ensino brasileiro a partir de 1964 acabou!. Até hoje, em suas pala­vras, o que se vive é uma escola pública agonizante: Colocam vinte compu­tadores numa sala e formam-se gerações de profissionais computadoriza­dos. Junte-se a isso certa decadência sociológica que influenciou muito a formação familiar das pessoas. Para ela, criou-se também uma outra cultura familiar que nada tem a ver com o real conceito de família. Uma estrutura em que a comunicação entre os componentes é simplesmente relegada: A sensação que eu tenho é a de que nós paramos de viver num mundo real e passamos a habitar outro, inventado pela mídia. As pessoas acham que são altamente informadas, mas não têm informação alguma. E não digo isso julgando ninguém. Vejo as gerações mais novas acessando um tipo de informação que não tem nada a ver com a nossa história, que deixou de ser tipicamente brasileira. Vale notarmos que esse senso crítico passaria a permear toda a vida e o trabalho de Cida Moreira. Bastante criteriosa com seus projetos e cons­ciente da realidade social e política do país, a cantora faz questão de tomar posições claras e manter em seus trabalhos uma coerência com suas raízes e seus pensamentos. Como disse o maestro Julio Medaglia, Cida é uma pessoa informada de todo o contexto cultural em que vive. Ela realmente sabe o que está fazendo. E sempre soube, desde a época em que, junto aos estudos, mergulhou de cabeça nas principais questões políticas e culturais do país, por meio de arte. Já em Assis, por exemplo, ela fez alguns espetáculos nessa linha, como relembrou o crítico e historiador Arnaldo Contier, professor de História da Unesp na época. Ele participou do processo de criação de um show de mú­sica brasileira feito por alunos do curso de Letras da universidade, do qual Cida também fez parte. Nós trabalhávamos o conceito de marginalidade, influenciados pelo José Celso Martinez Corrêa. Lembro que todos cantavam Marginália II do Caetano e do Gil, no meio da plateia, e o espetáculo tinha um tom até agressivo, recordou o professor. Um dos atores do espetáculo, hoje importante professor de literatura alemã em Araraquara, é José Pedro Antunes que, além de profundo conhecedor do dramaturgo Bertolt Brecht, manteve grande amizade com Cida desde essa época. Em seu depoimento, ele falou de quando se conheceram, em Assis, no começo dos anos 1970: Desde o início, o nosso relacionamento girava em torno da música. Não sei se ela se lembra, mas tivemos uma empolgan­te fase James Taylor. Na república em que ela morava, nos reuníamos para ouvir, ouvir, ouvir e imaginar a gente cantando também. Mais adiante, come­çamos a nos atrever. Estivemos juntos no palco em montagens de teatro como A roupa nova do imperador e Zezé: o bandido justiceiro, da Renata Palottini. Depois vieram os shows. Juntos, eles montaram Marginália, quando, segundo ele, entraram em con­tato efetivo com a história da música popular brasileira. Em Marginalia II, espetáculo de despedida da turma do professor, havia em cena um aparelho chamado de epidiascópio, uma espécie de projetor. Um trambolho em for­mato de fusca que permitia jogar na tela o que se quisesse, definiu Antunes. Por meio da geringonça, eles projetavam fotos de infância dos atores, como forma de reviver as aventuras interioranas de cada um. Aventuras como o memorável festival que fizeram juntos em Paraguaçu Paulista, no qual três canções de José Pedro foram classificadas. Em terceiro lugar ficou uma marcha-rancho desbragada, com direito a morte de porta-estandarte e Cida cantando; em quarto, uma canção que hoje ainda poderia ser cantada sem susto, chamada Exercício de solidão; e em sétimo, uma canção esquecível, com interpretação idem, em que nós fazíamos força para cantar como o MPB-4. Quando retornou a São Paulo, em 1974, Cida foi estagiária em Psicologia Escolar na Faculdade São Marcos, onde frequentou algumas aulas e cursos, até formar-se em 1977. Passou então a ser sócia do consultório no qual tra­balhava, onde permaneceu até o final de 1982, quando deixou a Psicologia para dedicar-se apenas à carreira de cantora, já consolidada nessa época. Em sua clínica, no número 1.000 da Rua José Maria Lisboa, bairro dos Jardins, trabalhava com a Ludoterapia, terapia especializada em crianças. Sobre uma hipotética relação existente entre a Psicologia e a arte de modo geral, Cida logo dá sua opinião: Não tem nada a ver, ao contrário do que as pessoas pensam. São ciências diferentes e todos querem fazer terapia da arte. Eu não acredito nisso. E mesmo tendo me dedicado apenas à música a partir de 1982, adoro a Psicologia. Quero ainda voltar a exercer a profissão. Toda a experiência de Cida em Assis foi base para ela lapidar sua personali­dade e dar um salto profissional, já na capital paulista, onde mora até hoje. Os próximos anos revelariam uma artista mais madura, que logo subiria aos palcos de São Paulo e, em breve, de todo o país. De volta ao camarim do Teatro Franco Zampari, em 2008, após deixar as câmeras, a cantora chamou pelo irmão Juvenal. Alguns amigos estavam pre­sentes também, mas não demoramos a entrar no táxi que nos esperava na porta lateral do teatro, após nos despedirmos de todos em meio ao tumulto dos bastidores. E seguimos para casa. A noite terminou tranquila como se em sonhos tivessem-se instantaneamente convertido as sensações vividas há tão pouco tempo. O carro dobrou a esquina e a última coisa que se ouviu, após muita risada, foi Cida indicando ao motorista, igualmente divertido, o local onde eu ficaria: o moço desce logo ali. Capítulo 2 – Charutos do Brasil O malandro na dureza Senta à mesa do café Bebe um gole de cachaça Acha graça e dá no pé (O malandro, Kurt Weill e Bertolt Brecht, versão livre de Chico Buarque para Die moritat von Mackie Messer) A partir de meados da década de 1970, a ditadura brasileira começou a passar por um início de abertura política, ainda sob o governo de Ernesto Geisel (1974-1979). Na música, o chamado estilo brega também começava a ganhar força tendo Sidney Magal e Odair José como dois de seus principais expoentes. O som das discotecas, bem representado pela irreverência de As Frenéticas, a partir de 1976, somou-se a novas sonoridades, caso das propostas por Raul Seixas ou pelos Novos Baianos, as quais proporcionaram uma fusão extremamente original do rock com ritmos populares brasileiros, como o frevo, o choro e o samba9, para não falar no baião, que fez nosso Maluco Beleza declarar-se filho de Luiz Gonzaga com Elvis Presley. Outros filhos de Gonzagão também passaram a integrar o cenário musical no Brasil, a partir daquela época. Figuras como Fagner, Alceu Valença, Ge­raldo Azevedo e Zé Ramalho foram espécies de continuadores, que desen­volveram e modernizaram o estilo lançado nacionalmente pelo velho Lua, e compuseram, assim, um país marcado pela diversidade de influências e pelo surgimento de inúmeros artistas. A Indústria Cultural, por sua vez, consolidava-se também como meio eficaz de legitimação do domínio cultural norte-americano, transformando certo tom amador, típico das décadas anteriores, em leis rígidas de mercado, bem menos preocupadas com a qualidade artística do que fosse lançado por suas poderosas multinacionais – cada vez mais presentes no mercado fonográfico brasileiro –, do que com seus números de vendagem, evidentemente. No teatro, a situação pouco divergia. Talvez por isso, a produção da década de 1970 tenha ficado tão marcada pela formação de grupos – tendo Cida participado de alguns dos mais representativos. Estes careciam preocupar­se em resistir não apenas à dominação cultural estrangeira, mas à censura, ainda mais implacável na dramaturgia de modo geral. Foi nesse contexto, em seus últimos anos universitários, que Cida Moreira conheceu as primeiras pessoas ligadas a teatro em São Paulo. Uma delas em especial, o diretor Marcio Aurelio, teve fundamental importância em sua carreira, responsável, inclusive, por apresentá-la a muitas outras, decisivas para sua trajetória. Os dois se encontraram pela primeira vez num curso ministrado por ele na Faculdade São Marcos, onde Cida foi estagiária. E tornaram-se, de imediato, grandes amigos. Marcio é professor de teatro no departamento de Artes Cênicas da Universi­dade Estadual de Campinas. Sobre essa época, ele lembrou: Conheci a Cida em 1974, quando ela chegou de Assis. Fui convidado para dar um curso na São Marcos, no DCE da Faculdade de Psicologia. Os alunos estavam inte­ressados em estudar psicodrama e isso seria um complemento, oferecido pelo diretório. Nesse grupo, estava ela. Foi um contato muito intenso logo de cara. Ela já conhecia muita gente do meio teatral e eu também a apre­sentei a algumas pessoas, como o Alcides Nogueira que eu conhecia des­de a adolescência em Botucatu, embora eles dois já tivessem em comum o Rubens Moura, que cuidava das questões relativas à arte, no diretório. Era tudo meio concomitante. Evidentemente eu caí na casa do Alcides nessa época, contou Cida. O atual novelista da Rede Globo completou: Nós nos conhecemos num boteco cha­mado Ponto Quatro, quase esquina da Avenida Paulista com a Consolação, perto do Riviera que era outro bar que tinha por ali. Daí em diante começa­mos a andar todos juntos. Marcio foi passar uma temporada na Itália, em 1975, para estudar na RAI, empresa estatal de rádio e televisão italiana. Quando voltou, no fim do ano, chegou a morar dois meses com Cida, até resolver algumas questões pessoais. Pouco antes, tinha sido a vez de Alcides que, há alguns meses, também voltara de viagem; neste caso da Suíça, onde fez sua pós-graduação em Direito Autoral: Eu estava sem eira nem beira e a Cida falou ‘vem pra cá, vem pra cá’. Fui morar com ela, ali na Rua Gravataí, esquina com a Praça Roosevelt. Então nós tínhamos uma rotina e a Cida virou, para mim, referência de todo um período de São Paulo que é muito importante na minha vida. Depois foi o Marcio. Ela tinha mesmo esse coração de mãe. Da Gravataí, cuja placa com o nome da rua Cida guarda até hoje pendurada na parede de sua cozinha, ela se mudou. Foi para um apartamento no número 281 da Rua Peixoto Gomide, nos Jardins. Antes de viajar para a Itália, Marcio dirigiu profissionalmente sua primeira peça, em que Cida ajudou, inclusive, nas áreas de administração, produção e bilheteria. Era A perseguição ou o longo caminho que vai de zero a ene, de Timochenco Wehbi. Na volta, em 1977, o diretor resolveu montar um texto que Alcides Nogueira havia recém-finalizado na época. Tratava-se, na realida­de, de sua primeira peça profissional chamada A farsa da noiva bombardea­da. O espetáculo, de linguagem expressionista, tinha seu início no momento em que acaba O casamento do pequeno burguês, de Bertolt Brecht. É uma das últimas falas do clássico de Brecht, que abre a cena de Alcides: Enfim, sós. Luís Antônio Martinez Corrêa havia montado O casamento do pequeno burguês no Teatro Oficina, em 1972, substituindo, às pressas, a polêmica Gracias, señor, criação coletiva dirigida por seu irmão José Celso e censura­da pelo regime militar. Segundo Alcides, os personagens do espetáculo iam passar a lua de mel em Santiago do Chile, exatamente durante o bombardeio do Palácio de La Moneda, tanto que a peça começava com bombas explodindo para todos os la­dos. Cida vestida de Valquíria entrava cantando um Wagner deslumbrante10. Era tudo muito louco. Depois ela morria e de repente estava no gabinete do doutor Caligari. Aí voltava. Tinha uma enfermeira nazista que era o Miguel Magno, chamada Herta. Ensaiávamos tudo no meu apartamento, na Rua Abílio Soares, por ele ter uma grande sala, retomou Marcio. Era tudo muito divertido. Havia pessoas que nem sabiam ainda se era mesmo teatro o que elas queriam fazer, mas que estavam a fim de exercer aquele tipo de discurso, com a provocação que tinha o texto do Tide. Como disse o autor, todos sabiam que estavam pisando no calo da ditadura e, afinal, era isso exatamente que queriam. No entanto, foram mal recebidos pela crítica, que julgou o grupo com certo desprezo. Assim foi fundado o grupo Pompa e Circunstância de teatro experimental. Era composto, além de Cida, por Marcio Aurelio, Miguel Magno, Marcelo Al­mada, Alcides Nogueira, que também atuava, dentre outros. A peça estreou no Teatro Cenarte, na Rua Treze de Maio, onde cumpriu curta temporada. Para Marcio, o texto aborda questões metafóricas que giram em torno de temas como a liberação da mulher, o orgasmo e a busca do sentido de reali­zação plena. Além disso, funcionava naquele momento como uma tentativa de retomar a montagem de O casamento do pequeno burguês, dirigida por Luís Antônio Martinêz Corrêa. Este foi o marco da estreia profissional de Cida, no mesmo ano em que também se formou psicóloga. A farsa da noiva bombardeada foi proibida um mês depois em todo o território nacional. Eu adotei uma atitude provocativa mesmo, mas os censores foram ver e liberaram. Lembro bem como era hu­milhante porque a gente tinha que pegar e devolver o censor na casa dele. Só depois de um mês, é que chegou um telegrama do Ministro da Justiça, Armando Falcão, proibindo a peça em todo o Brasil. Não entendemos nada, mas tenho impressão de que isso teve a ver com um incidente que ocorreu pouco tempo antes. Um senhor, no meio de uma das apresentações, se levantou fazendo um discurso de extrema-direita, nos chamando de comu­nistas. Nós paramos a peça e só ficamos ouvindo, contou Alcides entre in­crédulo e bem-humorado. Quando ele acabou, simplesmente foi embora. E pouco depois disso é que chegou o lacônico telegrama, então suponho que ele podia ser alguém ligado ao regime. Por conta da proibição, o grupo montou, ainda em 1977, outra peça de Alci­des, também com direção de Marcio Aurelio: Tide Moreyra e sua banda de najas, cujo projeto inclusive é anterior ao da Noiva. O apelido Tide vinha da infância do escritor. Mas o Moreyra aconteceu por acaso e justifica o nome artístico de Cida. Eu estava voltando de noite para casa e vi na rua jogada uma placa dessas de metal esmaltado em que estava escrito qualquer coisa com a palavra Moreyra, lembrou Tide. Era a propaganda de um alfaiate ou algo assim. Levei a placa e preguei na minha casa. Aí começou aquela história de associar ‘ah, porque o Moreyra’ e começaram a me chamar de Tide Moreyra. Só que a Cida estava querendo mudar de nome porque com Maria Aparecida Guima­rães Campiolo ela não ia nem até a esquina, brincou. Sugeri Cida Paradise, olha que besteira! Claro que ela não gostou. Por isso acabou ficando Cida Moreyra, antes mesmo de montarmos a Farsa da noiva. A brincadeira com os nomes causou, inclusive, certa confusão entre algu­mas pessoas que pensavam que Cida e Alcides fossem casados, o que, de fato, não aconteceu, como esclareceu o dramaturgo. Mas a cantora adotou o sobrenome e, com ele, passou a assumir uma persona que a acompanha no palco até hoje. Posteriormente, numa data imprecisa, passou a escrevê­lo com i, por questões numerológicas, segundo as quais o y não seria bom, por ter um formato que se bifurca, não levando a lugar algum. Ainda sobre a origem de uma suposta personagem artística que Cida carre­ga consigo, ao longo da vida, ela revelou: Durante a Noiva, houve um grande encontro em mim de elementos míticos que eu desconhecia até então e que, na realidade, eu achava, como ainda acho, que não fazem parte da mi­nha história concreta de vida, mas sim de uma história interior que eu não sei de onde vem. Existe uma personagem em mim que não tem nada a ver com a minha pessoa e muito menos com a vida concreta que eu tive, com a minha família, com a minha formação. Eu não sei bem o que é, mas alguma coisa colou em mim, e não descola mais. E eu acho que isso surgiu ainda em Assis, mas foi na Noiva que chegou efetivamente. Em Banda de najas, portanto, Cida já possuía consciência dessa persona-gem. Para a segunda peça do Pompa e Circunstância, a ideia de Alcides era um espetáculo musical. Nessa época, ele andava às voltas com a filosofia de Michel Foucault (1926-1984), muito interessado no que o filósofo havia escrito sobre os microcosmos do poder e sobre a loucura, que constitui um de seus dispositivos. O louco é aquele que não é aceito na sociedade, mas que cabe nela, desde que não ultrapasse certos limites, explicou o autor. Assim, surgiu a ideia de uma banda de supostos músicos que tentam o tempo inteiro montar um show e não conseguem devido à quantidade de acertos psíquicos com que cada um tem de se haver para tanto. A peça ti­nha toda uma estranheza que o Marcio soube dirigir com uma competência espantosa, avaliou Alcides. Marcio Aurelio, por sua vez, dá ênfase à crítica social presente no enredo de Tide Moreyra e sua banda de najas: Era uma banda que nunca cantava por ficar se perdendo na busca de uma identidade, dentro da nova ideia de mer­cado. Falava das contradições da grande formação da sociedade capitalista, suas relações de poder. Coisas muito reais pelas quais nós todos estávamos passando de verdade. Era muito forte. Tinha um produtor de televisão, outro da própria banda, e eles faziam negociatas, se ia ou não ter a apresentação da banda, se ia ou não ter cachê. O espetáculo era muito bonito. Quando chegava ao final, a banda ia saindo, esvaziando o teatro, até ir embora. E ficava no ponto de ônibus que havia em frente, esperando a plateia sair, sem aplauso, lembrou Alcides, que con­sidera a peça uma das melhores criações de sua carreira. Houve também polêmica em torno dela, o que, na verdade, acabou renden­do a favor do grupo. Além de ter revelado muitas pessoas, a Banda de najas se transformou na própria história narrada por ela, uma vez que, na verdade, o elenco não passava de um grupo de atores tentando fazer teatro. Mas nós sabíamos que aquilo era só aquilo mesmo. E não queríamos mais do que isso, declarou Alcides. O nome Najas foi escolhido, obviamente, pelo fato de essa espécie de cobra ser, não apenas venenosa, mas altaneira, traiçoeira. O cenógrafo e artista gráfico Victor Nosek foi quem fez os cartazes de divul­gação da peça, que ficaram perdidos por quase trinta anos. Recentemente os encontrou em sua casa, com os quais presenteou Alcides. De repente me chegou o Nosek num evento, com aquele canudo enorme debaixo do braço, dizendo ter encontrado o cartaz – que, diga-se de passagem, é maravilhoso. Ele fez com spray o selo dos charutos Suerdieck, lembrou o dramaturgo. Nosek revelou uma curiosidade interessante sobre a confecção do cartaz. Nessa época, eu não tinha grana para nada. Então fazia as coisas com sis­temas gráficos completamente alternativos. Nesse cartaz, usei máscara e spray em três acetatos diferentes, cada um para gravar uma cor. Fiz a finalização, e já tinha um fotolito pronto. Um dia eu estava andando na rua e pensando que talvez eu tivesse feito um cartaz grande demais. Eu era completamente inexperiente. De repente passei em frente a uma gráfica que fazia outdoors e entrei para perguntar se eles imprimiriam o meu trabalho, porque, afinal, eles faziam coisas grandes, divertiu-se. Só que ao invés de fazer a pergunta eu comecei a descrever como eu tinha cria­do o cartaz, e o cara muito simpático disse: Mas você paga pelo menos o papel?. Eu retruquei: Não, não é isso. Ele: Tá bom, te dou com papel e tudo. E de repente ganhei mil cartazes impressos. Aí cheguei para o Tide e contei incrédulo, foi demais!. O papel de Cida em Tide Moreyra e sua banda de najas foi o de Bertolina Ba­leira. A cantora ficava na plateia com um tabuleiro nas mãos, como lembrou Marcio Aurelio, cantando pregões pelo teatro e vendendo restos da banda. Fios de amor gratinados, pingos de ódio. Mas ela tinha um sonho que era o da apoteose, e quando ela percebe que esse sonho não vai se realizar, mata o Tide Moreyra. Só que não fica claro se é uma morte real ou encenada, porque eles viviam num jogo de verdade e mentira, nas relações pessoais. Cida completou. Era uma coisa maldita, porque nesses restos que a Berto­lina vendia, havia também uns pedaços de gente. Eu ia oferecendo assim: orelhinhas, dedinhos, cabelinhos. Uma personagem incrível, mas um pouco macabra. Olha, não tente entender certas coisas, sugeriu entre risos. Como lembrou João Carlos Couto, o Janjão, um dos atores da peça: durante o processo de criação e ensaios, a Cida pediu a cada um de nós que trou­xéssemos de casa algum objeto que nos fosse caro e colocou-os no tabulei­ro que oferecia à plateia. O espetáculo era muito doido, interessantíssimo. Nós éramos todos muito jovens. O elenco era grande com atores curiosís­simos. Tinha música, mas não era ao vivo. Era uma trilha gravada, composta pelo Natan Marques e pelo Crispim, músicos com quem Janjão trabalhou também em Falso brilhante, espetáculo antológico da cantora Elis Regina, realizado no Teatro Bandeirantes em São Paulo, de dezembro de 1975 a ja­neiro de 1977. Natan e Crispim, que foram igualmente consultados, não se lembraram de nenhum detalhe da montagem, e ainda brincaram: Olha, de­pois de mais de trinta anos, melhor você falar com o Janjão mesmo. Cláudia Alencar vivia uma trapezista cujo trapézio não saía do lugar. Miguel Magno era um espanhol que tocava bumbo. O elenco era composto, ainda, por Flávio Fonseca, Celuta Machado e Maria Lúcia Pereira que, posteriormente, deixou de atuar para ser crítica. Maria Lúcia, que na peça fez a crooner da banda, era uma das únicas pessoas formadas em interpretação pela ECA – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, de onde costumavam sair apenas diretores. Para o espetáculo de sua formatura, Marcio Aurelio fez a direção e convidou Cida para cantar e tocar. Era seu primeiro trabalho profissional específico sobre Bertolt Brecht. O primeiro de muitos. A peça chamou-se A canção da inadequação do esforço humano, era ba­seada nas personagens femininas do dramaturgo e acontecia num ringue de boxe. A atriz realizou uma espécie de colagem das mulheres criadas por ele. Eu me lembro que o Marcio havia trazido da Itália muitas partituras do Brecht que inclusive aproveitei algum tempo depois, lembrou Cida. Trouxe também um dos três discos dedicados à obra musical do autor gravados por Milva, grande cantora italiana com quem Cida trabalharia futuramente. Algu­mas das canções desse álbum receberam versões para o espetáculo feitas pelo ator e professor de canto erudito Caio Ferraz. Dentre elas, Cida citou Nina nana, 1942, de Brecht e Hans Eissler, que a cantora apresenta ainda hoje em seus cabarés. O piano ficava fora do ringue e eu cantava algumas poucas músicas, o que para mim já foi uma honra porque a Maria Lúcia era uma grande atriz. Para Marcio Aurelio, o espetáculo ficou marcado como um trabalho especial pelo momento político em que o país se encontrava: A peça tinha uma linha de evolução dramatúrgica muito interessante, que começava com as perso­nagens mais alienadas e ia passando pela viúva Begbick, de Um homem é um homem, Chen-Tê Chuí-Tá, de A alma boa de Setsuan, Frau Carrar, de Os fuzis da senhora Carrar, Jenny, de Mahagonny, enfim. A peça era construída a partir de trechos desses espetáculos e mostrava radicalmente o processo contraditório de cada uma das personagens. A Begbick entre negociar ou não, a Frau Carrar entre aderir ou não à guerra. E nessa evolução, passava-se pela questão da maternidade, que assumia depois uma posição revolucioná­ria por opção pessoal. A canção da inadequação do esforço humano foi bastante discutida na épo­ca, embora os professores do departamento não a assistissem, pelo fato de isso ser politicamente comprometedor. Tide Moreyra e sua banda de najas, por sua vez, foi vista por nomes como Flávio Império, José Celso Martinez Corrêa, Fauzi Arap, Jorge Takla, Elias Andreato e o ator Luiz Roberto Galízia. Ninguém entendia nada, nem nós. Mas a plateia era seleta, brincou Alcides. Galízia, por exemplo, estava chegando de Berkeley, Estados Unidos, para onde tinha ido pela primeira vez visando a sua pós-graduação, e estava mon­tando também um grupo de teatro experimental, chamado Teatro do Ornitorrinco, com Cacá Rosset e Maria Alice Vergueiro. Os três conheciam-se da época em que a futura musa do curta Tapa na Pan­tera (2006) havia sido professora dos dois rapazes no Colégio de Aplicação, na Avenida Paulista, ligado à Escola de Comunicações e Artes da USP. O grupo estava apresentando seu primeiro espetáculo no porão do Teatro Oficina, chamado Os mais fortes, reunindo três obras do dramaturgo sueco August Strindberg, e agora tinha planos para o musical Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill, com canções de várias peças da dupla, como Happy end e Ópera dos Três Vinténs, para o qual Cida Moreira foi convidada. Sobre os procedimentos que norteavam as opções cênicas do Ornitorrinco, a professora de teatro Sílvia Fernandes explica em seu livro Grupos Teatrais – Anos 70 que a escolha de textos dramáticos era algo recorrente nas mon­tagens do grupo que, segundo ela, trabalhava os textos por meio da essencialização, técnica de síntese das ideias básicas de uma determinada peça. Na síntese, o que interessava aos artistas era encontrar uma forma própria de discutir determinado autor, usando para isso dois ou mais textos. No caso de Os mais fortes, por exemplo, procuravam a melhor forma de discutir Strindberg, ligando-o ao contexto teatral do final do século XX. (...) Nas mon­tagens seguintes, o Ornitorrinco continua a adotar a essencialização. Mas à medida que a prática teatral avança, o procedimento baseia-se cada vez mais em leitura original, que usa o ponto de partida apenas como pretexto para adaptações livres. Em parte, a tendência é justificada pela complexida­de crescente dos autores que a equipe escolhe para encenar. Se Os Mais Fortes realizava a síntese parcial de um aspecto da obra de Strindberg, ficava mais difícil repetir a façanha se a referência era Brecht. O espetáculo seguin­te do grupo, Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill, funcionou apenas como ensaio de leitura de Brecht, que seria concluído na montagem de Mahagonny songspiel 11. Eles são radicais, nada de meios-termos. Eles gargalham mas não dão sorrisos. Eles nunca nos olham de maneira comum. Sempre seus olhares são densos de sentido que muitas vezes nos escapam. Falam muito baixo ou berram, nada de vozes macias aos ouvidos. 12 Logo após Luiz Roberto Galízia ter ido ao Teatro Cenarte para assistir à inquie­tante montagem de Tide Moreyra e sua Banda de Najas, ele convidou Cida a conhecer melhor o trabalho do Ornitorrinco e, posteriormente, a participar do próximo espetáculo do grupo. Cacá Rosset também trouxera partituras da Europa e a ideia era uma peça musical com canções de Brecht e Weill, permeadas por esquetes. Exatamente quando eu recebi esse convite, mandei trazer meu piano de Londrina, lembrou Cida. Foi no apartamento da cantora, na Rua Peixoto Gomide, que o grupo começou a ensaiar o espetáculo com as primeiras versões que Galízia havia feito de algumas músicas. Estreamos fazendo aos sábados à meia-noite, também no porão do Teatro Oficina. Então eu estava ao mesmo tempo na Banda e no Ornitorrinco, do mesmo modo que o grupo também conciliava o espetáculo de Brecht e Weill com a temporada de Os Mais Fortes, no mesmo local. Sílvia Fernandes diz que a escolha de um espaço alternativo, como o porão de um teatro, por parte do Ornitorrinco, não era um fato isolado, mas refor­çava o comportamento mais frequente das cooperativas da época. A estreia em espaços alternativos é bastante comum no início da carreira dos grupos e vem acompanhada de uma sequência de estratégias de luta pela colocação dos trabalhos, como a divulgação boca a boca, a cobrança de ingressos abaixo do preço de mercado e as apresentações em horários inabituais, que caracterizam a opção das equipes por um esquema semia­mador de trabalho, em que o teatro não é desenvolvido como atividade profissional prioritária dos integrantes, quase todos sobrevivendo de ocu­pações sociais mais estáveis. Deve-se ressaltar, entretanto, que o espaço alternativo nem sempre é opção. É resultado da relutância dos organismos oficiais em ceder um teatro para grupos sem a relativa solidez das compa­nhias profissionais [...]13. Produções como as do Ornitorrinco, além de atraírem um tipo de público interessado em formas divergentes de teatro, eram feitas também com custos baixíssimos, pela mesma inviabilidade financeira que as impossibilitava de alu­gar uma casa de espetáculos, como explica a autora. Basta pensarmos que o cenário do musical de Brecht e Weill, por exemplo, criado por Victor Nosek, era composto apenas de um piano debaixo de uma luminária de ágata verde. O que havia era uma lua vermelha de cartão recortado, forrada com papel metálico e pintada com uns sprays dando um efeito meio esfumaçado. Era uma alusão direta à obra do Brecht, pela recorrência do signo em suas peças, explicou o artista gráfico. Aliás, não apenas em Brecht a lua aparece como símbolo recorrente, mas no teatro de maneira geral. Ela anuncia a revo­lução e costuma simbolizar inspiração, feminilidade, fertilidade. Eles entravam com essa lua na mão e a penduravam num ganchinho que vinha do teto. Segundo a crítica Os brasileiros Brecht & Weill de Flavio Marinho, no momento em que a lua é pendurada após a entrada dos atores em cena, e aclamada como o signo do anti-ilusionismo teatral, está dada a chave básica que determina o tom geral do espetáculo. No mesmo texto, o autor comenta: Cida Moreira, com seu visual felliniano e kitsch, não toca piano, batuca. Mas até isso se encontra em harmonia com a proposta deste quase anti-show, anti-ilusionista e brasileiro14. Já os figurinos do espetáculo foram todos comprados em brechós. Cacá Rosset de fraque, Galízia de terno, Maria Alice num vestido preto com franjinhas no decote, e Cida com uma raposa pendurada no pescoço, e um vestido pêssego com o qual fora madrinha de casamento do seu irmão Juvenal. Até o piano, que seria aproveitado futuramente na monta­gem de Mahagonny Songspiel, havia sido emprestado por uma tia de Cacá Rosset que acabou presenteando o sobrinho com o instrumento, tempos depois. Nós fazíamos de tudo. O Galízia ficava na bilheteria, eu recebia os tickets. Aí o público entrava e a gente saía correndo atrás, para pôr o figurino e entrar em cena. No fim, ainda passávamos o chapéu, contou Cida, divertindo-se. O espetáculo, que encerrou sua temporada no dia 17 de março de 1979, obteve enorme sucesso de público e crítica. Na matéria A lucidez de Brecht e o humor dos Ornitorrincos, Macksen Luiz escreveu: [...] é espetáculo simples e direto, e exatamente por essas qualidades atinge uma comuni­cação excepcional com a plateia. E o público não precisa, necessariamente, saber das sofisticadas teorias brechtianas de ação teatral, muito menos se assustar com o peso e a importância da dupla de autores. [...] O diretor Cacá Rosset brinca com os conceitos teóricos de Brecht, subvertendo a respeitabilidade que congela as montagens dos textos brechtianos no Brasil. Criticando o monstro sagrado, ou investindo contra aqueles que transformaram Brecht num objeto intocável de adoração, o diretor conseguiu a montagem mais perfeita sobre o autor alemão nos últimos 20 anos nesse país15. O crítico José Guilherme Mendes reforçou a ideia, dizendo que o despojamento do espetáculo, pela magia das canções da dupla de autores, transformou-o num cais de Bilbao, na longínqua Mandalay, no East End londrino, num bordel marselhês, numa pradaria do Alabama, no convés de um navio16. Cida participou ainda, em 1978, de outra montagem: O Elefantinho. O texto, na realidade, é o apêndice da peça Um Homem é um Homem, também de Brecht e foi apresentado na sala preta da EAD – Escola de Arte Dramática da USP, como espetáculo de formatura de Cacá Rosset. O recém-formado diretor resolveu convidar para atuar amigos que não fossem atores profissionais. Da peça participaram, dentre outros, Alain Fresnot, que se consagrou como cineasta tempos depois, Flávio Fonseca, que integrou a Banda de Najas e hoje é arquiteto, Alcides Nogueira interpretando a lua, o próprio Cacá como a bananeira e Victor Nosek novamente deixou sua marca no cenário. Eu estava andando com o Cacá de noite, lembrou o cenógrafo, e resolvemos entrar num parquinho de diversão. Fomos conversando até chegarmos num estande de jogar com aquelas bolas de meia para derrubar latas. E o brinde era uma luminária de porcelana com o formato de um elefantinho maravilhoso, era um monumento ao kitsch. Eu fiquei pirado, querendo aquilo. Peguei três bolas furioso e, com as três, derrubei tudo. Peguei o elefante na hora e o tenho até hoje. Aí no dia seguinte o Cacá decidiu: Já sei o que eu vou montar na minha formatura. Era o texto do Brecht!. Esse espetáculo, no entanto, não estava vinculado ao Ornitorrinco. Cacá era a bananeira, que é o juiz da selva. Eu fazia a lua, que é o promotor, e ficava andando de um lado para o outro do palco, no ritmo do piano da Cida. Ela sempre me sacaneava, tocando cada vez mais rápido e eu terminava a peça morto de tanto correr, lembrou Alcides rindo. O enredo é simples: O filhote de elefante sofre acusação por ter matado a própria mãe, sendo que a mãe está presente em cena. O texto gira em torno dessa discussão banal, liderada pela bananeira e pela lua. É teatro rasteiro, classificou Nosek brincando. Eles perguntam: como matou a mãe se ela está aí, porra?. E a resposta é: Pois é, é justamente disso que se trata a peça. As apostas podem ser feitas no balcão do bar. Cida era a dona desse bar e também a única mulher do elenco. Ela servia bebida às pessoas, num irreverente vestido de oncinha, aberto nas costas. Sempre tive essa coisa de dona de bordel, definiu ironicamente. As apresentações invariavelmente lotavam, mas, por tratar-se de um espetáculo de formatura, não ultrapassaram muito a marca de dez sessões. Para que a arte dramática possa ter pleno efeito sobre vocês, solicitamos que fumem o quanto quiserem. Os intérpretes são os melhores do mundo, as bebidas não são falsificadas, as cadeiras são confortáveis. Apostas sobre o desfecho da ação podem ser feitas no balcão do bar. A cortina de fim de ato fechará conforme as apostas do público. Pede-se também não dar tiros no pianista, ele faz o melhor que pode. Quem não compreender logo a ação não precisa quebrar a cabeça: ela é incompreensível. Se desejam ver somente algo que tenha algum sentido, vocês devem se dirigir ao mictório. O dinheiro do ingresso não será devolvido sob hipótese alguma. Aqui está o nosso camarada Jip, que tem a honra de interpretar o filhote de elefante. Se vocês acham que o seu papel é muito difícil, eu lhes digo apenas isso: um artista de teatro deve ser capaz de tudo17, anuncia Brecht com irreve­rência, logo na primeira fala, dita pela personagem Polly em frente às cortinas, antes mesmo de o entreato ter início, conforme a referência do texto. Alcides observou ainda que, na época, qualquer pessoa que montasse Um Homem é um Homem, encenava sem o apêndice. E que a intenção de Cacá Rosset, neste caso, foi seguir uma linha rigorosamente oposta. Ele chamou alguns amigos da FAU e montou apenas O Elefantinho, que era minúsculo, não chegava a uma hora, mas acabou virando um grande espetá­culo, esclareceu Tide. No final da peça, nada era resolvido. O texto terminava com os atores saindo de cena para decidir o impasse numa luta de boxe. Tanto que a mãe do elefantinho saía junto, e com os peitos feitos de luvas de boxe, porque quem a interpretava era o Flávio Fonseca, acrescentou Nosek. Ele tirava as luvas do peito e ia embora para a luta. Ópera do Malandro Primeiro vem a comida, depois vem a moral18 Não quero encher o mundo com a minha mediocridade. Já tem tanta gente maravilhosa por aí, confidenciou-me certa vez Cida Moreira, justificando o fato de nunca ter composto. Como se vê, a cantora é admiradora confessa de uma infinidade de artistas e compositores. Explorou em profundidade obras inteiras, buscando pérolas para compor seu repertório. E dentre os mais representativos, talvez se possam citar pelo menos três nomes cuja influência e recorrência em sua carreira parecem torná-los, de alguma forma, especiais para ela. Chico Buarque de Hollanda é um deles. Cida o conheceu pessoalmente durante a temporada de Ornitorrinco canta Brecht e Weill, no porão do Teatro Oficina, em 1977. O compositor assistiu ao espetáculo por sugestão de Luís Antônio Martinêz Corrêa, com quem estava começando a trabalhar na produção de um musical, resultado da adaptação das peças Ópera dos Três Vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill, e Ópera do Mendigo (1728), de John Gay19. A versão de Chico se chamaria Ópera do Malandro. Por isso o compositor estava pesquisando e captando recursos para o espetáculo que estrearia no Rio de Janeiro. Fiquei muito impressionado com Cida Moreira, desde a primeira vez que a vi cantar, acompanhando-se ao piano; canções de Kurt Weill e Berthold Brecht. Era natural que pensasse nela para interpretar meus temas teatrais. Mas partiu dela, mais tarde, a ideia de gravar um disco com canções minhas, não necessariamente escritas para o teatro. E mais uma vez ela me surpre­endeu pela sensibilidade e pela inteligência de suas interpretações. É um disco que escuto ainda hoje com muito gosto, confidenciou Chico para este livro. A partir desse primeiro contato, o compositor convidou o Ornitorrinco para apresentar Brecht e Weill na casa de Francis Hime, no Rio de Janeiro, onde haveria uma reunião com os possíveis produtores da Ópera. Foi uma sessão restrita, com aproximadamente quinze pessoas, contou Cida: Lembro do Chico dizendo que ainda não sabia se faria versões das músicas do Brecht e do Weill ou se comporia músicas novas. Acabou compondo as suas. O grupo foi para o Rio e apresentou o espe­táculo na casa de Francis. Olívia Hime fez uma macarronada para a gente. Ficamos num quartinho. Depois da apresentação, pegamos um ônibus de madrugada e voltamos para São Paulo, completou a cantora. Na sequência, o grupo recebeu por telefone o convite de Luís Antônio Martinez Corrêa, diretor da peça, para atuar em Ópera do Malandro. Chico escreveu papéis especialmente para Cida, Maria Alice, Cacá e Galízia, mas este último voltou aos Estados Unidos para concluir sua tese de doutoramento, sobre o artista norte-americano Robert Wilson, chamada Os Processos Criativos de Robert Wilson e publicada em 1986 pela Editora Perspectiva, de modo que Galízia teve de ser substituído. Em seu lugar, entrou o próprio Luís Antônio que também passou a atuar no espetáculo de Brecht e Weill. O irmão de José Celso levou o show para o Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, onde passou a ser considerado cult. O elenco foi acrescido ainda por Elba Ramalho que fazia a personagem Lúcia em Ópera do Malandro. Elba entrou e foi muito interessante, uma nordestina cantando Brecht e Weill, comentou Cida20. Na Paraíba, eu já havia declamado alguns poemas do Brecht quando fazia teatro amador, explicou Elba no camarim do Memorial da América Latina, em São Paulo. Mas musical ainda não tinha feito. Foi uma experiência linda poder cantar em alemão, inglês. Era um espetáculo irreverente, todo conceitual. E a gente se divertia muito! O Teatro Tablado lotava, ia toda a inteligência carioca. Lembro que eu cantava My shipp; Jenny dos piratas; Alabama song. Agora, inesquecível era a Cida ao piano em Surabaya Johnny. Era o momento dela, em que punha toda a sua dramaticidade irretocavelmente. Como ela, só me lembro de uma pessoa fazendo belissimamente essa canção, que é a cantora italiana Milva. A maneira como a Cida se transa, se curte, é algo que arrebata de imediato o olhar, a atenção. Ela é extremamente autoral. A figura dela é brechtiana, felliniana, pasolliniana. A Cida é uma personagem. E é capaz de cantar qualquer coisa porque a música não tem limites para pessoas como ela, elogiou Elba, ressaltando a autoridade que a união música-teatro é capaz de legitimar num artista em cena. Em seguida ao convite do Chico, ele nos informou que faria novas canções, revelou Cida. Na verdade, acho que ele já estava compondo. O que queria era ouvir melhor as músicas do Brecht ao vivo. O Ornitorrinco teve dois meses para se programar e conciliar a vida em São Paulo com os dois espetáculos no Rio. Cida ainda atendia em seu consultório, mas não deixou de clinicar por isso. Apresentava Brecht e Weill às segundas-feiras, em duas sessões: uma às 19h e outra às 22h. Terça era vaga. De quarta a domingo, fazia a Ópera, que estreou em julho de 1978, sendo que, aos sábados e aos domingos, havia duas sessões de quase quatro horas cada. Ópera do Malandro marcou a história do teatro no Brasil. Ficou um ano em cartaz no Rio de Janeiro, sendo possivelmente a peça mais musical de Chi­co Buarque. Ainda que a redemocratização não fosse uma realidade política tão distante, o País ainda vivia sob o comando militar, o que torna represen­tativo o fato de o seu enredo passar-se em meados da década de 1940, durante a ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954). Evidentemente, não era a Vargas que Chico se referia ao contextualizar sua peça numa época em que se evidenciam sinais de repressão em meio à decadência da Lapa carioca e ao princípio do processo de industrialização do País que, por sua vez, abria ainda mais espaço para o domínio cultural norte-americano, em detri­mento de valores tradicionais próprios. Desse universo nascem prostitutas, cafetões e malandros, cujas ética e moral, tais como são concebidas pela burguesia mais conservadora, estão claramente postas de lado no texto, assumindo de maneira crítica e bastante irreverente, pelas canções de Chico, o clima de malandragem federal que perpassa o espetáculo. Não bastasse o Teatro Tablado com sua lotação esgotada para os dois primeiros meses de Brecht e Weill, e o sucesso de Ópera do Malandro no Teatro Ginástico, Cida recebeu outro convite, dessa vez do ator Antônio Pedro: substituir a cantora Miúcha em Os Saltimbancos, de Sérgio Bardotti e Luís Enríquez Bacalov, com músicas de Chico Buarque. O espetáculo foi inspirado no conto Os Músicos de Bremen, dos irmãos Grimm, e, como musical infantil, não deixou de trazer, em sua essência, uma crítica política representada alego­ricamente pelos personagens centrais, cuja apreensão por parte da garotada possivelmente não fosse intuito dos autores. O tema principal da peça é a solidariedade, esta sim, universal para qualquer criança. Antônio Pedro era diretor da montagem e interpretava o Cachorro que depois passou a ser feito por Otávio Augusto. Como a irmã de Chico viajaria, após uma grande temporada fazendo a Galinha no Canecão e, posteriormente, no Teatro dos Quatro, Cida entrou ao final da turnê em seu lugar, nas tardes de sábados e domingos. A escassa produção Alarma o patrão As galinhas sérias Jamais tiram férias “Estás velha, te perdoo Tu ficas na granja Em forma de canja” Ah! é esse o meu troco Por anos de choco? Dei-lhe uma bicada E fugi, chocada (A Galinha, Enriquez, Bardotti, Chico Buarque) Segunda-feira, depois da segunda sessão do Ornitorrinco, eu pegava um ônibus, chegava em São Paulo às 5 da manhã, ia para minha casa, que, nessa época, já era na Rua Girassol, Vila Madalena. Dormia umas três horas, tomava banho e seguia para o consultório, para atender. À noite eu pegava um avião, voltava ao Rio e desmaiava, porque na quarta-feira já começava a Ópera, lembrou Cida, rindo ao imaginar como manteve essa agenda. A correria durou até acabar a temporada carioca da Ópera. No ano seguinte, houve nova montagem, dessa vez em São Paulo, com atores como Tania Alves, da qual Cida não participou. A personagem da cantora era a líder das pros­titutas Dorinha Tubão. Um papel delicado, coisa leve, divertiu-se. Com ele, pôde exercitar seus dois grandes talentos, participando de todos os coros como no caso do refrão de Geni e o Zepelim. Além disso, ela abria o segundo ato com Folhetim, cantando: Se acaso me quiseres / sou dessas mulheres / que só dizem sim / Por uma coisa à toa / uma noitada boa / um cinema, um botequim. O processo de composição do espetáculo envolveu todos os artistas e o texto foi estruturado em parceria, ao longo das várias reuniões realizadas na própria casa de Chico e Marieta Severo. Ópera do Malandro concentrou esforços de vários talentos e distintas áreas das artes brasileiras. O musical contou com a direção do erudito John Neschling que pôs uma orquestra de 25 pessoas em cena tocando ao vivo, além do grande elenco integrado, dentre outros, por Marieta Severo, Ary Fontoura, Otávio Augusto, Cláudia Jimenez, Elba Ramalho e Emiliano Queiroz, este último na pele da histórica Geni. Liguei para Emiliano no início da tarde de 21 de julho de 2008 para marcar a data em que me daria seu depoimento e acertamos que a entrevista seria feita por telefone ao final daquele mesmo dia. A surpresa não poderia ser melhor quando, atendendo ao segundo telefonema, o ator informou-me ter escrito um texto especialmente para a ocasião. Generosamente leu um carinhoso testemunho que fala por si, e o qual ditou pacientemente após o delicioso bate-papo. Cida Moreira, um grande talento de cantora, atriz e pianista. Cida enriqueceu a montagem da Ópera do malandro com sua criação da personagem da Dorinha Tubão. Dona de um humor especial, tinha uma figura imponente e de uma musicalidade rara. No momento em que eu cantava a música da Geni, Cida e outras atrizes do elenco faziam o coro joga pedra na Geni e era arrepiante, para mim, ouvir aquela voz poderosa que se destacava entre ótimas vozes. Colega querida, mulher culta e simples. Durante uma entrega de prêmio no Canecão, ela cantou a música da Geni. Depois nos encontramos na plateia e ela me disse que, sempre que cantava aquela música, lembrava da minha imagem no palco do Teatro Ginástico do Rio de Janeiro. Isso me encheu de orgulho. Assisti Cida se acompanhando ao piano em vários recitais, inclusive no Teatro Rival. Uma grande intérprete de Kurt Weill. Foi um belo encontro o meu com Cida Moreira. Em seu perfil Na sobremesa da vida, escrito pela produtora, diretora e atriz (além de sua esposa), Maria Letícia, Emiliano Queiroz menciona alguns momentos relevantes do processo de criação do espetáculo: Começamos a ensaiar em nossa casa na rua Joana Angélica, em Ipanema, [...]. Assistimos à obra de Bertolt Brecht registrada em filmes. Nas aulas, o professor Manoel Maurício de Albuquerque repassou a História do Brasil, do descobrimento até a ditadura de Getúlio Vargas, cenário da peça. [...]21. A varanda da frente da residência do ator transformou-se em uma delegacia. Na sala, atrizes faziam laboratório esperando clientes, verdadeiras meretrizes. E eu fazendo vida pelas dependências da casa como uma prostituta bêbada e encrenqueira. Foi uma improvisação dinâmica da peça de John Gay22. Assim nasceram personagens como Genivaldo, a famosa Geni, que, como explicou Emiliano, tinha o mesmo DNA de Jenny dos Piratas: Lotte Lenya foi a Jenny, de Brecht, cantando Kurt Weill23, realça o ator que, por um período, foi substituído na peça por Tonico Pereira. Ele não era tão maldito quanto o Emiliano, mas fazia lindamente também, pontuou Cida. E durante a noite vão berrar Perguntando sem parar: quem será que vive aí? De manhã então eu abrirei a porta Vão perguntar: quem é esta mulher? (...) Haverá silêncio em todo o cais Quando ele me perguntar: Quem é que deve morrer? Minha voz então será ouvida... Todos! E quando as cabeças rolarem eu direi: Benfeito! (Jenny dos piratas ou sonhos de uma camareira, Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset e Luiz Galízia para Die Seeräuber – Jenny) A canção que Chico escreveu para Geni teve, originalmente, apenas três estrofes, como revelou Emiliano Queiroz. O que houve foi que, após o ensaio, o compositor lhe pediu que a esquecesse, pois comporia outra. Joga bosta na Geni / ela é feita pra apanhar / ela é boa de cuspir / ela dá pra qual­quer um / maldita Geni!, cantarolou o ator em nossa conversa, lembrando os versos que se eternizaram em seu papel. Este foi o primeiro encontro profissional de Cida Moreira e Chico Buarque, embora a admiração da cantora por sua obra viesse de longa data. Chico é um compositor do cotidiano, cronista de sua época e, não raro, atento às figuras marginalizadas pela sociedade. Talvez esteja nesse aspecto um dos pontos coincidentes entre seu trabalho e o de Brecht – o segundo dos três nomes que parecem influenciar de maneira marcante a personalidade artística de Cida Moreira, e do qual ainda se falará com mais atenção. Não à toa, portanto, Chico convidou Cida para integrar uma adaptação de Ópera dos Três Vinténs, assim como não se tratou de mero capricho o fato de a cantora ter dedicado um álbum de carreira a cada um desses dois compositores. O critério de seleção dos repertórios revela-se competente ao contemplar as diferentes épocas criativas de ambos, sem perder de vista seu ponto de intersecção, isto é, o submundo de personagens como Mackie Navalha, de Ópera dos Três Vinténs, ou mesmo os tantos ladrões, prostitutas, vendedores de vinho e camareiras que povoam este universo. Capítulo 3 – Para Inglês Ver Summertime and the living is easy Fish are jumping, and the cotton is hight Your daddy is rich, and your mama´s good looking So hush little baby, don´t you cry. (Summertime, G.Gershwin – D.Heyward) Com o término do musical de Chico Buarque, Cida Moreira retomou normal­mente seus trabalhos no consultório de Psicologia, de volta a São Paulo no primeiro semestre de 1979. Só no ano seguinte, mais especificamente a 12 de junho de 1980, uma quinta-feira, ela estreou outro espetáculo, agora no Studio São Pedro, chamado Às Margens Plácidas, com o grupo de teatro expe­rimental Pod Minoga, em comemoração aos dez anos da trupe, composta pelos atores Carlos Moreno, Dionísio Jacob (Tacus), Flávio de Souza e Mira Haar. Cida recebeu o convite para participar da peça que, por sua vez, sairia da linha de improviso proposta até então pelos componentes. Ela funcionaria, contudo, como uma espécie de síntese da estética barroca tradicionalmente explorada pelo elenco, fator que possivelmente tenha comprometido sua organicidade, devido ao excesso de detalhes e elementos visuais presentes em cena. O grupo nasceu de um curso de artes plásticas ministrado por Naum Alves de Souza na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP) de 1965 a 1969 e era composto também pelo próprio Naum que considera o espetáculo Cenas da Última Noite como o seu último junto à trupe, mesmo tendo feito uma pequena participação posterior em Folias Bíblicas, marco de transição do Pod Minoga para uma fase menos experimental. Juntos, eles desenvol­veram uma proposta de criação coletiva bastante liberal, baseada em jogos de improvisação e mímica, e marcada pela fusão de elementos originários das artes plásticas. (O nome Pod Minoga surgiu numa das reuniões do grupo no apartamento de Ana Haar, mãe de Mira. Foi inspirado no romance polonês Café Pod Minoga, de Stefan Wiechecki, editado em 1947 e esquecido há anos numa prateleira. Minoga, segundo a dona da casa, significa sardinha e este foi um café que, de fato, existiu em Varsóvia. O grupo imediatamente se interessou pela possibilidade de aquilo não querer dizer nada, nem ser, de nenhuma maneira, engajado). Às Margens Plácidas foi baseada no conto A Saga de Mary Anne, escrito pelo próprio Tacus e teve um enredo definido, com texto de Ana Luiza Fonseca, Tacus e Flávio de Souza, embora o estilo do grupo não tenha sido, por essa determinação, descaracteri­zado. O espetáculo contou com a direção musical de Cida que também tocava seu piano e interpretava a personagem do Destino. Além dela, entravam em cena a atriz Ângela Grassi, agregada ao grupo algum tempo depois de sua criação, fazendo Tia Ondina, e Regina Wilke, como Mary Anne. Mira foi Soraya, Dionísio viveu Lourival, e Flávio deu voz a Aldelair. Carlinhos Moreno, o famoso garoto-propaganda da Bom Bril, não participou da montagem, pois estava morando na Califórnia, após ganhar uma bolsa de estudos. Houve, ainda, duas figurações: Ciça Maringoni, como Coincidência, e Marcos Botassi, como Acaso. A temporada, que acabou menos de dois meses depois, no dia 3 de agosto de 1980, em meio a críticas desfavoráveis e pouca receptividade do público, teve direção de José Possi Neto, administração e divulgação de Artelino Macedo, e suscitou, por isso tudo, uma reflexão no elenco, que decidiu desocupar o galpão onde se apresentava na Rua Oscar Freire, uma vez que não havia mais condições de se dedicar profissionalmente ao Pod Minoga. Sobre o enredo da peça: A história de Mary Anne, uma menina santa, e seus amigos: Lourival, um pobre-diabo que vive de pequenos golpes; Aldelair, um idealista frustrado; Soraya, uma decadente atriz de circo com carência afetiva; e Ondina, uma mulher de meia-idade que sonha com improváveis conquistas. Eles se encontram numa viagem e passeiam por um Brasil alegórico, onde encontram comendadores, eleições fraudulentas, órfãos, motoristas de caminhão. ‘Todo o tempo lutando bravamente contra o destino que também é uma personagem da peça’24. Summertime Antes de estrear Às margens plácidas com o Pod Minoga, ainda em 1979, Cida já estava planejando também, ao lado de José Possi Neto, um primeiro espetáculo solo, após a leitura que ambos fizeram de uma biografia da cantora Janis Joplin, terceira grande influência na formação artística de Cida, dentre os nomes aqui sugeridos. Neste caso, entretanto, a percepção das marcas estéticas deixadas por Janis parece priorizar os aspectos relativos ao comportamento cênico de Cida, ainda que se vinculem também às questões de repertório. Janis Lyn Joplin nasceu em 1943 na cidade de Port Arthur, no sudeste do Texas. Ao contrário do que se possa imaginar a respeito de uma mulher famosa por sua eletricidade e sua rebeldia, ela foi uma criança tímida e muito parecida com todas as outras, pelo menos até o último ano do colégio, embora sua inte­ligência e sua imaginação fossem nitidamente superiores às da média. Um traço ingênuo desta personalidade, entretanto, fez com que ela se tornasse alvo fácil de sarros e hostilizações entre colegas: Acreditava em tudo quanto lhe fosse dito. E acabou assumindo, por isso, o papel de boba da corte da turma. Era, ao menos, sua forma de fazer-se notada ou sentir-se incluída. Mas sua ingenuidade transformou-se, aos poucos, em revolta. Se Janis tivesse parecido bonita aos olhos dos colegas, se possuísse uma feminilidade que camuflasse o estilete do seu espírito rebelde, tudo lhe teria, talvez, sido tolerado. Mas não era esse o caso. Janis estava indo de encontro a um ambiente hostil e construindo um estilo afim. Como tantas vezes acontece na impaciência e no mistério de um coração sensível, o caminho tornou-se confuso; o esforço para manter o equilíbrio voltou-se contra ela como um demônio independente, destruindo-a com terrível e perversa cruel­dade, escreveu Myra Friedman na biografia Enterrada Viva25. Janis não fazia nada em que não pudesse ser a maior. Esse traço de sua personalidade fez com que a menina abandonasse a pintura, ao constatar que, embora talentosa, não possuía gênio necessário para seguir carreira nesse sentido. E começou a cantar no último ano do colégio. O primeiro disco de Cida Moreira é o registro ao vivo do show inspirado na aura de Janis e na voz cortante da americana que consagrou canções como Kosmic Blues, Summertime, Cry Baby, e Bye, Bye, Baby. No dia 16 de dezembro de 1979, Summertime – Um Show para Inglês Ver estreou na capital paulista, em sessão única no Off, sala experimental situada no bairro do Itaim e coordenada por Celso Curi que marcou a década de 1980. Segundo Cida, a apresentação foi bastante problemática: O lugar não era o mais adequado e foi muito assustador para mim fazer um primeiro espetáculo sozinha. Por conta disso, ela considera janeiro de 1980 como a data de sua estreia, após a qual passou a apresentar-se em um teatro recém­inaugurado na Rua Henrique Schaumann, número 528, chamado Terra Nova. Não tínhamos dinheiro nenhum, então propusemos ao Celso Curi que fizés­semos no Off e ele topou, mas logo nos viram por lá, e fomos chamados para esse outro bar na Henrique Schaumann, explicou o diretor do espetáculo, José Possi Neto, em seu escritório. Cida e Possi conheceram-se efetivamente em 1977, após ele voltar dos Estados Unidos, onde viveu, e, desde então, ficaram muito próximos. Summertime nasceu dessa amizade e de inúmeras e despretensiosas conver­sas entre ambos. O diretor havia, na época, contraído hepatite e, durante os quatorze dias de sua recuperação em que ficou de cama, Cida o visitou frequentemente na casa de sua mãe, localizada no bairro do Tatuapé, como também o fez a atriz Marilena Ansaldi, na época em cartaz com o espetáculo Um sopro de vida, dirigido por ele. Partilhando lembranças, sempre em meio a muitas risadas, chegaram a Janis Joplin que, quando morreu, em 1970, Cida contava apenas 18 anos. A partir da leitura de Enterrada Viva, de Myra Friedman, começaram a buscar um repertório inspirado na figura extravagante de Janis e no que sua tragédia pessoal havia representado para a época. O nome do espe­táculo surgiu, é claro, da ligação que ambos tinham com a música homônima ao título, composição de George Gershwin, cantada por Joplin. O repertório foi escolhido com um critério pessoal e afetivo dos dois, mas relacionado à ideia de trazer a efervescência da geração dos anos 1960 para o palco. Por isso não se restringiu a Janis. Entraram músicas como She´s Leaving Home (John Lennon e Paul McCartney); My Man (C. Pollock); Vapor Barato (Wally Salomão e Jards Macalé); Gota de Sangue (Ângela Rô Rô); Não se perturbe nem fique à vontade Tira do corpo essa roupa e maldade Venha de manso ouvir o que eu tenho a contar Não é muito nem pouco eu diria Não é pra rir mas nem sério seria É só uma gota de sangue em forma verbal (...) Não tire da minha boca esse beijo Nunca confunda carinho e desejo Beba comigo a gota de sangue final (Gota de Sangue, Ângela Rô Rô) Na concepção de José Possi, a cantora não representava Janis Joplin26. Usava a independência e a exuberância do ídolo para descobrir a si mesma em cena e ressaltar questões como a marginalidade, presente tanto em Janis quanto em Geni, por exemplo – outra semelhança, além da pronúncia dos nomes. Temas como a solidão das grandes cidades, o submundo da prostituição e das drogas, muito marcantes no trabalho e na vida de Janis, e que, também, de alguma maneira, remetem à personagem de Chico, estavam presentes no show. Mas, mesmo não querendo confundir-se com Janis, alguns equívocos eram cometidos, principalmente entre os jovens mais desinformados, que telefonavam ao teatro perguntando: É aí que a Janis Joplin está cantando? Do Café Concerto Terra Nova, Summertime aportou no Teatro São Pedro, também em São Paulo. Nesse meio tempo, teve fim a temporada de Às Margens Plácidas com o Pod Minoga e Cida recebeu do grande amigo Tico Terpins o convite para gravar um disco com o registro ao vivo de seu show. Falecido em 1998, vítima de enfarto, Tico foi uma pessoa de imensa impor­tância tanto na carreira quanto na vida pessoal de Cida Moreira. Era músico, integrou a banda Joelho de Porco no final dos anos 1970, amadrinhada pela cantora e sambista Aracy de Almeida, e estava montando, nessa época, um estúdio chamado Áudio Patrulha, que ficou responsável pela produção do disco de Cida. Tico era um homem especial. Maluco, brilhante, inconsequente e absoluta­mente consequente. Amigo! Dos melhores que alguém pode ter nessa vida. Solidário, caráter irrepreensível. Uma pessoa que me entendeu completa­mente e me deu muitas coisas boas na vida. Grandes gestos de afeto e generosidade. Sua morte foi um baque para mim e, até hoje, é como se ele estivesse por aqui e me ligasse sempre. Uma imagem dele: eu com a Júlia pequena num churrasco na casa dele. Ele olha para mim e para a Júlia e diz emocionado: ‘Que lindo, Moreira. Você e sua filha’. Jamais esquecerei sua expressão ao me dizer isso, jamais, contou Cida emocionada. Foi na Áudio Patrulha, inclusive, que Arrigo Barnabé finalmente conheceu Cida de maneira mais formal, após os caminhos de ambos terem apenas se aproximado ao longo dos anos, sem, no entanto, terem se cruzado: O Tico me chamou no estúdio para fazer alguma coisa porque queria, na verdade, que eu conhecesse a Cida. No começo fiquei reticente, sem saber o que falar porque ela era uma pessoa importante e sempre teve aquele jeito dela, desinibido, expansivo. Mas ficamos amigos. Tiramos até uma foto nessa ocasião, de costas um para o outro. Eu estava com uma camisa listada de vermelho e amarelo, se não me engano. A irreverência, de fato, sempre foi uma das marcas de Cida Moreira. Em Summertime, por exemplo, ela cantava com uma pena de avestruz na cabeça. Eram umas plumas vegetais que a gente levava numa malinha, dentro da qual também vinha o figurino, um candelabro com velas, um xale colorido, como símbolo hippie, e dois LPs, o Cheap Thrills, da Janis Joplin, e o Sargent Pepers, dos Beatles, que haviam sido outra grande inspiração. O espetáculo dependia apenas disso e de um piano, sobre o qual púnhamos um vaso com as plumas dentro, como lembrou o diretor José Possi. Em agosto de 1981, o show virou disco. Além de ter convidado Cida para registrar o espetáculo, Tico Terpins também produziu o LP. Nessa época, Cida estava começando a viajar com Summertime, após tê-lo apresentado em outros lugares como o Teatro Lira Paulistana, importante espaço de Summertime, Instituto Cultural Norte Americano, Porto Alegre, 1980 renovação musical de São Paulo, onde inclusive aconteceu sua gravação, no dia 30 de agosto de 1980. O ritmo de shows foi algo impressionante até o final de 1981, com o lançamento do LP. O êxito era enorme. Foi um sucesso alternativo, mas muito grande, avaliou Possi. Posteriormente, viajaram para o Rio de Janeiro, voltaram para São Paulo, apresentaram-se em casas como o Teatro Ruth Escobar, Café Concerto Terra Nova novamente, etc. O músico e publicitário Zé Rodrix, falecido em 2009, também integrou a banda Joelho de Porco e citou Summertime, anos depois, numa crítica sua ao futuro disco de 1988, Cida Moreyra interpreta Brecht, publicada na Folha de S. Paulo, ao escrever: Era um show íntimo, um pocket-show (...). Quando ela começou a desfiar uma série de tórridas canções, amargas, foi impossível não pensar o quanto aquilo tudo era brechtiano, mas no bom sentido, à moda brasileira, porque Brecht nesses trópicos tem um sabor especial27. Na sala de seu escritório, José Possi encenou uma brincadeira que Cida faz até hoje. Durante as viagens de Summertime, já no camarim com o produtor local, ela parava de se maquiar, antes de começar o show, e levantava-se num rompante, batendo a mão na mesa e dizendo aos brados: Chega! Não canto mais! Possi, cúmplice, entrava no jogo: Não faça isso, Cida! Está tudo acertado, falta uma hora para você entrar em cena. O produtor quase sempre empalidecia. Então eu faço agora! Abre o pano! O diretor: Não há ninguém na plateia, Cida, falta uma hora para o espetáculo. Ri muito. Pura molecagem. Foi na Áudio Patrulha28 que a cantora gravou também o seu segundo LP, Abolerado Blues, em que registrou Traçado, canção composta por Tico Terpins e Zé Rodrix. Para Summertime, ainda, Tico alugou o Lira Paulistana, que era um grande porão no número 1091 da Rua Teodoro Sampaio, próximo à Praça Benedito Calixto, com saída pelos fundos para os artistas. Quatrocentos convidados lotaram o teatro, em frente ao qual foi instalada uma unidade de som móvel. No camarim havia umas tábuas penduradas e o chão era de cimento batido, descreveu Cida, rindo das condições do local. Assim, a cantora apresentou o show na íntegra, em meio aos fios e a todo o aparato de captação montado pelo amigo. Uma peculiaridade, contudo, marcou aquela noite. Enquanto Cida Moreira se preparava para seu primeiro registro fonográfico, Aracy de Almeida fazia sua última gravação. Por isso, Summertime só começou a uma e meia da manhã, após Aracy ter cantado e falado muito também, num clima de descontração excessiva. Logo na primeira faixa do disco, a sambista soltou o verbo: Olha, precisa fazer uma fimose nesse microfone, hein?. E entre os risos da plateia seguiu com a clássica Feitio de oração, de Noel Rosa. Ao avaliar seu próprio disco, Cida faz algumas ressalvas técnicas. Acho mal gravado, minha voz está estranha. Teria que ser remasterizado, para não ficar tudo tão agudo. Mas mesmo assim é um lindo registro. Summertime ficou muito mistificado no tempo, por eu não ter feito mais29, definiu. Um show em homenagem a Janis Joplin e à sua época, mas com apenas três canções do repertório da cantora: Summertime (DuBose Heyward e George Gershwin); Mercedes-Benz (Janis Joplin e M. Mccheire); e Kosmic blues (Janis Joplin). Em cena, o piano, plumas e Cida que, no meio da apresentação, anunciava: Vamos partir para barras mais pesadas. O espetáculo foi um verdadeiro sucesso de público e crítica e marcou em definitivo a carreira de Cida, não só por ser seu primeiro trabalho solo, mas pela repercussão que teve. Toda vez que eu tento te falar Até parece que vais compreender Mas não entra nada em tua cabecinha Deus, o que é que eu vou fazer? Paro num boteco, tomo três traçados Só pra ver se afogo a dor Estou bestificado de tanto sofrer O teu impiedoso amor (Traçado, Zé Rodrix e Tico Terpins) Cida, Ricardo Petraglia e Zé Rodrix, Joelho de Porco, 1984 Serpente Rara e Abolerado Blues O long-play de Summertime saiu pelo selo independente de Tico Terpins, com grande repercussão assim como o show. Dedico a Ricardo, Sérgio, Tide e Galízia... as pessoas que viveram comigo o ‘sonho’ que eu canto nesse disco. Assim, Cida oferece seu primeiro trabalho gravado, lançado em 1981, após a estreia do novo espetáculo, numa linha um pouco diferente. Serpente Rara, dessa vez, propunha um repertório predominantemente brasileiro. Para a cantora, o show, que também aconteceu no Lira Paulistana, ficou no meio do caminho, não explorou todas as suas potencialidades artísticas. Mas o repertório, de qualquer forma, serviu de base para seu segundo disco, Abolerado Blues, de 1983. No show entraram canções como Asa Partida, de Raimundo Fagner, A Última Sessão de Música, de Milton Nascimento, Mar e Lua, de Chico Buarque, e Pitanga, de Marlui Miranda. Dentre as inéditas, estavam A mulher do Machão, de Roberta Faro, e Deixe-me, Rapaz, de Renato Teixeira, além da irreverente Louca, composta especial­mente para Cida por Tato Fischer, um dos fundadores e primeiro pianista do grupo Secos & Molhados, no qual Ney Matogrosso começou sua carreira de cantor no início da década de 1970. O título do espetáculo de Cida foi extraído do trecho que abre a letra da música: Louca, muito louca / Dez mil quilates de louca varrida / Quase uma fera, serpente rara / Pelos teclados dos palcos da vida. Tato escreveu os versos sem saber que serpente é o signo da homenageada no Horóscopo Chinês. Uma coincidência no mínimo instigante, conforme atestou o compositor, após lembrar, ao piano, trechos de sua canção. Calma, muito calma Também assim você pode me ter Por uns instantes, alguns somente Para em seguida, de novo, me enlouquecer... Me agito, respiro, suspiro, não paro, Me enredo no espaço, me jogo no amor Me atiro, me viro, me deito, disparo Rosa sem perfume, espinho sem flor Me largo, me agarro, me estrepo, me solto Cantando trapaças, cantando de dor (...) E tanto mais louca, apenas mais louca Como bem convém a quem quer respirar Mais amar, só cantar! (Louca, Tato Fischer) A direção de Serpente Rara ficou novamente por conta de José Possi Neto. Mas em vez de um clima solitário como o que marcou o espetáculo anterior, o show teve uma banda com a qual Cida revezava-se ao piano. Os músicos Luís Lopes (piano acústico, elétrico e arranjos), Franklin Paolillo (bateria) e Zé Português (baixo) eram os seus companheiros de trabalho. Outra diferença essencial – que marcou a transição do primeiro espetáculo­solo da cantora para Serpente Rara – foi o fato de ela apresentar agora canções menos familiares ao público, quando não inéditas. Cida Moreira não estava mais vinculada à ideia de uma personagem definida, que permeasse o conceito do trabalho. Teria, portanto, de se propor novamente como cantora e como pessoa, para usar a expressão publicada na matéria Nova emoção no canto de Cida Moreira, veiculada na época pela Folha de S. Paulo. Sobre o espetáculo, o crítico Jefferson Del Rios escreveu: Sua apresentação tem semelhanças com o fenômeno teatral. A começar pela maneira como a cantora estabelece o clima emocional e vagamente misterioso assim que sai da penumbra e senta-se ao piano. [...]. Serpente Rara navega a favor da corrente, deixando Cida à vontade: uma voz potente, mas capaz de delicadas modulações, sutilezas e filigranas dramáticas30. O álbum Abolerado blues, cuja capa é um grande desenho colorido do rosto de Cida, nasceu como um desdobramento do show. No disco, além da já citada Traçado, foram gravadas também canções como Singapura, de Eduardo Dussek, Não quero você assim, de Paulinho da Viola, e Surabaya Johnny, primeiro registro que Cida fez da obra-prima de Bertolt Brecht e Kurt Weill, numa adaptação de Duda Neves e Sílvia Vergueiro. Trata-se de uma canção da peça Happy End, considerada uma das mais belas músicas do teatro ocidental. A faixa rendeu um pequeno entrave com o regime militar, dissolvido rapidamente sem maiores complicações. A censura de Surabaya nunca foi devidamente explicada, achamos que eles não entenderam de onde ‘saía’ aquela música. Mas foi uma coisa que não durou muito. Apenas demoraram para liberar a faixa, revelou a cantora. Surabaya é uma cidade portuária ao sul da Indonésia, cenário da desilusão amorosa entre as personagens da música: uma jovem prostituta de apenas dezesseis anos e o marinheiro que a abandona no porto, deixando-a só pela vida, após jurar-lhe amor. Dezesseis anos só eu tinha E pra longe você me levou E dizendo que a sorte era minha À lua você me jurou Perguntei como você vivia E do mar você não me falou ‘Eu trabalho numa ferrovia, baby... Marinheiro não, eu não sou!’ Você falou muito, Johnny Nenhuma palavra era verdade, Johnny Você me traiu desde o começo Eu te odeio, Johnny! Não fique aí parado com essa cara Tira esse cachimbo da boca, cachorro! Surabaya, Johnny, não me trate assim... Surabaya, Johnny, meu amor não tem fim Surabaya, Johnny, sou tão infeliz Amando assim meu Johnny, que não chora por mim (Surabaya Johnny, Bertolt Brecht e Kurt Weill, adaptação de Duda Neves e Sílvia Vergueiro) A obra do dramaturgo alemão, muitas vezes em parceria com Kurt Weill, continuava sempre presente para Cida. Essa primeira gravação de Surabaya Johnny traz a versão completa da música, em relação ao registro futuro de 1988, em que apenas os versos do seu refrão são evocados como vinheta. A ideia do nome Abolerado Blues para o segundo álbum surgiu de uma crônica de Caio Fernando Abreu chamada Abolerados Blues que falava de coisas que só poderiam acontecer em São Paulo. Para Cida Moreyra, o disco acabou se transformando na crônica cantada, pelo próprio estilo das letras, pelo seu jeito de cantar, arranjos, clima das canções31. Por sugestão de Tico Terpins, novamente produtor de Cida, um segundo registro de Singapura foi feito para o mesmo disco como vinheta, mixada intencionalmente com voz abafada, dando a impressão de uma gravação antiga, em homenagem às cantoras de rádio, como explicou Cida, para um jornal da época. A versão menor da música fecha o lado A do vinil e a gravação completa abre o B. Na vinheta, a cantora desafina propositalmente no momento em que a letra da música anuncia desafinoooou, referindo-se à personagem Singapura, o que não foi recebido com unanimidade por parte dos críticos que, em certos casos, foram taxativos em suas avaliações. João Marcos Coelho foi um deles, ao escrever: Aí se esconde uma das principais ambiguidades dos independentes, que às vezes confundem descontração com molecagem32. Segundo seu critério, o bom humor de Cida representou o desperdício de uma faixa por gozação, o que seria, em suas palavras, uma graçola idiota. A cantora chegou a argumentar a respeito de críticas como essa, embora não diretamente em alusão à matéria de Coelho, dizendo que nada em Abolerado Blues era inconsequente e que até preferia a gravação menos séria. Um exemplo de sua postura está na matéria Cida Moreyra cantando somente o que gosta publicada pelo Jornal da Tarde, na época: Como não sou vinculada a nenhum grande esquema promocional, quero ter plena liber­dade para acertar ou errar. Estou cantando apenas as canções que sinto. No palco, acho que consegui voltar ao ponto essencial sem fazer o mesmo espetáculo. Começo cantando blues, depois as canções do LP e outras não gravadas, relembro Dream a Little Dream of me e fecho com Summertime, Mercedes Bens e When a Man Loves a Woman33. Mahagonny Songspiel Destas cidades ficará: o vento que por elas passa!34 Após quase três anos nos Estados Unidos, para onde voltara a fim de terminar seu doutorado, Luiz Roberto Galízia finalmente retornou ao Brasil. Cacá Rosset saía de uma tentativa frustrada de montar Happy End, de Bertolt Brecht, e resolveu, então, adaptar Mahagonny Songspiel, peça radiofônica do dramaturgo com música de Kurt Weill, escrita em 1927. Sua versão final, a famosa ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny, só seria concluída em 1930. Contudo, O Pequeno Mahagonny, como também é chamada, além de mais curta, possui mais canções. Mahagonny é a cidade paradisíaca dos prazeres, onde a lei é comer, beber, amar e lutar. É fundada com a finalidade de fazer os passantes gastarem. Lá, tudo é permitido, exceto não ter dinheiro, desvio levado às últimas consequências com o julgamento de Paul Ackermann, morto por não ter pago três garrafas de whisky e uma vara de cortina da viúva Leokadja Begbick. Trata-se, evidentemente, de mais uma crítica perspicaz de Brecht aos princípios capitalistas, que se sobrepõem a valores elementares como a própria vida humana, marca recorrente em sua obra. Segundo a leitura proposta pelo diretor Cacá Rosset para a versão do Ornitorrinco, o espetáculo deveria apresentar uma linguagem interativa. Isso lhe causou problemas com a Fundação Kurt Weill, que julgou subversiva a montagem, mesmo que a trama descrita se passasse no ambiente de total liberação comportamental criado por Brecht. Oh, show us the way to the next whisky bar! Oh, don´t ask why! Oh, don´t ask why! For we must find the next whisky bar, For if we don´t find the next whisky bar, I tell you we must die! Oh, moon of Alabama, We now must say good-bye, We´ve lost our good old mamma, And must have whisky, oh you know why! (Alabama Song, Bertolt Brecht e Kurt Weill) Sobre a peça, Sílvia Fernandes explica, novamente em Grupos teatrais – Anos 70: Brecht e Weill não deixaram um roteiro escrito do Pequeno Mahagonny. Cacá Rosset baseou-se na reconstrução do estudioso inglês David Drew, que fez ampla pesquisa dos textos de Brecht sobre Mahagonny. O autor alemão tratou o tema da cidade paradisíaca desde 1921, quando escreveu o conto Rumo a Mahagonny, desenvolvido como trabalho em progresso até o término da ópera, em 1930. As Canções de Mahagonny, O Dilúvio, A Queda Paradisíaca da Cidade de Mahagonny e os poemas que chamou de Salmos e Epístolas de Mahagonny fizeram parte desse caminho de reescrituras, composto para denunciar as contradições da sociedade capitalista”35. A partir dessas referências, foi montado o espetáculo do Ornitorrinco, cujo elenco original era composto por Denise Del Vecchio, Antônio Carlos Brunet (Dunga), Ana Maria Braga (irmã de Sônia), Kátia Sumam, Cacá Rosset, Luiz Roberto Galízia, Zeca Lennert e Cida Moreyra. (Outros atores como Maria Alice Vergueiro, Chiquinho Brandão e Edith Siqueira entraram posteriormente, com as mudanças de elenco pelas quais o musical foi passando.) Cida, nessa primeira versão, ficou responsável pela direção musical da peça e pela execução das canções, ao piano. Sobre isso, uma citação de Galízia ilustra bem o clima de criação: Eu falo a gente... Talvez não devesse, porque o Cacá era o diretor. Mas de certa forma era muito conjunto isso. Quer dizer, eu tinha toda a liberdade, me sentia, pelo menos, na liberdade de dar milhares de palpites. Eu dirigi mesmo cenas. Então, quer dizer, eu falo a gente porque é mais a nossa atitude, era meio conjunto, né? Então a direção acabou sendo meio a dois. E mais que a dois, porque a Cida, fazendo a direção musical, também tinha que dar a sua marca lá. Então era muito uma direção a três. Quer dizer, das outras pessoas eu acho que não. Eram palpites, tal, que às vezes eram aceitos, às vezes não. Mas a discussão da coisa, decidir como essa cena vai ser, era muito eu, Cacá e a Cida 36. Embora Cida fosse a única pessoa do elenco ligada profissionalmente à música, os demais atores também cantavam no espetáculo, tendo recebido dela um preparo de técnica vocal. Como diretora, ela sugeria, orientava, dava exercícios de respiração e vocalises para a melhor execução das canções mais difíceis de Brecht e Weill. Mais à frente, ainda no livro de Sílvia Fernandes, nova citação de Luiz Roberto Galízia a esse respeito: À medida que a Cida ia tirando as músicas, a gente ia aprendendo. Ela ensinava e a gente aprendia. Era difícil. Inclusive quando chegou na última, ‘Deus em Mahagonny’, foi mais difícil, porque aquela era mais operística, envolvia muitas coisas, solos, era dissonante, a gente ficava horas em cima daquilo, tentando entender. Quer dizer, a gente aprendia a ouvir. Eu entendia, mas não conseguia reproduzir exatamente. Eu ouvi o disco, gravei numa fita tudo o que existia relativo à ópera que eu pudesse ficar ouvindo até gravar. E ouvia o dia inteiro, sabe? Ouvia em todo lugar. Até gravadorzinho no carro eu levava. Tinha em alemão, tinha em inglês também, ficamos ouvindo pra cantar. Porque era estranho. [...] Então, esse trabalho já era um trabalho de preparação vocal, um trabalho de cantar. Porque a gente não simplesmente ia e cantava. [...] Não era nada muito ortodoxo, mas havia todo um empenho em se preparar37. Mahagonny songspiel estreou no Teatro Célia Helena no dia 28 de maio de 1982, onde cumpriu curta temporada. Logo migrou para o recém-inaugurado Centro Cultural São Paulo, no qual Cida, inclusive, já havia apresentado Summertime, antes de montar Serpente Rara. De lá, o grupo entrou em cartaz no Teatro de Arena Eugênio Kusnet no qual permaneceram por um ano, havendo, já nesse período, as primeiras alterações de elenco, como a saída de Ana Maria Braga e de Dunga, e a entrada do músico Chiquinho Brandão, flautista de Elis Regina. Cida permaneceu na montagem até 18 de outubro de 1983, quando, junta­mente a Luiz Roberto Galízia, deixou a trupe por divergências pessoais entre o elenco. A peça estava em Salvador, Bahia, no Teatro Castro Alves e essa foi a última participação da cantora no Ornitorrinco. Pouco mais de um ano depois, no dia 25 de fevereiro de 1985, Galízia morreu precocemente, vítima da Aids, doença até então pouco conhecida no País. Segundo o diretor Marcio Aurelio, Galízia foi um verdadeiro homem de teatro; uma personalidade extremamente mordaz, de uma inteligência agudíssima, além de ter um humor perspicaz. Cida também, ao citar sua convivência com ele, emocionou-se: Não é porque ele já morreu, não. O Galízia era realmente o grande mentor intelectual de todos nós. Um verdadeiro ator brechtiano. Brilhante, moderno, muito culto, de uma inquietação. Um mestre do teatro que, em tão pouco tempo de vida, influenciou tanta gente. Sua morte foi dolorosa em todos os sentidos para nós que o amávamos tanto. Ele está em mim até hoje. Aprendi a respeitar o que faço muito com ele. Amigo difícil, franco, duro, às vezes, mas absolutamente honesto com todos, o tempo todo. A atriz e diretora Denise Del Vecchio participou da montagem de Mahagonny até terminar a temporada na arena do Teatro Eugênio Kusnet, quando foi, então, substituída por Maria Alice Vergueiro. Eu tinha ganho o Prêmio Molière pela Lua de Cetim do Alcides38, e entrei como atriz convidada porque a Maria Alice não pôde fazer no começo. Nós fomos até a casa do Cacá, onde a Cida nos mostrou as músicas da peça ao piano”, lembrou. Denise assistiu à Farsa da Noiva Bombardeada, em 1977, e chegou a ajudar o Ornitorrinco durante o espetáculo de Brecht e Weill, vendendo conhaque no show que o grupo refez no MASP, visando arrecadar fundos para Mahagonny. No entanto, só conheceu Cida efetivamente, quando iniciaram esse trabalho juntas. Eu ficava apaixonada vendo-a cantar Brecht. Ela é imbatível, elogiou a atriz. Lendo algumas matérias de jornal da época, durante nossa conversa, Denise também foi comentando: A Cida, na verdade, era a alma do espetáculo porque ela fazia o piano e a voz de uma peça musical. A gente acabava se escondendo um pouco atrás dela. Isso sem falar na personalidade brechtiana dela, aquela acidez jovem, árida mesmo, que eu nem sei se é consciente porque é tão entranhado no jeito de ela ser até hoje, na maneira de ela se comunicar com a plateia e com o mundo. O processo emocional vem sempre em decorrência de algo muito racional, que é uma das características do ator brechtiano. Ela está dentro e fora do personagem ao mesmo tempo. Consegue nos levar às lágrimas, sem que paremos de pensar no que a letra está dizendo, e isso é raríssimo. O Galízia também conseguiu manter essa linha sem cair no escracho. Pena que, ao contrário da Cida, nós não pudemos ver como ele continuaria desenvolvendo isso. A personalidade brechtiana de que fala Denise significa, na prática, apresentar uma postura mais objetiva e lúcida sobre a arte, propondo, em cena, um momento de reflexão que permita aliar razão e emoção de modo a impedir que o público se perca num possível processo catártico. Não é à toa que os dois artistas, Cida e Brecht, mesmo sendo de épocas e circunstâncias distintas, combinam tão bem. Talvez por esses motivos, a cantora tenha sido uma das poucas no Brasil a dedicar um disco inteiro às canções do alemão, compostas, em grande parte, com o não menos genial Kurt Weill. Também sobre a linha cênica seguida pela cantora, o ator Antônio Carlos Brunet (Dunga), grande amigo de Cida e integrante do elenco original de Mahagonny, explicou: Cida tem uma coerência artística que faz com que ela não seja uma cantora comum. Em tudo há um sentido, um subtexto emocional muito grande. Ela não canta pela simples beleza de cantar, mas faz uma leitura única daquela canção, naquele determinado momento. Futuramente, Cida dividiria com Dunga os palcos de alguns de seus cabarés, para os quais convidou o amigo, além de Mahagonny, que contou também com a cenografia de Victor Nosek. O artista gráfico lembrou com bom humor de um pequeno cacto criado por ele para ser um dos poucos objetos de cena. A função desse cacto era provocar riso. Fiquei um tempão trabalhando nele e acabei solucionando o problema com chuchus e uma flor espetada. O Cacá trazia o cacto coberto com um lenço – às vezes a Cida fazia essa cena também. Aí havia rufos de tambores para dar aquele suspense, e ele situava: ‘Numa região desértica!’, e tirava o lenço. Era um cacto perfeito. Você contava até dois e a plateia vinha abaixo porque ele era feito de chuchu e aquilo, feito daquela maneira, realmente era muito engraçado. A gente furava o chuchu, punha uma flor fresca, tinha palitos por dentro dessa montagem para segurar os chuchus todos de uma maneira orgânica e esse era o cenário de Mahagonny, contou, rindo. Para Nosek, essa precariedade era um dos grandes trunfos da montagem. Só que ninguém sabia que isso tudo ficaria na História, né? Paulo Lara escreveu sobre a peça: A obra de Bertholt Brecht, primeira de parceria com Kurt Weill, em sua musicalização em 1927, encontra na postulação desse grupo consciente e decidido, a aspiração de um teatro total, tentado por tantos em vão. A simbologia brechtiana dessa pseudobisonha cidade de prazeres e de mensagem, hoje, mais atual do que nunca, encontrou na proposta de direção de Cacá Rosset, a medida justa que lhe poderia ser imposta: sem os artificialismos dispersivos do show-business americano, mantém sua essência crítica intacta ao mesmo tempo em que não se apega a apelos menores de contestação político-partidária39. Segundo Sílvia Fernandes, a linha de adaptação que orientou a montagem da peça foi a roteirização: Para o Ornitorrinco, roteirizar uma peça significava fazer uma versão sintética dela, transformando-a numa sequência de episódios sucintos, que tivessem unidade independente e pudessem ser desmontados, cortados e até suprimidos do espetáculo40. Durante a peça, como lembrou Denise Del Vecchio, os atores serviam conhaque para a plateia e também bebiam muito. Até hoje não posso ver conhaque na frente, brincou a atriz. O espetáculo estava dentro de um contexto cultural e político em que o País começava a passar pelo processo de abertura do regime militar. Além do movimento de grupos teatrais, que era muito forte, outras iniciativas como a Cooperativa Paulista de Teatro foram muito importantes para um reencontro das manifestações jovens. O Brasil havia acabado de passar pela anistia em 1979, e estava ávido de saber como seriam suas possibilidades de expressão artística a partir dali. Começavam a despontar alguns novos autores teatrais, grupos de rock como os Paralamas do Sucesso, artistas performáticos como Arrigo Barnabé, e espaços para a cultura da cidade como o Lira Paulistana, que congregava, de certa maneira, todo esse ressurgimento, do qual Cida faz parte. Nós queríamos abrir as gavetas trancadas pela ditadura. No fim, nem tinha tanta coisa boa, mas esse momento de reencontro marcou muito os anos 1980, concluiu Denise. Arte Além da onda pop-rock e da chamada música brega, que marcaram os anos 1980, o mercado fonográfico brasileiro esteve também, por esse período, a serviço da difusão de outros estilos – em sua maioria mais próximos da crescente ideologia da Indústria Cultural – bastante ouvidos e dançados em discotecas, como o som das boy bands. Enquanto isso, alguns artistas mantiveram-se menos preocupados com cifras de vendagem, caso de Cida que, em julho de 1984, com sete anos de carreira, estreou um novo trabalho nos palcos. O show chamou-se Arte. Teve direção musical dela e roteiro em parceria com o cartunista Miguel Paiva, responsável pela versão brasileira da canção homônima ao título do espetáculo, composta pelo italiano Paolo Conte. A música entrou no repertório que privilegiava, por sua vez, temas ligados ao amor e à arte de cantar e representar. Cida novamente foi acompanhada por uma banda, não dispensando, no entanto, momentos individuais diante do teclado de um piano, intercalando-os ao restante dos números. Arte teve sua temporada interrompida pela viagem que a cantora fez à Europa, no início de 1985, sendo retomado com algumas modificações, posterior­mente. O repertório, composto por canções em geral conhecidas do público cativo de Cida, ia de blues a bregas, passando pela clássica Surabaya Johnny (Brecht e Weill), pela tragicômica Singapura (Eduardo Dussek) e por outras como Arranha-céu (Orestes Barbosa), I Get a Kick out of You (Cole Porter) e Última Sessão de Música (Milton Nascimento), esta apenas instrumental. Summertime, de Gershwin, e Gota de Sangue, de Ângela Rô Rô, também não ficaram de fora. No entanto, algumas novidades como Sonora Garoa, de Passoca, e Balada do Louco, de Arnaldo Baptista e Rita Lee – que Cida gravaria muito em breve –, compuseram também mais essas sessões malditas da então chamada diva do underground paulista, que recebia com certa reserva alcunhas deste tipo. Sobre isso, ela diria a um jornal, futura­mente: Decidi assumir minha fama de maldita, sem querer parecer alternativa, underground, vanguarda ou qualquer outro desses adjetivos usados para esconder pobreza estética41. Uma iluminação intimista, um piano de cauda, uma voz forte e doce entoando blues e rasgando bregas. Começava assim uma das críticas publicadas na época pelo Jornal da Tarde, realçando a versatilidade de timbres de Cida e anunciando a retomada do seu espetáculo Arte após o fim da já citada turnê pela Europa. Miguel Paiva, na mesma matéria, descreve certo pique nostálgico e meditativo do show: É como estar acomodado numa sala acon­chegante, ouvindo aquela voz que sai do coração e se lança no sangue e nas veias, olhando nos olhos e no jeito de quem se deixa levar. Ainda em 1984, além do novo trabalho estreado por Cida, um primeiro convite para participar do projeto Mensagem chegou à cantora. Ela integrou um elenco de peso escolhido especialmente para a gravação do vinil que foi lançado como brinde pela Gradiente em homenagem ao cinquentenário de morte de Fernando Pessoa (1888-1935) que se comemorou no ano seguinte. O tributo, que sairia posteriormente pelo Estúdio Eldorado, é composto de poemas do poeta português musicados pelo cantor, compositor e cineasta André Luiz Oliveira e interpretados por personalidades como Elizeth Cardoso, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Gal Costa e Elba Ramalho. Cida – que em 2005 participaria também da segunda versão do projeto, lançado ainda em DVD, cantando Ocidente – registrou no primeiro álbum os versos de Dona Filipa de Lencastre. Que enigma havia em teu seio Que só génios concebia? Que arcanjo teus sonhos veio Velar, maternos, um dia? Volve a nós teu rosto sério, Princesa do Santo Gral, Humano ventre do Império, Madrinha de Portugal!42 Sobre a década de 1980, vale a pena, ainda, retomarmos um breve aspecto de seu contexto musical comparado, claro, aos dias de hoje, de modo a realçar as considerações finais do crítico e musicólogo Ricardo Cravo Albin em seu O Livro de Ouro da MPB: Assistimos hoje aos desdobramentos dessa aber­tura à pluralidade de gêneros, fontes, ritmos e talentos individuais que tão bem marcaram a passagem para a década de 1980, acompanhando tanto a descompressão de costumes quanto a democratização do País. (...) Há que se registrar aqui a consolidação da mídia eletrônica – de várias maneiras associada à indústria da música43. Foi também no início da referida década que Cida Moreira consagrou efeti­vamente o espaço que criou para si dentro da música brasileira. Um espaço evidentemente mais restrito, consideradas suas opções como artista, contudo particular no que diz respeito à liberdade artística por elas propiciada, em meio a todo esse clima de abertura política e cultural. Uma música, por assim dizer, desvinculada dos modismos comerciais aludidos por Albin, e que, claro, paga seu preço por advir desta escolha. Capítulo 4 – Na Trilha de uma Estrela Dizem que sou louco por pensar assim Se eu sou muito louco por eu ser feliz Mais louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz (Balada do Louco, Arnaldo Baptista e Rita Lee) A atuação de Cida Moreira no cinema brasileiro aconteceu paralelamente à sua carreira musical e de maneira bastante intensa, a partir do final da década de 1970. Juízas de futebol, donas de bordel e cantoras são algumas das personagens que povoam seu rol de longas-metragens, concebidos, na maioria das vezes, num esquema específico de produção cinematográfica que marcou a São Paulo dos anos 1980: a Boca do Lixo. Entre meados da década de 1960 e final da de 1980, a indústria do cinema paulistano concentrou-se essencialmente, e de um modo bastante peculiar, numa região da cidade que ficou conhecida como Boca do Lixo. As ruas do Triunfo, Vitória, dos Gusmões e dos Andradas, no bairro da Luz, próximo ao centro da cidade, foram algumas das principais, frequentadas pelos cineastas que filmavam seus trabalhos dentro de uma estrutura de produção modesta, porém autossuficiente, como pondera o jornalista e cineasta Alfredo Sternheim em seu livro Cinema da Boca – Dicionário de Diretores. A região, que ganhou status de capital do cinema paulistano, tornou-se zona de meretrício, a partir dos anos 1950. As prostitutas, vindas do bairro do Bom Retiro por terem sido expulsas dos bordéis onde trabalhavam após um decreto do então governador Lucas Nogueira Garcez, migraram para o bairro onde ficam as estações da Luz e a Júlio Prestes. Lá teriam acesso não apenas à clientela local, como à dos homens que por ali se hospedassem a trabalho. Foi essa proximidade com as estações ferroviárias e rodoviárias que atraiu o cinema. Primeiro as distribuidoras de filmes, tanto as de produções estrangeiras como brasileiras. Economicamente, tal proximidade representava um ganho, mais agilidade. Isso porque bastava ter um indivíduo com um carrinho de mão para levar ou buscar uma cópia de filme (...) nos pontos de partidas e chegadas44. A Boca, além de concentrar produtoras e distribuidoras, tornou-se uma espécie de ponto de encontro das pessoas do meio cinematográfico paulis­tano. Seus filmes foram marcados por algumas características recorrentes, dentre elas uma notável propensão ao apelo erótico, ainda que isso não fosse uma exclusividade das suas fitas. Buscava-se, dessa forma, uma popula­ridade necessária para que estas se mantivessem em cartaz. E conseguiam, exibindo, como vieram ao mundo, musas como Vera Fischer, Helena Ramos, Carla Camurati, Norma Bengell, Lílian Lemmertz, Christiane Torloni, Sandra Bréa, Tania Alves, Xuxa Meneghel e muitas outras. No entanto, não havia sexo explícito no início, o que só foi ocorrer a partir de 1981, com o lançamento de Coisas Eróticas, de Rafaelle Rossi. Para muitos, foi essa abertura que propiciou o declínio da Boca, no final dos anos 1980. Como explica o célebre cineasta Carlos Reichenbach, em entrevista para o livro de Sternheim, a desgraça da Boca do Lixo não é oriunda de um veio moralista, mas da forma injusta como surgiram os chamados mandados de segurança, um autêntico mercado paralelo que perverteu todo o jogo de distribuição e exibição de filmes45. O cinema da Boca era produzido num esquema que contava com orçamentos baixíssimos e produções, por isso mesmo, praticamente caseiras. Mas, ao contrário, isso não impediu que seus títulos obtivessem grande sucesso de bilheteria em todo o País. Possuíram, além do mais, o mérito de trazer à tona nomes da importância de Guilherme de Almeida Prado, João Batista de Andrade, Carlos Reichenbach e Ozualdo Candeias. Cida trabalhou com alguns desses cineastas. Em sua filmografia constam, por exemplo, a trilogia dos diretores José Antônio Garcia e Ícaro Martins, estrelada também por Carla Camurati; o primeiro longa-metragem de Guilherme de Almeida Prado; e, embora já fora do esquema da Boca do Lixo, o filme O Tronco de João Batista de Andrade, lançado no ano de 1998. Filmes O primeiro longa-metragem de que Cida participou efetivamente foi o docu­mentário Certas Palavras com Chico Buarque, de 1980, gravado durante a temporada de Summertime, no porão do Terra Nova. O diretor é o argentino Maurício Berú que mora no Brasil desde essa época. Ao ver o show de Cida, convidou-a para fechar seu filme cantando Geni e o Zepelim e dando um depoimento sobre o compositor carioca. Lembro que nesse dia em que gravei, estava com uma gripe horrível, com febre. Mesmo assim ainda fiz o show. E depois passei quase um ano sem ver o documentário, disse Cida. Na sua opinião, o resultado foi muito bom e constitui um importante registro sobre a obra de Chico Buarque, por traçar um panorama da carreira do compositor até aquele ano46. Certas Palavras tem 113 minutos e conta com as participações de Maria Bethânia, Vinícius de Moraes, Marieta Severo e Caetano Veloso, além do próprio Chico. Antes do documentário, contudo, Cida havia feito participação apenas com sua voz em Asa Branca – Um Sonho Brasileiro, de Djalma Limongi Batista, no fim de 1979, cantando a música-tema do filme, protagonizado por Edson Celulari, e dublando Rita Cadillac. Foi o começo da carreira cinematográfica do Celulari, que já estava em São Paulo estudando na ECA. Até tinha certo namoro dele com o Ornitorrinco para fazer alguma coisa, que no fim não aconteceu, comentou Cida. A trama apresenta um grande elenco, do qual fazem parte ninguém menos que Walmor Chagas, Gianfrancesco Guarnieri, Mira Haar, Eva Wilma, Garrincha e Grande Otelo. Segundo o diretor, o filme não trata exatamente de futebol, mas de um personagem específico do futebol: o jogador. Em 1981, a cantora participou de O Olho Mágico do Amor, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, o Kico. Primeiro da trilogia dos jovens diretores, o filme foi produzido por Adone Fragano, que pretendeu rumar, a partir daí, para uma linha menos popular na Boca do Lixo. Cida, que marcou presença nos três títulos ao lado de Carla Camurati, espécie de musa dos filmes da dupla, definiu José Antonio Garcia carinhosamente: Doce como um algodão-doce. Visionário, corajoso, maluco, suicida. Eu o amava muito. Ele só me fez coisas boas. Diretor brilhante, amigo carinhoso. Sua morte foi triste, mas sua lembrança é alegre, pois ele viveu tudo o que quis, sem economia. Olho Mágico, que deu a Cida o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) de Melhor Atriz, foi produzido com poucos recursos como de costume e surpreendeu a todos, por esse motivo, ganhando prêmios não só no Brasil, como no exterior. É um filme muito forte, estranho, moderno. Quando estreou a gente não esperava tanta repercussão. Até hoje é um filme cultuado, avaliou a cantora, que fez seu próprio papel. Além dela e de Carla Camurati, participaram Tania Alves, Arrigo Barnabé, Ênio Gonçalves, Luiz Roberto Galízia, Jorge Mautner e Sérgio Mamberti. Um filme exemplar na sua temática e no seu resultado. Um momento totalmente cult, na criatividade do Zé e do Kico. Conheci a Carla, fiquei muito próxima dela, e fizemos um filme importante. Valeu para sempre, complementou. Em seu perfil Luz Natural, Carla Camurati também descreve o filme: A produção era totalmente doméstica. Eu usava minhas próprias roupas e a casa da minha família era a casa do José Antonio. [...]. Eu estava na Boca do Lixo participando de um projeto ousado e picante, mas sabia que não havia uma associação direta com a pornochanchada. Aquelas pessoas jamais realizariam uma coisa grosseira como a transa entre uma mulher e um cavalo, atração de outro filme da época. Era cinema de arte arrojado, tanto que foi muito bem conceituado pela crítica47. No mesmo ano de O olho mágico do amor, Cida contribuiu com uma pequena participação em Ao sul do meu corpo, de Paulo Cesar Saraceni, lançado em 1982. Sua concepção foi baseada no livro Três Mulheres de Três PPPês, de Paulo Emílio Salles Gomes, falecido em 1977, e o elenco contou com Nuno Leal Maia e Othon Bastos. Segundo Cida, embora o filme seja bom, pelo fato de a sustentação tanto do roteiro quanto do argumento estar na própria obra de Paulo Emílio, o resultado foi decepcionante devido ao mal lançamento. De qualquer maneira hoje é um trabalho interessante, ponderou em seguida. Em 1983, Cida fez dois filmes também marcantes para sua carreira: Onda Nova e A Flor do Desejo. O primeiro, continuação da parceria de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, teve seu roteiro improvisado numa linguagem moderna, sobre um time de futebol feminino. Integraram este elenco Tania Alves, Regina Casé, Caetano Veloso, Osmar Santos e Vera Zimmermann, além de Carla Camurati. Cida interpretou a juíza do time feminino, algo inusitado para ela até então. Em sua primeira aparição, logo no início da fita, ela está em campo, ao lado de uma churrasqueira, já com o apito em punho, mas ainda conversa com um dirigente, antes do início da partida. Vestida num cômico macacão azul e de cartola na cabeça, ela contesta bem-humorada a opinião do dirigente de que o que vale mesmo num time feminino é a escultura física das jogadoras e que, portanto, não funcionaria, nesse caso, um processo de peneira para a escalação do time. Descontraída, ela responde: Eu acho que vocês diri­gentes não têm a menor sensibilidade para entender a alma de um jogador de futebol. Por isso sou a favor do passe livre. Aliás (...), me passe mais um pedacinho de carne, por favor. Comilanças à parte, o trabalho foi mais uma espécie de criação coletiva, em que a produção estabeleceu-se de modo igualmente improvisado. Olhando assim, parece que não tem pé nem cabeça, mas é um filme maravilhoso. Foi uma loucura que ficou pelo meio do caminho. Gostei por isso mesmo. E adorei dirigir um fusca e um ônibus na serra de Santos, cantando!, brincou. Na cena do ônibus, os cabelos ruivos de Cida esvoaçam ao vento que entra pela janela enquanto as jogadoras ao fundo fazem um número de dança entre as poltronas, vistas pela motorista por meio do espelho retrovisor. Logo depois, filmei A Flor do Desejo do Guilherme de Almeida Prado que é outro cineasta interessantíssimo desse período. Foi muito bom fazer o filme dele. Guilherme e Cida já se conheciam, antes mesmo de encontrarem-se profissionalmente. Como lembrou o diretor, o filme precisava de uma atriz que cantasse. Ela era uma cantora que a gente curtia. Talvez a mais impor­tante da minha geração. E além de cantar maravilhosamente bem, é uma grande atriz. Acho até que ela foi pouco aproveitada nesse sentido, talvez pelo seu tipo físico que é muito específico, sugeriu. Além disso, eu morava na mesma rua que ela, duas quadras acima de onde ela ainda vive. Em A Flor do Desejo, Cida viveu a personagem de Teresa, outra dona de bordel. Ao longo do filme ela canta duas músicas: uma versão reduzida do jazz americano I Cover the Waterfront (Johnny Green e Edward Heyman), composta nos anos 1930 e traduzida pelo próprio diretor, apenas para caber no tempo da cena; e Valsa do Bordel, de Vinícius de Moraes e Toquinho. Nesta última, Cida acompanha-se ao piano num exuberante vestido vermelho, cercada das funcionárias de sua casa que, languidamente esparramadas pelos sofás da sala, escutam os primeiros versos anunciarem: longas piteiras / perfumes no ar / roxas olheiras / em torno do olhar / Que brincadeira / fazer profissão / Da mais antiga / e mais sem solução. O filme é considerado por Guilherme de Almeida Prado como seu primeiro longa-metragem e, apesar de não ter recebido nenhum prêmio no concor­rido Festival de Gramado, em 1984, ganhou o troféu Candango de melhor atriz-coadjuvante pelo trabalho de Cida no 17º Festival de Brasília do mesmo ano, além do de melhor atriz no Festival de Caxambu, para a camaleoa Imara Reis, que substituiu às pressas Sandra Bréa, numa necessária mudança de protagonista. Devido a essa troca de atrizes, algumas cenas da Cida tiveram que ser refilmadas também, com exceção das que eu consegui aproveitar, explicou Guilherme. Imara relembrou algumas curiosidades num bate-papo informal. Eu estava voltando de uma viagem, quando a Tania Alves foi até minha casa na Alameda Santos dizendo que tinha sido convidada para o filme, mas que achava a personagem muito parecida com outras que ela já havia feito e que, portanto, recusaria. Concordei com ela e, pouco tempo depois, cogitei a hipótese de eu entrar. Aí fui falar com o Guilherme, mas ele disse que precisava de uma atriz mais televisiva, mais conhecida, aquelas coisas de mercado. Só que no fim, mesmo ele tendo optado pela Sandra Bréa, quem acabou fazendo a Sabrina fui eu mesma, disse rindo a atriz e diretora. Ele me ligou dizendo que haviam tido um problema com a Sandra e pergun­tando se eu poderia entrar no filme em dois dias, imagina! Mas aceitei. E assim conheci a Cida efetivamente, embora já acompanhasse o trabalho dela, até porque frequentávamos os mesmos lugares e tínhamos amigos em comum. O meio artístico na época tinha muito isso. Era bem menos gente e havia os nossos pontos de encontro como os restaurantes Gigetto, Pirandello, Piolin. Então muitas vezes se dividia a mesma garrafa de cerveja sem ser apresentado formalmente à pessoa e depois a gente se cruzava num mesmo trabalho. Eu sempre tive uma grande admiração pela Cida porque, para ser atriz, eu abri mão de certa estabilidade. Mas uma estabilidade que eu ainda não tinha conquistado. E ela já estava trabalhando como psicóloga quando abandonou tudo para ser apenas cantora. Eu a achava uma revolu­cionária por isso. Havia esse destemor de ir atrás do seu talento, de dizer o que pensava. Então foi muito bom ter trabalhado com ela. Além do mais, acrescentou brincando, não é pouca coisa servir uma cafetina dessa impor­tância, tocando e cantando daquele jeito [risos]. É algo muito sofisticado do imaginário do Guilherme mesmo. A Flor do Desejo foi rodado em sete semanas, nas cidades de Santos e São Paulo. Como todas as cenas de Cida são internas, foram feitas no bairro da Bela Vista, ao contrário dos atores com sequências externas, que tiveram de rodá-las no Porto de Santos, onde a trama acontecia, caso da própria Imara. O filme é baseado no conto Sabrina de Trotoar e de Tacape (1981) do escritor blumenauense Roberto Gomes (1944), e fala da relação entre uma prostituta e um jovem marginal, na zona de prostituição do Porto de Santos. Não foi um filme de sucesso porque ficou em cima do muro. Embora tenha sido feito na Boca do Lixo, ainda no esquema de pornochanchada, tinha um elenco de mais qualidade e se pretendia um pouco melhor, então não atingiu nem um público, nem outro, avaliou Guilherme. Ele explicou também que, nessa época, a indústria pornográfica já estava começando a lançar filmes de sexo explí­cito, o que A Flor do Desejo não tinha, apesar de suas cenas mais picantes. Mesmo assim, ainda ganhou prêmios. Nessa época o cinema era pior, mas o público era maior. Então mesmo esse trabalho que não teve tanto sucesso, ficou cinco anos nos cinemas. A gente recebia uma migalhinha, mas o filme estava sempre passando. Em 1984, foi a vez de Estrela Nua, o último longa da trilogia de José Antonio e Ícaro Martins. Surpresa: com Carla e Cida. O filme conta a história de uma menina aspirante ao estrelato e é ambientado em São Paulo. Cida fez o papel de uma cantora, interpretando as canções que Arrigo Barnabé compôs especialmente para a trilha sonora48. Foi uma alegria. O filme era ousado, moderno, e me possibilitou uma rica convivência com pessoas como o Arrigo e a Carla. Saudades das filmagens, das loucuras, das festas e da grande amizade entre todos nós, disse Cida, que, pela segunda vez, ganhou o Prêmio APCA de Melhor Atriz, como em Olho Mágico do Amor. Eu já tinha feito um filme anterior do José Antonio, O Olho Mágico do Amor, em que a Cida também tem uma participação, lembrou Arrigo Barnabé, e ele queria que eu compusesse a trilha do Estrela Nua e atuasse também. Então a Cida passou a me dar uns toques de interpretação. Entrei na cena da sauna com ela. Eu tocava um instrumento todo esquisito, um teclado articulado por um fole embaixo que ia balançando de um lado para o outro. Mas minha participação foi pequena, apesar de assistir às filmagens todas para ir pensando na trilha. Durante esse período, eu e Cida consolidamos nossa amizade e passamos a ter mais intimidade. O pai dela estava na UTI, já tinha tido duas paradas cardíacas. Além disso, eu tinha um problema de hemorroidas crônicas e ela disse que o irmão dela era proctologista, então fui me operar com o Juvenal. Tudo isso colaborou de alguma forma para que ficássemos realmente muito próximos. Ainda em seu perfil, escrito por Carlos Alberto Mattos, Carla Camurati lembrou: O José Antonio e o Ícaro tinham um método curioso: cada um dirigia uma sequência, enquanto o outro fazia assistência de direção. Ambos tinham voz ativa e escolhiam fraternalmente os trechos que caberiam a cada um dirigir. Nunca os vi brigar no set. Sobre Estrela nua, ela conta também que o filme buscou inspiração tanto no universo da Clarice Lispector como no de Nelson Rodrigues. É um roteiro bonito, muito bem escrito, que se o José Antonio refilmasse hoje, o faria ainda melhor. [...]. Esse, por sinal, foi um período em que estive absolutamente encantada por São Paulo. [...]. Além da relação com José Antonio, conheci o pessoal da música através do Arrigo e do Paulinho Barnabé, da Cida Moreyra... Conheci o cartunista Angeli, o Zé Celso, no teatro...49. Toda essa fase foi de grande importância para Cida, que se divertiu lembrando cenas e situações vividas nas telonas. Sempre sentada na poltrona de sua sala, com os pés para cima e Billie ao lado, latindo de ciúmes embaixo do piano. Quando a situação ficava incontornável, dávamos um tempo na entre­vista e íamos para a cozinha entre risos e latidos, para um café. Assim como na música, o contexto de atuação de Cida Moreira no cinema reflete a tendência de criar para si um ambiente artístico que privilegie aspectos absorvidos da contracultura, passando à margem do grande circuito comercial e rompendo com valores tradicionalistas. Desse universo marginal nasce seu gênio artístico, que não é limpo e comportado, mas inquieto, violento, irreversível. Por isso vale notar que a obra de Cida constituirá sempre um verdadeiro raios x de seus humores e estados de espírito, os quais, como a própria vida, são instáveis, sujeitos a erros e acertos. Somente por essa perspectiva será possível identificar alguns dos principais matizes que colorem o trabalho da cantora. Europa Em 1985, uma nova oportunidade abraçou Cida Moreira: a viagem com Arrigo Barnabé para a Europa, feita a convite de Peter Hahn, diretor do Theater am Turm de Frankfurt, importante centro cultural de vanguarda da época, na Alemanha Ocidental. O ex-diretor do Festival de Jazz de Berlim tinha uma amiga brasileira e havia assistido a alguns espetáculos de Cida numa de suas vindas ao País. Além disso, interessou-se pelo disco Tubarões Voadores do compositor londrinense50 e não tardou em propor a união dos dois, em turnê pelo exterior. Ele nos telefonou pedindo que fôssemos à casa de sua amiga e, simples­mente, nos convidou para uma temporada nesse teatro estatal de Frankfurt, lembrou Cida. A partir da proposta, ela e Arrigo montaram às pressas o show São Paulo, Brasil especialmente para a ocasião. Tiveram apenas dez dias, no início de 1985, para organizar suas vidas em meio ao turbilhão burocrático que envolveu a preparação da viagem. Cida precisou cancelar compromissos e interromper a temporada de Arte, que voltaria a apresentar meses depois. Peter Hahn notou tantas semelhanças e coincidências entre os trabalhos de Cida Moreira e Arrigo Barnabé que, como a cantora declarou na ocasião, agora não somos mais capazes de apontar as diferenças51. O compositor na mesma matéria ressaltou também certa ironia tragicômica presente em ambos, assim como um forte tom dramático, um grande apelo visual, além, é claro, de toda a musicalidade da dupla. Arrigo faz parte da chamada vanguarda paulista, ao lado de Itamar Assumpção e de grupos, como Premeditando o Breque e Rumo. Seu trabalho traz, para o Brasil dos anos 1980, elementos musicais absolutamente inovadores, como o dodecafonismo, desenvolvido pelo austríaco Arnold Schoenberg, na década de 1920. Por sua complexidade, a obra de Barnabé oscila entre os universos da música popular e erudita, não tendo atingido grande sucesso comercial, o que fez com que o compositor se tornasse ídolo cult de um público bastante restrito e seleto. O Arrigo é um gênio. Interlocutor da minha geração, elo estético entre o que entendo do mundo da música. Generoso e brilhante. Homem delicado, um nobre, definiu Cida. O espetáculo, como sugeriu o diretor alemão, não poderia, definitivamente, acontecer de maneira estanque, com os artistas um em cada lado do palco apresentando seus trabalhos isoladamente. Precisavam misturá-los para que o show resultasse homogêneo, como se o que houvesse em cena fosse, de fato, uma fusão. Foi partindo dessa concepção que se criaram os três blocos em que foi dividida a apresentação: o urbano, o erótico e o brega. Para o primeiro deles, foram lembradas canções como Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, Office Boy e Diversões Eletrônicas, do próprio Arrigo, e Arranha-céu, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, gravada por Cida em Abolerado Blues. Esta última, por sinal, teve uma curiosa particularidade que realçou ainda mais a afinidade entre os artistas. Além de escolhida pela cantora devido a sua relação afetiva com a música – já que sua mãe a cantava desde quando Cida era pequena – foi justamente Arranha-céu o motivo de inspiração de Arrigo para compor Diversões Eletrônicas. No segundo bloco, o erótico, figuravam Orgasmo Total e Amor Proibido, esta da trilha de Estrela Nua, e, no brega, o último do espetáculo, não poderia faltar Singapura de Eduardo Dussek, também registrada em Abolerado Blues e retomada nos palcos de Arte. A música, cheia de irreverência, lembra uma decadente cantora às voltas com o fim de seu contrato com a gravadora: Foi despedida de uma boate / e num programa levou tomate / quando cantava, todo mundo ria / só conseguiu emprego numa churrascaria. No último bloco do espetáculo, os dois cantavam também O Que Será de Minha Vida e Kid Supérfluo, dentre outras. No show, lembro que havia um genuflexório em que eu me ajoelhava com um corvo empalhado no ombro. A música criava aquele clima de maldição e eu declamava o poema Annabel Lee, do Edgar Allan Poe. Depois, Cida ia entrando vestida de noiva e cantando Vocalise, do Estrela Nua, mas o vestido era preto. Fizemos um apanhado de várias coisas, até porque eu estava também com o espetáculo do disco Tubarões Voadores montado. Eu fazia com a Vânia Bastos. E mesmo tendo essa coisa maldita, o show com a Cida não era de cabaré, embora ela executasse alguma coisa desse repertório ao piano. O teatro era grande, mas a gente se apresentava no café, onde também havia um palco. O Theater am Turm é um lugar alternativo, possui vários espaços. E o café era um deles, ficava na parte de cima, explicou Arrigo. Os dois artistas embarcaram para a Alemanha no dia 12 de março de 1985, após uma grande festa de despedida na Danceteria Raio Laser, da qual Arrigo afirma não ter podido participar. A temporada foi um sucesso de público, como avaliou a cantora: No começo estávamos assustadíssimos com a novidade, mas deu tudo muito certo. Novos convites começaram a surgir, o que adiou o retorno dos dois para o Brasil. Seguiram para a Itália, onde se apresentaram no Festival de Teatro de Parma. Logo depois, cantaram em Paris, Amsterdã e Madrid. De volta à Alemanha, soltaram a voz em Munique e Berlim, até retornarem em maio para casa. No palco, uma banda de quatro músicos os acompanhou. Eram eles: Bozó Barreti nos teclados, Duda Neves na bateria, Geraldo Vieira no contrabaixo e Tonho Penhasco na guitarra. A respeito das críticas, Arrigo avaliou: Não foram nem excepcionais, nem ruins. Nós estávamos num lugar estranho, num espaço alternativo. Acredito que também tenhamos parecido um pouco esquisitos para eles. Enquanto Cida e o compositor se preparavam para a estreia que aconteceu em 16 de março, o Brasil aguardava Tancredo Neves tomar posse da Presidência do País. A notícia de que o – até então – governador de Minas Gerais fora hospitalizado e que, portanto, não assumiria o cargo a tempo, chegou a Frankfurt por um documento que o cônsul do Brasil na cidade levou pessoalmente ao teatro, onde ensaiavam os brasileiros. No meio da viagem, houve ainda um hiato de shows que durou sete dias. Cida aproveitou o período para ir com Arrigo a Veneza. Ela se lembra de ter recebido lá a notícia da morte de Tancredo. Eu estava casada com o Juarez, pai da Júlia. Ele era editor de política no Jornal do Brasil, então nos mantinha a par de tudo via fax, telegrama. Nunca vou esquecer: chegamos ao hotel e ele nos ligou para contar. Quando voltamos, esse país estava numa convulsão absurda por causa da morte do Tancredo. Mesmo assim, Cida e Arrigo ainda fizeram o show uma única vez no Bar Avenida, em Pinheiros. Antes de viajar para a Europa, Cida foi a Brasília pela primeira vez para cantar na Sala Funarte. Quem fez o show com ela foi o grupo Legião Urbana que havia gravado, na época, seu primeiro LP. A banda estava em processo de mudança para o Rio de Janeiro. Foi nessa ocasião que Cida conheceu o compositor Renato Russo, de quem se tornou grande amiga: Nós nos afei­çoamos profundamente e fomos muito amigos até a sua morte em 1996. Nossa relação era extremamente humana e não passava pelo fato de sermos artistas, embora nos admirássemos muito. Data do verão de 1984, ano anterior ao da viagem à Europa, o recém-lançado registro de Cida e Renato Russo cantando Summertime juntos e ao vivo, num show da cantora em Brasília. O documento foi resgatado como faixa-bônus, 24 anos depois, no disco Renato Russo – O Trovador Solitário produzido por Marcelo Fróes e lançado pela Discobertas em 2008. Minha amizade com ele é um assunto reservado no fundo do meu coração, assim como com o Caio Fernando Abreu52, o Galízia, o Cacá, o Tide, o Lindolf Bell e mais alguns. Em relação ao último, Cida também falou com um carinho especial: Foi um amigo da maturidade que morreu logo depois do Tico Terpins, em 1998, no dia em que fez 60 anos. Poeta extraordinário que influenciou gerações de artistas no Brasil todo. Homem lindo que encontrei um dia, e do qual fui amiga até sua morte, com uma admiração imensa. Privilégio intelectual e pessoal. Na plateia do show com o Legião Urbana, estava ainda uma nova cantora cujo brilho e o timbre grave em breve conquistariam todo o país. E Cida não ficou de fora do seu grupo de admiradores. Era Zélia Cristina Duncan, recém-aportada nos palcos de Brasília, após estrear profissionalmente na mesma Sala Funarte, em 1981. Quando eu tinha vinte e poucos anos, a Cida aconteceu nas minhas caixas de som e, claro, foi arrebatador. Ela não é uma cantora pela qual se passe impunemente. Um tempo depois fomos apresentadas no camarim da Sala Funarte e nos tornamos grandes amigas, lembrou Zélia. Com a ida para a Europa, e os convites que surgiram após seu retorno, Cida Moreira distanciou-se um pouco do cinema e das produções da Boca do Lixo, atividades bastante recorrentes em sua vida até então, passando a dedicar-se a novos projetos voltados com mais frequência ao universo musical. Entretanto, e de modo pontual, não abandonaria seu trabalho como atriz, em peças ou longas-metragens futuros como O Tronco ou Eclipse Solar, produções maiores, envolvendo melhores condições técnicas e, naturalmente, linguagens distintas. O disco vermelho De volta ao Brasil em maio de 1985, antes mesmo de retomar o show Arte, Cida Moreira foi convidada, também pela Funarte, para participar pela primeira vez do Projeto Pixinguinha, patrocinado, na época, pela Shell. O projeto, que completou trinta anos em 2007, foi idealizado pelo poeta, compositor e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho, com o intuito de divulgação da música popular brasileira, dentro do qual são montados vários elencos que percorrem o Brasil a preços populares. Devido ao Plano Collor, o projeto foi interrompido, voltando a acontecer em 2005. Porém, sem o patrocínio da Shell e, portanto, com uma estrutura bastante reduzida, em comparação a esses anos. O espetáculo de Cida foi dividido com o maestro Wagner Tiso e a abertura ficou por conta de um cantor e compositor goiano chamado Marcelo Barra. Um grande músico que continuou morando em Goiânia, revelou Cida. Três dias após sua volta da Europa, a cantora já estava no Rio de Janeiro ensaiando o espetáculo que faria com o maestro por todo o Nordeste brasileiro. Em um mês e meio fizemos quarenta shows pelas capitais, até Natal. Hoje em dia se faz no máximo oito ou nove. A canção Coração de Estudante, de Wagner Tiso, com letra de Milton Nascimento, era um dos pontos altos do espetáculo. Foi composta em 1983 para o documentário Jango (1984) de Silvio Tendler, outro importante cineasta da década de 1980, e causava uma verdadeira comoção na plateia, pelo momento que o País vivia. Com a letra de Milton, criada posteriormente ao filme, ela se consagrou como um dos hinos da campanha pelas eleições diretas no ano em que o filme foi lançado. Quando o Wagner fazia a introdução e eu entrava cantando quero falar uma coisa, aquilo era literalmente uma coisa, brincou a cantora. Era inacreditável a reação das pessoas. Foram quarenta shows assim. Em algumas cidades tínhamos que fazer sessões extras, até porque, naquela época, o Wagner estava em pleno auge da carreira dele de maestro e instrumentista. Cida voltou para São Paulo no segundo semestre de 1985, quando, finalmente, pôde retomar Arte. O espetáculo, suspenso por esse período, foi o embrião do seu terceiro disco, Cida Moreyra, lançado em 1986. No repertório do novo álbum, há registros de canções como Meu Primeiro Amor, de H. Gimenez, na versão de J. Fortuna e P. Junior, Uma Cerbeja por Favor, de Eduardo Dussek e Luiz Carlos Goes, e Clara Crocodilo, de Arrigo Barnabé. Composta em parceria com Mário Lúcio Cortez, esta última foi gravada originalmente pelo próprio Arrigo seis anos antes, em seu disco homônimo e aparece na sétima faixa como uma espécie de síntese do estilo do londrinense, que logo escla­receu: Não sei por que classificam Clara como canção. Essa é uma obra que mistura várias linguagens e não tem a forma estética de uma canção. Não deixa de ser música, claro, mas utilizando uma estrutura diferente. Antes de gravar o disco, porém, Cida Moreira repetiu a dose e partiu para seu segundo Projeto Pixinguinha, novamente ao lado de Wagner Tiso. Mas, dessa vez, foi Zélia Duncan quem abriu os espetáculos, no Norte do País. Segundo o texto escrito pela própria cantora em 1994 e disponibilizado em sua home-page: (...) após abrir um show de Luis Melodia, no Teatro Nacional de Brasília, fui selecionada para representar Brasília no projeto Pixinguinha, no elenco de Wagner Tiso e Cida Moreyra. (...) pude, pela primeira vez, cantar fora de Brasília para pessoas que eu nem sonhava em conhecer. Eu já era amiga da Zélia desde Brasília. Foi uma viagem maravilhosa. Fizemos vinte e tantos shows pelo Norte do País. Só na volta é que gravei o disco, já grávida da Júlia, disse Cida que, ainda em 1985, participou do Festival dos Festivais, promovido pela Rede Globo, defendendo o chorinho Novos rumos, de Rossini Ferreira e Ana Ivo, que ela havia classificado nas primeiras elimi­natórias em Recife. Foi nesse meio tempo que o Lira Paulistana fechou e Wilson Souto Junior, ligado ao espaço, fundou um novo selo pela Continental, após ter sido convi­dado a assumir o posto de diretor artístico da gravadora, entre 1985 e 1986. O Gordo, como era carinhosamente apelidado, chamou, para integrar seu elenco, alguns artistas dentre os quais estavam Itamar Assumpção e Cida, que ainda assinava seu sobrenome artístico com o famigerado y. Nasceu dessa proposta o disco de capa vermelha Cida Moreyra, de 1986. O álbum teve direção musical e alguns arranjos do maestro Gil Reyes, que definiu: Esse é um trabalho menos ligado às estéticas de cabaré e de teatro, tão próprias da Cida. Vai mais para um lado cantora no sentido de testar repertório. Há algumas referências anteriores dela, mas há também coisas novas, até pelo comprometimento um pouco maior do disco com a questão comercial, claro que sem sair da linha da Cida. Mas é menos gueto, entende? E isso aconteceu de forma natural para ela porque não houve muita pressão, nem qualquer tipo de desconforto. Ela estava segura do que fazia, sem deixar de experimentar, mas também negociando o olhar dela com o do Wilson. A cantora convidou Gil Reyes após os dois terem sido apresentados por Arrigo Barnabé. Esse seria apenas o primeiro encontro profissional de uma parceria que durou dezoito anos e cujo resultado, segundo ela, foi bastante elaborado musicalmente. Eu já conhecia o Arrigo fazia algum tempo, desde quando nos cruzávamos pela USP, na época do Clara Crocodilo. Ele me pediu que fizesse alguns arranjos para o disco Tubarões Voadores. E, tempos depois, indicou meu nome para Cida, na época, buscando alguém para fazer a direção musical do disco vermelho. Ela me ligou e então nos conhecemos num estúdio perto do Largo do Arouche, centro da cidade. A partir daí, começamos a trabalhar, lembrou o maestro. Fizemos um grande disco, reiterou Cida. Gravei Vocalise, da trilha do Estrela nua, e Clara Crocodilo, que cantávamos na Alemanha, ambas do Arrigo. Esta última teve arranjo e participação dele próprio; gravei também a primeira canção do Zé Miguel Wisnik, Como Diria Satie, com ele tocando; um samba do Paulinho da Viola; Balada do Louco, com o Serginho Dias dos Mutantes na guitarra, maravilhoso. E gravei o Furacão (Hurricane) do Bob Dylan e do Jacques Levy. Era uma versão do Miguel Paiva e isso foi logo que o verda­deiro Hurricane saiu da cadeia nos EUA. Houve também um entrave com os direitos, mais por parte do Bob Dylan do que propriamente da censura, pelo fato de a história ser forte demais, por ser tão real. Ao lado do título da canção, no verso do LP vermelho, a seguinte indicação, referia-se à faixa: Vedada sua veiculação por organismos de radiodifusão com base no parágrafo único do item III da Portaria de nº 05/86 – DCDP de 17.04.86. Sobre o álbum, Gil Reyes parece concordar com a visão de Cida: O resultado foi um disco mais bem produzido porque tínhamos recursos, então dava para colocar uma orquestra, por exemplo, e fazer coisas mais elaboradas. Algo que, embora muito bom artisticamente, o futuro disco do Brecht já não teve tanto, pela fase em que a Continental começava a entrar. Este foi mais enxuto, era piano e voz, basicamente, e o disco vermelho acabou ficando diferenciado nesse sentido. Projeto Adoniran, 1986 O disco saiu no segundo semestre de 1986 e seus shows de lançamento aconteceram até o nascimento do autor deste livro, em fevereiro de 1987, passando por casas como o Jazz Mania, no Rio de Janeiro, ainda sem a participação de Gil Reyes: Nessa época eu apenas escrevia os arranjos. Só a partir do show Bilbao Cabaré é que fui para o palco também. No mês seguinte, Cida Moreira seria mãe. No dia 7 de março nasceu Júlia Campiolo Porto, filha única da cantora que hoje é formada em Letras pela Universidade de São Paulo – USP. Quando eu era criança, não entendia direito o que significava minha mãe ser cantora porque era raro a pararem na rua; o disco dela tocava pouco no rádio, ela não ficava meses fora de casa fazendo show, etc. Conforme fui crescendo, tudo foi fazendo mais sentido. Entendi que existem artistas que criam sem estar vinculados aos meios de comuni­cação de massa e que, não por isso, seus trabalhos são menores, aliás, muito ao contrário, ponderou Júlia. Adoro ser filha de uma cantora, sinto muito orgulho. Acho que isso me deu uma grande bagagem para a vida, além de proporcionar que eu esteja sempre em contato com o trabalho dela, coisa que nem sempre acontece entre filhos e pais. Mas esse processo de compreensão foi catalisado também quando conheci a Bárbara, minha melhor amiga. Foi em 2002, tínhamos 14 anos. Duas pirralhas ouvindo Backstreet Boys num dia, e Chico Buarque, no outro. A mãe dela também é cantora, a Cláudia Pacheco. Até então, eu nunca tinha sido amiga de alguém nessa mesma situação, o que me ajudou a saber que eu não era única. A gente nunca chegou a conversar sobre isso, eu acho, e nem sei se esse sentimento é recíproco, mas a Bárbara foi importantíssima no meu processo. Cheguei até a pensar em seguir carreira como cantora, porque eu amo música, mas acho que não teria nada para acrescentar de interessante. Ouço realmente de tudo e minha mãe nunca me impôs nada. Inclusive já apresentei muitas coisas para ela, então sempre rola essa troca. Eu gosto de assisti-la. Sinto falta quando passo muito tempo sem ver um show, confessou carinhosamente. Cida também falou com emoção sobre a experiência de ser mãe: Foi uma decisão madura, sem contestação alguma. Fruto de um grande amor. Uma filha que veio para me ensinar a viver, que veio para me reeducar. Imagino hoje minha vida sem a Júlia. Eu seria uma mulher possivelmente frustrada, amargurada com a velhice que chega, como tantas mulheres que conheço. Júlia é melhor que eu e o pai dela, e isso para mim é a melhor coisa que pude almejar ao ser mãe. Ter um filho, sim, mas para que ele fosse melhor que nós dois. Conseguimos, apesar de tantas dificuldades entre eu e o pai dela. Com todos os percalços. Júlia é um ser humano íntegro, bem formado, e eu tenho total confiança na sua imensa capacidade para viver. Eu me rea­lizei no meu plano ao ser mãe. Completamente. Além do que, ela é linda, e isso fará muita diferença na vida dela, pelo mundo cruel em que vivemos. Cida ficou pouco tempo afastada de seu trabalho. Já em maio de 1987, com Júlia aos dois meses, a cantora voltou à ativa pensando na segunda proposta que recebera da Continental para um novo disco. Estava para nascer o acla­mado Cida Moreyra interpreta Brecht que sairia em 1988, após ser gravado em apenas sete noites e ficar retido durante onze meses na gravadora, por questões de direito autoral. Em 1987, ainda, Cida comandou um programa radiofônico chamado Na Ponta da Língua a convite da direção da Rádio USP. A dupla de cantoras e compo­sitoras Luhli e Lucina eram as antigas apresentadoras, mas tiveram de sair da emissora. Assim, Cida entrou e deixou sua marca, segundo o texto Cida Moreyra, alquimia entre o rádio e o palco, assinado por Sérgio Crusco. O primeiro programa da série trouxe algumas raridades da dupla de compo­sitores alemães Bertolt Brecht e Kurt Weill, discos importados, coisa que muito pouca gente conhece por aqui, diz Cida. Já no segundo, uma seleção de pérolas chiques e bregas do catálogo da gravadora Continental que, entre a própria Cida Moreyra, Luiz Melodia e Amelinha, conta também com vários nomes da jovem música sertaneja em seu elenco. Para esta sexta-feira, ela preparou uma novelinha contando a história da vida de uma cantora. Uma cantora qualquer. E quero mostrar músicas de intérpretes esquecidas, outras quase desconhecidas53. Cida canta Brecht Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras Minha mãe me trouxe para a cidade Quando eu ainda estava em seu ventre. O frio das florestas permanecerá em mim até a minha morte54 Não fazia pouco tempo que Cida Moreira sonhava com um trabalho dedicado às canções de Bertolt Brecht (1898-1956). O encontro profissional com a obra do dramaturgo vinha, como se sabe, desde o início de sua carreira e os pontos de identificação entre ambos eram suficientes para justificar uma pesquisa de repertório ainda mais aprofundada que consagrasse a importância do espírito brechtiano no trabalho da cantora. Essa pesquisa Cida iniciou em sua própria casa, dessa vez pensando no disco que sairia pela Continental. O trabalho correspondeu a uma espécie de retomada do legado musical de Brecht no Brasil, movimento que havia se iniciado nos Estados Unidos e na Europa, alguns anos antes: Trata-se de um disco importante, que engrossa uma onda neoexpressionista de interpretação, mais voltada à desauto­matização dos hábitos de abordagem da canção do que à exploração dos sentimentos em música55. Brecht ainda é um grande mistério na vida de Cida. Talvez pela intensidade que permeia toda a sua identificação artística com a obra do dramaturgo, ao perguntar a ela quando efetivamente se deu a descoberta de Brecht, a resposta é irreverente, simples, e reveladora do quanto isso tudo está entranhado em sua vida: Sei lá eu. Mas ela sabe bem, e respostas como essa só comprovam ainda mais sua capacidade de não se levar tão a sério e resumir em três palavras a importância de um conteúdo que ocupou quase toda a sua vida. Para a gravação do disco, a cantora entrou em estúdio no mês de julho de 1987. O piano foi executado por ela mesma, e o disco contou com participações como a de Gil Reyes, no clarinete, e a da banda do Exército da Salvação, cujos seis integrantes gravaram como vinhetas os diferentes arranjos compostos para a canção Die moritat von Mackie Messer que costuram as faixas do LP. Brecht – foto de Paulo Vasconcellos para capa disco Brecht Foi maravilhoso. Eles fizeram tudo em um só dia, e essas vinhetas enrique­ceram decisivamente a sonoridade do disco. Só que aí começou uma longa batalha pelos direitos autorais. Quando mandamos o pedido para a Fundação Kurt Weill que cuida dos direitos, eles não liberaram por serem versões das músicas e não apenas traduções. Nós tivemos que mandar essas versões em alemão para eles avaliarem se não tínhamos subvertido nada. Isso é normal. Só não achamos que daria tanto trabalho, explicou Cida, que, embora só tenha lançado seu disco em 1988, seu décimo primeiro ano de carreira, foi recompensada pela longa espera. Fôssemos infinitos Tudo mudaria. Como somos finitos Muito permanece (Se fôssemos infinitos, Bertolt Brecht)56 Brecht nasceu no dia 10 de fevereiro de 1898 em Augsburg, no sul da Alemanha. Sua primeira peça foi Baal, escrita em 1918, ano em que prestou serviço militar como enfermeiro, num hospital de sua cidade. Já havia publi­cado poemas e artigos anteriormente, tendo sido, inclusive, ameaçado de expulsão do colégio onde estudava, por ter se manifestado contra a guerra, no ano de 1916, em redação feita para a própria escola. Seus próximos trabalhos para teatro foram Tambores na Noite e Na Selva das Cidades. Ao longo de 58 anos de vida, Brecht escreveu poemas, diários, teorias teatrais e inúmeras outras peças igualmente importantes, caso de Um Homem é um Homem; Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny; Ópera dos Três Vinténs; Santa Joana dos Matadouros; A Exceção e a Regra; O Que diz Sim e o Que diz Não; Os Fuzis da Senhora Carrar; Vida de Galileu; Mãe Coragem e seus Filhos; A Alma Boa de Setsuan; e O Círculo de Giz Caucasiano, para citar algumas. No livro Brecht – Vida e Obra, Fernando Peixoto justificou a importância do artista, não apenas para o teatro moderno, mas em termos filosóficos, políticos, sociais: Brecht é um dos escritores fundamentais deste século: por ter revolucionado teórica e praticamente a dramaturgia e o espetáculo teatral, alterando de forma irreversível a função e o sentido social do teatro, utilizando a arte, concebida como resultado de um processo de criação coletiva, como uma arma de conscientização e politização, destinada a ser sobretudo divertimento, mas de uma qualidade específica: quanto mais poético e artístico, mais momento de reflexão, verdade, lucidez, espanto, crítica; por sua contri­buição excepcional ao pensamento estético marxista (e também à sua ética), sua concepção de um realismo crítico e socialista, mas polêmico, novo, corajoso, isento de preconceitos, de cópia de fórmulas antigas [...]; por sua vida de intelectual e exilado político, num mundo em que ser bom é ajudar a perpetuar o mal [...]. Também por sua contribuição, como artista e intelectual à filosofia política, ao comportamento ético do homem 57. Brecht não dá soluções, mas subsídios para que o público chegue até elas. Também Cida não é mulher de muitas respostas. Prefere os questionamentos. Por isso quanto mais marcas anti-ilusionistas houver em cena, tanto melhor, pois maiores também serão as possibilidades de o espectador não se identificar de forma cega com a narrativa, podendo manter uma postura distanciada e, portanto, chegar a conclusões mais lúcidas sobre a realidade social e política de seu tempo. O termo em alemão – entfremdungseffekt – utilizado para designar o consagrado efeito de distanciamento proposto por Brecht não possui tradução literal e confunde-se, igualmente, com o sentido de estranhamento, que parte da ideia de não identificação. Sobre o recurso, seu autor alertou ainda para o perigo de que este acabasse como um fim em si mesmo, isto é, que produzisse um espectador fascinado no processo de crítica sem ser atingido pelo significado da crítica. José Possi Neto reforçou essas características fundamentais do teatro brechtiano: Ele traz a teoria sociopolítica, que não é propriamente uma novidade porque o teatro grego já fazia crítica social e política, mas não se utilizando desse recurso de distanciamento, tal como Brecht propôs para o teatro do século XX. O espetá­culo passa a ser não apenas a ficção, a catarse, o envolvimento, o realismo ou o naturalismo, mas é, acima de tudo, um fórum de discussões da realidade social e política daquele momento. Neste sentido, ele influenciou muito o teatro brasileiro dos anos 1960, até o final dos 1970, todo o período em que a gente viveu sob a ditadura. José Possi Neto dirigiu o espetáculo Bilbao cabaré com o qual Cida levou aos palcos o repertório do LP, composto por dezoito faixas. Mas no show entraram também canções de outros autores como Caetano Veloso, com a canção Amor, ou Chico Buarque, com Beatriz. Alabama Song, Canção do Vendedor de Vinho, Canção de Salomão, Bilbao Song e Em um Berço tão Dourado são algumas das versões feitas por Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia para as músicas de Brecht que Cida registrou no álbum. Sobre o disco: Cida Moreyra, também responsável pela direção musical, descreve à perfeição o universo dos torturados personagens brechtianos. (...) É enfim, disco dos melhores, importante em qualquer discoteca, pois Cida Moreyra conseguiu dar nova e boa tradução aos mestres alemães58. O espetáculo Bilbao foi concebido para o 1º Prêmio Shell de Teatro em dezembro de 1988. Seu diretor lembrou-se que, assim como em Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill, o cabaré não deixou faltar, ao fundo do palco, uma lua na qual slides eram projetados durante o show, cujo nome foi inspirado na música Bilbao Song. Óh, lua de Bilbao / óh, lua de abril / óh, lua de Bilbao / charutos do Brasil, cantarolou José Possi. A lua é também um símbolo de feminilidade, embora na Alemanha seja um substantivo masculino. E sol, feminino. Bilbao é a capital da província de Biscaia, no País Basco, Espanha. Brecht tinha o hábito de colocar nomes de cidades nos títulos de suas canções. Como essa, há Havana Lied, Benares Song, Alabama Song e a já citada Surabaya Johnny. Gil Reyes também descreveu o espetáculo: No palco, além da Cida, éramos eu, o Sérgio Chica na percussão e uma atriz, a Vera Buono, que encenava alguns esquetes, dançava e cantava também, era muito bonito. Ela tinha trabalhado em cabarés como esse na Alemanha, por um tempo. Havia um número em que ela e a Cida contracenavam, então a música ficava por conta de uma gravação em fita cassete do Youkali Tango, de Kurt Weill e Roger Fernay. Era uma gravação antiga. Para Possi, o traço mais forte da personalidade de Cida é mesmo ser uma artista cabaretista. Segundo o diretor, é nessa linguagem que ela realmente se enquadra e está mais bem equipada de seus recursos dramáticos, trazendo ao palco toda a aura dos cabarés europeus, e a relação, ao mesmo tempo lírica e crítica, travada com o público por meio da música e da sátira. É aí que ela se põe por inteiro e revela seu potencial de unir ao mais alto nível a atriz e a cantora. Sobre as características do gênero cabaré, o crítico, radialista, historiador e musicólogo Zuza Homem de Mello definiu, em seu livro Música nas veias: (...) paralelamente à proliferação dos bares e salões de dança, desenvolveram-se extraordinariamente na década de 1920 as atividades dos Kabaretts (cabarés), nos quais, além de uma fartura de canções criadas especialmente para o rico e variado panorama musical que se vivia em Berlim, a linguagem de cunho político era o elemento que fazia a diferença em relação às outras formas de entretenimento, como as revistas musicais e a dança. Os espetá­culos de cabaré nos anos 1920 e 1930 reuniam pantomima, números musicais, atos e especialmente sátiras políticas. Estas ficavam a cargo dos irreve­rentes mestres de cerimônia que, além de conduzir e costurar o espetáculo, apresentando cada artista, interagiam com a plateia com comentários improvisados em torno de acontecimentos do dia a dia. Tais intervenções eram recheadas de mordacidade e cinismo, por vezes com duplo sentido, e embutiam críticas ou zombarias a figuras e episódios do mundo político. (...) As canções dos cabarés gozavam de grande liberdade ao abordar temas normalmente proibidos como homossexualismo e prostituição. Nos espetá­culos dos cabarés de Berlim, localizados em sua maioria nas vizinhanças da Kurfürstendamm, a censura foi praticamente abolida e, embora não houvesse a decadência que seria proclamada pelos nazistas e pelo próprio cinema americano, aí podiam ser vistas mais abertamente cenas relativas a sexo, incluindo o strip-tease, que logo surgiu59. Em entrevista, Zuza falou de seu respeito pela cantora e realçou a herança da estética do cabaré em seu trabalho: A Cida é, dentre todas as cantoras brasileiras, inclusive as que não estão mais entre nós, a que mais se aproxima daquilo o que nos Estados Unidos é chamado de saloon singers, linguagem que dialoga diretamente com o cabaré europeu. Uma das características desse tipo de artista é que eles não se deixam levar pela música que está nas paradas de sucesso. Ela traçou uma linha de ação para a sua carreira que visa ser reconhecida pelos músicos, e não pela mídia. Existe em seu trabalho outro enfoque. Primeiro ela vai atrás de outras propostas musicais, compositores desconhecidos, ou a obra pouco conhecida de compositores famosos. Ela pinça nessa pesquisa canções que acabam se revelando muito mais interessantes do que até então aparentavam ser. Depois ela recria essas canções que ninguém suspeitava que houvesse. A Cida é uma artista de primeira linha. Também sobre a questão da relação da cantora com a mídia de massas, José Possi Neto ainda ponderou: Ser um mito comercial é uma coisa típica do novo mundo. Ou você acontece dessa forma, ou não acontece. Então a Cida mantém uma carreira sui generis no Brasil porque ela conseguiu manter-se coerente com suas ideias sem cair nessas disputas de paradas de sucesso, que é algo que não tem nada a ver com ela mesmo. Difícil não notar em Cida a possibilidade de diferentes emissões vocais produ­zindo, ao transcorrer de uma mesma canção, toda uma gama de timbres e volumes capaz de revelar uma versatilidade técnica a serviço do potencial emotivo de cada obra. Mas além de rasgar a voz em urros desbragados ou de entoar suavemente notas delicadas de impostação quase lírica, Cida em seus cabarés ainda mantém diálogos com a plateia, fornecendo, sempre que possível, informações relativas ao contexto de composição das obras e buscando a comunicação com o público por meio de elementos cênicos mais ligados à informalidade, à irreverência e à ironia. São peculiaridades que permeiam a maioria de seus espetáculos e estão diretamente associadas à estética do cabaré. É aí também que a influência de Brecht pode ser identi­ficada não apenas nos shows em que ela canta o compositor, mas em todos os trabalhos desenvolvidos nessa mesma linguagem. O estilo voltou a ganhar força nos últimos anos com espetáculos que tentam resgatar o teatro de variedades tão apreciado na Europa. Outro ponto valioso, para se entender melhor Brecht, está na disponibilidade do compositor em não ter fechado jamais as portas da experiência e da transformação. Talvez esteja nesta particularidade a explicação para o fato de ele transitar com tanta facilidade pelos vários caminhos artísticos a que se propôs, e também de nunca ter enxergado o resultado de seus trabalhos como algo propriamente concluído. Sobre isso, Cida me disse, certa vez: O que fica, na verdade, é a qualidade das obras. E as pessoas andam sem tempo de construir uma obra. A relação com a arte hoje é outra. Então não tenho a pretensão da imortalidade. Ou você faz algo que mereça ser lembrado, ou não pode querer isso. Acho que se tudo morrer comigo, não tem problema. Brecht dizia: quem morre é o morto. E, para citar novamente o dramaturgo, Cida segue à risca as palavras ditas por ele em 1929: O verdadeiro progresso não está no ter progredido, mas no progredir. Daí os trabalhos de Brecht terem sempre sido escritos não apenas em parcerias e colaborações de outras pessoas, mas também ao longo dos anos, durante os quais o dramaturgo alterou situações históricas, perfis psicológicos de personagens e até mesmo a direção ideológica tomada pela narrativa. Esta postura esteve sempre de acordo com as novas visões do autor e com as necessidades de transformação que o mundo, em períodos de crise como o da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, ia lhe impondo. Basta lembrarmos que Mahagonny trata-se, na verdade, de um grande estudo sobre o tema da cidade paradisíaca. Muito foi reescrito, alterado e ampliado, até se chegar à versão da ópera Ascensão e Queda da Cidade Mahagonny (1930). Como tão bem definiu Zé Rodrix, certa vez, ao escrever sobre o disco Cida Moreyra interpreta Brecht, a decisão de procurar no fundo o que seja verda­deiro passa forçosamente pela reobservação do que seja básico entre nós. Ou seja, retomar o essencial para seguir em direção ao real. A própria capa do disco já é uma retomada do personagem que Cida viveu na montagem de Mahagonny, em suas características essenciais60. Brecht é, portanto, para Cida, referência das mais reveladoras. Transpostos para a sua realidade e sua arte, os principais fundamentos do espírito brechtiano e de suas teorias cênicas estão presentes na música de Cida que, cada vez mais, depura sua personalidade fundindo todo esse conhecimento com sua vida prática. Esse aproveitamento, por sua vez, também constitui um dos principais pilares da proposta de atuação sugerida por Brecht, segundo a qual o ator deve construir cada cena utilizando traços da personagem reco­nhecíveis em si mesmo. Assim, representa-se o papel escrito sem que, em momento nenhum, sua real identidade seja abandonada. Com isso, torna-se viável para o ator exercer um olhar crítico sobre a própria personagem, ao mesmo tempo que a vive. Em cena, Cida representa clara­mente uma persona – talvez a trágica dona de bordel em seu espírito exuberante, decadente, marginal e belo – sem nunca deixar, contudo, de se parecer com ela mesma. A dama indigna Diziam que ela cantava. Mas não era da boca O som que eu ouvia Não era sol que surgia Não era a voz que encantava. Ela dizia que era ridícula Isso eu posso dizer por mim, Eu atesto e dou fé, Porque gostar de Brecht até Se entende, Mas gostar de mim? Juro que não conheço Uma pessoa tão ridícula assim! Diziam que era cantora Mas eu só via a pessoa. Ela tinha uma música Que vinha das mãos Não porque os dedos Rebatiam fortes nas teclas Do piano recheado de lembranças Sem espaço no canto Para mentir pro coração, Coração que trocou de lugar E eu via na ponta dos dedos! Diziam que sua voz cortava. Nem isso... Sua voz navegava E naufragava em uma estrutura Diferente do mundo macroscópico. Mas as mãos regiam. Mas não como a orquestra, Ela parecia reger o palpável Grossamente amável Com cretinos como ela Que se olhavam no espelho Enquanto mentiam. Acho que era moça, Acho que era velha, acho que era puta, Mas acho que mesmo puta Era donzela. Às vezes, parecia o vento Segurando uma espada, Às vezes, um mar furioso, Ou um Palácio da Esplanada, Às vezes, não parecia nada. Diziam que era bem-humorada. Quem disse? Diziam que não valia nada Como um cachorro do mato, E só por força da rima, Me digam quem disse, Porque esse, eu mato! Mas era cretina, Perpétua, Ardilosa Que obrigava a rimar quem não tinha rima, De uma astúcia cruelmente generosa. Diziam que ela tinha seus sonhos Mas sempre foi muito cautelosa. Talvez porque não sonhasse Acordada como eu. Mas eu só sonho acordado porque sou ateu. Mas diziam, diziam... Todos sempre dizem. E como disse Ataulfo Alves, A maldade nessa gente é uma arte. Por isso diziam. E é o aspecto mais complicado: Se ainda dizem, não mais escuto E finjo, muito surdo, e delicado, Porque diziam e eu não escutei no passado. Essa safada Tem rimas imperfeitas, Graças a Deus! Senão onde mais eu encontraria Uma voz que canta pelos Olhos dos outros, Que não sai dela, Dando a impressão que seus cantos são meus? (Poema do diretor, sambista e dramaturgo Marcelo Fonseca para Cida Moreira) Capítulo 5 – A Voz da Dona Quem é essa mulher Que canta sempre este estribilho? Só queria embalar o meu filho Que mora na escuridão do mar (Angélica, Miltinho e Chico Buarque) Pouco antes do início das apresentações de Bilbao em dezembro de 1988, Cida estreou em Curitiba, no Teatro Guaíra, um espetáculo de balé chamado Ronda. Com roteiro desenvolvido a partir do livro homônimo de Arthur Schnitzler, o espetáculo entrou em circuito no mês de setembro e teve direção coreográfica do também alemão Bernd Schindówski que ainda cuidou dos cenários e figurinos. Entre o elenco, composto pelo próprio balé do Guaíra, estava Cida cantando canções de Kurt Weill em parceria com outros autores, e acompanhada pela Orquestra Sinfônica de Curitiba. A produção – parceria entre o importante teatro curitibano e o Instituto Goethe – contou com a direção artística de Carlos Trincheiras e cumpriu uma grande tempo­rada no palco de sua estreia antes de iniciar suas viagens pelo País, o que durou até o ano de 1990. Até lá, novos projetos já se intercalavam na agenda da cantora. Um deles foi no final de 1989, quando o cartunista Miguel Paiva montou um roteiro a partir das versões que havia feito, em parceria com Zé Rodrix, de algumas músicas do compositor norte-americano Cole Porter (1891­1964). O show foi batizado Porter a Porter e, para interpretar o repertório, os parceiros convidaram Cida Moreira que dividiria o palco, ainda, com outro cantor. Não queríamos um nome convencional ou de alguém famoso, nada disso. Aí lembrei de um amigo antigo que era cantor de rock, chamado Caio Silveira. Hoje em dia ele não canta mais, vive como professor de tênis em Florianópolis, lembrou a cantora. Além de Caio, o musical foi apresentado por uma banda de jazz composta por Pete Wooley (contrabaixo), por Philip Gold (piano) e pelo maestro Celso Del Nery (guitarra e direção musical). Os ensaios aconteceram nos meses de janeiro e fevereiro de 1990 e o show entrou em cartaz pouco tempo depois, no Teatro Crowne Plaza. A estreia marcou a reinauguração do espaço que, até ser reformado, funcionava apenas como auditório do hotel. O responsável pela direção do espetáculo foi o ator Sérgio Mamberti, um dos sócios da empresa que organizou a nova progra­mação do teatro, a Smac Empreendimentos Culturais. Nesse período, o Brasil entrava em uma fase turbulenta. Collor tinha assumido a Presidência e tomado medidas impopulares como o confisco da poupança dos brasileiros. Toda a produção artística e cultural ficou praticamente paralisada por falta de recursos e Porter a Porter foi, evidentemente, um dos espetáculos afetados por essa medida, tendo sua temporada quase interrompida. O jornal Estado de S.Paulo publicou uma matéria divulgando a abertura do novo teatro no hotel e, claro, sua atração de estreia. No texto, além dos depoimentos de Mamberti sobre as adequações do novo espaço, houve menção à medida financeira: Na verdade, o plano econômico do governo prejudicou bastante as pretensões do grupo, que acabou juntando suas próprias economias para montar a nova empresa e fazer os primeiros contatos. Com um auditório tão reduzido, os produtores não podem contar com retorno de bilheteria, insuficiente para cobrir os custos. Por isso, dependem de apoio cultural61. A estreia foi espetacular, revelou Cida. Mas com esse verdadeiro golpe, nós saímos de uma semana de casa cheia para outra com dez pessoas na plateia. O pouco dinheiro que elas ainda tinham, não era para ver espetáculo nenhum. Por isso tive de cancelar praticamente todos os shows que havia marcado. O mesmo, no entanto, não aconteceu com Porter que resistiu até o fim da temporada no Crowne, driblando todas as dificuldades que, como definiu a cantora, foram bastante violentas. Houve, posteriormente, algumas andanças com o espetáculo: uma temporada em Curitiba, outra no Rio Jazz Club, onde Cida já havia apresentado o seu Bilbao Cabaré e, assim, com o tempo, a produção ganhou fôlego novamente. Posteriormente o elenco seguiu para o Rio Grande do Sul, antes de voltar à capital paulista, reestreando no mesmo Crowne Plaza, sob novas condições e por um tempo até maior. Seguiram de lá para o palco do Memorial da América Latina até iniciar-se, nos primeiros meses de 1991, nova temporada carioca, continuada pelas duas semanas de Bilbao Cabaré que Cida emplacou em seguida, totalizando, para a cantora, um mês em cartaz no Rio de Janeiro. O show era aberto com um bloco de três canções: Mais uma Estreia; Estreia em Veneza; e Be a Clown. Seguia com És Demais, em seus versos de amor de sarjeta, para usar a expressão publicada pelo Jornal do Brasil na matéria Um show onde todos pedem bis62 de Mauro Trindade: Sou um cheque frio // Um isqueiro sem gás // Não sou nada // Mas tu és demais. Havia, ainda, no repertório, pérolas de Cole Porter, como Let it Do (Façamos) e Night and Day. Na mesma matéria do Jornal do Brasil, o crítico elogiou: Cida Moreyra é algo mais. Seu timbre grave e sua interpretação eloquente passeiam pelas músicas quase em tom de conversa. Na maioria das canções se mantém contida, mas quando exigida, sua voz também mostra o quanto tem em poder. A sexua­lidade dopada de Eu sou preguiçosa demais e os biquinhos e cicios de Eu sou do papai permitem que solte a garganta, desbragada, com as letras escandidas e grande emoção. Com o tempo, Porter a Porter foi se desgastando, até terminar naturalmente. Mas Cida continuou fazendo Bilbao Cabaré pelo interior de São Paulo e em alguns outros lugares, até ser convidada para um novo show, dessa vez ao lado do cantor Cláudio Botelho. O novo espetáculo trazia à cena uma adaptação acústica da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin (1898-1937). Transposto dos palcos para o cinema, em 1959, nos Estados Unidos, após ter sido montado pela primeira vez em 1935, o clássico musical do compositor norte-americano conta a história de Bess, uma mulher de má reputação em sua comunidade. Seu companheiro, agressivo e viciado em drogas e álcool, chama-se Crown. Ambos vivem num vilarejo povoado por negros na Carolina do Sul. Diante de semelhante situação, Bess refugia-se no inválido, e também marginalizado, Porgy, que a acolhe com amor. Trata-se, evidentemente, de um triângulo amoroso bastante ousado para a época em que foi criado. Gershwin compôs, para o musical, clássicos como Summertime, imortalizado pelas vozes de grandes nomes do jazz, como Ella Fitzgerald, que dedicou, em 1959, um disco às canções do compositor, quase sempre em parceria com o irmão, Ira Gershwin. Janis Joplin deixou também sua marca inigualável à Summertime, assim como o faria, anos mais tarde, a própria Cida, em seu show homônimo de estreia. Com Porgy and Bess, Gershwin in Concert, a cantora viajou até 1995. A dupla de cantores apresentou uma seleção de canções da ópera que passava por Bess, You is my Woman Now; I Loves you Porgy; e, claro, Summertime. As músicas eram executadas pela competente banda integrada por Lincoln Antônio, ex-aluno de Cida, ao piano, Fernando Machado na bateria, Guy Sasso no contrabaixo acústico e Gil Reyes também ao piano, além do clarinete. Fazíamos as principais peças do musical. Claro que não todas. Algumas foram reduzidas, mas em termos gerais o repertório era basicamente o mesmo, explicou Gil Reyes. Aliás, o Cláudio Botelho mantém até hoje sua carreira nessa linha de musicais. Ele tem feito espetáculos de fôlego. Mas desde Porgy and Bess, perdemos o contato, confessou o maestro. Nova estreia no Teatro Crowne Plaza e o espetáculo atingiu logo um grande sucesso. A partir de 1993, com o lançamento do disco novo de Cida, o quinto de sua carreira, dedicado a Chico Buarque de Hollanda, ela seguiu apresen­tando os dois shows. No Rio de Janeiro, onde lançou o álbum, Porgy and Bess também foi apresentado no People. Nesse meio tempo, a cantora participou novamente da entrega do Prêmio Shell de Teatro e, até o verão de 1995, manteve os dois espetáculos em cartaz, até ficar apenas com o reper­tório gravado do compositor carioca. Cida canta Chico Cida Moreyra canta Chico Buarque foi lançado apenas na versão CD pela Kuarup, gravadora carioca fundada em 1977 com o intuito de abrir no mercado um espaço para a produção de uma música menos comprometida com os padrões industriais da cultura de massa. Conforme a cantora dizia aos jornais da época, a opção por um disco dedicado ao compositor não foi aleatória, nem fruto de modismos. Sua relação com a obra de Chico vinha desde o final dos anos 1970, quando participou da histórica montagem de Ópera do Malandro e, portanto, é natural e coerente que se desse esse reencontro, numa espécie de consagração. A passagem da década de 1980 para a de 1990 foi também um período de transição para a indústria fonográfica. Gravadoras fecharam, o disco passou a vender muito menos, grandes artistas foram mandados embora, o CD começou a substituir o LP, relembrou Gil Reyes. E numa dessas, cantores como a Cida, menos comprometidos com todo esse aparato comercial, acabaram não sendo tão onerados assim. Aliás, era isso que me atraía muito em trabalhar com ela, porque ela tem um gosto musical com raízes em questões mais consistentes, inesperadas, divergentes, o que é muito a postura estética do Brecht. Existe aí uma responsabilidade artística porque ela sabe que está mexendo com a inteligência e a sensibilidade das pessoas. Isso evidentemente abre algumas portas e fecha outras. E é uma opção dela, porque, ao mesmo tempo que é limitante, é também sua grande força, complementou. Cida foi convidada a entrar na Kuarup e, no final de 1991, iniciou suas primeiras pesquisas de repertório para o disco, montando, na sequência, um show que vinha idealizando já há algum tempo com as canções de Chico Buarque. Nesses espetáculos fiquei como que testando as canções com o público. Passei o ano inteiro de 1992 fazendo isso. Só no final dele é que a gente entrou em estúdio. Em uma semana gravamos tudo. O CD foi lançado em 1993, no Teatro Rival, Rio de Janeiro, lembrou Cida que, em 1999, gravaria ainda pela Lumiar, no oitavo volume dos songbooks dedicados à obra de Chico, a canção Rosa dos Ventos, registrada na faixa treze do álbum. Na Capital paulista, o espetáculo de lançamento do disco aconteceu no dia 8 de julho, no Centro Cultural São Paulo obtendo ótima recepção, tanto da crítica quanto do público. A exemplo do teatro de Brecht-Weill, o universo buarquiano é essencial­mente teatral-expressionista. Prostitutas, pederastas, decadentes palhaços, metafísicas bailarinas, cantores ébrios, medíocres funcionários públicos, mulheres traídas, homens abandonados, pivetes maltrapilhos e miseráveis de todas as espécies compõem este imenso painel que retrata, sem contem­porizações, uma sociedade em adiantado estado de putrefação, porém terrivelmente viva. Interpretar Chico Buarque exige assim entregar-se a uma radical catarsis. É necessário lançar-se de cabeça no lodaçal dramatúrgico do mestre carioca, sem querer sair ileso. Chico Buarque machuca e é necessário ter-se coragem para se flagelar. E é justamente coragem que não falta a Cida Moreyra. Seu Chico soa tão tenebrosamente sincero quanto um golpe fatal (...)63. Cida foi a primeira cantora brasileira a gravar, ainda em Summertime, a versão censurada de Geni e o Zepelim em que os conhecidos versos que dizem dá-se assim desde menina / / na garagem, na cantina / / atrás do tanque, no mato aparecem como Foi assim desde menina / / das lésbicas concubina / / dos pederastas amásio. O regime militar cortou o segundo trecho, conside­rado ofensivo demais. Na gravação de Cida, também a expressão moleques de internato foi registrada em sua versão original, moleques de ginásio, rimando, portanto, com amásio e não com mato. Geni foi uma das dezenove canções incluídas no repertório do novo disco, cujo critério de seleção passou, inevitavelmente, pela predisposição à verve dramática de Cida Moreira. Das outras dezoito, algumas como O Malandro, versão livre de Chico Buarque para Die Moritat von Mackie Messer, de Bertolt Brecht e Kurt Weill (composta originalmente para a Ópera dos Três Vinténs), e Bom Tempo, aparecem como vinhetas entre as faixas do álbum, que conta, dentre outras, com Beatriz (1982) – parceria de Chico e Edu Lobo composta para a trilha do balé O Grande Circo Místico –; Estação Derradeira (1987); A Voz do Dono e o Dono da Voz (1981); e Valsinha (1970), esta em parceria com o poeta e diplomata Vinicius de Moraes. Foi revelada na Assembléia – ateia Aquela situação atroz A voz foi infiel Trocando de traqueia E o dono foi perdendo a voz (A Voz do Dono e o Dono da Voz, Chico Buarque de Hollanda) O novo disco também teve direção musical do maestro Gil Reyes e con­centrou inúmeros elogios da crítica que, em sua maioria, ressaltou o bom gosto e a competência de Cida ao revisitar a obra do compositor. No entanto, houve também quem não gostasse muito, tecendo críticas menos favoráveis. Segundo uma delas, a canção Beatriz teria recebido uma má abordagem da cantora que supostamente teria desafinado pelas notas64. O inquestionável, em todo caso, é que a maior potencialidade expressiva de Cida está no palco, onde deslizes melódicos como o citado acabam perdendo importância. Ainda sobre o álbum, o crítico Mauro Ferreira escreveu: As principais canções compostas por Chico para peças, filmes e balés estão reunidas num disco de beleza incomum. Cida é uma cantora apropriada para gravar essas canções porque seu canto tem uma emoção essencialmente teatral – às vezes lírica e sentimental, em outras histriônica e cínica, mas sempre de acordo com o texto da música. A cantora paulistana mostra-se identificada com o universo marginal e denso de Chico, especialmente nas canções mais intensas. Caso de Palavra de Mulher e Angélica, esta composta em 1977 em homenagem a Zuzu Angel 65. Elogio e Na Trilha do Cinema Esse pássaro que ocupa um céu de cuidados Denise Stoklos No começo de 1995, o então diretor do Sesc São Carlos, Henrique Andrielli, pediu a Cida Moreira que preparasse um recital sobre o cinema brasileiro que, naquele ano, completava oficialmente seu centenário. O espetáculo foi concebido para abrir uma grande programação iniciada em São Carlos: Fiz uma pesquisa de repertório até meio correndo, junto ao Henrique, e esse recital acabou se tornando o embrião do meu novo show que estreou em meados de 1996 e se chamou Na Trilha do Cinema. Foi essa expansão de repertório que deu origem também ao disco de 1997, explicou a cantora. O espetáculo foi apresentado ao lado dos músicos Gil Reyes e Omar Campos e teve seu registro no Tom Brasil para um Especial do Canal Brasil de TV a cabo. Cida e Omar conheceram-se em 1992. E desde então são grandes amigos, além de parceiros profissionais. Fui levado à casa dela pelo maestro Waltel Branco para ensaiarmos um show de serestas que haveria no Festival de Inverno de Campos do Jordão. E tempos depois, fizemos o espetáculo Na Trilha do Cinema. Era um show intimista, mas cinematográfico, pelas grandes performances. Éramos apenas um trio, mas muito entrosado, pois já estáva­mos juntos há alguns anos. No repertório, estavam basicamente as mesmas canções que entrariam no disco, lembrou Omar. Para ele, esse período ficou marcado por um sentimento de grandeza no que faziam. Foi uma época de muitas apresentações pelo Brasil. No bar Supremo em São Paulo, onde aconteceu sua estreia, Na Trilha do Cinema ficou em cartaz por dois meses, até Cida entrar em estúdio para o registro do álbum, cujo projeto a gravadora Kuarup comprou posteriormente, com o trabalho já finalizado. O mesmo aconteceu anos mais tarde em Angenor, o disco de 2008, também concebido em parceria com Omar Campos. Segundo Cida, a seleção do repertório de Na Trilha do Cinema partiu de uma lista de 60 músicas, das quais ela escolheu 16, contemplando os principais momentos daqueles cem anos. Dentre elas, estiveram Vocalise, de Estrela Nua; Perseguição, de Deus e o Diabo na Terra do Sol; e outras como O Ébrio; Tristeza do Jeca; e À Flor da Pele. Apesar de certas restrições técnicas também, o disco é muito bom, na minha opinião, avaliou o maestro Gil Reyes. Gosto até mais dele do que do Cida canta Chico Buarque, porque me parece musicalmente mais estruturado. Falo com relação a mim mesmo, aos meus arranjos. Sou muito crítico comigo mesmo. E para mim, MPB precisa do trio baixo, bateria e piano / violão. Esse álbum já tem um baixista e os timbres dele são menos escuros. É natural que, depois de pronto o trabalho, a gente se pergunte se não poderia ter feito de outra forma. Ainda em 1995, Cida participou com a amiga e atriz Denise Stoklos, do espetáculo teatral Elogio, criado coletivamente em torno de Elogio da Sombra, livro do escritor argentino Jorge Luís Borges. Além das duas atrizes, apaixonadas pela literatura borgiana, a peça contou com o ator Fábio Namatame, também diretor de arte, cenógrafo e figurinista. Juntos, os três abriram o Festival Porto Alegre Em Cena com um espetáculo musicado pelos tangos que Cida executava ao piano. Elogio da Sombra é um livro de poemas e pequenos textos em prosa publicado em 1969, que fala essencialmente da cegueira e da velhice, temas vitais para um autor cego, no alto dos seus 70 anos. Borges aborda as questões de forma espetacular, segundo Cida, ainda que por um viés bastante duro e triste: Esse livro me toca profundamente até hoje, não só por eu ter uma visão limitada, assim como algumas pessoas da minha família, mas por estar envelhecendo também. E o espetáculo refletia tudo isso de uma maneira maravilhosa. A Velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. (...) Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou66 Elogio estreou em apresentação única no sábado, 23 de setembro de 1995, em Porto Alegre, com plateia de aproximadamente 1.200 pessoas. Dentre elas, estava o escritor e jornalista Caio Fernando Abreu, de quem Cida foi grande amiga. Caio citou o espetáculo em uma crônica escrita no dia anterior para o jornal Zero Hora, já doente, cinco meses antes de morrer. Ele foi com o enfermeiro e sentou-se na primeira fila, lembrou Cida, com carinho. Na crônica, ao enaltecer as qualidades do cantor e compositor Péricles Cavalcanti, personagem principal de seu texto, Abreu comparou: Há outros assim [como Péricles]. Ao acaso, de repente, penso em Cida Moreira (amanhã, em dueto de realeza com Denise Stoklos – e Borges!), Eliete Negreiros, Rosa Passos; (...). Quem os conhece e inevitavelmente os ama sabe que artistas assim são simplesmente os melhores. E correm mesmo por fora, têm dificuldades com gravadoras, tão íntegros que a integridade supera a vaidade natural e de certa forma até preferem permanecer nesse jardim secreto e discreto onde habitam, quem sabe para nutrir melhor os próprios frutos67. Segundo Denise Stoklos, Cida é a cantora e atriz brasileira mais capaz de afetar de forma contundente o público. Ela percorre uma peça com total coerência, tudo justo, tudo concentrado em sumo, emoção espremida do tema. Seja com textos de Brecht, como já vi, seja numa versão livre de textos de Borges, como em Elogio, quando tive a oportunidade de contracenar com ela, e ainda dirigi-la, disse a atriz. Ludicamente, ela deixa que seus cabelos vermelhos e anéis de um Dionísio faiscante hipnotizem a plateia como conhe­cedora legítima das marcas de Caim, impagável, inapagável, mostrando-nos que a única opção depois de vista a dor, é vivê-la. Tive ocasião de ver uma grande cantora e atriz, Ute Lemper, no Théatrè du Boeuf em Paris, e no Schauspielhaus em Berlim, ali interpretando o Anjo Azul. Na arte não há comparações, mas preferências. Eu disputaria ingresso para espetáculos de Cida Moreira, confessou. No entanto, nem tudo foram flores naquela época, por conta de alguns problemas particulares entre o elenco, nos quais Cida preferiu não se aprofundar. Apesar disso, Elogio foi um trabalho de grande importância artística e satisfação pessoal. Além de apresentar o espetáculo Na Trilha do Cinema, antes do lançamento do CD, a cantora não tirou de cartaz o repertório de Chico Buarque: Nessa época eram tantas coisas que eu nem tenho condições de lembrar tudo. O importante é você saber das criações mesmo, entende? Ah, lembrei de uma coisa importante! Em 1997, antes também do lançamento do disco de cinema, eu voltei à Europa. Cida ficou de julho a agosto na Itália, para onde levou as canções de Chico, tendo recebido ótimas críticas pelo show. Foi a primeira vez que voltou ao velho continente a trabalho, desde 1985, quando esteve com Arrigo Barnabé fazendo São Paulo, Brasil. Já de volta e com o disco lançado, Cida foi convidada em 1998 para uma grande turnê promovida pelo Sesc de São Paulo, apelidada carinhosamente Turnê Brecht. Aquele era o ano em que o dramaturgo alemão completaria seu centenário de nascimento e a ideia foi preparar uma programação come­morativa que envolvesse música, cinema e teatro. Montaram-se vários elencos que passaram a viajar o interior do Estado de São Paulo, percorrendo todas as unidades do Sesc. E o cabaré de Cida marcou presença no roteiro. Após o espetáculo de estreia na capital, pelo Sesc Paulista, dirigido por Antônio Abujamra, o elenco viajou por três meses, durante os quais se revezou em 12 espetáculos diferentes, de tal modo que todas as cidades, durante o período, fossem sempre sendo contempladas. No elenco de música, além de Cida, havia outros artistas, como Denise Assunção e Jorge Mautner. Num ritmo frenético, durante abril, maio e junho, a cantora apresentou-se em 28 cidades, aproximadamente. No mesmo ano, ela abriu novamente o Festival Porto Alegre Em Cena, fazendo dessa vez seu cabaré brechtiano. Foi aí que mudei o roteiro desse show. Montei outro espetáculo que se chamou Aos que estão por vir – Um concerto cabaré, que é basicamente o que faço até hoje. Ele é diferente dos que eu apresentava até então. No novo, incluí parcerias de Brecht com autores que não o Kurt Weill, como Hans Eissler, além de abrir para outros compositores, caso de Paul Dessau, Ira Gershwin e Friedrich Hollaender. Estreei em Porto Alegre, e isso me levou, na sequência, para o II Festival Internacional de Teatro de Buenos Aires, no final de 1999. Na ocasião, a cantora deu uma grande entrevista para um veículo argentino, cujos nome e data infelizmente não foram identificados, em que comenta o espetáculo e, claro, sua identificação artística com a estética do cabaré. Aclamada como la extraordinaria cantante brasileña, además actriz y pianista, Cida, nas palavras de Moira Soto, hechizó al público que logró verla y oírla en el Centro Cultural Recoleta. Alguns trechos das respostas dadas por ela ao jornal: La primera idea fue que yo hiciera aquí un show de música brasileña, pero me pareció que era mejor este espetáculo de cabaret que refleja un período histórico tan especial, entre dos guerras, donde existía el riesgo de que todo terminara de la peor manera. Un período en el que reinaban el cinismo, la desesperanza, la violencia. Brecht advirtió esta realidad y expuso en su teatro este clima caótico pero transformándolo en poesía y reflexión política y social. (…). Mais adiante, Cida explica: El cabaret sería una microsociedad, donde todos se juntan: la prostituta, el militar, el rico, el pobre, el gigoló, el malandra. Todos. El cabaret tiene también bastante de la estética del circo, su fantasía y su libertad. Y también en el cabaret se puede decir cualquier cosa, se puede reír y llorar. Reír de lo más triste, llorar de risa. Sobre o risco de seu trabalho tornar-se elitista, Cida assume a possibilidade e a defende: Me gusta lo popular, no lo populachero. (...) Mi postura como artista es lo que determina mi trabajo, y no al revés. E, dentre outras ponde­rações, conclui respondendo à questão do poder que representa, para um artista, estar no palco seduzindo seu público, tal como una hechicera majes­tuosa. Cida: Es un poder, claro que sí. Es un poder que adoro, porque en la vida real, no lo tengo. Y cuando no puedo ejercer ese poder sobre la escena me siento muy mal. Asumo completamente esa vanidad. Pero quiero que tenga una justificación artística, que no sea una vanidad gratuita. Como tú lo has dicho, ese poder sirve para encantar a los otros. ¿Hay un poder mejor?. De Buenos Aires, o show seguiu para Córdoba. Além disso, Cida recebeu de Franco, um produtor de Turim, cidade da região de Piemonte, na Itália, o convite para trabalhar no país com Milva, grande cantora italiana e difusora da obra de Brecht, além de intérprete de outros importantes repertórios como o de Edith Piaf, por exemplo. Cida havia conhecido Franco em sua ida para a Europa, no ano de 1997. Ele organizou para ela uma turnê de 12 shows ao lado de Milva, que acabaram tornando-se 11, porque um teve de ser cancelado. A Milva é como eu, não tem muita frescura com nada. Há um assessor que cuida de seus assuntos profissionais e nada muito além disso, resumiu Cida. O Tronco O ano de 1998 foi mais um daqueles momentos na carreira de Cida Moreira, em que sua agenda parecia não ter espaço para mais nada. No Brasil, ela continuou apresentando Na Trilha do Cinema e foi convidada pelo cineasta mineiro João Batista de Andrade para atuar em O Tronco, filme baseado no romance homônimo do escritor Bernardo Élis, que narra o episódio histórico conhecido como sexta-feira sangrenta, guerra passada no norte de Goiás, no início do século, entre coronéis e o governo central. O sempre politizado diretor que, desde 1969, no início de sua produção de longas, desejava filmar o roteiro, falou em seu escritório sobre o filme: Os coronéis do governo, para tentar controlar o domínio dos do norte, enviam um coletor muito cioso dos direitos humanos que assume efetivamente a região cobrando impostos. Além disso, ele é sobrinho de um dos principais coronéis do local, que fica duplamente furioso, é claro, afinal vê seu poder ameaçado, e ainda por um parente seu. A coletoria é incendiada e o governo resolve, então, mandar uma tropa que barbariza a região, só que os jagunços dos coronéis massacram o exército do governo que, por sua vez, mata os homens das famílias dos coronéis, presos num tronco, daí o nome do livro. Era uma madeira pesada daquelas onde se prendiam escravos. No elenco do filme, rodado em Pirenópolis, interior de Goiás, estavam com Cida os atores Rolando Boldrin, como coronel Pedro Melo68, Ângelo Antônio, como o coletor, Antônio Fagundes, Letícia Sabatella, Chico Dias, dentre outros. A gente ficou indo e voltando de Goiás, durante dois meses, uma loucura. Teve gente que foi e ficou lá na cidade. Eu adoraria ter podido fazer isso, mas não dava. A produção alugou umas casas lá, mas tive que ir picado. Fui umas sete, oito vezes, lembrou Cida, cujo papel era o de Aninha, esposa de Pedro Melo. Eu precisava de uma pessoa muito forte porque as mulheres nesse episódio tinham essa característica. Além de elas terem assumido toda a vila sozinhas depois que seus maridos foram mortos, foi a personagem da Cida que deu um basta naquele massacre todo. Ela encara de tal maneira o soldado que ameaça sua família, que ele a respeita e desiste de fazer qualquer coisa contra ela, explicou o diretor. Ao final, Aninha segura energicamente o braço de seu filho, comandante do ataque ao governo, e abaixa sua arma, dizendo: Chega de sangue! Essa guerra acabou! [...]. Vamos enterrar nossos mortos com dignidade e voltar para nossa terra! João Batista, que após o término do filme passou a residir em Goiás, justificou também o fato de a vila onde se passou a disputa ter sido batizada posterior­mente de Dianópolis. Trata-se de uma coincidência pelas muitas mulheres da região que tinham o nome de Diana. Dada a força que elas demonstraram durante o conflito, o lugar foi assim rebatizado. Segundo o diretor, o filme é um épico de guerra. Mas, na opinião de Cida, o resultado foi frustrante, embora o trabalho de João Batista tenha sido primoroso. Para ela, o que houve foi uma falha de edição e montagem do longa, do qual ficaram de fora sequências que seriam importantes para o filme. Sobre o trabalho, a cantora resumiu: Lindo romance, lindo roteiro, produção ótima. Só que faltou algo, talvez na montagem ou na finalização. Eu até já disse isso pro João. Mesmo assim, foi maravilhoso conhecer Goiás daquela maneira, os atores todos, e ter feito essa personagem forte, emblemática. O autor do romance, Bernardo Élis, conforme revelou João Batista, segurou os direitos do filme para a sua versão desde 1969, em detrimento de outros importantes cineastas, como Glauber Rocha, por exemplo, que também ambicionavam filmar a história. Ópera do Fim do Mundo Naufraga, nada para salvar a vida, chega são e salvo à praia no país de Lilipute. É aprisionado e conduzido pelo país adentro69 Em Buenos Aires, durante a temporada de Aos que Estão por Vir no Festival Internacional de Teatro, ao final de 1999, Cida conheceu um grupo brasileiro de teatro chamado Caixa de Imagens70. A partir desse encontro, surgiu a ideia de um trabalho conjunto, e então foi concebido um espetáculo inspirado pela releitura que a cantora havia feito naquela época do livro Viagens de Gulliver, narrativa de Jonathan Swift escrita em 1726. O livro conta a história de um naufrágio que leva o viajante Lemuel Gulliver à Ilha de Lilipute, cujos habitantes eram pequenos, assim como os bonequinhos utilizados em cena pelo Caixa de Imagens. Esse era o diferencial do grupo. Eles faziam um trabalho de uma delicadeza inacreditavel, elogiou Cida. Para a peça foram compostas situações dramáticas em que a cantora pudesse contracenar com esses bonequinhos. Ela fiava uma roca, cantava canções de roda e era carregada por eles, presa a uma cama. O espetáculo chamou-se A Voz da Mãe e estreou no Sesc Consolação, num teatro de 40 lugares. “Ouvi à minha volta um ruído confuso; mas na postura em que me achava não via senão o firmamento. Logo notei alguma coisa viva que se mexia sôbre a minha perna esquerda e que, andando mansamente sôbre o meu peito, quase me alcançou o queixo; abatendo quanto pude a vista, verifiquei tratar-se de uma criatura humana, cuja altura não chegava a 6 polegadas, com arco e flecha nas mãos e um carcás nas costas. (...). Fiquei sobremaneira assombrado, berrei tão alto, que todos retrocederam, apavorados; (...)”71. No palco, criamos um cenário, como se fosse teatro de bonecos. A peça acontecia dentro daquela caixa. Só que nós trabalhamos três meses e fizemos três apresentações apenas, deplorou Cida. Por uma cisão no elenco, o espe­táculo foi interrompido e visto por apenas 120 pessoas. Teve direção de Herton Roitman que, como a atriz, deixou a produção, após discordâncias relativas aos créditos do espetáculo. Como ela diz, é uma montagem que existe muito mais em seu coração e sua memória do que nos palcos propriamente, o que é de se lamentar, pela perda de um trabalho de grande qualidade artística. Entretanto, a saída de Cida Moreira do grupo Caixa de Imagens foi sucedida pela estreia de outro espetáculo que ela já vinha ensaiando parale­lamente. Era a Ópera do Fim do Mundo, que ficou em cartaz por um mês, com grande sucesso. Sempre ligada à linguagem multimídia, a diretora de vídeoarte Solange Farkas convidou Cida Moreira em setembro de 1999 para integrar o elenco da ópera decafônica O Grande Macabro, do compositor húngaro Gyorgi Legetti, morto em 2007. Solange que, na época, era curadora do festival internacional de vídeo da América Latina, o Vídeo Brasil, comprou os direitos da ópera que, em sua nova versão, ganhou o título de Ópera do Fim do Mundo. Segundo Cida, tratou-se de um trabalho dificílimo, que muito a orgulha. As músicas do espetáculo foram entregues ao grupo Uakti que fez a adaptação e tocou ao vivo, após seis meses de ensaio. Como os músicos eram de Belo Horizonte, passaram todo esse período viajando para São Paulo a cada quinze dias, até estrearem pelo Sesc, em fevereiro de 2000. Encerrava-se, então, mais uma década, profundamente marcada pelos modismos musicais que, no entanto, permanecem conduzindo o mercado fonográfico. Na época, havia uma grande expectativa de que o ano 2000 seria simbolicamente importante em algum sentido, e acabou não sendo nada, ponderou a cantora. No palco do Sesc, um elenco de onze cantores eruditos e Cida Moreira, a única vinda da música popular, narravam em cena uma sátira sobre um falso messias que alardeia o fim do mundo72. Em certo momento do espetáculo, Cida contracenava com a projeção de uma cantora de ópera vista nas paredes e no teto do teatro. O espaço foi todo adaptado para funcionar como uma espécie de “caixa de vídeo”. Por esse motivo, era difícil viajar com a ópera. Mas antes de encerrar a temporada, a peça aventurou-se ainda pelos palcos de Salvador e do Rio de Janeiro. Cida cantava com a projeção que balançava em terceira dimensão no teto do teatro. E os músicos tocando ao vivo, no meio daquilo. Olha, era uma verdadeira alucinação, definiu a cantora. Foi um trabalho inacreditável. De aprendizado, de convivência com aqueles músicos maravilhosos, no mundo da música erudita. Para mim foi espetacular. Eu fazia uma personagem extraordinária. Era uma messalina incrível. Coisa de gente grande. Em 2000, Cida ainda dirigiu seu primeiro espetáculo para teatro: Trem das Onze, texto de Clóvis Torres, sobre a obra do compositor paulista Adoniran Barbosa, com o Grupo Teatral Unicamp, espetáculo que estreou em São Paulo. A Canção Brasileira Após o final da minitemporada de A Voz da Mãe, outro convite intercalou-se à Ópera do Fim do Mundo e proporcionou a Cida Moreira um mergulho que se desdobraria em novos trabalhos para sua carreira. Ela foi chamada para integrar um projeto de retrospectiva da Música Popular Brasileira, o Vitrine MPB. A ideia era apresentar cinco repertórios diferentes, cada um ligado a duas décadas da história do nosso cancioneiro, e com uma particularidade: os shows seriam feitos nos principais shopping centers do País. Era uma grande proposta de resgate musical. A temporada teve início no Rio de Janeiro e, dentre outros artistas, participou também o pianista Arthur Moreira Lima. Para Cida coube o período compreendido pelos anos 1920 e 1940. Com o recital, ela viajou por doze cidades aproximadamente e foi nessa época que entrou em contato com o livro de modinhas brasileiras coletadas por Mário de Andrade. Não exatamente por conta dos shows, porque nesse projeto eu não cantava nenhuma das modinhas do Mário, mas o fato é que a cantora se interessou mais profundamente pela pesquisa de um repertório ligado às origens da música brasileira e acabou decidindo estudá-lo com mais critério. Como boa pesquisadora que é, Cida mergulhou no universo resgatado pelo poeta e musicólogo paulistano, dando origem ao processo de criação do seu espetáculo A Canção Brasileira que, posteriormente, transformou-se em Modinhas e Canções do Brasil. Ainda com o maestro Gil Reyes, começou a incluir algumas das músicas do projeto Vitrine MPB em seus shows de então, o que, de certa forma, ainda que não de modo sistemático ou cons­ciente, seria também o embrião do próximo CD, Uma Canção pelo Ar (2003), cuja proposta é também apresentar um tema de cada gênero musical brasi­leiro, contemplando todas as principais fases da chamada MPB. Em A Canção Brasileira, havia algumas obras da Chiquinha Gonzaga, como Lua Branca. Fazíamos Melodia Sentimental e O Trenzinho do Caipira, do Villa-Lobos, e mesmo algumas que entrariam no CD em 2003, como Chuá, Chuá; Estrada do Sertão; e o choro Quem É. Nesta última, como a música é dividida em duas partes – a da mulher e, em resposta, a do homem – a Cida fazia as duas e no meio tinha uma brincadeira de ela anunciar: agora sou o homem, e continuava, lembrou Gil Reyes imitando com bom humor. O maestro citou ainda a canção Cocaína composta por Sinhô e dedicada por ele a Roberto Marinho. A música também integrou o repertório do espetáculo. Quem é que sempre dá um laço na gravata Quem é que arruma os teus papéis na escrivaninha Quem é que faz o teu bifinho com batatas E esfrega tanto as lindas mãos lá na cozinha E, no entretanto, é só você que não me liga E ainda descobre sempre em mim cada defeito Pois é talvez porque eu sou muito sua amiga E nunca estás por isso mesmo satisfeito (Quem É, Custódio Mesquita e Joraci Camargo, 1937) Foi, portanto, a partir de um convite aparentemente corriqueiro para o projeto de shows em shoppings que se desenvolveram duas ideias centrais para os próximos trabalhos de Cida: o disco Uma Canção pelo Ar e o espetáculo de modinhas, que ela ainda pretende gravar. Novos rumos começavam a ser vislumbrados, além de novas oportunidade que trariam para a cantora, experiências pouco experimentadas até então. Capítulo 6 – Pedacinhos do Céu Já vestindo a pele do artista o tempo arrebata-lhe a garganta o velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz e o tempo canta (Tempo e Artista, Chico Buarque) Em 1982, Cida Moreira já havia feito sua estreia em televisão com uma pequena participação na novela A Filha do Silêncio da TV Bandeirantes. A direção foi de Antônio Seabra e, no elenco, havia nomes como os de Marcos Caruso e Taumaturgo Ferreira. O mesmo acontecera em Direito de Amar, na TV Globo, em que ela apareceu apenas no primeiro e no último capítulo. Nesta emissora, Cida fez também a minissérie Desejo e, no início dos anos 2000, pela TV Cultura, participou do média-metragem O Bule, sendo dirigida novamente por José Antonio Garcia. O filme foi a adaptação de um conto de Clarice Lispector, com Vera Zimmermann, mas teve exibição fechada e acabou perdido com o tempo, nas palavras da cantora. Cida não se viu, portanto, diante de uma experiência propriamente nova, quando, no mês de dezembro do tão aguardado ano 2000, chegou da TV Globo um convite para ela participar de Estrela Guia, a nova novela das seis que estrearia em março do ano seguinte, ainda que suas experiências em televisão não tivessem sido, até o momento, tão significativas quanto esta agora se revelava. A trama, escrita por Ana Maria e Patrícia Moretzsohn, teve direção de Denise Saraceni e, no elenco, figuravam artistas como a cantora Sandy, protagonista da novela, Rodrigo Santoro, Lília Cabral e Miguel Magno, antigo colega dos tempos do grupo Pompa e Circunstância. Cida interpretou o papel de Castorina dos Santos, governanta na casa da personagem de Guilherme Fontes. A novela contou com 83 capítulos, e exibiu o último no mês de junho de 2001. Em sua trilha sonora, não houve músicas cantadas por Cida, ao contrário do que acontecera anos antes em Cambalacho, exibida pela mesma emissora no horário das 19 horas, em 1986, para a qual Cida Moreira registrou Armando eu Vou, de Ricardo Luedy e Carlinhos Brown, lançada posteriormente em LP. Sobre a participação em Estrela Guia, Cida diz ter aceito o convite sem enca­nações: Topei porque achei que seria uma coisa boa, que seria gozado. E foi bom, não foi ruim, não. Por sua personagem ter sido urbanérrima, como ela brinca, Cida não chegou a viajar para Goiás, onde acontecia boa parte da história, até porque as cenas internas foram todas feitas no próprio Projac, no Rio de Janeiro. Mesmo aquele acampamento hippie que havia, era tudo lá dentro da Globo. A maioria das cenas feitas em Goiás, eles grava­ram no começo da novela e iam inserindo conforme fossem precisando, com exceção de algumas coisas. Cida lembrou com bom humor também uma de suas cenas, em que contracenou com o ator Rodrigo Santoro. O galã lhe dava carona de moto até uma festa e ela o agarrava; juntos pela noite carioca. Uma loucura!, divertiu-se. A participação de Cida em uma novela global, ainda que tenha proporcio­nado uma boa experiência para a cantora, não parece atrair novamente seu interesse, por enquanto. Suas atenções se voltam para um trabalho cada vez mais autoral e pouco midiático. Nunca tive muita paciência para o meio televisivo. E hoje em dia, nem para o teatro. Mas isso é uma coisa minha mesmo. Estou cada vez mais ligada à música. Homem dos Crocodilos e Amazônia Ainda durante Estrela Guia, Arrigo Barnabé convidou Cida Moreira para par­ticipar da sua ópera de câmara O Homem dos Crocodilos – um Caso Clínico em Dois Atos, inspirada no relato de um neurótico obsessivo que Sigmund Freud (1856-1939) analisou e apelidou de homem dos lobos. A ideia inicial do espetáculo partiu de Arrigo em 1994, como ele conta: Lendo um artigo sobre o homem dos lobos, comecei a pensar em fazer algo a respeito. Então fui para Buenos Aires e comprei o livro do Freud que aqui ainda não vendia separado da coleção. O argumento da ópera foi composto em parceria com o músico, dramaturgo e psicanalista argentino Alberto Muñoz. Os dois foram apresentados pelo criador do Festival de Teatro de Buenos Aires, Carlos Villalba Welsh, a pedido do próprio Muñoz, grande admirador que era do trabalho do londrinense. Assim, devidamente apresentados e, num segundo momento, com o argu­mento em mãos, o argentino escreveu também o libreto e Arrigo compôs a música. Desde então, muitas coincidências permearam a afinidade entre ambos, do mesmo modo como acontecera com Arrigo e Cida, em 1985, na viagem dos dois pela Europa. A psicanalista do argentino, por exemplo, tinha o mesmo nome da psicanalista da ópera, que, por sua vez, dialogava com a canção de Arrigo, Clara Crocodilo (1980), gravada por Cida Moreira, que é psicóloga. Isso sem falar na recorrência de animais nos trabalhos de ambos. Além dos crocodilos, Muñoz já sondara artisticamente a vida dos macacos e escrevera A Paixão Segundo os Hipopótamos73, o que, como ele declarou com bom humor, não caracterizava nenhum animalismo. A dupla inscreveu-se em um projeto do Banco do Brasil, o qual acabou apro­vando a proposta e produzindo o espetáculo que foi apresentado no próprio Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, no final de 2001, e em 2003 no do Rio de Janeiro, para onde o elenco passou a deslocar-se num ônibus fretado, como lembrou Cida: Nós íamos às quintas-feiras e só voltávamos no domingo de madrugada. Segundo a cantora, embora não tão complexo quanto a ópera do Legeti, feita por ela anos antes, este também foi um trabalho bastante desafiador. Ainda em 2003, o elenco apresentou novamente O Homem dos Crocodilos, dessa vez por dois dias em Buenos Aires, viagem que também traria a Cida desdobramentos para novos projetos. O espetáculo narra a história do compositor Antônio da Ponte, o qual, temendo que a tampa do piano caia sobre suas mãos, sente-se impedido de tocar. Então ele vai procurar uma psicanalista, que acaba desvendando tudo. Descobre-se que ele assistiu a uma cena de violência. O assassinato da mãe pelo pai, que se descobriu traído. Primeiro Antônio viu pelo buraco da fecha­dura a sua mãe nua tocando violoncelo. Depois vê o amante chegando, mas num primeiro momento tem a impressão de que é o pai. Quando percebe a realidade, chama imediatamente o pai que assassina a mulher e o amante. Só que isso o paciente não conta, pois não consegue se lembrar e a psica­nalista também não percebe de início, explicou Arrigo. Assim como o homem dos lobos, o paciente de Homem dos Crocodilos não se cura. No caso original, um nobre russo possui uma blenorragia crônica e não consegue estabelecer vínculos amorosos com mulheres da mesma condição social. Durante os anos de análise diária com Freud, ele conta certa vez um sonho em que vários lobos olham para ele de cima de uma árvore, apoiados nos galhos. Freud diz que sempre que se sonha com olhares, o que acontece é que estamos substituindo algo que vimos e que nossa censura não nos deixa perceber, por aquele olhar do sonho. E esse paciente teria visto seus pais transando por trás, ângulo devido ao qual ele não teria entendido o que se passava efetivamente, explicou o compositor. O papel de Cida em Homem dos Crocodilos era o da psicanalista Clara von Fernut. No elenco, estavam ainda o cantor Tiago Pinheiro, interpretando o músico Antônio da Ponte, os líricos Celine Imbert e Sandro Cristopher, como os seus pais, dentre outros. Segundo Arrigo, a escolha de Cida para o papel aconteceu naturalmente. Ela já tinha feito a Ópera do Fim do Mundo do Legeti, e nós precisávamos de uma atriz com uma presença cênica forte. E no palco a Cida é muito consistente. Ela domina. Além disso é psicóloga, então tudo nos levou ao nome dela. Ainda durante a temporada de O Homem dos Crocodilos, a novela na Globo terminou e Cida recebeu, então, um novo convite para cinema. Rodado na Amazônia, com direção do alemão Herbert Brodl, no ano 2002, o longa Eclipse Solar participou das mostras de cinema de São Paulo e do Rio de Janeiro, mas só estreou comercialmente na Alemanha. Brodl tinha visto Cida em 1985 na Alemanha, em sua viagem com Arrigo, e a convidou anos mais tarde para sua produção. Participaram também do filme Betty Gofman, Matheus Nachtergaele e Paulo Vespúcio, os únicos brasileiros, além de Cida. Fiquei aproximadamente vinte dias na Amazônia, o que nem foi muito, se pensarmos que o pessoal todo acabou ficando três meses. Só se chegava à cidade de Barcelos, antiga capital do Amazonas, de barco ou avião. Então não dava para ficar indo e vindo como era em Pirenópolis na época de O Tronco, justificou a cantora, que depois disso seguiu para Manaus, onde também foram rodadas algumas sequências, dessa vez, em uma casa histórica da qual sua personagem era dona. Cida fez uma cantora de ópera que traficava pedras. Para Eclipse Solar, organizou-se ainda um recital no Teatro Amazonas em que ela cantaria obras eruditas de autores como Schumann. Foi lindo e o melhor é que era de verdade, disse. Tudo produzido para ser um show mesmo, com a diferença que estava sendo filmado e entraria no longa depois. Uma Canção pelo Ar Com o término de Eclipse Solar, ainda em 2002, Cida Moreira seguiu para a Itália. Fez alguns shows no Festival de Jazz da Vila Celimontana, em Roma, e também no Festival de Jazz de Úmbria, ao lado de Paulo Moura, Guinga e Tânia Maria. Quando retornou, já tinha concebido em sua cabeça o embrião do disco Uma Canção pelo Ar, desenvolvido a partir da ideia de traçar uma retrospec­tiva musical do Brasil. A cantora, desde o projeto Vitrine MPB, vinha depurando aquele repertório nos seus shows, paralelamente aos trabalhos em que participava como convidada. Quando chegou num denominador comum, junto ao maestro Gil Reyes, estava pronto o espetáculo A Canção Brasileira que se dividiria em duas vertentes. A primeira foi o show Modinhas e Canções do Brasil. E a segunda, o disco Uma Canção pelo Ar que Cida começou a gravar no início de 2003, no Rio de Janeiro, ano em que também participou do filme Vila Belmiro, de Gilson Santos sobre episódio político ligado à Ditadura Militar em Santos, com Bete Mendes, entre outros. O repertório do disco, composto por uma gama que vai das modinhas imperiais à bossa nova, resgata pérolas como a irreverente e já citada Quem É, de Custódio Mesquita e Joraci Camargo, gravado por Carmen Miranda e Barbosa Junior, em 1937. Passando pelo chorinho, com Pedacinhos do Céu (Waldir Azevedo e Miguel Lima), por alguns clássicos como Leilão (Joraci Camargo e Hekel Tavares) e A Estrada do Sertão (João Pernambuco, Wilson Rodrigues e Hermínio Bello de Carvalho), até aportar em autores contem­porâneos como Chico Buarque, Cida faz uma viagem musical por todas as principais épocas da nossa música popular. Para esse trabalho ainda, ela gravou o samba Tarzan, o Filho do Alfaiate, composto em 1936 por Noel Rosa e Vadico para o filme Cidade Mulher, com a atriz Carmem Santos. E quando veio de Isabé as alforria Percurei mais quinze dia, mas a vista me fartô Só peço agora que me leve siá Isabé Quero ver se tá no céu Minha véia, meu amô (Leilão, Hekel Tavares e Joraci Camargo, 1933) Os músicos que participaram das gravações do disco eram, praticamente todos, do Rio de Janeiro. Apenas Cida Moreira, Gil Reyes e Renato Consorte, que pôs violão, viola, contrabaixo e cavaquinho em algumas faixas, viajaram de São Paulo para o estúdio da Kuarup, em Araras. Uma Canção pelo Ar foi feito em apenas 15 dias e lançado em julho de 2003. Nessa época, Cida havia iniciado também uma turnê de shows ao lado da cantora Ângela Rô Rô. O espetáculo foi inclusive filmado para televisão e estava circulando em várias unidades do Sesc de São Paulo antes de aportar no Rio de Janeiro. Na noite em que o disco ficou pronto, Cida estava com Ângela no Sesc Santo André. Minha filha ficou em São Paulo para ir mais tarde com o tio Juvenal. Quando os dois chegaram, a Júlia me deu a caixa enviada pela gravadora. Além do lançamento do novo disco, Cida Moreira não tardou em se envolver com um trabalho que funcionaria como divisor de águas tanto em sua vida profissional quanto pessoal, dada a intensidade de seu mergulho na obra de um compositor aceito por muitos como o Kurt Weill das Américas. Tom Waits, nas palavras de Cida, é antes um comentador de seu tempo, algo que, nesse sentido, diferencia-o de Brecht, ainda que esteja vinculado também à linguagem do cabaré e ao clima de maldição tão marcante na obra do dramaturgo alemão. No entanto, enquanto Brecht revela um novo momento social e político porque o mundo começava a passar, Tom Waits vive neste tempo transformado. E comenta as contradições da época por meio de sua música que funciona como uma espécie de crônica, trazendo à tona o universo dos excluídos de maneira despudorada, escancarada na sua realidade e sua beleza. Sem método de estudo ou teorias políticas como em Brecht, mas não menos mordaz na exuberância decadente que há na dor de sua poesia. Canções para Cortar os Pulsos O espetáculo Canções para Cortar os Pulsos – A Música de Tom Waits estreou em Buenos Aires no dia 23 de setembro de 2003 e a ideia de sua concepção surgiu da maneira mais inesperada possível. O Homem dos Crocodilos seria levado à Argentina e, por isso, houve na casa de Cida Moreira uma reunião com Arrigo Barnabé e o produtor Luciano Alabarse, responsável na época pelas questões relativas ao Brasil no Festival Internacional de Teatro de Buenos Aires. Durante o encontro, os três trataram da participação do espetáculo no evento e, ao fim da conversa, Cida, que recém-finalizara a gravação de Uma Canção pelo Ar, pôs para Alabarse escutar a primeira prova do disco, ainda sem nenhuma espécie de tratamento ou masterização. Nessa versão havia uma faixa que não fazia parte do álbum e que Cida gravara descompromissadamente, apenas como uma brincadeira de estúdio, após o trabalho já ter sido concluído. Era Time, de Tom Waits. Então a proposta foi imediata. Ele me disse que dentro do Festival Internacional de Teatro, em que nós faríamos a ópera, ele estava organizando também uma programação musical, com dez artistas brasileiros, chamada Noches Brasileñas, disse a cantora. Dentre todos, estavam também José Miguel Wisnik, Luiz Tatit, Ná Ozzetti. Cada um teria duas noites no Teatro Ateneu e Cida deveria, então, montar um show só de Tom Waits. Aí, meu amigo, foi cair sopa no mel, né?, brincou. Enquanto fazia a ópera de Arrigo no Rio de Janeiro e aguardava o seu disco ficar pronto, acompanhando o processo todo por e-mail, Cida começou a ensaiar o cabaré de Tom Waits com Gil Reyes. No espetáculo, participaria ainda um bandoneonista argentino, a ser definido quando os dois brasileiros já estivessem no país. Eu entrei em contato com o repertório do Waits por causa da Cida. Então comecei a ouvir os discos e tirar as músicas, confessou Reyes. A canção Time de Tom Waits, na tradução de Martim Vasques da Cunha: Os garotos da sombra quebram as leis / / E você está a oeste de East St Louis / / E o vento está fazendo discursos / / E a chuva soa como aplausos (...) / / E todos fingem ser órfãos / / E a memória deles é como um trem / / Você pode vê-la diminuir enquanto ela vai embora / / E as coisas que você não se lembra / / Contam as coisas que você não quer esquecer que / / a História põe um santo em cada sonho / / E é o Tempo, o Tempo, o Tempo / / Que você ama.74 Partiram em setembro. Em uma semana, fizeram a ópera e, na seguinte, Gil chegou ao país para a estreia de Canciones para cortarse los pulsos. O cabaré foi recebido com entusiasmo pela capital. Os ensaios encerraram-se por lá, com um músico argentino que era judeu e descendente de alemães, como lembrou a cantora. A repercussão na mídia, em cadernos de cultura como o do La Nación, foi tão boa que, em vez de duas noites, acabaram fazendo o dobro. Sobre o espetáculo, o professor José Pedro Antunes, que dispensa adjetivos, escreveu: Em Canções Para Cortar os Pulsos, Cida está de volta ao cabaré. Para acompanhá-la, os sopros e o piano do maestro Gil Reyes, que é o res­ponsável pelos arranjos e pela direção musical. (...). A trajetória do americano Tom Waits também passa pelo cinema, pelo teatro, por Brecht, pelo cabaré alemão, pelas barras mais pesadas, como Cida costumava anunciar [em Summertime] a parte do seu repertório que privilegiava canções narrativas sobre os marginalizados da sociedade 75. Como a cantora costuma dizer, cantar Tom Waits é como vagar por uma cidade oculta, por uma realidade interior capaz de formatar, a cada novo espetáculo, compreensões inéditas de nós mesmos até então. Não existe aqui, interpre­tação. Existe emoção. É como voltar para uma casa que guardamos em nós e descobrimos caótica, mas concreta, porque em Waits não há julgamento ou tomada de posição como em Brecht. Ele apenas conta casos e deixa para nós a conclusão. É um artista que não se enquadrou em nenhum movimento estético. Ele criou um grau de excelência que é só dele. E, mais uma vez, está sozinho na descoberta de questões pessoais que mal sabemos exis­tentes e que se tornam essenciais a partir do momento em que tomamos contato com a sua arte. Quiséramos nós envelhecer nossas vozes como ele faz com a dele. Thomas Alan Waits nasceu no dia 7 de setembro de 1949 em Pomona, na Califórnia e, além de compositor e cantor, é ator e instrumentista, tendo participado de filmes como O Selvagem da Motocicleta, em 1983, e O Tigre e a Neve, em 2007. É dono de um timbre inconfundível, grave e rouco, com o qual lançou, em 1973, o seu primeiro registro fonográfico, o disco Closing Time. Em outubro, já de volta ao Brasil, Cida fez um show baseado no repertório do disco novo, Uma Canção pelo Ar, no Sesc Pinheiros, e, em dezembro, seguiu para mais uma viagem. Embarcou para Portugal onde fez também com Gil Reyes, o espetáculo de encerramento de um encontro que acon­tece em Coimbra a cada dois anos, chamado Cena Lusófona. O encontro reúne artistas de todos os países do mundo que falam o português – e que não são muitos, como observou a cantora – e Cida levou o cabaré de Brecht e Weill para Coimbra e Lisboa. Outros shows aconteceram em 2003, revelando um momento mais maduro de sua carreira, caso do espetáculo pop, Afinidades Eletivas, com Arthur de Faria e seu Conjunto. O grupo de Porto Alegre esteve em São Paulo, onde montou uma apresentação mista com Cida Moreira. Foi, inclusive, num dos espetáculos futuros de Arthur, mais precisamente no do dia 18 de agosto de 2006, realizado no Auditório Ibirapuera em São Paulo, que Cida e o autor deste livro se conheceram pessoalmente. Ela participava como convidada cantando Balada do Louco e essa foi também a primeira vez que a vi em cena. Nosso segundo encontro foi no Sesc Vila Mariana, dia 15 de setembro de 2006, numa de suas apresentações do show de modinhas. Mas apesar da importância que todos os outros espetáculos tiveram para sua carreira, a estreia do cabaré de Tom Waits foi um dos grandes marcos profissionais de Cida. O ano de 2004 seria difícil, repleto de mudanças em sua vida pessoal, e a música de Tom Waits levou a cantora, como ela diz, para uma certa obscuridade necessária na época. Janeiro foi inexpressivo. Realizou apenas alguns espetáculos com José Luis Mazzioti no bar Supremo, em São Paulo. Logo no mês seguinte, no dia 22 de fevereiro, morreu Juarez, pai de Júlia e ex-marido da cantora, o que evidente­mente alterou não apenas alguns aspectos da rotina de Cida, como também sua dinâmica pessoal, que foi bastante abalada. Como Juarez morava em Blumenau, a cantora teve de se articular para cuidar das pendências pessoais deixadas por ele, mesmo não sendo mais casados desde setembro de 1989. Isso lhe obrigou a cancelar alguns dos shows que havia marcado. A morte do Juarez foi muito espantosa, muito rápida. Ele me ligou contando que estava com um câncer inoperável no fígado e morreu muito mais cedo do que a gente esperava. Um baque. Meu encontro inicial com ele foi engraçado porque nos conhecemos numa situação social e só dez anos depois voltamos a nos encontrar. Ele foi ver um show meu no Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Porto Alegre, onde ele morava, e nós começamos a conversar, nada muito específico. Depois ele disse que tinha feito uns esboços baseados em mim, porque ele desenhava e pintava muito bem, mas eu nunca cheguei a ver o trabalho. Era tudo assim, meio atrapalhado. Mas ele foi um homem brilhante, um artista. Escrevia muito bem, fazia peças de teatro, era excelente redator. Foi no Festival de Gramado em 1983, com o filme do Guilherme de Almeida Prado, A Flor do Desejo, que eu senti que alguma coisa estava acontecendo entre a gente. Fiquei muito mexida com tudo, porque eu estava saindo de um relacionamento, mas no fim acabou acontecendo e virou um grande romance. Um relacionamento muito forte, com coisas muito boas e outras muito ruins. Então até a minha reticência em falar sobre isso está ligada a esses sentimentos dúbios, entendeu? Fiquei grávida e assumi isso plenamente. Eu estava realmente muito apaixonada por ele. Mas quando a Júlia tinha dois anos, me separei dele. A morte da minha mãe no dia 4 de março de 1989 me ajudou a ganhar força para muitas coisas. E, claro, a presença da minha filha. De noite eu sentava numa poltrona no quarto, com ela deitada sobre o peito, e aquilo aos poucos foi me fortalecendo, revelou Cida. O período da morte de Juarez em 2004 coincidiu com uma crise também profissional, em iminência já há algum tempo. O encontro com a música de Tom Waits funcionou, portanto, como uma espécie de dispositivo para o processo de reflexão, autoconhecimento e revisão de elementos que pediam mudança urgente. Em março de 2004 apresentou algumas vezes o show de Uma Canção pelo Ar e, a partir do final do mês, novas turnês de Tom Waits, dessa vez pelo Sul do Brasil. Cida foi a Porto Alegre, Caxias do Sul, Florianópolis e, finalmente, retornou a São Paulo. Em maio, participou de alguns espetáculos em homenagem a Gonzaguinha, ocorridos no Sesc Pompeia. Os shows contaram com Daniel Gonzaga, filho do compositor, Rita Ribeiro e Zé Renato, além da direção de Mário Manga. Nesse momento, Cida optou por não chamar Gil Reyes. A crise entre os dois resultaria na separação artística de ambos, efetivada em meados de 2004. Mas antes disso, trabalhariam juntos ainda uma vez. Após os shows em tributo a Gonzaguinha, a cantora seguiu para Belém do Pará com ele, até que, em agosto, fariam a última apresentação de uma parceria de quase vinte anos. Eu fui para Santo Antônio da Patrulha para ser jurada de um festival de música gaúcha chamado A Moenda da Canção. Fiquei uma semana lá, fiz o show de encerramento cantando Chico Buarque e, quando acabou o espetáculo, eu sabia que aquela tinha sido a última vez em que nos falaríamos, revelou Cida. Fomos cada um para um lado e não nos vimos nunca mais, desde então. Quando voltou do festival, ela foi convidada a apresentar as modinhas, que já vinha pesquisando mais aprofundadamente, no Sesc Araraquara, abrindo a exposição de Mário de Andrade que aconteceria em setembro na cidade em que o escritor criou o clássico Macunaíma. Por que me maltratas, Lilia, Em que te ofendi, meu bem Por que me maltratas, Lilia Em que te ofendi, meu bem Si aos magoados ais que exalo Responder não te convém Dize ao menos compassiva, Em que te ofendi, meu bem (Si te Adoro, Anônimo, recolhido por Mário de Andrade, 1850) Modinhas Enfim, nasceu o espetáculo Modinhas e Canções do Brasil, cujo repertório Cida vinha pesquisando há algum tempo. Ela já havia gravado uma modinha no último disco, como se sabe, mas foi a partir do convite do Sesc que a cantora levou ao palco um show dedicado apenas ao gênero, cantando relíquias como Hei de Amar-te até Morrer (Anônima, recolhida por Mário de Andrade), Dei um Ai, Dei um Suspiro (J. M. de Souza Barros, recolhida por Mário de Andrade), Róseas Flores da Alvorada (Anônima, recolhida por Mário de Andrade) ou É a ti, Flor do Céu (Teotônio Alves Pereira e Modesto A. Ferreira). Sobre o espetáculo, José Pedro Antunes também escreveu: Há tempos Cida Moreira acalentava o sonho de um recital com o histórico legado sonoro que são as modinhas imperiais coletadas por Mário de Andrade. (...). Para que a corte de um ‘país gentil’ tivesse expressão musical própria, sem depender exclusivamente das modas e fados portugueses, Dom Pedro II, um visionário, pediu a alguns músicos da corte – a maior parte deles muito provavelmente clérigos, como se pode deduzir do teor de alguns versos – que as conce­bessem. (...). Para cantar as modinhas imperiais e as da tradição que nasce com elas, havia que fugir aos equívocos mais flagrantes em empreitadas do gênero: nem empalhá-las como um relicário do bel canto, nem fazer delas pretexto para invencionices modernosas. Havia que reencontrá-las na pureza com que foram compostas, na nascente da nossa canção popular 76. O espetáculo teve participação do violonista Camilo Carrara que Cida conheceu especialmente para a ocasião, na ausência de Gil Reyes, e que se tornaria parceria frequente em trabalhos futuros. Em quinze dias conheci o Camilo, ensaiamos o show, e estreamos no dia 4 de setembro. Na sequência, os dois apresentaram Modinhas no Teatro Municipal de São Paulo e em algumas uni­dades do Sesc no interior do Estado, por onde a exposição passava – embora esse roteiro não fosse seguido à risca. Eu já tinha visto a Cida em shows cantando Brecht, toda performática, extrover­tida, teatral. Em nosso primeiro encontro, senti total empatia por ela. Fiquei muito bem impressionado ao conhecer também o seu lado intelectual, em perceber sua seriedade e seu posicionamento crítico. Da mesma forma me chamou a atenção o seu horizonte estético, seu alto-astral e um jeito totalmente diferente de cantar esse repertório mais intimista, confessou Camilo Carrara. Sobre o espetáculo de modinhas imperiais, ele explicou ainda: Foi concebido por ela para ser uma espécie de show-concerto. É um trabalho delicado que prioriza a essência das canções e as soluções musicais tendem à simplicidade. É uma opção estética que visa à utilização de elementos mínimos e pouco rebuscamento na interpretação, nos arranjos e na instru­mentação. Muito interessante também como o show cativa o público. Data dos séculos XVIII e XIX a difusão do gênero modinha, um dos mais populares da época, ao lado do lundu e do maxixe. A modinha foi o primeiro gênero popular brasileiro a ser divulgado com sucesso fora do País, há 250 anos. [O poeta e violeiro carioca] Caldas Barbosa, para desespero dos eruditos poetas portugueses (Bocage, Nicolau, Tolentino, Filinto Elísio e outros), era uma verdadeira coqueluche nos saraus da corte, com suas modinhas e lundus. Depois dele, praticamente todos os poetas românticos do Brasil tiveram seus versos musicados. [...] Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Juca Chaves, Baden Powell e muitos outros compositores de nossos dias fizeram modinhas77. Em espetáculos futuros de Cida, a exemplo do show encomendado pelo Centro Cultural Banco do Brasil para a série Modinhas e Chorinhos, em 2008, outras canções do mesmo universo passaram a integrar o repertório da cantora como as lendárias Azulão e Modinha, de Jayme Ovalle, ambas em parceria com o poeta Manuel Bandeira. Duas décadas depois, em seguida à morte do amigo [Jayme Ovalle], Manuel Bandeira faria sua avaliação definitiva da obra musical ovalliana. Nela destacou, como ponto mais alto, Azulão, capaz de garantir a imortalidade ao compositor. Também Modinha, que, mesmo não tendo o sabor total brasileiro de Azulão, teria o mérito de transpor à música erudita o espírito da seresta carioca78. Em seu depoimento, o músico Camilo Carrara também chamou atenção para questões pertinentes à personalidade artística de Cida, como sua origi­nalidade: Não há ninguém minimamente parecido com ela e é bom dizer que uma característica como essa não nasce arbitrariamente. Ela é muito culta, muito inteligente e antenada. Tem um pensamento independente e crítico, e tudo isso somado ao seu lado teatral e irreverente. Ela no palco está sempre muito aberta e atenta para o inesperado, o que é muito valioso. É interessante o jeito como ela reage de improviso às novas situações, trocas musicais de momento, problemas técnicos, etc. Vale ressaltar também o fato de ela ser uma cantora que toca muito bem o piano. Isso acrescenta muito artisticamente, pois garante uma intuição harmônica privilegiada e lhe dá autonomia para se acompanhar. O fato de ter muita experiência como professora de canto também ajuda a entender a sua versatilidade artística e o seu horizonte estético, pois ela está sempre em contato próximo com questões técnicas e de repertório vindas de alunos de gerações distintas e gostos variados. Numa de nossas conversas para este livro, Cida Moreira lembrou-se repen­tinamente de citar uma importante viagem sua, segundo ela, mítica, feita a La Paz, capital da Bolívia, ainda em 2004, num dos intervalos de Modinhas. A cantora encerrou o Festival Internacional de Teatro da cidade (Fitaz) que acontece a cada quatro anos, com seu cabaré brechtiano Aos que Estão por Vir. A viagem aconteceu antes dos shows em tributo a Gonzaguinha e representou outro divisor de águas para sua vida. Como ela justificou, foi um momento de descoberta dos pontos que seriam cruciais para uma guinada radical. Estar naquele lugar me fez compreender o que estava acontecendo comigo naquele momento. Foi lá que eu entendi a morte do Juarez; foi lá que eu tive coragem de me separar do Gil; que eu entendi que estava refém de muitas coisas tanto pessoal, quanto profissionalmente, e foi nessa viagem que eu percebi que precisava me libertar, abrir mão de tudo o que tornava minha vida, na realidade, pouco criativa, avaliou. Quando questionada se essa cons­ciência teria sido desencadeada por algum fato específico durante a viagem, Cida respondeu que não: Foi apenas estar lá, o motivo de tudo. E a partir daí, encaminhou sua carreira de outra forma, dividindo o ano de 2005 em dois repertórios basicamente. Além das modinhas, que ela conti­nuou apresentando frequentemente, retomou as canções de Chico Buarque após ter sido convidada para conceber o show de abertura da exposição em homenagem aos 60 anos do compositor carioca, inaugurada no Sesc Pinheiros em janeiro. Isso trouxe a oportunidade de voltar ao repertório do CD, além de abrir espaço para ela interpretar algumas canções que não tinha gravado, caso de Januária. Viajou o país com os dois repertórios, tendo participado, no segundo semestre, de outro Projeto Pixinguinha. Dessa vez, com Henrique Cazes e seu quarteto, cantando Chico. O espetáculo foi apresentado em 14 capitais. O ano seguinte já se iniciou com novidades. Cida abriu 2006 com um show, no Rio de Janeiro, ao lado do pianista americano Cliff Kormann. O músico estava divulgando os espetáculos de lançamento do seu novo disco, do qual Cida participou declamando o poema Pobre Cega registrado na faixa nove, intitulada Ciranda, na qual ela diz: Pobre cega, por que chora ela assim / / tanto estes seus olhos? / / Não, meus olhos não choram... são as lágrimas que choram, com saudades dos meus olhos. O disco se chama Migrations – Cliff Korman and the Brazilian Tinge e conta também com a participação de Henrique Cazes no cavaquinho. Um destaque particular deve ser dado para a faixa quatro, Dance, em que o vigoroso arranjo de O Corta Jaca de Chiquinha Gonzaga traz uma emoção especialmente brasileira, mesmo executado por um excepcional pianista americano. Outras atividades marcaram 2006. Além das viagens que fez cantando Chico Buarque, Cida apresentou-se em São João da Boa Vista, na Semana Guiomar Novaes, participou do projeto Piano na Praça e continuou fazendo o espetáculo de modinhas pelas unidades do Sesc de São Paulo. Foi ainda convidada para dirigir um musical chamado A Era do Rádio, que estreou em Poços de Caldas, no mês de junho. No espetáculo, havia cantores eruditos ligados ao Festival de Verão de Música Erudita. Em novembro e dezembro, foi curadora do projeto O Arsênico do Teatro, fazendo, em Santo André, quatro cabarés diferentes. O primeiro, de Brecht e Weill; em seguida, Canções Malditas Brasileiras; na sequência, Tom Waits; e por fim, Canções Brejeiras de Cabaret Brasileiro. Foi no terceiro deles, o cabaré de Tom Waits, que Cida testou uma parceria com o ator e músico André Frateschi, com quem passou a dividir, pouco tempo depois, os palcos de Canções para Cortar os Pulsos, resgatando com modifi­cações o espetáculo estreado em Buenos Aires, e consagrando André como uma parceria ideal em cena. Duas cartas que Cida recebeu de um casal de jovens numa de suas temporadas de Tom Waits em Porto Alegre, ainda em 2004, eram lidas em cena pelos dois artistas na nova versão do cabaré. Sem dinheiro para entrar no teatro, o casal fez chegar às mãos da cantora um duro depoimento que não apenas rendeu aos dois, passe livre por toda a temporada, como um lugar especial no coração e na memória da artista que lamenta não tê-los mais encontrado, após uma grande busca em suas viagens ao Sul do País. Segundo ela, os textos marcaram sua vida por sintetizar elementos de compreensão do que há em sua alma. Impossível omiti-los, ainda que em trechos: Caríssima Cida, Não sei se tu sabe mas Tom Waits é meu avô!!! É sim senhorita! E você me dizer, na minha cara, como um acidente das trocas de canais, que é uma das nossas; e eu iria deixar isso derreter sem sentir teu cheiro pra saber de que bueiro você saiu??? Tua performance parecia um dos bonecos do meu quarto, fazendo molecagem-viva em plena noite de quarta-feira! Vi meu avô, um malabaris extraordinário, nos teus olhos, mas vi que os olhos eram teus... e tu estavas brilhante... miragem de... ótica... ou de quem resolveu fazer uma visita inesperada?... pois aceito. Entra. (...). (...) primeiro que adoraria ver teu espetáculo, mas estamos duros. Fudidos numa maré sem fim que vai e volta... infelizmente não estamos no topo da roda-gigante logo neste fim de semana. Mas eu espero do fundo do coração que você receba a carta. Entenda meus códigos. E perceba o quanto pulsa nossa linguagem ao som desta loucura toda. Oh, Cida, o mundo está caindo, condensado de acrílico, e você diz que acha bonito o lado mais aberrativo (nesta era glacial) do veio, é lindo! O under­ground de Tom Waits é nossa selva. (...). Eu sou uma menina diferente. Eu pinto. E giro ao mesmo tempo. Giro por estas coisas raras, as coisas lindas deste outro universo. O obscuro. Uma insana combinação orgástica de sonidos cardíacos. Loucura alimentada com loucura. Sabe: (vida de cachorro, osso duro de roer, poesia, inverno, tecido, teatro, tormentos infernais, sofrimento). Entende que os pincéis estão de molho no vazio de um copo, e nesta noite não vou poder pintar teu rosto? Minha querida, nestes céus cinzentos e nas lágrimas de amanhã, estaremos ligadas por algo mágico neste teatro todo de opressão, como uma vingança superficial. Mostrando o quanto somos palhaços, impossibilitados de compre­ender o tempo, e os formatos dos sentidos e dos sentimentos. (...). Na bagunça do Cosmos tenho 24 anos, e me arrisco a notar cada piscada da Arte. A arte que impulsiona a vida, uma vida em que o espírito humano possa vagabundear com seus tiques. Meu elemento é a alma, e isso é perigoso para quem mija de porta aberta. Cida, não permita que o branco da parede te engula. Escreve aí sua cara, e se cuida. Beijos, Kaka, março de 2004. Mais adiante, uma nova caligrafia acusa a mudança de locutor: (...) E, numa circunstância muito esquisita tu nos vem e faz mágica, nos fala mais um pouco do nosso avô e nos surpreende com uns arpejos de poesia. Infelizmente não vamos poder assistir teu concerto de beleza pois nossas barrigas estão quase que nem nossos bolsos. Mas encare este presente como um abraço e um beijo que jamais se confundirá com nada nesta vida! Nós estamos no Texas do Rio Grande do Sul e acreditamos que nosso quartinho cheio de bonecos é o único lugar que merece comportar suas inter­pretações de pulsos cortados: um dia tu vai lembrar disto e sentará ao piano para cantar Blow Wind Blow como se diante de nossos olhos apaixonados! Não sabemos se tu é daqui mesmo ou não. Onde ouvirmos falar teu nome na mesma hora que a noite nos favoreça, com certeza entraremos para ouvir tua voz... mas agora só podemos tomar um café em sua homenagem e te dizer que estamos seguindo em paralelo à paixão pela singularidade da beleza das coisas... Às vezes nós também vamos até os teclados gelados de um computador e vemos se algum cachorro perdido no mundo nos escreveu... iríamos fazer mais uma festa se tu escrevesse: – LINDOS para nosso endereço deserto no computador. Mas agora, de tão manual, suada e calorosa que é nossa saudação, te dizemos: LINDA! Nos fala como encontrar mais a tua voz e este gênio tão extinto e cheio de cirandas mágicas! (...). Só nós te merecemos! Vamos tomar mais um café para todos nós. Tim-tim! Glauber West. Angenor O ano de 2007 começou com uma turnê de Cida Moreira junto ao Quinteto Villa-Lobos, sob a direção do maestro Paulo Sérgio Santos, num projeto da Caixa Econômica Federal, com o qual rodaram Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba. Quando voltou de viagem, surgiu uma negociação com o pequeno e aconchegante Viga Espaço Cênico, teatro de São Paulo onde estrearia Tom Waits novamente, já ao lado do novo parceiro, confirmando o sucesso da união dos dois, inaugurada no cabaré do Sesc Santo André. Dia 29 de maio foi a estreia de Canção para Cortar os Pulsos, com Cida Moreira e André Frateschi, filho dos atores Denise Del Vecchio e Celso Frateschi. Sobre sua relação com a música de Tom Waits, André diz ter sentido desde cedo uma identificação bastante particular e visceral com esse universo de sarjeta. É isso que nós gostamos de cantar, eu e a Cida. E de encenar, porque somos dois personagens a serviço de uma obra e o espetáculo é, nesse sentido, muito teatral, ponderou nos bastidores de uma entrevista feita para o programa Starte, do canal a cabo Globo News, que entraria num programa dedicado a cabarés. Apresentações esporádicas de Cida Moreira aconteceram nos intervalos entre um grande projeto e outro, assim como sua participação em alguns tributos produzidos por Thiago Marques Luiz. O primeiro chamou-se Maysa – Essa Chama que não Vai Passar, e foi gravado na Biscoito Fino por um elenco que contou com Maria Bethânia, Bibi Ferreira, Alcione, Ney Matogrosso, Zélia Duncan. O segundo, Dolores – A Música de Dolores Duran, foi lançado pela Lua Music, também em 2007, e participaram Célia, Fagner, Fafá de Belém, Wanderléa, Zezé Motta. Cida gravou respectivamente a melancólica Adeus, primeira composição de Maysa, feita aos 13 anos, e Canção da Volta, de Antônio Maria e Ismael Neto. Depois vieram, sob a mesma produção, outros álbuns como a homenagem a Paulinho de Viola. Em Elas Cantam Paulinho da Viola (Lua Music, 2009), Cida interpreta sozinha Dança da Solidão e Não Quero Você Assim, relembrando nesta última, a gravação feita por ela da mesma canção, em seu disco Abolerado Blues, de 1983. Em Sinal Fechado, é com Alaíde Costa o encontro no semáforo, para o breve diálogo antes de dividir a emblemática Foi um Rio que Passou em minha Vida com Célia, Alaíde e Fabiana Cozza, intérpretes das outras faixas do disco. Nesse meio tempo ainda fiz a direção de um show do qual também participei com a Ângela Rô Rô e a Célia, no Sesc Pinheiros, além de alguns espetáculos com o Camilo Carrara pelo interior, com as modinhas, lembrou a cantora. Sobre o primeiro, o espetáculo foi dividido em três blocos. Cada cantora desfrutou de seu momento solo, embora todas tenham também cantado juntas. Terminavam as três, com Vida de Chico Buarque, em tom informal e descontraído. Um show delicado na escolha do repertório, em que a histórica Serra da Boa Esperança, certamente levou Cida de volta aos tempos da Rádio Marconi, junto a Célia, que recém­registrara a canção em seu último disco, Faço no Tempo Soar minha Sílaba (Lua Music, 2006). Um encontro marcante para as duas e com certeza para quem estava na plateia, num dos poucos dias em que o show foi apresentado. Ainda em maio, Cida participou da Virada Cultural de Ribeirão Preto. Na de São Paulo, levou Modinhas e Canções do Brasil, para o CEU da Vila Brasilândia, e Aos que Estão por Vir, ao Centro de Cultura Judaica, com grande sucesso, visto por um público seleto e atento a cada inflexão cênica; a cada olhar de sarcasmo atirado à plateia por cima dos óculos. Exatamente no período em que Cida preparava a reestreia de Tom Waits, um mês depois, no mesmo Viga Espaço Cênico, começaram, ela e Omar Campos, a pesquisar o repertório de sambas do Cartola, como contou o violonista: Tudo começou com a descoberta de uma música, A canção que Chegou, que me fez querer conhecer mais e mais a obra do Cartola, não só como compositor, mas como grande intérprete que ele era. Eu já estava sem tocar com a Cida há alguns anos, mas sempre flertando com o seu trabalho. Então um dia falei para ela: quando vamos fazer algo juntos de novo? E ela me disse: me proponha um projeto, eu propus o Angenor. O resultado, em 2008, seria o disco homônimo ao nome de batismo do sambista mangueirense, grafado com n por erro do escrivão no momento do registro. Assim, Agenor transformou-se em Angenor de Oliveira, um dos maiores artistas do nosso cancioneiro. Foi com o registro em áudio do próprio Cartola justificando com bom humor o erro da grafia de seu nome, que Cida abriu o novo show. A temporada do Tom Waits acabou no dia 10 de junho de 2007. Dia 11 eu estava no estúdio do Omar para escolher quais canções nós trabalharíamos, independentemente do que seria efetivamente gravado. Até o final de julho, ficamos ouvindo, tocando, gravando, experimentando mesmo, até come­çarmos a gravar de verdade, em agosto. Eu ouvi tudo do Cartola. Chegou uma hora que eu não aguentava mais, brincou Cida. Ela reverencia a obra do sambista, enaltecendo sua nobreza e genialidade poética e musical: Era um homem semiletrado, como podia fazer essas maravilhas? Sobre as discussões que direcionaram o processo de concepção do disco, Omar complementou: Cartola já tinha tantos intérpretes que eu e a Cida resolvemos não ouvir ninguém. Só o próprio Cartola. A criação dos arranjos foi a mais simples possível, pois eu temia que virasse Jazz, Bossa Nova ou qualquer coisa parecida. E eu não vejo a música dele dessa forma. Para mim, o resultado foi maravilhoso. A suavidade da voz e dos instrumentos. Enfim, o clima geral do trabalho é uma celebração de um dos gênios da música brasileira. Após uma nova viagem a Buenos Aires e outro Projeto Pixinguinha, permeados sempre por muito Tom Waits, Angenor ficou finalmente pronto: Meu critério de seleção de repertório é sempre muito simples. Gravo aquilo o que me agrada artisticamente, que fica melhor na minha voz. E que é pouco óbvio porque senão não tem sentido. Claro, a dúvida é sempre grande. Ouvimos tudo do Cartola, cheguei a 43 canções dele, e eu gravaria todas elas, sendo que tivemos de escolher apenas 16. Nunca vou saber se fiz a opção certa. Se teria sido melhor gravar outras 16 e não essas. A única decisão que serviu como critério na opção das músicas foi a de que o repertório seria metade composto por canções mais conhecidas do sambista, e a outra metade por pérolas menos evidentes, caso da toada Feriado na Roça. Dentre as mais conhecidas, estão O Mundo é um Moinho e Alvorada. Cida estreou o espetáculo em São Paulo no Auditório Ibirapuera, no dia 4 de julho de 2008, após a imprensa ter saudado o lançamento do álbum como um dos principais acontecimentos musicais do ano. Foram três apresentações que contaram, cada uma, com uma dupla de convidados, dentre todos, Zélia Duncan, Célia e a veterana Alaíde Costa. Sobre o disco, lançado pela Lua Music, e sobre as músicas de Cartola, o crítico Juarez Fonseca escreveu: Mesmo compostas em meio à atmosfera do samba carioca, são na maioria das vezes quase invernais em sua melan­colia. Desde os anos 1930 vêm sendo cantadas e gravadas pelos principais nomes da música brasileira, alguns dedicando a elas discos inteiros (como Ney Matogrosso, em 2002). Mas eu acho que a melhor e mais fiel intérprete e tradutora das emoções de Cartola só agora se revela: é a paulista Cida Moreira, que homenageia o centenário do fundador da Estação Primeira de Mangueira no maravilhoso disco Angenor. Faz sentido, ela é uma atriz-cantora puro-sangue; e daí me pergunto como não tinha pensado nisso antes? 79 Segundo a cantora, o disco trouxe para seu canto uma simplicidade desco­nhecida até então, pelo impacto da beleza da obra de Cartola 80, conforme confidenciou. Cida se coloca como aprendiz do sambista para recriar seu canto de maneira mais leve. Em nenhum momento, entretanto, é contra­ditória no que se refere ao seu estilo habitual, isto é, trata-se antes de uma maturação artística e de um processo que vem se depurando ao longo dos anos, do que de uma transformação repentina. Antes de as cortinas do palco do Auditório Ibirapuera abrirem-se, revelando os músicos sob a iluminação verde e rosa, ouvimos o pequeno depoimento bastante irreverente de Angenor. E a banda ataca. O acorde inicial de A Canção que Chegou, primeira faixa do disco, vibra no corpo todo e Cida canta em off, até abrirem-se os panos. Ela entra lentamente pela coxia esquerda, caminhando em direção à plateia, calma e certa de onde pisa. Saúda o público delicadamente; cumprimenta os músicos logo em seguida e, com um sorriso no rosto, continua o samba sincopado composto em parceria de Nuno Veloso com o mestre Cartola. Não demora para entrar definitivamente em si própria, alcançando toda a verdade daquele instante, que transborda sem grandes arrou­bos nem megalomanias, pelas nuances delicadas de cada melodia-poema. Após a saída do palco, que Cida dividiu com uma competente banda81, amigos e parentes reuniram-se para cumprimentá-la, eufórica, entre flores e beijos emocionados, na grande sala branca em que fomos recebidos – a mesma em que nos falamos pela primeira vez no show com Arthur de Faria. Uma carona lhe foi oferecida, ao que ela respondeu: Obrigada, vou voltar com meu irmão Juvenal. Uma noite inesquecível que, nem se supunha, encerraria este livro. E confiante despeço-me Todo feliz a cantar Agradecido ao bom Senhor Por me ajudar (A Canção que Chegou, Cartola e Nuno Veloso) Capítulo 7 – Arte por Opção e Teimosia O verdadeiro progresso não consiste no ter progredido, mas no progredir (Bertolt Brecht, 1929)82 Este livro nunca terá fim. Nem mesmo após centenas de anos, porque traça o perfil de uma artista e verdadeiros artistas não se concluem. Se em Angenor, Cida diz ter reaprendido a cantar trazendo da obra de Cartola a nova possi­bilidade de se recriar, gravando, sobretudo, aquilo o que lhe toca, o mesmo fez com Brecht, Weill, Joplin, Porter, Buarque, Borges, Waits e todos aqueles que reforçam em sua alma, características já nela enraizadas de alguma outra maneira, dando-lhe sempre a liberdade de experimentar. Cida é a voz do mundo marginal que nasce nos porões, na maravilha das sombras, que sempre estão por revelar algo novo. Ela própria vem de suas trevas e se encontra em cena, na luz de um canhão que elucida o por quê de serem chamadas malditas suas sessões underground. É que encontrar a si mesmo não constitui tarefa fácil. Requer coragem, o que ela tem de sobra. E nisso não há glamour. Daí seu habitat ser denso, trágico, sombrio e avesso a todo o aparato criado para transformar a arte em show-business. A proposta dessa paulistana, criada em Paraguaçu, Londrina, Assis e, por fim, de volta a sua terra natal, é séria demais, o que não deve ser confundido com sisudez. E vem de uma busca consciente e responsável. Na definição do crítico teatral Sábato Magaldi para este perfil, Cida é uma artista múltipla, com raras qualidades como atriz, cantora e pesquisadora. Um nome singular na música e no teatro brasileiros. Não se trata de uma cantora das massas. Muito menos de uma unanimidade. Cida é apenas esta artista brasileira que canta para cada uma das pessoas dispostas a ouvi-la. Uma mulher simples, que generosamente me recebeu em sua casa para relembrar momentos, contar histórias, dar risadas e abrir um recheado arquivo de fotografias com o qual quase revivi um tempo que não foi meu. Como ela mesma explicou: Estou depurando minha personalidade, cada vez mais. Sou hoje Maria Campiolo, sim, que se complementa com uma tal Cida Moreira que inventei um dia. Quem será, então, essa mulher? Essa é a pergunta de hoje. Esse é o questionamento que realmente me representa. Experimentei um pouquinho de toda essa liberdade ao entrar em contato com o seu cotidiano; ao mergulhar em sua carreira, pretendendo um livro, antes bem pesquisado nas questões propostas, que panorâmico ao contemplar, sem faltas, todos os momentos vividos por ela. Muito ainda será feito para ser contado. Por isso fica aqui, apenas uma amostra do que grandes artistas são capazes. E a esperança de ter atingido este objetivo – homenagear e docu­mentar uma história como a de Cida Moreira: As coisas não estão resolvidas, mas pelo menos apaziguadas. Estou tentando me tornar o que eu sou. Quero descobrir o que é isso para ver se envelheço direitinho. Ir deixando a pele em cada palco E não olhar pra trás E nem jamais, jamais dizer Adeus! (Na Carreira, Chico Buarque e Edu Lobo) Cida Crônica-depoimento por Eduardo Dussek Quando comecei a frequentar São Paulo no final dos anos 1970, havia uns saraus regados a vinho tinto, incensos e outras fumaças, que eram a cara da época. Na casa de meu amigo Caio, na Rua Dona Veridiana, aos sons do seu velho piano Pleyel misturavam-se os gritos que vinham dos presos políticos, sendo torturados na delegacia próxima à Consolação. Nós éramos pré­adolescentes tão malucos que aqueles sons pareciam fazer parte da natureza violenta que se respirava nos anos de chumbo, a qual nós futilmente estávamos aprendendo a conhecer e a tentar solucionar, sem conseguir. Numa tarde fria entrou uma ventania de cabelo vermelho (acho que era vermelho, ou então, pelo menos, tinha uma aura vermelha) e sentou-se ao piano para cantar canções de cabaré, com um piano violentamente batucado (no bom sentido) e uma voz possante, operística e teatral demais. Soube tratar-se de Cida, uma das várias pequenas celebridades que surgiam do nada, como eu surgira, na casa de Caio. Só me lembro desses sons misturados: a voz desatinada de Cida, o Pleyel desafinado e os gritos da ditadura. Hoje, a Cida daquela época se parece com uma guerreira libertária que invadira nossa sala, cantando Kurt Weill / Brecht para libertar o Brasil. Corta para os anos 1980, Cida Moreira, já estrelíssima e cult, uma musa paulistana, pedindo pra gravar minhas músicas. Evidente que ela fez isso com muita propriedade, e a violência dos anos de chumbo havia dado lugar a uma musa de voz rascante e deliciosa. Singapura, Uma Cerbeja por Favor, esta última em parceria com Luis Carlos Góes. La Moreira abolerara-se, deliciosamente. Tudo era mais sensual, e os antigos olhos de fera, com contornos assombreados de negro, haviam dado lugar a um sensual olhar de muchacha teatral e sapeca. Cida estava apurada, com a voz melhor do que nunca, e deliciosamente engraçada. Ao piano, 1982 O Brasil voltava a respirar em liberdade e nós trabalhamos juntos em projetos em duo, aqueles alternativos, que de tão alternativos ficam apenas registrados em nossa memória emocional, quando nos encontrávamos no Spazio Pirandello, ponto nevrálgico de Sampa, no inicio dos 1980. Mas há, na internet, um delicioso duo, no programa do César Camargo Mariano, no final desses loucos anos, onde cantamos juntos Singapura, com Cida debruçada com seu colo caliente sobre o piano de cauda e eu batucando o bolero como se estivesse a bordo de um bongô atômico Acho que Cida junta tudo isso: a guerreira e a rumbeira, a libertária e a cantora de cabaré, a operística e a debochada. Tudo numa mulher só: absolutamente adorável. 1977 – A Farsa da Noiva Bombardeada Texto: Alcides Nogueira Direção: Marcio Aurelio Elenco: Alcides Nogueira, Miguel Magno, Cida Moreira, Marcelo Almada, etc. 1977 – Tide Moreyra e sua Banda de Najas Texto: Alcides Nogueira Direção: Marcio Aurelio Elenco: Alcides Nogueira, Miguel Magno, Cida Moreira, João Carlos Couto, Claudia Alencar, Flávio Fonseca, Celuta Machado, Maria Lucia Pereira, etc. 1977 – Canção da Inadequação do Esforço Humano Colagem de personagens brechtianas Direção: Marcio Aurelio Elenco: Maria Lucia Pereira e Cida Moreira (participação especial ao piano) 1977 – Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill Musical concebido coletivamente em torno de canções da dupla de compo­sitores alemães Direção: Cacá Rosset Elenco: Cacá Rosset, Luiz Roberto Galízia, Maria Alice Vergueiro e Cida Moreira. 1978 – O Elefantinho Texto: Bertolt Brecht Direção: Cacá Rosset Elenco: Alain Fresnot, Flávio Fonseca, Alcides Nogueira, Cacá Rosset, Cida Moreira, etc. 1978/1979 – Ópera do Malandro Texto: Chico Buarque de Hollanda Direção: Luís Antônio Martinez Corrêa Elenco: Elba Ramalho, Marieta Severo, Ary Fontoura, Emiliano Queiroz, Claudia Jimenez, Cida Moreira, Otávio Augusto, etc. 1978/1979 – Os Saltimbancos Texto: Sérgio Bardotti e Luís Enríquez Bacalov Música: Chico Buarque Direção: Antônio Pedro Elenco: Antônio Pedro, Cida Moreira, etc. 1978/1979 – Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill - Temporada Carioca Musical concebido coletivamente em torno de canções da dupla de compo­sitores alemães Direção: Cacá Rosset Elenco: Cacá Rosset, Luís Antônio Martinez Corrêa, Maria Alice Vergueiro, Elba Ramalho e Cida Moreira. 1980 – Às Margens Plácidas Texto: Ana Luiza Fonseca, Tacus e Flávio de Souza Direção: José Possi Neto Direção musical: Cida Moreira Elenco: Mira Haar, Flávio de Souza, Ângela Grassi, Cida Moreira, Marcos Botassi, etc. 1979/1981 – Summertime – um Show para Inglês Ver Concepção: José Possi Neto e Cida Moreira Direção: José Possi Neto Elenco: Cida Moreira (ao piano) 1981 – Serpente Rara Direção: José Possi Neto Elenco: Cida Moreira (ao piano) Músicos: Luís Lopes (piano acústico, elétrico e arranjos); Franklin Paolillo (bateria); e Zé Português (baixo) 1982/1983 – Mahagonny Songspiel Texto: Bertolt Brecht Direção Cacá Rosset Direção musical e preparação vocal: Cida Moreira Elenco: Cida Moreira (ao piano), Denise Del Vecchio, Dunga, Luiz Roberto Galízia, etc. 1984/1985 – Arte Direção musical: Cida Moreira Roteiro: Cida Moreira e Miguel Paiva Elenco: Cida Moreira (ao piano) 1985 – São Paulo, Brasil (Alemanha) Direção: Peter Hahn Elenco: Cida Moreira (ao piano) e Arrigo Barnabé 1985 – Projeto Pixinguinha Elenco: Wagner Tiso e Cida Moreira 1986/1987 – Shows de lançamento do Disco Vermelho de 1986 Elenco: Cida Moreira 1988/1989 – Bilbao Cabaré Direção: José Possi Neto Elenco: Cida Moreira (ao piano) e Vera Buono Músicos: Gil Reyes e Sérgio Chica 1990 – Porter a Porter Roteiro: Miguel Paiva Direção: Sérgio Mamberti Elenco: Cida Moreira e Caio Silveira Músicos: Pete Wooley (contrabaixo); Philip Gold (piano); e Celso Del Nery (guitarra e direção musical). 1990/1995 – Porgy and Bess Elenco: Cida Moreira e Claudio Botelho Músicos: Lincoln Antônio (piano); Fernando Machado (bateria); Guy Sasso (contrabaixo acústico); e Gil Reyes (piano e clarinete) 1993/1995 – Cida canta Chico Buarque Elenco: Cida Moreira Músico: Gil Reyes 1995 – Elogio Texto: Criação coletiva Direção: Denise Stoklos Elenco: Denise Stoklos, Fábio Namatame e Cida Moreira (ao piano) 1996 – Na Trilha do Cinema Elenco: Cida Moreira Músicos: Gil Reyes e Omar Campos 1998 – Turnê Brecht Direção: Antônio Abujamra Elenco: Cida Moreira e outros 1998 – Aos que Estão por Vir – um Concerto Cabaré Direção e roteiro: Cida Moreira Elenco: Cida Moreira (ao piano) 2000 – A Voz da Mãe Elenco: Grupo Caixa de Imagens (Mônica Simões e Carlos Gaúcho) e Cida Moreira 2000 – Ópera do Fim do Mundo (versão brasileira de O grande macabro, de Gyorgi Legeti) Direção: Solange Farkas Elenco: Cida Moreira, Grupo Uakti, etc. 2000 – Trem das Onze Texto: Clóvis Torres Direção: Cida Moreira Elenco: Grupo Teatral Unicamp 2001/2002 – A Canção Brasileira Roteiro: Cida Moreira e Gil Reyes Elenco: Cida Moreira (ao piano) Músico: Gil Reyes 2001/2003 – O Homem dos Crocodilos – um Caso Clínico em dois atos Argumento: Arrigo Barnabé e Alberto Muñoz Libreto: Alberto Muñoz Música: Arrigo Barnabé Elenco: Cida Moreira, Arrigo Barnabé, Tiago Pinheiro, Celine Imbert, Sandro Cristopher, etc. 2003/2004 – Canciones para Cortarse los Pulsos Roteiro: Cida Moreira Elenco: Cida Moreira (ao piano), Gil Reyes, etc. 2004 – Shows de lançamento do disco Uma Canção pelo Ar, de 2004 Elenco: Cida Moreira 2004/2006 – Modinhas e Canções do Brasil Pesquisas e roteiro: Cida Moreira Elenco: Cida Moreira e Gil Reyes 2006 – Série de shows para o projeto O arsênico do teatro Roteiro e Elenco: Cida Moreira (ao piano) Espetáculos: Brecht e Weill / Canções malditas brasileiras / Canções brejeiras de cabaret brasileiro / Tom Waits (Participação de André Frateschi) 2007 – Canções para Cortar os Pulsos – a música de Tom Waits Roteiro e elenco: Cida Moreira (piano e acordeom) e André Frateschi (violão e gaita) 2008 – Angenor Roteiro: Cida Moreira e Omar Campos Elenco: Cida Moreira Músicos: Omar Campos (violões, viola e baixo-elétrico); Camilo Carrara (violão e cavaquinho); Adriano Busko (percussão), Hanilton Messias (piano e flauta), Tiago Sormani (sax e clarinete) e Eric Budney (contrabaixo). Discos 1981 – Summertime (Áudio Patrulha/Lira Paulistana) – LP (Ao vivo) 01. Summertime (G. Gershwin e D. Heyward) 02. Stardust (M. Parisch e H. Carmichael) 03. All of Me (S. Simons e G. Marke) 04. Dream a Little Dream of Me (G. Kahan, W. Schwant e F. André) 05. California Dreamin’ (J&M Philips) 06. She’s Leaving Home (McCartney e Lennon) 07. Gota de Sangue (Ângela RoRo) 08. Geni e o Zepelin (Chico Buarque) 09. Good Morning Heartache (D. Fischer, E. Drake e J. Higginbothan) 10. My Man (C. Pollock) 11. Vapor Barato (Jards Macalé e Waly Salomão) 12. Mercedez Benz (M. McCheire e J. Joplin) 13. Kozmic Blues (J. Joplin) 14. Summertime (G. Gershwin e D. Heyward) 1983 – Abolerado Blues (Lira Paulistana/Continental) – LP 01. Surabaya Johnny (Silvia Vergueiro, B. Brecht e K. Weill) 02. Deixe-me Rapaz (Renato Teixeira) 03. Traçado (Tico Terpins e Zé Rodrix) 04. Arranha-céu (Orestes Barbosa) 05. Singapura (Eduardo Dusek), vinheta 06. Singapura (Eduardo Dusek) 07. Turma do Bilhar (Miguel Paixa e Zé Rodrix) 08. Não me Pergunte a Hora (Ney Lisboa e Augusto Licks) 09. O Amor (Maiakowski, Ney Santos e Caetano Veloso) 10. Não Quero Você Assim (Paulinho da Viola) 1986 – Cida Moreyra (Continental) – LP 01. O Mandarim (Jussi Campelo) 02. Vocalise (Arrigo Barnabé) 03. Mais que a Lei da Gravidade (Capinan e Paulinho da Viola) 04. De Presente (Altay Veloso) 05. Meu Primeiro Amor [Lejania] (José Fortuna, Paulo Júnior e H. Gemenez) 06. Balada do Louco (Arnaldo Baptista e Rita Lee) 07. Una Cerbeja por Favor (Luiz Carlos Goes e Eduardo Dussek) 08. Maças de Vitrine (Cláudio Rabello e Dalto) 09. Como Diria Satie (Zé Miguel Wisnik) 10. Furação [Hurricane] (B.Dylan e J. Levy) 11. Clara Crocodilo (Mário Lúcio Côrtes e Arrigo Barnabé) 12. Nu com a Minha Música (Caetano Veloso) 13. Surabaya Johnny (Silvia Vergueiro, B. Brecht e K. Weill) 1988 – Cida Moreyra Interpreta Brecht (Continental) – LP 01. Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 02. Alabama-song (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 03. Jenny dos Piratas ou Sonhos de uma Camareira (Die Seeräuber – Jenny) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia) 04. Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 05. Balada do Soldado Morto (Legende vom toten soldaten) – (Bertolt Brecht e Kurt Schwaen, versão de Cacá Rosset) 06. Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 07. Canção do Vendedor de Vinho (Das lied Von branntweinhändler) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset) 08. Surabaya Johnny (Das lied vom Surabaya – Johnny) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Duda Neves e Silvia Vergueiro) 09.Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 10.Benares Song (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 11.Havana-lied (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset) 12.Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 13.Canção de Salomão (Salomo song) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia) 14.Bilbao Song (Das lied von Bilbao song) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset) 15.Balada dos Piratas (Ballade Von den seeräubern) – (Bertolt Brecht e Kurt Schwaen, versão de Juarez Porto) 16.Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 17.Em um Berço tão Dourado (Bertolt Brecht e Kurt Weill, versão de Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia) 18.Moritat (Die moritat Von Mackie Messer) – (Bertolt Brecht e Kurt Weill) 1993 – Cida Moreyra Canta Chico Buarque (Kuarup) – CD 01. Morte e Vida Severina – abertura (Chico Buarque), 1965 02. Todo o Sentimento (Cristóvão Bastos e Chico Buarque), 1987 03. Choro Bandido (Edu Lobo e Chico Buarque), 1985 04. O Malandro (Kurt Weill e Bertolt Brecht, versão livre de Chico Buarque), 1977/78 05. Estação Derradeira (Chico Buarque), 1987 06. Angélica (Miltinho e Chico Buarque), 1977 07. Beatriz (Edu Lobo e Chico Buarque), 1982 08. Geni e o Zepelim (Chico Buarque), 1977/78 09. Soneto (Chico Buarque), 1972 10. Suburbano Coração (Chico Buarque), 1984 11. Mar e Lua (Chico Buarque), 1980 12. Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra), 1972/73 13. Morro Dois Irmãos (Chico Buarque), 1989 14. A Voz do Dono e o Dono da Voz (Chico Buarque), 1981 15. Valsa Brasileira (Edu Lobo e Chico Buarque), 1987 16. Bom Tempo (Chico Buarque), 1968 17. Gota d´Água (Chico Buarque), 1975 18. Palavra de Mulher (Chico Buarque), 1985 19. Valsinha (Vinicius de Moraes e Chico Buarque), 1970 1997 – Na Trilha do Cinema (Kuarup) – CD 01. Pra Ver o Sol Nascer (Gilberto Gil) 02. Vocalise (Arrigo Barnabé) 03. Perseguição (Gláuber Rocha e Sergio Ricardo) 04. Minha Desventura (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes) 05. Noites do Sertão (Milton Nascimento e Tavinho Moura) 06. A Felicidade (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) 07. O Ébrio (Vicente Celestino) 08. Você já Foi à Bahia? (Dorival Caymmi) 09. Mulher Rendeira (Folclore) 10. Dolores Sierra (Jorge de Castro e Wilson Batista) 11. Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) 12. A Terceira Margem do Rio (Caetano Veloso e Milton Nascimento) 13. Azulão (Jayme Ovalle e Manuel Bandeira) 14. À Flor da Pele (Chico Buarque) 15. A Volta do Malandro (Chico Buarque) 16. Bye, bye, Brasil (Chico Buarque e Roberto Menescal) 2004 – Uma Canção pelo Ar (Kuarup) – CD 01. Se Todos Fossem Iguais a Você (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) 02. Quem É (Custódio Mesquita e Joraci Camargo), com Vander Lee 03. Pedacinhos do Céu (Waldir Azevedo) 04. Si te Adoro (Modinha imperial, autor anônimo) 05. Tarzan, o Filho do Alfaiate (Noel Rosa e Vadico) 06. Casinha Pequenina (Modinha, autor desconhecido) 07. Canção de Amor (Villa-Lobos e Dora Vasconcelos) 08. Lampião de Gás (Zica Bergami) 09. Leilão (Hekel Tavares e Joraci Camargo) 10. Prova de Carinho (Adoniran Barbosa e Hervê Cordovil) 11. Chuá, Chuá (Pedro Sá Pereira e Ary Pavão) 12. Estrada do Sertão (João Pernambuco e Hermínio Bello de Carvalho) 13. Tempo e Artista (Chico Buarque) 2008 – Angenor (Lua Music) – CD 01. A Canção que Chegou (Cartola e Nuno Veloso) 02. Alvorada (Cartola, Hermínio Bello de Carvalho e Carlos Cachaça) 03. Cordas de Aço (Cartola) 04. Evite meu Amor (Cartola) 05. Acontece (Cartola) 06. Feriado na Roça (Cartola) 07. Nós Dois (Cartola) 08. Sala de Recepção (Cartola) 09. O Mundo é um Moinho (Cartola) 10. Sim (Cartola e Oswaldo Martins) 11. Autonomia (Cartola) 12. Fim de Estrada (Cartola) 13. Peito Vazio (Cartola e Elton Medeiros) 14. Senões (Cartola e Nuno Veloso) 15. O Silêncio do Cipreste (Cartola e Carlos Cachaça) 16. O inverno do meu Tempo (Cartola e Roberto Nascimento) 2011 – A Dama Indigna (Joia Moderna) – CD 01. Hotel das Estrelas (Vinheta) (Jards Macalé e Duda) / Palavras (Gonzaguinha) 02. Soul Love (David Bowie) 03. Maior que o Meu Amor (Renato Barros) 04. Mãe (Caetano Veloso) 05. Uma Canção Desnaturada (Chico Buarque) 06. The Man I Love (Ira Gershwin e George Gershwin) 07. Sou Assim (Toquinho e Gianfrancesco Guarnieri) 08. Youkali – Tango (Roger Fernay e Kurt Weill) 09. O Ciúme (Caetano Veloso) 10. Summertime (vinheta) (Du Bose Heyward e George Gershwin) 11. Back To Black (Amy Winehouse) 12. Lost In The Stars (vinheta) (Mawwell Anderson e Kurt Weill) versão: Antônio Carlos Brunet) Participações 1984 – Joelho de Porco (Audio Patrulha) – LP Várias faixas 1985 -Fernando Pessoa – Mensagem (Gradiente/Estúdio Eldorado) – LP (vários) Faixa 11 – Dona Philippa de Lencastre (Fernando Pessoa e André Luiz Oliveira) 1993 – Gereba Convida (RGE) – CD Faixa 11 – Valsa Derradeira (Gereba e Capinan) 1996 – Carlos Careqa: os Homens são Todos Iguais (Velas) – CD Faixa 05 – A Última Quimera de Sebastião Antônio Pereira (Carlos Careqa, Eduardo Brant e Beto Trindade) 1998 – Terra Brasil: Mestiço (CPC/UMES) – CD Faixa 07 – Venta sem Parar (Zeli/letra: Sergio Gomes) 1999 -Songbook Chico Buarque, Volume 8 (Lumiar) – CD (vários) Faixa 13 – Rosa dos Ventos (Chico Buarque) 2001/2002 – Beto Collaço: Senha – CD Faixa 14 – Dama da Transformação (Beto Collaço) 2004 -Migrations: Cliff Korman and The Brazilian Tinge (Planet Arts) – CD Faixa 09 – Ciranda (Pobre cega) 2004 – Arthur de Faria e seu Conjunto – Música pra Bater Pezinho (Yb Music) – CD Faixa 04 – Breve Oração de Virada de Ano (Arthur de Faria, sobre poema de Daniel Galera) 2004 – Fernando Pessoa – Mensagem 2 – CD e DVD (vários) Faixa 03 – Ocidente (Fernando Pessoa e André Luiz Oliveira) 2007 – Maysa: essa Chama que não vai Passar (Biscoito Fino) – CD (vários) Faixa 13 – Adeus (Maysa) 2007 – Dolores: a Música de Dolores Duran (Lua Music) – CD (vários) Faixa 14 – Canção da Volta (Antônio Maria e Ismael Neto) 2008 – George Gershwin (Letra & Música) – CD Faixa 03 – Summertime (Gershwin e Heyward) 2008 – Cartola – 100 anos: o Autor e seus Intérpretes (Sony/BMG) – CD CD 1 – Faixa 08 – A Canção que Chegou (Cartola e Nuno Veloso) 2008 – Paul McCartney (Letra & Música) – CD Faixa 04 – She´s Leaving Home (John Lennon e Paul McCartney) 2008 – Renato Russo: Trovador Solitário (Discobertas) – CD Faixa 11 – Summertime (Gershwin e Heyward) 2008 – Vestido de Gloria: Glorinha Velloso e José Simonian (Independente) – CD Faixa 05 – Com ou sem Você (Glorinha Velloso e José Simonian) 2009 -Elas Cantam Paulinho da Viola (Lua Music) – CD (vários) Faixa 09 – Dança da Solidão (Paulinho da Viola) Faixa 10 – Não Quero você Assim (Paulinho da Viola) Faixa 11 – Sinal Fechado (Paulinho da Viola), Com Alaíde Costa Faixa 15 – Foi um Rio que Passou em Minha Vida (Paulinho da Viola), Com Fabiana Cozza, Célia, Milena e Alaíde Costa 2010 – Markinhos Moura – Meias Partes (Lua Music) – CD Faixa 07 – Me Acalmo Danando (Ângela Rô Rô) 2010 – Uma Noite Para Maysa – Ao Vivo (Lua Music) – CD (vários) Faixa – Chão de Estrelas (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa) 2010 – Mrs. Lennon (Discobertas) – CD (vários) Faixa – Mrs. Lennon s/d – Nei Lisboa – Eu Visito Estrelas (Independente) – CD Faixa 17 – Abolerado Blues II (Nei Lisboa) s/d – Ney Mesquita – Canções de Dorival e Dori Caymmi (Tele Toque) – CD Faixa 07 – De Onde Vens (Dori Caymmi e Nelson Motta) s/d – Arte em Movimento: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Discograf Gravações) – CD (vários) Faixa 10 – Manter a Esperança (Ademar Bogo) s/d – Cantorias e Cantadores (Kuarup) – CD (coletânea de Renato Teixeira, Xangai, Eugênio Leandro e Cida Moreira) Faixa 01 – Noites do Sertão (Milton Nascimento e Tavinho Moura) Faixa 05 – Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) Faixa 08 – Mulher Rendeira (Tradicional) Faixa 13 – Perseguição (Sérgio Ricardo e Glauber Rocha) Filmes 1979 – Asa Branca – Um Sonho Brasileiro (longa-metragem) Direção: Djalma Limongi Batista Elenco: Edson Celulari, Rita Cadillac, Walmor Chagas, Gianfrancesco Guarnieri, Mira Haar, Eva Wilma, Garrincha, Grande Otelo, Cida Moreira (participação apenas com a voz), etc. 1980 – Certas Palavras com Chico Buarque (documentário) Direção: Maurício Berú Elenco: Maria Bethânia, Vinícius de Moraes, Marieta Severo, Caetano Veloso, Cida Moreira, Chico Buarque, etc. 1981 – O Olho Mágico do Amor (longa-metragem) Direção: José Antônio Garcia e Ícaro Martins Elenco: Carla Camurati, Tânia Alves, Arrigo Barnabé, Ênio Gonçalves, Luiz Roberto Galízia, Jorge Mautner, Sérgio Mamberti, Cida Moreira (Prêmio APCA de melhor atriz), etc. 1982 – Ao Sul do meu Corpo (longa-metragem) Direção: Paulo César Saraceni Elenco: Nuno Leal Maia, Othon Bastos, Cida Moreira (participação), etc. 1983 – Onda Nova (longa-metragem) Direção: José Antônio Garcia e Ícaro Martins Elenco: Tânia Alves, Regina Casé, Caetano Velos, Osmar Santos, Vera Zimmermann, Carla Camurati, Cida Moreira, etc. 1983 – A Flor do Desejo (longa-metragem) Direção: Guilherme de Almeida Prado Elenco: Imara Reis (Prêmio de melhor atriz no Festival da Caxambu de 1984), Cida Moreira (Troféu Candango de melhor atriz coadjuvante no 17º Festival de Brasília) 1984 – Estrela Nua (longa-metragem) Direção: José Antônio Garcia e Ícaro Martins Elenco: Arrigo Barnabé, Carla Camurati, Cida Moreira (Prêmio APCA de melhor atriz), etc. 1998 – O Tronco (longa-metragem) Direção: João Batista de Andrade Elenco: Antônio Fagundes, Letícia Sabatella, Rolando Boldrin, Chico Dias, Cida Moreira, etc. 2000 – O Bule (média-metragem) Direção: José Antônio Garcia Elenco: Vera Zimmermann, Cida Moreira, etc. 2002 – Eclipse Solar (longa-metragem) Direção: Herbert Brodl Elenco: Betty Gofman, Matheus Nachtergaele, Paulo Vespúcio, Cida Moreira, etc. 2003 – Vila Belmiro (longa-metragem) Direção: Gilson Santos Elenco: Bete Mendes, Cida Moreira, etc. Agradecimentos Meus sinceros agradecimentos àqueles que, direta ou indiretamente, fizeram este livro comigo. Pelo incentivo de sempre e por existirem apenas, obrigado Giselle Sogayar Bechara e Jaime Jorge Bechara. A vocês devo tudo o que diga respeito à minha felicidade e existência. Obrigado também a toda a minha família indiscriminadamente; Agradeço e reverencio Maria Cecília Garcia, pelo empenho em sua cuidadosa e envolvida orientação desde o início, por sua sensibilidade e inteligência indispensáveis para a realização deste livro; aos professores Ângela Schaun e Wagner Madeira, cujas palavras foram eternas sementes na busca da renovação e do aprimo­ramento; à Sami Bussab por acreditar no autor deste livro. Pelo privilégio de sua indispensável ajuda; à Berenice Abramo cujos respeito e amizade me engrandecem; à Laís Cerullo e Selma Brisolla, pelo carinho responsável que tanto me comoveu na concepção gráfica da versão acadêmica desse trabalho; ao escritor e jornalista Humberto Werneck, pelas agradáveis conversas e por suas sugestões preciosas; à atriz e escritora Tuna Dwek, meu amor pelo apoio de sempre; aos amigos Daniela Rigotto Carneiro, Gabriel Cunha Fabbri e Roberta Fiusa Magnelli, presentes em todos os bons e maus momentos da vida; à Vera Lúcia Casare que conviveu de perto com a paixão depositada em cada linha deste livro; à Karise Bacca, amiga e moradora da pequena Paraguaçu; à Rádio Marconi e à Prefeitura Municipal de Paraguaçu Paulista; ao maestro Julio Medaglia pela saborosa e enriquecedora conversa em sua casa; ao professor Osório Lemaire de Morais (in memoriam), tão solícito em nosso telefonema; a Juvenal Augusto e Paulo Sérgio Campiolo, irmãos de Cida; ao diretor Sérgio Nunes Farias (in memoriam), cujo breve contato ficará para sempre na memória; aos professores Arnaldo Contier e José Pedro Antunes, por toda atenção e disponibilidade de suas lembranças; ao filósofo e querido primo Oswaldo Giacoia Junior, por sua sempre atenciosa colabo­ração; ao diretor Marcio Aurelio pela longa e esclarecedora entrevista em seu apartamento; ao dramaturgo Alcides Nogueira, sempre tão gentil em suas palavras; ao artista gráfico Victor Nosek; ao ator João Carlos Couto, o Janjão; a Emiliano Queiroz, por sua inexplicável capacidade de dar amor, um agra­decimento impossível de ser escrito; ao diretor José Possi Neto, pela conversa e pela confiança em emprestar seu material fotográfico; à cantora Elba Ramalho; ao compositor Chico Buarque de Hollanda, pela gentileza de seu depoimento; ao músico e amigo Tato Fischer; à atriz e diretora Denise Del Vecchio, responsável por me apresentar indiretamente à Cida, pelas belas imagens cedidas e pelo prazer do nosso encontro inesperado; ao cineasta Guilherme de Almeida Prado que, pacientemente, projetou em seu escri­tório o filme A Flor do Desejo, após um descontraído bate-papo; à atriz e diretora Imara Reis, pela beleza de uma amizade sem barreiras; ao cantor e compositor Eduardo Dussek por sua bela crônica; à atriz e diretora Denise Stoklos; ao maestro Gil Reyes; ao compositor Arrigo Barnabé; à cantora Zélia Duncan; à Júlia Campiolo Porto, filha de Cida, por sua amizade e seu respeito; aos músicos Omar Campos e Camilo Carrara, pela precisão de suas palavras; ao cineasta João Batista de Andrade; ao ator Antônio Carlos Brunet, o querido Dunga; ao crítico teatral Sábato Magaldi, por sua prontidão em escrever linhas tão afetuosas; ao crítico e musicólogo Zuza Homem de Mello, outro agradecimento especial; e, finalmente, à Maria Aparecida Guimarães Campiolo, por todo o ensinamento, por sua amizade, confiança, e pela liberdade que me concedeu. Pela generosidade com que Cida Moreira abriu as portas de sua casa, de seus arquivos, de sua vida. Um obrigado grande como sua poderosa voz! Thiago Referências bibliográficas ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB: a história de nossa música popular de sua origem até hoje. 3. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. BECHARA, Thiago Sogayar. Imara Reis: van filosofia. 1. ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010. BORGES, Jorge Luis. Elogio da Sombra. Trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques. 2. ed. São Paulo: Globo, 2001. BRECHT, Bertolt. Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. Trad. Luis Antônio Martinez Corrêa e Wolfgang Bader. In: ________. Teatro Completo. Vol. 3. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. _____________. Histórias do sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2006. ______________. O Filhote de Elefante. Trad. Fernando Peixoto. In: _______. Teatro Completo. Vol. 2. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______________. Poemas: 1913-1956. Trad. 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JORNAIS E REVISTAS CONSuLTADOS: ABC Domingo de Porto Alegre Ele&Ela Jornal do Brasil Jornal da Tarde Folha de S.Paulo Folha da Tarde O Estado de S.Paulo O Globo Revista Isto É Tribuna Impressa de Araraquara Última Hora Zero Hora ENTREVISTADOS: Alcides Nogueira Antônio Carlos Brunet Arnaldo Contier Arrigo Barnabé Camilo Carrara Chico Buarque de Hollanda Cida Moreira Denise Del Vecchio Denise Stoklos Eduardo Dussek Elba Ramalho Emiliano Queiroz Gil Reyes Guilherme de Almeida Prado Imara Reis João Batista de Andrade João Carlos Couto José Pedro Antunes José Possi Neto Júlia Campiolo Porto Julio Medaglia Juvenal Augusto Campiolo Marcio Aurelio Omar Campos Osório Lemaire de Morais Sábato Magaldi Sérgio Nunes Farias Tato Fischer Victor Nosek Zélia Duncan Zuza Homem de Mello Notas 1 ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, p. 218. 2 Idem, p. 164. 3 NETO, Lira. Maysa - só numa Multidão de Amores, p. 135. 4 Após o Golpe Militar de 1964, a Rádio Marconi sofreu com a censura e teve programas proibidos, além de radialistas presos, considerados subversivos. Na segunda metade dos anos 1960, por problemas elétricos, a emissora sofreu ainda um grave incêndio presenciado por inúmeros moradores da cidade, dentre eles, o professor Osório Lemaire de Morais, que foi gerente da rádio entre 1969 e 1990, e, com 91 anos, poucos meses antes de falecer, relembrou alguns detalhes do acidente, em entrevista para este livro: Nós apagávamos as chamas da rua, porque a cidade não tinha bombeiro naquela época. Só sobrou o transmissor que ficava longe. Perdeu-se praticamente tudo. A rádio seria transferida para Piraju, quando teve o que restou de seu acervo comprado pelo empreendedor Dr. Mitsuo Marubayashi, que começou a transmitir a programação debaixo da torre. Depois de uns meses, ele montou um estúdio muito bom e até hoje o mantém atuante, completou o professor Osório. 5 ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, p. 80. 6 Cida não chegou a gravar o samba-canção de Lamartine Babo que teve registros como a versão instrumental de César Camargo Mariano e Wagner Tiso, em 1983, a gravação de Eduardo Dussek, em 1984, e a recente de Célia, em 2007, com quem Cida dividiu os versos de Babo, numa apresentação feita no Sesc Pinheiros. Além disso, a música foi sucesso na voz de Francisco Alves, que a registrou no mesmo ano de sua composição, e também nas de Cascatinha e Inhana. 7 SANTHIAGO, Ricardo. Solistas Dissonantes: História (oral) de Cantoras Negras, p. 15, extraído do prefácio escrito por Cida Moreira, intitulado O dom e o ofício. 8 MEDAGLIA, Júlio. As Divas do Matriarcado Musical Brasileiro. In: NESTROVSKY, Arthur. Em Branco e Preto: artes brasileiras na Folha, p. 523. São Paulo: Publifolha, 2004. 9 ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, p. 282. 10 Valquírias: virgens guerreiras da mitologia nórdica. Eram as mensageiras de Odin e seu nome significa as que escolhem os mortos; referência do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883) em sua ópera A Valquíria. 11 Fernandes, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70, p. 116, 117 e 118. 12 Última Hora, 27 de março de 1978. Trecho da crítica As Raras Qualidades do Inédito Ornitorrinco, de Fausto Fusor, sobre o espetáculo Teatro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill. 13 FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70, p. 26. 14 Última Hora, 1º de novembro de 1978. Matéria Os Brasileiros Brecht & Weill, Flavio Marinho. 15 Jornal do Brasil, 9 de março de 1979. 16 Ele&Ela, janeiro de 1979. Trecho da crítica Ornitorrinco – um dos melhores de 78, pouca gente viu, José Guilherme Mendes. 17 BRECHT, Bertolt. O Filhote de Elefante. Trad. Fernando Peixoto, p. 221. 18 PEIXOTO, Fernando. Brecht – Vida e Obra, p. 86. Trecho de Ópera dos Três Vinténs. 19 Ópera dos Três Vinténs, por sua vez, é também uma adaptação feita por Brecht da Ópera do Mendigo, de John Gay. 20 Maria Alice Vergueiro deixou o grupo, após uma temporada do Ornitorrinco em Porto Alegre. 21 LETÍCIA, Maria. Na Sobremesa da Vida, p. 222. 22 Idem, p. 224. 23 Idem, p. 223. 24 Jornal da Tarde, 12 de junho de 1980. 25 FRIEDMAN, Myra. Enterrada Viva, p. 15. 26 Jornal do Brasil, 22 de abril de 1981. 27 Folha de S.Paulo, 6 de julho de 1988. Trecho da matéria Cida Moreyra encena Brecht, de Zé Rodrix. 28 Cida trabalhou também com Zé e Tico na Áudio patrulha, fazendo locuções e jingles, por essa época. 29 A foto da capa de Summertime é de Guto Baptista e foi tirada na casa do próprio Tico Terpins. 30 Folha de S. Paulo, 29 de outubro de 1981. 31 Jornal da Tarde, 7 de julho de 1983. 32 Folha de S.Paulo, 29 de maio de 1983. 33 Jornal da Tarde, 7 de julho de 1983. Matéria Cida Moreyra cantando somente o que gosta. 34 BRECHT, Bertolt. Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, seleção e tradução de Paulo César de Souza, p. 54. Trecho do poema Do Pobre B.B. 35 FERNADES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70, p. 119. 36 Idem. Grupos Teatrais – Anos 70, p. 121 e 122. 37 Idem. Grupos Teatrais – Anos 70, p. 127. Referência à entrevista dada por Galízia à Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, no dia 16 de dezembro de 1983 (p. 30-3). 38 Lua de Cetim, peça de Alcides Nogueira dirigida por Marcio Aurelio e encenada por Denise Del Vecchio, Umberto Magnani, Elias Andreato, Julia Pascale, Ulisses Bezerra, no ano de 1981. 39 Folha da Tarde, 30 de julho de 1982. 40 FERNANDES, Sílvia, Grupos Teatrais – Anos 70, p. 118. 41 Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 1992. Trecho da matéria A maldita Cida Moreyra, de Pedro Tinoco. 42 PESSOA, Fernando. Mensagem, p. 30. Poema D. Filipa de Lencastre. 43 ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, p. 342. 44 STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca, p. 15. 45 Idem, p. 40. 46 O filme foi para o Festival de Cinema de Cuba e ganhou o prêmio de melhor documentário. 47 MATTOS, Carlos Alberto. Luz Natural, p. 89 e 90. 48 Por esse papel, Cida ganhou o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) de Melhor Atriz. 49 MATTOS, Carlos Alberto. Luz Natural, p. 94, 97, 103. 50 Peter Hahn e o compositor já se conheciam desde 1982, ano em que Arrigo Barnabé participou do Festival de Jazz de Berlim. 51 O Estado de S.Paulo, 8 de março de 1985. 52 Em fevereiro de 1981, sob o título Weekend a La Sampa ou Sommertime Paulistano, foi publicada em veículo não identificado uma crônica de Caio Fernando Abreu, ao término da qual, o escritor invoca: Rezo no escuro, muitas vezes, assim: Nossa Senhora do Rock, livrai-nos da overdose e das chibatadas da vida. Domingo me visto todo de branco, compro rosas e passo o dia ouvindo Cida Moreira. Agora e na hora da nossa vida. Amém e Axé. 53 Folha da Tarde, 2 de outubro de 1987. 54 PEIXOTO, Fernando. Brecht – Vida e Obra, p. 11. Trecho de poema Do Pobre B.B. 55 O Estado de S.Paulo, 18 de junho de 1988. Matéria Histórias de vilania e morte, de Luis Antônio Giron. 56 BRECHT, Bertolt. Bertolt Brecht – Poemas 1913-1956, seleção e tradução de Paulo César de Souza, p. 343. 57 PEIXOTO, Fernando. Brecht – Vida e Obra, p. 13 e 16. 58 O Globo, 3 de julho de 1988. Matéria Cida e o universo de Brecht. 59 MELLO, Zuza Homem de. Música nas Veias – Memórias e Ensaios, p. 209 e 210. 60 Folha de S.Paulo, 6 de julho de 1988. Trecho da matéria Cida Moreyra ‘encena’ Brecht, de Zé Rodrix. 61 O Estado de S.Paulo, 22 de abril de 1990. 62 Jornal do Brasil, 30 de agosto de 1990, de Mauro Trindade. 63 A Tarde, 21 de abril de 1993, crítica Cida Moreyra canta Chico radicalmente, de Roberto Leon Ponczek. 64 Folha de S.Paulo, 15 de fevereiro de 1993. Matéria Cida Moreyra percebe força teatral de Chico. 65 O Globo, 25 de janeiro de 1993. Matéria Cida Moreyra regrava Chico com olhar teatral, de Mauro Ferreira. 66 BORGES, Jorge Luis. Elogio da Sombra, p. 81, 82. Trechos do poema Elogio da Sombra. 67 Zero Hora, 23 de setembro de 1995. Trecho da crônica Príncipes plebeus, de Caio Fernando Abreu. 68 Boldrin ganhou, por esse papel, o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante nos Festivais de Natal e de Brasília, em 1999. 69 SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver, p. 23. 70 Caixa de imagens é formado, ainda hoje, por Mônica Simões e Carlos Gaúcho, com consultoria de Carolina Ferreira e registro de Adalberto Lima, como é informado no website da trupe. O primeiro dos seus espetáculos chamou-se O Cavalinho Azul e foi apresentado em 1994, na mostra Maria Clara Clareou. 71 SWIFT, Jonathan. Viagens de Gulliver, p. 25. 72 Revista IstoÉ, 21 de fevereiro de 2000. 73 Folha de S.Paulo, 15 de novembro de 2001. 74 Tribuna Impressa de Araraquara, s/d. Trecho citado por José Pedro Antunes em seu texto sobre o espetáculo Canções para Cortar os Pulsos. 75 Tribuna Impressa de Araraquara, s/d. Texto de José Pedro Antunes sobre o espetáculo Canções para cortar os pulsos. 76 Tribuna Impressa de Araraquara, s/d. Texto de José Pedro Antunes. 77 ALBIN, Ricardo Cravo. O Livro de Ouro da MPB, p. 31. 78 WERNECK, Humberto. O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, p. 93. 79 ABC Domingo de Porto Alegre, 29 de junho de 2008. Matéria Cartola contagia Cida. 80 Estado de S.Paulo, 12 de junho de 2008. Texto de Lauro Lisboa Garcia. 81 Composta por Camilo Carrara (violão e cavaquinho), Omar Campos (violões, viola e baixo elétrico), Adriano Busko (percussão), Hanilton Messias (piano e flauta), Tiago Sormani (sax e clarinete) e Eric Budney (contrabaixo). 82 PEIXOTO, Fernando. Brecht – Vida e Obra, p. 14. Créditos fotográficos Acervo Alcides Nogueira 54 Acervo José Possi Neto 96 Anita Hirschbruch 214 Artur Franco 62, 78, 92 Bob Wolfenson 120a, 120b Caio Gaiarsa 4-5 Cida Amado 154 Edson Kumasaka 10, 249 Gal Oppido capa Ilustração Fernanda de Aragão 175 Juarez Porto 165 Linda Conde 115 Paulo Vasconcellos 168, 171 Ricardo Malta 194 Rita de Almeida 127, 253 Demais fotografias pertencem ao acervo de Cida Moreira. A Editora agradece quaisquer informações sobre os detentores dos direitos das imagens não creditadas neste livro, bem como de pessoas não identificadas nas fotografias, apesar dos esforços envidados para obtê-las. Coleção Aplauso Série Música Coordenador geral Rubens Ewald Filho Projeto gráfico Via Impressa Design Gráfico Direção de arte Clayton Policarpo Paulo Otavio Editoração Douglas Germano Emerson Brito Tratamento de imagens José Carlos da Silva Revisão Wilson Ryoji Imoto CTP, impressão e acabamento Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012 Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Bechara, Thiago Sogayar Cida Moreira: a dona das canções /Thiago Sogayar Bechara. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. 288p. : il. – (Coleção aplauso. Série música / Coordenador geral Rubens Ewald Filho)) ISBN: 978-85-401-0021-3 1. Música popular – Brasil – História e crítica 2. Cantoras – Brasil 3. Moreira, Cida I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 780.92 Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil : Cantoras : Biografia 780.92 Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia do organizador e dos editores Direitos reservados e protegidos (lei no 9.610, de 19.02.1998) Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei no 10.994, de 14.12.2004) Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009 Impresso no Brasil 2012 Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo Rua da Mooca, 1.921 Mooca 03103-902 Sao Paulo SP Brasil sac 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br livros@imprensaoficial.com.br www.imprensaoficial.com.br GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAuLO Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Sidney Beraldo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Marcos Antonio Monteiro Formato 21 x 26cm Tipologia Chalet Comprime e Univers Papel capa triplex 250g/m2 Papel miolo offset 120g/m2 Número de páginas 288