colecao musica As Meninas do Cy Vida e Música do Quarteto em Cy INAHIÁ CASTRO Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Governo do Estado de São Paulo “A pessoa sem gratidão tem a alma pela metade.” Isso foi meu pai quem me ensinou. E para continuar com minha alma inteirinha, não posso deixar de registrar aqui minha eterna gratidão a tantas pessoas que foram fundamentais para a realização deste projeto. Algumas por assumirem missões mais práticas, do tipo “mão na massa”, outras por sempre terem uma palavra de ânimo, uma intenção de ajudar, uma vontade de dividir o sonho comigo, e também àquelas que foram meu porto-seguro nesta empreitada, simplesmente, por existirem. Todos esses amigos, entes queridos e artistas têm a mesma e total importância para mim. Por isso, me permito apenas citar-lhes os nomes, em ordem alfabética, na certeza de que cada um sabe por que está aqui. A Deus em primeiro lugar e sempre. A Ele agradeço e peço que abençoe e cuide de cada um destes meus amados: Adalberto Carvalho; Alfredo Castro Filho; Alfredo Montebello; Ana Carla Nunes; Ana Paula Rios; Andréa Castro; Andréa Chackur; Aquiles Rique Reis; Ariel Norberto Merlo; Átila Almada; Bebeto Castilho; Bia Campos; Bia Paes Leme; Carlos Alberto (Toca do Vinicius); Carlos Guttemberg; Carlos Henrique Coraucci; Carlos Lyra; Carolina Florencia Merlo; Célia Sueli Gennari; Celia Vaz; Celso Fonseca; Cesar Morcazel, Christophe Hanras; Cilene Chakur; Deborah Munir; Eduardo Prestes; Eliana Caetano; Eliana Garcia; Eliana Oliveira Castro; Elides Ramos dos Santos; Fernanda Faria; Francisco Buarque de Hollanda; Gabriel Gonzaga; Guilherme Bryan; Gilberto Gil; Helena Vasconcelos; Igor Garcia; Jorge Ohara; José Luiz Moura Velloso; Kadu Lago; Katia Vasconcelos; Keyla Fogaça; Laís Rosal; Levina Ferraz; Luiz Cláudio Ramos; Letycia; Lygia Rebello; Magro Waghabi; Marcel Naves; Maria Onésia do Nascimento; Mario Sergio Valle; Maxionília Rodrigues; Milu Duarte; Oscar Castro Neves; Patricia Lages; Pih Morais; Raphael Zerbetto; Renato Borges; Roberto Menescal; Robson Jassa; Ruy Faria; Silvana Cordeiro; Tânia Borges; Tina Andrade; Tom Ceravolo; Tuna Dwek; Yasmine Monteiro; Yasmin Merlo; Silvio Ambrosini; Thais Robertti; Thadeu Cajado. Inahiá Castro Para Meus pais, Alfredo e Eliana, que musicaram minha vida com o que há de melhor. João Pedro Castro Merlo, pedaço de mim. Sumário A Estética do processo – Carlos Alberto Afonso 9 Introdução – Inahiá Castro 12 Ida e ideal 16 Infância: Brincadeiras, música, arte e os primeiros encontros 19 Seu Eurico 21 A hora da criança 24 E por que não? 29 Enfim, Rio de Janeiro 33 As baianinhas 35 A fuga do poeta 38 Primeiros passos sem o poeta 45 A estreia 47 Zum zum 49 Brasil afora 55 O primeiro ano 63 Liberdade, liberdade 68 Som definitivo 71 A primeira mudança 75 The girls from Bahia - de Ibirataia para o mundo 81 Coast to coast 83 Duas prá lá, duas prá cá 87 Back to the States 91 Sabiá 94 Tempos difíceis 98 Recomeço 101 Pelo Brasil com o poeta 103 Resistindo 110 Antologias, cobras e querelas 119 Descaminhos 125 Formação definitiva 130 Seguindo em frente 132 9 de julho de 1980 134 Com o maestro 138 Cada qual no seu canto 143 A volta 149 Em Cy 152 30 anos 163 De ouro 168 Japão e Cuba 170 Sempre em frente 177 Infantil 180 Percalços 186 40 e outros anos 188 Resenhas 196 Discografia oficial 197 Discografia extra 242 Créditos fotográficos 247 A ESTÉTICA DO PROCESSO Acabo de ler os originais deste excelente As Meninas do Cy – Vida e Música do Quarteto em Cy, de Inahiá Castro. Com ansiedade de sexagenário adoles­cente, enfio o dedo no bolo e começo o prefácio por onde programara encerrar: com um agradecimento que me surpreende a mim mesmo. Pois agradeço a uma rede de articulações do mundo virtual por ter ensejado o contato entre a autora e aquelas que tiveram sua trajetória de representativa quilometragem biografada. Na verdade, muito bem biografada. Por dificuldade histórica de ver arte ensimesmada, não consigo ver diferente do que diz aquela frase tão simples: o artista tem que ir onde o povo está. Pois, além da sonoridade dos céus (como me escreveu uma militante (também) da rede de relacionamento, o Quarteto em Cy, tão forte quanto a face estética, tem-nos oferecido, durante toda a sua caminhada, vigoroso engajamento e ininterrupto exercício de cidadania. E Inahiá Castro nos conta tudo isso em alto-relevo. Quero lembrar aqui de uma certa quarta feira, 12 de junho de 1991. Era Dia dos Namorados. Seis da tarde e o Quarteto em Cy dava a largada para o que seria, apenas, mais uma de suas apresentações, não tivesse aquele evento tão especiais razões além da razão tão especial da data, é claro. E explico: já vínhamos dedicando, à época, os cerca de 20 de nossas atividades educa­cionais a uma tradicional região dos subúrbios cariocas onde o samba faz dupla morada: a famosa Madureira da Portela e do Império Serrano. Constatamos, entretanto, que essa música de tão elevada qualidade não ultrapassava obstáculos consequentes dos interesses de mercado para chegar aos diversos públicos. Essa consciência gerou o inconformismo que desvelou aos nossos olhos uma causa, uma grande causa, que estava ali nítida, à nossa frente, esperando, apenas, ser abraçada. E acabamos por trazer para nós uma fatia dessa responsabilidade de contribuir para o fortale­cimento da referência cultural local, nas dimensões da cidade, a partir de sua música: do choro, do samba tradicional e do samba bossa nova. O concerto que o Quarteto em Cy realizava sobre um pequeno tablado daquele shopping center em Madureira tinha, em seu bastidor, importância laboratorial. Da análise de seus resultados, avançaríamos sempre mais firmes na promoção do contato progressivamente mais irrestrito entre a boa música e todos os públicos, priorizando, naturalmente, os segmentos de mais tímido acesso em face dos distanciamentos etários ou socioeconômicos ou, ainda, geográficos, isolados ou combinados entre si. E, finda a apresen­tação, mais que todo o farto material recolhido, acenávamos para os inter­locutores que se autoindagavam reticentes: ... mas... Quarteto em Cy, em Madureira??? Estava consumado. As meninas subiram ao tablado para uma plateia que não chegava a duas dezenas de pessoas, destacando-se – lembrança pito­resca – um adolescente com uniforme escolar cujo par de olhos arregalados se dividia entre um copo e a mordida seguinte no enorme sanduíche. Lembro-me, ainda, que, antes de chamar as meninas ao – digamos – palco (honra que me coube), recitei um soneto de Vinicius de Moraes ao final do quê, eu mesmo tive que solicitar os aplausos. Inimaginável. Pois, nesta atmosfera em que paredes, teto e piso nos recomendavam desistir, o Quarteto em Cy começa a cantar. Seu canto, expressões faciais, trejeitos coreográficos, seus semblantes me davam a certeza de que elas se apresentavam para um Maracanãzinho lotado. Foi o tempo de viajarem duas canções. A metade da praça estava cheia. E bem antes da metade do show, perto de 1,5 mil pessoas vindas da meia dúzia de largos corredores que levavam ao local se comprimiam, pequenos balanços apertados, olhos arregalados, bocas relaxadas e a lindíssima maquiagem da perplexidade. E vamos deixar bem claro – era a festa da forma de execução (para alegria de meu velho peito bossa-novista). Ali estava o puro exercício do músico cantor e instrumental, a arte das harmonias e arranjos, essencialmente. Tais aspectos ganhavam relevo porque desconhecedor daquele sofisticado repertório do em Cy – tão popular entre outros setores das classes médias – o público, de maneira muito natural, substituía o prazer participativo do cantar junto para navegar os raros mares da relação contemplativa da execução musical. Encerrado o concerto, quatro ou cinco rodadas de bis foram o preço do alvará de soltura das meninas, que, retirando-se, com muita dificuldade, deram a vez do canto ao povo, que entoava um modismo, então, recente: Parou por quê? por que parou? O livro que daqui a pouquinho começaremos a ler e, certamente, em seguida, comentaremos e recomendaremos, traça o itinerário e assinala todas as baldeações dessa trajetória mágica de quem, como nós, tem a convicção de que o artista tem que ir onde o povo está. Este livro, que monumentaliza com delicadeza e precisão cirúrgicas o Quarteto em Cy multifacetado, como é, ilumina aos nossos olhos, esse conjunto harmonioso que une brilho estético, calor social e solidariedade pessoal, ajudando-nos a entender a lógica das relações entre o músico e seu repertório e a receita em Cy que ilustra sua gilbertiana busca de perfeição artística, a permanente mobilização em torno de causas e corajoso engajamento de frequentes intérpretes de Chico Buarque, carimbos vocais de Plataforma, de João Bosco e Aldir Blanc, e Samba do Crioulo Doido, de Stanislaw Ponte Preta, além, é claro, da sedutora lírica de Vinicius de Moraes, nas parcerias várias. Entre muitos outros motivos que temos para o estado de ininterrupta gratidão ao Quarteto em Cy, menciono o princípio que nos ajudaram a provar, a instrumentos do poder público e a própria iniciativa privada durante toda sua caminhada pessoal e artística e, muito especialmente, naquele momento laboratorial do Dia nos Namorados de 1991: todo mundo gosta do que é bom, mas precisa experimentar. Agradeço ao destino por ter sido você, Inahiá Castro, a nos ensejar este maravilhoso registro para o presente e para o futuro. Dispensável dizer o quanto este fã está feliz – parafraseando a autora – de não caber em si. Carlos Alberto Afonso Ipanema, Rio de Janeiro, Dia dos Namorados de 2010 INTRODUÇÃO A história da história Em 2004, depois de muito relutar contra a ideia de fazer parte de uma rede social na internet, meus colegas de trabalho me convenceram de que aquilo poderia, de fato, ser algo bom e até produtivo, se utilizado de maneira saudável. Não sou nem um pouco avessa à tecnologia, mas achava, real­mente, que já estava de bom tamanho ter trocado a máquina de escrever por um computador, as pesquisas em bibliotecas por buscas online, e o envio e recebimento de correspondências pela praticidade e imediatismo do correio eletrônico. Nunca pensei na internet como uma opção de lazer, mas minha natural curiosidade fez com que eu me rendesse a essa nova possibilidade e, até para entender melhor do que se tratava, criei minha página no Orkut. Imediatamente, passei a procurar as comunidades que tinham a ver com música brasileira e com os artistas que me fascinam desde sempre. Vi ali uma possibilidade bastante interessante de conhecer mais sobre suas vidas e obras por meio da troca de informações com outras pessoas. Durante algum tempo, me limitava apenas a ler comentários e, muito raramente, publicava alguma opinião minha. Até que um dia decidi eu mesma abrir um tópico na comunidade de Vinicius de Moraes com a seguinte pergunta: “alguém conheceu ou conversou pessoalmente com Vinicius?” Inaugurei o tema contando uma história muito bacana que havia acontecido comigo quando eu tinha 7 ou 8 anos de idade. Vinicius telefo­nou para minha casa procurando um grande amigo da minha família, o saxofonista argentino Hector Costita, que estava vindo morar no Brasil e passou uma temporada hospedado conosco. Quando ele se identificou do outro lado da linha, eu, que já sabia bem de quem se tratava, principal­mente por algumas composições infantis, não hesitei em declarar: “Eu amo o senhor”. Ao que ele, docemente, me respondeu: “É mesmo, lindinha, então, um beijinho para você.” Muitas pessoas se identificaram com essa história e deixaram comentários e recados carinhosos, como que compartilhando comigo a emoção daquele momento vivido na minha infância. E qual não foi minha surpresa quando, em meio a esses recados, leio um muito especial, contando sobre o conví­vio e amizade com o poeta em tantos anos de carreira musical e amizade. A mensagem vinha assinada por Cynara Faria, uma das integrantes do Quarteto em Cy. Eu não cabia em mim de tanta felicidade. Sempre fui apaixonada por conjuntos vocais e até participei de alguns grupos “amadores” (no sentido apaixonado da palavra. Aqueles que amam tanto, que cantam apenas por prazer). E o Quarteto em Cy sempre foi uma referência para mim, desde quando me rendi à harmonia daquelas 4 vozes cantando “Horas”, de Caymmi, na trilha sonora da novela “Gabriela”. Eu tinha 7 anos de idade. Começamos a trocar e-mails e Cynara sempre foi muito receptiva. Fomos nos conhecendo e nos aproximando por meio desse mundo virtual e, assim, nasceu uma amizade. Até que um dia perguntei se elas nunca haviam pensa­do em contar a história do grupo em uma biografia, dividir com as pessoas todos os momentos vividos ao longo de mais de quatro décadas de carreira, convivendo com os principais nomes da nossa música. Cynara me disse que havia algum tempo ela e as irmãs conversavam sobre essa possibilidade, e que realmente gostariam de registrar toda essa história em um livro. Diante disso, não perdi a oportunidade de me oferecer como biógrafa do grupo, apesar de ter feito isso muito timidamente, pensando mesmo que podia ser um abuso da minha parte querer invadi-las dessa forma. Imaginei que elas iriam pensar na minha proposta, analisar, considerar, discutir e, então, me responder. Mas, qual não foi minha surpresa quando Cynara topou na hora e, com toda a praticidade e objetividade que lhe são peculia­res, já começamos a organizar como partiríamos para a ação. Em fevereiro de 2005, fui ao Rio de Janeiro para nosso primeiro encontro. Cynara e Cyva me receberam muito carinhosamente na casa de Cynara e, antes mesmo que eu me atrapalhasse tentando imaginar por onde começar a conversa, elas me disseram que haviam separado algo para me dar. Com a simplicidade e singeleza inerentes à personalidade das duas, me entregaram uma folha de papel dobrada. Abri e comecei a ler aquelas pala­vras datilografadas numa carta endereçada a elas e datada de 10 de outubro de 1963. Mergulhei nas frases, passeei pelos argumentos e terminei a leitura com os olhos cheios de água ao ver a assinatura – feita à mão – do remetente: Vinicius. Naquele momento, eu me dei conta da responsabilidade que estava assu­mindo e também do incrível presente que o destino me preparou. Eu, que sempre convivi com a desconfortável sensação de haver nascido fora da minha época, e com a frustração de já não ser adulta na década de 60, agora entrava em contato com aquele mundo de música, poesia e histórias de boemia, e, o que é melhor, por meio de alguns de seus protagonistas. Era como se Deus me estendesse as mãos e me entregasse a chave do tempo, permitindo que eu matasse a saudade do que eu não vivi. E eu me esbaldei. Foram várias viagens de São Paulo, onde eu moro, ao Rio de Janeiro, onde elas moram, para colher os depoimentos delas, relembrando tantas passagens maravilhosas vividas em mais de 40 anos de carreira, além da rica história de família que começa até muito antes delas. Se bem que Cybele e Sonya contribuíram com suas lembranças, foram mesmo Cynara e Cyva as principais contadoras dos fatos. Cyva é a memória plena do Quarteto em Cy. Além de se recordar de tudo com detalhes, não deixa escapar datas e nomes com impressionante precisão. Cynara é a viabilizadora de todas as coisas. Prática, rápida, sempre atualiza­da, é quem utiliza as facilidades da tecnologia para cuidar dos assuntos do Quarteto em Cy, desde a produção artística até a comunicação. E, por isso, meu contato com ela não se limitou aos encontros tête-à-tête, mas a diários bate-papos virtuais. Muitas vezes, nos emocionamos juntas, rimos, chora­mos e, assim, criamos mais que uma amizade, uma cumplicidade de vida. Além disso, o contato pessoal e inestimável com grandes nomes da música brasileira, que até então habitavam apenas as prateleiras da minha estante de discos, onde eu me protegia sob o anonimato da minha condição de fã. De repente, me vi levando recados de Carlos Lyra para as meninas, ouvindo histórias de juventude de Chico Buarque, divagando sobre tudo com Gilberto Gil, atravessando o canal de Marapendi no barquinho de Menescal. Em nome da amizade, respeito e admiração que todos têm pelo Quarteto em Cy, me receberam de portas e braços abertos, dispostos a colaborar com seus depoimentos e também se divertindo um bocado ao relembra­rem momentos musicais e pessoais vividos com as meninas. Foi assim também com Célia Vaz, Bia Paes Leme, Luiz Cláudio Ramos, Bebeto Castilho, Ruy Faria, Oscar Castro Neves, Magro e Aquiles (MPB4), Keiko Taichi, Carlos Alberto (Toca do Vinicius) e Toquinho, que gentilmente me cederam seu tempo e memória, enriquecendo este livro com seus relatos. As histórias vividas nos 3 anos e meio de desenvolvimento deste projeto certamente resultariam em outro livro. Muitas pessoas se somaram a este sonho. Algumas me acompanham desde sempre e outras eu tive o privilé­gio de conhecer pelo caminho. O prodigioso Igor Garcia, jovem pesquisador e grande entendedor do que há de melhor na música brasileira, foi uma das gratas surpresas que este trabalho me proporcionou. Tamanha foi nossa mútua empatia, que ele, gentilmente, aceitou participar deste projeto com as competentes e detalhadas resenhas de todos os discos, compactos, CDs e DVDs do Quarteto em Cy, brindando esta biografia com uma compilação inestimável sobre todas as gravações do grupo. São amigos verdadeiros que compartem comigo a paixão, admiração e toda a emoção que dedicamos a essas quatro eternas moças. Sem eles, tudo teria sido mais difícil e muito menos divertido. Meu eterno agradecimento e reverência a cada membro desta que, abusadamente, ousamos chamar de Família em Cy. Que as páginas a seguir proporcionem a todos o mesmo e imenso prazer que viver e contar essa história significou para mim. Inahiá Castro IDA E IDEAL Nos primeiros anos do século 20, mesmo distante mais de 300 quilômetros da capital, Salvador, a cidade de Jequié já dava pistas de que se tornaria um dos mais importantes centros comerciais da Bahia. A versatilidade de sua geografia, desenhando em um mesmo quadro a caatinga, a mata, a abun­dância das águas e a exuberância das montanhas, justificava a riqueza de fauna e flora, enchendo os campos das mais exóticas frutas e atraindo pássaros com as mais diversas cores, formas e sons. O cenário era tão propício para a lavoura e a pesca, como para amores arrebatadores. O contraste quase inexplicável da natureza parecia invadir os corações mais vulneráveis, provocando neles uma ânsia incontrolável de transgredir as regras. Foi assim que a apaixonada Amanda, jovem até então dedicada ao marido, Rogaciano, não pensou duas vezes antes de deixá-lo só com os filhos e partir, mambembe, na caravana de um circo que visitara a cidade, totalmente fisgada pelos encantos de um palhaço. Vendo a mãe ter sido arrebatada por aquele sorriso pintado de vermelho, os poucos 14 anos de vida de Maria não eram suficientes para que ela conseguisse avaliar ou compreender o que haveria de tão especial por trás daquela máscara de tinta ou daquele mundo de lona e fantasia, que fizesse sua mãe desistir de tudo e partir sem hesitar. Àquela altura, entender tam­bém não faria muita diferença na prática. Era preciso aceitar o que a vida estava lhe impondo e olhar para o presente, que lhe reservava um pai, irmãos e uma casa para cuidar. A ferida aberta de uma infância decepada foi sendo cicatrizada pela maturida­de precocemente imposta. O jeito de menina nos passos e gestos se fundia à maneira de mulher nas atitudes e pensamentos. Foi esta suave mistura do olhar ainda sonhador da adolescente com a visão já realista da jovem adulta que encantou o romântico Eurico Leite. Rapaz habilidoso e inteligente, com um inesgotável repertório de ideias e uma incansável garra empreendedora, ele parecia ser o genro que o Sr. Rogaciano pediu a Deus. O romance de Maria e Eurico durou vários anos e foi temperado com cartas, bilhetes e juras do mais terno e respeitoso amor. O amor cuidadoso e repleto de admiração mútua ficou para sempre impresso nas linhas preenchidas à caneta bico de pena. Uma carta datada de outubro de 1922 dizia: “Inesquecível e saudozíssimo Ideal... Que o anjo da felicidade estenda sobre tua cabeça as suas asas de ouro guiando-te sempre, iluminando os teus passos, enfim, te fazendo sempre feliz e satis­feito, é sempre o que de coração te desejo... Vou passando satisfeita, apesar das saudades que de mim não se afastam por um só momento, pois que te tenho sempre no pensamento... Não posso te ser muito extensa. Por hoje, aceitas um aperto de mão, d´envolto as saudades da sempre... Ida” Como todo romance tem seus segredos, não se sabe quando nem porque, nos anos que antecederam o casamento, eles se tratavam por “Ida” e “Ideal”. Em meio a tantas missivas trocadas entre os dois, transbordando tudo que ambos guardavam de mais sincero nos corações, uma em espe­cial, enviada por Eurico para o mesmo endereço onde vivia sua amada, que também era carinhosamente chamada por todos de Iasinha, tinha como destinatário outra pessoa. No dia 30 de novembro de 1927, o Sr. Rogaciano Ribeiro recebia, com impecável caligrafia a seguinte carta, aqui resumida: “Ilustre amigo Sr. Rogaciano Ribeiro As minhas saudações Não sei como farei esta missiva, se atacando de já o que tenho a dizer-vos, deixando transparecer ‘in loco’ o meu imenso desejo, ou se cobrindo com o manto negro do silêncio. O que não devo fazer em absoluto”... Prosseguindo com uma detalhada descrição dos mais profundos sentimen­tos que nutria pela filha mais velha de seu já amigo, Eurico encerra o solene pedido com as palavras: “Se o amor faz a felicidade doméstica, eu penso que serei muito feliz se me casar com sua filha Iasinha. Consulte-a e verás de certo a verdade. Com ansiedade, aguardando a resposta da presente, do sempre a seu inteiro dispor... do admirador, Eurico Sá Leite” Mais objetivo, porém não menos respeitoso e cumprindo todos os protoco­los, a resposta do Sr. Rogaciano foi datada do mesmo dia, atendendo à expectativa de seu futuro genro: “Amigo Eurico Leite, Saudações Respondo a sua prezada carta de hoje datada. Consultada a minha filha – Iasinha – sobre o seu pedido de casamento, respondeu-me que aceita. Objectivo este, que da minha parte, sem oposição, vai também deferido; rogando a Deus a Felicidade nesse meio. Com apreço e consideração, firmo: Roga­ciano Ribeiro” O pedido formal transformou-os em noivos, mas as bodas realmente só aconteceriam 9 anos depois. O jovem casal foi tentar a sorte nas terras de Ibirataia, não muito longe de Jequié. O longo tempo de namoro só serviu para tornar aquele amor mais profundo e maduro, capaz de superar dores e desafios, como nenhum romance de aventura consegue ultrapas­sar. Ao descobrir que Amanda, a sogra que não havia conhecido, padecia com a saúde debilitada, no Rio de Janeiro, e já só sem seu amor de picadeiro, Eurico não teve dúvidas e a levou de volta à Bahia, acolhendo a mãe de sua amada sem julgamento, sem mágoas, apenas cumprindo seu papel de chefe de família. Uma família que ficou completa após o nascimento de quatro filhas, como se Eurico tivesse sido predestinado a render-se, seja como marido, genro ou pai, aos encantos, surpresas e talentos do universo feminino. Cyva, Cybele, Cinara e Cilene ... Assim foram batizadas as filhas de Eurico e Lasinha, como se a melodia do arrebatador romance nascido em Jequié ecoasse nas sílabas iniciais daquele quarteto que um dia encantaria o Brasil e o mundo em notas musicais. INFÂNCIA: BRINCADEIRAS, MÚSICA, ARTE E OS PRIMEIROS ENCONTROS Um menino, que seria o único filho homem da família, nascido entre Cybele e Cinara – e também em casa, pelas mãos de parteira, como todas as irmãs – não sobreviveu ao cordão umbilical enrolado no pescoço e, assim, elas aprenderam que até a vida dos afinados tem suas desarmonias. Nos campos de cacau da família, a infância das quatro irmãs mergulhava em banhos de rio, subia em árvores, deitava e rolava pela paisagem contras­tante do semiárido baiano. Música, teatro e literatura ficavam por conta das novidades levadas por Seu Eurico, homem sempre bem informado, escrivão oficial do cartório de registros cíveis de Ibirataia e jornalista autodidata. Com espírito empreendedor e progressista fundou o periódico “Alvorada”, publica­ção que alimentava a cidade com notícias e comentários sobre o cenário político, social e cultural do país e da região, majoritariamente habitada por descendentes de árabes. Pioneiro e incapaz de perder uma boa oportunida­de comercial, o chefe da família Sá Leite foi também sócio do primeiro posto de gasolina da cidade e era dono de um bar, além de possuir uma fazenda de cacau nos arredores. O serviço de alto-falante, instalado na praça principal, também pertencia a Seu Eurico e, por meio dele, a cidade era visitada pelas vozes de grandes artistas internacionais e nacionais como, entre outros, Ataulfo Alves, Dick Farney, Lúcio Alves, Vicente Celestino – este último chegou a visitar a cidade vizinha, de Santo Antônio de Jesus, onde nasceu Cilene. Os conjuntos vocais eram a grande sensação do momento e colaboravam com a trilha sonora da pequena Ibirataia através das harmoniosas vozes dos Anjos do Inferno, Quatro Ases e um Coringa, Bando da Lua, que certamente inspira­ram as quatro filhas do Seu Eurico na paixão pelo casamento entre vozes. Além da influência musical legada pelo pai, as irmãs se deliciavam com a cantoria de Dona Iasinha pela casa, reproduzindo com doçura o que lhe chegava aos ouvidos pelas ondas do antigo rádio. A presença da professora Lígia Muniz, que foi de Jequié para lecionar em Ibirataia e morava na casa da família Sá Leite, também era um grande estímulo para o enriquecimento cultural das meninas do Seu Eurico. Foi com Dona Lígia que Cyva começou a ser alfabetizada e com quem também teve os primeiros contatos com a arte. Aos 5 anos de idade, vestida de Carmem Miranda, Cyva cantava “Carmelito, você foi ingrato”, recitava longas poesias e participava das peças de teatro criadas pela professora. As lembranças remetem ao friozinho na barriga que sentia antes de entrar no palco e da reciprocidade de expectativa entre ela e o público, sensação que confessa experimentar até hoje, antes de uma apresentação. O local onde ficava o alto-falante da praça foi também um dos primeiros palcos das meninas, que se apresentavam, juntamente com outros colegas da cidade, exibindo versatilidade e talento já em tenra idade. Um dos compa­nheiros mais constantes das quatro irmãs era o garoto Beto, filho do Dr. José Gil Moreira, médico da cidade, e de Dona Claudina, madrinha de crisma de Cilene. Beto tocava acordeom desde os 10 anos, inspirado por seu ídolo Luiz Gonzaga. O menino franzino abraçava seu instrumento e, entre acordes dançantes e doces harmonias, acompanhava as adolescentes e afinadas vozes das irmãs Sá Leite. Estes encontros foram os primeiros de uma série de outros, durante toda a vida. Naquela época, todos tinham seus sonhos e aspirações do que a música e a arte poderiam lhes proporcionar. Cyva, Cybele, Cilene e Cinara não podiam nem imaginar que seu Quarteto em Cy seria um dia assim batizado por Carlos Lyra e apadrinhado pelo poeta Vinicius de Moraes, muito menos que seu amigo e companheiro Beto trocaria o acorde­om por um violão, seria parte importante da carreira do grupo e também conquistaria o Brasil com o nome de Gilberto Gil. SEU EURICO Grande incentivador da arte e cultura na vida das quatro filhas, Seu Eurico não deixava faltar em casa os livros com histórias incríveis, como a coleção “Tesouros da Juventude” de que Cyva se recorda até hoje, além dos clássi­cos indispensáveis à formação cultural das meninas. Teatro e música também faziam parte da bagagem de conhecimento que ele deixava como legado. Apesar de ser um homem de posses, sua preocupação não era que as filhas tivessem bens materiais como herança, mas ele sempre expressava o desejo de que as meninas fossem culturalmente independentes, que tivessem um diploma universitário, uma profissão liberal. Cyva e Cybele, as filhas mais velhas – nascidas em 1938 e 1940, respectiva­mente – formaram uma dupla quando eram muito crianças e Seu Eurico adorava incentivá-las, levando-as a se apresentarem em festas nas casas das famílias da cidade e também no alto-falante. Mas, apesar da personalida­de vanguardista e de ser considerado um homem à frente do seu tempo, a ideia de que as filhas tivessem a música como profissão, não passava pela cabeça de Seu Eurico. Afinal de contas, as cantoras não eram consideradas mulheres de boa índole e esta reputação ele não queria para as meninas. Apesar das reservas de Seu Eurico, a paixão pela arte era imensa e, quando Cyva e Cybele tinham entre 12 e 13 anos de idade, ele programou uma viagem ao Rio de Janeiro e, junto com Dona Lasinha, levou as filhas para conhecerem os estúdios da famosa Rádio Nacional, onde puderam assistir a um programa de auditório e ver, ao vivo, Emilinha Borba e Marlene, as duas grandes rainhas do rádio, de quem as meninas eram fãs. Foram tam­bém ao “Clube do Guri”, na TV Tupi, um programa de muito sucesso, que apresentava talentos infantis e que, em sua versão gaúcha, lançou a então adolescente Elis Regina. Por ser uma cidade pequena, apesar de contar com uma vida cultural bastan­te intensa, a infraestrutura educacional de Ibirataia só oferecia às crianças o estudo fundamental. Por isso, conforme iam crescendo, elas eram obrigadas a continuar o ginásio e colegial em cidades vizinhas, como Jequié ou até mesmo na capital do estado, Salvador. Foi o que aconteceu com as filhas mais velhas do Seu Eurico, que concluíram seus estudos passando por estas duas cidades. Cinara e Cilene, as mais novas, seguiram os passos das irmãs quando concluíram o primário. Vivendo na casa de familiares ou amigos, já desde muito cedo as quatro irmãs experimentaram o sabor da independência, na busca pelo conheci­mento. Chegaram a morar sozinhas em um apartamento alugado por Dona Iasinha em Salvador e, assim, iam vivenciando a aproximação da maturidade. Cyva entrava no colegial, seguida por Cybele, enquanto Cinara e Cilene ainda cursavam o primário quando Seu Eurico preparava um passeio com a família à Argentina. Numa viagem de negócios a Salvador, o patriarca da família Sá Leite foi vítima de uma fatalidade. Um passo em falso na escadaria do hotel onde se hospedava o levou ao chão, provocando uma fratura craniana. Aos 49 anos, em plena forma física e no auge de sua atividade profissional e intelectual, Seu Eurico partiu para sempre, deixando Dona Iasinha e as quatro filhas. A dor da perda de um pai tão especial só pôde ser suportada graças à base educacional e à firmeza de caráter legadas por ele à sua família. Tendo encaminhado as filhas nos estudos, ele partiu com a certeza de ter deixado, no caminho para a independência através da cultura, a herança que esperava para suas meninas. A reputação de mulheres dignas e respeitadas também seria alcançada por elas, só que não como professoras ou profissionais técnicas, mas como grandes cantoras que se tornaram, conquistando o Brasil e o mundo através de suas vozes. Seu Eurico não esperava por isso, mas certamente teria se orgulhado muito se as tivesse visto brilhar ao lado dos principais nomes da música nacional, como elas têm feito desde que estrearam no Beco das Garrafas, em 1964. A HORA DA CRIANÇA Quando Cinara e Cilene, por volta dos 10 anos de idade, foram para Salvador em busca de cursar o ginásio, Cyva e Cybele já estavam por lá. Juntas, as irmãs passaram pela terrível e inesperada perda do pai, mas também vivenciaram o que até hoje consideram ter sido a base para suas carreiras artísticas, através do projeto “Hora da Criança”, idealizado e dirigi­do pelo Professor Adroaldo Ribeiro Costa, que apresentava um programa educacional com o mesmo nome na Rádio Sociedade da Bahia. “Bom dia, senhores pais e professores...”; a saudação de abertura do programa, que ia ao ar aos domingos pela manhã, deixava claro quem era o seu público alvo. Intelectual preocupadíssimo com a formação educacional dos alunos, o Professor Adroaldo era um entusiasta das artes cênicas e musicais, e através da “Hora da Criança”, com muita dedicação e criatividade, enriquecia o universo cultural dos pequeninos. O projeto era desenvolvido como uma extensão escolar e não tinha a pretensão de formar artistas, mas sim de complementar o aprendizado por meio de aulas de teatro, dança, canto e todo tipo de manifestação artística possível. Pianista conceituado, o Professor Adroaldo contava ainda com a colaboração de seu colega Professor Agenor Gomes, maestro responsável pelos arranjos musicais das peças teatrais criadas pelo diretor do projeto. As irmãs estudavam no Instituto Normal da Bahia no período da manhã e passavam o resto da tarde na Hora da Criança, que funcionava no mesmo espaço do colégio, que era estadual. O projeto, sem fins lucrativos, recebia crianças e adolescentes de toda a cidade. Com excelente infraestrutura, a área de lazer contava com piscina e quadras esportivas. As aulas de música faziam parte do currículo escolar e as meninas participavam do canto orfeô­nico. A educação artística era complementada com aulas de teatro onde os alunos encenavam peças, na maioria de autoria do próprio Professor Adroaldo, que, já na década de 50, abordava temas que hoje, mais de 40 anos depois, despontam como grandes problemas sociais da atualidade. Cyva se lembra da peça “Monetinho”, a história de um príncipe a quem não faltava nada de material, mas que não contava com o amor e atenção dos reis, seus pais, que sempre tinham outras coisas com que se preocupar. O menino acaba desaparecendo na caixa de um mágico, de nome “Conselheiro Malefício” e daí desenrola-se uma história mirabolante que levava todos à reflexão sobre o abandono de crianças dentro do próprio lar. Além da atualidade dos temas, as peças impressionavam pelos efeitos espe­ciais que exibiam, transpondo, com muita criatividade, as dificuldades pela falta de recursos tecnológicos. Na peça “Narizinho”, uma enorme estrela do mar luminosa ficava no meio do palco, servindo como passarela para a hora do desfile em que a estilista, Dona Aranha, apresentava à personagem principal os modelos que desenhou para que ela escolhesse a melhor roupa para ir ao baile. Placas de metal colocadas no chão acionavam os fios que passavam por dentro dos enormes vestidos, acendendo luzes que criavam efeitos incríveis. Cyva, então por volta dos 15 anos, desfilava o modelo “Teia de Aranha com Pingos de Orvalho” e se lembra da preocupação do Professor para que as alunas não levassem choque com os fios por entre as roupas, ao mesmo tempo proporcionando ao público um espetáculo grandioso de luzes, cores e efeitos. As apresentações eram realizadas no enorme auditório do próprio colégio. Por meio das peças, os alunos da “Hora da Criança” entravam em contato com o mundo de fantasia e criatividade dos contos infantis, passeando pelas obras de Hans Christian Andersen, Jean de La Fontaine, Monteiro Lobato, entre tantos outros mestres. No coro das cigarras, da peça “Cigarra e a Formiga” – atribuída ao grego Esopo e reeditada por La Fontaine –, mais de 20 vozes de meninas entre 8 e 9 anos de idade se dividiam em três naipes, criando o efeito sonoro perfeito para ilustrar a história. A cada montagem, uma surpresa; a cada surpresa, um novo aprendizado. Assim, se abriu diante delas um horizonte que apontava a arte como caminho. Não que a intenção do Professor Adroaldo fosse formar artistas. A música, a dramaturgia, a dança e outras expressões eram usadas como forma de fazer com que cada uma daquelas crianças e adolescentes descobrisse suas habilidades, enxergando a vida como um enorme leque de possibili­dades, uma aquarela de ideias inesgotáveis com a qual poderia colorir seu destino como bem entendesse, transformando aquela experiência em ferramentas para a construção de seus futuros. Cybele e Cilene formaram o trio “As Três Bahianas” com a prima Maria Lúcia. Gilberto Gil, que desde os 12 anos também participava dos projetos da “Hora da Criança”, já começava a trilhar caminhos sonoros em Salvador acompanhado de seu acordeon. Aos 17 anos ele gravava alguns jingles e começava a se relacionar com o mundo da televisão. No estúdio de Jorge Santos, sua primeira canção gravada foi “Bem Devagar”, em 1962, e contou com a participação das “Três Bahianas”: Bem Devagar Sem correr Bem devagar A felicidade voltou para mim Sem perceber Sem suspeitar O meu coração deixou você surgir E como o despertar depois de um sonho mau Surgiu o amor sorrindo em seu olhar E a beleza da ternura de sentir você Chegou sem correr Bem devagar Amor velho que se perde Sai correndo pra outro ninho Amor novo que se ganha Vem sem pressa, de mansinho (Bem Devagar, Gilberto Gil, 1962) Nessa época, Cinara e Cilene continuavam na “Hora da Criança”, mas não deixariam de dividir palcos e estúdios com o amigo de infância em várias outras oportunidades que a vida lhes reservou. “Sempre achei o trabalho do Quarteto em Cy magnífico, desde aquela época comigo em Ibirataia. Era a voz humana em conjunto, orquestrando, como instrumentos. Dona Dilce, esposa do Sr. José Telles, o sapateiro, organizava umas festas no clube da cidade, onde nos apresentávamos, quando íamos para lá nas férias. Eu tocava acordeon e cantávamos dividindo as vozes. Essa noção de divisão vocal nós aprendemos na “Hora da Criança”. Elas chegaram ao Rio na época do surgimento da Bossa Nova. Havia uma nova leva de grupos vocais brasileiros, substituindo aquela dos anos 40 e início dos anos 50. Nos Estados Unidos, havia conjuntos vocais femininos, mas aqui não. Aqui, às vezes, eram dois homens e uma mulher, como era o caso do Trio de Ouro. Elas chegaram trazendo essa exigência do conjunto vocal aprimorado para o mundo feminino. Então, tinha uma graça especial, tanto é que, de cara, encantaram pessoas como Vinicius de Moraes, Tamba Trio. Todos se rendiam àquela limpeza de voz, suavidade de emoção. Hoje em dia, não aparecem grupos como o delas. A música mudou muito. Eu gosto de tudo que elas gravaram das minhas composições. Aquele padrão, aquela ênfase expressiva. Elas são sempre delicadas. Eu gosto daquele mundo; é o mundo de João Gilberto. É uma música que ainda tem muito espaço. A Bossa Nova é a maior novidade no mundo de hoje, talvez até mais do que quando surgiu. Hoje é um gênero mundial. É cultivado no Japão, Inglaterra, Austrália, Estados Unidos. O Japão está cheio de artistas que se lançam fazendo Bossa Nova e o Quarteto em Cy é referência para muitos deles. As reedições estão acontecendo em um nível planetário. São músicas que em qualquer época terão um teor de beleza permanente” Gilberto Gil E POR QUE NÃO? No início de 1961, enquanto concluíam os estudos na Bahia, Cinara e Cilene se apresentavam em dupla no programa “Escada para o Sucesso”, da TV Itapuã e, a cada edição, subiam um degrau até chegarem ao topo como vencedoras do concurso musical. Entre os jurados, o compositor e produtor cultural Carlos Coqueijo se rendeu totalmente à musicalidade, afinação e precisão daquelas vozes pré-adolescentes e anteviu o sucesso. Coqueijo, que era Juiz do Trabalho, chegando a se tornar Ministro do Supremo, era uma espécie de casamenteiro da música popular brasileira. Homem sempre bem-humorado, muito bem relacionado, foi um grande fomentador da cultu­ra baiana no cenário nacional. Sua casa era palco de reuniões entre grandes artistas e novos nomes, em encontros promovidos por ele para unir esses talentos, propiciando, assim, novas parcerias, novos casamentos musicais, dando uma importante contribuição para o enriquecimento da nossa música. Nesses saraus, lá estavam Cinara e Cilene, muitas vezes destoando em ida­de da maioria dos convidados, embriagando-se de Bossa Nova, petiscando Tom Jobim, Vinicius, João, atravessando madrugadas até o sol nascer, ao som do violão. As irmãs ganharam um programa semanal como contratadas durante um ano da mesma TV Itapuã, e Coqueijo auxiliava na produção. Ele transpunha, para as vozes suaves das duas meninas, os arranjos de Jobim do LP “Canção do Amor Demais”, gravado por Elizeth Cardoso, e que se tornou um sucesso fonográfico histórico, consagrando a parceria entre Tom e Vinicius. Foi assim que elas se apaixonaram pela Bossa Nova e por todos os mestres que formavam aquele universo musical, sem imaginar, entre seus 14 e 16 anos de idade, que o futuro lhes reservava uma relação bem mais próxima com esses ícones e que elas mesmas escreveriam seus nomes na história da música brasileira. Tendo concluído o curso de Letras Clássicas em Salvador, Cyva se mudou sozinha para o Rio de Janeiro em 1962, em busca do futuro que a antiga capital do país poderia lhe oferecer. Ela conta que não sabe ao certo o que foi fazer lá; simplesmente era alucinada pela cidade e sabia que ali morava o seu destino. Vivendo, em princípio, na casa de parentes, a filha mais velha da família Sá Leite lecionava português em colégios estaduais do subúrbio carioca e também em escolas particulares, como o renomado Colégio Andrews. Dois meses após sua chegada, dividiu apartamento com uma amiga enfermeira e depois foi morar sozinha. Sem deixar a música de lado, cantava no concurso de calouros do programa “Papel Carbono”, apresentado por Renato Murce na Rádio Nacional e, cada vez que se apresentava, ficava em primeiro lugar. Cantava também em inglês e francês, exibindo talento e versatilidade. Em uma visita da irmã Cybele, elas se apresentaram juntas no “Papel Carbono” com “Beijinho Doce”, copiando a dupla Adelaide e Eliana, e relembrando os tempos em que cantavam esta música na “Hora da Criança”. Na década de 30, Murce havia criado o programa humorístico “Cenas Esco­lares” que tinha como personagem principal o garoto “Manduca”. Com seu jeito irreverente, falando errado e aprontando todas, o menino expunha os principais problemas enfrentados pelo sistema de ensino da época. Desagra­dando professores e educadores pela crítica contundente, Renato Murce se viu obrigado a alterar o formato do programa, que passou a se chamar “Piadas de Manduca”. Seu personagem passou a ser o “Professor Leão”, um sabichão que tirava de letra qualquer assunto, servindo de escada para as trapalhadas dos alunos. Permanecendo no ar por vinte anos, o humorístico foi fonte de inspiração para Chico Anysio e Ronald Golias em suas “Escolinha do Profes­sor Raimundo” e “Escolinha do Golias”. “Papel Carbono” fez parte da fase dos programas de auditório da Rádio Nacional, apresentando calouros e revelando talentos. Entre os cantores principiantes que participavam da atração, estavam nomes como Ângela Maria, Dóris Monteiro, Alaíde Costa, Claudete Soares, Ivon Curi, além de outros que, assim como Cyva, a cada semana arrancavam aplausos entusiasmados do público presente e empolgavam os ouvintes, arriscando os primeiros passos em suas carreiras artísticas. Foi também em 1962 que Carlos Coqueijo viajou ao Rio de Janeiro acompa­nhando a Miss Bahia, Maria Olívia Rebouças, que em junho do mesmo ano conquistou o título de Miss Brasil, aplaudida por um Maracanãzinho lotado. Com o intuito de apresentar a representante da beleza baiana aos seus conta­tos mais influentes, Coqueijo combinou de levá-la à casa de Vinicius de Moraes. Naquele ano, o poeta vivia um dos seus momentos mais produtivos. Começava a parceria com Baden Powell na composição dos afro-sambas ao mesmo tempo em que concluía, com música de Carlos Lyra, a comédia “Pobre Menina Rica”, que lançou a cantora Nara Leão. No mês de agosto, na boate Au Bon Gourmet, juntamente com Tom Jobim e João Gilberto, apresentou o antológico pocket show que lançou as canções “Garota de Ipanema” e “Samba da Bênção”, reunindo pela primeira vez os três grandes ícones da Bossa Nova. Cyva, também amiga de Coqueijo desde a época em que Cinara e Cilene participavam do programa “Escada para o Sucesso”, reencontrou o conterrâneo nessa sua viagem ao Rio e também foi convidada por ele a ir à casa de Vinicius. Maria Olívia acabou não indo e quando Coqueijo chegou acompa­nhado de Cyva, as pessoas lhe perguntavam se ela era a Miss Bahia. Encabulada, ela até achava que era um deboche. Aos 24 anos, já formada, enfrentando a vida longe da família e dividindo-se entre as incursões pelo mundo musical e a vida como professora no subúrbio carioca, ela via no fato de conhecer Vinicius de Moraes mais que uma grande oportunidade ou uma honra, mas a realização de um sonho, o encontro com o ídolo. Nem ela sabia, mas o futuro começava ali. Na produtiva safra musical de 1962, o Beco das Garrafas era terreno mais que fértil. Nos pocket shows do Bottle´s Bar, novas sementes eram plantadas e explodiam em frutos promissores. Em uma das mesas da boate, depois de uma semana cansativa de trabalho, Cyva buscava o descanso de uma boa música. No palco, Luizinho Eça ao piano, Hélcio Milito na bateria e Bebeto Castilho no baixo e sopros apresentavam à plateia, sempre sedenta por novidades, os acordes rebuscados e arranjos bem elaborados do seu estreante Tamba Trio, um conjunto vocal e instrumental que marcou época e serviu como referência para muitos grupos que surgiram depois. Atraída pela qualidade e inovação apresentadas pelos músicos, naquela noite Cyva teve uma ideia diferente. A cabeça viajou até a Bahia, onde ainda estavam suas três irmãs. Lembrando das inúmeras apresentações que sempre fizeram em duplas, ela pensou: “e por que não formar um quarteto vocal?” ENFIM, RIO DE JANEIRO Aos 17 anos de idade, Cinara se via às voltas com os estudos em Salvador. Se por um lado se destacava nas Ciências Humanas, nas Exatas ela empa­cava. Ficou de recuperação em Matemática e isso atrasou sua ida ao Rio de Janeiro. No final de 1962, Cilene e Cybele partiram para a Cidade Mara­vilhosa ao encontro de Cyva e Cinara, que só chegou em fevereiro de 63. Ela e Cilene concluíram o segundo grau no Rio, no colégio Souza Aguiar. Todas as noites as irmãs voltavam da aula acompanhadas de uma colega de classe de Cilene. A garota de sorriso fácil e personalidade forte atendia pelo nome de Leila Diniz. Cinara e Cilene chegaram a encenar na escola, com Leila, a peça “O Coelho e a Onça”, dirigida pela professora de literatura Bela Josef, profunda conhece­dora da obra de Manuel Bandeira e grande incentivadora do casamento entre educação e arte. Leila fazia a “Mãe Onça”, Cinara era a “Filha Onça” e Cilene, a “Filha Coelha”. Participavam, ainda, os colegas Gilson, como “Pai Coelho”, e Marcílio, como “Pai Onça” e dividindo a direção da peça com a professora. Cinara, Cilene, Leila, Marcílio, Sebastião, Gilson e Ático eram inseparáveis. Todas as noites, na volta do colégio, entre risadas, histórias e confidências lá iam eles, felizes pelas ruas de um Rio de Janeiro de céu estrelado que, naquela época, só oferecia risco aos apaixonados que não resistiam à beleza da lua marcando o contorno das exuberantes montanhas. Seguiam juntos desde a Rua dos Inválidos, no centro, onde ficava o Souza Aguiar, até a Praça Paris, onde seguiam cada qual para suas casas. Leila tinha seu coração disputado pelo jovem Domingos José Soares de Oliveira – que mais tarde se tornaria o ator e diretor de cinema Domingos Oliveira – e um colega de classe. Apesar da paixão que este último dedicava à Leila, ela ficou mesmo com Domingos, com quem sempre se encontrava na Maison de France, e acabou se tornando a musa inspiradora e protagonista do filme “Todas as Mulheres do Mundo”, dirigido por ele em 1966. Em um apartamento alugado na Rua Silveira Martins, no bairro do Flamengo, as quatro estavam juntas novamente. O caminho indicado por Seu Eurico não previa a arte como meio de vida e, apesar da paixão pela música, cada uma das Sá Leite começava a traçar seu destino profissional longe dos palcos. Cybele trabalhava na joalheria H. Stern, enquanto Cyva dava aulas de português. As caçulas Cinara e Cilene eram secretárias. Assim, todas procuravam garantir a sobrevivência com dignidade. O verdureiro que tinha sua banca na rua onde elas moravam colaborava nos dias de vacas magras, anotando na caderneta as despesas para que elas pagassem quando recebessem o próximo salário. Em 1963, o cineasta Alex Vianny dirigiu o filme “Sol Sobre a Lama”, cuja trilha sonora tinha letra de Vinicius de Moraes e música de Pixinguinha. Vianny já era amigo de Vinicius desde 1949, quando lançaram juntos a revista “Filme”, na época em que o poeta era vice-cônsul do Brasil em Los Angeles, chegando a estudar cinema com Orson Welles e Greg Tolland. João Palma Neto, que assinou a produção e roteiro de “Sol Sobre a Lama”, era amigo do Professor Adroaldo Ribeiro Costa e conhecia as irmãs Sá Leite desde a época em que estavam na “Hora da Criança”. Quando ele as reencontrou no Rio, fez questão que elas participassem da trilha sonora do longa-metragem. Vinicius, que já havia se encantado com a suave voz de Cyva na visita que esta lhe fez em companhia de Coqueijo, rendeu-se completamente ao ouvir as quatro juntas nos estúdios de gravação do filme e, ali, se uniram para sempre. O poeta tomou as quatro irmãs para si e andava com elas a tiracolo. Por ocasião do filme, ele as levou para comer uma deliciosa feijoada na casa de Pixinguinha para apresentá-las ao amigo e parceiro. Foi o primeiro de infindáveis passeios que ele fez com as meninas. AS BAIANINHAS Depois do encontro com as quatro irmãs, na maioria das festas, reuniões sociais, saraus e badaladas afins para os quais era convidado, Vinicius tratava de levá-las e de exibir, orgulhoso, a grande descoberta que havia feito. Quando era chamado para algum evento, já se tornara comum ouvi-lo dizer: “vou levar umas baianinhas comigo que são muito afinadas”. E lá iam elas, muitas vezes de mãos dadas, tímidas, e ficavam sentadas num canto até que, aos poucos, soltavam as vozes, atraindo a atenção de todos. Ao lado do poeta, elas saudavam os presentes com o delicado: “bom dia, amigo, que a paz seja contigo”. Afora isso, não havia nada ensaiado; elas cantavam muitas coisas de Caymmi e o repertório que estavam acostumadas desde que moravam na Bahia. As divisões de vozes saíam naturalmente, sem que nada fosse premeditado. Cinara, que sempre teve uma musicalidade pulsante, já havia adquirido alguns conhecimentos de técnica e arranjo vocal com Carlos Coqueijo desde a época em que ele dirigia a dupla que ela fazia com Cilene no programa que apresentavam na TV Itapuã, em Salvador. Nos saraus ela sempre improvisava contrapontos que davam um brilho especial às canções. Vinicius as apresentou para toda a nata da música brasileira do Rio de Janeiro da década de 60. Tom Jobim, Baden Powell, Carlos Lyra, Roberto Menescal e tantos outros nomes que figuravam no cenário artístico nacio­nal naquele momento divisor de águas da nossa música conheceram “as baianinhas do Vinicius”. Muitas vezes, era difícil conciliar a rotina diurna com o ritmo boêmio de Vinicius. Elas acordavam cedo para trabalhar o dia todo e não foram poucas as ocasiões em que ele passava depois da meia-noite para levá-las a alguma festa. E havia festa praticamente todos os dias. Quando a campainha tocava de madrugada, Cinara, que dormia em um sofá-cama na sala, se levantava e, ainda meio adormecida, via que atrás do olho mágico estava o amigo poeta completamente animado para temperar a noite com música. Agitação total no apartamento do Flamengo. “É o Vina, é o Vina”... troca de roupa; fecha sofá-cama; abre a porta: “Oi, Vina”... E lá iam os cinco. Cyva, que nunca foi muito dada à boemia, nem sempre conseguia acompanhá-los, já que come­çava a dar aula às 7 horas da manhã. As outras três, além de trabalharem, estudavam à noite, mas não perdiam as badaladas pelas madrugadas cario­cas. De tanto andarem juntos, ele dizia que estava pensando em mudar seu nome para “Cynícius”. Mas os passeios com o poeta não eram apenas festivos e a coisa logo passou a tomar ares mais profissionais quando Carlos Lyra começou a ensaiá-las. As reuniões no apartamento do “parceirinho 100%” eram constantes. Antevendo o sucesso que elas poderiam fazer, certo dia do ano de 1963, Vinicius marcou uma reunião na casa de Lyra com um importante objetivo: escolher um nome para o grupo vocal das irmãs. “Não dá para vocês serem sempre As Baianinhas”, dizia ele, argumentando que isso não lhes cairia bem quando já tivessem mais idade, numa opinião quase profética sobre o sucesso longínquo das meninas. Elas achavam que ele estava ficando maluco quando imaginava o grupo vocal se apresentando depois de 20 ou 30 anos e começaram a desconfiar que Vinicius as estava realmente inserindo naquele mundo latejante da música. Na sala do apartamento de Carlos Lyra, além delas, Vinicius e o anfitrião, outros amigos davam suas opiniões sobre como poderia ser o nome do grupo. “As Meninas em Cy”, “As Quatro em Cy”, “As Baianas em Cy”... as sugestões iam espocando entre aplausos e rejeições, até que Lyra disparou: “Quarteto em Cy”. Vinicius na mesma hora endossou: “Perfeito”. Pronto! Estavam batizadas para sempre. Por conta do novo nome dado ao grupo, as duas irmãs mais novas, que haviam sido batizadas com a vogal “i”, passaram a adotar o “y” e, assim, se tornaram Cynara e Cylene. A FUGA DO POETA Os ensaios com Carlos Lyra e Vinicius eram cada vez mais constantes. Em um daqueles dias, ao chegarem na casa de Lyra, ele e o poeta haviam acabado de compor uma nova canção e aproveitaram para mostrá-la às meninas. Ao violão, Lyra dedilhava os acordes enquanto Vinicius cantava. “Se você quer ser minha namorada, ah que linda namorada você poderia ser...”. Cyva se emocionou tanto com a letra que começou anotá-la ali mesmo. Lyra não havia colocado a letra no papel e, como o poeta viajou às pressas, o parceiro se viu traído pela memória e pensou que perderia a chance de ter a canção gravada pelo grupo “Os Cariocas”, que estavam entrando em estúdio. Foi quando se lembrou que a irmã mais velha das “Cy” havia tomado nota e mais que depressa deixou um bilhete embaixo da porta do apartamento delas pedindo a letra da música. O bilhete existe até hoje e está muito bem guardado no acervo da Toca do Vinicius, em Ipanema, e a música foi gravada não só pelo “Os Cariocas” como por mais um bocado de gente, inclusive o Quarteto em Cy, claro. Em 1963, Vinicius se apaixonou por Nelita Abreu Rocha, vivendo uma histó­ria de amor como só se permite aos poetas. Ela era comprometida com o jovem João Victorio, quando conheceu Vinicius. Os pais da moça não que­riam o relacionamento, principalmente pela diferença de idade entre eles. Ela tinha 19 anos e ele, 50. Apesar de já consagrado como poeta, composi­tor, escritor, crítico de cinema, articulista de diversos jornais e revistas, além de ser diplomata, Vinicius, com toda sua intelectualidade e versatilidade, não conseguiu convencer os sogros de que aquele relacionamento poderia ter algum futuro. Por trás de todos esses atributos, existia também o boêmio, namorador e eterno sonhador, características que cabiam bem a um artista, mas não a um genro, na opinião da família Rocha. Em um dia de angústia e sofrimento pela dificuldade em manter o relaciona­mento com Nelita, Vinicius desabafava com o parceiro Carlos Lyra, quando este, compadecido pela dor do amigo, sugeriu, talvez mais na tentativa de descontraí-lo do que de realmente aconselhá-lo: “Por que você não a rapta?”. Vinicius achou a ideia ótima e começou a arquitetar seu plano. Abrir mão de um grande amor estava fora de questão. Foi assim que, com a ajuda de Carlos Lyra e Tom Jobim, ele planejou a fuga, aproveitando que teria que partir em missão do Itamaraty para Paris. Lyra lembra como tudo aconteceu: “Eles levaram as roupas para a minha casa e combinamos que a partida seria no mesmo dia em que eu viajaria para Nova York. O Tom ficou de nos levar até o aeroporto e apareceu em casa de terno e gravata. Ele sempre se vestia assim quando o assunto era sério. Comentávamos que, se o pai da Nelita descobrisse, mataria Vinicius. Mas, como eles já teriam partido, o Tom concluiu, dizendo ao Vina: ‘O tiro que seria para você vai ficar para mim’ .” Um plano desses, para não dar errado, tinha que ser mantido em segredo. Por isso, as quatro meninas não ficaram sabendo de nada e, de repente, se viram órfãs de seu padrinho musical sem saber ao certo o que havia aconte­cido. Foi quando, da Tunísia, Vinicius lhes enviou a seguinte carta, datilografa­da em sua inseparável máquina de escrever: “Sidi Bou Said, Tunis, 10.10.63 Cyva, Cybele, Cylene e Cynara queridíssimas: Vocês devem estar todas pensando mal de mim, mas vocês são muito feias de pensar mal de uma pessoa que ama vocês tanto. Se eu não contei que estava namorando a Nelitinha, e depois que íamos nos casar e tudo o mais, é que as coisas se precipitaram tanto que não deu mesmo tempo. Como foi praticamente uma “fuga” que empreendemos, ou melhor, um rapto da moça, como nos romances da Idade Média, as providências a tomar foram de tal ordem que só mesmo vocês conversando com o Carlinhos (Lyra) a respeito, pois ele está a par de tudo, e aliás, pouco antes de partir, eu lhe pedi que contasse a vocês como as coisas se passaram. Estou certo de que ele o terá feito e vocês já tenham me perdoado o silêncio involuntário. Houve problemas muito grandes, pois os pais da Nelita não sabiam de nada, tudo teve de ser feito na maior moita. Mas já agora recebemos deles um lindo telegrama de apoio e felicidade, de maneira que estamos no céu com o pé de fora. E agora estou aqui, ao lado de minha filha Susana e meu netinho Paulo, de 3 anos (Tuca é o seu apelido), neste lindo vilarejo tunisiano a 20km da capital, gozando a mais bonita lua de mel de que já houve notícia. Não pensem também que tenha havido qualquer deslealdade minha com João Victorio, de quem vocês também ficaram amigas. Podem perguntar tudo ao Carlinhos (Lyra) que ele lhes contará. Houve, isso sim, um grande e incontro­lável amor que nasceu de parte a parte, e um amor todo direito, como deve ser. Espero ardentemente que cada uma de vocês encontre um assim na vida, porque essa é a felicidade máxima. Nós queremos muito que vocês escrevam contando como vão os progres­sos com os estudos, e se vocês têm treinado com o Carlinhos (Lyra). É preciso não perder a fé nem a embalagem. Eu acredito totalmente no “Quarteto em Cy”, e quero ver vocês ganharem o disco no ano em 1964, como o melhor conjunto vocal do Brasil. Aliás, pretendo estar aí para esta ocasião, pois não quero fazer mais a besteira de passar tanto tempo longe do Brasil. Quero ver se venho pelo menos todo ano, de férias. Porque, minhas queridas, quanto mais viajo mais me convenço de que, apesar da bagunça nacional, das crises políticas, de tudo que atrasa o progresso do nosso país, nós criamos uma humanidade, ou melhor, um humanismo novo que não tem preço. A reserva aqui é grande, de ser humano para ser humano, e a maioria das pessoas parece ter um cifrão no meio da testa. E o excesso de prosperidade, a pletora de bens de consumo não tem ajudado muito a Europa no sentido de uma re-humanização. Tem, pelo contrário, emburrecido as gentes, que conversam com palavras geralmente medidas e emitem concei­tos ultra formais. Trata-se, evidentemente, de uma última “visita da saúde” ao capitalismo enfermo. De um último e desesperado lance da burguesia na grande maratona da sociedade em direção ao socialismo. Eu não faço mais que observar. Ficarei calado esses próximos dois anos, pois minha posição de diplomata põe-me automaticamente uma focinheira na boca; e, além do mais, o Itamaraty acaba de ser ultra decente comigo, mandando-me pela segunda vez para Paris. Mas depois, quando voltar ao Brasil, falarei. Pretendo, desta vez, viajar muito e manter os olhos bem abertos. Escrevam-me sempre. Até novo aviso para: Ambasciata del Brasile, 14 Plazza Navona, Roma, Itália. Prometo ser um correspondente à altura. Para vocês tudo de bom, e o carinho sempre novo do Vinicius”. E ninguém pode negar que ele tinha sim os olhos bem abertos sempre, o que o tornava um homem à frente de seu tempo. Há mais de 40 anos fazia uma descrição política e social da Europa que ainda hoje é atual. Essas coisas de Vinicius faziam crer que ele tinha algo de mágico, de profético, mas quem o conhecia sabia que isso não passava de pura sensibilidade, aliada a muita sapiência. A carta do poeta e padrinho as deixou mais confiantes e diminuiu a sensa­ção de abandono. Ainda assim, cada uma tinha sua visão a respeito do futuro do grupo e a divergência de pontos de vista fica clara nas cartas que Cynara e Cyva escreveram em resposta a Vinicius: “Rio, 7 de novembro de 1963. Vininha, meu amigo, Não sabia mais onde guardar tanta saudade, quando sua carta, enfim, chegou para as quatro. Vibrei de contente, como se você tam­bém tivesse vindo no envelope. As coisas realmente se precipitaram, mas aos poetas tudo é permitido e você tem muito mais direitos que deveres. Cheguei da Bahia louca de alegria [na perspectiva] de vê-lo, com uma porção de rapadura e coco cheio de cachaça para você; presentes do [Carlos] Coqueijo e Aydil. E um recado deles para você: o Carlinhos (Lyra) e o Baden (Powell) estarão na Bahia em janeiro. À sua espera estaria um apartamento em frente ao mar de Amaralina, com todo o isolamento possível e cheinho de instrumentos. Tudo isso foi jogado fora e minha alegria também. Você sabe que eu sou chorona e, depois então que soube da sua fuga, desan­dei num choro por uns três dias. Mas já passou a fase chata. Estou novamente contente e nunca, nunca pensei mal de você , por isso não tomei a carapuça de ser feia. Eu lhe disse numa de nossas reuniões que acredito em você, mais que tudo na vida. Desejo um mundo de felicidade aos dois. Amor, a gente não pode mesmo jogar fora, porque é a única coisa que realmente vale nessa vida. Viva muito e ame muito, pois garanto que, amado, você é. Quando meu amor tiver de vir, vou rezar para que ele venha todo certinho, como veio o seu. Acredito também no Quarteto em Cy e, de minha parte, lutarei para que ele vença. Continuamos em aulas semanais com Carlinhos (Lyra) e ele tem sido um anjo conosco. E estamos em progressos, sabe? Já até solfejamos umas notinhas. Vai tudo muito bem. Que bom foi ter ao seu lado a Susaninha e o Tuca. Eles devem ter ficado no céu com vocês. Em compensação, o Rio ficou mais triste. Mas você vai voltar, não é? Não fique muito por aí, senão correrá o risco de voltar outro Vinicius diferente do que foi. As meninas mandam abraços para os dois. Um beijo meu para Nelitinha. Pra você, muitos abraços, beijos e uma saudade em sol maior de Cynara” Cyva não estava pessimista, mas não enxergava tantas flores como Cynara. Sua resposta à Vinicius dizia assim: “Rio, 11 de novembro de 1963. *Vino, querido Sua carta tirou-me da superfossa em que eu estava. Você não imagina como todas nós ficamos contentes. É claro que eu havia ficado muito triste por não poder vê-lo ainda uma vez antes de você viajar, mas porque havia de pensar mal, como você diz? Vi logo que foi mesmo um caso de amor fulmi­nante, de parte a parte, e achei a fuga muito justa e genial. Gostaria de ter podido também levar-lhes rosas no embarque, mas, como não foi possível, “mando-as” agora, com os meus votos de felicidade para sempre. Um abraço à Nelitinha. Achei comovente você ainda acreditar no Quarteto em Cy. Tenho-me esforça­do por continuar acreditando, pois ele caminha a passos de tartaruga, o que nos impacienta, sabe? É como se estivesse condenado. Íamos fazer um show com Carlinhos (Lyra) no Teatro Santa Rosa, mas não deu certo. Depois, o Flávio Ramos começou a organizar um show conosco no Au Bon Gourmet, mas teve que fechá-lo. Resultado: vamos ficar frustradas com isso, que chamamos de “superazar”. Agora terminamos por nos dar um prazo. Depois disso, Cybele voltará para a Bahia a fim de casar-se. Estou contando isso para você não alimentar ilusões a respeito do quarteto, ainda. Ontem fomos ver o filme ‘Bonitinha, mas ordinária’, com Odetinha, Fregolente, Jece Valadão etc. A música é de Carlinhos (Lyra), você ouviu antes de viajar? Gostei muitíssimo. Achei-a exótica, estranha mesmo, como se levasse a gente para lugares desconhecidos, sabe? Você gostará também, tenho certeza. Vimos também, há umas duas semanas, o filme ‘Sol sobre a lama’. Tem muita coisa boa, outras não. O seu nome eles escreveram: Vinicius de Morais. Sabe aquela música do Carlinhos (Lyra), que você escreveu a letra, “Minha namorada”? (Foi para a Nelitinha, não foi?). Pois bem, eu havia tomado nota da letra, você se lembra? E ele (Carlos Lyra) não tinha. Quando eu disse, ele ficou todo contente. Acho que ele não tem o “Pau de arara”. Todos os dias um jornal ou revista fala em você, aqui. Como vê, ninguém o esquece, nem um pouquinho. O Cruzeiro publicou uma reportagem com a sra. Helô Amado e ela achou logo um jeitinho também de falar em você. Na Manchete, creio, foi aquela francesa sorridente. Não sei se o Baden conseguiu livrar-se dela, afinal. Na Bahia, o Coqueijinho também está sem­pre falando em você. Ele ficou frustrado porque não vai poder levá-lo [a Salvador] em dezembro, coitadinho. Vou escrever para ele, dizendo que temos notícias suas. Ele ficará contente. Você continuará escrevendo para nós, não é, Vino? Cybele é meio preguiçosa e também acho que tem vergonha de escrever a você. Mas eu escreverei por ela e por mim, está bem? Se chatear muito, você diz. Outro abraço e um beijinho a Nelitinha, Susana e Tuca (ele se parece com você?). Espero que vocês continuem muito felizes, mas, por favor, não demorem muito aí, do contrário, quando voltarem, todo mundo aqui estará pálido, morrendo de saudade, juro. Cyva” (*Nota da biógrafa: apesar de as pessoas comumente chamarem Vinicius pelos apelidos “Vina” ou “Vininha”, nesta carta Cyva o chama de “Vino”, como uma forma carinhosa de tratá-lo com uma intimidade conquistada em um breve, porém intenso, tempo de amizade) PRIMEIROS PASSOS SEM O POETA As meninas continuavam os ensaios com Carlos Lyra, que já começava a preparar um repertório para uma futura apresentação. “Mas, ele mudava os arranjos todos os dias”, lembra Cyva, destacando o perfeccionismo do amigo. Ansiosas por verem seu Quarteto em Cy dar passos mais firmes, elas decidiram ir ao Programa César de Alencar, na Rádio Nacional. Mas, chegando lá, tiveram que se apresentar em trio. Cynara não queria cantar a música que as outras irmãs escolheram e não entrou na rádio. Ficou de “calundu” na porta da emissora, sentada no tronco de uma árvore enquan­to as outras três entraram. Dentro dos estúdios, elas encontraram mais do que uma simples oportuni­dade. No Conjunto do Gaúcho, que acompanhava os artistas estreantes no “Programa César de Alencar”, conheceram o violonista Carlos Castilho, irmão de Bebeto, do Trio Tamba. Esse encontro foi fundamental para o destino do Quarteto em Cy. Castilho passou a ensaiar as irmãs, fazendo arranjos e divisões de vozes mais rebuscadas e montando o repertório do primeiro disco que elas gravaram em 1964 pelo selo Forma e que levava o nome do grupo. Se, por um lado, o cenário musical dos anos 60 apresentava uma das melho­res safras de todos os tempos, transbordando novos talentos e contagiando o mundo com a grande novidade da Bossa Nova, por outro, no plano político, o Brasil vivia seu momento mais tenso. Os movimentos estudantis cresciam em todo o país, lutando por mudanças sociais, políticas e econômicas. Os setores mais conservadores da sociedade e as Forças Armadas temiam uma revolução comunista depois da renúncia de Jânio Quadros em 1961. Desconfiando da suposta simpatia que o então presidente João Goulart (Jango) poderia nutrir pelo sistema soviético de governo, em 30 de março de 1964, os militares tomaram o poder através de um golpe de estado, permanecendo no governo por 21 anos. Membro ativo do Partido Comunista, Carlos Castilho convidou o Quarteto em Cy para se apresentar na inauguração do Teatro da UNE (União Nacional dos Estudantes), na Praia do Flamengo, reduto de universitários e militantes. Apesar de não terem nenhum envolvimento político, as irmãs tinham total noção do momento conturbado que o país atravessava. Envolvida pelo clima ativista que pairava entre os jovens e também entre músicos engajados, Cyva chegou a pedir a Castilho que a levasse a alguma reunião do “Partido”, mas ele preferiu que não; disse a ela que aquilo “era coisa muito séria e complicada”, e preferiu mantê-la afastada na intenção de poupá-la de alguma forma. A performance no Teatro da UNE teria sido apenas mais uma oportunidade de exibir a novidade musical que aquele grupo vocal feminino representava, não fosse o fato de que a apresentação aconteceu no mesmo dia 30 de março de 1964. Alguns minutos após elas terem deixado o teatro, o lugar foi violentamente metralhado. Centenas de pessoas ficaram feridas e outras tantas foram presas. As meninas deram abrigo ao amigo Carlos Castilho em seu apartamento, que não ficava muito longe dali. No dia seguinte, elas viam o estrago estampado na primeira página dos jornais. Era 31 de março e o Brasil amanhecia sem Jango e sob o comando do regime militar. A ESTREIA Desde janeiro de 1964, as meninas ensaiavam exaustivamente as canções com arranjos vocais de Carlos Castilho. No repertório, músicas de Vinicius, Baden Powell, Caymmi e vários outros compositores. Os encantos e belezas de Rio e Bahia passeavam pelas quatro vozes em animados pot-pourris, fazendo uma ponte musical entre a terra onde elas nasceram e a terra que as acolheu. Castilho preparou tudo, desde os arranjos até a divulgação para a imprensa e o local da apresentação. No dia 30 de junho de 1964, o Quarteto em Cy fez sua estreia no Bottles Bar, deixando o Beco das Garrafas em polvorosa. Rosinha de Valença, com seu violão, dividia o palco com elas, que também foram acompanhadas por Carlos Castilho na guitarra, e o Copa Trio, que tinha Dom Um Romão na bateria, Dom Salvador ao piano e Manuel Gusmão no contrabaixo. O “Beco das Garrafas” ficava na Rua Duvivier, em Copacabana, e foi assim apelidado por Sérgio Porto, que, em princípio, chamava o lugar de “Beco das Garrafadas”. A pequena rua sem saída era endereço das quatro boates mais fervilhantes do Rio de Janeiro daquela época: Bottle´s Bar, Bacarat, Little Club e Ma Griffe. Incomodadas com o barulho das madrugadas, as pessoas que moravam nos edifícios acima das casas noturnas, costumavam atirar garrafas janela abaixo em sinal de protesto, atitude que acabou batizando o local. O show do Quarteto em Cy ficou em cartaz por quase dois meses em apre­sentações diárias com apenas uma folga por semana. O convívio entre os artistas que se apresentavam nas boates do “Beco” era ótimo. Nos intervalos ou depois dos espetáculos, eles transitavam entre as casas, assistindo e prestigiando as apresentações de outros artistas. Muitas vezes, alguns atrasavam seus shows para poderem ir à boate ao lado, assistir a algum colega que estivesse se apresentando. Foi assim que as meninas viram e foram vistas pela elite da música brasileira e a grande novidade que era aquele grupo vocal feminino não demorou a se espalhar pelo Brasil. ZUM ZUM Um dos ilustres espectadores do Quarteto em Cy no “Botlle´s” foi Aloysio de Oliveira, grande produtor musical e um dos maiores responsáveis pela internacionalização da Bossa Nova. Impressionado com o talento das meni­nas, ele sugeriu que elas se apresentassem em um show com o também baiano Dorival Caymmi e o conjunto de Oscar Castro Neves. A estreia, prevista para o mês de outubro de 64, teve que ser adiada. Vinicius voltou da Europa e não poderia ficar de fora. Ele fez questão de participar do espetácu­lo, o que exigiu algumas alterações no roteiro do show. Assim nasceu o antológico “Vinicius e Caymmi no Zum Zum com Quarteto em Cy e Conjunto de Oscar Castro Neves”. A boate Zum Zum também ficava em Copacabana, na Rua Barata Ribeiro, e o show esteve em cartaz entre o final de 64 e o início de 65 com casa lotada todos os dias. O sucesso foi tamanho que eles repetiram a dose em uma segunda temporada entre o final de 65 e o início de 66. Apesar de já estarem bem ambientadas com o meio artístico depois da temporada no “Bottle´s” e de também já serem grandes amigas e afilhadas musicais do poetinha, as quatro irmãs tremeram na base com a possibilida­de de dividirem o palco com aqueles que elas consideravam seus maiores ídolos. A primeira reunião para definir os detalhes do show foi marcada na casa de Caymmi e, ao chegarem ressabiadas e tímidas, Vinicius tratou logo de ir quebrando o gelo. Virou-se para seu amigo baiano e disse: “Olha lá, meu Caymmi, lá vem elas quatro; duas pra mim e duas pra você”. Foi o que bastou para que todos ficassem muito a vontade e deixassem esse clima de descontração e amizade fluir para o show. Os rebuscados arranjos de Oscar Castro Neves exigiam bastante concentração de todos, mas nem por isso eles deixavam de se divertir com as piadas e brincadeiras de Vinicius e Caymmi. Por conta de um problema na perna, Caymmi passou a usar uma bengala nessa época, mas não havia nada que abalasse seu bom humor. Nos ensaios, ele anunciava sua chegada dizendo: “Lá vem o véio do pau”. O poeta ficou encarregado de fazer as vinhetas de ligação do show e, ao apresentar suas meninas, ele cantava assim: “Essas são as minhas menininhas, são as quatro baianinhas Que eu um dia descobri: Quarteto em Cy. Se eu fosse solteiro, com as quatro eu casaria Elas sempre assim, cantando o dia inteiro só pra mim” Um dos pontos altos do show eram os diálogos entre o poeta e o baiano. Sempre de improviso, eles faziam do palco sua sala de visitas e, de forma descontraída, falavam de assuntos pessoais, mas não deixavam de dar suas cutucadas em questões políticas ou sociais. Em uma das apresentações, Vinicius, balançando seu copo de uísque, tilitando as pedras de gelo, virou-se para Caymmi e disse: “Meu Caymmi, hoje eu acordei com uma dor terrível nas pernas”. Solidário com o amigo, o baiano que, por questões de saúde, já há algum tempo, havia se tornado um abstêmio, respondeu: “É, eu sei o como é isso. Dói demais”. Com tom de preocupação e sem deixar de balançar o copo, o poeta perguntou: “Será algum excesso?” Ao que Caymmi prontamente respondeu: “Sim... de gelo”. Em outra ocasião, durante o show, Vinicius perguntou ao amigo: “Meu Caymmi, você sabe de alguém que esteja precisando de uma cozinhei­ra?” Ao que Caymmi respondeu: “Olhe, sempre tem alguém preci­sando de uma cozinheira. Você conhece alguma boa?” E o poeta foi direto: “Sim... eu. Eu cozinho muito bem e agora você sabe que eu estou desempregado...”, ironizou Vinicius que, na mesma época do show na Zum Zum, estava deixando o Itamaraty. Não era segredo que o envolvimento dele com a música popular e a boemia não era visto com bons olhos pelos dogmas diplomáti­cos do Instituto Rio Branco. Um dos maiores articuladores da saída de Vinicius do Itamaraty foi o Minis­tro das Relações Exteriores, Manoel Pio Corrêa Junior, conhecido como Pio Corrêa. No show, ele contava ao amigo: “Meu Caymmi, minha mulher me presenteou com dois pintinhos, desses bem amarelinhos...bonitinhos que só. Eu fico feito uma galinha, abraçando aqueles pintinhos para aquecê-los e sabe o que é que eles fazem? Ficam correndo atrás de mim pela casa toda, dizendo: ‘pio, pio, pio’.” A plateia ia ao delírio com a irreverência e ousadia de Vinicius. O país vivia a tensão dos primeiros momentos do regime militar, mas o poeta não se deixava calar. Aquela mistura de docili­dade, inteligência, sagacidade e poesia pareciam conferir-lhe uma certa imunidade e, enquanto pôde, ele não perdeu oportunidade de incomodar o sistema com sua principal arma: a palavra. Era a primeira vez que Vinicius e Caymmi se apresentavam juntos e, para não perder a oportunidade de deixar registrado esse que foi um dos maiores encontros musicais da época, em 1967 o show foi gravado na Rio Som e lançado em LP pela gravadora Elenco, que pertencia a Aloysio de Oliveira. Como as condições técnicas da época não permitiriam uma boa qualidade em gravação ao vivo, a solução foi reproduzir o espetáculo na íntegra em estúdio. No início da década de 90, o crítico musical Tárik de Souza contou com a assessoria de Cynara para coordenar na Polygram – que depois se transformou em Universal Music – uma série de reedições do acervo da Elenco em CD, entre eles o “Vinicius e Caymmi no Zum Zum com Quarteto em Cy e o Conjunto de Oscar Castro Neves”. Este trabalho deu uma grande contribuição para a recuperação da memória musical brasileira, apesar de, infelizmente, não terem conseguido reeditar todos os álbuns do selo de Aloysio. O sucesso do espetáculo foi tanto que, depois de receberem diversos prêmios, eles voltaram a se apresentar no final de 1965, permanecendo mais dois meses em cartaz. Na mesma época do show na Zum Zum, o Quarteto em Cy se preparava para gravar o primeiro LP do grupo. Com produção e arranjos de Carlos Castilho, o disco foi lançado pela gravadora Forma e consagrou sucessos como “Berimbau”, de Baden e Vinicius; “Aruanda”, de Carlos Lyra e Geraldo Vandré; “Reza”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, e reunia um total de 11 canções escolhidas após vasta pesquisa realizada por Castilho, que se dedicava de forma especial ao quarteto. A importância de Aloysio de Oliveira no cenário musical brasileiro é incontes­tável. Como compositor, dividiu canções como “Dindi” e “Inútil Paisagem” com Tom Jobim. Foi integrante e fundador do Bando da Lua, grupo vocal que por anos acompanhou Carmem Miranda. Enquanto produtor artístico, ele lançou nomes como Elza Soares, Silvinha Telles, Alaíde Costa, entre outros, e na carreira do Quarteto em Cy, teve especial participação. Quando assistiu às meninas no Beco das Garrafas, seu faro artístico não o enganou. Ele sabia que valia a pena apostar naquela grande novidade. Mas, além de antever o sucesso que as quatro vozes poderiam fazer, Aloysio enxergou algo mais. Aos 50 anos e já tendo passado por cinco casamentos, ele conhe­cia bem os sintomas da chegada de um novo amor. Ao mesmo tempo em que seu ouvido musical havia sido completamente fisgado pela afinação e harmonia do Quarteto em Cy, seu coração bateu em descompasso por apenas uma das irmãs. Cyva era a mais velha e tinha apenas 26 anos, mas, como já diriam Marino Pinto e Zé da Zilda, na canção imortalizada por João Gilberto: “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Durante os ensaios para o show do Zum Zum, olhares para cá, sorrisos para lá, um convite para passear e... um casamento que durou cinco anos. Apesar de apaixonada, Cyva tinha medo. A diferença de idade entre eles não a incomodava, mas sua falta de experiência sim. Ela não queria sofrer, temia que ele não soubesse lidar com sua ainda meninice. Em princípio, as outras três torceram o nariz para a relação, muito mais por ciúme da irmã do que por qualquer tipo de preconceito por ele ser tão mais velho. Mas depois reconheceram que o amor dos dois era pra valer. Mais do que marido e cunhado, como produtor e empresário do Quarteto em Cy, Aloysio foi a porta que as conduziu ao mundo. O casamento com Cyva terminou em 1970, mas a amizade, o respeito e a admiração entre eles durou para sempre. O último encontro entre Aloysio e o Quarteto aconteceu em 1994, quando elas gravavam o CD comemorativo dos 30 anos de carreira, com participação de Tom Jobim. Foi também a última vez que os dois amigos se encontraram. Tom faleceu em dezembro de 1994; dois meses depois, aos 81 anos, Aloysio também se foi. BRASIL AFORA Entre as duas temporadas do show no Zum Zum, além da gravação do primeiro LP, o Quarteto em Cy viajou muito, principalmente para São Paulo onde se apresentou inúmeras vezes. A boate Cravo & Canela, na Rua Major Sertório, era um dos principais redutos paulistanos da boa música brasileira e recebia em seu palco desde nomes já consagrados até o que havia de mais novo e promissor. A Bossa Nova era carioca, mas a Cravo & Canela ecoava para São Paulo e daí para o resto do país os melhores acon­tecimentos musicais do momento. No início de 1965, Marcos Lázaro, um dos maiores empresários do meio artístico, havia conseguido um show para as meninas em Belo Horizonte (MG) e elas precisavam de um músico que as acompanhasse. Lembraram­se do amigo Gilberto Gil, que então ocupava um cargo administrativo na Gessy Lever e estava casado com Belina, sua primeira esposa, com quem já tinha a primeira filha, Maria Gil. Ele já havia gravado alguns compactos na Bahia, e ao se mudar para São Paulo por causa do emprego na multinacional, se apresentava eventualmente em bares e boates, mas já não pensava em música profissionalmente. Ele tocava e cantava muito bem e elas achavam que seria a pessoa ideal para acompanhá-las em Belo Horizonte. Gil pegou as músicas com muita rapidez e lá se foram. Mas ele deixou bem claro: “vai ser só esse show, hein!. Eu tenho meu emprego e não vou largar”, ao que elas retrucavam: “Gil, é bom demais viver de música. Você deveria tentar.” A apresentação em Belo Horizonte durou só um dia, mas o sucesso da participação de Gilberto Gil ecoou até os ouvidos atentos de Marcos Lázaro, que não titubeou e o levou imediatamente ao Fino da Bossa e, apesar da resistência do moço, a Gessy Lever acabou perdendo um ótimo funcionário, ou melhor, cedendo um grande artista ao Brasil. Uma outra versão para o inicio de carreira de Gil conta também sobre o apoio de Elis Regina, que teria telefonado para ele na empresa, dizendo que ele havia sido indicado a ela por Milton Nascimento. Elis estava escolhendo o reper­tório para um novo disco e queria conhecer as músicas de Gil. O endereço do sucesso é assim, quando o destino decide que é chegado o momento, vários caminhos apontam para uma mesma direção. O fato é que o lugar de Gil não era sob o teto aparentemente seguro de uma multinacional, mas em cima dos palcos, como previram suas amigas Cyva, Cynara, Cybele e Cylene, e como atestou a Pimentinha. As meninas ficaram por um tempo na Cravo & Canela, onde viram e foram vistas por muitos. Foi lá que Chico de Assis as apresentou a quatro amigos que também formavam um grupo vocal, nascido no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Miltinho, Magro, Aquiles e Ruy eram o MPB4 e depois daquele encontro, as carreiras dos dois grupos se entrelaçaram para sempre em shows antológicos e até um disco de ouro com o CD “Bate Boca”, lançado pela Universal Music em 1997. Durante suas carreiras, o Quarteto em Cy e o MPB4 gravaram 5 discos juntos. Foi na mesma boate que, lá pelo fim de 65, através do mesmo Chico de Assis, elas conheceram o “Carioca”, rapaz tímido, mas muito talentoso, que nasceu no Rio, mas morava em São Paulo. Durante o dia, ele carregava os materiais da faculdade de arquitetura, mas à noite trocava tudo por um violão e já andava impressionando a boemia com suas composições. O apelido não durou muito tempo; só o suficiente para ele começar a despontar no cenário musical, carimbando a cultura brasileira para sempre com seu nome de batismo: Francisco Buarque de Hollanda. “Eu morava em São Paulo na época. Bom, eu já conhecia o Quarteto em Cy. Elas eram a grande novidade daquele tempo. As quatro garotas que o Vinicius batizou. Eu fiz amizade com o pessoal do MPB4 e eles estiveram lá. Se não me engano o Quarteto em Cy esteve junto com o MPB4 para fazer algum show... alguma coisa assim. Eu não me lembro de show deles em São Paulo. Me lembro que a primeira vez que eu os vi juntos cantando foi no show do Zum Zum. Eu estava com Sergio Porto e era um show muito bom... muito engraçado também. Tinha uma “mis en scene” assim... uma coisa que eles levantavam e abaixavam... tu du du dudu...dudu dudu dudu dudu dudu dudu... (cantarola)...uma música do Castro Neves. Enfim, eu já tinha a maior admiração pelas meninas. Eu era um estudante de arquitetu­ra que fazia música. E tinha gravado meu primeiro disquinho, com a canção ‘Pedro Pedreiro’, que era mais ou menos conhecida em São Paulo. Eu morava em São Paulo... meu apelido era ‘carioca’. Elas gravaram ‘Pedro Pedreiro’ e para mim foi uma glória. As duas primei­ras glórias da minha carreira foram as gravações da Nara, no disco dela, e a do Quarteto em Cy, que fez, se não me engano, um compacto do Pedro Pedreiro. Eu me lembro muito de uma revista, acho que ‘O Cruzeiro’, cuja capa trazia uma foto das quatro meninas fantasiadas de pedreiras (risos). E foi um lançamento nacional. Até hoje, muitas coisas, muita música, muitos artistas que estão em São Paulo ficam restritos ao público paulista e o Rio era e ainda é o centro de fusão da música. Então a minha entrada no Rio foi pelas mãos da Nara e do Quarteto em Cy com Pedro Pedreiro. Tenho impres­são até que o disco delas saiu um pouco antes do da Nara. Foi isso. Foi minha entrada na carreira artística. Tem muitas músicas minhas que elas gravaram e eu adoro. Elas gravaram um disco só com músicas minhas. Foi uma beleza. Nós tiramos uma foto aqui (no campo de futebol de Chico) com elas vestidas de Politheama (time de futebol criado pelo compositor, batizado com o mesmo nome da equipe de futebol de botão, que foi um de seus brinquedos favoritos na infância). Tem uma canção que eu gosto especialmente, delas junto com o MPB4, que é aquela valsa que eu fiz chamada “Imagina”. Aquela gravação, para mim, é primorosa, lindíssima. Mas tudo que elas fazem tem muito bom gosto. Sempre tudo muito delicado, muito bonito, desde o começo. O Quarteto em Cy, durante um tempo, meio que se dissolveu. Renasceu mais tarde. Eu não sei exatamente o que aconteceu. Não me lembro. Mas eu me lembro de que Cynara e Cybele formaram uma dupla. Me lembro muito bem do Ruy (Ruy Faria, na época, do MPB4) me falar que elas fizeram uma dupla e queriam uma música. E eu tinha feito a música ‘Carolina’ para o Festival da Globo. Mas eu não gostava muito dela. Na verdade, eu tinha uma pendenga judicial com a Globo, que estava me perturbando muito. Eu tinha largado o programa deles e eles me processa­ram. Dessa vez, por acaso, eles tinham razão (risos), então me propuse­ram, como acordo, que eu pusesse uma música no festival. Eu disse: ‘tá bom, vou botar essa música que eu fiz, parte no aeroporto e tal’. Tinha feito a música, com a letra assim num papel de aeroporto. Eu não estava especialmente orgulhoso da música. Aí eu disse: ‘ô Ruy, eu tenho uma música que fiz para botar no festival, mas eu não gosto muito dela (risos). Ele disse: “Ah, não faz mal não”. Porque elas precisavam ter uma boa vitrine e o festival seria bom para a dupla se lançar. Foi muito engraçado, porque eu estava em Salvador, Bahia, e tinha um amigo meu que lembrou: “Ah, hoje é o dia do festival da Globo”. Eu estava inteiramente desligado. Estava de férias lá. Aí ele conseguiu sintonizar em ondas curtas. Lá na Bahia não estava chegando direto o festival. Eu ouvi pelo rádio as meninas cantando. Eu não tinha ouvido antes. Ouvi a Cynara e a Cybele cantando ‘Carolina’. Achei bonito e pensei: ‘olha, minha música é bonitinha’ (risos). E foi um sucesso. Eu me lembro de ouvir, assim, no rádio, e o público aplaudir muito, o contrário do que aconteceu com ‘Sabiá’. Olha, foi uma grande surpresa pra mim. Eu não acreditava que fosse estourar. Muito menos num festival competiti­vo, como eram os festivais da época. Com torcidas e tal. E não era uma música que parecesse, a princípio, uma música de festival. Não tinha assim aquela coisa do impacto. Era um samba lento, meio melancólico. Eu pensei: ‘bom, não tem chance nenhuma’. E foi um estouro a ‘Carolina’. No ano seguinte, ‘Sabiá’. Eu, mais uma vez, não estava aqui. Estava viajando na Europa. Aí recebi um telegrama do Tom: ‘Chico, por favor, volte. Você tem que estar comigo’. Uma coisa assim meio fora do tom do Tom (risos). Eu achei que era brincadeira dele. Aí eu telefonei para o Brasil. Na época, era difícil. Falei com alguém, acho que com meu empresário, que me disse: ´Olha, tenho duas notícias. Uma boa e uma não boa. A boa é que ‘Sabiá’ ganhou (risos). A ruim é que foi muito vaiada. Foi vaiadíssima’. Aí eu enten­di o telegrama do Tom e vim para o Brasil. Cheguei aqui no dia da final internacional. Aí já não havia mais vaias. Eu fiquei sabendo o que tinha acontecido, que tinha a música do (Geraldo) Vandré, que o pessoal preferia, principalmente os mais politizados. Os estu­dantes tomaram aquilo como uma espécie de hino, uma contraposição assim mais radical. ‘Sabiá’ ficou sendo vista como uma canção alienada, fora da realidade política. Eu não tinha nenhuma intenção política com ‘Sabiá’. Realmente não tinha nenhuma, por mais que fosse uma alusão à ‘Canção do Exílio’ (poema de Gonçalves Dias). Mas, enfim, não estava fazendo alusão nenhuma aos exila­dos brasileiros. Senão seria uma canção premonitória, porque, na verdade, havia exilados, mas o problema do exílio de grande parte da juventude brasileira começou a partir de 1968, com o AI-5. Então, eu não fiz uma letra pensando nisso. Eu cheguei lá esperando: ‘vou dividir as vaias’. Pensava nas duas meninas lá, coitadas, frágeis. A Cynara e a Cybele ali naquele palco do Maracanãzinho. Aquela coisa grande. Aí falei: ‘vou dividir com elas e com o Tom. Vou pegar a parte que me cabe nessa vaia’. Mas não houve porque já havia diluído o problema, a disputa. Aí já virou o Brasil contra o resto do mundo e a torcida era pelo Brasil. Depois, teve a censura à música ‘Tamandaré’. Aloysio de Oliveira era produtor delas. Ele fez uma força danada para liberar a música. Queria que elas gravassem. E, na época, não existia uma censura oficial, mas a música era considerada ofensiva às Forças Armadas, porque falava do Almirante Tamandaré, que era a cara que aparecia na nota de 1 cruzeiro. A brincadeira com a nota de 1 cruzeiro. Aí parece que o pessoal da Marinha ficou melin­drado e a música foi vetada. Nesse tempo todo, além do trabalho, criou-se uma amizade. Com a Cylene, eu tive pouco contato. Eu tive algum contato com ela no começo, quando eu conheci o Quarteto em Cy original. E, na época, eu lembro de sairmos muito, porque também começou o MPB4 muito próximos delas. Eram os garotos e as meninas (risos). Até hoje são. Enfim, nós saíamos bastante. Eu lembro de algumas noites tomando chopp no Castelinho e, mais tarde, volta e meia a gente se cruza por um ou outro motivo, musical e não musical. Encontros nas situações mais diversas. E, hoje em dia, eu passo metade do tempo correndo atrás dos filhos da Cynara aqui no futebol (risos). A música brasileira, nos últimos 40 anos, passou por muitos altos e baixos. Elas seguraram a onda legal. Estão aí firmes... Por quê? Porque têm uma qualidade musical que ninguém pode contestar. Por que elas permanecem juntas? Deve haver uma consciência profissional, uma harmonia de temperamentos. Elas são tranquilíssimas. Nunca me passou pela cabeça ter algum tipo de problema com elas. Elas sempre foram muito doces. E isso passa um pouco na música que cantam. Essa mesma doçura delas. Diferentes umas das outras, Cynara, Cyva, Cybele e outras que passaram. Me lembro da Dorinha, a Sonia (que faz parte do grupo até hoje), Sandra, Regina Werneck. Todas entraram no clima do Quarteto em Cy. Fizeram parte dessa entidade. Tem muita coisa para lembrar... Lembrar do carinho que sempre houve. Lembrar que uma noite, no Castelinho, há mais de 40 anos, eu pensei que fosse namorar a Cybele (risos), porque achei que ela estava corresponden­do ao meu pé debaixo da mesa. A mesa era redonda assim (faz um círculo com a mão) e eu olhava para a Cybele, mas a cara dela não tinha nada a ver com o pé (risos). A cara era séria e o pé era brincalhão. E o pé ficava passando assim no meu pé e eu passando o pé no pé. E eu pensava: ‘engraçado, a Cybele tem uma cara que não corresponde ao pé’ (risos). Eu fiquei desconfia­do, porque tinha mais gente. Tinha a Rosinha de Valença, o MPB4, estava o Toquinho do meu lado e tinha um empresário do meu lado direito e a Cybele meio assim na diagonal. Aí a mesa era redonda, grande assim, e eu não tinha jeito de me distanciar prá ver realmente se era o pé da Cybele. Porque era o pé da Cybele, mas não era. Não tinha nada a ver com a cara dela. Eu achei que rolava uma paquera, mas a paquera era unilateral (risos). Eu achei que ela estava correspondendo pelo pé. Achei que ela era muito tímida. Então, o olho não correspondia aos meus olhares. Daí, eu virei para o Toquinho, que estava à minha esquerda, e falei: ‘disfarçadamente, daqui a pouco, você olha por debaixo da mesa e vê se é o pé da Cybele que está namorando o meu pé’. E fiquei assim, porque eu não podia olhar. Ficaria muito ostensivo. Passaram-se uns dois minutos, dali a pouco eu vejo o Toquinho se abaixar, levantar e dar uma gargalhada. Não era o pé da Cybele, era o do empresário (risos). Aí, ficou por isso mesmo.” O PRIMEIRO ANO Depois da estreia no Beco das Garrafas, as coisas começaram a acontecer numa velocidade meteórica para as baianinhas de Vinicius. Entre a ponte aérea Rio – São Paulo e a gravação do primeiro disco somaram-se os encon­tros, nasceram projetos e fortaleceram-se parcerias que não somente foram significativas para a carreira do grupo, mas se tornaram emblemáticas para a música popular brasileira. Cravo & Canela não foi apenas o lugar onde as meninas do Quarteto em Cy foram apresentadas aos meninos do MPB4. Ali mesmo os dois grupos começaram a ensaiar um pot-pourri de sambas antigos, idealizado por Chico de Assis. As oito vozes se encaixaram com perfeição, marcando o início de um encontro musical que se repetiu em vários momentos das carreiras dos dois grupos em apresentações antológicas, e que acontece até os dias de hoje. Chico de Assis mostrou o pot-pourri do octeto a Nilton Travessos que, na mesma hora, os convidou a participarem do “Fino da Bossa”, programa dirigido por ele, juntamente com Manoel Carlos, Solano Ribeiro e Tutinha, na antiga TV Record e que era apresentado por Jair Rodrigues e Elis Regina. Se, separadamente, os dois grupos já vinham arrancando suspiros das plateias por onde se apresentavam, juntos chegavam a causar espanto, não apenas pela harmonia, mas pela técnica e até ousadia vocal. Em uma semana ensaiaram e montaram o espetáculo “No Samba que eu Vou” e se apresentaram na boate Le Club, em São Paulo. O sucesso foi tremendo e o faro sempre aguçado de Aloysio de Oliveira não deixou escapar a oportuni­dade de montar um show com os oito também no Rio de Janeiro. Foi assim que nasceu o espetáculo “Contraponto”, que, além do octeto, contava também com Rosinha de Valença, Norma Benguel e o Conjunto de Oscar Castro Neves. O show ficou em cartaz na boate Zum Zum por algumas semanas e selou para sempre a relação musical entre os dois grupos, que, juntos, passaram a ser apontados ao longo de todos estes anos como as principais referências nacionais entre os grupos vocais, como se um se tornasse o sobrenome do outro, cada vez que são citados. Se até hoje eles ainda são conhecidos como as meninas e os meninos do Quarteto em Cy e MPB4, em meados de 1965, eles de fato eram meninos e meninas com seus pouco mais de vinte anos de idade cada um. A unidade deles no palco era tão harmoniosa que não demorou para que tanto o público como o próprio meio artístico imaginasse a possibilidade de que aquele “namoro” se estendesse para além da música. Apesar dos tempos difíceis e duros que se iniciavam com a ditadura política, os corações ainda eram românticos e qualquer possibilidade de amor merecia crédito. Aqueles oito pares de olhos procuraram se ver de forma diferente e se deram à tentativa. Num passeio ao cinema, lá se foram eles: Miltinho e Cybele, Aquiles e Cylene, Magro e Cyva, Ruy e Cynara. Mas, dos quatro casais, apenas um levou a história adiante. Ruy e Cynara foram parar no altar e mergulharam num casamento que durou 12 anos, 3 filhos e 4 netos. Apesar de terem se separado no final dos anos 70, a amizade, respeito e carinho entre os dois os torna, ao lado dos filhos e netos, um exemplo de família já incomum nos dias de hoje. Em 2004, depois de 40 anos, Ruy deixou de integrar o MPB4, lançando-se em carreira-solo e também num belíssimo trabalho em dupla com Carlinhos Vergueiro que lhes rendeu o CD “Só Prá Chatear”, gravado em 2005. As participações especiais de Ruy em shows do Quarteto em Cy, ao lado dos filhos João e Chico Faria, que acompanham o grupo tocando cavaquinho e contrabaixo, são sempre muito esperadas e merecidamente aplaudidas. “O MPB4 é posterior. Nós começamos depois que o Quarteto em Cy já havia chegado da Bahia e gravado o primeiro disco. Me lembro que senti muita raiva porque eu tinha feito um arranjo de “Reza”, do Edu Lobo e Ruy Guerra, para o MPB4, e depois ouvi no rádio que elas estavam cantando essa mesma música com um arranjo muito parecido com o meu (risos). Em julho de 1965, fomos a São Paulo para tentar ver o que aconteceria com o MPB4. O Chico de Assis, grande dramaturgo e teatrólogo que nós conhece­mos através do Sérgio Ricardo, nos apresentou a várias pessoas, inclusive ao Chico Buarque e ao Quarteto em Cy, e foi uma coisa muito interessante, porque elas eram nossa referência vocal feminina. Na época, não existia nenhum grupo vocal exclusivamente feminino. Assim que o Chico de Assis nos colocou em contato com elas, já bolou a possibilidade de um show e aí fui saber que quem fazia os arranjos para elas era o Carlos Castilho, irmão do Bebeto Castilho, do Trio Tamba. Começamos a ficar em contato e surgiu até uma possibilidade de namoro. Claro, éramos quatro rapazes e elas quatro meninas, todas muito bonitas, as baianinhas. Mas, dos quatro casais, só restou a relação do Ruy com a Cynara. Começamos a ensaiar na Cravo & Canela, uma casa noturna na Rua Major Sertório, em São Paulo, onde o Sérgio Ricardo se apresentava ao violão, acompanhado por um músico paulista chamado Nanini. Com a proposta de Chico de Assis, eu comecei a preparar uns arranjos para cantarmos algo junto com o Quarteto em Cy. Para mim, isso era uma curtição tremenda. Elas já eram profissionais e nós estávamos começando. O MPB4 foi forma-do no CPC (Centro Popular de Cultura) do Rio de Janeiro. Éramos o Quarteto do CPC e tivemos que mudar de nome após o golpe militar de 64. Tivemos um grupo instrumental na faculdade que se chamava MPB5. Como tínhamos que dar outro nome ao quarteto, escolhemos MPB4. Tenho a impressão que foi a primeira vez que se usou essa sigla MPB (Música Popular Brasileira). Nós entramos profissionalmente no meio artístico através do Chico de Assis mesmo. Ele bolou um pot-pourri grande de sambas e eu fiz os arranjos para cantarmos a oito vozes com as meninas. Ele mostrou ao Nilton Travessos, que, na época, dirigia o Fino da Bossa. Daí foi um sucesso. Uma coisa absolutamente inesperada. Me lembro que, quando chegou a hora de nós voltarmos para Niterói, o Chico de Assis falou: ‘ou vocês vão lá e dizem para os seus pais que não vão mais ficar, ou ficam por lá de vez’. Tivemos que tomar essa decisão. Chegamos a fazer um show com elas na boate Le Club, que ficava onde hoje é a Galeria Metrópolis, na Av. São Luiz, no centro de São Paulo. Era um lugar muito chique. Foi nosso primeiro trabalho profissional. O Aloysio de Oliveira viu esse show. Ele era dono da Elenco, que era a gravadora mais importante da época, gostou muito de nós e chamou o Quarteto em Cy e o MPB4 para fazerem um espetáculo na boate Zum Zum, no Rio de Janeiro. O nome do show era “Contraponto”. Tinha participação da Rosinha de Valença, do Conjunto Oscar Castro Neves e da Norma Bengel. Ficamos juntos por um bom tempo. Depois, a vida foi levando cada grupo para um lado. Cheguei a fazer alguns arranjos vocais para elas até que, por volta de 76, surgiu a possibilidade de fazermos outro show, chamado “Cobra de Vidro”. Foi um espetáculo realmente memorável. Acho que foi o ponto alto na carreira do MPB4, e creio que na do Quarteto em Cy também. Era um musical, estreando o Túlio Feliciano como diretor. Uma ousadia em termos de produção, porque tínhamos só o apoio de uma companhia de seguros, que era o único dinheiro extra que entrava. O resto era tudo bilheteria. Era um show multimídia. Tinha projeção de slides, filmagens de super-8. Eram projetados making offs durante o show. O cenário era formado por telas para projetar os slides e filmes. Uma produção caríssima toda banca­da por nós mesmos. E conseguimos ganhar dinheiro com esse show. Eram vinte pessoas viajando de avião, mais dois caminhões por terra com o cenário. Coisa que hoje é impossível fazer. Foi o Chico Buarque que conseguiu a definição de ‘Cobra de Vidro”. É tam­bém uma música dele com o Ruy Guerra. Era um cientista alemão que fez uma experiência com uma espécie de lagarto, que ele partia e cada parte passava a ter vida própria. Era isso que fazíamos no show. Dentro do octeto, fazíamos várias formações que iam se alternando. A formação do Quarteto em Cy nessa época era Cyva, Cynara, Sonya e Dorinha. Esse show foi realmente um marco para nós. Ele terminava com a fuga à capela, da Bachiana nº 8, de Villa Lobos. Esse arranjo me deu um trabalho danado. As pessoas que viram não se esquecem. Viajamos o Brasil todo e, em todos os lugares, tivemos casa lotada. Nessa mesma época, nós gravamos com elas ‘Noites Cariocas’, com arranjo do Luiz Cláudio Ramos, para uma televisão alemã. Em 97, nos juntamos novamente para fazer o show ‘Bate Boca’, que tam­bém teve direção do Túlio Feliciano e rendeu o CD, que foi disco de ouro por causa da música ‘Falando de Amor’, que era tema de uma novela da Globo (Por Amor). Depois disso, fizemos mais dois trabalhos, o ‘Somos Todos Iguais’, com músicas do Ivan Lins e Djavan, e, em 2002, ‘A Arte do Encontro’, em homenagem a Vinicius de Moraes. Me lembro de uma época em que o Quarteto em Cy passou por uma mudança na formação e ficou sem Cynara e Cybele. Elas participaram de um espetáculo conosco no Teatro Opinião, que se chamava “Baco Bufo no Katerefofo” e que teve também a participação do Sidney Miller. Era época da ditadura, mas nós não desistíamos. Esse show muitas vezes teve mais gente no palco do que na plateia. Mas nós continuamos firmes. Vivemos muitas coisas juntos e eu gosto de tudo. Dos arranjos que eu fiz para o octeto, tenho especial carinho pelo “Bate Boca”. Foi um desafio e tanto. Uma música inédita do Tom para o Chico colocar letra e que ele não tinha colocado. Algum tempo depois, ficamos sabendo que a tal letra existi­ria e que a Miúcha teria uma cópia da letra feita pelo Chico. Essa é a história que me contaram. O Chico diz que, depois da gravação que nós fizemos, não caberia mais letra. Já há algum tempo, o mercado tem ficado escasso para o tipo de música que nós fazemos, mas eu acredito que tanto o MPB4 como o Quarteto em Cy e vários outros artistas sobrevivem porque ainda existe um público que não aceita essa massificação e que é fiel ao nosso trabalho. Tem gente que vai nos ver onde nós formos. Infelizmente, hoje a mídia é muito corrompida e coloca os valores comerciais muito acima dos artísticos. Todas as formações do Quarteto em Cy foram muito boas, mas eu tenho especial carinho pela primeira, ainda com a Cylene. Ela tinha uma voz maravi­lhosa e uma percepção musical incrível. O disco que elas gravaram com o Trio Tamba eu acho antológico. Tem duas músicas que são um exemplo de como se pode fazer um arranjo dificílimo, que são ‘Arrastão’, do Edu Lobo, e ‘Das Rosas’, de Dorival Caymmi. No arranjo vocal, o Luizinho Eça inventa, faz umas voltas. Ele deve ter enlouquecido e elas seguiram tudo direitinho. Acho que o Luizinho Eça deve ter tirado o couro delas naqueles arranjos (risos). A formação delas no ‘Cobra de Vidro’ também me traz ótimas lembranças. A Dorinha realmente era um elemento muito importante. Além de ser afinadíssima, tinha um grave muito bonito. Então são ‘Quartetos em Cy’ que me trazem muitas lembranças. O que eu tenho a acrescentar é que eu amo as meninas. Amo o Quarteto em Cy.” LIBERDADE, LIBERDADE O ano de 1965 parecia ter menos dias do que o necessário para a quanti­dade de compromissos na agenda do Quarteto em Cy. Show no Zum Zum com Vinicius e Caymmi (duas vezes), Cravo & Canela em São Paulo, “Fino da Bossa” e “Contraponto” com MPB4, além da gravação do primeiro LP. Tudo tinha que acontecer com rapidez e muita qualidade. Nesse mesmo período, Paulo Autran, Oduvaldo Vianna Filho, Nara Leão e Tereza Rachel abalavam as estruturas do Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, com a peça “Liberdade, liberdade”, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Extremamente político, o texto bem humorado e contundente de Millôr questionava o conceito de liberdade através da história, fazendo um passeio crítico por fatos que tinham como protagonistas desde Sócrates – o filósofo – a Moreira da Silva – o malandro – provocando a ira do General Castelo Branco, então Presidente da República, para quem qualquer manifestação contra a ditadura instaurada e a situação política do país era veemente­mente proibida. Durante um período, Nara Leão precisou se ausentar das apresentações. Assim, o Quarteto em Cy foi convidado a substituí-la. Antes de ser censurada, “Liberdade, liberdade” foi vista e aplaudida por muita gente. O espetácu­lo era um musical e utilizava canções nacionais e internacionais bastante conhecidas que, em alguns casos, ganhavam e, em outros, reforçavam uma conotação política ao serem inseridas no contexto da peça. Desde “Marcha da Quarta-feira de Cinzas” (Carlos Lyra e Vinicius de Moraes), passando por “Aruanda” (Carlos Lyra e Geraldo Vandré), até “Summertime” (George Gershwin e D. Heyward), entre diversas outras canções, o repertório eclético em ritmo e estilos tinha em comum o único objetivo de protestar contra o regime ditatorial que assombrava o Brasil. Nossas meninas estavam amadurecendo e começavam a mostrar que a doçura harmoniosa de suas vozes podia também defender os mais nobres ideais políticos. As apresentações de “Liberdade, Liberdade” aconteceram no mesmo período que a segunda temporada do show com Vinicius e Caymmi no Zum Zum. Mas os espetáculos no Teatro Opinião começavam mais cedo. Por isso, as meninas conseguiam conciliar os horários. A segunda temporada no Zum Zum também tinha suas peculiaridades. Os elogios da crítica, somados aos influentes conhecidos do poeta, faziam com que o espetáculo fosse sempre visto por muitas celebridades e algumas, claro, mereciam certas regalias. Para que Manuel Bandeira pudesse vê-los, já perto de seus 80 anos de idade e com a saúde comprometida, foi preciso que a sessão começasse mais cedo. Afinal de contas, ele era amigo do rei. Havia também os espectadores de plantão, que batiam ponto na Zum Zum assistindo ao show várias vezes, como era o caso dos inseparáveis Chico Buarque e Toquinho, que na época moravam em São Paulo e não se intimi­davam com a distância, nem com o desconforto do Fusca, que os conduzia fielmente nas inúmeras viagens que faziam para verem seus ídolos de perto. Claro que, no caso de Chico, além da inegável admiração por Vinicius, Caymmi e Quarteto em Cy, a paixão platônica por Cybele era um bom aditivo àquela disposição tresloucada de enfrentar com tanta frequência as centenas de quilômetros que separavam São Paulo do Rio de Janeiro. Depois das apresentações na Cravo & Canela, em São Paulo, as meninas foram contratadas pela TV Record para o Fino da Bossa. Elas moravam no Hotel Normandy, onde por muitas vezes tiveram a companhia da mãe, D. Iazinha, que passava algumas temporadas com elas por lá. De volta ao Rio e depois de muita insistência, conseguiram convencer D. Iazinha a viver com elas em Copacapana, no apartamento que dividiam na Rua Bolívar. Apegada ao trabalho no cartório de notas, que ficou sob sua responsabilidade depois da morte do marido e também às amizades de Ibirataia, a matriarca da família Sá Leite não tinha a menor vontade de trocar aquela tranquilidade pela loucura de viver no Rio, mas foi vencida pela saudade e preocupação com as filhas, que agora já trilhavam um caminho de sucesso na grande cidade, e acabou por ceder. Cybele estava noiva de Marcílio Freire, com quem se casou em 1969 e teve um filho. Por isso não ligava a mínima para as investidas de Chico. A timidez do rapaz também não permitia que as tentativas fossem tão efusivas. Ele se limitava a procurar cruzar olhares ou a estar em companhia dela o máximo possível. Por isso, não eram raras as ocasiões em que a buzina do heroico Fusca ecoava pela Rua Bolívar em frente à porta das meninas. D. Iazinha espiava e dizia: “é aquele moço de novo”, ao que muitas vezes as quatro, tentando proteger-se da insistente visita, que elas bem sabiam que não era exatamente para o grupo todo, respondiam: “não abra, não abra. Diga que não estamos”. O episódio do equívoco no namoro entre pés, debaixo da mesa, quando Toquinho delatou a paixão platônica do amigo na escancarada gargalhada, pode ter sido o ponto final dessa história de amor que nunca começou. Hoje, eles se lembram com muito bom humor daqueles tempos. Todos se encontravam não só para fazer música, mas para jogar boliche, tomar chope à beira da praia vendo o sol nascer e a vida fluir. SOM DEFINITIVO Em meio a tantos compromissos com shows, gravações, participações em programas de tevê e de rádio, o Quarteto ia adquirindo tarimba, mas suas integrantes sabiam muito bem que palcos e flashes não eram suficientes para construir um trabalho de qualidade. Agora, sob a batuta de Luizinho Eça, as meninas ensaiavam quase diariamente e os arranjos, compostos pelo virtuoso pianista do Trio Tamba, ao mesmo tempo que dava ao grupo uma grande evolução técnica e harmônica, fazia as meninas transpirarem com tanta exigência e perfeccionismo musical. Não era fácil, mas elas davam conta do recado. Os ensaios também tinham seus momentos de folga e eles eram normalmente temperados com o talento culinário de Luizinho. O maestro, que faleceu em 1992, deixou para o Brasil e para o mundo, um rico legado musical com suas inúmeras composições e arranjos. Para o Quarteto em Cy, além de um importantíssimo trabalho de técnica harmônica vocal, Luizinho deixou deliciosas receitas que até hoje fazem sucesso, principalmente na cozinha de Cynara. O Trio Tamba nasceu no início dos anos 60. A primeira formação foi com Luizinho Eça, no piano, Otávio Bailly, no contrabaixo, e Hélcio Milito, na bateria. Bebeto Castilho, irmão de Carlos Castilho – que foi o primeiro arranjador do Quarteto em Cy – substituiu Bailly, tocando também saxofone e flauta, além de contrabaixo. Era com essa formação do Trio que as meni­nas ensaiavam e com quem gravaram o segundo LP, “Som Definitivo”, ainda em 1965, produzido por Dido Gebara. “Apesar de eu ser irmão do Carlos Castilho, foi o Luizinho Eça quem nos falou do Quarteto em Cy. Começamos a ensaiar com elas e era muito fácil trabalhar com as meninas, porque elas também são músicos. É preciso ter sentido harmônico e isso nunca faltou a elas. Em 1965, começamos a gravar o “Som Definitivo”. Naquele tempo, não havia mixagem. Os recursos de gravação eram escassos, mas, mesmo assim, não foi difícil gravar com elas. Eram afinadíssimas. Eu me lembro muito dos ensaios. O Luizinho fazia os arranjos e ia passando as vozes de cada uma. Ele era muito exigente e ficava louco da vida porque enquanto ele passava as vozes para a Cynara, Cybele e Cyva, a Cylene ficava sentada lendo gibi. Parecia totalmente ausente daquilo tudo. Uma vez o Luizinho chegou a arrancar o gibi das mãos dela. Mas era impressionante quando ele as chamava para juntarem as vozes, pois Cylene fazia tudo direitinho. Só precisava ouvir uma vez para aprender. Uma musicalidade incrível. Havia muita amizade, muita cumplicidade. Ensaiávamos quase todos os dias e a casa do Luizinho era conhecida como Farol do Leblon. Todo mundo ia para lá. Nos apresentamos com elas no Teatro Santa Rosa. Em 76, fiz “Cobra de Vidro” com Quarteto em Cy e MPB4. Eles faziam uma dança dos microfones, que era uma performance incrível. Uma coreografia que entrelaçava os microfones enquanto cantavam. Depois, faziam tudo de volta, desfazendo o emaranhado de fios. Tinha dias que eu quase chorava no palco de tanta emoção. Acho que esses foram os dois shows mais lindos que eu fiz na vida. Em 1964, entramos na idade das trevas, depois do golpe militar, mas a criatividade e a produtividade musical eram latentes. Hoje, o consumismo e imediatismo dominam o mercado, mas ainda há quem valorize o que é bom. O que faz o Quarteto em Cy sobreviver, além da inegável qualidade musical, é a maturidade e, principalmente, o controle do ego.” A PRIMEIRA MUDANÇA O ano de 1966 começou com a primeira mudança na estrutura do grupo. No mês de abril, Cylene, que namorava o estudante de medicina Osmar Chakur, ficou grávida de sua primeira filha, Andréa, e, entre a música e a maternidade, deu adeus aos sustenidos e bemóis. Na formatura de Osmar, Cilene ainda amamentava Andréa e se lembra do constrangimento que sentiu ao molhar de leite o vestido emprestado pela amiga Ceres. Nos bate-papos descontraídos depois dos ensaios na casa de Luizinho Eça, quando eles conversavam sobre o que esperavam para o futuro, entre os sonhos de sucesso e de uma carreira artística promissora, Cylene surpreendia a todos quando revelava que o que ela queria mesmo era casar e ter filhos. Ela dizia: “eu quero ser mãe pura”. E com essa singeleza para expressar que queria ser apenas mãe, arrancava risos da turma toda. E assim foi. A mais nova das “Cy” se mudou para Araraquara, no interior de São Paulo, onde Osmar já tinha em­prego garantido após a formatura e de lá passou a acompanhar a trajetória das irmãs. Estudou Pedagogia e fez diversos cursos de especialização. Dedicou-se à família e à educação e nunca mais cantou profissionalmente. Como ela mesma diz no memorial que escreveu em 1999, “deixei o quarteto para formar uma dupla. Uma dupla que era um trio em gestação. Meu marido, minha filha Andréa e eu”. O trio se transformou em um novo quarteto na vida de Cylene com o nascimento da segunda filha, Gabriela; depois vieram Paloma e Pablo. Cilene, cujo nome originalmente se escreve com “i”, havia assumido o “y” profissionalmente, mas agora a letra fazia parte de um doce e curto passado musical. Com Osmar e os quatro filhos, ela conseguiu ser “mãe pura”, mas também trilhou uma brilhante carreira acadêmica, entregando-se aos estudos e à especialização na área de educação, outra paixão que ela sempre carregou. “Quando chegamos ao Rio de Janeiro, eu trabalhava numa agência de empregos como recepcionista e estudava à noite e apareceu a oportunidade de cantar. Eu e Cynara já havíamos ganhado um prêmio em Salvador e ficamos contratadas como profissionais (da TV Itapuã). No início do Quarteto, era tudo muito solto. Não havia grandes pretensões de profissionalismo. Eu tinha uns 15 anos e, na época, não era muito ligada nem em música, nem em literatura. Eu conhecia o Vinicius de nome, mas não tinha grandes amores por ele, até porque não dimensionava muito o que representava essa ligação. Fomos chamadas para fazer a trilha do filme do Alex Vianny (‘Sol Sobre a Lama’, de 1963) e, então, ele gostou muito de nós. Ele era um cara incrível. Eu era muito nova e, sinceramente, minha impressão era de que aquilo não ia dar em nada. Nós fomos para o Rio muito à toa; não tinha uma coisa fixa, eu só estava esperando sobreviver. Aí apareceu essa oportunidade com música, que nós sempre gostamos muito e foi maravilhoso. Parece que quando o tempo passa e nós amadurecemos, certas coisas que acontecem na nossa vida tomam outro significado. Acho que tive uma oportunidade ímpar que pouquíssimas pessoas têm. Isso agora posso reconhecer. Foi uma época realmente fantástica! Minha mãe gostava muito de música e me dizia que tocava violão quando morava com meus avós na fazenda. Eu tinha um violão em casa e às vezes ela pegava para ficar dedilhando, mas não saía quase nada. Já havia esquecido. Com o show do Zum Zum, a coisa começou a engrenar, mas tenho a impressão de que entre nós quatro quem menos estava envolvida era eu mesma. Meu negócio era estudar. Estava fazendo o terceiro colegial. Me lembro que passamos uma época em São Paulo, quando nos apresentamos na boate Cravo & Canela e, nos dias em que não havia espetáculo, eu ia para o Rio para fazer as provas e colocar os estudos em dia, porque eu estava matriculada lá. Então eu ficava pra lá e pra cá. É claro que eu gostava da vida de artista, mas realmente era a mais desliga­da de todas. Acho que eu pegava fácil os arranjos, mas agora já não me lembro de nada. Às vezes elas me aprontam umas surpresas de me chama­rem ao palco para dar canja. Eu morro de medo dessas surpresas, porque eu não me lembro mais de nenhuma das letras (risos). Minha separação do Quarteto foi uma situação muito desagradável para mim. Foi conflituoso, porque eu não queria sair numa época em que o grupo estava precisando de mim. Por outro lado, não podia seguir em frente e deixar meu amor de lado. Me lembro que o Quarteto estava com uma viagem marcada para os Estados Unidos. Eu engravidei, não propositalmente, numa viagem que fiz com Osmar à Bahia para mostrar a ele a minha terra. Foi chato demais ter que conversar com elas, mas, em comum acordo, achamos que seria melhor eu não continuar. Claro que eu poderia me dispor a viajar; eu estava com dois meses e meio de gestação, mas acho que para minhas irmãs seria uma situação insegura. Osmar não se opunha de forma nenhuma. Ele era o maior fã e ia sempre nos ver onde nós estivéssemos. Ele jamais me colocou no tipo de situação ‘ou elas ou eu’. Ele ficou chateado quando soube que haveria a possibilidade de eu ir viajar, antes de sabermos da gravidez, mas nunca me deu ultimato. Eu mesma achei que era hora de sair e minhas irmãs também. Há mais de 40 anos era outra época. As coisas tomavam um vulto enorme. Se fosse hoje, talvez eu não tomasse essa decisão e nem elas, talvez levássemos a coisa mais naturalmente. Eu não me arrependo da minha saída. Foi uma coisa pensada. Eu tinha o meu amor e estava investindo na minha relação com ele. A minha carreira como professora universitária também foi muito feliz. Tive muitos ganhos, tanto intelectuais como afetivos. Muitos e muitos e muitos filhos nos meus alunos. Tive uma carreira muito boa, na qual conquistei tudo o que quis. Se tivesse sido diferente, talvez eu me arrependesse de haver saído do Quarteto, mas não foi isso que aconteceu. Eu fiz Pedagogia e depois várias especializações em Psicologia Cognitiva, mestrado em Educação, doutorado em Psicologia Escolar, pós-doutorado e livre-docência. Aí achei que já havia chegado onde queria e parei (risos). Aposentei em 2007, mas ainda participo de congressos nacionais e inter­nacionais como palestrante. Também estou escrevendo academicamente e agora quero me dedicar a escrever livrinhos infantis. Minha paixão sempre foi Educação. Uma coisa da qual nunca vou me esquecer, é a morte do meu marido Osmar. Aconteceu em 1996, justamente quando eu estava indo à Genebra, na Suíça, para um congresso. Por essas coisas inexplicáveis, o Quarteto em Cy estava vindo à Araraquara, onde eu moro, para se apresentar. Meu marido teve um ataque cardíaco quando eu estava já no voo de ida e minhas irmãs estavam aqui. Era como se estivessem cobrindo a minha ausência naquele momento. Eu nem bem cheguei lá e tive que voltar. Cheguei no dia seguinte, já para o enterro. Elas ainda iam fazer o show. Foi terrível para elas. Do convívio com o Quarteto, me lembro de várias coisas boas, mas algumas situações foram especialmente engraçadas. Uma, que eu odiava, era que o Chico de Assis me pegava depois do ensaio para fazer exercícios para ‘soltar o corpo’, porque ele dizia que eu era muito dura de movimentos (risos). Então, me fazia ficar um tempão mexendo as mãos para cima. Outra história aconteceu quando eu era bem mocinha. Tranquei-me no banheiro do “Zum Zum” porque disseram que o juizado de menores estava lá. Levei minha inseparável revistinha em quadrinhos, claro (risos). Isso foi depois do show e acho que minhas irmãs, para me castigar, se mandaram, então o Simonal (o cantor Wilson Simonal) me levou em casa e eu fiquei morrendo de vergonha. A terceira história é que o Dom Um (Dom Um Romão, baterista) resolveu me dar aulas de bateria nos intervalos dos shows. Só que o meu pé não combinava com a minha mão e era um desastre (risos). Não adiantou ele insistir, porque eu desisti logo. Lembro, também, de uma cena inusitada: em uma das temporadas de show no Zum Zum com Vinicius e Caymmi, pouco antes do show, entrei no banheiro feminino e lá estava Vinicius penteando o cabelo quase todo para um lado só, como de costume. E ele me olhou como se eu é que tivesse errado de porta: ‘Hiiii, Cileninha!’. Hoje, minha relação com o Quarteto em Cy se dá, obviamente, pelo contato com minhas irmãs e quando tenho a oportunidade de assistir a algum show delas, o que quase sempre acontece quando elas vêm a São Paulo. Mas, guardo com muito carinho as lembranças do tempo que fiz parte do grupo e de tudo que vivemos juntas nos palcos, estúdios, ensaios e tantas outras situações, tanto sozinhas como na companhia de grandes figuras da música brasileira. E sempre digo pra todo o mundo: Sou a maior fã do Quarteto em Cy.” Cilene Chakur A saída de Cylene foi inesperada para as outras irmãs, que viam no grupo não apenas um conjunto vocal de perfeita harmonia sonora, mas a consoli­dação da união familiar, sempre tão importante para elas. Embarcar nesse foguete de Ibirataia para o mundo parecia mais seguro estando juntas. Mas, com um primeiro disco gravado e uma agenda repleta de compromissos, entre espetáculos e apresentações em rádios e emissoras de televisão, as meninas percebiam que o Quarteto em Cy não era mais delas e sim que elas eram do Quarteto em Cy. O grupo já era uma instituição com vida própria e o show não podia parar. A jornalista Regina Werneck, muito envolvida com o meio musical, também cantora e compositora, havia feito uma grande reportagem com o Quarteto em Cy para a revista “Aconteceu”. Parceira de Durval Pereira, Cartola, Tânia Maria, entre vários outros grandes nomes, Regina era também amiga pessoal de Elton Medeiros e Carlos Castilho, que foi o primeiro arranjador do Quarteto em Cy. Com a saída de Cylene, Castilho sugeriu o nome de Regina para fazer a quarta voz e, assim, a formação do grupo passou pela primeira modificação. Durante essa transição da saída de Cylene e entrada de Regina, o grupo estava em estúdio gravando o LP “Marré de Cy”. Cylene participou de metade da gravação e Regina gravou o restante. O disco foi produzido e dirigido por Aloysio de Oliveira e teve todos os arranjos assinados por Oscar Castro Neves, que acabou se casando com Regina Werneck. A faixa título e as canções, “O Circo”, “Menina da Agulha” e “Redenção”, esta com participação do MPB4, são de autoria de Sidney Miller e foram lançadas nesse disco. A música “Saveiros”, de Dori Caymmi, foi utilizada na fita demo que ele enviou para o Festival Interna­cional da Canção de 1966 e que acabou sendo defendida por sua irmã, Nana Caymmi. No mesmo festival o Quarteto em Cy apresentou “Se A Gente Grande Soubesse”, de Billy Blanco, gravada no LP “Marré de Cy”, com participação de Bilinho, filho do compositor, na época com 10 anos de idade. “Se a gente grande soubesse / O que consegue a voz mansa / Como ela cai feito prece / E vira flor num coração de criança...” Outra pérola deste trabalho foi “Mundo Melhor”, parceria de Vinicius de Moraes e Pixinguinha, que elas já conheciam desde a trilha sonora do filme “Sol Sobre a Lama”, de Alex Vianny. No show “O Y do Samba”, no Teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro, em 1966, as meninas passaram pela primeira experiência em palco com o regime militar. No espetáculo, elas lançaram “Tamandaré”, de Chico Buarque, mas logo foram proibidas de apresentar a canção, que fazia uma paródia com a figura do Almi­rante Tamandaré na desvalorizada nota de 1 Cruzeiro. Foi a primeira música de Chico a ser barrada pela censura, de uma vasta série que acabou levando não apenas ele, como a maioria dos melhores cantores e compositores brasileiros ao autoexílio, buscando em outros países os ares de liberdade que precisavam para continuar a pensar, criar e se expressar. Apenas em 1991, no disco “Chico em Cy”, lançado pela gravadora CID, é que elas gravaram “Tamandaré”: “Seu Marquês, seu Almirante / Do semblante meio contrariado / Que fazer parado / No meio dessa nota de um cruzeiro rasgado / Seu Marquês, seu Almirante / Sei que antigamente era bem diferente / Desculpe a liberdade / E o samba sem maldade / Deste Zé qualquer / Perdão Marquês de Tamandaré”. THE GIRLS FROM BAHIA – DE IBIRATAIA PARA O MUNDO Em janeiro de 1967, a convite de Aloysio de Oliveira, as meninas arrumaram as malas e embarcaram para a primeira viagem internacional do grupo. Já com nova formação, elas seguiram rumo aos Estados Unidos, levando na bagagem muita expectativa, coragem, boa música e, também, um certo friozinho na barriga. Lá, elas se tornaram “The Girls From Bahia”. A música brasileira já dominava o cenário norte-americano, desde o consagrado show da turma da Bossa Nova, no Carnegie Hall, em 1962, o que era, de certa forma, um alívio para elas. Apesar de estarem no auge de um sucesso meteórico, após a estreia no Zum Zum, e de já terem passado por grandes palcos pelo país, o coração ibirataiense batia descompassado diante de uma Los Angeles tão cheia de oportunidades como de desilusões. O motivo principal da viagem era a participação no programa “Andy Williams Show”, transmitido nacionalmente pela rede NBC. Fora isso não havia nenhum trabalho garantido, mas o faro apurado de Aloysio percebia de longe quem agradava àquele mercado e sabia que o Quarteto em Cy seria bem recebido por lá. O mundo precisava ouvir aquelas vozes e a porta de entrada para o mundo ficava no lado norte do continente americano. A ida das meninas para os Estados Unidos foi bastante noticiada por aqui, até mesmo em veículos especializados em outras áreas que não a música. Foi o caso de uma revista de moda que dedicou duas páginas para falar sobre os figurinos do Quarteto em Cy, que ditavam tendência entre as jovens brasileiras. No editorial, entre desenhos dos modelos e fotos delas com seus modelitos moderninhos, o texto discorria também sobre o trabalho musical do grupo e noticiava, com muito glamour, a partida delas para a América do Norte. Nos Estados Unidos, pelo selo Reprise, da Warner Bros, elas lançaram os LPs “Caymmi and The Girls From Bahia – Roses and Roses”, “Pardon My English” e “Revolución com Brasília”. Os dois primeiros foram gravados no Brasil e o último em Los Angeles, mas todos foram lançados por lá. Ray Gilbert e Sonny Burke foram os produtores destes discos. Ray, que era grande amigo de Aloysio, era produtor de Frank Sinatra, que também gravava pelo selo Reprise. Em 1964, ele foi apresentado por Aloysio a Tom Jobim e passou a fazer versões em inglês das músicas de Tom. Os discos foram um tremendo sucesso em terras norte-americanas, mas só o LP com Caymmi chegou ao Brasil pela gravadora Odeon, atualmente EMI, na década de 70, com edição limitada. Em “Pardon My English”, título da versão em inglês que Ray Gilbert fez para a canção “Samba Torto”, parceria de Aloysio e Jobim, o repertório tinha versões em inglês de músicas brasilei­ras e versões em português de músicas norte-americanas. Em “Revolución con Brasília”, as canções seguiam o mesmo esquema e, apesar das quatro cantoras vestirem terninhos vermelhos na capa e do sugestivo nome do disco, o repertório não tinha nada de revolucionário, a não ser por “A Banda”, de Chico Buarque, composta um ano antes, em 66, e que andou incomo­dando os militares. No mais, as canções se comprometiam a mostrar a qualidade musical das meninas, em arranjos e versões bem elaboradas e com pitadas bem dosadas de bom humor, como na versão “Edmundo”, que Aloysio de Oliveira fez para o sucesso “In The Mood”, de Joe Garland e Andy Razaf, já antes imortalizada pelo arranjo de Glenn Miller para sua big band: “Edmundo nunca sabe bem o que faz / Ele é um sujeito distraído demais / Dizem que uma noite, quando em casa chegou / Antes de ir para cama ele fez tal confusão / O chinelo em seu travesseiro botou / E, se ajeitando, foi dormir no chão / Na manhã seguinte, depois de levantar / Encheu a banheira para um banho tomar / Foi para a cozinha e fritou o roupão / E a água da banheira ele mexeu a colher / Depois de passar pasta de dente no pão / Foi se lavar na xícara de café / Mas é demais o homem não saber o que faz / Eu tenho pena do rapaz / O Edmundo todo mundo diz que não há jeito / Mas não há jeito mais.” Para os norte-americanos, tudo que estava abaixo do México era Cuba... daí a fazer uma “Revolución con Brasília” era um pulinho. COAST TO COAST Uma das atrações de maior sucesso nos Estados Unidos na década de 60 era o programa de variedades “Andy Williams Show”, apresentado pelo famoso cantor e ator, nascido em 1927, no estado de Iowa, e que era a coqueluche nacional. Seu programa semanal foi um dos primeiros a serem transmitidos via satélite de costa a costa no país e ainda contava com três especiais por ano. Tom Jobim participou várias vezes, acompanhando Andy ao violão, com direito até a contar piadinhas ensaiadas, ao melhor estilo norte-americano. Aloysio de Oliveira e Ray Gilbert articularam tudo para incluírem “The Girls From Bahia” na programação e a participação delas no programa foi o motivo principal da ida aos Estados Unidos. Marcos Valle, que havia se mandado para lá dois anos antes para participar do conjunto Brasil’65, de Sergio Mendes, também já havia dado o ar de sua graça pelo programa de Andy e foi convidado a participar com as meninas. As quatro moças, igual e impecavelmente vestidas, se apresentaram com dois figurinos: um conjunto de calça laranja e blusa listrada de laranja e branco, na abertura do programa, e o outro de calça verde claro e blusa listrada de verde e branco. Elas entraram no clima de Andy e também deram sua pitada de comicidade ao show. Marcos Valle, que serviu como intérprete, transmitia a elas as perguntas do apresentador, que queria saber se elas já haviam conhecido as principais atrações turísticas norte­americanas, como Disney e Universal Studios, ao que responderam que não, pois ficavam perdidas já que todas as ruas tinham o mesmo nome: “Walk” e “Don’t Walk” (“Ande” e não ande”, em português). O gracejo arrancou risos da plateia e, apesar de elas dominarem bem o inglês, não se importaram que Andy fizesse chacota sugerindo o contrário. O texto, exaustivamente ensaiado durante vários dias antes da gravação, assim como cada detalhe da apresentação, intencionava que tudo parecesse mero improviso. O contato com aquele preciosismo e perfeccionismo, para uma relativamente curta aparição diante das câmeras, deixou-as maravilha­das com um nível de profissionalismo que até então desconheciam. Ao final, elas cantaram acompanhadas por Andy e Marcos uma composição de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini chamada “Até Londres (Tup-a-Tup, que a maioria chama de Topotó)”, uma brincadeira vocal, sem letra, que os seis temperaram com uma divertida performance em que se sentavam e levanta­vam alternadamente, dando ainda mais graça à canção. Depois cantaram “The Face I Love”, uma parceria de Marcos Valle e Ray Gilbert. Os compromissos profissionais, que efetivamente poderiam alavancar a carreira internacional do Quarteto em Cy, não eram uma promessa garantida, mas, nas altas rodas do meio artístico, “The Girls From Bahia” já começavam a ser assunto e os convites para festas e eventos não demoraram a acontecer. E lá foram elas para a comemoração de encerramento das filmagens de “Wait Until Dark”, um filme de Terence Young, estrelado pela bela Audrey Hepburn e que, em português, teve o título de “Um Clarão nas Trevas”. Nessa festa, elas conheceram Vanessa Redgrave, que se encantou com as quatro vozes e as convidou para outro evento onde estariam grandes estre­las de Hollywood. Era uma homenagem ao ator italiano Franco Nero, que havia estrelado seu primeiro filme em inglês, “Camelot”, onde conheceu e se apaixonou por Vanessa. No melhor estilo “sarau brasileiro”, as meninas começaram a cantar e não demorou muito para que se formasse uma rodinha inusitada, onde se podia ver Tony Curtis se deliciando ao som das afinadas vozes e Mel Ferrer ajoelhado diante delas, emocionado por reencontrá-las ali. O então marido de Audrey Hepburn já as havia visto, em visita ao Rio de Janeiro, na boate Zum Zum, cantando “Morrer de Amor”, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, que ele adorava. Na festa, elas foram acompanhadas, no bongô, por Marlon Brando, e aplaudidas por uma seleta plateia de astros do cinema norte-americano. Não faltou também quem se rendesse não só aos encantos musicais das quatro jovens e bonitas cantoras brasileiras e tentasse, entre um drink e um sorriso, conquistar algo além de afinados acordes. Cynara, por exemplo, teve trabalho para driblar as insistentes investidas de Chris Ferrer, filho de Mel Ferrer. Ele queria muito, mas ela não estava a fim, porque, apesar da distância, preferia manter fidelidade ao seu noivo, Ruy Faria, que havia ficado no Brasil cumprindo os compromissos com o MPB4. Enquanto isso, para despistar, ela batia papo com Michael Douglas, que, aos vinte e poucos anos de idade, dava seus primeiros e bem sucedidos passos na carreira cinematográfica. Elas não ficaram por muito tempo nos Estados Unidos, mas viveram intensa­mente aqueles quase cinco meses. Moravam no Hotel Sunset Marquis, em Hollywood Boulevard, tendo o amigo Tom Jobim como vizinho do andar de cima. Nas horas vagas, quando nenhum deles tinha compromissos, da sacada de seu quarto, vestido com seu pijama, Tom olhava para baixo e, com a franja caindo pelos olhos, chamava as meninas para irem até a piscina, onde fica­vam horas cantando e tocando violão. Em Los Angeles, o Quarteto em Cy teve até direito a uma festa em sua home­nagem, oferecida pelas The King Sisters, também um grupo vocal formado por quatro irmãs e que já fazia sucesso desde o final da década de 30. Socialmente, o Quarteto em Cy estava mais do que enturmado nos Estados Unidos. As cantoras eram sempre bem recebidas onde quer que fossem e arrancavam aplausos e elogios de nomes importantes do showbizz ameri­cano, mas a demora para que algo de mais concreto acontecesse na vida profissional as deixava um tanto apreensivas. Cynara e Cybele, que estavam comprometidas com seus noivos no Brasil, viam nisso um motivo a mais para retornarem. Assim, em maio de 67, as quatro desembarcavam de volta ao Rio de Janeiro, um pouco contra a vontade de Cyva que acreditava que seu marido, Aloysio, poderia sim oferecer uma carreira internacional consoli­dada ao grupo. Ela foi voto vencido. “Conheci as quatro irmãs quando elas foram para o Rio de Janeiro. Na época elas tinham trabalhado com o Carlos Castilho e o Luizinho Eça como arranja­dores. Nós não apenas tivemos um grande entrosamento musical como também pessoal. E esse carinho entre nós continua muito vivo até hoje. Estamos constantemente em contato, seja por telefone ou pessoalmente, quando eu vou ao Brasil (Oscar mora há muitos anos nos Estados Unidos). Preciso ressaltar o papel de Cyva no Quarteto em Cy. Ela sempre foi de uma importância enorme para a continuidade da existência do grupo. É maravilhoso também observar o crescimento musical que elas tiveram ao longo de todos esses anos. A tenacidade do Quarteto em Cy é admirável. Eu considero quarteto vocal como um sacerdócio porque você cobra por um, mas divide por quatro. As pessoas só fazem porque amam. Como arranjador, vejo no trabalho para conjunto vocal a possibilidade da história lírica, que não existe para os instrumentos. O arranjo vocal é o equilíbrio entre a melodia e a poesia da música. E o bom resultado não é mérito apenas do arranjador, mas dos intérpretes também. Com o Quarteto em Cy nós sempre buscamos o melhor para a Música, com M maiusculo. Tenho o maior orgulho de tudo o que fiz junto com o Quarteto em Cy e todos esses trabalhos com elas estão e sempre estarão entre os que considero os mais importantes da minha vida. Quanto à nossa amizade, considero mesmo como um jardim que procuro cuidar para que se mantenha sempre florido. Hoje, aos 66 anos de idade, vejo que o mais importante é o coração e a música, o resto é troco.” DUAS PRÁ LÁ, DUAS PRÁ CÁ O Quarteto tinha a proposta de voltar aos Estados Unidos para ficar por mais dois anos, mas Cynara e Cybele estavam decididas a permanecerem no Brasil e não queriam arriscar novamente. Cyva e Aloysio decidiram, então, procurar duas cantoras para que o grupo não acabasse. Em 1965, eles tinham visto uma apresentação do grupo Mensagem, formado por Sidnei Miller, Paulo Tiago, Luis Carlos Sá (que depois formou dupla com Guarabyra). Sonia era a cantora e interpretava lindamente “Manhã de Liberdade”, dada a ela por Marco Antônio Menezes, que compôs a canção em parceria com Nelson Lins e Barros. Aloysio achou que Sonia seria uma boa opção para fazer a primeira voz do Quarteto no lugar de Cybele. Para o lugar de Cynara eles convidaram Semíramis, que decidiu assinar seu nome com “Cy” em lugar de “Se” quando passou a integrar o quarteto. Antes, ela fazia parte do grupo Samba S.A. com Mario Castro Neves (piano), Novelli (contrabaixo) e Normando (bateria), dividindo os vocais com Thais do Amaral. Sonia tam­bém adotou mais do que o “y” e virou Cyntia. Cynara e Cybele decidiram formar uma dupla e seguir seu caminho pelo Brasil, enquanto o novo Quarteto em Cy se preparava para voltar aos Estados Unidos. Para dar uma força à noiva e à cunhada, Ruy Faria contou a Chico Buarque sobre a nova empreitada das duas e pediu ao amigo uma música para que elas defendessem no Festival da Canção, da Globo. Chico, que tinha mais uma pendenga com a emissora e, como ele mesmo diz: “dessa vez eles tinham razão”, já havia ficado de inscrever uma canção sua no Festival em troca da não punição por ele ter descumprido um contrato de trabalho. A seu ver, sem muita inspiração, ele havia composto uma canção no saguão do aeropor­to, anotando a letra num pedaço de papel. Mostrou a música a Ruy, que achou que ela caberia bem nas vozes da nova dupla e foi assim que Cynara e Cybele defenderam “Carolina” no Festival de 1967. “Carolina, nos seus olhos fundos / Guarda tanta dor / A dor de todo esse mundo...” “Carolina” conquistou o terceiro lugar e foi um estouro nacional. Chico, que estava de férias na Bahia, ouviu sua música pelo rádio nas vozes das duas irmãs e, só então, se deu conta de que havia realmente composto uma bela canção. As rádios não paravam de tocar a interpretação de Cynara e Cybele, e esse foi o impulso para que elas gravassem um LP, com o nome da dupla, pela CBS. O disco foi produzido por Elcio Milito (Trio Tamba) e o repertório praticamente todo escolhido por Chico Buarque, que também assinou a contracapa. Neste LP elas gravaram três músicas inéditas de Chico: “Até Segunda-}Feira”, “Januária” e “Carolina”. A canção “Lua Cheia”, uma parceria de Chico e Toquinho também foi um dos destaques do disco. Entre 1967 e 1968, a CBS lançou também cinco compactos da dupla, cada um com duas canções, formato muito utilizado na época. Nas décadas de 60 e 70, além de agradar ao público, que podia ter acesso aos discos numa versão mais barata e também só com as músicas preferidas, os compactos ser­viam também como uma espécie de teste das gravadoras antes de lançar uma novidade no mercado. Dependendo da aceitação dos compactos, partia-se para a produção dos elepês. Durante toda a carreira o Quarteto em Cy gravou 29 compactos, a maioria deles pelo selo Elenco. Antes de voltar aos Estados Unidos, o novo Quarteto em Cy estreou o espe­táculo “Samba do Crioulo Doido”, no qual se apresentavam ao lado do autor da canção título do show, Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta. O lançamento foi um estrondoso sucesso e a interpretação das meninas dava ainda mais graça ao samba que mostra, com refinado bom humor, as trapalhadas que os compositores de escolas de samba faziam ao tentar contar a história do Brasil em suas canções. Sérgio Porto não era sambista, mas jornalista, teatrólo­go, humorista, boêmio e, como ele mesmo registrou em seu “auto-retrato do artista quando não tão jovem”, tinha entre seus ódios inconfessos “os puxa-sacos e militar metido a machão”. Não era de espantar que, em plena ditadura, qualquer atividade cultural assinada por ele deixasse os homens da lei de orelhas em pé e olhos bem grandes, como o “lobo mau”. Na mesma época, o espetáculo “Roda Viva”, de Chico Buarque com direção de José Celso Martinês, estava sendo encenado em São Paulo, no Teatro Oficina e foi invadido pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas), que destruiu o cenário e bateu nos atores, entre eles Marília Pêra. Logo em seguida, no Rio de Janeiro, o Quarteto em Cy e todo o elenco do “Samba do Crioulo Doido” recebiam recados do tipo: “Os próximos podem ser vocês”. As amea­ças eram indigestas, assim como foi indigesto o infarto sofrido por Sérgio Porto enquanto tomava um cafezinho após o espetáculo. As complicações sofridas após o cafezinho.... ou melhor, o infarto, o afastaram do palco, sendo substituído pelo ator e humorista Agildo Ribeiro até o final da temporada do “Samba do Crioulo Doido”, que ficou oito meses no Teatro Toneleros, em Copacabana. Stanislaw Ponte Preta faleceu em setembro de 1968, aos 45 anos. BACK TO THE STATES Depois do “Samba do Crioulo Doido”, o Quarteto em Cy voltou aos Estados Unidos com a ideia de ficar por lá durante pelo menos um ano. 1968 estava começando e as possibilidades de se viver de música no Brasil eram cada vez mais difíceis, principalmente para quem fazia parte da elite intelectual do país. A marcação estava ficando cada vez mais fechada e o golpe de misericórdia viria com o AI-5 (Ato Institucional número 5), redigido pelo então Presidente da República, General Artur da Costa e Silva, em dezembro daquele ano, fechando o Congresso Nacional e aumentando a censura pré-via à música, teatro e cinema. Nos Estados Unidos, as meninas moraram em Hollywood, onde tinham um contrato a cumprir. Fizeram temporada em Porto Rico e participaram de programas de tevê. Cyva encarava tudo como a grande oportunidade de carreira internacional do grupo, até que um dia acordaram sem Semí­ramis. A moça se mandou para o Brasil sem explicação. Apenas deixou um bilhete pedindo que não a procurassem. Nunca se soube quais foram os motivos. Cybele, que continuou a dupla com Cynara, após vencer o Festival da Canção de 68 com “Sabiá”, decidiu ir para os Estados Unidos com o marido, Marcílio Freire, e se juntar ao Quarteto após a fuga de Semírames. Marcílio e Cybele se conheciam desde a época da “Hora da Criança” e começaram a namorar quando ela tinha 16 anos e ele 19. Em Salvador, ele havia trabalhado como jornalista e radialista, valendo-se se uma voz de timbre privilegiado. E foi isso que lhe garantiu um mercado de trabalho nos Estados Unidos. Por meio de Aloysio de Oliveira, Marcilio realizou alguns trabalhos de dublagem para versões brasileiras de filmes da Disney, inclusive dublando a voz do próprio Walt Disney no longa “O aniversário do Mickey”, que marcou a última participação do criador da Disneylândia como narrador dos filmes da companhia. Sonia, que na época era Cyntia, também preferiu voltar para o Brasil. Ela já namorava o então advogado Paulo Albuquerque, que depois se tornou um grande produtor musical. Quando chegou ao Brasil, Sonia deixou a música, terminou o curso Normal e passou a dar aulas na Escola Parque, na Gávea. Casou-se com Paulo e tiveram um filho, Pedro. O casamento acabou anos depois, mas eles não deixaram de ser amigos e cultivarem um respeito mútuo até a morte dele em 2007. A cantora Sandra Machado, que morava nos Estados Unidos, passou a integrar o Quarteto, que agora era formado por Cyva, Regina, Cybele e Sandra. Mas a repentina ruptura com a saída de Semíramis deixou os em­presários com a pulga atrás da orelha e eles diziam que investir no grupo era “just trouble” (“só problema”, em português). SABIÁ Na mesma época da volta do Quarteto em Cy aos Estados Unidos, o clima que antecedia a terceira edição do Festival Internacional da Canção, no Brasil, era fervilhante. O evento era ainda uma das escassas oportunidades de expressão de ideias através da música e por pouco não foi realizado. O cantor e compositor Guarabyra organizou um abaixo-assinado entre os artistas para não participarem em boicote à censura. Para dar maior credibilidade ao festival, o diretor Augusto Marzagão convidou Tom Jobim a inscrever uma composição. Como contam Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano no livro “85 Anos de Música Brasileira”, Tom era meio avesso a festivais, mas já havia recusado o convite para participar do júri, por isso, não queria fazer tanta desfeita. Pediu, então, a Chico que colocasse letra em uma música que ele já havia composto e que se chamava “Gávea”. Depois da letra de Chico, a canção mudou de nome para “Sabiá” e foi para o FIC novamente nas vozes de Cynara e Cybele. Os ensaios aconteciam na casa de Tom com arranjo instrumental de Eumir Deodato e regência de Mário Tavares. “Sabiá” é uma canção que fala da saudade de alguém que está longe de sua terra. Chico afirma, categorica­mente, que não havia intenção política na letra, apesar da intertextualidade com o poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. O tempo de exílios em massa aconteceria a partir do final de 1968, após o AI-5. Ele argumenta que “Sabiá” seria uma canção premonitória se tivesse realmente a intenção de falar sobre exílio. Pode ser que diga isso para não carregar, entre os tantos rótulos que lhe imputam, ainda mais o de profeta. Mas o fato é que o próprio Chico já havia partido para a Itália na época do festival, porque não encontra­va mais espaço para sua música no Brasil da ditadura, talvez fazendo planos de se enganar, enganos de se encontrar ou estradas de se perder, mas ele ainda haveria de voltar por causa de sua “Sabiá”. O ginásio do Maracanãzinho estava lotado na final do III FIC e a torcida maior era para a música “Prá não dizer que não falei das flores”, também conhecida como “Caminhando”, de Geraldo Vandré. A canção, que fala de flores vencen­do canhões e de morrer pela pátria a viver sem razão, tornou-se um hino contra a repressão, entoado pela juventude engajada na luta pela liberda­de de expressão. Ninguém podia imaginar que qualquer outra candidata vencesse aquele festival. Foi nesse clima de torcida pela música adversária, de ânimos exaltados, gritos e protestos, que Cynara, aos 23 anos de idade, e Cybele, aos 28, encararam o palco do Maracanãzinho com a impecável apresentação de “Sabiá”. Ao serem anunciadas como vencedoras da etapa nacional do festival, uma sonora e histórica vaia cobriu o ginásio, atravessou as ondas de rádio, entrou nas casas e comércios pelos aparelhos de televisão e até hoje ecoa nos ouvidos de quem presenciou aquele momento, principalmente nos delas. Elas sabiam que não era nada pessoal, que a preferência pela música de Vandré não tinha a ver com qualidade harmônica ou de interpretação, mas, sim, com o que a canção representava politicamente. Porém, nenhuma dessas convicções serviu para paralisar o tremor nas pernas, a sensação de haver engolido um iceberg e a enorme vontade de que o chão se abrisse sob seus pés. Mesmo com vaias, havia o que se comemorar e, assim, quando deixaram o ginásio, todos foram para a casa de Tom com vários jornalistas, amigos e fiéis representantes da elite intelectual brasileira, como Ziraldo e Fernando Sabino. A festa estava animada quando um telefonema trouxe a notícia da morte de Stanislaw Ponte Preta, que, desde o infarto após o cafezinho, convalescia no hospital. Na mesma hora, Tom deu a festa por encerrada e o choque pela perda de Sergio Porto os deixou mais perplexos e entristeci­dos do que a vaia que tinham acabado de levar. Da Itália, Chico Buarque, que até então só sabia da missa a metade, ou seja, que a música havia vencido, imediatamente enviou um telegrama ao Tom e às meninas, onde dizia: “Eu Sabiá, eu Sabiá, eu Sabiá”. Não muito depois, recebeu, como ele mesmo diz, “uma mensagem meio fora de tom, do Tom”, na qual o maestro lhe pedia: “Por favor, venha, não me deixe só”. Chico atendeu imediatamente à súplica do amigo e, uma semana depois, desembarcava no Rio de Janeiro para acompanhar a etapa internacional do festival, em que o Brasil seria representado por “Sabiá”. Ele conta que veio disposto a tomar a parte que lhe cabia na vaia, mas, felizmente, a história tomou outro rumo. Agora era o Brasil competindo com o resto do mundo e a torcida se bandeou inteira para o lado de “Sabiá”. Muitos porque depois do susto com a derrota de “Caminhando”, começaram a ver, por sensibilidade ou necessidade, o tão esperado fundo político na letra de Chico. Outros, por terem o mais exacerbado patriotismo, sentimento latente nos jovens corações dos anos 60. Quando “Sabiá” foi anunciada vencedora também da etapa internacional do III FIC, o mesmo Maracanãzinho abarrotado se levantou para aplaudir efusivamente Cynara e Cybele, que agora contavam com a presença recon­fortante de Chico e Tom no palco ao lado delas. A imagem dos quatro foi incansavelmente reproduzida por jornais e revistas. Noite de glória merecida. TEMPOS DIFÍCEIS A repressão imposta pelo regime militar foi fechando cada vez mais as portas para quem vivia de música no Brasil. No final de 68, eram poucos os que ficaram por aqui e principalmente os países da Europa e os Estados Unidos foram os que mais acolheram nossos artistas. Quando Cybele foi para os Estados Unidos se juntar novamente ao Quarteto em Cy, Cynara ficou só por aqui, mas não desistiu da batalha. Continuou cantando e até fez um disco solo, chamado “Pronta Pra Consumo”, com músicas de vários autores. Entre eles, Caetano, Chico, Renato Correia, Danilo Caymmi, além de parcerias dela mesma com Ruy Faria e Sidney Miller, que também fez todos os arranjos. O disco foi produzido por Renato Corrêa, dos Golden Boys, e Guarabyra, e saiu pela gravadora Elenco/Philips em 1969. Apesar da Elenco ser considerada a gravadora Bossa Nova, o disco de Cynara não tinha nada de amores, sorrisos e flores. Com a forte influên­cia da Jovem Guarda, trazida por Renato, e da Tropicália, inserida por Sidney Miller – simpatizante do movimento –, os órgãos, guitarras e baterias soma­dos à orquestra de cordas resultaram nos sambas, iê-iê-iês e baladas numa mistura bem temperada e deliciosa de se ouvir e consumir. O trabalho não deu em nada comercialmente, mas Cynara nem esperava por isso. Ela queria mesmo era provar que podia fazer música no Brasil, enfren­tar a situação e dar a volta por cima. Desde o princípio, ela achava que o Quarteto em Cy poderia ter tido seu lugar aqui, sem precisar sair do país. Por outro lado, ela também entendia que era louvável a intenção de Aloysio de Oliveira de lançar o grupo internacionalmente, mas reconhece que naque­le momento o grupo perdeu o rumo, seja pelas rupturas, seja pela precipita­ção do que também pode se considerar como um autoexílio ou seja porque é mesmo difícil manter quatro cabeças pensando da mesma forma o tempo todo, principalmente quando há tanta influência externa. Em 1970, Gutemberg Guarabyra (sim, ele mesmo novamente, o da dupla com Sá) convidou Cynara a defender uma canção que ele havia composto em parceria com Danilo Caymmi e Renato Corrêa, no Festival de Juiz de Fora. A música era “Casaco Marrom” e Cynara garfou o primeiro lugar. Mas foi na voz de Evinha que os versos: “eu vou voltar aos velhos tempos de mim / vestir de novo meu casaco marrom / tomar a mão da alegria e sair / bye bye Ceci, nous allons...” se tornaram um estouro nacional. Evinha estava em evidência por ter ganho o IV FIC, em 1969, com “Cantiga por Luciana”, de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós. Cynara, que havia se casado com Ruy Faria em fevereiro de 1968, deu à luz o primeiro filho do casal, João Faria, em maio de 1970, na efervescência da Copa do Mundo. Seus primeiros passeios com a mãe foram à casa de Maurício Tapajós, onde se reuniam os rapazes do MPB4, Chico Buarque e Paulo César Pinheiro para assistirem aos jogos do Brasil e, entre uma mamada e um gol, o menino foi se acostumando à folia dos fogos e da torcida inflamada daquela trupe. João herdou dos pais a musicalidade e o amor ao futebol. Desde meados dos anos 90 ele acompanha o Quarteto em Cy com seu contrabaixo e, pelo menos uma vez por semana, sua a camisa nos disputados jogos do Polytheama, no campo de Chico Buarque. Nos Estados Unidos, Cyva, Cybele, Cyregina e Sandra tocavam o barco com o Quarteto em Cy, cumprindo a agenda que já estava marcada antes das saídas de Semírames e Sonia. Havia um movimento pela música brasileira, valorizado pelo êxodo de nossos artistas para terras norte-americanas e isso facilitava as coisas. Apesar de nunca ter tido experiência anterior em grupo vocal, a cantora Sandra Machado, que substituiu Semírames, tirou de letra. Pegou todos os naipes com muita facilidade e manteve com classe a harmonia vocal e astral do grupo. É uma pena que, nessa fase, o Quarteto não tenha registrado sua passagem em nenhuma gravação. O que não andava muito bem era o casamento de Cyva e Aloysio, que balan­çava principalmente por causa do assédio hollywoodiano sobre ele. Aloysio era brasileiro só no registro de nascimento e no coração, mas o círculo de amigos, as relações profissionais e os costumes adquiridos depois de tantos anos nos Estados Unidos já eram totalmente americanizados e isso, em algum momento, se chocou com os conceitos e a fragilidade brasileira de Cyva. Depois de 5 anos o casamento chegou ao fim, mas eles ainda haveriam de se encontrar profissionalmente muitas vezes e a participação de Aloysio, tanto na vida pessoal como na carreira das integrantes do Quarteto em Cy, sempre teve e terá o reconhecimento e admiração de todas. Cyva ainda tentou ficar nos Estados Unidos após a separação, apostando em uma carreira solo, já que o trabalho com o grupo foi perdendo força. Cybele, que contava com a companhia do marido Marcílio, acompanhou os passos da irmã mais velha e ambas chegaram a se apresentar pelo país, incluindo em seus repertórios também canções em inglês. Em 1971, Cyva voltou para o Brasil sem marido e sem grupo, mas não se deixou abater e logo começou a pensar em formar uma dupla ou até outro quarteto. A convite do baterista João Palma, que acompanhava Sergio Mendes e também chegou a tocar com Tom Jobim, Cybele começou a se apresentar no bar Brazilian Bossa, cujo nome já dispensa comentários sobre o tipo de música que se podia ouvir ali. Tudo ia muito bem, obrigada, até que Dona Iasinha, a guerreira mãe das Cy, começou a apresentar sérios problemas de saúde. Desde o casamento de Cylene, ela vivia com a filha em Araraquara, no interior de São Paulo. Foi então que Cybele achou que aquela sua passa­gem pelos Estados Unidos já havia chegado ao fim e que voltar ao Brasil era agora uma prioridade. Era o ano de 1972 quando Cybele deu um definitivo bye bye aos Estados Unidos e voltou para casa. As quatro filhas passaram a se dedicar, cada uma dentro de suas possibilidades, a cuidar e estar com a mãe, apesar da distân­cia entre o Rio de Janeiro e Araraquara. Em fevereiro de 1974, nasceu Tiago, filho de Cybele e Marcílio, que pôde ainda conviver com a avó por seis meses. Dona Iasinha faleceu em agosto do mesmo ano. RECOMEÇO Sem uma data marcada ou um momento exato e talvez até sem se darem conta, o grupo havia acabado, mas a instituição Quarteto em Cy teimava em viver e clamava pelas vozes que podiam consumar-lhe a existência. Cybele estava voltada aos cuidados com Dona Iasinha, desde que chegara dos Estados Unidos e, naquele momento, não tinha planos musicais. Cyva e Cynara chegaram a pensar em formar uma dupla, mas preferiram procurar por Sonia que, desde que voltou dos Estados Unidos, havia se afastado da música, terminado o curso normal e estava lecionando na Escola Parque, no bairro da Gávea. A ideia era reacender o Quarteto em Cy. Então, as três saíram em busca da quarta voz. Depois de ter gravado seu LP solo, Cynara fez parte do coro que acompanhou Chico Buarque em um show no Canecão, juntamente com Dorinha Tapajós e Regininha. O show contava ainda com as vozes masculinas do MPB4, o piano de Jaques Klein e a regência instrumental de Isaac Karabitchevsky e orques­tra. Foi então que ela sugeriu o nome de Dorinha, filha do radialista, cantor e compositor Paulo Tapajós, para completar o grupo. Dorinha ficou no Quarteto em Cy por 8 anos, de 1972 a 1980, numa fase de intensa produção do grupo, tanto em discos como em shows. Com essa formação, Cyva, Cynara, Sonia e Dorinha gravaram 8 LPs e viveram momentos marcantes em viagens, turnês, gravações, encontros, aventu­ras e desventuras. Depois do boom do lançamento, em 1964, e dos dois primeiros anos em que o grupo das quatro irmãs era a bola da vez no cenário musical, a fase de 72 a 80 foi o segundo melhor momento do Quarteto em Cy, que resistiu com bravura e muito boa música à ditadura e aos primeiros sinais de um empobrecimento cultural que se aproximava, acenando ao público com sucessos-relâmpago, investindo num mercado popular que tendia mais a chacoalhar o esqueleto que a exercitar os miolos, estes já em certo grau atrofiados pela falta de possibilidade imposta pela censura da época. O primeiro disco dessa nova fase levava apenas o nome do grupo e foi gravado pela Odeon, em 1972, com arranjos assinados por Edu Lobo. No repertório, canções de Chico, Paulinho Tapajós, Francis Hime, Paulo César Pinheiro e Dorival Caymmi, que também teve uma participação especial na faixa “Canto do Obá”, de sua autoria em parceria com Jorge Amado. Em “Tudo que você podia ser”, de Lô e Marcio Borges, o coro masculino foi protagonizado por Milton Nascimento, o Bituca, que fez questão de participar desse trabalho. “Cavalo Ferro”, de Fagner, também compõe o repertório deste disco e foi um grande sucesso nas vozes do quarteto. Cynara estava grávida de Irene, sua segunda filha com Ruy Faria, e passou toda a gestação em palcos, viagens e apresentações para divulgação do disco. Em uma dessas viagens, Cynara foi para a Europa, acompanhando o marido em uma turnê do MPB4 com Chico, e a criança quase nasceu no avião. Irene parece ter assimilado a correria e hoje é uma respeitada empresária artística no Rio de Janeiro. PELO BRASIL COM O POETA Em 1974, as meninas caíram na estrada acompanhando o padrinho Vinicius de Moraes e seu parceiro, Toquinho, pelo que se chamou de Circuito Universitário, apresentando-se pelas principais capitais do país e algumas cidades do interior de São Paulo. A turnê durou um mês e colecionou histórias para toda uma vida. A estreia foi em São Paulo, no Tuca (Teatro da Pontifícia Universidade Católica – PUC), e seguiu para outras 20 cidades. As apresentações aconteciam durante a semana e nos finais de semana também, o que lhes rendia, quando muito, 1 ou 2 dias de folga entre um show e outro. Belo Horizonte e Brasília foram as cidades seguintes e, na capital do país, Vinicius incomodou as esposas dos militares quando declamou seu poema “3 Pablos”, em que se referia à morte de Picasso, Casals e Neruda, no ano anterior: Breve consideração à margem do ano assassino de 1973. Que ano mais sem critério esse de 73 Levou para o cemitério três Pablos de uma só vez Três Pablões, não três pablinhos No tempo como no espaço Pablos de muitos caminhos: Neruda, Casals, Picasso Três Pablos que se empenharam contra o fascismo espanhol Três Pablos que muito amaram Três Pablos cheios de Sol Um trio de imensos Pablos, em gênio e demonstração Feita de engenho, trabalho, Pincel, arco e escrita à mão Três publicíssimos Pablos: Picasso, Casals, Neruda Três Pablos de muita agenda Três Pablos de muita ajuda. Três líderes cuja morte o mundo inteiro sentiu Oh ano triste e sem sorte Vá pra puta que o pariu (Vinicius de Moraes) Ao chegarem em Belém, veio a notícia de que a censura havia proibido a participação de Vinicius no espetáculo por causa da canção “Valsa do Bor­del”, parceria dele com Toquinho. A música, que fala sobre a vida de uma prostituta e seu universo de solidão encoberta por amores fugazes e fadiga disfarçada por perfumes e piteiras, foi usada como razão para que o poeta não subisse mais no palco naquela turnê. Mas, o boato que rolava era que os palavrões em Brasília foram o real motivo da sanção. Nas apresentações que se seguiram, eles mantiveram no cenário a mesa, a cadeira e o copo de uísque. Mas a censura não impediu que Vinicius seguisse viagem com a turma. Da coxia ele assistia a tudo e as meninas interpretavam “Por causa de você” viradas para ele. O público ia ao delírio e gritava o nome do poeta pedindo sua entrada. Mais uma vez o tiro dos censores saiu pela culatra. A presença de Vinicius chamava ainda mais atenção com ele fora do palco do que o palavrão do poema. A repressão parecia não perceber que podia até calar a voz, mas não calava a alma dos artistas. Ainda durante a turnê, Vinicius começou a sentir fortes dores em uma das pernas e uma radiografia revelou um intruso tumor na cabeça do fêmur. A notícia entristeceu a todos, mas eles não deixaram a peteca cair. Nos momentos de crise em que a dor apertava e ele não conseguia dor­mir, pedia que as meninas lhe fizessem cafuné e se automedicava com overdoses de carinho dos amigos. Vinicius nunca escondeu o medo que tinha da morte e essa fragilidade na saúde o deixava ainda mais dengoso. Toquinho muitas vezes assumia um papel paternal e tinha até que repreendê-lo. Apesar da diabete alta, Vina não conseguia largar os doces e não eram raras as vezes que Toquinho encontrava quindins e bombons escondidos em gavetas nos quartos dos hotéis onde se hospedavam, e dava a maior bronca no parceiro. Vinicius ouvia de cabeça baixa, feito moleque depois da travessura desvendada. O poeta não gostava que dissessem que havia uma relação paternal e preferia aceitar que aquilo era coisa de amigo, mas o fato é que Toquinho tomava mesmo conta do parceiro. Nessa viagem de um mês, foram muitas as aventuras vividas no palco e fora dele também. Na passagem pela cidade de Lins, interior de São Paulo, o grupo foi hospedado por um fazendeiro da região. Ele tinha um filho meio maluco, que, durante a madrugada, cismou de bater à porta do quarto onde dormiam Dorinha e Cynara. Chegou com uma conversa estranha e Dorinha pegou um cinzeiro para se defender. Toquinho escutou o burburinho e achou melhor colocar sua cama no corredor para proteger as meninas; e ali permaneceu montando guarda a noite toda. O episódio ficou conhecido entre eles pelo nome de “O Tarado de Lins”. Não faltavam as histórias de fantasmas e almas penadas quando eles se hospedavam nesses casarões de fazenda. Em Avaré, também no interior de São Paulo, tiveram uma folga maior, de três dias, e ficaram todos hospeda­dos na casa de Roberto de Oliveira, que era diretor artístico da Rede Bandei­rantes e estava empresariando aquela turnê. Vinicius aproveitava e exibia seus dotes culinários. Fazia franguinho ao leite e espaguete à parisiense. Na vitrola, ouviam Beth Carter, Ray Charles, Billie Holiday e se deixavam levar pela sonoridade elegante do jazz, soul e blues. Antes de terminarem a passagem pelo estado de São Paulo, outro fazen­deiro os hospedou. O homem era um figurão da região e fã extremado de Vinicius. Ele não sabia mais o que fazer para agradar a seu hóspede/ídolo e enchia o poeta de mimos e cuidados exacerbados. Se Vina fazia qualquer movimento, prontamente o anfitrião se oferecia para pegar o que quer que fosse que ele estivesse precisando. Se o poeta estava deitado na rede, lá vinha ele oferecendo-se até para abaná-lo. Em rara folga que o fazendeiro deu a Vinicius, este se virou para as meninas do Quarteto, que estavam com ele na varanda, e concluiu categórico: “esse é o amor que mata”. As viagens de curta distância dessa turnê eram feitas de carro. Toquinho desfilava pelas estradas com seu SP2 e Vinicius e o Quarteto em Cy seguiam numa Rural Willis. Roberto de Oliveira organizava as apresentações pelos centros universitários paulistas e tinha a política como moeda de troca. Os es­tudantes queriam ver gente que cutucasse o sistema, mas também gostavam de música de qualidade, quesitos plenamente preenchidos pelos seis. A partir de Brasília, a turnê foi empresariada por Roberto Santana, produtor musical e um dos precursores do movimento tropicalista no final da década de 60. Na passagem de Vinícus, Toquinho e Quarteto em Cy por Recife, Roberto os recebeu em sua casa e a turma foi tratada com mimos e rega­lias. Ele pedia que as cozinheiras preparassem coisas especiais aos seus artistas, que se lambuzavam com os quitutes caseiros. Foi também em Recife que, numa tarde, Toquinho, com fama de solteiro paquerador, comentou com Vinicius que estava sentindo vontade de ser pai. O poeta não quis acompanhá-lo num passeio pela cidade com as meninas do quarteto e preferiu ficar no hotel, à beira da praia de Boa Viagem, matutando sobre o que o amigo lhe dissera. Quando Toquinho voltou, Vina estava com os olhos vermelhos, visivelmente emocionado com sua mais recente composição. Naquele período em que ficou só, ele escreveu a letra de “O filho que eu quero ter”, traduzindo em poesia o desejo de paternidade do parceiro. Na mesma hora, os dois colocaram música nos versos e criaram mais uma canção eterna. Quando mostraram a música ao Quarteto, outra sessão de chororô se instalou... E, assim, elas presenciaram o nascimento de mais um ícone da música popular brasileira. O filho que eu quero ter É comum a gente sonhar, eu sei, Quando vem o entardecer; Pois, eu também dei de sonhar Um sonho lindo de morrer. Vejo um berço e nele eu me debruçar Com um pranto a me correr E assim, chorando, acalentar o filho que eu quero ter Dorme, meu pequenininho Dorme, que a noite já vem Teu pai está muito sozinho De tanto amor que ele tem De repente eu o vejo se transformar No menino igual a mim Que vem correndo me beijar Quando eu chegar lá de onde vim Um menino sempre a me perguntar Um porquê que não tem fim Um filho a quem só queira bem E a quem só diga que sim Dorme, menino levado Dorme, que a vida já vem Teu pai está muito cansado De tanta dor que ele tem Quando a vida, enfim, me quiser levar Pelo tanto que me deu, Sentir-lhe a barba me roçar No derradeiro beijo seu. E ao sentir também sua mão vedar Meu olhar dos olhos seus, Ouvir-lhe a voz a me embalar Num acalanto de adeus Dorme, meu pai sem cuidado Dorme, que ao entardecer Teu filho sonha acordado Com o filho que ele quer ter Letra: Vinicius de Moraes / Música: Toquinho A turnê se encerrou em Salvador e o último show aconteceu em 19 de outu­bro de 1974, dia em que Vinicius completou 61 anos de idade. Na época, seu amor era da animada baiana Gessy Jesse, sua sétima e antepenúltima espo­sa, e os dois estavam inaugurando a casa que construíram na praia de Itapuã. Ela preparou uma surpresa para comemorar o aniversário, a inauguração da casa e o fim da turnê, organizando o “enterro do show”, celebração que os artistas costumavam fazer quando encerravam um espetáculo. Tudo que rondava a vida de Vinicius virava motivo para uma boa festa. O show do Tuca, que abria a turnê, rendeu o elepê “Vinicius de Moraes en São Paulo con Quarteto em Cy y Toquinho - Grabado en vivo en homenaje a los tres Pablos: Picasso, Casals y Neruda”. Esse disco saiu de uma fita cassete que Cyva guardou de uma gravação amadora feita na estreia, no teatro da PUC de São Paulo. Comentando sobre isso com o produtor musi­cal, Alfredo Radozinsky, ele se interessou pelo material e conseguiu editá-lo em dois volumes pelo selo argentino Music Hall, lançando-o também na Espanha e em Portugal e, em seguida, em toda a Europa. No Brasil, esse disco saiu pela Alfa Records em 1990 e, em 2001, a Universal reeditou-o em um CD, que fez parte de uma caixa intitulada “Como dizia o poeta”, contendo 27 CDs. Nessa coleção, há outros discos com participação do Quarteto em Cy, como os “Afro-Sambas”, da parceria de Vinicius e Baden e também o “Vinicius e Caymmi no Zum Zum com Quarteto em Cy e Conjunto Oscar Castro Neves”, que marcou a estreia das meninas em 1964. Ainda em 74, as meninas assinaram com a gravadora Philips e lançaram dois compactos com o nome “4 Sucessos em Cy”. O primeiro volume trazia “Porta Aberta” (Luiz Ayrão), “Gostava Tanto de Você” (Edson Trindade), “Retalhos de Cetim” (Benito di Paula) e “Torós de Lágrimas” (Antônio Carlos). O segundo volume tinha “Abre Alas” (Ivan Lins), “Se Não For Por Amor” (Benito di Paula), “Menino Deus” (Mauro Duarte) e “No Silêncio da Madrugada” (Luiz Ayrão). RESISTINDO No final de 1974, o Quarteto em Cy partiu com Toquinho para uma turnê pela Argentina e Uruguai. O show começou no pomposo Teatro Austral, de Buenos Aires, e depois foi apresentado num café concerto. A cidade argenti­na de Rosário também fez parte do circuito que incluiu ainda a uruguaia Punta Del Este. As meninas participaram de vários programas de televisão dos dois países e as apresentações aconteciam em períodos espaçados, o que fazia com que elas fossem para lá e voltassem ao Brasil algumas vezes para cumprir os compromissos que aconteciam por aqui. “Vi pela primeira vez as meninas do Quarteto em Cy em 1965, na boate Zum-Zum, no Rio de Janeiro. Elas participavam de um show inesquecível, com o conjunto de Oscar Castro Neves, Dorival Caymmi e Vinicius de Moraes, que as chamava de “minhas baianinhas”: Cynara, Cyva, Cylene e Cybele. Mal podia imaginar que, alguns anos depois, no decorrer de minha parceria com Vinicius, estaria dividindo o palco com elas em tantos shows pelo Brasil e em outros países. As longas viagens fortaleceram entre nós uma grande amizade e uma necessária cumplicidade para reverter situações adversas. Durante uma sequência de shows por várias capitais do país, num certo momento, Vinicius falava um poema xingando abertamente o ano de 1973, num desabafo pela morte de três Pablos, pelos quais ele tinha profunda admiração, um deles, seu grande amigo Neruda. Os outros, Casals e Picasso. O palavrão passou incólume por várias plateias, até chegar em Brasília, onde atingiu fundo o puritanismo de alguns militares e a censura acabou suspen­dendo Vinicius por 30 dias. Mesmo sem o poeta, o show tinha de prosseguir, e as meninas sempre acreditaram que ia dar tudo certo, como deu, por causa desse lado positivo e confiante delas, além do talento, tão naturalmente incorporado por quem trabalha com elas, pois elas facilitam tudo. Em viagens longas, sempre surgem algumas rusgas, mas com elas, não, jamais. Isso se refletia no palco, durante os shows, quando elas mantinham uma parceria carinhosa comigo através de olhares de compreensão e cum­plicidade. Na época, o Quarteto era formado por Cynara, Cyva, Sonia e Dorinha, menina linda, que a morte levou tão cedo. Mais recentemente, temos nos emprestado para alguns trabalhos, elas a mim e eu a elas, em alguns discos. São ocasiões que nos proporcionam felizes reencontros lembrando situações acontecidas com Vinicius e que resultaram nessa grande amizade estacionada no tempo. Eu amo estas meninas, como fã e amigo constante. Com meu violão, num palco qual­quer da vida, adoro harmonizar com essas quatro vozes extremamente afinadas. Um beijo eterno,” (Toquinho) Em abril de 1975, a Rede Globo colocou no ar o que se tornaria uma das mais antológicas telenovelas da teledramaturgia brasileira, “Gabriela”. A adaptação para tevê do premiado romance de Jorge Amado tinha Sônia Braga no papel principal e mostrou a todo o país o universo mágico da cultura baiana, desde a altivez e domínio dos coronéis do cacau até a alegria e fuzarca de prostitutas, malandros e beberrões, convivendo com a pureza doce de moças virgens e casadoiras. Tudo isso no cenário paradisíaco de uma Ilhéus ainda por ser desvendada. A trilha sonora da novela apresentava agradáveis surpresas musicais, tanto nas vozes ainda desconhecidas de Djavan (“Alegre Menina”) e Fafá de Belém (“Filho da Bahia”), como nos já consagrados timbres de Gal Costa (“Modinha para Gabriela” – tema de abertura) e Maria Bethânia (“Coração Ateu”). Nessa turma de bambas estava o Quarteto em Cy, com a linda e refinada interpretação de “Horas” (Dorival Caymmi), acompanhadas por Luizão Maia no contrabaixo e Oscar Castro Neves no piano e violão. O arranjo, envolvendo apenas três instrumentos, dava a dose exata de simplicidade necessária à mais alta sofisticação. A música era tema do personagem Profes­sor Josué, vivido por Marco Nanini, que fazia par romântico com Glorinha da Janela (Ana Maria Magalhães). No CD comemorativo dos quarenta anos de carreira, lançado em 2004 pela Universal, a canção foi reeditada, entre outras raras e inéditas que compõem o repertório cuidadosamente elaborado desse álbum duplo: “Se já fora / que importa agora /retalhar a dor, ai / que doeu outrora / Infindada / a vez não é nada / passaram-se agora / horas, horas.” O show “O Rio Amanheceu Cantando”, apresentando obras de Braguinha, foi um dos principais trabalhos do Quarteto em Cy em 1975. Elas ficaram três meses em cartaz na antiga boate Vivará, no Leblon, onde atualmente é o Scala, num espetáculo que tinha ainda a participação de Elizeth Cardoso e orquestra, MPB4 e Sidney Magal. A montagem era teatral, apresentando vários momentos do compositor carioca, com canções que mostravam seu lado romântico, carnavalesco e também infantil. Elizeth – a Divina – fazia solos majestosos. O figurino era de Gisela Machado, esposa de Carlos Machado, produtor musical e diretor do espetáculo, conhecido como “Rei da Noite”, apelido que ganhou de Sérgio Porto. Machado dividiu a direção com Aloysio de Oliveira. Não existe registro desse show, nem em uma simples fita casse­te, como a que rendeu o disco da turnê com Vinicius em 74. Porém, quem morou ou passou pelo Rio naquela época certamente tem algo a contar sobre o musical que garantiu casa lotada em todas as sessões na zona sul carioca. Depois de passearem pelo repertório suave de Braguinha, dividindo o palco com outros artistas, as meninas investiram numa apresentação solo do Quarteto, de forte contexto político, com textos de Aldir Blanc e canções de vários compositores. “Resistindo”, música de Aldir Blanc e João Bosco lançada nesse show, foi também o título do espetáculo que reuniu músicos de peso como Luiz Cláudio Ramos (violão), Luizão Maia (contrabaixo), Laércio de Freitas (piano) e Pascoal Meireles (bateria). A estreia aconteceu no dia 23 de setembro de 1976, no Teatro Fonte da Saudade, e a montagem viajou pelo Brasil todo, exibindo criatividade, versatilidade e coragem em cenários, arranjos e coreografias que surpreendiam o público. O figurino era assinado por Alice Tapajós, prima de Dorinha, e que se tornou uma das maiores estilistas do país. As meninas usavam saias compridas e coloridas, compostas com batas, em estilo hippie. A direção cênica de Benjamim Santos levou as quatro a terem uma impor­tante experiência com performances exaustivamente ensaiadas que lhes deram fundamental domínio de palco. O roteiro, cuidadosamente elaborado, incluía também poemas de Cecília Meireles e Carlos Drumonnd de Andrade. O show foi considerado pela crítica como um divisor de águas na carreira do Quarteto em Cy, que completava 11 anos. As meninas tinham deixado para trás os quatro banquinhos diante dos pedestais de microfones, que costu­mavam deixá-las estáticas no palco, para arriscarem coreografias que levavam os corpos a acompanharem as vozes em movimentos e intenções. Era comum os espetáculos musicais serem divididos também em duas ou três entradas, como as peças de teatro e, três meses após a estreia, a censura resolveu atentar para a letra de “O Ronco da Cuíca”, também de Bosco e Blanc, que fechava o primeiro ato. Passaram a tesoura e elas foram proibidas de interpretar a canção. Foi então que tiveram a grande ideia de a apresentarem apenas instrumentada e, nesse momento, se viravam de costas para o público, enrolando os fios dos microfones nos pulsos, atrás do corpo, como que algemadas, deixando-se levar pelo embalo da banda que conduzia a canção através de firmes notas musicais, passando o recado à plateia: “Roncou, roncou, roncou de raiva a cuíca, roncou de fome / Alguém man­dou, mandou parar a cuíca é coisa dos homi...” Em uma das apresentações, elas faziam uma coreografia em roda cantando descalças o “Funeral de Um Lavrador”, música de Chico Buarque para poema de João Cabral de Melo Neto. Em plena dança e cantoria apareceu uma indesejada barata no meio do palco e as quatro suaram frio para que ninguém mais percebesse a presença da intrusa. Uma aventura e tanto, mas foi bem mais fácil driblar o inseto do que a censura naquele momento. “Resistindo” foi um sucesso absoluto de crítica e teve, na plateia, a presença de ícones da música nacional e internacional, como o pianista e arranjador francês Michel Legrand, Milton Nascimento, Caetano Veloso, entre vários outros e, como não podia deixar de ser, Vinicius de Moraes, que assistiu orgulhoso as interpretações de suas meninas para seus afro-sambas. Entre as canções lançadas nesse espetáculo, está “Mulheres de Atenas”, parceria de Chico e Augusto Boal, composta para a peça de mesmo nome que Boal escreveu quando morava em Portugal. O Quarteto em Cy fez também a primeira gravação dessa música que depois ganhou várias versões nas vozes de diversos intérpretes. Havia uma espécie de fã-clube formado por jovens tietes que habitualmente frequentavam o show. Entre elas, a então novata Bia Paes Leme, que se transformou em grande pianista, arranjadora instrumental e vocal, chegando a compor arranjos importantes para o Quarteto em Cy. Bia também participou de grupos vocais, inspirados em suas ídolas, como o “4 Cantos”, que depois virou “Viva Voz” e, hoje em dia, ela é presença certa entre os músicos que costumam acompanhar Chico Buarque em suas raras e disputadas aparições pelos palcos do Brasil. Cynara começou a turnê grávida de dois meses do seu terceiro filho, Francis­co, depois de uma ameaça de aborto, e as apresentações duraram até quase o fim da gravidez. No show de estreia, ela teve que cantar praticamente dopada por remédios para dor e uma injeção para controlar a hemorragia. Na plateia, o médico dela, Dr. Luiz Freitas Guimarães, ficou de plantão caso houvesse alguma emergência. Sensível a esse momento ambíguo vivido por Cynara, que teve que encontrar, na alma, o equilíbrio entre a mãe que quase perdeu o filho no ventre e a artista que estava às vésperas de estrear um importante trabalho, Aldir Blanc lhe escreveu uma carta, inspirada nos versos do poema “Dorme, meu menino, dorme”, de Cecília Meireles, musicados por Sueli Costa e que também fazia parte do repertório do show. As palavras de Aldir emocionaram a todos: “Resistindo,apesar da nova ruga vincada na cara apesar da nova dor crava­da no peito apesar do pedaço de sonho arrancado do corpo resistindo à exemplo das mulheres de Atenas, pequenas Helenas do nordeste, brasilei­ra, cabra da peste. ainda que não reste nada, resistir em cy, em cyma do lance porque morreu Felipe dos Santos, morreu Felipe? João? José? morreu uma mulher? não sei. mas vi nascer uma flor de pura resistência e outras – eu sei – ainda nascerão.” (Aldir Blanc, 24/06/1979) Numa sessão em Marechal Hermes, subúrbio do Rio de Janeiro, enquanto cantavam “Pedro Pedreiro”, de Chico, Cynara, que já estava por volta do oitavo mês de gestação, teve uma queda de pressão por causa do calor e precisou ser atendida por um médico que estava na plateia. Francisco nasceu 15 dias depois do fim da turnê e a mamãe voltou aos palcos um mês após o parto, emendando um novo trabalho do grupo, dessa vez com o MPB4, e deixando o bebê aos cuidados da sogra. Nem é preciso dizer que também esse terceiro e último rebento de Ruy e Cynara trilhou caminhos musicais. Depois de excursionar pelo heavy metal, com a banda Anesthesia, suas origens falaram mais alto e Chico Faria se entregou aos encantos do choro. Essa foi sua porta de entrada para a música popular brasileira. Hoje, com seu cavaquinho, bandolim e violão, ele acompanha grandes nomes páginas anteriores – Quarteto em Cy com Toquinho em Buenos Aires. Músicos: Mutinho (bateria), Azeitona (baixo) e Laércio de Freitas (piano) (1974) pelo país e, claro, o Quarteto em Cy. Exibindo também grande talento vocal, ele gravou um CD interpretando músicas de seu xará, Chico Buarque. O álbum “Chico canta Chico” teve participação do homenageado e também de seus pais, Cynara e Ruy, além de Dudu Nobre, Mariana Bernardes e Fred Martins. A direção musical, arranjos e violão do disco ficaram por conta de Luiz Cláudio Ramos e esse trabalho foi lançado na Itália e Japão. Luiz Cláudio Ramos foi responsável também pela direção musical de “Resistindo”. Ali, começou uma ligação importante com o Quarteto em Cy. Durante a década de 80, ele foi o principal arranjador do grupo e, juntos, perpetuaram belíssimas canções. Em 1975, ele acompanhou Mick Jagger na gravação de “Scarlet”, nos estúdios da PolyGram, no Rio. É um músico disputadíssimo e, desde 1989, assina a direção musical e todas as produ­ções dos shows e discos de Chico Buarque, além de fazer parte da banda que acompanha o artista em turnês. A cabeça totalmente grisalha, o tom de voz baixo, o olhar ora vago, ora mirando para baixo e a fala com pausas longas, como que compassada por intervalos de semibreves numa partitura, dão a impressão de que Luiz Cláudio é a personificação da timidez em seu mais alto grau. Depois de um tempo, percebe-se que o cuidado e perfeccionismo que ele busca para posicionar notas musicais em seus arranjos se repetem quando procura colocar as palavras certas, no momento exato para expressar o que pensa. Transformar sentimentos e pensamentos em palavras exige muito mais dele do que colocá-los nas pautas de um pentagrama musical. Luiz Cláudio Ramos respira e transpira música. Vive numa dimensão do universo que é toda feita de som e isso envolve quem está à sua volta. Mesmo os momentos de silêncio na presença dele parecem sugerir uma orquestra de fundo, colocando trilha sonora no que ele diz. “Antes de tudo, eu tenho que agradecer ao Quarteto em Cy. Elas foram a minha escola. Comecei a gravar com elas nos anos setenta, em arranjos só de orquestra, primeiro, e, depois, passei a fazer os arranjos vocais. E aqui nós temos poucas escolas. Na época eu não tinha consciência – eu sabia sem ter consciência, sem realizar – que aquilo que estava fazendo seria muito importante para mim. Foi uma época em que eu estava gravando muito e tive até vários convites e declinei a todos, meio sem saber por quê. No fundo, eu sabia que o importante para mim era trabalhar com o Quarteto naquela época e foi o que fiz. Mais do que qualquer coisa, eu agradeço muito ao Quarteto em Cy. Era muito fácil trabalhar com elas. Foi uma experiência incrível. Elas foram ótimas companheiras de viagem. Não há um trabalho que eu prefira dos que fizemos juntos. Acho que foi evoluindo com o tempo. Talvez os últi­mos tenham mais consistência, mas não há um preferido. Foi sempre uma troca, mas acho que eu levei vantagem, porque aprendi muito com elas. Realmente, acredito que elas foram a parte mais importante da minha carreira, para eu descobrir de fato o que é música. Eu percebi uma lógica na música depois que já tinha parado de trabalhar com elas, mas houve uma evolução a partir do trabalho com elas. Eu só cheguei a essas conclusões musicais depois, em função de tudo que nós vivemos. O trabalho do Quarteto é uma coisa tão idealista, tão musical que está além do conceito de época. A mídia e o mercado variam, tem seus momentos, mas tudo que o Quarteto em Cy faz é para sempre. É música, no sentido mais puro da palavra. Elas nunca se envolveram com o mercado, a moda, a comercialização. A preocupação foi sempre com a qualidade musical.” Luiz Cláudio Ramos ANTOLOGIAS, COBRAS E QUERELAS O show “Resistindo” foi gravado ao vivo e se transformou em um elepê lançado pela Philips dois anos depois, em 1977. Antes disso, a gravadora colocou no mercado uma série chamada “Antologia”, que homenageava vários estilos e compositores da arte popular brasileira por meio de diver­sos intérpretes. Foi um projeto de Roberto Menescal, quando ele era diretor comercial da gravadora. O Quarteto em Cy foi o grupo escolhido para gravar a “Antologia do Samba Canção”. O disco trazia a nata dos compositores que dominavam o cenário musical entre as décadas de 30 e 50. As faixas continham canções de Antônio Maria, Ary Barroso, Garoto, Tito Madi, Jair Amorim, Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Johnny Alf e Dolores Duran. Apesar de não ser contemporâneo desses compositores, Carlos Lyra também teve seu quinhão no álbum com “Primavera” e “Minha Namorada”, parcerias com Vinicius. “Antologia do Samba-Canção” foi um sucesso absoluto. A crítica não poupou elogios; o público aplaudiu e pediu bis. A gravadora atendeu e lançou o segundo volume: “Antologia (Vol. 2) do Samba Canção. Os dois discos reuniam as canções de cada compositor em pot-pourris, o que permitiu o registro de incríveis 23 músicas no primeiro volume e 19 no segundo. O primeiro “Antologia” trazia, na capa, as fotos dos compositores homena­geados e um pequeno texto sobre cada um, muito bem escrito e assinado por Paulinho Tapajós, irmão de Dorinha, que foi o produtor dos dois discos. Paulo Tapajós, carinhosamente chamado de “Seu Paulo” – grande cantor e compositor, e também pai de Dorinha e Paulinho –, foi o responsável pela seleção do repertório dos dois volumes, nos quais utilizou como principal material de pesquisa sua enorme coleção de discos, alguns em 78 rotações. Com o reconhecimento de crítica e público para o álbum, o segundo volume em homenagem ao samba-canção trazia na capa os rostos de Cynara, Cyva, Sonya e Dorinha em destaque, com o mesmo formato dos textos sobre os compositores. Essa segunda versão continha canções de Armando Cavalcanti, Chocolate, Custódio Mesquita, Marino Pinto, Tom Jobim, Noel Rosa, Fernando Lobo, Haroldo Barbosa, Fernando César e Dorival Caymmi. O MPB4 teve participação especial nos dois volumes, cantando o pot-pourri de Jair Amorim no primeiro e de Tom Jobim no segundo, que também contou com a participação do maestro ao piano. Nos dois discos, Oscar Castro Neves, Luiz Cláudio Ramos e Miltinho (do MPB4) deram uma roupagem super moderna às canções com arranjos impecáveis. O projeto da série “Antologia”, da gravadora Philips, lançou um total de 21 elepês com um acervo riquíssimo e que continha verdadeiras pérolas como “Antologia da Marchinha”, com Marlene; “...da Seresta”, com Jair Rodrigues; “... do Baião”, com o Quinteto Violado e também se estendeu ao universo da poesia homenageando Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana e Vinicius de Morais em três “Antologias Poéticas”, interpretadas pelos próprios autores. Foi, indubitavelmente, um dos mais importantes registros da cultura popular brasileira. De todos os temas, apenas três tiveram um segundo volume: a “Antologia do Chorinho”, por Altamiro Carrilho; “Antologia do Samba”, pelo MPB4 e a “Antologia do Samba-Canção”, pelo Quarteto em Cy, que acabou realmente se tornando um registro antológico na carreira do grupo. Infelizmente, não foi relançado em CD no Brasil, mas pode ser encontrado neste formato no Japão, junto com a discografia completa do Quarteto. “Me lembro da primeira vez que eu vi as meninas. O Aloysio falou assim: ‘vai ter uma reuniãozinha onde o Vinícus apresentará um grupo vocal. São as baianinhas.’ A primeira impressão foi muito legal porque não havia um quarteto vocal de mulheres. Normalmente, os conjuntos vocais eram formados só por homens. Às vezes havia uma mulher no meio, como na primeira formação do ‘Os Cariocas’, mas nunca só de mulheres. Nos Estados Unidos já havia, mas aqui não. Então, de cara eu levei um susto e perguntei: ‘mas são só mulheres?’. Não é machismo. Era apenas porque isso realmente não acontecia. Depois, elas já vinham naturalmente com uma harmonia mais chegada ao que nós fazíamos aqui no Rio. Aquilo que considerávamos uma música moderna. Até então, os grupos vocais que apareciam apresentavam uma coisa muito tradicional. Quando vinham do Nordeste, costumavam ter uma influência dos jesuítas. Ficava meio folclóri­ca, modal. Quando eu as ouvi cantando, aquilo me impactou. Pensei que se elas tivessem um bom arranjador, poderiam ir longe. Depois, ficamos muito próximos. Em seguida eu me distanciei um pouco, porque passei um longo período tocando com a Elis Regina e, em seguida, me chamaram para trabalhar na Polygram (na época ainda Philips). Lá eu resolvi fazer uma série de discos dedicados à música brasileira em que cada artista fazia um gênero. Eram antologias do samba, do samba-canção, do chorinho, da marchinha, etc. Estávamos inaugurando a tecnologia de grava­ção em 8 canais e aquilo era um luxo. Colocávamos na capa: ‘gravado em 8 canais’. Hoje tem 180 canais (risos). Fiquei imaginando quem poderia fazer melhor a antologia do samba-canção e que não ficasse algo de uma voz só. Então pensei no Quarteto em Cy e no Oscar Castro Neves como arranjador, porque ele tinha a cabeça sempre moderna. E acho que acertei. O grande disco de vocal foi ‘Antologia do Samba-Canção’. Ele é todo perfeitinho, redondinho. Não tem uma faixa ruim. Esse disco é da maior importância. Ainda não foi relançado em CD. Falta informação e formação cultural para que percebam a riqueza de um projeto desses.” Foi no Japão que o cantor Sean Lennon, filho de John Lennon e Yoko Ono, teve acesso aos discos do Quarteto em Cy e se apaixonou tanto pelas “Antologias” que comprou 80 unidades para presentear os amigos. No ano 2000 ele veio ao Brasil pela segunda vez para participar do Free Jazz Festival, fez questão de conhecer as meninas pessoalmente e as convidou para gravarem com ele a canção “Julia”, de autoria de seu pai. A gravação fez parte do projeto “Dê uma chance à paz: John Lennon, Uma Homengem Brasileira”, celebrando os 20 anos da morte do ex-Beatle, produzido por Marcelo Fróes e gravado pelo selo Geleia Geral, de Gilberto Gil. Além de Gil e do Quarteto em Cy, participaram desse projeto Milton Nascimento, Zé Ramalho, Cássia Eller, Zélia Duncan, Herbert Vianna, João Barone, Zeca Baleiro, Paulinho Moska, Arnaldo Batista, Lobão e Lulu Santos. Mas o registro com o Quarteto acabou não entrando, não se sabe bem por quê. Conversas de bastidores assuntam que Yoko Ono não queria a regravação e que, misteriosamente, a fita master teria desaparecido. De qualquer forma, mesmo que apenas poucos privilegiados tenham conhecido a versão de “Julia” com o Quarteto em Cy, a impressão musical que o grupo causou a Sean não pôde ser apagada pela mãe do rapaz. Um mês depois do nascimento de Francisco, o filho mais novo de Cynara e Ruy, o Quarteto em Cy e o MPB4 se aventuraram em mais um trabalho do octeto com o espetáculo “Cobra de Vidro”. Chico ficou com a avó paterna enquanto os pais saiam em turnê pelo Brasil. Não foi uma temporada longa, mas o show foi memorável. Passaram por São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, e as viagens eram feitas por terra e por ar. Enquanto os dois grupos se deslocavam de avião entre uma cidade e outra, pela estrada ia um caminhão enorme com uma parafernália de equipamento de som, cenário e figurino, digna de uma megaprodução. Túlio Feliciano estava estreando como roteirista e diretor de espetáculos e a oportunidade não podia ser melhor. A produção era toda bancada por eles mesmos, que recuperavam o investi­mento nas bilheterias; algo praticamente impossível nos dias de hoje. “Cobra de Vidro” contava a história dos dois grupos e recebeu esse nome em alusão à espécie de serpente, que se divide em infinitas partes, dando vida a cada uma. E assim eles faziam com as vozes. Em alguns momentos, abriam os oito naipes; em outros formavam duetos, trios ou quartetos entre si, revezando os pares, num balé vocal impressionante. Eles deram esse nome ao show baseados em uma canção homônima de Chico Buarque, composta para o espetáculo “Calabar”. A própria música não entrou nesse repertório do Quarteto em Cy e MPB4, mas sim a ideia de várias vidas em uma só que a cobra de vidro – o réptil – traz. Quem é essa mulher / que canta sempre esse estribilho / só queria embalar seu filho / que mora na escuridão do mar. Os versos são da canção “Angélica”, de Chico Buarque, e que foi lançada pelo Quarteto em Cy nesse show. Chico compôs a música em parceria com Miltinho, do MPB4, logo após a morte de Zuzu Angel, num trágico e inexplicável – ou intragável – acidente de carro. Zuzu foi uma grande estilista brasileira, casada com um norte­americano e mãe de Stuart Angel Jones, um ativista político entre as décadas de 60 e 70, que foi preso, torturado, morto e atirado ao mar. Sua mãe passou a se dedicar a encontrá-lo e organizou um dossiê com vários documentos que conseguiu em suas incansáveis buscas. Zuzu recebeu várias ameaças de morte e entre os amigos dava nome aos bois e dizia que se alguma coisa acontecesse com ela, seria culpa dos mesmos assassinos do filho. A morte de Zuzu era recente na época do “Cobra de Vidro” e a interpreta­ção do Quarteto em Cy, com o arranjo impecável de Luiz Cláudio Ramos, era sempre muito carregada de emoção. Era um momento do show em que apenas as meninas estavam no palco, acompanhadas dos músicos. Elas cantavam essa música sentadas nos praticáveis espalhados pelo palco e cada uma solava uma estrofe, transbordando toda a reverência, indignação e saudade expressos nos versos de Chico. O espetáculo terminava com o arranjo vocal feito por Magro para a “Fuga” de Heitor Villa Lobos. Nessa canção, os oito mostravam que para um traba­lho como o que estavam apresentando, não bastava apenas vozes afinadas ou timbres bem casados, mas uma grande cumplicidade musical entre cantores de um nível de qualidade para o qual o Brasil talvez ainda não estivesse – e provavelmente ainda não está – preparado. O pega-pega de vozes protagonizado por eles, reproduzindo fiel e talentosamente a composição de Villa-Lobos em todos os seus rebuscados acordes, deixava a plateia atônita e, ao final, sempre arrancava aplausos intermináveis em reconheci­mento a tanto virtuosismo. Dorinha Tapajós estava grávida durante a turnê de Cobra de Vidro. Por isso, quando o empresário Alfredo Radizinsky quis levar o espetáculo para a Argentina, Dorinha preferiu não arriscar e achou que era preciso dar um tempo dos palcos pelo menos até o nascimento do bebê. Com isso, a turnê do octeto foi interrompida e alguns shows que estavam agendados em outras cidades brasileiras foram cancelados. O elepê Cobra de Vidro, com Quarteto em Cy e MPB4, foi lançado pela Philips em 1978, mas antes, no mesmo ano, as meninas gravaram, pelo mesmo selo, Querelas do Brasil, que tinha Angélica no repertório, registrando a primeira gravação da música. Querelas do Brasil foi um disco atrevido, a começar pela capa, que trazia as fotos das meninas entre cenas que retratavam realidades brasileiras como fome, pobreza, crime ecológico, num mosaico de imagens que denuncia­vam questões políticas, sociais e ambientais. O repertório era formado por canções questionadoras, insinuantes e provocativas, como a própria Querelas do Brasil, de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, que deu nome ao disco; Salve o Verde, de Jorge Ben; e Angélica, a homenagem de Chico a Zuzu Angel. DESCAMINHOS Desde 1977, elas faziam parte de uma associação de artistas que tinha o intuito de administrar os recursos arrecadados com os shows, adquirindo equipamen­tos próprios em busca de infraestrutura para a realização de produções indepen­dentes. A ideia era muito boa e funcionou bem na época do “Cobra de Vidro”. Desde o caminhão que transportava os aparatos de som, luz, cenário e figurinos até os equipamentos propriamente ditos, tudo pertencia ao grupo, por meio dessa associação e as despesas de aquisição e manutenção vinham das bilheterias dos shows, que também garantiam um bom cachê para todos. Entre o final de 1978 e o começo de 1979, o Quarteto em Cy montou o espetáculo “Em 1000 Kilohertz”, dirigido por Túlio Feliciano na parte cênica e Luiz Cláudio Ramos na parte musical. O espetáculo tinha como tema central o rádio e retratava as 24 horas de programação, mostrando notícias, novela, horóscopo e, claro, música. O intervalo era marcado pela “Hora do Brasil”. Foi uma montagem muito elaborada. Uma peça toda musicada em que cada uma das cantoras tinha um figurinista. Tudo funcionava – ou tentava funcionar – sob a mega-estrutura sugerida pela tal associação, mas o barco começou a naufragar. As poucas informações que as meninas recebiam da área administrativa era que a bilheteria não estava cobrindo os gastos com a produção e que o caixa estava no vermelho. É fato que a falta de experiência delas nessa área acabava permitindo certa desinformação sobre as contas. Isso não quer dizer que houve qualquer falcatrua, mas, quando elas se deram conta, foram informadas que as dívidas já eram bem maiores que a arreca­dação da bilheteria do show, que lotava todas as sessões e, por causa disso, tiveram que interromper as apresentações. Foi também na época desse show que Daniel Filho, então na Rede Globo, convidou-as para participarem do especial “Mulher 80”, um programa musi­cal que vinha na esteira do seriado “Malu Mulher”, estrelado por Regina Duarte, e que pontuou um momento importante de mudanças no comporta­mento feminino. Divórcio, independência financeira, conciliação entre a vida profissional e doméstica eram os assuntos que começavam a desenhar o novo perfil da mulher brasileira. E essa era a realidade da personagem de Regina, que ganhava cada vez mais identidade com o público feminino. Em “Mulher 80”, Daniel aproveitou a onda do seriado para homenagear cantoras brasileiras. As convidadas eram as de maior evidência, não apenas pelo talento, mas também pela empatia e identidade com o público. O Quarteto em Cy fez parte desse elenco, que tinha também Elis Regina, Simone, Maria Bethânia, Marina Lima, Fafá de Belém, Rita Lee, Zezé Motta, Joanna, Rosinha de Valença, Ângela Ro Ro e Gal Costa. Além de cantar, cada uma dava depoimentos, onde falavam de suas fragilidades, medos, particularidades, mostrando a mulher por trás da estrela. O Quarteto em Cy cantou “Feminina”, de Joyce, acompanhado da atriz Narjara Turetta que, no seriado “Malu Mulher”, fazia o papel da filha de Malu (Regina Duarte). Essa gravação, inclusive, fazia parte da trilha sonora do seriado. Em abril de 2008, a gravadora Biscoito Fino lançou o DVD “Mulher 80” com uma edição diferente da que foi ao ar pela Rede Globo. Na versão digital da gravadora, não aparece o depoimento de Cyva, mas ainda assim, vale a pena rever as meninas naquele alto astral em que foi gravado o programa. É importante ressaltar que, nos últimos anos da década de 70, o Brasil vivia um momento de transição política e econômica com forte influência em todos os setores da sociedade e não seria diferente com a classe artística. Politicamente, começava-se a enxergar uma suave abertura. Em 1978, o então presidente da república Ernesto Geisel assinou a anulação do AI-5, instrumento mais duro do governo militar, responsável pela instituição da censura e pelo exílio de milhares de ativistas políticos brasileiros. A economia, por sua vez, lidava com uma alta incomum no preço do petróleo, que levava a grandes aumentos no valor da gasolina, o que comprometia muito o custo de locomoção de espetáculos em turnês. A inflação disparada enchia os olhos dos desavisados com juros estratosféricos, e as pessoas guardavam dinheiro compulsivamente em aplicações financeiras, freando os investi­mentos de forma geral. Não é difícil concluir que a área cultural foi uma das mais prejudicadas com essa situação toda. No final de 79, já sob o governo do general João Batista Figueiredo, último presidente da era militar, os primeiros exilados políticos começaram a voltar ao Brasil, beneficiados pela Lei da Anistia, que havia sido assinada por ele em agosto daquele mesmo ano. A luta pelo perdão político, iniciada pelo páginas anteriores – Sonya, Cynara, Dorinha e Cyva (1979 – no show “Em Mil Kilohertz movimento estudantil desde a instituição do AI-5 em 1968, e que foi ganhan­do adesões, finalmente chegava muito perto do objetivo de “anistia ampla, geral e irrestrita”, frase que ecoava cada vez mais alto nas grandes manifes­tações populares do país. E foi sob esse clima de novos ares, que aponta­vam para mudanças de uma forma geral, com aspectos positivos e negativos, que o Quarteto em Cy entrou na década de 80, caminhando para os vinte anos de carreira. O ano de 1980 começou trazendo uma avalanche de mudanças. A década que se iniciava apontava para novos caminhos musicais, que fariam o pop prevalecer sobre todos os ritmos. Letras fáceis de decorar, arranjos simples e refrões que grudavam na cabeça até serem incessantemente cantarolados, era o que mais interessava às gravadoras, emissoras de rádio e, consequen­temente, ao público que passava a consumir o que estava mais ao alcance. Não que não houvesse boa música. Cazuza, Renato Russo, Arnaldo Antunes, Hernert Vianna foram alguns dos vários nomes que despontaram a partir da década de 80, mostrando muita personalidade sonora. Mas era nítido que o mercado estava muito mais aberto ao comércio rápido e rentável do pop rock, e o cargo de direção artística das gravadoras já deixava de ser ocupado por músicos ou grandes conhecedores de verdadeiros talentos, para dar lugar a executivos caçadores de sucessos-relâmpagos. Apesar desse novo cenário que se desenhava, manter a qualidade musical sempre foi uma questão intocável para o Quarteto em Cy, que jamais se rendeu às tendências comerciais e continuou realizando seu trabalho com a mesma preocupação em respeitar o estilo e a originalidade do grupo. Ao mesmo tempo, as meninas acompanhavam o que havia de novo e bom, e procuravam inserir essas novas tendências em seus repertórios de shows e discos, colocando nas canções a marca inconfundível da interpretação e arranjos do Quarteto em Cy. Foi o caso de novos compositores que come­çavam a ser conhecidos através daquelas quatro vozes, como Kledir Ramil, da dupla Kleiton e Kledir, quando teve a sua canção em parceria com Fogaça, “Vinho Amargo”, gravada pelo Quarteto no “Em 1000 Kilohertz”: ... Sabe companheiro / Eu não sei perder / Ergue o vinho amargo / Que se vai fazer? / Pobre do meu povo / E de todos nós / Nos calaram tanto tempo / Já não temos voz / Ai essa dor no peito / No fundo do olhar / Bebe esse copo meu amigo. FORMAÇÃO DEFINITIVA A década de 80 começou acelerada e com um bom ritmo de produtividade. Em 1980, o Quarteto em Cy lançou dois discos pela Philips, “Flicts”, novamen­te com o MPB4, e “Quarteto em Cy Interpreta Gonzaguinha / Caetano / Ivan / Milton”. Passeando quase que simultaneamente pelos universos infantil e adulto com tamanha versatilidade de sons, as intérpretes mostravam que a arte delas não era limitada por estilos determinados, mas que, havendo música de qualidade, era o suficiente para que imprimissem a personalidade musical característica do grupo em interpretações sempre memoráveis. “Flicts” é um livro do escritor e cartunista Ziraldo, de 1969, que conta a história de uma cor incompreendida e desconhecida que procurava seu lugar no mundo. Depois de muito vagar, ela passeia pelo espaço sideral e descobre que a cor da Lua é flicts. Ziraldo escreveu as letras e o compositor e arranjador Sérgio Ricardo as musicou. Aliás, foi dele toda a concepção e produção do disco. Magro Waghabi, do MPB4, assinou alguns dos arranjos vocais, mas a maioria ficou mesmo por conta de Sérgio. O octeto contava a história de “Flicts” em treze faixas primorosamente elaboradas, formando um trabalho infantil que deveria ser obrigatório na discoteca de qualquer criança, não fosse pelo fato de que o disco está entre os que ainda não foram reeditados em CD. O disco com composições de Gonzaguinha, Caetano Veloso, Ivan Lins e Milton Nascimento, igualmente ainda sem versão em CD, também saiu pela Philips no mesmo ano. Esse LP estava recheado de lançamentos. Quando Cynara foi à casa de Caetano para falar sobre o trabalho, ganhou dele as inéditas “Abandonado” e “Não posso me esquecer do adeus”. Da visita a Gonzaguinha, ela voltou com “Ciranda Menina”. De Ivan Lins e Vítor Martins veio “Barco Fantasma”, que Ivan gravou no mesmo ano no LP “Novo Tempo”. De Milton Nascimento elas ganharam “O último trem”. O mineiro entregou a letra escrita à mão num papel com um trenzinho desenhado por ele. Dorinha Tapajós adoeceu e não conseguiu concluir a gravação do “Quarteto em Cy interpreta...” e Cybele, que estava afastada do grupo desde 1970, quando decidiu permanecer nos Estados Unidos depois que Cyva voltou ao Brasil, gravou a maioria das faixas desse LP, substituindo Dorinha, que havia participado de apenas três: Idolatrada (Milton Nascimento), Lua, lua, lua (Caetano Veloso) e Começaria Tudo Outra Vez (Gonzaguinha). Dorinha faleceu, precocemente, em 1989. Em 1980, numa reunião com Cynara, Cyva e Sonya, ela havia decidido que era hora de se afastar do grupo. Não queria ser um entrave para a continuação do trabalho, nem que as companheiras tivessem que recorrer a Cybele ou a quem quer que fosse para substituí-la cada vez que estivesse mal. Ela sabia que esse quadro se repetiria com mais frequência e achava que o Quarteto em Cy não deveria ser prejudicado. Foi assim que Cybele voltou definitivamente, completando a formação que permanece até hoje: Cynara, Cyva, Cybele e Sonya. SEGUINDO EM FRENTE Depois da participação no LP “Quarteto em Cy interpreta Gonzaguinha / Caetano / Ivan e Milton”, e com a saída de Dorinha Tapajós, Cybele foi convi­dada a voltar ao grupo, o que ela aceitou feliz da vida. Durante o tempo em que esteve afastada, ela incursionou pelo Quarteto quando era necessário substituir alguma delas. Desde que voltou dos Estados Unidos e depois da morte da mãe, Cybele continuou cantando. Em 1974, ela lançou um compacto duplo pela gravadora CID e, no mesmo ano, passou a integrar o coro oficial da Rede Globo. Como todos os outros candidatos, Cybele participou do processo seletivo para compor o coro, sem que ninguém soubesse que ela havia sido uma das Cys do famoso Quarteto das irmãs baianinhas, afilhadas musicais de Vinicius de Moraes. Não que Cybele renegasse o grupo ou deixasse de reconhecer a importância de ter participado dele, mas achava que não seria honesto se valer daquela referência para obter alguma vantagem sobre os demais. Preferiu ser avaliada pela capa­cidade vocal que sabia ter, independentemente de já ter passeado, junto com as irmãs, pelas páginas de jornais e revistas, e pelos estúdios das principais emissoras de rádio e tevê do Brasil e do exterior. E, assim, ela foi aprovada em todas as fases da seleção para compor o coro que era um octeto formado por quatro vozes masculinas e quatro femininas. Todas as aberturas de programas da emissora, além de apresentações ao vivo que pediam arranjos vocais, eram feitas por esse grupo, que registrou gravações antológicas como as vinhetas do “Fantástico”, “Globo de Ouro”, “Chico City”, entre tantas outras até hoje lembradas por quem viveu aquela época em que as artes e talentos ainda não haviam sido substituídos pelos pirotécnicos recursos eletrônicos. Cybele fez parte do coro da Rede Globo de 1976 a 1985, como funcionária contratada e com registro em carteira. Nesse período, chegou também a acompanhar Roberto Carlos, como backing vocal, em apresentações que ele fez no palco do Canecão, no Rio de Janeiro, não demorando a conquistar o respeito, admiração e carinho do “Rei”. Em 1980, ela voltou definitivamente ao Quarteto em Cy e, durante três, anos ainda se dividiu entre os trabalhos com o grupo e o coro da Globo. Apesar da volta de Cybele ao Quarteto e da possibilidade de seguir em frente, o grupo sofreu o abalo da saída de Dorinha e de todos os porme­nores que envolviam essa situação. Somado a isso, o mercado fonográfico já se rendia bastante ao pop e trabalhos como o do Quarteto em Cy e de outros grupos e artistas, que até então dominavam o cenário, sustentados pela onda da Bossa Nova e das canções de protesto, começavam a perder espaço na mídia. As turnês superproduzidas, com cenários elaboradíssimos, roteiros ricos em detalhes e arranjos musicais muito rebuscados se torna­ram inviáveis. Manter a qualidade musical, disputando espaço com a nova tendência sonora que privilegiava hits com bordões fáceis e que pudessem ser repetidos como um mantra pelas massas. Os artistas já não recebiam mais cachês para participar dos programas de rádio e tevê e, na maioria da vezes, já se desenhava o caminho inverso que começou a institucionalizar o chamado “jabá” – abreviação de “jabaculê”, que significava o pagamento, por meio de dinheiro, produto ou benefício, em troca de exposição na mídia –, sempre negado por muitos, mas sabido por todos. O perfil dos diretores musicais de gravadoras ou de programas da mídia eletrônica passava a ter mais a ver com grandes executivos e homens de negócios do que com pessoas envolvidas com o meio, capazes de garimpar verdadeiros talentos ou de valorizar o que o mercado já tinha de bom. Era tempo de novos valores, nem piores nem melhores, apenas diferentes. 9 DE JULHO DE 1980 O Quarteto em Cy continuava na luta e procurando tocar o barco, agora em águas mais turbulentas. As meninas já estavam próximas de completar 20 anos de carreira e, durante esse tempo, adquiriram maturidade pessoal e musical suficiente para seguirem o caminho, a despeito do que aconte­cesse. Como na “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, elas pensavam que “no entanto é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, é preciso cantar e alegrar a cidade”. O poetinha, por sua vez, vivia a fragilidade da saúde debilitada pela diabete e pelo derrame sofrido um ano antes, no avião, de volta de uma viagem à Europa. Em abril de 1980, Vinicius havia sido submetido a uma cirurgia para colocação de um dreno no cérebro. No dia 9 de julho do mesmo ano, em sua casa no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, acompanhado do amigo e parceiro Toquinho, com quem acertava os últimos detalhes para o lançamento do disco infantil “A Arca de Noé”, o poeta começou a passar mal enquanto tomava mais um dos seus tão adorados banhos de banheira. Aquele, o derradeiro. Naquela madrugada angustiante, como que fazendo parte do quadro incon­cebível de um inverno carioca, Vinicius sucumbiu. Dizem que um dia antes, em uma entrevista, um repórter lhe perguntou se ele estava com medo da morte, ao que Vina teria respondido: “Não, meu filho, eu não estou com medo da morte, estou com saudade da vida”. Para comemorar o dia das crianças daquele ano, estreando a linha de musicais infantis, a Rede Globo preparou o especial “Vinicius Para Criança”, convi­dando diversos cantores para interpretarem as deliciosas composições que o poeta fez, na maioria, em parceria com Toquinho. O especial ficou mais conhecido pelo nome de “A Arca de Noé”, inspirado no livro de mesmo nome que Vinicius lançou em 1970 com mais de 30 poemas e textos, alguns dos quais ele foi musicando ao longo dos anos. O programa teve tanto sucesso que ganhou uma segunda edição logo depois e as canções também foram divididas em dois elepês – que agora existem em CD – e continuam, de geração em geração, embalando a infância. Era mesmo de se esperar que o Quarteto em Cy imortalizasse alguma daquelas canções exibidas no programa, de roteiro livre e solto, assinado por Ronaldo Bôscoli. Ainda quando Vinicius estava vivo, Cyva recebeu o telefonema de um dos produtores do especial, explicando sobre o projeto e fazendo um primeiro contato para a possível participação delas. O convi­te foi imediatamente aceito, mas, com o passar dos meses, acabou não sendo confirmado. Não houve outro contato e, dessa forma, as baianinhas do poeta, recentemente órfãs do padrinho que, se vivo estivesse, certa­mente teria exigido a presença delas naquele trabalho, não fizeram parte das duas edições da “Arca de Noé”. É claro que elas já não precisavam mais que Vinicius as pegasse pelas mãos, apresentando-as aqui e ali, como fez na década de 60 quando descobriu aquele quarteto puro, que começou a lapidar. As moças já tinham uma carreira internacional e eram suficientemente reconhecidas, mas, até então, parecia óbvio que elas fizessem parte de qualquer homenagem musical a Vinicius de Moraes. Pela história que tinham juntos, pela amizade, pela admiração incontestável que o poeta nutria por elas, o nome do Quarteto em Cy parecia estar intrinsecamente ligado ao de Vinicius. Na época em que não se desgrudavam, ele brincava dizendo que deveria mudar seu nome para Cynícius. Foram inúmeras as declarações de amor que as meninas receberam do padrinho e amigo, em palavras, em gestos, reservadamente ou em público. Uma delas, Vinicius registrou nessa crônica que escreveu para o “Jornal da Bahia”, em 19 de dezembro de 1964: As Bahianinhas Um dia, há uns quatro anos, meu amigo, o inteligente e musicalíssimo Carlos Coqueijo Costa – hoje em dia um dos baianos fundamentais ao conhecimento em profundidade da boa terra – entrou em minha casa trazendo uma moça com uma carinha linda meio Joana d’Arc. – Esta é Cyva – disse-me ele. Ela canta o fino e tem muita musicalidade. Vai morar no Rio e eu gostaria que você tomasse um pouco conta dela. Cyva voltou, depois. Conversamos muito e ela contou-me como, de brinca­deira em casa, tinha começado a cantar com suas três irmãs: Cynara, Cybele e Cylene. Um quarteto. Elas próprias arrumavam as vozes e cantavam em festinhas de casas amigas, numa base puramente amadora. – Elas estão para chegar – falou-me Cyva um dia, com sua voz de anjo materializada apenas por um ligeiro sotaque. E uma noite ela me apareceu com o quarteto: (au grand complet) todas umas graças – finas, simpáticas, pródigas de encanto. Quando começaram a cantar, então, coisas de Caymmi e temas de sua Bahia natal, eu parti para o uísque. Declarei-lhes peremptoriamente: – Vocês são minhas. Me pertencem. Preciso pôr vocês numa gaiola de que só eu tenha a chave. Digam sumariamente “não” a qualquer proposta que lhes fizerem para cantar. Elas me ouviram, com ar grave, tão bem comportadinhas – mas sem serem chatas como as “Meninas Exemplares” da Condessa de Ségur – e parecem aprovar o meu ciúme. Em seguida, começamos a cantar juntos. Eu lhes ensinava nossa coisa (estava em plena fase de composição com Baden e elas trinavam que era uma beleza, com timbres de grande beleza e uma afinação perfeita. Começamos a ir a festas, elas sempre empoleiradas à minha volta, como lindos canarinhos. Cantávamos sem parar, saudando as pessoas que chegavam com o nosso “Bom dia, amigo”. As mulheres elegantes, também encantadas com as meninas, olhavam para elas já bolando graciosas indumentárias para o seu lançamento. Uma noite convo­quei Tom para ouvi-las. E Carlinhos Lyra. Tom aprovou, Carlinhos ficou louco: – Precisamos “trabalhar” as menininhas! E começou a orientá-las, a ensinar-lhes as coisas que sabia, a ajudá-las na arrumação das vozes, no sentido de uma maior unidade. Elas pareciam realmente anjos que houvessem pousado em nossas canções. Eu queria fazer um LP só nosso, com as baianinhas. Depois viajei. E aí sobrevieram “alguns aventureiros e lançaram mão delas”. Bons aventureiros, diga-se de passagem. Roubaram-me literalmente as menininhas. Nós lhes tínhamos arrumado um nome profissional: “Quarteto em Cy”, em virtude da primeira sílaba comum aos seus nomes. O nome ficou. Mas para mim elas serão sempre “As Baianinhas”. Já estrearam no Rio e em São Paulo e todo o mundo as adora: o que me deixa bastante enciumado. Mas que é que se vai fazer... Anteontem, numa bonita festa no Leme Palace, houve o lançamento de seu primeiro LP para a nova etiqueta “Forma”. Que ele tenha o maior sucesso, é tudo o que – embora com muita dor de cotovelo – deseja este cronista. (Vinicius de Moraes) COM O MAESTRO Cyva teve a ideia de fazerem um disco com composições de Fernando Lobo, Dori e Danilo Caymmi e Paulo Jobim, algumas em parceria com seus respectivos pais, Edu, Dorival e Tom, e outras destes com outros parceiros. O intuito foi gravar os grandes compositores, ilustrando a continuidade genética de tanto talento. “Caymmis, Lobos & Jobims” foi o nome sugerido por Cyva. Cynara quis diferente e bateu o pé. Assim sendo, o disco saiu com dois nomes, tendo acrescentado ao título sugerido por Cyva, “Caminhos Cruzados”, título de uma das canções do repertório, composta por Newton Mendonça e Tom Jobim. O disco foi gravado pela RGE em 1981 com produ­ção de Esdras Pereira da Silva, direção musical de Luiz Cláudio Ramos e arranjos de Tom Jobim, que também participou em duas faixas: “Borze­guim” e “Maria, é dia”. Durval Ferreira, que também era da RGE, deu um apoio muito grande à produção do LP. Esse foi o primeiro disco com a partici­pação definitiva de Cybele em todas as faixas, na formação que o Quarteto em Cy mantém até hoje. O repertório do disco era “Ai, quem me dera” (Marino Pinto – Tom Jobim); Saudade (Fernando Lobo – Dorival Caymmi), “Maria, é dia” (Paulo Jobim – Tom Jobim – Ronaldo Bastos), “Milagre” (Dorival Caymmi), “Desenredo” (Dori Caymmi – Paulo César Pinheiro), “Caminhos Cruzados” (Newton Mendonça – Tom Jobim), “Vento Bravo” (Edu Lobo – Paulo César Pinheiro), “Preconceito” (Fernando Lobo – Antônio Maria), “Tataravô” (Paulo Jobim – Danilo Caymmi) e “Borzeguim” (Tom Jobim). O produtor musical do “Caymmis, Lobos & Jobims” foi Athayde, mais conhe­cido pelo apelido Susto, que era muito amigo de Tom Jobim, e foi um dos integrantes do quarteto “004”, que teve uma duração muito breve, nos anos 60, mas marcou sua passagem pela música brasileira por sido o primeiro a gravar “Retrato em Branco e Preto”, de Tom e Chico. Para esse disco do Quarteto em Cy, Susto foi o responsável por organizar os ensaios que sempre aconteciam na casa de Tom Jobim, entre muitos pássaros, sorrisos e notas musicais. “Borzeguim, deixa as fraldas ao vento, e vem dançar, e vem dançar...” A canção “Borzeguim” já havia sido apresentada por Tom em alguns poucos shows, mas o primeiro registro gravado da música foi nesse LP do Quarteto em Cy. No arranjo, o maestro usou uma infinidade de apitos que tinha, imitando o canto de pássaros e, nos ensaios, as meninas se deleitavam com as aulas de vida e música que recebiam. Cynara e Cybele aproveitaram para matar saudades do tempo em que rodeavam o piano de Tom nos ensaios de “Sabiá” para o Festival da Canção de 1968. Tom Jobim e o grupo Boca Livre participaram do coro nessa gravação. Em dezembro de 1981, o Quarteto em Cy foi convidado para as comemora­ções do décimo aniversário do Teatro Paiol, de Curitiba e, acompanhadas do violão incomparável de Luiz Cláudio Ramos, apresentaram o espetáculo “Falando de Amor Para Vinicius”, homenageando o poeta que havia partido um ano antes. O repertório era formado por grandes composições de Vinicius com diversos parceiros e também continha quatro músicas do LP “Caymmis, Lobos e Jobims”. Nesse show, elas interpretaram a belíssima “Céu Cor de rosa”, versão primorosa feita por Haroldo Barbosa para a canção “Indian Summer”, composta em 1919 por Victor Herbert e Al Dubin e que foi letrada apenas 20 anos depois. Essa música se tornou conhecida após a versão orquestrada de Glenn Miller, ainda em 1919, mas mundialmente aplaudida na gravação de Frank Sinatra, em 1967. “Summer, you old Indian Summer/You’re the tear that comes after June­time’s laughter/You see so many dreams that don’t come true/Dreams we fashioned when Summertime was new...”. A versão brasileira de Haroldo Barbosa não é nem de longe uma mera tradução rimada do original. Nela, o versátil Haroldo imprime um romantismo saudosista e extremamente mais poético que a versão original, também primorosa, mas que não tem a mesma singeleza encontrada pelo letrista brasileiro: “Ontem, na tarde formosa, no céu cor-de-rosa, longe, longe/Divagando e pensando em ti fiquei...”. Naquele mesmo ano de 1981, “Céu cor-de rosa” foi a música de abertura da novela “Ciranda de Pedra”, da Rede Globo, adaptação de Teixeira Filho para o romance de Lygia Fagundes Telles. Entre carros, vestes e casarões da década de 50, a interpretação do Quarteto em Cy se encaixou perfeitamente naquele cenário de época e até hoje é citada entre as memoráveis edições dos folhetins da emissora. A ideia de ter essa canção nas vozes do Quarteto em Cy foi do diretor musical da emis­sora, Guto Graça Mello, que já tinha o tema decidido e anteviu que seria um sucesso na interpretação das meninas. O resultado foi tamanho que elas gravaram um compacto simples, pela RGE, com “Céu cor-de-rosa” de um lado e “Tataravô”, de Paulo Jobim e Danilo Caymmi, na faixa oposta. Em 2001, Cynara encontrou, entre seus arquivos, a fita com o registro do show no Teatro Paiol. Com a autorização mais que imediata de Luiz Cláudio Ramos, levou o material à gravadora CID que prontamente o transformou no CD “Falando de Amor para Vinicius – Quarteto em Cy & Luiz Cláudio Ramos” com 19 canções. Em 1977, a Fundação Nacional da Arte (Funarte), instituição ligada ao Ministério da Cultura e que havia sido criada dois anos antes, lançou o “Projeto Pixinguinha”, que tinha como principal objetivo levar as diversas vertentes da cultura musical brasileira em caravanas por todo o país. Entre 1981 e 1983, o Quarteto em Cy participou de inúmeras ações do Projeto, que, então, era uma das poucas e boas portas abertas ao tipo de música que elas faziam, e onde o público da boa música brasileira podia se refugiar do pop que dominava as mídias e já começava a desenhar um novo perfil do que fazia sucesso no Brasil. Em 1983, pela gravadora Som Livre, elas gravaram o LP “Pontos de Luz”. O disco era diferente de tudo que haviam feito até então. Na capa, as meninas mostravam o visual ousado da intimidade de um camarim, em que apareciam entre leques, champagne, meias de seda, caras e bocas malandrinhas. A foto­grafia é de Marisa Alvarez Lima, que também assinou a capa do “Em 1000 kilohertz” e tinha como característica marcante de seu trabalho a produção temática, colocando os artistas em ambientações e cenários inusitados. Os arranjos instrumentais, assinados por Lincoln Olivetti e Cleberson Horsth, traziam o som metálico de sintetizadores nunca antes experimentado nos trabalhos do Quarteto em Cy. Os arranjos vocais ficaram por conta de César Camargo Mariano, Alberto Arantes e Raymundo Bittencourt – este último também produtor do disco –, e o trio caprichou em rebuscadas harmonias e divisões, explorando cada gota de talento das meninas. O time de músicos, sempre de primeira, era formado por: Luiz Cláudio Ramos (violão), Robson Jorge e Quico (guitarras), Lincoln Olivetti, Robson Jorge, Sergio Souza, Cleberson Horsth, Ricardo Feghali (teclados), Picolé e Sérgio Holanda (bateria), Ariovaldo, Peninha, Paulo C. dos Santos (percussão), Paulo Cezar, Jamil Joanes, Nando, Luizão (contrabaixo), Leo Gandelman, Oberdan, Jose Carlos (sax), Marcio Montarroyos, Bidinho (trompete) e Luizinho Avellar (piano). A canção título “Pontos de Luz” é de autoria de Xico Chaves e Zé Renato, este do grupo Boca Livre. Zé Renato já havia gravado a música em seu primeiro LP solo, em 1982, mas o Quarteto em Cy nunca havia gravado uma composição dele antes. Outro destaque desse LP é “Bem mais além”, versão feita por Cyva para “Breaking Away”, famosa na voz de Al Jarreau. Em “Se a gente grande soubesse”, os filhos de Cynara, Cybele e Sonya participaram do coro. Em 1965, o Quarteto em Cy apresentou essa música no 1° Festival da Canção, acompanhadas por Bilinho, filho de Billy Blanco, autor da música. A Som Livre, gravadora ligada à Rede Globo, prometeu mundos e fundos para a promoção do disco, mas o álbum não teve chamada nenhuma pela emissora. Depois que Cyva procurou um dos diretores, eles acabaram programando um vídeoclip da canção “Menino Lindo” (Vinicius Cantuária / Xico Chaves), e só. O LP acabou sendo lançado também na Espanha, mas sem muito alarde. A situação do mercado não era das mais promissoras e isso acabou refletindo no grupo. Começaram os desentendimentos internos que, naquele momento, quebraram a harmonia e causaram um descompasso que levou ao rompimento, felizmente temporário, do quarteto. Numa reunião na casa da arranjadora e musicista Célia Vaz, a decisão pela separação foi consenso e, assim, cada uma partiu para diferentes lados profissionais, até se reencontrarem quase quatro anos depois, para a volta definitiva em 1987. CADA QUAL NO SEU CANTO Diante da separação, cada uma das integrantes teve que levantar, sacudir a poeira e procurar seu caminho. Os laços sanguíneos mantiveram sempre a união de Cyva, Cynara e Cybele, que nunca abdicaram do convívio em família, das reuniões em torno de uma mesa farta, com filhos e amigos. Profissionalmente, cada uma procurou desenhar uma história própria. Sonya voltou a trabalhar com educação musical infantil. Mas ela percebeu que separar-se da música não era algo que dependia apenas de vontade própria. Fazer arte não é uma condição passageira ou ocasional, mas tem a ver com alma e espírito, com o “ser” artista, e não apenas “estar”. Foi assim que Sonya participou de alguns festivais e trabalhou com músicos na área do samba. Na época dessa interrupção do Quarteto em Cy, Cybele já se dividia entre os compromissos do grupo e o trabalho no coral da Rede Globo, onde ficou até 1985, quando os oito integrantes foram repentinamente dispensados com o fim da grade de programas musicais da emissora. Sem o trabalho na Globo e o Quarteto em Cy, Cybele se dedicou a dublagens de filmes da Disney que tinham a direção musical de Cyva. Ela não ficou tão desamparada porque contava com o companheirismo do marido Marcílio Freire, fiel escudeiro e parceiro para todas as horas. Marcílio foi empresário musical e trabalhou com alguns nomes da música brasileira, como Fafá de Belém, Kleiton & Kledir, MPB4 e Fundo de Quintal, e também chegou a fazer algumas coisas com o Quarteto em Cy. No década de 90, já fatigado do meio artístico, ele declarou taxativo: “estou cansado de trabalhar com o ser humano”. E, assim, comprou um táxi e passou a lidar com a “máquina”, limitando a proximidade profissional com seus semelhantes às corridas com os passageiros pelas ruas do Rio de Janeiro. Em 2003, Marcílio perdeu a luta contra um câncer de pâncreas e faleceu aos 66 anos, antes de conhecer a neta, Maria Clara, nascida um ano depois, primogênita de Tiago, filho único de seu casamento com Cybele . Cyva também não se afastou da música, mas trocou os palcos pelos bastido­res. Assinou a direção musical de diversos filmes da Disney para suas versões brasileiras. “A Pequena Sereia”, “Meu Amigo, O Dragão”, “Bernardo e Bianca”, “Mogli”, entre outros, tiveram a rigorosa batuta de Cyva e também as partici­pações dela mesma, além de Cynara, Cybele e Sonya em algumas dublagens dos trechos musicais. Em 1985, em busca de uma segurança maior, ela pas-sou em um concurso para bibliotecária do Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, e até 1992 permaneceu no cargo, dividindo-se entre o trabalho como funcionária pública e o palco, após a volta do Quarteto em Cy em 1987. Aqui não se pode deixar de abrir um parênteses para destacar o papel de Cyva para o grupo, que merece ser chamado de “Quarteto em Cyva”, pela incansá­vel insistência dela em não deixar o trabalho morrer. Desde a formação original com as quatro irmãs, caminho que ela já havia deixado preparado desde que foi apresentada a Vinicius por Carlos Coqueijo, quando chegou sozinha ao Rio de Janeiro antes das outras, foi sempre Cyva quem esteve à frente em cada retomada do grupo. Da saída de Cilene, em 1966, à volta definitiva em 1987, apenas Cyva participou de todas as formações do quarteto e, mais do que isso, algumas vezes, por ser a única do conjunto original descoberto por Vinicius, era só por causa da presença dela que o Quarteto continuava “em Cy”. Ela nunca deixou de acreditar na viabilidade do Quarteto em Cy e, com a braveza, coragem e guerreira insistência, disfarçadas por uma personalidade dócil, de aparente fragilidade, obviamente sem desmerecer e nem diminuir a importância de cada componente do grupo, Cyva merece um reconhecimento especial. Se cada uma das quatro fosse um órgão vital, Cyva seria o coração do Quarteto em Cy, que nunca deixou de pulsar. Mas se o Quarteto em Cy tem em Cyva um coração, em Cynara o grupo tem a espinha dorsal. De personalidade extremamente ativa e dona de uma praticidade invejável, Cynara não só é a responsável pela produção e comer­cialização dos shows como também assina, hoje em dia, a maioria dos arranjos vocais do grupo. Essa formação técnica veio das aulas de harmonia com Bia Paes Leme, entre os anos 80 e 90, e também da influência e observação ao trabalho de Luiz Cláudio Ramos, além, é claro, de uma sensibilidade musical apuradíssima, que já lhe garante respaldo suficiente. Antenada e sempre bem informada, ela utiliza os meios tecnológicos de comunicação com rara habilidade entre as pessoas de sua geração, o que faz com que detenha, com maestria, o controle de tudo que diz respeito ao grupo, desde as contratações até a divulgação dos trabalhos, situações que os anos de experiência já lhe mostraram que devem ser seguidas de muito perto, para evitar desagradáveis surpresas. É bem verdade que isso tam­bém lhe confere uma sobrecarga de trabalho, até porque Cynara não abre mão de exercer, com a devida dedicação, seu papel de mãe, avó e dona de casa, preparando deliciosos almoços de domingo para ver a família reunida em volta da mesa. Os pratos, que já têm insubstituível vantagem por serem “comida de vó”, ainda ganham o charme de virem de receitas aprendidas dos mestres musicais, como o strogonoff de filé mingnon de Luiz Eça, o franguinho ao leite de Vinícus de Moraes e o spaguetti à carbonara de Chico Buarque. E é assim, entre computador, telefonemas, arranjos vocais, filhos, netos e panelas, que Cynara rege, impecavelmente, a orquestra da vida e ainda esbanja energia para cuidar do Quarteto em Cy, de forma positiva, driblando problemas, focando soluções e sempre olhando para a frente. Durante o hiato de três anos e meio do Quarteto em Cy, Cynara saiu em busca de trabalho e encontrou na Rede Manchete, que acabava de ser inaugurada. Ela procurou por Maurício Shermann, diretor artístico da emissora, e atacou, sem meias palavras, pedindo uma vaga como produtora dos programas musi­cais. A primeira resposta veio em forma de pergunta: “Mas por que você deixou a música? Você é uma artista. Tem que cantar sempre”. Foi o suficiente para ela desabar e ser arrebatada pela incomum sensação de frustração e até um certo constrangimento por, naquele momento, ter que abrir mão de uma carreira artística, longe da qual ela já não mais pensava poder se encaixar, para cuidar de três filhos ainda pequenos, que não podiam ficar a mercê da sorte. Shermann a contratou na mesma hora e Cynara começou fazendo produção e pesquisa musical para o programa “Bar Academia”, apresentado pelo ator Walmor Chagas e em seguida passou a ser responsável pela coordenação de programas que tinham quadros musicais, como “Miele & Cia”, comandado por Luiz Carlos Miele, “Clube da Criança”, com Xuxa, “Clodovil Hernandes”, “Um Toque de Classe”, primeiramente com Artur Moreira Lima e depois com César Camargo Mariano, entre outras atrações musicais da emissora. De dezembro de 1983 a setembro de 1984 Cynara formou um quarteto vocal com Bia Paes Leme, Soraia e Lu. A proposta era cantar apenas composições de Tom Jobim e elas chegaram a gravar um disco com o nome do grupo, Chovendo na Roseira, também título de uma canção de Tom. Os arranjos eram feitos por Bia e Cynara, que inovaram bastante, fazendo com que as vozes também cumprissem o papel de instrumentos musicais, já que cotavam apenas com violão, flauta e gaita. Em 1987, alegando contenção de despesas, Cynara e diversos outros profis­sionais foram dispensados da Rede Manchete. Dessa experiência, ela adquiriu o traquejo que precisava para assumir, com total segurança, a responsabilida­de pela produção e divulgação dos trabalhos do Quarteto em Cy que, naquele mesmo ano, havia de voltar à ativa definitivamente. “Minha história com o Quarteto em Cy começou quando eu era bem criança ainda. Em 1965, meu avô deu de presente para o meu pai um compacto que tinha “A banda” de um lado e “Morrer de amor” do outro. Esse disco foi uma coisa lá em casa. Aquilo virou um negócio na família. Meu pai e minha mãe adoravam o Quarteto em Cy e, dali em diante, começaram a comprar todos os discos. Como éramos três irmãs e minha mãe também gostava muito de cantar, nós começamos a tirar as vozes e fazer uma associação entre as nossas vozes e as delas. Isso foi muito marcante. Mas eu só fui conhecer mesmo o Quarteto em Cy, pessoalmente, quando estava na época de prestar vestibular. Eu tinha uns 17 anos e já participava de um quarteto vocal na escola. Nós cantávamos em festivais e festinhas. O “Antologia do Samba-canção” foi o disco que me chapou. Eu decorei as “Antologias” do início ao fim. Aí fui ao show “Resistindo” e fiquei completa­mente apaixonada. Eu estava em ano de vestibular e era CDF prá caramba. Tinha aquela coisa do colégio, uma expectativa. Mas eu ia ao show todos os dias. Não queria nem saber de estudar. Lá no show eu conheci a Soraia, que era outra tiete delas, que me apresentou a elas e também tinha um grupo vocal. Um dia eu levei a Bel, que estudava comigo, ao show, e a Soraia levou a Lu, que estudava com ela. Nós nos juntamos e fizemos um quarteto (Quatro Cantos). Prestei vestibular para Matemática e passei. Nós começamos a cantar e, através do Quarteto em Cy, conhecemos o Maurício Tapajós, que foi como um padrinho musical para nós. Eu estudei música em casa a vida inteira, mas nunca ninguém me falou que eu podia viver disso. Sempre foi uma coisa paralela. Quando eu conheci o Quarteto em Cy, fiquei louca. Quis saber se elas só faziam aquilo, se viviam de música, e elas disseram que sim. Aí me caiu a ficha de uma possibilidade que eu não sabia que existia. Então, começou a rolar uma coisa legal de trabalho para o meu quarteto vocal. Elas nos apresentaram o João Rebouças, um cara super musical, que nos ensinou muita coisa. Foi muito importante para nós. Nessa época, eu já estava totalmente envolvida com a música e não queria mais saber de vestibular. Eu até demorei um pouco a largar de vez, porque eu sempre fui muito estudiosa. Passava nas provas sabe Deus como. Quando eu vi que não ia passar mais em nada, aí resolvi trancar e não conseguia dar a notícia em casa. Me lembro que eu falei para a Cyva e ela me disse: ‘pode largar porque eu te banco’. Foi uma coisa inesquecível para mim. Eu jamais pediria isso a ela, mas ouvir isso dela foi um negócio muito legal. Ela tinha certeza absoluta que ia dar certo. Muito mais do que eu. Contei para os meus pais e minha mãe deu a maior força. Na verdade, ela já sabia. Acho que só estava esperando eu me definir. E foi ela que fez a cabeça do meu pai. Ele, na verdade, adorava música tanto quanto minha mãe e tinha o maior orgulho de eu seguir essa carreira, mas ele tinha uma preocupação maior com essa coisa de grana. Realmente, não é uma profis­são fácil. A vida de qualquer autônomo tem suas dificuldades. Mas é importante ter alguém que te faça confiar que você é capaz. Nesse ponto, tive a Cyva como minha apoiadora. Nosso quarteto vocal se transformou num sexteto porque incorporamos os meninos, que eram os arranjadores. Assim nasceu o grupo Viva Voz. Eu saí do grupo em 1980 e fui estudar composição musical na Uni-Rio. Soraia e Lu também saíram e, depois de um tempo, formamos, com a Cynara, o quarteto Chovendo na Roseira. Foi uma fase em que o Quarteto em Cy havia dado um tempo. O Chovendo na Roseira durou do final de 1984 até dezembro de 1985. Fizemos um disco. Nós só cantávamos Tom Jobim. Era uma coisa de paixão mesmo. Eu e Cynara fazíamos os arranjos e tínhamos só um violonista e uma gaitista / flautista. Eles tocavam muito bem e nós fazíamos as vozes meio instrumentais. Era uma mistura de vocal com instrumental. Eu me lembro que ia para a casa da Cynara, ela fazia uma comida e nós passá­vamos a tarde inteira ouvindo música. Ela mostrava uma porção de coisas para mim. Só pérolas. Isso é uma coisa que não tem preço. Eu até me emo­ciono quando falo dessas coisas. Foi uma fazeção de cabeça mesmo. Dediquei minha tese de mestrado ao Quarteto em Cy. Elas têm uma impor­tância muito grande na minha vida. Depois, passei até a fazer arranjos para elas. Deixei de ser tiete para me tornar colega de profissão mesmo. Fiz muitas coisas com elas e o MPB4. Eu divido a minha vida entre antes e depois do Quarteto em Cy.” A VOLTA Já havia se passado três anos e meio desde a separação do Quarteto em Cy. Tempo suficiente para o público sentir saudade, pedir a volta e também para assentar a poeira de qualquer assunto mal resolvido que houvesse ficado para trás. Em julho de 1987, Cynara propôs à Cyva o retorno do grupo. Então, elas levaram a ideia à Cybele e Sonya e marcaram um encontro na casa da arranja­dora e violonista Célia Vaz. Dois anos antes da separação, as cantoras já haviam começado a trabalhar com Célia, que passou a fazer os arranjos vocais do Quarteto e também acompanhá-las nos shows com seu violão, quando Luiz Cláudio Ramos deixou de assinar a direção musical dos trabalhos do Quarteto em Cy. No primeiro encontro, elas tentaram cantar “Maria, Maria”, de Milton Nascimento, e não saiu nada. As vozes não timbravam entre si e as divisões se desencontra­vam. Então, cada uma tratou de se comprometer com uma “lição de casa” que se encarregasse de tirar a ferrugem daqueles quase quatro anos de separação. No ensaio seguinte, tudo fluiu melhor e, assim, puseram nova­mente os pés na estrada. O retorno do Quarteto em Cy mais uma vez teve o importante respaldo do amigo e sempre incentivador Aloysio de Oliveira, que dirigiu o espetáculo “Ao Redor de Cy”, apresentado na boate People. Ele havia acabado de chegar dos Estados Unidos e as encontrou nesse momento de retomada do grupo. A ideia dele era que o resultado mostrasse um som suave e até sugeriu que não houvesse bateria. Mas, por fim, se rendeu e elas foram acompanhadas por Luiz Alves no contrabaixo, Célia Vaz no violão, Wanderley Pereira na bateria, que foi levado por Célia e só as acompanhou nesse trabalho. Elas estavam com fôlego renovadíssimo e apostando tudo naquele reco­meço. Essa energia foi diretamente captada pela plateia. Em princípio, elas haviam pensado em reestrear fazendo algum tipo de homengem a Vinicius de Moraes, mas “Ao Redor de Cy” foi um espetáculo mais abrangente, com canções de outros compositores. A ideia de um repertório só do poetinha não foi deixada de lado e, em 1989, na mesma boate People, elas estrearam o show “Vinicius em Cy”, que em 1993, foi transformado em disco pela gravadora CID, com quem elas assinaram contrato em 1990 e onde fizeram boa parte da discografia do Quarteto em Cy. “Trabalhei muito tempo com a Rosinha de Valença, até que, um belo dia, a Cyva me ligou perguntando se podia vir à minha casa, dizendo que queria conversar comigo. Ela veio com a Cynara e me convidaram para ser arranja­dora delas, porque o Luiz Cluadio Ramos não ia mais poder. Eu adorei, achei o máximo, porque elas sempre foram meus ídolos. Tinha todos os discos delas. Era fã mesmo. Comecei a trabalhar com elas fazendo shows. Eu fazia a direção musical, os arranjos e tocava violão. Nesse meio tempo, elas se separaram. É muito compli­cado o convívio. Grupo musical é como casamento, só que pior ainda, porque não tem sexo para amenizar (risos). Cada um tem que abrir mão da sua verdade para juntar tudo e formar uma coisa só. Um dia, elas decidiram se separar. Mais ou menos três anos depois, elas voltaram. Encontraram-se novamen­te, conversaram, viram que estavam perdendo muita coisa. Afinal, sempre foi um grupo tão bom. Elas têm um público superbacana; gente que colocou os nomes delas nas filhas, nas netas. Víamos muito isso quando viajávamos para cidades do interior. Voltamos a todo vapor e começamos a gravar. Logo depois, aconteceu o contrato com a gravadora CID, onde elas tiveram uma discografia bem vasta. Em todos esses discos eu participei fazendo os arranjos e, como eu também gosto de cantar, elas sempre davam uma música para eu apre­sentar nos shows. Essa convivência minha com elas vem desde o começo dos anos 80 até hoje, porque eu continuo fazendo arranjos, embora não em grande escala e, eventu­almente, participando de shows. Para mim foi uma escola porque na Berklee eu aprendi a fazer arranjo instrumental; passei a fazer arranjos vocais quando comecei a trabalhar com elas. Eu tenho plena consciência de que eu colaborei com o desenvolvimento musical delas porque eu sou muito preocupada com a parte harmônica, que é uma característica marcante do Quarteto em Cy. Sou muito grata por essa experiência que tive durante todos esses anos com elas. E também pelo mundo de pessoas bacanas que eu encontrei através delas. Conheci Tom Jobim e gravamos juntos. A primeira vez que fui ao Japão foi para acompanhá-las e acabei fazendo grandes contatos, tenho meu trabalho solo lançado por lá. Fomos também para a Europa. Muito do que eu conheci pelo mundo foi em função do trabalho com o Quarteto em Cy. Uma coisa bacana do trabalho do Quarteto em Cy é que elas sempre fizeram questão de manter a qualidade o tempo todo e nunca se renderam às tendên­cias de mercado. Nunca abriram mão da identidade delas para fazerem o que estava na moda, o que a mídia estava pedindo ou o que o gerente de marke­ting da gravadora estava querendo. Elas sempre fizeram o que acreditaram. Hoje, são quatro mulheres muito maduras e compenetradas em uma carrei­ra que ainda tem muita coisa a fazer e muito coerentes com o momento e com a idade delas, sem absolutamente querer parecer o que não são, sem silicones ou plásticas, e isso é lindo. Um Quarteto em Cy que começou na década de 60, como “as menininhas”, e que agora, nos anos 2000, já sexage­nárias, continuam gravando e tendo essa coerência sonora e essa filosofia musical tão sincera. Desde o início, sempre foi um trabalho brasileiro, muito musical, de muito bom gosto, refinado, requintado e que tem a assinatura delas. Não adianta querer inventar nada além disso.” EM CY Em 1989, elas começaram a ensaiar o espetáculo “Vinicius em Cy”, que também estreou na boate People. Vê-las interpretando Vinicius significava mais do que permitir que o público matasse saudades duplamente. Era como se pedissem a bênção do padrinho para aquele retorno, ou mesmo uma forma de desculparem-se por terem um dia ousado pensar em interromper os planos que ele fez para o Quarteto em Cy. Foi durante essa temporada do “Vinicius em Cy” no People que elas foram convidadas para uma turnê pelo Japão junto com Carlos Lyra, Leila Pinheiro e Uakti, grupo instrumental formado em 1978 e que, em 1980, teve grande projeção por conta da participação especial no LP “Sentinela”, de Milton Nascimento. As apresentações fizeram parte do “Bossa Nova 89”, um festival de música latina e caribenha. Essa foi a primeira das três vezes que o Quarteto em Cy visitou o Japão, acompanhado por Célia Vaz (violão), Bruce Henry (contrabaixo), Ricardo Costa (bateria) e Paulo Malagutti (piano). Elas ficaram encantadas com a receptividade do público, mas o que mais as impressionou foi descobrirem que, nas lojas japonesas, era possível encontrar toda a discografia do Quarteto em Cy em seções inteiras dedicadas a elas. A surpresa foi positiva, do ponto de vista artístico, por terem seu trabalho reconhecido e admirado do outro lado do mundo, mas também decepcionante ao perceberem que nunca tiveram conhecimento de vários daqueles lançamentos internacionais por parte das gravadoras, principalmente no que se refere aos royalties a que teriam direito a receber. O Japão sempre reconheceu e valorizou o trabalho do Quarteto em Cy. Tanto que é o único país que tem toda a discografia do grupo regravada em CD. No Brasil, vários títulos não receberam a versão digital, fato que já mereceu manifesto de fãs no site oficial do quarteto na internet e através de e-mails que circulam pelo país, mas até agora não sensibilizaram as gravadoras. Os discos do Quarteto em Cy que não existem em CD são “Quarteto em Cy” (1964, Forma); “Som Definitivo” (1965, Forma); “Quarteto em Cy” (1965, Elenco); “Marré de Cy” (1967, Elenco); “Em Cy Maior” (1968, Elenco); “Antologia do Samba-Canção” (1974, Philips); “Antologia do Samba-Canção Vol.2” (1975, Philips); “Resistindo” (1977, Philips); “Querelas do Brasil” (1978, Philips): “Cobra de Vidro” - com MPB4 (1978, Philips); “Em 1000 Kilohertz” (1979, Philips); “Flicts”, de Ziraldo, com Sérgio Ricardo e MPB4 (1980, Philips); “Quarteto em Cy Interpreta Gonzaguinha, Caetano, Ivan, Milton” (1980, Philips). Quando elas voltaram do Japão, o compositor produtor musical Esdras Pereira as convidou para gravar pela CID, um selo que existe desde 1958 e que prima pela valorização da boa música brasileira. Entre os artistas da gravadora já figuraram nomes como Pery Ribeiro, Wanda Sá e Roberto Menescal, Claudia Telles, Wilson das Neves, Baden Powell e Alaíde Costa, entre outros. O contrato do Quarteto em Cy com a CID rendeu 9 CDs, entre eles, a série “em Cy”, que se dividiu entre homenagens exclusivas a compo­sitores e seleções caprichadas da música popular brasileira. O primeiro trabalho delas com a CID foi “Chico em Cy”, com composições de Chico Buarque, que teve participação do homenageado, além de Edu Lobo, Oscar Castro Neves e Francis Hime. Chico aprovou todo o repertório, mas fez um pedido especial: que elas gravassem “Futebol”, porque ele achava que ficaria interessante em vozes femininas. E acertou na mosca. É delicioso ouvir os versos dessa canção nas vozes do Quarteto em Cy: “Para estufar esse filó/ Como eu sonhei/ Só se eu fosse o Rei/ Para tirar efeito igual ao jogador/ Qual compositor/ Para aplicar uma firula exata que pintor/ Para emplacar em que pinacoteca, nega/ Pintura mais fundamental/ Que um chute a gol/ Com precisão/De flecha e folha seca...” Os arranjos vocais foram de Cynara e Bia Paes Leme e os instrumentais ficaram por conta de Celia Vaz. Chico participou na primeira faixa, “Samba do Grande Amor”; Francis Hime cantou com elas em “Vai Passar”, e Edu Lobo entrou em “Choro Bandido”, mais uma das antológicas parcerias dele com Chico. Na capa do CD, as meninas aparecem com Chico Buarque, vestidas com a camisa oficial no campo do Politheama, time que Chico transportou do futebol de botão para os gramados e ao qual se dedica em partidas com os amigos duas vezes por semana, no Recreio dos Bandeirantes, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Em seguida montaram o show “Chico em Cy”, que foi apresentado em várias capitais brasileiras e, eventualmente, elas retomam a pedido de algum contratante. Ainda em 1989, depois da viagem ao Japão, elas gravaram um disco promocional para a Coca-Cola Company, junto com o grupo vocal Boca Livre, com músicas de Claudio Santoro e letras de Vinicius de Moraes. O LP teve a produção musical de Paulo Albuquerque e contou também com a participação de Oscar Castro Neves (violão) e Gilson Peranzetta (piano). Dez canções faziam parte deste trabalho, mas apenas quatro com as vozes dos dois grupos: “Amor em Lágrimas”, “Cantiga do Ausente”, “Acalanto da Rosa” e “Luar de Meu Bem”. As seis restantes eram instrumentais. Essas gravações ficaram limitadas a alguns privilegiados que receberam o disco de brinde da multinacional de bebidas. Foi também naquele ano que a cantora Lisa Ono, brasileira de ascendência oriental, lançou seu primeiro CD, “Catupiry”, no Japão, onde vivia desde os 10 anos de idade. Ela se tornou uma espécie de embaixadora de nossa música por lá, cantando samba e Bossa Nova no restaurante “Saci Pererê”, especializado em cozinha brasileira, que o pai dela abriu em Tóquio. Foi por meio de Lisa que o Quarteto em Cy conheceu o produtor Kazuo Yoshida, que se tornou o principal canal de divulgação delas naquele país. Yoshida sugeriu que elas gravassem um CD só de Bossa Nova, pelo selo Nanã, o mesmo de Lisa Ono na época, para lançamento só no Japão. O álbum teve o nome de “Bossa em Cy” e, em 2000, saiu no Brasil pela Deck Disc/Abril Music. O repertório do “Bossa em Cy” era formado por 13 canções, além de um pot-pourri de abertura com duas composições de Baden Powell em parceria com Vinicius de Moraes (“Pra que chorar” e “Consolação”) e uma de Baden com Paulo César Pinheiro (“Refém da Solidão”). No mais, como não poderia deixar de ser, uma impecável seleção de Tom Jobim, Luiz Bonfá, Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, em uma deliciosa viagem musical. No final de 91, em uma estratégia de marketing original e corajosa para os padrões comerciais da época, que já há algum tempo havia passado a priorizar a quantidade em detrimento da qualidade, a rede de lojas de depar­tamento Mesbla, fundada no Rio de Janeiro em 1924 e que tinha filiais por todo o país, contratou o Quarteto em Cy para pequenas apresentações em minipalcos – na verdade, pequenos tablados – montados em algumas lojas espalhadas pela cidade. Nessas apresentações elas cantavam, à capela, um pot-pourri com canções de natal cujos arranjos eram assinados pelo guitar­rista paulistano Edgard Gianullo. Elas ensaiaram esses arranjos com Célia Vaz e foram a agradável surpresa de natal para os clientes da grande rede de lojas. As pessoas se aglomeravam para ouvi-las e se deleitavam naque­le suave momento musical em meio à costumeira correria de fim de ano. Por conta deste trabalho, Marlene Mattos, ainda poderosa na Rede Globo, no comando do programa “Xou da Xuxa”, e que conhecia Cynara dos tempos em que ambas trabalharam na Rede Manchete, as convidou para participarem da atração infantil apresentando esta seleção natalina. Em meio a crianças e adolescentes saltitantes, um cenário pirotécnico e gritos eufóricos, Xuxa anunciou a atração. Cynara, Cybele, Cyva e Sonia entram no palco do estúdio e logo toda a euforia foi abafada pela interpretação perfeita daquelas quatro vozes, passeando por canções natalinas, em incontestável harmonia e interpretação dos delicados arranjos e, o que era raro de se ver naquele programa, ao vivo e sem playback. Ovacionadas ao final da cantoria, elas cumpriram o protocolo de cumpri­mentar a apresentadora com os devidos beijinhos e ouviram de uma Xuxa, completamente entorpecida pelo que tinha acabado de escutar, rasgados elogios e sinceros (pareciam mesmo) cumprimentos pela performance e facilidade de brincar com as vozes. Empolgadíssima, a loira perguntou espontaneamente ao grupo: “Por que vocês andaram sumidas e ficaram tanto tempo sem cantar?” Como estava ao lado de Cynara, que nunca deixa ninguém sem resposta, ela ouviu o que provavelmente não estava no roteiro. Com a usual simpatia, mas sem perder a chance de um tempero de ironia, Cynara não hesitou: “Olha, nós estamos aí sempre, só não estamos na Globo”. Rapidamente buscando se recompor, vestindo o costumeiro sorriso infantil, Xuxa emendou: “Agora têm que vir mais vezes”, ao que Cynara não deixou barato: “Claro, depende só de você e da Marlene” e logo emendou, “um beijo Marlene”, soprando a beijoca em direção à cabine de onde Marlene Mattos dirigia o programa. Como de praxe, o quadro terminou com mais um pouquinho de Quarteto em Cy interpretando canções de Natal... baixa som, fecha a imagem, entra comercial. Elas não voltaram mais ao programa da Xuxa, e a Mesbla faliu em 1999. Beijinho, beijinho, tchau, tchau. Em 1992, o Quarteto em Cy conseguiu colocar em prática o projeto que havia imaginado para marcar a volta do grupo, homenageando Vinicius de Moraes. Mais uma vez a CID comprou a ideia e elas gravaram o CD “Vini­cius em Cy”, que teve importantes participações, inclusive do próprio poeta, em gravação dele declamando seu “Soneto do Amor Total” sobre o qual o Quarteto em Cy canta “Samba em Prelúdio”. Neste álbum, Georgiana e Luciana de Moraes, filhas de Vinicius, também fazem uma participação especial na última faixa, interpretando “Samba pra Vinicius” (Chico Buarque e Toquinho). Chico marca presença logo na primeira faixa, cantando com elas “Carta ao Tom” (Toquinho e Vinicius). Tom Jobim, em um arranjo emocionante, coloca voz e piano em “Eu Sei que Vou te Amar”, parceria dele e Vinicius. Toquinho divide os microfones com as meninas em “Tarde em Itapuã”, dele com Vinicius, e Carlos Lyra dá sua bênção às afilhadas na homenagem ao parceiro em “Samba do Carioca”, dele com Vinicius. Antes do lançamento do CD, em 1993, o empresário argentino Alfredo Radozinsky, contratou o Quarteto em Cy para uma turnê pela Espanha, a convite do governo espanhol, para participar das comemorações dos 500 anos de descobrimento da América, na Expo 92, cantando Bossa Nova. Carlos Lyra, Maria Creusa, Gilson Peranzetta e Célia Vaz fizeram parte do grupo que excursionou pelo país numa temporada que durou quase um mês. Eles passaram pelas cidades de Madri, Sevilha, Salamanca, Cáceres, Huelva e Badajós. Na volta, as meninas deram início à turnê do “Vinicius em Cy”, que foi apresentado por todo o Brasil. Depois disso, Sonya teve que se afastar novamente do grupo por questões pessoais. Ela disse às outras que precisava de um tempo e foi atendida. Mas esse período durou apenas cerca de seis meses. Enquanto isso, a cantora Glória Calvente a substituiu no grupo. Glória era professora de canto e dava aulas na Escola de Yan Guest, no Rio de Janeiro. Foi apresenta­da às meninas por Célia Vaz e participou com o Quarteto do espetáculo “Canção do Amor em Cy”. Esse show foi roteirizado por Cynara e Benjamim Santos, e dirigido por ele, que também havia assinado a direção de “Resis­tindo”, onde havia inserido elementos de interpretação teatral que repetiu agora. Como o próprio nome sugere, o espetáculo falava de amor. Era dividido em blocos que sugeriam as quatro estações do ano, unidos por vinhetas que explicavam as canções que vinham a seguir. O repertório, delicado e romântico, apresentava, entre outras canções, pérolas como “Chuvas de Verão” (Fernando Lobo), “Meninos eu vi” (Tom Jobim e Chico Buarque) e “Milagre dos Peixes” (Milton Nascimento). A sintonia pessoal das cantoras com Gloria Calvente foi ótima, mas o encontro das vozes não imprimia a identidade sempre tão bem preservada do Quarteto em Cy. Cantar em grupo exige mais do que apenas afinação. Gloria foi uma profis­sional consciente disso e valeu pela tentativa. Depois disso, Sonya voltou e elas entraram em estúdio para a gravação de mais um CD. 30 ANOS Era 1994 e o Quarteto em Cy chegava à heroica comemoração de 30 anos de carreira. Olhando para trás, elas viam uma história que sobreviveu à ditadura, à censura, ao sucesso nacional e internacional – sim, porque nem todos sobrevivem –, ao mercantilismo da cultura musical, às rupturas internas e a todos os altos e baixos a que a carreira artística está exposta. À frente delas, havia ainda um infindável caminho a ser desenhado e percor­rido, com novos projetos, ideias, parcerias e tudo que elas desejassem materializar para o futuro do grupo. Três décadas depois daquela triunfal estreia no “Zum Zum”, ao lado de Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Conjunto Oscar Castro Neves, as “meninas” se sentiam com o mesmo gás e disposição que as impulsionou em 1964. Para comemorar o trigésimo aniversário do Quarteto em Cy, elas entraram em estúdio para gravar, também pela CID, o CD “Tempo e Artista”, que marcou memoráveis encontros. A música-título, de autoria de Chico Buarque, encerra o CD, que tem o total de 15 canções cuidadosamente selecionadas. Chico cantou com elas em “De volta ao samba”, também dele. Gilberto Gil e Robertinho do Recife participaram em “Tempo Rei”. A faixa “Imagina”, composição de Chico e Tom, contou com a presença do próprio maestro ao piano. Os arranjos vocais do CD “Tempo e Artista” são de Bia Paes Leme, Célia Vaz e Cynara. Chico declarou que o arranjo de “Imagina”, feito por Cynara, é o preferido dele. O álbum foi gravado no estúdio de Robertinho do Recife, no Rio de Janeiro. Os ensaios de “Imagina” aconteceram novamente na casa de Tom Jobim, no ambiente especial que só ele sabia proporcionar, de música, papos e pássaros. Ornitólogo nato, Tom era profundo conhecedor das aves, princi­palmente brasileiras e, com o mesmo prazer com que sentava ao piano, passava horas dissertando sobre urubus, macucos, araras e tantas outras aves da fauna nacional. Tom vivia nos Estados Unidos, mas mantinha a casa no Rio de Janeiro para suas passagens pelo Brasil. Nesses ensaios com o Quarteto em Cy, ele reencontrou o amigo Aloysio de Oliveira, que também vivia nos Estados Unidos, mas estava no Brasil e acompanhou os preparativos do CD. Tom chegou a convidá-lo para colocar suas músicas na editora Jobim Music porque na América do Norte estavam acontecendo algumas confusões com direitos autorais de letras traduzidas; e ficaram de conversar mais sobre isso. Esses ensaios aconteceram em setembro de 94 e Tom faleceu em dezembro. Dois meses depois, Aloysio também se foi. E, apesar da sauda­de, Cyva, Cynara, Cybele e Sonya guardam a doce lembrança não apenas do convívio privilegiado com Tom e Aloysio, mas também de haver sido por meio do Quarteto em Cy que os amigos se encontraram pela última vez, ao menos por aqui. Depois das gravações de “Tempo e Artista”, uma homenagem inesperada levou o Quarteto em Cy de volta à Ibirataia. Desde que saíram de lá para Salvador e depois para o Rio de Janeiro, elas nunca mais haviam retornado à cidade natal. A convite da Secretaria de Cultura da cidade, lá se foram as quatro para mais um evento em comemoração aos trinta anos de carreira do grupo, dessa vez com um gosto especial de visita às origens. Na praça principal de Ibirataia, onde antes o alto-falante do pai delas, Seu Eurico, colocou trilha sonora em tantos namoros, bate-papos juvenis e passeios pelos jardins, foi montado um palco para receber as estrelas da cidade, e que ilustra a pompa e circunstância com que as “meninas da terra” foram recebidas. Sonya é a única não-ibirataiense. Naquele show, Ibirataia reco­nhecia e exaltava publicamente, em merecida homenagem, o orgulho pelo caminho trilhado pelas filhas da cidade. Na plateia, os moradores mais antigos se lembravam de quando as meninas se apresentavam nas festas e eventos sociais, no clube ou nas casas. Por meio delas, Ibirataia ficou conhecida até internacionalmente, porque nunca deixaram de mencionar suas origens. Algumas falhas técnicas quase comprometeram a qualidade do som, mas a alegria de estarem ali de volta e a energia do público fizeram valer a pena aquele momento. A fase de celebração dos trinta anos de carreira foi muito importante para o Quarteto em Cy. O público que acompanhava o grupo mais de perto nunca as perdeu de vista e foi um dos principais impulsos para a retomada em 87. Mas aqueles três anos e meio separadas, somados a um certo esfriamento do mercado, gerava um clima de incerteza a cada novo projeto. As emisso­ras de rádio e tevê, que antes ofereciam bons cachês para a participação dos artistas e tinham na qualidade musical a principal arma para alavancar audiência, já há algum tempo viviam uma realidade inversa, adotando um recente conceito de que o espaço de divulgação cultural também deveria receber o mesmo tratamento que as inserções comerciais. A institucionali­zação do “jabá” começava a virar regra e emplacar qualquer divulgação fora do tal mercado paralelo era até possível, mas tratava-se de um golpe de sorte ou de realmente manter bons contatos no meio. Bons relacionamentos nunca faltaram às moças do Quarteto em Cy. Elas sempre fizeram parte e conviveram com a nata da música brasileira. Em 30 anos de carreira elas conquistaram um público fiel, que as acompa­nhava, mesmo com a exposição delas na mídia eletrônica, assim como a da maioria dos colegas de profissão, não sendo a mesma de antes. Os meios impressos, por sua vez, nunca deixaram de noticiar um novo CD ou espetácu­lo do Quarteto em Cy. A crítica musical sempre acompanhou atentamente os passos do grupo e até hoje abre espaço para as novidades que venham dele. Em 1995, no estúdio do compositor e produtor musical Guto Graça Melo, elas gravaram, também pela CID, o CD “Brasil em Cy”. O título, que seguia a linha “em Cy” lançada pela gravadora, cumpria a proposta de unir, em um único trabalho, vários ritmos, tendências e estilos da melhor música nacio­nal. O álbum contou com a participação especial de amigos – novos e antigos – que somaram suas vozes às do quarteto em resultados surpreendentes. Gal Costa abre as participações cantando o pot-pourri “Saudade da Bahia” / “São Salvador”, ambas de Caymmi; Leo Gandelman abrilhanta, com seu sax, o arranjo de “Samba do Avião”, de Tom; e Zélia Duncan, amiga nova, coloca toda a personalidade vocal que lhe cabe na interpretação de “Último Desejo”, de Noel. “Mais um Adeus”, de Toquinho e Vinicius, foi presenteada por mais um encontro sempre bem-sucedido delas com o MPB4. A emoção e força de Maria Betânia estão em “A noite do meu bem”, de Dolores Duran; e a amiga Miúcha revive Lupicínio em “Nervos de Aço”. Outras 6 canções completam o CD. O trabalho rendeu mais uma turnê pelo país que se estendeu por 1996. Foi para uma dessas apresentações que as meninas viajaram a Araraquara, no interior de São Paulo, onde até hoje mora Cilene Chakur, a irmã que havia se separado do grupo ainda em 1966. Apesar de ser presença certa nos Quarteto em Cy, com Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, na gravação do CD comemorativo dos 30 anos de carreira. Foi a última vez que os amigos Tom e Aloysio se encontraram shows do Quarteto em Cy sempre que possível, Cilene, daquela vez, precisou viajar para a Suíça no mesmo dia da chegada das irmãs, para mais um compromisso profissional da sua bem-sucedida carreira de educadora. O desencontro foi ainda marcado por uma fatalidade. Um infarto fulminante tirou a vida de Osmar Chakur, o marido de Cilene, no mesmo instante que ela atravessava o oceano pelo ar, rumo ao continente europeu. A força da união daquela família, que sempre prevaleceu sobre tantos altos e baixos, mais uma vez se fazia presente, aparentemente em nome de um “acaso” que nem elas acreditam existir. Foi assim que Cilene pôde contar com as irmãs Cyva, Cynara e Cybele para segurarem as pontas enquanto ela voltava ao Brasil imediatamente após pousar em Genebra. Cilene chegou a tempo de dar adeus ao seu amor e, juntamente com Sonya, as outras três irmãs cumpriram dignamente o compromisso com o contratante e brindaram o público com a emoção ainda mais à flor da pele num show memorável. DE OURO O CD “Brasil em Cy” foi lançado em 1996 e, no ano seguinte, por causa deste trabalho, o Quarteto em Cy foi indicado ao Prêmio Sharp de Música – que em 2002 passou a se chamar Prêmio Tim –, na categoria “melhor grupo vocal”. Nenhuma delas compareceu à premiação no Teatro Municipal do Rio de Janeiro porque todas estavam totalmente envolvidas e comprometidas com os ensaios para um novo projeto em parceria com o MPB4, o CD “Bate Boca”, com canções compostas em parceria por Tom Jobim e Chico Buarque. A ideia de reunir em um CD canções de Chico e Tom foi de Cynara, que apresentou o projeto à gravadora Universal Music, que topou na hora. Guto Graça Mello produziu e Max Pierre fez a direção artística. O CD tem 14 faixas escolhidas a dedo. Os arranjos vocais são de Bia Paes Leme, em “Meninos, eu vi”; Célia Vaz, em “Piano na Mangueira” e “Eu te Amo”; Cynara, em “A Violeira”, “Anos Dourados”, “Olha Maria” e “Imagina”; Magro Waghabi, em “Bate-Boca”, “Retrato em Branco e Preto”, “Sabiá” e “Noite dos Masca­rados”; Miltinho, em “Falando de Amor”; Luiz Claudio Ramos, em “Pois é” e Maurício Maestro, em “Biscate”. Um time de primeira. Os arranjos e regência de cordas ficaram por conta da luxuosa batuta de Dori Caymmi. Que o Quarteto em Cy e o MPB4 juntos formam um octeto imbatível, não era novidade, mas, especialmente nesse trabalho, a harmonia de timbres e vozes dos dois grupos superou todas as expectativas. Em divisões rebuscadas eles passeiam pelos não menos requintados acordes de Tom, vocalizando com graça e originalidade os versos de Chico. Os ensaios – tanto para o CD como para o show – eram intensos e exaustivos, mas aconteceram num clima de grande amizade e descontração nas casas de Túlio Feliciano, que dirigiu o espetáculo, de Miltinho (MPB4) e também no estúdio Timbre, de Nei Barbosa, na época empresário do MPB4. “Falando de Amor” foi o carro-chefe desse trabalho e tema de abertura da novela “Por Amor”, da Rede Globo. Cynara e Aquiles abrem a canção com um dueto marcante. Aquiles: “Se eu tivesse, por um dia, esse amor, essa alegria, eu te juro, te daria, se pudesse, esse amor todo dia”. Cynara: “chega perto, vem sem medo, chega mais meu coração, vem ouvir esse segredo escondido num choro canção”. A beleza da música, impulsionada pela audiência da novela, renderam ao CD o disco de ouro em 1997 e, até hoje, quando os dois grupos se apresentam juntos, “Falando de Amor” é faixa obrigatória no reper­tório e, claro, foi a canção escolhida para a participação do Quarteto em Cy no DVD de 40 anos de carreira do MPB4, lançado em 2006, e do MPB4 no DVD de 40 anos de carreira do Quarteto em Cy, lançado em 2008. Chico participa do CD cantando “A violeira”, “Meninos, eu vi” e, como Julinho da Adelaide – identidade que assumiu nos tempos da ditadura para driblar a censura –, em “Biscate”. A participação de Tom foi mais do que especial, não apenas pelo fato do maestro ter morrido 3 anos antes, mas pela origina­lidade da homenagem. Cynara aproveitou um trecho do CD inédito que acompanhava a biografia escrita pela irmã dele, Helena Jobim, lançada em 1996 (“Antônio Carlos Jobim – Um Homem Iluminado”). O CD reunia conversas de Tom e Chico e momentos em que o maestro, ao piano, passava ao parceiro as novas composições para que Chico colocasse letra. Entre essas músicas estava “Bate-Boca”, já com título definido a espera dos versos de Chico. Com a maestria e bom humor que lhe eram peculiares, Tom apresen­tava o novo choro a Chico e ainda indicava que ficaria melhor se tocado com flauta e cavaquinho porque, nas palavras dele, “no piano fica muito Tchaikovsky”. O que se ouve em seguida é o magistral arranjo para oito vozes que Magro Waghabi fez para a interpretação do Quarteto em Cy e MPB4 para “Bate-Boca”. Um som de tirar o fôlego e que custou semanas de ensaio e dedicação dos dois grupos. O resultado foi tão surpreendente que Chico se absteve de colocar a letra. Magro conta que soube de uma história de que a tal letra até foi composta por Chico e que Miúcha teria uma cópia. Mas isso nunca foi confirmado. O fato é que a única versão que se conhece da canção é mesmo a do impecável arranjo para o octeto. O espetáculo “Bate-Boca” foi dirigido por Túlio Feliciano e, além das canções do disco, trazia músicas interpretadas separadamente por cada um dos dois grupos, além de algumas falas em que eles faziam algumas críticas ao governo, marcando o posicionamento político que sempre foi inerente ao Quarteto em Cy e MPB4. Apesar do sucesso do disco “Bate Boca”, teve uma turnê curta, mas com casa lotada em todo os lugares por onde passou. O então ministro das comunicações Sérgio Motta assistiu ao espetáculo duas vezes, no Rio e em São Paulo e, nas duas, comprou o CD. Ele ficou tão entusiasmado com o que viu que, a despeito das críticas que eram feitas ao governo, pediu que lhe entregassem um projeto para apresentação de uma turnê nacional. Infelizmen­te, Sérgio Motta morreu pouco depois, vítima de infecção pulmonar, e “Bate-Boca”, o show, ficou sendo mesmo um privilégio de poucos. JAPÃO E CUBA Antes da gravação de “Bate-Boca”, o Quarteto em Cy foi convidado para ir novamente ao Japão. A produtora e empresária Keiko Taichi, proprietária do luxuoso restaurante Sabbath´s, em Tóquio, contratou-as para dez apresen­tações entre janeiro e fevereiro de 1997. Keiko também tem negócios no Brasil e sempre foi fã inconteste da música brasileira e, especialmente, das meninas. Ela levou vários artistas para o Japão, mas confessa que os que mais garantiam casa lotada eram Baden Powell e Quarteto em Cy. Para essa segunda temporada, elas foram acompanhadas de Célia Vaz (vio­lão) e João Faria (baixo). Na bateria, o empresário e amigo Yoshida, que mora lá, deu conta do recado. O público ia ao delírio. A maioria era muito jovem e, depois dos shows, fazia questão de ir ao camarim e se esforçava para falar palavras em português. Em uma dessas visitas aos bastidores, um grupo de quatro moças mostrou a elas a versão que cantavam do clássico da Bossa Nova “Chega de Saudade”. O arranjo vocal era idêntico ao do Quarteto em Cy e surpreendeu nossas meninas, que engrossaram o coro e cantaram junto com as japonesas. Elas ficaram emocionadíssimas e, certamente, guardarão para sempre a lembrança daquele momento especial do improvi­so de um octeto nipo-brasileiro. O sucesso dessa temporada foi tanto que Keiko Taichi as convidou nova­mente em 1998 para mais 10 apresentações. Dessa vez, com patrocínio da Varig para as passagens, elas ficaram 20 dias em Tóquio e o show de estreia foi fechado para a companhia aérea. Mas nem tudo foram flores nessa ida ao Japão. Logo no início da temporada, Cyva começou a passar mal durante o show e, acreditando que conseguiria controlar a situação foi, atônita, para o fundo do palco. Célia Vaz, que as acompanhava com voz e violão, cantava “Dindi” enquanto um telão exibia a imagem de Tom Jobim. Atrás do telão, Cyva começou a vomitar e teve que sair carregada direta­mente para o hospital. O diagnóstico foi chocante para todas. Uma ameaça de acidente vascular cerebral, que só foi amenizada graças à rapidez no socorro e atendimento. Cyva ficou internada por oito dias e se comunicava com médicos e auxiliares com a ajuda de uma paciente norte-americana que lhe serviu de intérprete. A contratante Keiko passou a primeira noite inteira ao lado dela no hospital e os fãs que se tornaram amigos inseparáveis, Yoshimi Wakabayashi e Akiko Furuya, foram o anjos da guarda de Cyva na terra do sol nascente. Elas haviam conhecido Yoshimi e Akiko na primeira vez que estiveram no Japão, em 1989. Ao visitarem a casa de Yoshimi, elas se surpreenderam ao verem que o rapaz tinha um quarto da casa dedicado a elas, onde guardava, além de todos os discos e CDs, cartazes de shows, gravações raras e recortes de reportagens publicadas sobre o grupo. Bem-sucedido empresário do ramo de calçados, Yoshimi até hoje é a ponte entre o Quarteto em Cy e o Japão, e é sempre consultado pela imprensa e interessados sobre tudo que se refere ao grupo. Akiko, que vive em Los Angeles, nos Estados Unidos, é ligadíssima à Cyva, com quem troca correspondências quase semanalmente, além de sempre enviar presentes e agrados a todas e fazer questão de não perder contato. Nesse período de internação de Cyva, o Quarteto teve que se apresentar em trio, e Cynara, Cybele e Sonya, acompanhadas por Célia Vaz (violão) e João Faria (baixo), seguraram a onda sozinhas nos dias em que Cyva ficou afastada. Cynara assumiu a primeira voz e, assim, mais uma vez não deixa­ram a peteca cair. Na última semana, Cyva conseguiu voltar ao palco do Sabbath´s e finalizar a temporada como uma guerreira. Na bagagem de volta, mais uma história, mais um obstáculo superado e a certeza de que, daquele momento em diante os cuidados com a pressão arterial passariam a fazer parte de sua rotina. Enquanto estava no hospital, Cyva tinha como maior preocupação ter desfalcado o grupo e, apesar de acamada, ainda teve forças para enviar seu apoio a todos por meio de uma singela carta, que mostra que ainda que lhe faltasse a força física naquele momento, o espírito se mantinha forte, como é comum aos que sabem tirar proveito das adversi­dades para crescer e não se lamentar: “Tóquio, 27/6/98 Queridas girls e querido Johny-boy. (o sobrinho João Faria, filho de Cynara, que as acompanhava no contrabaixo) Nestes quase quatro dias de hospital, tenho pensado muito na barra de sufoco e sacrifício que vocês têm passado, por minha causa, neste lamentável “evento”, que nunca esperei “organizar”! Não sei se vou poder corresponder algum dia a tudo o que têm feito por mim, assessorados por essa família japonesa que a gente tem aqui e que é o máximo que se poderia encontrar, na vida. Acho que não mereço tanto carinho e atenção que me têm dispensado, mas, por outro lado, penso que nem só de sucessos a gente sobrevive: mas de compreensão, harmonia e amor, cada vez mais. Quem sabe, essas coisas não acontecem para trazer maior união e fazer a nossa “carruagem dourada” (e não carroça “velha e enfeitada”), trilhar sempre o caminho de evolução maior para nossos espíritos? Acho uma maravilha vocês continuarem o nosso trabalho, mesmo com esta jumenta aqui, desabada desse jeito e torcendo cada vez mais por vocês cinco. Tomara que já me liberem para a gente fazer o nosso “Amigos em Cy” (já era uma previsão, veem?), com toda a garra e alegria que a gente trouxe no coração. (“Amigos em Cy” é uma coletânia produzida pelo próprio Quarteto em Cy na gravadora CID). Tenho certeza que com essa torcida toda e a ajuda espiritual que estamos tendo, vamos ganhar esta Copa, como diz o Luizão (Luizão Maia). Não só o penta, como o 34º! O que não deixa de ser uma façanha para esta sexage­nária, que felizmente conta com um time de primeira, sempre chutando pra gol com garra e ganhando todos os jogos, passando por “bate-bocas” e tudo. Faltas, sempre cometo, mas com vontade de acertar o gol, sem empurrar nem chutar ninguém, como fazem com o Ronaldinho. Já ganhei o meu cartão amarelo. Mas Deus me ajude a voltar inteira! Um beijo vezes cinco, Tia Cyva Em agosto de 1997, a Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (AMAR), por meio do seu presidente Marcus Vinicius, realizou um encontro entre artistas brasileiros e também muitos movimentos musicais alternativos para participarem do 14° Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes”, em Cuba. Grande parte desses artistas tinha grande engajamento político e simpatizava com a causa cubana. O Quarteto em Cy foi para aquele país muito mais como apreciador da música e das pessoas, que viviam um sofrimento calado e sufocado pelo comunismo, do que, propriamente, para participar de algum movimento político ou avalizar o governo cubano. O evento aconteceu no bairro do Malecón, na costa marítima da capital Havana, em um palco montado ao ar livre. O Quarteto em Cy fez ainda outra apresentação no Teatro Nacional, que teve inúmeros problemas técnicos de som e até mesmo falhas de produção, que marcaram o lado negativo daquela viagem, mas não chegaram a estragar a experiência. Além do Quarteto em Cy, viajaram à Cuba para esse evento, MPB4, Miúcha, Ana de Holanda, Cristina Buarque, Nei Lopes, Jards Macalé, Luiz Carlos da Vila, Maurício Carrilho, Belchior, Cláudio Nucci, além de músicos como Helvius Vilela, Pedro Amorim, João Faria, Pedro Reis, Célia Vaz, Inês Perdi­gão, entre outros. Conhecer Cuba foi uma das experiência mais marcantes para o Quarteto em Cy. Além de entrarem em contato com diversos músicos locais, que iam procurá-las no hotel onde estavam hospedadas, para saberem mais sobre o trabalho delas, as cantoras trouxeram de lá vários CDs de música cuba­na, muitos de conjuntos vocais que as impressionaram pela qualidade dos arranjos. A alegria do povo cubano, temperada pela musicalidade à flor da pele, parecia servir como antídoto ao sofrimento provocado por um regime autoritário que o deixou parado no tempo. Naquele país desprovido de desen­volvimento, elas viram engenheiros, médicos e professores trabalhando como motoristas de táxi, garçons, balconistas e mais um sem fim de atividades com as quais buscavam garantir a sobrevivência. Para elas, a viagem a Cuba reforçou a noção de importância da liberdade para a vida de uma nação. Na época dos ensaios para o “Bate Boca”, aproveitando mais aquele momento juntos, Quarteto em Cy e MPB4 já começaram a idealizar outro projeto para o octeto e, na esteira das homenagens, surgiu a ideia de brindarem a obra de Ivan Lins e Djavan. O resultado foi o CD “Somos Todos Iguais”, gravado pela Universal e lançado em 1999. Cynara fez a pesquisa de repertório e submeteu uma lista de músicas à votação de todos, seguindo a proposta de decisões democráticas que sempre embasou os trabalhos dos dois grupos. Para quebrar a obviedade da participação dos homenageados, Ivan Lins cantou “Pássaro”, de autoria de Djavan, que interpretou “Novo Tempo”, de Vitor Martins e Ivan Lins. Todos os arranjos instrumentais desse CD foram do pianista e diretor musical Ricardo Leão, goiano de terra e carioca de alma, que mora no Rio de Janeiro desde a década de 80 e carrega no currículo um sem fim de trabalhos com os principais nomes da música popular brasileira. Os arranjos vocais ficaram por conta de Magro, Cynara, Miltinho, Paulo Malagutti, Ary Sperling, Bia Paes Leme, Célia Vaz e Maurício Maestro. Quarteto em Cy e MPB4 viajaram pelo país com o espetáculo “Somos Todos Iguais”, intercalando as apresentações de forma a cumprir também as agendas individuais de cada grupo. No Rio de Janeiro, o show foi para o palco do Canecão e, da mesma forma, ganhou os principais espaços das cidades onde foi apresentado. Em Recife, numa conversa com Cynara, Aquiles Reis fez uma proposta inusitada: criar “oficialmente” um octeto com a união dos dois grupos. A ideia não seria encerrar as carreiras dos quarte­tos, mas sim oferecer uma opção a mais para ambos, assumindo o compro­misso de sempre pensarem em projetos conjuntos. Paralelamente, eles seguiriam com os trabalhos individuais, mas contariam com essa possibilidade baseada na certeza de boa aceitação do público a exemplo do que sempre aconteceu ao longo dos mais de 30 anos de carreira do Quarteto em Cy e do MPB4. Cynara levou a ideia de Aquiles às outras que, imediatamente, aprovaram e se empolgaram. Os outros componentes do quarteto masculino ouviram com atenção e interesse, mas a conversa não avançou e, apesar dos dois grupos continuarem somando suas vozes em eventuais apresentações, a oficialização do octeto não se concretizou. “Chegou um momento da nossa vida profissional que eu sugeri que formás­semos um octeto, que oficializássemos isso. O que não impediria que tanto o MPB4 como o Quarteto em Cy continuassem seus trabalhos paralelamente. Me lembro que estávamos nos bastidores do Teatro Guararapes em Recife. Acho que eles ficaram surpresos, mas penso que seria uma coisa muito boa para nós. O público adoraria. Volta e meia me param na rua e perguntam: ‘quando é que vocês vão fazer outro show com o Quarteto em Cy?’. Isso faz parte do imaginário das pessoas. O público que gosta dos dois grupos imagina que a qualquer momento essa união pode acontecer de novo. E nós nos fortaleceríamos com mais essa opção de trabalho. Teríamos que estar sempre pensando em alguma coisa para fazermos juntos. Haveria essa coisa de ensaio. Nós, do MPB4, só ensaiamos quando temos algum trabalho a apresentar. Elas ensaiam muito mais. Eu costumo dizer que, tecnicamente, o Quarteto em Cy é muito melhor que o MPB4, princi­palmente por essa disposição que elas têm de estar sempre ensaiando. Nós somos mais preguiçosos. Quanto mais você ensaia, melhor você canta. Isso é inegável. O mais importante é que, independentemente de estarmos ou não juntos, eu tenho um carinho muito grande por elas. Sem saberem elas foram pessoas fundamentais para mim, não só musicalmente, mas pessoalmente. E todas as vezes que estivemos juntos, aquilo significou uma parte da minha vida. Muitas vezes, quem está em volta não percebe, até porque isso não é dito por mim. Mas as pessoas acabam se tornando cúmplices de coisas que elas nem sequer sonham que sejam tão importantes para mim. Eu posso nunca mais cantar com o Quarteto em Cy, seja lá por que motivo for, mas elas fazem parte da minha vida”. (Aquiles Rique Reis – MPB4) SEMPRE EM FRENTE Em 1999, elas gravaram, pela CID, “Gil e Caetano em Cy”. Os conterrâneos homenageados não participaram desse CD. Foi um ano intenso para Gil, que se dividiu entre turnês pela Europa e Estados Unidos, e a premiação com o Grammy de World Music. Caetano, igualmente, naquele ano andou por Estados Unidos, Canadá, Buenos Aires, além de estar envolvido em um ousado projeto com músicas sobre o cineasta Federico Fellini (Ommagio a Federico e Giulietta). Mas, apesar de destacar a obra de dois ícones da música brasileira, esse álbum do Quarteto em Cy teve uma característica bem familiar. As partici­pações ficaram por conta de Chico Faria, filho de Cynara, na faixa “Desde que o Samba é Samba”, de Caetano; Marcílio Freire, marido de Cybele, assoviando em “Trilhos Urbanos”, também de Caetano; Orlann Divo, cantor e compositor que nos anos 60 foi crooner da famosa banda de bailes de Ed Lincoln, imitan­do Chacrinha em “Aquele Abraço”, de Gil; e Andrea Chakur, sobrinha das Cy e filha de Cilene, que canta em “Menino do Rio”, de Caetano. Andrea é dona de uma voz suave, precisa e extremamente técnica. Ela herdou da família a afinação e o amor pela música, mas sempre teve essa atividade paralelamente à profissão de fonoaudióloga, à qual se dedica com igual empenho. A dificuldade de viver de música no Brasil não permitiu que ela mergulhasse nesse mundo, apesar da paixão pela arte. Nessa mesma época da gravação de “Gil e Caetano em Cy”, Andrea chegou a ensaiar com as tias Cynara, Cyva e Cybele porque Sonya mais uma vez aventou a possibilidade de deixar o quarteto, como já havia acontecido em outro momento. Mas depois de refletir ela decidiu ficar e a ideia de transformar Andrea na quarta integrante do grupo não foi adiante. Sempre que possível, a moça sobe ao palco como convidada especial nos shows do Quarteto em Cy e brinda o público com a agradável surpresa de sua musicalidade e forte presença cênica. Em 2006, na participação do Quarteto em Cy na gravação do DVD de 40 anos de carreira do MPB4, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, ela substituiu Sonya, impedida de se apresentar por causa de uma fratura no pé. Poucas horas antes da gravação, ainda no quarto do hotel, as tias lhe passa­ram as divisões vocais do arranjo de “Falando de Amor” e com profissiona­líssima dedicação Andrea não se intimidou com a responsabilidade de representar quatro décadas de amizade e parceria entre os dois grupos. Ela fez bonito e deixou registrado para sempre, nas imagens do DVD, mais um antológico encontro musical daquele octeto. O novo milênio se aproximava e com ele novos projetos. Em 2000, um outro encontro com o MPB4 tinha a deliciosa missão de mais uma vez homenage­ar Vinicius de Moraes. O espetáculo “Vinicius, a arte do encontro” foi dirigido por Ruy Faria e estreou no Garden Hall, no Rio de Janeiro. A cada semana das três que ficou em cartaz em terras cariocas, o show contou com as canjas memoráveis de Chico Buarque, Caetano Veloso e Baden Powell. Essa foi uma das últimas aparições do grande violonista, que fale­ceu em setembro daquele mesmo ano. Na temporada paulista, que ficou em cartaz no Tom Brasil, foi a vez de Toquinho dividir o palco com os oito. Apesar de ter ficado em cartaz por um mês e apenas no Rio e São Paulo, “Vinicius, a arte do encontro” marcou mais uma histórica reunião dos dois grupos. O sucesso do formato do show, reforçado pelo dinamismo da direção de Ruy Faria e a versatilidade dos arranjos instrumentais e vocais, garantiram lotação esgotada nas duas cidades e efusivos elogios dos críticos musicais. Uma turnê nacional não pôde acontecer em virtude de compro­missos individuais já assumidos por cada um dos quartetos. Esse trabalho não só homenageou Vinicius de Moraes, como colocou o poeta em cena por meio de recursos tecnológicos que permitiram a mixagem da voz dele aos arranjos, garantindo sua participação em algumas canções e proporcionando uma carga extra de emoção tanto no show como no CD, com o mesmo nome, que saiu pela Universal, com selo Som Livre. O projeto foi idealizado por Luciana de Moraes e teve produção de Sergio Carvalho, direção artística de Max Pierr e arranjos instrumentais de Magro Whagabi. Os arranjos vocais são de Magro, Cynara, Bia Paes Leme e Célia Vaz. Infelizmente, esse foi um dos últimos grandes trabalhos do MPB4 ainda com Ruy Faria como integrante do grupo. Alguns desentendimentos inter-nos, que já vinham tomando corpo ao longo do tempo, começavam a aflorar e, apesar de segurarem a barra por mais três anos, entre o final de 2003 e começo de 2004, o inevitável se deu. Depois de quase 40 anos, Ruy decidiu deixar o grupo com o qual sentia já não formar mais uma unidade. Apesar de, como ele mesmo diz, dar um “apavorante e perigoso salto no escuro” aos 66 anos de idade, Ruy seguiu seu caminho surpreendendo a todos e, o que é melhor, a si mesmo. Em 2005, num ousado e bem elaborado trabalho em parceria com Carlinhos Vergueiro, lançou, de forma independente, o CD “Só pra chatear”, resgatando sambas antigos gravados por inesquecíveis duplas desde o início do século 20. Depois disso, ele passou a atuar como diretor de teatro e até resgatou a carreira de advogado, colocada de lado na juventude quando optou por viver de música. Em 2004, Dalmo Medeiros, antigo integrante do grupo Céu da Boca, foi convidado a fazer parte do MPB4, assumindo a primeira voz do quarteto masculino. Ironicamente, esse episódio na carreira do grupo ilustrou a frase do poeta, pouco tempo antes transformada em espetáculo por eles junto com o Quarteto em Cy: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Felizmente, para o público, essa mudança no MPB4 não impediu outros encontros do grupo com o Quarteto Em Cy, o que poderia ser previsível, devido ao envolvimento de Ruy e Cynara, que apesar de já estarem separados há muitos anos, convivem em perfeita harmonia familiar com os três filhos e quatro netos, fruto do casamento que durou 12 anos. Mas a amizade, respeito e cumplicidade construídos ao longo de 40 anos entre os integrantes do MPB4 e do Quarteto em Cy não podiam se deixar abalar. Com impecável profissionalismo e conscientes da história que construíram juntos no cenário musical brasileiro, ambos os grupos preferiram lidar nesse episódio com distinta isenção. O contrabaixista João Faria, filho de Ruy e Cynara, também continua tocando tanto com o Quarteto em Cy como com o MPB4, além de acompanhar o pai nos projetos da nova carreira solo. INFANTIL Em seguida do show e gravação do CD “Vinicius, a arte do encontro”, o Quarteto em Cy começou a colocar em prática uma ideia que há muito tempo desejava realizar: um CD infantil. “Hora da Criança” foi o nome desse álbum lançado pela CID em 2001 e reeditado em 2006, que home­nageia, no título, o projeto educacional do qual as irmãs Cyva, Cybele, Cynara e Cylene participaram na infância e adolescência na Bahia. Depois de uma minuciosa pesquisa de repertório, o Quarteto em Cy conseguiu reunir 18 canções – algumas apresentadas em pot-pourri – numa seleção, ao mesmo tempo, eclética em estilos e rica em qualidade. A reverência ao “Hora da Criança” não se limitou ao nome do CD. Ficou registrada também nas cinco canções de autoria de Adroaldo Ribeiro Costa, o professor e criador do projeto educacional baiano. A criatividade, poesia, didática e olhar peculiar de Adroaldo ganham mais graça com a interpretação delas de “Os Dedinhos”, “Dodó”, “A história do Rei Barbado”, “A cigarra e a formiga” e “Cançoneta de Papai Noel”. Também fazem parte do CD canções conhecidas, como “O Pato” e “A Casa”, de Vinicius e Toquinho; “Bicharia” e “Minha canção”, versões de Chico Buarque para a obra “Saltimbancos” do italiano Sérgio Bardotti; “Acalanto”, de Dorival Caymmi; “Sítio do Pica-pau amarelo”, de Gilberto Gil, “Uni-duni-tê”, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, além de cantigas de roda tradicionais e a inédita “Um Sonho”, de Célia Vaz e Tite Lemos. O álbum contou com as divertidas e bem encaixadas participações especiais de Gilberto Gil, MPB4, Angélica e Chico Faria, e teve direção musical de Cristóvão Bastos. O lançamento foi feito em Salvador, no próprio espaço do projeto “Hora da Criança”, que permanece ativo até hoje, mantendo a tradição de complementação educacional por meio da arte. No mesmo ano de 2001, a gravadora CID lançou, em CD, o show “Falando de Amor para Vinicius” que o Quarteto em Cy e o violonista e arranjador Luiz Cláudio Ramos fizeram em 1981, um ano após a morte do poeta, e que foi montado para o 10° aniversário do Teatro Paiol, de Curitiba. A gravação foi feita a partir de uma fita cassete que Cynara havia guardado do espetáculo, sem a qual não teria sido possível resgatar esse belíssimo trabalho. Naquele mesmo ano, elas montaram o espetáculo “Verdades e Mentiras”, com uma criteriosa seleção de canções, sendo a maioria de autoria de Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius e Toquinho, além de Sidney Miller, Nelson Rufino e Carlinho Santana, Caetano Veloso e João Donato. Nesse espetácu­lo elas também incluíram músicas do CD infantil “Hora da Criança”, que acabara de ser lançado e, assim, aproveitaram para divulgá-lo. “Verdades e Mentiras” foi gravado ao vivo no Garden Hall, no Rio de Janeiro, e deu origem a um CD e ao primeiro DVD do Quarteto em Cy, lançados também pela gravadora CID, com quem as cantoras completavam uma parceria de mais de 10 anos, desde a gravação, em 1990, de “Chico em Cy”. O espetáculo, que foi dirigido e roteirizado por Ruy Faria, tinha textos dele e de Millôr Fernandes. No Rio, foi apresentado no teatro Rival e, em São Paulo, no Sesc Pompeia. Era o ano de 2002 e o Quarteto em Cy caminhava bravamente para a quarta década de existência, desde a estreia em 1964. Elas tinham sobrevivido à ditadura, às alterações na formação do grupo, às mudanças no mercado fonográfico e lutavam, bravamente, para não corromperem seu canto sempre embasado no que há de mais fino na música brasileira. Apesar de sempre terem exaltado os grandes e tradicionais compositores nacionais, elas nunca engessaram um estilo e mantiveram ouvidos atentos e cordas vocais dispostas a ecoar o que aparecia de novo e com a qualidade da qual nunca abriram mão. “Verdades e Mentiras” foi um espetáculo que se propôs questionar o que é de fato verdadeiro e falso nos tempos atuais, de tantos valores invertidos. Como sempre aconteceu ao longo de toda a carreira do Quarteto em Cy, nesse show, elas não se limitaram apenas a dar a versão delas a lindas canções – o que já agradaria bastante –, mas também mostraram que continuavam tendo algo a dizer, como Cynara deixava claro, logo no texto que abria a apresentação: “Quando a gente estava buscando a verdade desse show, a descoberta não demorou: é a mentira. O Brasil vive hoje um tempo de mentiras. Eu minto, tu mentes, quem não mente? Em casa, na rua, no bar, no estádio de futebol... Entre os Três Poderes, a concorrência é brutal: o Executivo mente, o Legislativo abusa da nossa credulidade, o Judiciário, nossa! Orson Welles já dizia: ‘O Brasil é o país onde se fabrica o melhor uísque falsificado do mundo!’ Bem, mas isso no Grande Poder. E no dia-a-dia? Quanta bunda falsa, quanto peito feito com subproduto do petróleo. Mas a gente tem que ir levando, já que não pode ir botando. Vamos dançando conforme a música. E por falar em música, vocês já perceberam em quanta mentira musical nos embrulharam? Quanto sucesso aí cantado como ‘o fino da brasilidade’ não passa de hambúrguer se fingindo de acarajé? Pois é, mas a música mesmo, essa está sem vez. Por tudo isso é que escolhemos para esse show o repertório que melhor repre­senta a nossa verdade musical. Daí o título ‘Verdades e Mentiras’.” “Minha relação com o Quarteto em Cy é muito forte e muito importante. Nos conhecemos no começo das carreiras dos dois grupos (Quarteto em Cy e MPB4). Vivemos muitas coisas juntos. Foi uma relação muito profícua e fizemos shows realmente marcantes juntos. Além disso, eu fiquei 12 anos casado com a Cynara, tivemos 3 filhos e, mesmo depois da separa­ção, continuamos muito amigos e temos uma relação pessoal e artística muito forte. Eu dirigi shows do Quarteto em Cy e, sempre que possível, participo como convidado especial delas. O último encontro do MPB4 com o Quarteto em Cy do qual eu participei foi ‘Vinicius, a arte do encontro’, no ano 2000, espetáculo que eu dirigi e que foi também de muito sucesso. Ficamos em cartaz, no Rio, em um teatro na Barra da Tijuca e garantimos três semanas de casa lotada, sendo que, no último sábado, tivemos que fazer um show extra. Em São Paulo, também foi um sucesso. Só interrompemos a temporada porque já havíamos firmado outros compromissos. Nessa época, minha relação com o MPB4 já não estava muito boa e eu acho que o fato de eu estar à frente do show gerou certo incômodo. Então, eles preferiram se voltar para outros projetos do grupo do que continuar aquele trabalho com as meninas. Em 2004, eu saí definitivamente do MPB4. Um dos trabalhos que me deu grande prazer foi dirigir o show ‘Verdades e Mentiras’, do Quarteto em Cy. Esse espetáculo ficou muito bacana e teve uma ótima aceitação do público. Trabalhar com elas sempre me dá muita alegria. Eu acho o Quarteto em Cy um exemplo. Elas têm uma energia muito grande e continuam passan­do isso para as pessoas nos shows. Tenho o maior orgulho de ser amigo delas. Acima de tudo, sou um grande admirador do Quarteto em Cy.” Em 2003, Sonia deu início a um projeto pessoal para a gravação de um CD solo. Neste trabalho, intitulado “Coisas que lembram você”, ela fez uma homenagem a Aloysio de Oliveira. Apenas em 2005 ela gravou as 11 faixas e em 2007 lançou o CD pela CPC Umes Discos. Como ela mesma ressalta, o trabalho individual não interfere em sua participação no Quarteto em Cy, que continua sendo sua prioridade profissional. PERCALÇOS As baianinhas que Vinicius de Moraes carregou pela mão em direção ao sucesso, embora nunca tenham deixado de ser consideradas pelo público e também pelo meio musical como “as meninas” do Quarteto em Cy, agora já rondavam os 60 anos cada uma, com a invejável vantagem de, com isso, acumularem histórias e vivências, sempre imprimindo um olhar de espanto e surpresa pela vida, comum a quem percebe a existência – própria e de todas as coisas – com jovialidade e bom humor. Sem nunca terem se deixado inebriar pelo glamour e ilusão, peculiares ao mundo artístico, elas sempre passaram incólumes pelo estrelato, fama e sucesso sem jamais perderem o pé na vida real. Fora do palco, elas são mulhe­res comuns, que vão ao supermercado, levam as crianças ao parque, preparam o almoço de domingo e sempre têm uma palavra amiga a quem lhes pedir colo. Como jamais foram dadas a escândalos ou esquisitices que, eventualmente, poderiam atrair holofotes, elas sabem lidar com certo distanciamento da mídia, porque o que lhes importa realmente é a aproximação do público, sempre fiel e pronto a prestigiar qualquer novo projeto do Quarteto em Cy. A aparente fragilidade, imposta pela inerente condição de seres do sexo feminino, fez com que, durante toda a carreira, elas fossem muitas vezes lesadas em seus direitos pessoais e profissionais, vitimadas, em grande parte, pelo desrespeito e ganância de um sistema cada vez mais marcado pelo vergonhoso conceito, tão intrinsecamente arraigado no comportamento social brasileiro, de que é preciso levar vantagem sempre, mesmo que para isso seja necessário sobrepujar os limites da ética e da moral, não importando que estejam em jogo fatores como amizade, respeito mútuo e honestidade. Não foram poucas as ocasiões em que as integrantes do Quarteto em Cy passaram por vexatórias decepções ao descobrirem – das mais inusitadas maneiras – que tinham trabalhos comercializados, principalmente fora do país, sem jamais terem sido informadas e, muito menos, receberem os devidos royalties por isso. Quando a Disney, por exemplo, lançou, em vídeo, o filme “Branca de Neve”, ainda na década de 90, Cybele se apressou em alugar a fita e, animada, reuniu a criançada da família para assistirem ao trabalho de dublagem que ela fez em 1965, dando voz, na parte musical, à versão brasileira da princesa dos sete anões. Qual não foi a surpresa dela ao ver que seu nome não constava nos créditos. Decepção igualmente vivenciada ao perceber que não havia recebido um centavo a mais referente ao relançamen­to da animação em VHS, o que se repetiu na versão para DVD. Imediatamente depois do choque de se perceber omitida, Cybele foi atrás dos seus direitos abriu um processo contra a Disney, que se arrastou por mais de 10 anos, até que, finalmente, em 2007, ela recebeu uma sentença favorável ao pagamento de indenização, ainda que parcelada e sob um valor inferior ao que esperava. Em outra ocasião, Cyva estava em sua casa quando ouviu entrar pela janela um som familiar. Era uma gravação do Quarteto em Cy cantando um dos Afro-Sambas de Vinicius e Baden. Mas aquele trabalho elas haviam gravado com exclusividade e em edição limitada para a ação promocional de um determinado banco brasileiro, em 1990. Procurando descobrir de onde vinha aquele som, Cyva percebeu que saía de um apartamento vizinho. Não resistindo à curiosidade, ela bateu à porta e foi atendida por um gentil rapaz holandês. Delicadamente, ela disse a ele que gostaria de saber que música era aquela que estava ouvindo. Orgulhoso do próprio bom gosto, o rapaz explicou que se tratava de um grupo vocal brasileiro que ele admirava muito e que se chamava “Quarteto em Cy”, e havia gravado os Afro-Sambas. Quando Cyva se apresentou, o moço quase teve uma síncope de emoção e ela quase teve outra de decepção ao perceber que se tratava da gravação feita para a instituição financeira, sem fins de comercialização. O rapaz havia comprado o CD na Holanda. Infelizmente, não param por aí os acontecimentos “desafinados”, que entram em total desarmonia com uma história de vida e arte, escrita com tanto talento, competência, dignidade e amor, como a que o Quarteto em Cy dedica à música brasileira desde o início dos anos 60. Os exemplos se multiplicam em forma e quantidade, e é decepcionante perceber que elas não são as únicas vítimas de situações desse tipo, que têm vergonhosamente lesado a classe musical em detrimento de valores morais e financeiros que não rimam em nada com a grandeza do trabalho desempenhado por esses bravos guerreiros da cultura nacional. Mas a vida segue seu rumo e os frutos colhidos de uma semeadura bem feita são sempre maiores e melhores que as pedras eventualmente encontradas pelo caminho. O show tem que continuar. 40 E OUTROS ANOS Em junho de 2004, o Quarteto em Cy completaria 40 anos de carreira e a data merecia uma celebração à altura. As integrantes pensaram em gravar um CD com canções inéditas, mas não estavam conseguindo apoio de qualquer gravadora. Quando Cyva e Cynara levaram o projeto à Universal Music, o diretor Ricardo Moreira reconheceu na hora a importância de marcar aquele período com um produto especial e teve a excelente ideia de fazer um álbum duplo contendo um CD com as gravações consideradas “clássicas” e outro com “raras e inéditas”. Entre elas, algumas que foram censuradas na época da ditadura. O trabalho de pesquisa de acervo foi impecavelmente comandado por William Tardelli, que digitalizou todas as gravações para, a partir daí, fazerem a seleção de repertório. Esse foi outro trabalho minucioso. Como selecionar 24 canções entre centenas gravadas nesses 40 anos de carreira? Não se tratava apenas de procurar os arranjos mais rebuscados ou as músicas que fizeram mais sucesso. A equipe da Universal Music entendeu que a intenção das quatro não era simplesmente uma jogada de marketing que as colocasse na briga por discos de ouro no atual competitivo e insano mercado fonográfico. O compromisso desse álbum era recontar uma história de sucesso e perseverança, entre dificuldades, perseguições, altos e baixos, e muita luta para que fatores políticos, comerciais, culturais, ou seja lá o que fosse, jamais interferissem na qualidade musical do trabalho do Quarteto em Cy. Na busca por emplacar esse projeto, elas perceberam que a maioria dos atuais executivos de gravadoras não entende a preservação da memória cultural e musical por meio da reedição digitalizada das obras de artistas de maior expressão no cenário musical brasileiro como um valor importante. Por isso, elas reconhecem e aplaudem o trabalho de pessoas como Ricardo Moreira e William Tardelli, que tornaram possível, no CD “Quarteto em Cy – 40 anos: Clássicas, Raras e Inéditas” o resgate de canções que marcaram a trajetória de quatro décadas do grupo. Em 2005, esse CD foi indicado ao Prêmio TIM de Música. Para comemorar os 40 anos de carreira, o Quarteto em Cy montou o espetá­culo “Vinicius e Caymmi em Cy”, revivendo, em canções e histórias, a época em que elas, ainda muito meninas, se apresentaram com o poeta e o compositor baiano no palco do Zum Zum, acompanhados pelo conjunto de Oscar Castro Neves, em 1965. No show, roteirizado por Cynara e Cyva, elas relembram as conversas de Vinicius e Caymmi no palco, sempre comentan­do, com inteligente sutileza, assuntos inerentes à época, envolvendo desde situações cotidianas até as questões políticas, tão efervescentes naqueles anos pós-golpe militar de 1960, em que o ex-embaixador Vinicius de Moraes, recém desligado do Itamaraty, soltava comentários sempre impagáveis e tão destilados quanto o uísque que tomava e que repousava sobre a mesa colocada no cenário. “Vinicius e Caymmi em Cy” estreou no acolhedor Teatro Rival, localizado no tradicional e boêmio bairro da Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, e que tem desempenhado o heroico papel de oferecer espaço ao que há de melhor na música brasileira. Esse trabalho se deve ao incansável esforço da atriz Ângela Leal, que herdou o teatro do pai, Américo Leal, e depois de uma reforma estrutural e conceitual, recuperou o lugar, ofertando-o como grande opção cultural ao público carioca. Em 2007, com patrocínio da Petro­brás, o teatro passou por nova e gigantesca reforma, adaptando conceitos de acessibilidade, uso sustentável de água e esgoto, reafirmando o status de referência entre as casas de espetáculo cariocas. O show ressaltando a obra de Vinicius e Caymmi teve ótima aceitação do público e da crítica. Quem esteve no Zum Zum, pôde relembrar o momento; e quem ainda nem era nascido, teve uma oportunidade inestimável de contato com uma época cultural e musicalmente incrível. Isso era visível na plateia, tanto nos olhares maduros, que desenhavam uma alegria saudosista nas linhas que o tempo se encarregou de riscar nos cantos dos olhos, como na curiosidade refletida no brilho da mirada esperta de adolescentes e jovens que sempre lotam os shows do Quarteto em Cy, onde podem matar a sede de boa música brasileira, e que raramente encontram nas ondas do rádio ou em outros meios de comunicação. Aliás, a presença massiva de pessoas entre 15 e 25 anos nos shows do Quarteto em Cy, é um alento e um sinal de esperança de que trabalhos como o delas jamais morrerão, porque onde há bom gosto, há vida. Elas continuaram apresentando o “Vinicius e Caymmi em Cy” até meados de 2006, quando entraram nos estúdios da gravadora Fina Flor, do compositor, violonista e produtor musical Ruy Quaresma, para gravar mais um ousado projeto: um CD só de sambas. Esse era um antigo desejo das meninas, que pensavam em dar ao mais brasileiro dos ritmos, a graça e leveza da interpreta­ção a quatro vozes do grupo. Num repertório escolhido a dedo, por todas as integrantes do grupo e pelo produtor Ruy Quaresma, o álbum revela um precioso resgate de sambas antigos, como “Pam Pam Pam”, de Paulo da Portela; e “Perdão, meu bem”, de Cartola; além de ressaltar composições do que se pode considerar os sambistas modernos, como Chico Buarque, José Ramos e Hermínio Belo de Carvalho, no pot-purri “Capital do Samba e Chão de Esmeraldas”. As surpresas desse álbum vão muito além das quatro jovens senhoras cantando samba de raiz. O entusiasmo de alguns compositores mais próximos delas foi tanto, que o CD ganhou também canções inéditas como “A saudade é que me consola”, de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro; e “O samba é o som”, de Rubens Nogueira e Paulo César Pinheiro, entre outras. Mas a música de abertura do CD merece um destaque especial, não apenas por dar nome ao álbum, mas pela singeleza poética com que o próprio Ruy Quaresma e seu parceiro Ney Lopes retrataram, nas estrofes do alegre “Samba em Cy”, toda a história de vida e música do Quarteto em Cy. Samba em Cy Em Ibirataia, no interior da Bahia Ouvindo o cantar da jandaia Um dia o sonho nascia Rio de eterna magia, braços abertos de irmão Em letra e melodia Fez-se do sonho a canção Havia um horizonte nublado Mas o sol dourado teimava em brilhar E a estrela mais bela chegava à janela pra nos ver cantar Mãos e vozes unidas Tirando da vida a lição E quando já ia noite alta Pelas luzes da ribalta Foi-se embora a escuridão Assim se conta essa história De muitas lutas e vitórias E o amor vai sempre resistir Cantado em dó, ré, mi, fá, sol, lá, si Apesar do excelente resultado do CD de sambas, elas perceberam que não seria possível montar um espetáculo apenas com esse repertório porque o exigente público faz questão e não arreda pé de ouvir as can­ções mais clássicas nas vozes do quarteto. Sendo assim, elas inseriram no repertório de “Vinicius e Caymmi em Cy” apenas algumas faixas do “Samba em Cy”, como forma de apresentar o trabalho e divulgar o CD. A ideia de montar “Vinicius e Caymmi em Cy” teve também o objetivo de transformar o show em um DVD comemorativo dos 40 anos. Depois de mais uma hercúlea batalha em busca de patrocinadores e apoiadores, esse projeto só começou a se tornar realidade em 2006, quando os direto­res João Elias Jr. e Alexandre Fontenelle, da produtora Filmação, decidiram apostar nessa empreitada e entre os dias 18 e 19 de julho de 2006 gravaram o espetáculo no Espaço Cultural Associação Médica Fluminense Unimed, em Niterói (RJ). O carioca Miguel Bacelar ficou a cargo da produção dessa apresentação. Antigo empresário de Nara Leão, Miguel esporadicamente trabalha com o Quarteto em Cy desde meados da década de 90, principal­mente na comercialização dos shows. Além do espetáculo, que teve as participações especiais de Ruy Faria e Chico Faria, a produtora entrevistou artistas intrinsecamente ligados ao trabalho do Quarteto em Cy e, assim, o DVD ganhou os depoimentos de Chico Buarque, Nana Caymmi, Vinicius de Moraes – por meio da recuperação de imagens do poeta falando sobre suas afilhadas musicais –, Carlos Lyra, Georgiana e Luciana de Moraes, filhas de Vinicius, e MPB4. O quarteto masculino, que em tantos momentos caminhou ao lado delas nessa longa estrada musical, participou do DVD em um encontro com elas no estúdio Be Happy, no Rio de Janeiro, relembrando, num adorável bate-papo, a trajetória dos dois grupos. Eles ainda brindam o público com a interpretação de “Falando de Amor” que, desde a gravação do CD “Bate-Boca”, se tornou uma espécie de hino do octeto. O trabalho de gravação dos depoimentos, edição e mixagem se estendeu por todo o ano de 2007 e, quando já estava pronto, enfrentou nova batalha em busca de alguma empresa que topasse assumir a distribuição do DVD. Apenas no início de 2008, a distribuidora Neo fechou contrato com o Quar­teto em Cy e a Filmação para, finalmente, viabilizar o lançamento do DVD “Vinicius & Caymmi em Cy”, comemorando, quase quatro anos depois, o aniversário de 40 anos de carreira do grupo. Entre a estreia desse espetáculo em 2005 e o lançamento oficial, em agosto de 2008, ambos no Teatro Rival, o Quarteto em Cy também realizou apresen­tações destacando a obra de Chico Buarque e Tom Jobim, em shows que passaram, principalmente, por Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, além de algumas cidades do interior do Rio e São Paulo. A partir do final de 2007, o repertório dos shows passou a se voltar para a Bossa Nova, fazendo jus às comemorações do cinquentenário desse histórico movimento musical, que apresentou o Brasil ao mundo através do violão de João Gilberto, do piano de Tom Jobim e dos versos do maestro com o parceiro Vinicius de Moraes. Ritmo sempre muito solicitado fora do Brasil, a Bossa Nova foi, ainda em 2006, o motivo da ida do Quarteto em Cy à Espanha, a convite do governo daquele país europeu, para uma míni-temporada de uma semana na Ilha de Tenerife. No dia 12 de agosto de 2008, juntamente com outros artistas, entre eles Roberto Menescal, Francis Hime, Lenny Andrade e Wanda Sá, o Quarteto em Cy recebeu uma homenagem na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, por iniciativa da deputada Inês Pandeló, pelos 50 anos da Bossa Nova. Elas foram incluídas na cerimônia, principalmente por causa da ligação com Vinicius de Moraes. O poeta, seu parceiro Tom Jobim e a cantora Nara Leão também foram homenageados como precursores do movimento musical que contagiou o país e o mundo no final da década de 50. O espetáculo de lançamento do DVD “Vinicius & Caymmi em Cy” aconte­ceu nos dias 15 e 16 de agosto de 2008, no Teatro Rival, no Rio de Janeiro. O show, que teve ampla divulgação pela cidade, reforçada por importantes publicações na mídia sobre o DVD, foi marcado por uma peça pregada pelo destino. Na manhã de sábado, 16, logo após a estreia delas, aos 94 anos, Dorival Caymmi, que desde 1999 sofria com um câncer no rim, faleceu em sua casa ao lado dos filhos e netos. Parece que o coração do compositor não resistiu à ausência da esposa e companheira de toda a vida, dona Stella Maris, que estava internada e havia entrado em estado de coma uma sema­na antes. Apesar de saberem que Caymmi estava sofrendo há tempos, a notícia as deixou muito abaladas. No sábado, elas passaram pelo velório para dar adeus ao amigo e seguiram para o palco, onde tinham por missão homenagear o poeta carioca e o compositor baiano com quem toda a história do Quarteto em Cy começou. “A estrela Dalva me acompanha / iluminando o meu caminho / eu sei que nunca estou sozinho / pois tem alguém que está pensando em mim”. Com esses versos elas deram a introdução para uma das mais conhecidas canções de Caymmi: “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar, meu bem querer / Se Deus quiser, quando eu voltar do mar / Um peixe bom eu vou trazer”. A canção é conhecida como “Suíte do Pescador”, mas Caymmi a chamava de “História dos Pescadores” e não gostava que lhe tivessem mudado o nome. Elas abriram o show com a emoção à flor da pele e os olhos marejados de tristeza e saudade. O público, contagiado, embarcou no clima e, assim, Caymmi se fez presente, mostrando que, se seu corpo lhe tirara do convívio da família, dos amigos e dos fãs, sua música o havia imortalizado. O lançamento oficial do DVD “Vinicius & Caymmi em Cy” ficou marcado para agosto, mas desde maio de 2008 já estava disponível nas lojas. A partir de então, o Quarteto em Cy passou a se apresentar em shows para divulga­ção desse trabalho, reeditando o espetáculo montado, 4 anos antes, para a comemoração dos 40 anos de carreira. A demora no lançamento do DVD aconteceu pelas diversas e complicadas questões que envolvem o mercado fonográfico, mas também deu a elas a possibilidade de estenderem essa celebração e ainda mais, para deleite tanto delas como do público, interpretarem as canções dos dois grandes mestres da música brasileira, com quem a história do Quarteto em Cy começou. A situação, na verdade, representa bem toda a trajetória desse que sempre será referência entre os melhores grupos vocais femininos do Brasil de todos os tempos. Enquanto se preparavam para os shows de lançamento do DVD, elas foram convidadas para uma miniturnê com Toquinho por Santiago, no Chile, e Buenos Aires, na Argentina, para novembro de 2008. No mesmo momento em que elas relembravam o que viveram com Vinicius e Caymmi, surgiu a oportunidade de um “revival” com Toquinho, a exemplo do que aconteceu em 1974. Mais uma vez os cinco saíram juntos pelos palcos latinos mostrando ao público o melhor da música brasileira. No dia 30 de junho de 2009, o Quarteto em Cy completou 45 anos de carrei­ra em plena atividade. Em celebração aos 50 anos de morte de Dolores Duran (falecida em 24 de outubro de 1959), o grupo foi convidado a participar de diversas homenagens à cantora e compositora, o que as levou a incorporar ao repertório, canções inéditas nas vozes delas, como “A Noite do Meu Bem”, “Castigo” e “Fim de Caso”, entre outras belas composições de Dolores, que ganharam roupagem especial nos arranjos assinados por Cynara. Tom Jobim não podia ficar de fora das homenagens, já que, além de ter tido inúmeras canções gravadas pelo Quarteto em Cy, teve Dolores Duran como parceira em canções definitivas como “Por Causa de Você”, “Se é Por Falta de Adeus” e “Estrada do Sol”. As apresentações do Quarteto em Cy em homenagem a Dolores Duran aconteceram em algumas cidades do País e, apesar não terem sido divulgados na grande mídia, tiveram casa lotada em todos os espetáculos e contaram com momentos especiais, como em Brasília, quando elas dividiram o palco e cantaram com a atriz e cantora Soraya Ravenle, que, em 1999, havia protagonizado o musical “Dolores”, dirigido por Antônio de Bonis. O Quarteto em Cy se relança, se reinventa, viaja ao passado para temperar o presente. São para sempre as “meninas” da música popular brasileira. Aquelas com quem o poeta vislumbrava um casamento musical para tê-las “sempre assim, cantando o dia inteiro só pra mim”. E agora elas cantam para todos nós. Passeiam pelo tempo em perfeitos acordes. Continuam cantando e contando essa história de vida e música que consegue a façanha de perma­necer presente e infinita, como o som harmônico e timbrado dessas quatro vozes que ecoam e encantam gerações, e que não se permite um ponto final RESENHAS Quarteto em Cy: Obra Comentada Por: Igor Garcia Introdução Os álbuns de carreira do Quarteto em Cy nos formatos LP, CD e DVD, assim como os projetos nos quais participou ativamente, são descritos cronologicamente nesta pesquisa na seção “Discografia Oficial”. Os compactos simples e duplos que contém gravações inéditas – indisponíveis nos LPs da época – foram abordados juntamente com os discos de carreira que imediatamente os antecederam ou sucederam. Para ambas as partes, procurou-se inserir não somente comentários minuciosos e dados pertinentes a cada um dos projetos, mas também informações complementares concernentes à época de sua feitura. Os dados de catálogo sobre cada lançamento são exibidos seguindo determinada ordem: país de origem, nome do selo ou gravadora, código de sua edição original. Discografia Oficial 1 – Quarteto em Cy (1964) BRASIL, FORMA, FM-4 Após longas e incessantes reuniões para definição de repertório e músicos, o Quarteto entrava nos estúdios da RCA Victor para seu álbum de estreia – o de número quatro daquela gravadora. Concordou-se, de imediato, que seriam destacados os compositores que àquela época despontavam no cenário artístico, e que os arranjos instrumentais ficariam a cargo da inventi­vidade magnânima de Eumir Deodato, que assinaria a maior parte das faixas com instrumentações complexas entremeadas por intervenções de metais e cordas. Buscando apresentar também uma sonoridade que enfatizasse, com muito balanço, os vocais do Quarteto – comandados por Carlos Castilho –, Luiz Carlos Vinhas e seu trio foram sabiamente convocados por Quartin para arranjar quatro composições do disco: “Berimbau” (Baden e Vinicius), “Mascarada” (Élton Medeiros e Zé Keti), “Resolução” (Edu Lobo e Ruy Guerra) e “Aruanda” (Carlos Lyra e Geraldo Vandré) – as três últimas, inéditas –, todas elas gravadas em menos de uma hora, sem quaisquer reparos ou takes adicionais. “Reza”, de Edu Lobo e Ruy Guerra, lançada no LP de Luiz Carlos Vinhas também pela Forma – o segundo da gravadora –, foi oportunamente escolhida para abrir o LP, apresentando as seguras vocalizações do Quarteto em Cy numa sublime e duradoura introdução. O grupo apresentou ainda duas recentes composições de Sérgio Ricardo: “Enquanto a Tristeza não Vem” e “Barravento”. O compositor, por sinal, que fez dois discos pela gravadora Forma naqueles anos de 1963 e 1964, esteve presencialmente nos estúdios para acompanhar as gravações do Quarteto. A singela e também inédita “O Trem”, de Francisco de Assis e Carlos Castilho – este último, o arranjador vocal do grupo –, é calcada em duas notas que se repetem sobre criativa harmonia simulando a marcha de um trem. Em ponto alto do disco, as quatro irmãs abrem seu leque de vozes em “Caminho de Pedra” (Tom e Vinicius), uma das “Canções do Amor Demais” lançadas por Elizete Cardoso, sobre dissonantes arranjos vocal e instrumen­tal no qual se sobressai o baixo marcado e andante de Luís Marinho em plena concordância com os versos desalentados de Vinicius. Segue-se a envolvente “Nanã”, de Moacyr Santos e Mário Telles, com destaque para os vibrantes metais de Pedro Paulo, Wagner, Raulzinho, Jorge Luís e Edson Maciel, e “Vida Ruim”, canção-lamento de Catulo de Paula. Com composições escolhidas com minúcia, time de músicos e arranjadores de primeira categoria e produção musical esmerada de Roberto Quartin, os microssulcos do LP de estreia do Quarteto em Cy transbordaram pompa. Sua capa dupla em cartão espesso ilustrada com pintura a óleo de Patrícia Tatters-field tornou o álbum ainda mais distinto, sobretudo numa época em que se começou a encarar o trabalho gráfico dos discos com o devido respeito. Anunciado como “a mais fabulosa revelação vocal do ano” de 1964, a gleba do Quarteto em Cy estava pronta para colher, pelos anos seguintes, os mais profícuos frutos. 2 – Vinicius e Caymmi no Zum Zum (1965) BRASIL, ELENCO, ME-23 Para a gravação do álbum, no entanto, Aloysio de Oliveira cuidou para que toda a grandiosidade do espetáculo não fosse posta em xeque por motivos técnicos. Preferiu fazê-lo em estúdio, contudo, fez questão de reproduzir o show na sua íntegra, tal e qual fora apresentado no Zum Zum. O disco-show possui uma linearidade ímpar: começo, meio e fim alinhava­dos por uma linha narrativa bem definida. Os breves versos de “Bom Dia Amigo”, de Baden e Vinicius, entoados pelo Quarteto em Cy sobre o órgão de Castro Neves abrem o espetáculo cumprimentando os espectadores e ouvintes de forma cordial: “Bom dia, Amigo / Que a paz seja contigo / Eu vim somente dizer / Que te amo tanto / Que vou morrer / Amigo, adeus”. Tendo como mote uma carta escrita para Tom Jobim, Vinicius desponta apresentando incidentalmente suas recentes composições, a serem inter­pretadas na íntegra por adiante, com destaque para aquelas feitas junto de Baden Powell, seu recente parceirinho: os sambas “Formosa” e “Berimbau”, este último tendo sido motivo de grande orgulho do poeta. De volta à cena, ressurge o Quarteto em Cy agora com o aval de Vinicius entoando versos seus sobre a vinheta-tema de Carlos Lyra que fora marca do show: “Essas são as minhas meninas / São as quatro baianinhas / Que eu um dia descobri: Quarteto em Cy / Se eu fosse Solteiro / Com as quatro casaria / Elas sempre assim / Cantando o dia inteiro só pra mim”. Abrem-se então as vozes das quatro irmãs na esfuziante “Tem dó de Mim”, de Carlos Lyra. De Vinicius e Lyra o Quarteto interpreta ainda “Broto Maroto” e “Minha Namorada” ao lado do poeta, esta última sendo introduzida novamente pela vinheta musical, originalmente feita para esta canção – “Meu poeta, hoje estou contente / Todo mundo de repente / Ficou lindo, ficou lindo (...)” –, que recorre em outros momentos do show com diferentes versos. Eis que Vinicius, mentor da patota, anuncia: “Eu tenho um amigo que é baiano / Um amigo muito humano / Um baiano cujo som é todo bom / Ouçam como é lindo / Ele cantar sua poesia / Que melancolia / Ai, que saudade eu tenho da Bahia”. Aberta a deixa, aporta Dorival Caymmi interpre­tando, em companhia do Quarteto em Cy, as “Saudades da Bahia” e em seguida trazendo toda a ternura de “...Das Rosas”. Para a segunda parte do espetáculo, o poeta e anfitrião faz um pedido a Dorival: “Meu irmão Caymmi, eu gostaria / De ouvir sua poesia / Nos contar sobre a canção do pescador / Vamos navegar no mesmo mar de nostalgia / E lembrar o dia / De uma pescaria em Salvador”. Interpretada por Caymmi e o Quarteto em Cy, parte a jangada em direção à saga descrita pela “História dos Pescadores”. Dando continuidade ao show, Dorival Caymmi pede a Vinicius: “Meu irmão poeta, eu gostaria / De ouvir uma poesia / Que amo muito e que me dá sempre emoção / Você poderia nos dizer toda a paixão / E toda a ironia / Do dia em que Deus fez a criação”. Com o auxílio do Quarteto em Cy, o poetinha recita o filosófico, irreverente e extenso poema que se inicia em Gênesis e se estende até os dias de “grande aumento no consumo”. Concluindo o espetáculo no mais alto astral, as balançadas “Aruanda” (Lyra e Geraldo Vandré), “Adalgiza” (Caymmi) e “Formosa” (Baden e Vinicius) são apresentadas numa tacada só. Despedem-se todos em coro: “Nós [Caymmi e Vinicius], as baianinhas / E o Conjunto Castro Neves / Nos junta­mos pra fazer este showzinho pra vocês / Se vocês gostaram / Até a próxi­ma vez / Pois se você gostaram / Nós também gostamos de vocês”. Finda-se o show com gosto de bis e com a nítida sensação de que se esteve presen­cialmente na boate Zum Zum, tamanho o realismo com que o disco foi produzido. Toda a espontaneidade oriunda da relação amistosa entre todos foi fielmente captada nos estúdios da Rio Som. Não foi por acaso que “Vinicius e Caymmi no Zum Zum com o Quarteto em Cy e o Conjunto Oscar Castro Neves” resultou no maior êxito comercial da gravadora Elenco. 3 – Caymmi and The Girls From Bahia (1965) EUA, WARNER BROTHERS, 1614 Em 1965, a América do Norte descobria Dorival Caymmi através de “Caymmi and The Girls From Bahia”, produção do influente e esperto Aloysio de Oliveira – lá conhecido como Louis Oliveira – em parceria com Sonny Burke e Ray Gilbert. A capa do lançamento da Warner Brothers alardeava em Inglês: “Ele é um pescador... um poeta do mar. Ele é o mais popular escritor de canções do Brasil. Um homem adorado por sua gente. Ele é o compositor de ‘And Roses and Roses’. Ele canta com simplicidade e paixão. Ele é único. Ele é Caymmi (KAI-EE-ME) [sugerindo a correta pronúncia de seu nome]”. Em texto na contracapa do disco, Stan Cornyn, a autoridade maior da Warner, comparava o compositor baiano ao jazzista George Gershin, e se estendia em grandiloquentes e poéticos elogios. O foremost composer, como Dorival também era referido, foi acompanhado do Quarteto em Cy que, por uma questão de conveniência e estratégia – de Louis, diga-se –, passaria a ser conhecido naquelas terras como “The Girls From Bahia”. Em relação às garotas baianas, Cornyn afirmava que elas eram extensões da personalidade artística de Caymmi. “Caymmi and The Girls From Bahia” trouxe sucessos do baiano em Portu­guês com alguns dos títulos adaptados ao Inglês como “I Long for Itapoã” (Saudade de Itapoã), “March of The Fisherman” (Marcha dos Pescadores) e “Whistle to The Wind” (Temporal). A maior aposta do disco era “...Das Rosas”, que recebera o título “And Roses, And Roses” e tivera parte de sua letra com versão em Inglês de Ray Gilbert: “Roses, roses, roses / I thank all the roses that bloom in the spring / Love is a wonderful thing, the rest of my life I will bring her / Roses and roses and roses of love”. Tal canção figurou como um de sucesso naquela época, tendo sido gravada também pelo cantor e apresentador de TV Andy Williams ainda em 1965. O disco, no entanto, trazia duas composições que não pertenciam a Caymmi: “Morrer de Amor” (I Live to Love) e “Amaralina” (Amaralina Beach); a primeira, de Luvercy Fiorini e Oscar Castro Neves, a segunda, de Carlos Castilho e Francisco de Assis. Ambos os fonogramas, somente nas vozes das quatro garotas, pertenceriam ao repertório do disco de 1966 do Quarteto em Cy pela Elenco. Os arranjos de “Caymmi and The Girls From Bahia” ficaram a cargo de Bill Hitchcock e sua virtuosa orquestra, o que conferiu àquelas doze faixas um ar globalizado. Ressalte-se também que o disco foi lançado em versão estereo­fônica, técnica de gravação ainda rara no Brasil, e que chegaria em nosso país pela primeira vez somente em 1967 numa edição da Odeon que, lamen­tavelmente, não trouxe os devidos créditos ao quarteto. 4 – Som Definitivo (1965) BRASIL, FORMA, FM-10 Com a participação não somente especial, mas essencial do conjunto Tamba Trio, o segundo disco de carreira do Quarteto em Cy pela Forma, “Som Definitivo”, bem representa a vertente jazzística da Bossa Nova. O trio, formado por Luiz Eça ao piano, Bebeto no baixo e na flauta e Ohana na bateria, forneceu uma base impecável para destacar as vocalizações do Quarteto sobre os magnânimos arranjos vocais de Eça – também responsável pelas instrumentações. Com o concurso das intervenções vocais do Tamba Trio e de seus criativos improvisos instrumentais, o álbum, produzido por Roberto Quartin e Wadi Gebara, resultou numa sonoridade única, definitiva, como propôs, sem falsa modéstia, seu título. De Edu Lobo e Vinicius de Moraes, o septeto abre o disco apresentando a impetuosa “Zambi”, música-tema da peça “Arena Conta Zumbi” – de Gianfracesco Guarnieri e Augusto Boal – naquele ano registrada em disco por Edu Lobo também em companhia do Tamba Trio. Igualmente de Edu, o quarteto e o trio trazem as recentes “Aleluia” (parceria com Ruy Guerra) e “Arrastão” (parceria com Vinicius de Moraes), que na interpretação de Elis Regina vencera o I Festival de MPB promovido pela TV Record de São Paulo em 1965. De Luiz Eça, o quarteto entoa a inédita “Imagem”, melodia de notas longas e dinâmica sutil, envolvida por adequada letra reflexiva de Aloysio de Olivei­ra. Com arranjo vocal mirabolante e inspirado de Luiz Eça, a recente “... Das Rosas”, de Caymmi, é perpetuada na interpretação a quatro vozes do Quarteto em Cy, assim como o sucesso de Tom e Vinicius “Água de Beber” e “Eu Vim da Bahia”, de Gilberto Gil. “Se Você Pensar”, de Francis Hime e João Vitório, vinha do repertório do estreante e pouco conhecido conjunto Seis em Ponto – sexteto composto, dentre outros integrantes, por Hime e Nelson, que, por sinal, aparece em “Som Definitivo” através de sua composição inédita “O Mar é Meu Chão”, feita em parceria com Dorival Caymmi. Inicialmente batizada por Vinicius de “DDC” – abreviação de “Dor de Coto­velo” –, a canção “Apelo”, parceria do poeta com Baden Powell, só recebeu este título definitivo pouco antes da gravação feita para o álbum do septeto Quarteto em Cy e Tamba Trio. Apesar de fontes creditarem a primeira grava­ção desta canção à Claudette Soares, foi no álbum “Som Definitivo” que “Apelo” se apresentava como inédita – Claudette a registraria posteriormente no LP “Primeiro Tempo: 5 x 0”, feito junto de Taiguara e Jongo Trio no selo Philips em 1966. No texto da contracapa, assinado por Vinicius de Moraes, seu aval em relação ao Quarteto em Cy era reiterado. O poeta afirmava: o grupo é “o que há de mais puro em matéria de conjunto vocal feminino: pelo menos, no mundo que eu conheço”. Obs.: O álbum “Som Definitivo” foi gravado em fins de 1965 e lançado no início de 1966. 5 – Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius (1966) BRASIL, FORMA, FM-16 O encanto de Vinicius de Moraes pela cultura baiana motivou o jornalista e músico soteropolitano Carlos Coqueijo – que também fora grande incentivador artístico das quatro irmãs em Cy – a presentear o poeta com um LP que apresentava sambas de roda e candomblés da Bahia. Embora estivessem prontos desde 1962, somente em 1966 oito dos mais de trinta afro-sambas de Baden e Vinicius eram registrados por eles próprios em disco. A intenção, segundo Vinicius – em texto da contracapa do LP –, era “carioquizar, dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro­brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal”. A produção, dirigida por Wadi Gebara e Roberto Quartin para seu selo Forma, contou com arranjos e regência do maestro Guerra Peixe, que teve o mérito de fundir instrumentação tradicional – flauta, violão, baixo e bateria – à percus­são afro composta por afoxé, agogô, atabaque, pandeiro e bongô. Gravado em apenas quatro dias, entre 3 e 6 de janeiro daquele ano, “Os Afro-Sambas de Baden e Vinicius” teve a participação dos uníssonos do Quarteto em Cy no coro, ao qual também se somaram amadores oriundos do círculo de amizades do poeta, dentre eles: Eliana Sabino, filha de Fernando Sabino; a atriz Betty Faria; Nelita, esposa de Vinicius; o companheiro “velosiano” Otto Gonçalves Filho, e o Dr. César Augusto Parga Rodrigues, psiquiatra do poeta. A liberdade de criação do disco havia sido uma exigência de Vinicius, que na contracapa se justificava: “Não nos interessava fazer um disco ‘bem feito’ do ponto de vista artesanal, mas sim espontâneo, buscando a transmissão simples do que queriam nossos sambas dizer”, (...) e “embora não sejamos cantores, no sentido profissional da palavra, preferimos gravá-las nós mes­mos a entregá-las a cantores e cantoras que realmente distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo comercial de cantar, ou de suas deformações profissionais, adquiridas no sucesso efêmero junto a um público menos exigente. Assim estamos certos de que, pelo menos, grava­mos uma matriz simples e correta, sem ‘modismos’, nem sofisticações. E não foi outra a razão pela qual escolhemos uma equipa aonde – apesar de haver um conjunto vocal profissional da qualidade do ‘Quarteto em Cy’ e uma cantora que vai se firmando cada vez mais como Dulce Nunes (...) a obediência a esse principio foi absoluta”. “Canto de Ossanha” abre o disco trazendo as vozes rústicas de Vinicius e Betty Faria se revezando nos versos iniciais da canção. “Canto de Xangô”, com Vinicius e os vocais do Quarteto em Cy, saúda o orixá repetindo versos cíclicos e hipnóticos sobre percussão marcada. Em “Bocochê” o poeta puxa seus versos e o Quarteto, respondendo, os replica como numa roda de capoeira: “[Vinicius:] Menina bonita pra onde é que ocê vai? / [Quarteto em Cy:] Vou procurar o meu lindo amor no fundo do mar”. “Canto de Iemanjá” traz os belos vocalizes de Dulce Nunes, aludindo à rainha do mar, numa louvação feita por Vinicius e o Quarteto. O samba “Tempo de Amor”, o mais tradicional dentre todos aqueles que compõem o disco, destaca o ágil violão de Baden sobre o excêntrico e descompro­missado “Coro da Amizade” – como o próprio Vinicius o havia definido. Em “Canto do Caboclo Pedra Preta” a referida entidade é glorificada por todos de maneira festiva e vivaz. “Tristeza e Solidão” e “Lamento de Exu” encerram o disco em tom elegíaco, a última tendo apenas o solitário violão de Baden novamente com os fulgurantes vocalizes de Dulce Nunes. A informalidade proposta por Vinicius à gravação do disco, no entanto, foi alvo de estranhamentos, inclusive do próprio Baden Powell – muito embora o álbum tivesse se transformado em objeto de culto. Em 1988, oito anos após a morte de Vinicius, Baden demonstrava interesse em refazer o disco à sua maneira, lançando mão dos novos recursos da tecnologia – em 1966, as técnicas de gravação no Brasil eram ainda primitivas. No ano de 1990, o desejo do músico se concretizaria*. *Vide item “Afro-Sambas – Baden Powell”. 6 – The Girls From Bahia - Pardon My English (1966) EUA, WARNER BROTHERS, 1658 Um ano após o grande êxito do disco gravado à companhia de Caymmi, a Warner Brothers apresentava aos Estados Unidos o grupo The Girls From Bahia em álbum próprio. Aventurando-se no Inglês pela primeira vez, as vocalistas já se desculpavam pelos eventuais deslizes na língua estrangeira logo na capa do LP. “Pardon My English”, música-título do disco, era a versão de Ray Gilbert para “Samba Torto”, de Tom Jobim e Aloysio – Louis – de Oliveira, que assina a produção novamente junto do versionista Gilbert. Das doze faixas de “Pardon My English”, arranjado por Oscar Castro Neves, apenas duas foram interpretadas em bom Português: a tradicio­nal e marota canção americana “Makin Whoopee” (Donaldson e Kahn / Versão: Aloysio de Oliveira) e a brasileira “Canto de Ossanha” (Baden e Vinicius). Em idioma onomatopaico, o grupo trazia “Tup-a-Tup” (“Até Londres”), de Oscar Castro Neves. O quarteto apresentava também a tradicional americana “Oh, Susannah” e a jazzística “Bye Bye Blackbird”, de Dixon e Henderson, e mostrava em Inglês, pela primeira vez em suas vozes, as nacionais “Tears” (“Razão de Viver”), de Eumir Deodato e Marcos Valle, e “Você”, de Menescal e Bôscoli. “Image” (“Imagem”), de Aloysio e Luiz Eça, já gravada pelo quarteto no álbum “Som Definitivo”, é revista na língua estrangeira em novo arranjo instrumental. Ainda em 1966 a Warner lançava um single promocional em 45 rotações com as duas novas apostas da gravadora: “Tup-a-Tup” e “Bye Bye Blackbird”. O álbum “Pardon My English” obteve sucesso absoluto, tendo sido editado no Brasil em 1967 pela CBD. 7 – Quarteto em Cy (1966) BRASIL, ELENCO, ME-33 Gravado à mesma época do álbum “Pardon My English”, o disco “Quarteto em Cy” trazia ao público brasileiro cinco canções daquele álbum estrangeiro: “Samba Torto”, “Até Londres”, “Vamos Pranchar”, “Inútil Paisagem” e “Canto de Ossanha”. Mantiveram-se os mesmos playbacks, somente as vozes foram regravadas, agora em Português. “Morrer de Amor” é o mesmo registro do álbum “Caymmi and The Girls From Bahia”. O fonograma “Pedro Pedreiro” (Chico Buarque) já havia sido lançado – com muito sucesso, diga-se – no compacto CE-21 da Elenco em 1965, assim como “Amaralina”*, constante do lado B deste mesmo disco, e também integrara o álbum “Caymmi and The Girls From Bahia”. Também em compacto (CE-26, Elenco) e da mesma forma no disco “Caymmi and The Girls From Bahia” já haviam sido lançadas “Canto de Ossanha” e “Vamos Pranchar”. Dentre os fonogramas exclusivamente gravados para este LP “Quarteto em Cy”, que apresentava ao Brasil sua nova integrante Cyregina – Werneck –, figuram “Último Canto” (Ruy Guerra e Francis Hime) e ainda três inéditas: “Espere um Pouco” (Ugo Marotta e Vica), “Caminho do Mar” (Sérgio Ricardo) e “Segredinho” (Carlos Coqueijo e Maria Eugênia). A canção “A Banda” fora a grande vencedora do II Festival da MPB da TV Record em 1966 na voz de Nara Leão. Naquele mesmo ano, o Quarteto em Cy registraria o sucesso* de Chico Buarque no compacto simples CE-31 pela Elenco – com “Morrer de Amor” no lado oposto. “Quarteto em Cy”, o primeiro disco de carreira do grupo lançado pela Elenco é, portanto, parte compilação e parte inédito. Como muitas das gravações deste LP ainda não haviam sido lançadas no Brasil, em boa hora foram apresentadas aos brasileiros. Com arranjos de Oscar Castro Neves e Ugo Marotta, “Quarteto em Cy” teve sua produção assinada por Aloysio de Oliveira, que havia produzido os discos estrangeiros que deram origem a este álbum nacional. *Obs.: Pertence ao fonograma de “Amaralina” – lançado no compacto simples CE-21 pela Elenco e também presente neste LP de 1966 – um breve vocalize a capela feito pelas quatro integrantes do grupo. Na versão do disco “Caymmi and The Girls From Bahia” não há a referida passagem, apesar de ser o mesmo fonograma. Nota: A versão do quarteto para “A Banda” também seria estrategicamente incluída numa segunda tiragem de “Quarteto em Cy”, cuja capa fora carimbada com os dizeres: “Atenção: Este LP contém ‘A Banda’”. 8 – De Marré de Cy (1967) BRASIL, ELENCO, ME-41 Em 1967 o Quarteto em Cy entrava em estúdio para o primeiro LP gravado integralmente por sua nova formação – composta por Cyva, Cynara, Cybele e Cyregina. Com produção de Aloysio de Oliveira e arranjos de Oscar Castro Neves, recém-casado com Cyregina, “De Marré de Cy” evoca o lúdico universo infantil propondo uma reflexão em relação aos devaneios e anseios humanos. A representação da ciranda, que ilustra a capa, se faz presente nas quatro composições inéditas de Sidney Miller. “O Circo” abre o disco anunciando “Vai, vai, vai começar a brincadeira”, e apresenta arquétipos humanos através de metáforas relacionadas com a atuação do palhaço, da bailarina, do trapezista e do domador. O sonho da ”Menina da Agulha” traz os encantos que bordavam seus vestidos, seus dias coloridos. “Redenção”, com MPB4, evoca a fé, a esperança. A canção-título “Marré de Cy”, inspirada na tradicional cantiga de roda, traz versos de lamento – “Meu sorriso não encobre / Tudo o quanto eu já perdi” – acalantados pela esperança do sonho pueril. De Nelson Motta e Dori Caymmi, o Quarteto registra “Saveiros”, que na interpretação de Nana Caymmi fora vencedora do I Festival* da Canção Popular (1966), da TV Rio. Ao lado de MPB4, o Quarteto havia apresentado “Canção a Medo”, de Sérgio Bittencourt – lançada no compacto Elenco CE-33 e no disco “MPB4“, de 1967 – e “Se a Gente Grande Soubesse”, de Billy Blanco, defendida junto de seu filho Billinho, e que oportunamente integrou o repertório de “De Marré de Cy” – haja vista a pertinência de seu tocante retrato do universo infantil. Em “De Marré de Cy” houve ainda espaço para novos sambas. De Oswaldo Pereira, Jorge de Oliveira e Jorge Pessanha, o Quarteto apresenta a inédita “A Baiana e o Tabuleiro” revisitando sua terra de origem, o que também se dá através do clássico “São Salvador”, de Caymmi. A também inédita “Mundo Melhor”, de Vinicius de Moraes e Pixinguinha, traz a expectativa de um novo amor. Do recorrente Billy Blanco, era apresentada a igualmente nova “Samba da Lagoa”. O lamento “Favela”, de Jorginho e Padeirinho, gravada naquele ano por Nara Leão em seu primeiro disco, recebe sua versão a quatro vozes, assim como “Tem Mais Samba”, recente composição de Chico Buarque. À época de “De Marré de Cy”, diversos compactos simples e duplos com suas canções foram lançados. Destaca-se, dentre eles, o CED-06 por trazer a canção “Manifesto” (Guto Graça Melo), do repertório do grupo homônimo. Também gravada no disco “Manifesto Musical” sob o selo Elenco em 1967, tal canção abordava de forma inusitada a censura da ditadura militar através de versos ousados e irônicos: “A minha música não traz mensagem / E não faz chantagem ou guerra fria / E nem fala em ideologia / Eu vim apenas para lhe falar / De uma grande perda / Que nem sei se é da direita ou da esquer­da / E o que me importa se a censura corta / Pois eu gosto dela se é verme­lha / Ou se é verde e amarela (...)”. *Obs.: O Quarteto em Cy também participaria do II Festival Popular da Canção, em 1967, interpretando “Sou de Oxalá”, De Alcyvando Luz e Carlos Coqueijo, registrada no álbum com as canções do evento lançado pela Philips (R 765.019 L). 9 – The Girls From Bahia - ¡Revolución con Brasilia! (1967) EUA, WARNER BROTHERS, 1715 De volta à América do Norte, a nova formação de The Girls From Bahia apre­sentava aos Estados Unidos seus exciting new sounds em “¡Revolución con Brasília!”, segundo álbum do grupo pela Warner Brothers, com produção de Sonny Burke. Apesar do estranho título com exclamações da língua espa­nhola e uma referência a Brasília, talvez por ser a recente capital daquele pitoresco país chamado Brazil, o novo disco das garotas baianas não se propunha ser revolucionário. Talvez a única ousadia tivesse ficado por conta do fato das quatro vocalistas terem sido ensaiadas em Inglês fonético, como dizia a contracapa do disco. “¡Revolución con Brasília!” é aberto com “Berimbau”, cantada parte em Português, parte em Inglês. A letra na língua estrangeira, por sinal, já estava pronta desde 1965, quando a ida do quarteto para os Estados Unidos ainda era arquitetada. A versão de Ray Gilbert para a canção de Baden e Vinicius manteve seu mote original, dizendo em seu refrão: “When he plays that leow and string / What magic he can bring / So sing you Berimbau / Play your song across the sea / And bring my love to me / Enchant him Berimbau”. Ainda na língua estrangeira, com versão de Gilbert, o quarteto entoava “Road to Nowhere” (“Estrada do Nada”), de Billy Blanco e Aloysio de Oliveira; “The Day it Rained” (“Chuva”), de Durval Ferreira e Pedro Camargo, e “Dindi”, de Tom Jobim. Em bom Português, o grupo apresentava “Tem Mais Samba”, de Chico Buarque; “Laia Ladaia” (“Reza”), de Edu Lobo e Ruy Guerra, e ”I Live to Love You” (“Morrer de Amor“), de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini. “Parade” (“A Banda”), de Chico Buarque fora registrada em Português, tendo apenas alguns versos em Inglês. Também na língua materna, o grupo trazia versões bem-humoradas – e por vezes non sense – de Aloysio de Oliveira para clássicos do cancioneiro norte­americano, compostas à época de seu conjunto Bando da Lua. São elas: o swing “In the Mood”, (“Edmundo”) de Garlan e Razaf; “The Sunny Side of The Street” (“O Sobrinho da Judith” – originalmente “A Sobrinha da Judith”), de Fields e McHugh, e “The Old Piano Roll Blues”, de Cy Coben, e “Manhat­tan”, de Rodgers e Hart. Apenas com vocalizes, língua universal, o quarteto apresenta “E Nada Mais” (Lula Freire e Durval Ferreira). Ainda em 1968, a Warner lançava um single em 45 rotações com “Berimbau” e “Parade” para promover o novo trabalho das garotas da Bahia. *Obs.: O grupo Samba S/A gravou um único LP em 1967 pela RCA Victor. 10 – Em Cy Maior (1968) BRASIL, ELENCO, ME-47 De volta ao Brasil como Quarteto em Cy, as vocalistas Cymíramis, Cyntia, Cyregina e a resistente Cyva gravam na Elenco o álbum “Em Cy Maior”, com produção de Aloysio de Oliveira e arranjos de Oscar Castro Neves. O único disco gravado com esta formação trazia as inéditas “Juliana”, praieira de Dorival Caymmi; o irreverente “Samba do Carpinteiro”, de Velha da Portela e Bid – que contou com a participação de “partideiros”, amigos de compositor portelense; a sonhadora e idealista “Minha Rua”, de Sidney Miller; a mística e mítica “Aioká”, de Carlos Coqueijo e Alcyvando Luz, e “A Volta do Chorinho”, rara parceria de Aloysio de Oliveira com o maestro Lindolpho Gaya. Destaque­se ainda a também inédita “Samba do Crioulo Doido”, de Sérgio Porto, com a participação de seu heterônimo Stanislaw Ponte Preta introduzindo o bem-humorado enredo nonsense de uma suposta escola de samba. Em “Frevo de Orfeu”, a melodia de Tom Jobim composta para a peça “Orfeu da Conceição” em 1959, é pela primeira vez registrada com a letra de Vinicius de Moraes: “Vem, vamos dançar ao sol / Vem, que a banda vai passar / Vem ouvir o toque dos clarins / Anunciando o Carnaval”. “Em Cy Maior” apresenta ainda a versão em Cy para a romanesca “Lua Cheia”, primeira composição de Chico Buarque em parceria com Toquinho datada de 1967; o romântico sucesso de Alaíde Costa “Onde Está Você”, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, e a bucólica e espirituosa “Minha Palhoça”, de J. Cascata. À época de “Em Cy Maior”, o grupo lançaria na Elenco a pungente “Retrato em Branco e Preto”, até então registrada por Tom somente em melodia com o nome de “Zíngaro”, e que recebera letra de Chico Buarque – sua primeira parceira com o maestro soberano –, sendo gravada pelo Quarteto nos compactos CE-54, simples, e CED-08, duplo. O referido registro tem a peculiaridade de apresentar a letra da canção em sua primeira versão, ainda inacabada, com os versos “E sei também que ali sozinho / Eu vou parar tanto pior” em vez de “E sei também que ali sozinho / Vou ficar tanto pior”; “Eu trago o peito carregado / De lembranças do passado” no lugar de “Eu trago o peito tão marcado / De lembranças do passado”. Tom repu­diaria os dizeres “peito carregado”, sugeridos por Chico, alegando que a expressão poderia aludir a um problema respiratório, uma tosse. O disco de volume três de Chico Buarque pela RGE, lançado em 1968, traria a letra definitiva consentida por ambos os compositores. Ainda em 1968 o grupo gravava outro compacto duplo inédito (CED-09), composto pela delicada “Modinha” (Sérgio Bittencourt); a marcha-lamento “Bloco do Eu Sozinho” (Ruy Guerra e Marcos Valle), e as inéditas “Gente do Morro”, de Carlos Lyra, e “Samba do Urubu”, divertida sátira de Velha sobre a falta de sorte. Nota: Em 1969, de volta aos Estados Unidos, The Girls From Bahia – agora formado por Cyva, Cybele, Cyregina e Sandra – gravava aquele que seria seu terceiro disco estrangeiro: “Carrousel”, composto somente por músicas americanas, e que nunca foi lançado, ainda permanecendo latente. 11 – Quarteto em Cy (1972) BRASIL, ODEON, SMOFB 3732 De volta ao Brasil, o quarteto se reestrutura em 1972 com nova formação constituída por Cyva, Cynara, Sonya e Dorinha Tapajós e grava o LP “Quarteto em Cy”, pela Odeon, fincando suas raízes em seu país de origem. Com produção de Milton Miranda, direção musical do maestro Gaya e arran­jos de Luiz Eça e Edu Lobo, o álbum apresenta um Quarteto em Cy diferente daquele que se conhecia até então – ainda muito associado à Bossa Nova. Ganham destaque composições de autores iniciantes, até então inéditos nas vozes do Quarteto, como Raimundo Fagner e Ricardo Figueiredo, em “Cava­lo-Ferro”; Lô e Márcio Borges, em “Tudo o que Você Podia Ser”, e Zé Rodrix e Luís Carlos Sá em “Antes da Primeira Hora” e “Underground”. Das três composições de Edu Lobo presentes em “Quarteto em Cy”, duas – “Incelensa” e “Zanga, Zangada” –, viriam a compor seu álbum de 1973, “Missa Breve”, também pela Odeon, que contaria com a participação do Quarteto. “Quando o Carnaval Chegar”, de Chico Buarque, composta para o filme homônimo de Carlos Diegues de 1972, é aqui revisitada pelo grupo. “Canto do Obá”, de Caymmi e Jorge Amado, lançada no LP do compositor baiano deste mesmo ano e pela mesma Odeon, fecha o disco em clima afro-religioso, reafirmando a origem baiana do Quarteto em Cy. Notas: Em 2004, integrando a série “Odeon 100 Anos”, supervisionada por Charles Gavin, o álbum é reeditado pela primeira vez em CD no Brasil, ganhando também versão especial em LP, lançada pelo selo Amazon Records com prensagem da Polysom, a lendária fábrica de discos de vinil fluminense. 12 – Saravá, Vinicius (1974) ARGENTINA, MUSIC HALL, MH 14677-9 (VOL. 1) / MH 14687-0 (VOL. 2) O Quarteto em Cy, de volta à companhia do padrinho Vinicius e agora também com Toquinho, inicia exitosa turnê partindo do TUCA – Teatro da Universidade Católica –, em São Paulo, se entendendo para várias outras cidades do Brasil. Acompanhavam os seis um trio instrumental enxuto formado por Dirceu (bateria), Nelson Ayres (piano) e Zeca Assumpção (contrabaixo). O espetáculo homenageava o poeta Pablo Neruda, o músico Pablo Casals e o pintor Pablo Picasso, mortos em 1973. Seu repertório basicamente revisitava sucessos já consagrados da carreira do poetinha em parceria com Tom Jobim, como “Lamento no Morro” e “A Felicidade”; Carlos Lyra, como “Coisa Mais Linda” e “Minha Namorada”; Baden Powell, como “Berimbau” e “Canto de Ossanha”. Composições recentes, feitas em conjunto com o novo parceiro, Toquinho, foram agrupadas num pot-pourri composto por “Samba da Volta”, a polêmica “Valsa do Bordel” e “Carta ao Tom 74”. Toquinho apresentou, ainda, todo o seu virtuosismo ao violão com “Bachianinha Nº 1”, instrumental de autoria de seu mestre Paulinho Nogueira, e “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Composições de Chico Buarque e outras parcerias de Toquinho também integram o repertório do show-disco que tem como ápice a declamação de “Breve Consideração À Margem Do Ano Assassino de 1973”, texto visceral de autoria de Vinicius declamado por ele próprio em deferência a morte dos três Pablos. Outros textos, falas e poemas em deferência aos homenageados são proferidos durante o espetáculo, como “História Natural de Pablo Neruda: Penetración en La Mujer”, de Vinicius, e ainda “Soneto de Pablo Neruda Dedicado a Vinicius” e “Soneto de Vinicius Dedicado a Neruda”, em que se nota a admiração recíproca entre os poetas. Nota: Em 1974 o Quarteto em Cy participava da trilha sonora da novela “Fogo Sobre Terra”, da TV Globo, interpretando a canção-título da trama de autoria de Toquinho e Vinicius de Moraes. Tal fonograma somente foi lançado no disco daquela atração pela Som Livre (403.6044), não perten­cendo a nenhum disco do Quarteto. 13 – Antologia do Samba-Canção (1975) BRASIL, PHONOGRAM / PHILIPS, 6349 133 A estreia do Quarteto em Cy na Philips, onde permaneceria por seis anos, se deu através de dois compactos-duplos. O primeiro volume de “Quatro Sucessos em Cy” (6245.031) trazia “Porta Aberta” (Luiz Ayrão), “Gostava Tanto de Você” (Edson Trindade), “Retalhos de Cetim” (Benito di Paula) e “Torós de Lágrimas” (Antonio Carlos); o segundo (6245.036) apresentava “Abre-Alas” (Ivan Lins), “Se Não For por Amor” (Benito di Paula), “Menino Deus” (Mauro Duarte) e “No Silêncio da Madrugada” (Luiz Ayrão). O reper­tório de ambos os compactos basicamente enfocava grandes sucessos da época, compostos por nomes que se firmavam no cenário musical. Em suma, os grandes hits radiofônicos do momento foram confiados às vozes do Quarteto em Cy nos dois volumes de “Quatro Sucessos em Cy”, que antecedeu seu primeiro LP pela Philips: “Antologia do Samba-Canção”. O projeto Antologia tivera início em 1974 – com o disco “Antologia”, do MPB4. No ano seguinte, com direção de Paulinho Tapajós, irmão de Dorinha, o Quarteto em Cy entrava nos estúdios da Phonogram para o volume da série Antologia que contemplava o Samba-Canção. A série Antologia apresentava as canções mais representativas de um movimento, vertente ou estilo musical reunidas em discos temáticos. Os pot-pourris foram uma característica peculiar de Antologia, assim como os breves textos elucidativos nas capas. A “Antologia do Samba-Canção”, gravada pelo Quarteto em Cy, teve seu repertório, selecionado por Paulo Tapajós – músico, pesquisador e pai de Paulinho e Dorinha – calcado em canções em sua maioria dramáticas, com o que melhor representava o estilo também conhecido como “fossa”. De Antonio Maria, as pessimistas “Ninguém me Ama” e “Se Eu Morresse Amanhã”; de Ary Barroso, as desilusões de “No Rancho Fundo”, “Risque” e “Folha Morta”; de Garoto, a apaixonada “Duas Contas” e a reflexiva “Gente Humilde”; de Tito Madi, as realistas “Não Diga Não”, “Cansei de Ilusões” e “Fracassos de Amor”; de Jair Amorim, o fim de “Ponto Final” e o recomeço em “Alguém como Tu” com a participação de MPB4; de Lupicínio Rodrigues, as assertivas “Vingança”, “Nunca” e “Esses Moços”; de Herivelto Martins, as incertezas de “Caminhemos” e “Segredo”; do bossa-novista Carlos Lyra, uma lufada de esperança com “Primavera” e “Minha Namorada”; de Johnny Alf, as meditativas “Eu e a Brisa” e “Ilusão à Toa”; de Dolores Duran, as ardentes “Por Causa de Você” e “Ternura Antiga”, acompanhadas, além dos músicos usuais, também pela Orquestra de Cordas Phonogram. “Antologia do Samba-Canção” poderia ter soado como uma depressão musical, no entanto, os magníficos arranjos vocais e instrumentais concebidos por Luiz Cláudio Ramos, Oscar Castro Neves, Luiz Roberto e Miltinho (MPB4) entoados e envolvidos pelas quatro vozes do grupo no ápice do apuro técnico, tornam o disco no mínimo esplendoroso. As dores e os desenga­nos de amor soam passageiros ao serem conduzidos pela esperançosa leveza dos vocais que surpreendem e se renovam a cada segundo num contraponto ou numa vocalização distinta. Em “Antologia do Samba-Can­ção”, uníssonos são raros; surpresas e emoções são muitas. Nota: Em 1975 o Quarteto em Cy integrava a trilha sonora da novela “Gabriela”, da TV Globo, com “Horas”, de Dorival Caymmi. Tal gravação pertenceu ao disco da trama, lançado à época pela Som Livre, e foi editada em 2004 no álbum “Quarenta Anos”, do Quarteto em Cy. 14 – Antologia do Samba-Canção - Volume 2 (1976) BRASIL, PHONOGRAM / PHILIPS, 6349.180 O sucesso de crítica e público de “Antologia do Samba-Canção” com o Quarteto em Cy levou a Phonogram a lançar um segundo volume se utilizando da consagrada fórmula: arranjos vocais e instrumentais esmerados – a cargo de Oscar Castro Neves, Luiz Cláudio Ramos, Miltinho e Magro (os dois últimos, do MPB4) – e o brilho da interpretação das quatro vocalistas para outros inspirados, dolorosos e pungentes sambas-canção. Sobre a mesma instrumentação sutil privilegiando as vozes do quarteto, o segundo volume de “Antologia do Samba-Canção” traz composições de: Armando Cavalcanti, “Nesse Mesmo Lugar”; Chocolate, “Vida de Bailarina” e “Canção de Amor”; Custódio Mesquita, “Saia do Caminho”; Marino Pinto, “Reverso” e “Prece”; Noel Rosa, “Último Desejo”; Fernando Lobo, “Siga” e “Chuvas de Verão”; Haroldo Barbosa, “Meu nome é Ninguém”; Fernando César, “Dó-Ré-Mi” e “Joga a Rede no Mar”; Dorival Caymmi, “Nem Eu”, “Não Tem Solução” e “Nunca Mais”. Assim como no primeiro volume, no entanto, a bossa nova, estilo posterior e oposto ao samba-canção, teve espaço no disco com pot-pourri de Tom Jobim composto por “Dindi” / “Se Todos Fossem Iguais a Você” / “Eu Sei que Vou te Amar”, num primoroso arranjo conjunto de Magro e Luiz Cláudio Ramos que contou com a participação especial do próprio maestro soberano ao piano e o acompanhamento vocal do MPB4. O referido pot-pourri, por sinal, não se distancia das outras faixas apenas pelo estilo e pela temática, mas também por ser a única em que as instrumentações são mais rebuscadas, entremeadas pelas intervenções grandiosas de cordas da Orquestra Phonogram. Assim como no primeiro volume de “Antologia do Samba-Canção”, nos demais números do disco a base composta por piano (Antonio Adolfo), violão (Luiz Cláudio Ramos e Oscar Castro Neves), baixo (Luizão – e ainda Mamão e Gabriel no primeiro disco) e bateria (Paulinho e Pascoal) predomina, com raras intervenções de outros instrumentos. Os belíssimos e precisos vocais continuavam a figurar como a grande atração. “Antologia do Samba-Canção - Volume 2” veio para confirmar e estabele­cer o sucesso do Quarteto em Cy na nova gravadora. Naquele ano de 1976, houve rumores sobre a possibilidade de um terceiro volume do Quarteto na série Antologia, enfocando cirandas ou novamente sambas-canção, o que não se concretizou. 15 - Resistindo (1977) BRASIL, PHONOGRAM / PHILIPS, 6349.323 Com direção de Benjamim Santos e textos de Aldir Blanc, entre os anos de 1975 e 1976 o Quarteto em Cy apresentou o show “Resistindo”, que nas palavras de Benjamin Santos – em texto do encarte do LP – represen­tava, dentre outras emoções, valores e sentimentos, “... a ternura, a afronta, a resistência (...) a emoção, a voz, o choro, o arrepio, o canto...”. O disco é aberto por “Eu Vim da Bahia”, “Filhos de Gandhi” (ambas de Gilberto Gil) e “Viola Violar” (Milton Nascimento e Márcio Borges), canções pertencentes ao tempo Origens, o primeiro do show. “Capricho” (Francis Hime sobre poema de Castro Alves), “Memória” (Alcivando Luz sobre poema de Carlos Drummond de Andrade) e “Samambaias” (Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), compuseram o tempo Lembrança – que no show também teve sambas-canção pinçados das Antologias. Os sambas “Favela” (Jorginho e Padeirinho), Arquitetura de Pobre” (Edgar Barbosa e Joacy Santana) e “O Ronco da Cuíca” (João Bosco e Aldir Blanc) representavam a Rejeição. “Resistindo” (Bosco e Blanc), título do show e do disco, representava Sufoco. O tempo Lucidez foi representado no disco pela delicada “Dorme, Meu menino, Dorme” (Suely Costa sobre poema de Cecília Meirelles) e pela irônica “Rancho da Goiabada” (Bosco e Blanc, novamente). Representando Morte, “Funeral de um Lavrador”. Por fim, Reencontro, o último dos tempos, trazia a sutil “Canta, Canta Mais” (Tom e Vinicius) e a vigorosa “Mulheres de Atenas” (Chico Buarque e Augusto Boal), esta última, inédita que havia integrado a peça homônima do drama­turgo. A parceria de Boal e Buarque, por sinal, fora o foco das atenções, tendo um trecho de sua letra estampada na capa do LP. “Resistindo”, o disco, foi gravado ao vivo em dezembro de 1976 no Teatro Fonte da Saudade, no Rio de Janeiro, com formação instrumental enxuta composta pelo polivalente Luiz Cláudio Ramos (arranjos, direção musical, violão, viola e guitarra), Luizão (baixo), Laércio de Freitas (piano) e Zeca (bateria). Tendo a primeira década de carreira recém-completada, Aldir Blanc, em texto do encarte do LP, saudava o grupo: “com todas as mudanças de ventos e marés, com erros e acertos, com a maior garra (...) o Quarteto resistiu”. Nota: “Resistindo”, o disco, apesar de ter sido gravado ao vivo, teve takes adicionais em estúdio visando oferecer melhor qualidade técnica. 16 – Querelas do Brasil (1978) BRASIL, PHONOGRAM / PHILIPS, 6349 351 “...O Brazil não conhece o Brasil, o Brasil nunca foi ao Brasil...”. Assim diziam as palavras de Tom Jobim escritas na contracapa do disco “Miúcha e Antonio Carlos Jobim”, de 1977. A inusitada queixa de Jobim viria a dar o mote neces­sário a Maurício Tapajós e Aldir Blanc para a criação da canção “Querelas do Brasil”, lançada pelo Quarteto em Cy neste conceitual LP homônimo produzi­do por Marcos Maynard. Críticas social e ambiental, alertas, lamentos e queixas são temas recorren­tes deste álbum desde sua capa, permeando por todas as faixas. A canção­título, assim como “Plataforma” (João Bosco e Aldir Blanc) e a inédita “Love, Love, Love” (Caetano Veloso), exaltam nossa brasilidade: nossas origens, nosso samba, a fauna e a flora nativas. Por outro lado, “Angélica” (Chico Buarque e Miltinho), em sua primeira gravação, chora os pesares da estilis­ta, militante e mãe Zuzu Angel, cujo filho ativista fora preso e morto no fervor do regime militar. “Canudos” (Edu Lobo e Cacaso) narra o histórico e sangrento conflito liderado por Antonio Conselheiro. O choro “Santo Amaro“ (Luiz Cláudio Ramos, Franklin da Flauta e Aldir Blanc), relembra com nostalgia a paisagem do Rio de Janeiro do início do século XX, com seus blocos de carnaval, seus ranchos e seus sobrados destruídos pela implantação do sistema metroviário. “Salve o Verde” (Jorge Ben), ressalta o extermínio de nosso verde em nome do cinza do progresso. Há, contudo, espaço para o Brasil do romantismo, como em “Maresia” (Sueli Costa e Abel Silva), “Estrela Guia” (Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro) e “Não Posso me Esquecer do Adeus” (Caetano Veloso), em seu primeiro registro. “Sapato Velho” (Mu, Cláudio Nucci e Paulinho Tapajós), grande sucesso do grupo Roupa Nova, é outra canção que neste disco é apresentada em primeira mão pelo Quarteto em Cy em “Querelas do Brasil”, um dos discos mais conceituais e pungentes do grupo. Notas: “Sapato Velho”, com o Quarteto em Cy, integrou a trilha sonora da novela “Roda de Fogo”, da TV Tupi, de 1978. “Salve o Verde”, também do disco “Querelas do Brasil”, fez parte da trilha sonora da novela “Sinal de Alerta”, da TV Globo, de 1978. 17 - Cobra de Vidro - Quarteto em Cy e MPB4 (1978) BRASIL, PHONOGRAM / PHILIPS, 6349 351 O primeiro registro formal do octeto se deu em 1967 com “Canção a Medo”, de Sérgio Bittencourt*, e “Redenção”, de Sidney Miller, lançadas em com­pacto simples (Elenco, CE-33). A bem sucedida relação entre ambos os grupos, que se cruzaram em diversas apresentações e gravações durante as décadas de 60 e 70, culminaria no show “Cobra de Vidro”, estreado em 13 de abril de 1978 no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, e que originaria ainda naquele ano um LP homônimo com produção de Marcos Maynard e direção musical de Luiz Cláudio Ramos. O título do espetáculo aludia a uma lendária espécie de réptil que, segundo texto impresso na contracapa do disco – extraído do Dicionário de Animais do Brasil –, se partida em vários pedaços, pode ser reconstituída; todas as partes se grudam tão bem umas às outras “que ninguém percebe o desastre”, diz a curiosa nota. “Cobra de Vidro” viria, portanto, para explicitar a união e a sinergia entre Quarteto em Cy e MPB4 – que renderia ainda outros quatro discos. Com arranjos instrumentais e vocais de Luiz Cláudio Ramos e Magro, em “Cobra de Vidro” os conjuntos entoam repertório eclético, indo das lanci­nantes “Nada Será Como Antes” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos) e “A Estrada o Violeiro” (Sidney Miller), passando pelas sutis “Amor, Amor” (Suely Conta e Cacaso) e Because (J. Lennon e P. McCartney), e explodindo nas radiantes “Me Gustan Los Estudiantes” (Violeta Parra), “Não Existe Pecado ao Sul do Equador” (Chico Buarque e Ruy Guerra) e “Noites Cariocas” (Jacob do Bandolim) – esta última em extraordinário arranjo a capela, no qual os oito vocalistas reproduzem a sonoridade clássica do choro sem quaisquer instrumentos além de suas vozes. “Fuga”, de Villa Lobos, fecha o disco em tom erudito com o suntuoso arranjo de Magro. Destaque ainda para o lançamento de “Guararapes” (Dori Caymmi e Paulo Cesar Pinheiro), interpretada somente pelo MPB4, e “5/6/65”, composta e executada ao violão por Luiz Cláudio Ramos. *Obs.: “Canção a Medo” também foi lançada no LP “MPB4”, naquele ano de 1966. 18 - Em 1000 Kilohertz (1979) BRASIL, POLYGRAM / PHILIPS, 6349.407 Assim como os discos “Cobra de Vidro” e “Resistindo”, o LP “Quarteto em Cy em 1000 Kilohertz” se originou de show homônimo apresentado no Teatro Vanucci, no Rio de Janeiro. No disco, também produzido por Luiz Cláudio, o clima de reminiscência do espetáculo não foi muito além da capa e do foxtrote “Nada Além” (Custódio Mesquita e Mario Lago). O Quarteto apresenta aqui um repertório plural, com destaque para composições inéditas como “Sim ou Não” (Djavan), “Vinho Amargo” (Kledir Ramil e Fogaça), “Feira das Almas” (Francis Hime e Carlos Queiroz Telles), “Nadando no Seco” (Tunai e Sergio Natureza), “A Cidade Contra o Crime” (Gonzaguinha) e “Feminina” (Joyce). “Maria Maria” (Milton Nascimento e Fernando Brant) ganha sua versão a quatro vozes femininas, o que a torna tanto mais forte e represen­tativa. Destaca-se a regravação de “Sabiá” (Chico Buarque e Tom Jobim), originalmente lançada por Cynara e Cybele (vide discografia extra), e aqui revivida por todo o Quarteto. As canções “Não Tenha Medo” (Caetano Veloso) e “Credo”, (Milton Nasci­mento e Fernando Brant) teriam integrado o LP “Quarteto em Cy em 1000 Kilohertz” não fosse o veto da censura. “Boa Noite, Amor” (José Maria de Abreu e Francisco Matoso) e “Cantor de Rádio” (Custódio Mesquita e Paulo Roberto) ficaram de fora do disco por falta de espaço. Todas estas quatro canções, latentes por longos anos, foram lançadas 25 anos depois no disco “Quarteto em Cy – 40 Anos” (Universal, 2004). Nota: “Feminina”, com o Quarteto em Cy, fez parte da trilha sonora da série “Malu Mulher”, da TV Globo, de 1979. 19 – Flicts (1980) BRASIL, POLYGRAM / PHILIPS, 6349 432 Baseado no livro de Ziraldo lançado em 1969, “Flicts” ganha em 1980 sua versão em áudio com letras do próprio escritor mineiro e melodias do músico Sérgio Ricardo. O disco narra a saga de uma solitária cor que “Não tinha a força do Vermelho / Não tinha a imensidão do Amarelo / Nem a paz que tem o Azul / Era apenas o frágil, feio e aflito Flicts”. Dirigido por Sérgio Cabral, o LP marcou momento produtivo da produção fonográfica infantil, contando com as participações de Quarteto em Cy e MPB4 em dez de suas treze faixas além de Sérgio Ricardo na canção “Modinha da Lua”. 20 – Quarteto em Cy Interpreta: Gonzaguinha, Caetano, Ivan, Milton (1980) BRASIL, POLYGRAM / PHILIPS, 6349 450 O disco que encerra a primeira fase do grupo na Polygram também se despede de Dorinha Tapajós, que integrava o grupo desde 1972. A cantora inicia o registro* de sua quarta voz em “Quarteto em Cy Interpreta...”, mas é obrigada a se afastar das gravações e também do conjunto por motivos de saúde, dando lugar à Cybele, uma das irmãs em Cy que participaram da primeira formação do grupo. Cynara, Cyva, Sonya e Cybele iniciam a nova fase do quarteto interpretando, em produção dirigida por Octavio Burnier, brilhantes composições de Gonzaguinha, Caetano Veloso, Ivan Lins e Milton Nascimento. Destacam-se as inéditas “Abandonado”, de Caetano, “Ciranda Menina”, de Gonzaguinha e “O Último Trem”, composta por Milton e Fernando Brant para o Balé Corpo e especialmente dedicada ao Quarteto em Cy para este disco. Em carta enviada ao grupo, o compositor carioca, que fora criado em Minas, dizia: “Esta [canção] é uma continuação de ‘Ponta de Areia’ que mora no meu coração. Já que vós sois quatro, eu gostaria que cada uma dissesse uma estrofe e se juntassem na quinta...”. De Milton, o quarteto apresenta ainda “Idolatrada” e “Gira Girou”, parceria com Márcio Borges. De Ivan, o grupo entoa a fresca “Barco Fantasma”, lançada no LP do cantor daquele mesmo ano, e sucessos recentes como “Começar de Novo”, “Saindo de Mim” e “Antes que Seja Tarde” – todas compostas em parceria com Vitor Martins e lançadas em 1979. De Caetano, além da inédita “Abandono”, o grupo traz “Lua, Lua, Lua, Lua” e “Canto do Povo de Um Lugar”, de seu LP “Joia”, de 1975 – que havia contado com a participação do quarteto na faixa “Guá” –, além de “Um Dia”, uma das primeiras composições do músico baiano. A inédita “Ciranda Menina”, assim como “Recado” e “Começaria Tudo Outra Vez” conferem ao disco a alegria, a fé e o otimismo peculiares de Gonzaguinha, fortalecendo e consolidando a nova formação do quarteto que se estenderia por longos anos. *Obs.: Dorinha Tapajós participou das faixas “Idolatrada” (Milton Nasci­mento), “Lua, Lua, Lua, Lua” (Caetano Veloso) e “Começaria Tudo Outra Vez” (Gonzaguinha). 21 – Caminhos Cruzados - Caymmis, Lobos e Jobims (1981) BRASIL, RGE, 303.6010 Nova formação, nova gravadora e a incontestável qualidade de sempre. Em “Caminhos Cruzados”, o quarteto apresentou, com arranjos de Luiz Cláudio Ramos e Paulo Jobim, composições de três importantes famílias musicais brasileiras: Lobos (Fernando e Edu), Caymmis (Dorival, Dori e Danilo) e Jobims (Tom e Paulo). Lançado em novembro de 1981 pelo selo RGE, sob a direção de Durval Ferreira e com produção de Eduardo Athayde, “Caminhos Cruzados” desta­cava recentes composições de Tom Jobim, que também participa do disco ao piano em “Ai Quem me Dera”, feita a partir de letra do antigo parceiro Marino Pinto – lançada naquele mesmo ano no LP “Edu & Tom”; nas inéditas “Maria é Dia”, composta junto de seu filho Paulo Jobim e Ronaldo Bastos, e em “Borzeguim”, floresta musical rica em paisagens sonoras que, no coro, contou com a participação do jovem grupo Boca Livre. Ainda de Tom, o álbum resgatou “Caminhos Cruzados”. A antiga parceria do maestro com Newton Mendonça, datada da década de 50, oportunamente intitulou o disco que mostra o resultado da união das famílias Caymmi e Lobo na romântica “Saudade” (Dorival e Fernando), assim como dos Caym­mi e Jobim na inédita “Tataravô” (Danilo e Paulo). A homogênea mescla de tais famílias também se deu nas instrumentações do LP, já que Paulo Jobim, Danilo e Dori Caymmi dele participaram como executores – o primeiro, flautista e violonista; o segundo, flautista; o terceiro, violonista. Dos Caymmis, o quarteto apresenta ainda a antiga “Milagre”, de Dorival, e a recente “Desenredo” – parceria de Dori com Paulo César Pinheiro – com tocante solo de Cybele acompanhada dos precisos violões de Luiz Cláudio Ramos e Dori. Da linhagem dos Lobos, o grupo traz também a vibrante “Vento Bravo”, clássico de Edu com o recorrente Paulo César Pinheiro, e “Preconceito”, do velho Fernando em parceria com Antonio Maria, canção que, assim como “Desenredo”, é apresentada em arranjo intimista, realçando a madura forma vocal das quatro cantoras. Notas: No mesmo ano de 1981 e pela mesma RGE – companhia que, assim como a Som Livre, pertencia às Organizações Globo –, o Quarteto lançaria um compacto simples com “Tataravô”, pertencente ao disco “Caminhos Cruzados”, e “Céu Cor de Rosa”, versão de Haroldo Barbosa para “Indian Summer” (Victor Herbert e Al Dubin), que integrara a trilha sonora da novela “Ciranda de Pedra”, exibida em 1981 pela TV Globo. A canção-abertura da trama épica das seis viria a ser regravada, ainda naquele ano, por Nelson Gonçalves e pela dupla Jane & Herondy. Em 2007, a gravadora Som Livre, através da série RGE Clássicos, leva às lojas em CD o álbum “Caminhos Cruzados” em reedição coordenada por Charles Gavin. 22 – Pontos de Luz (1983) BRASIL, SOM LIVRE, 403.6272 Gravado em 1981 e lançado apenas no início de 1983, “Pontos de Luz” exibe um Quarteto em Cy ousado e moderno. A tradicional sutileza das instrumen­tações acústicas que embalavam as vozes do grupo deram lugar à sonoridade característica da década de 80 – com ares de Soul e Funk –, envolvida pelos sintetizadores de Lincoln Olivetti e Cleberson Horsth, que juntos assinavam os arranjos instrumentais do LP. César Camargo Mariano, Alberto Arantes e Raymundo Bittencourt – este, produtor do disco – dividiram a autoria dos rebuscados arranjos vocais deste primeiro e único álbum gravado pelo grupo na Som Livre. Das doze canções selecionadas para o disco – dentre as mais de duzentas cotadas para integrar seu repertório –, destacam-se aquelas de compositores inéditos nas vozes do grupo, como “Sol do Meio-Dia”, de Guilherme Arantes e Okky de Souza; “Pontos de Luz”, de Zé Renato e Xico Chaves, que intitula o disco, e “Resgate”, de Cláudio Cartier e Paulo César Feital, com brilhante solo vocal de Sonya sobre poesia que romantiza o sexo à enésima potência. O álbum traz ainda boas surpresas, como “Bem Mais Além”, versão de “Breaking Away” (Al Jarreau) composta por Cyva, e a regravação de “Se a Gente Grande Soubesse” (Billy Blanco), originalmente apresentada pelo quarteto no I Festival Internacional da Canção em 1965 junto de Billinho, e agora registrada na companhia dos filhos de Sonya, Cynara e Cybele. 23 – Cláudio Santoro - Prelúdios e Canções de Amor (1989) BRASIL, PAN, PEI 0002 Em 1987, o jejum em Cy felizmente termina e o grupo volta à ativa, marcan­do o recomeço com o espetáculo “Ao Redor de Cy”, apresentado na boate People, no Rio de Janeiro. O marco de tal retorno em disco se dá com a participação do quarteto no álbum “Para Fazer Feliz a Quem se Ama”, que saudava os trinta anos de Bossa Nova. O LP, lançado pela CBS, fora produzido por Roberto Menescal, e apresentava stardarts do movimento na interpretação de artistas como Leny Andrade, Emílio Santiago, Nara Leão, Carlos Lyra, Ney Matogrosso e MPB4, e reapresentava o Quarteto em Cy no esfuziante pot-pourri composto por “De Conversa em Conversa” (Haroldo Barbosa - Lúcio Alves), “Tim Tim por Tim Tim” (Geraldo Jacques -Haroldo Barbosa), “Samba de Uma Nota Só” (Tom Jobim - Newton Mendonça) e “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira). Ainda em 1989, o quarteto participa de “Prelúdios e Canções de Amor”, disco-tributo ao maestro manauara Cláudio Santoro – morto em março daquele ano – com produção do renomado Paulinho Albuquerque, ex-marido de Sonya, para sua PAN Produções Artísticas. Das dez canções que compõem o álbum, quatro receberam a poesia de Vinicius de Moraes em fins da década de 50: “Amor em Lágrimas”, “Acalanto da Rosa”, “Cantiga do Ausente” e “Luar de Meu Bem”, tendo as três primeiras sido interpretadas por especial octeto formado por Quarteto em Cy e Boca Livre, e a quarta recebendo somente a interpretação do quarteto feminino. Sobre os arranjos e o piano do virtuoso Gilson Peranzzetta, os grupos harmonizam suas vozes de forma precisa nas delicadas e sutis harmonias de Santoro. Ainda sob a batuta de Peranzzetta, as demais faixas trazem os prelúdios instrumentais números 1, 2, 3, 5, 6 e 12 com as suntuosas participações de Oscar Castro Neves, violão; Jacques Morelenbaum, violoncelo; Sizão Machado, baixo; Zé Nogueira, sax. Toda a erudição do distinto e ousado álbum “Prelúdios e Canções de Amor”, que mesclou de forma magnânima o erudito e o popular, passou desapercebida no meio discográfico, haja vista que sua pequena tiragem fora distribuída apenas como brinde aos “clientes e amigos da Coca-Cola Indústrias Ltda.”. 24 – Afro-Sambas – Baden Powell (1990) BRASIL, BANCO BMC, S/N Vinte e quatro anos após a gravação de “Afro-Sambas”, Baden Powell aden­trava os estúdios Synth, no Rio de Janeiro, convencido a tornar o emblemático disco ainda melhor. O remake do álbum de 1966, sem o parceiro Vinicius, trazia a rumorejante voz de Baden entoando todas as oito canções que compuseram o disco original e também “Canto de Ossanha” e “Labareda” que, apesar de não terem integrado aquele originário LP, foram parte da frutífera leva de trinta e nove composições que o violonista e o poeta fizeram naquele início da década de 60. Baden apresenta ainda “Abertura”, canção instrumental de sua autoria que principia o disco prenunciando a dinâmica ágil de seu violão que se ouvirá claramente por todas as faixas – o que, por motivos técnicos, não aconteceu no álbum original. Com novos arranjos e direção musical do próprio Baden, o remake de “Afro-Sambas” contou com a participação do Quarteto em Cy compondo o límpido e afinado coro – sem os amadores da edição original – de oito das suas onze faixas: “Canto de Ossanha”, “Labareda”, “Tristeza e Solidão”, “Canto de Pedra Preta”, “Canto de Xangô”, “Bocochê”, “Canto de Yemanjá” e “Tempo de Amor”. O percussionista Alfredo Bessa, presente no álbum de 1966, reaparece nesta nova edição tocando não apenas atabaque, mas também afoxé, ganzá, cuíca, tamborim e berimbau – famigerado instrumento afro que, surpreendentemente, não constou daquele primeiro disco. Bessa é auxiliado no batuque por Flávio Neves, Valdeci e Sutinho, também baterista. Compõem as instrumentações o baixo de Ernesto Gonçalves e a flauta de Paulo Guimarães. A sonoridade tanto mais apurada e mesmo sofisticada desta nova edição de “Afro-Sambas” inicialmente ficaria restrita a três mil cópias distribuídas como brinde do Banco BMC. No ano seguinte, no entanto, Baden licenciava aquelas matrizes para a França. As gravadoras JSL e Iris Music colocaram no mercado Europeu várias edições do álbum durante a década de 90, que somente é lançado no Brasil e em outros países da América Latina em 1996 na série “A Música Ibero-Americana”, da companhia barcelonesa Fonoproductos SL com distribuição da F&G Editores, de origem guatemalteca. Em 2008, nova edição brasileira é lançada, com maior divulgação, pela Biscoito Fino. 25 – Chico em Cy (1991) BRASIL, FAMA / CID, 36/1 O primeiro álbum de carreira lançado após o segundo hiato do Quarteto em Cy inaugurava o registro das vozes do grupo também em formato CD. Lançado pela CID, companhia pela qual o quarteto viria a gravar outros discos temáticos, “Chico em Cy” homenageia Chico Buarque no melhor dos estilos. Com arranjos instrumentais e direção musical de Célia Vaz, as quatro vocalistas – e atacantes do Politheama por um dia, como sugeriu a criativa capa – interpretam canções criteriosamente pinçadas do repertó­rio do músico carioca acompanhadas por conjunto instrumental formado por Célia Vaz e José Murray, violão; Luiz Alves, contrabaixo acústico; Zizinho, Bateria e percussão. Em “Chico em Cy”, destacam-se “Samba do Grande Amor”, com participação especial do próprio homenageado; “Joana Francesa”, composta em 1973 para o filme homônimo de Carlos Diegues, aqui interpretada em impecável duo de Sonya e Cynara; o pot-pourri com “Noite dos Mascarados”, “A Banda”, “Olé, Olá”, “Roda Viva”, “Construção” e “Deus lhe Pague”, que relembra os primeiros sucessos de Chico; o primeiro registro de “Tamandaré”, composi­ção de 1965 que havia sido tomada como ofensiva pelo governo e censura­da* pela referência ao almirante que estampava a pouca valiosa nota de um cruzeiro; “Carolina” e “Sabiá”, que reavivam o sucesso da dupla formada por Cynara e Cybele entre 1967 e 1968; o hino das Diretas “Vai Passar”, com a participação especial de seu coautor Francis Hime; “Anos Dourados” (de Tom e Chico) e “Todo o Sentimento” (de Cristóvão Bastos e Chico), ambas com o violão e o exclusivo solo vocal de Célia Vaz; “Choro Bandido”, com a participação de Edu Lobo, autor de sua melodia; “Retrato em Branco e Preto”, de Tom e Chico, em instrumental de Luís Alves e José Murray; “Valsinha”, parceria do homenageado com Vinicius de Moraes, interpretada em emocionante dueto de Cyva e Cybele que em 1994, apropriadamente, comporia a trilha sonora da novela épica “Éramos Seis”, do SBT. “Chico em Cy” também marca a estreia de Cynara como arranjadora vocal do Quarteto em Cy, assumindo, em doze das vinte e duas faixas do CD**, a tarefa de distribuir e organizar as vozes das quatro vocalistas. Os demais arranjos foram confiados a Bia Paes Leme (“Morro Dois Irmãos” e “Pedro Pedreiro”), Roberto Menescal (“Tem Mais Samba”), Oscar Castro Neves (“Bye Bye Brasil”) e Luiz Cláudio Ramos (“Gente Humilde”). *Obs.: Não fosse o veto da censura, “Tamandaré” teria feito parte do show “O ‘Y’ no Samba”, apresentado pelo Quarteto em Cy junto de Aracy de Almeida e Billy Blanco em 1965, no teatro Santa Rosa. **Obs.: O LP e o cassete de “Chico em Cy” vieram com cinco músicas a menos do que a versão CD. As tais canções lançadas apenas no formato digital – com surpreendentes vinte e duas faixas – foram: “Joana Francesa”, “Carolina”, “Todo o Sentimento”, “Valsinha” e “Retrato em Branco e Preto”. 26 – Bossa em Cy - Bossa Nova (1992) JAPÃO, NANÃ / BMG, BVCR-81 “Bossa em Cy”, produzido pelo brasileiro João Augusto e o oriental Kazuo Yoshida para o selo Nanã, de Lisa Ono – cantora paulistana de ascendência oriental –, resgatou conhecidos standarts da Bossa Nova e os apresentou através de arranjos vocais de Cynara e Célia Vaz e instrumentais enxutos a cargo do fiel Luiz Cláudio Ramos, companheiro de longa data do Quarteto em Cy. O repertório fora calcado basicamente em canções de Tom e Vinícius como “Por Toda a Minha Vida”, “Chega de Saudade” e “Eu Sei que Vou te Amar”, trazendo também seus companheiros em outros hits do movimento como “Desafinado” e “Samba de Uma Nota Só” – ambas parcerias entre Newton Mendonça e Tom Jobim – e o pot-pourri de Baden Powell que abre o disco. A novidade fica por conta das inéditas “Passeio nas Estrelas”, compo­sição de Hélio Celso e Lisa Ono, e “I’ll See You in Rio”, de Amaury Tristão e Ney Murce. Boas supresas aparecem em “Onde Anda Você” (Hermano Silva e Vinicius de Moraes) e “Dindi” (Tom Jobim e Aloysio de Oliveira): a primeira, pela participação especial de Célia Vaz em voz; a segunda, pelo brilhante solo vocal da nipo-brasileira Lisa Ono, que hoje é conhecida pelo título, informal, de embaixadora da Bossa Nova no Japão. O álbum “Bossa em Cy” foi editado no Brasil em 2000 na série “Música Brasileira no Japão” com o título “Bossa Nova”, numa parceria entre Deck Disc e Abril Music – a segunda companhia, já extinta. 27 – Vinicius em Cy (1993) BRASIL, CID, 00100/7 O segundo disco do Quarteto em Cy pela CID presta justa homenagem a Vinicius de Moraes, padrinho e grande incentivador do grupo. O primeiro álbum do quarteto pela companhia – “Chico em Cy” – fora tão bem aceito que “Vinicius em Cy” se valeu da mesma fórmula consagrada para apresentar exitosas composições do poetinha e seus parceiros: de forma finamente afinada sobre belos arranjos vocais – aqui assinados por Cynara, Bia Paes Leme, Oscar Castro Neves, Luiz Eça, Luiz Cláudio Ramos e Célia Vaz, que também é responsável pela instrumentação do disco. Tendo como base o repertório do show homônimo apresentado na boate People em 1988, “Vinicius em Cy” privilegiou a melhor sonoridade acústica, sendo acompanhado do piano e do acordeon de Gilson Peranzzetta; do baixo de Luizão Maia; da percussão de Zizinho e Amauri; da bateria de João Cortez. Para louvar Vinicius, participações especiais abrilhantam ainda mais o que já se pensava suficientemente bom: saudando Tom Jobim, Chico Buarque abre o disco junto do quarteto em “Carta ao Tom 74”, parceria do poeta com Toquinho; em “Eu Sei que Vou te Amar”, o piano do maestro soberano em­bala o romantismo de sua parceria com Vinicius; Toquinho, em “Tarde em Itapuã”, relembra a primeira melodia sua feita sobre a poesia do homena­geado; “Samba do Carioca” traz outro “parceirinho” do poeta: Carlos Lyra; o pot-pourri “A Felicidade” / “Garota de Ipanema” / “Chega de Saudade” registra, com a participação da leal Célia Vaz, três dos sucessos mais populares de Vinicius e Tom. Em antigo registro sonoro, o poeta ressurge em luz e voz recitando seu “Soneto do Amor Total”, aqui sendo embalado pelo vocalize do Quarteto em Cy sobre a melodia de “Samba em Prelúdio”, de Vinicius e Baden Powell. Finalizando o disco, “Samba pra Vinicius”, de Toquinho e Chico Buarque, traz Georgeana e Luciana de Moraes para consentir e participar da homenagem a seu pai. Em “Vinicius em Cy”, destacam-se ainda outras duas composições: “A Carta que Não Foi Mandada” (Vinicius e Toquinho), canção-lamento apresentada pela primeira vez em show de 1973 – que originaria o disco “Saravá Vinicius”, e “Rancho das Namoradas” parceria única entre o poetinha e Ary Barroso que em 1967, nas vozes do Quarteto em Cy, compusera a trilha do filme “Garota de Ipanema”, de Leon Hirszman. A cereja do bolo fica por conta do precioso resgate de “Loura ou Morena”, de Vinicius com seu primeiro parcei­ro Haroldo Tapajós: “Se por acaso um amor me agarrar / Quero uma loura pra namorar (...)”. Datado de 1932, quando o poeta tinha apenas 19 anos de ida­de, o malandro foxtrote havia sido gravado em 78 RPM através do selo Columbia pelos Irmãos Tapajós e regravado somente em 1956, por Joel de Almeida – também em 78 rotações – pelo selo Odeon. A produção de “Vinicius em Cy”, assinada pelo próprio Quarteto em Cy sob coordenação de Esdras Pereira, foi além do óbvio já que a convivência próxima do grupo junto a Vinicius o habilitou a explorar com propriedade as várias facetas do poeta-compositor e seu padrinho artístico. 28 – Tempo e Artista (1994) BRASIL, CID, 152/0 Parafraseando a canção de Chico Buarque que intitula o disco de 1994 do Quarteto em Cy, percebe-se que “o tempo é a grande estrela” de seu repertório. Lançado em 1994, o álbum “Tempo e Artista” comemora os trinta anos do Quarteto em Cy de maneira mais reflexiva do que retrospectiva. “Rosa dos Tempos”, do compositor paulistano simpatizante da Bossa Nova Eduardo Gudin – pela primeira vez gravado pelo grupo – abre o disco afirmando que “o novo é o dom de modernizar”. Ao encontro de Gudin, Gilberto Gil, em participação especial, clama junto das quatro vocalistas ao “Tempo Rei” para transformar as velhas formas do viver. Viver este que em “Mais Simples”, do paulista e igualmente novo nas vozes do grupo José Miguel Wisnik, é exaltado pelo quarteto, sobre a viola de Robertinho do Recife, em suas muitas maneiras: “(...) amar, sentir, doer, gozar / Ser feliz (...)”. “Vatapá”, “Rosa Morena”, “Doralice” e “É Doce Morrer no Mar”, de Dorival Caymmi – a terceira em parceira com Antonio Almeida, a quarta com Jorge Amado –, atestam e remontam às origens nordestinas do grupo. Em “De Volta ao Samba”, o quarteto certifica seu espaço no cenário musical nos versos de Chico Buarque: “aqui é meu lugar, eu vim”. Com o acompanhamento do acordeom de Sivuca, a aparentemente ingênua “Maninha”, também de Chico, traz à lembrança os tempos amargos da ditadura, que se espera “nunca mais voltar”. Com produção artística do próprio Quarteto em Cy, coordenação de Esdras Pereira e direção musical de Célia Vaz, “Tempo e Artista” traz ainda: o peculiar romantismo do conjunto em “Eu Sonhei que tu Estavas Tão Linda”, seresta de Lamartine Babo e Francisco Matoso imortalizada na voz de Francisco Alves; “O Negócio é Amar”, samba de Carlos Lyra e Dolores Duran, e “Asas”, de Sônia Hirsch, suntuosa inédita de tom barroco. Destacam-se ainda “Amor à Natureza”, samba-exaltação de Paulinho da Viola, e a valsa “Imagina”, do recorrente Chico Buarque em parceria com Tom Jobim, com a participação especial do próprio maestro ao piano nesta que fora sua última gravação – Tom morreria em 8 de dezembro daquele ano de 1994. Nos créditos de “Imagina”, o quarteto agradece ainda a presença inspiradora do produtor Aloysio de Oliveira, que faleceria em 20 de fevereiro do ano seguinte. Além de “Imagina”, Cynara assina os arranjos vocais de outras cinco canções de “Tempo e Artista”: “Rosa dos Tempos”, “De Volta ao Samba”, “Maninha”, “Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda” e “Vatapá”, esta última tendo sido inspirada na gravação de 1942 feita pelo grupo “Anjos do Inferno”, sendo salientada pelo grupo como homenagem à Carmem Miranda e aos conjuntos vocais do início do século XX. Nas demais faixas, a organização das vozes do Quarteto em Cy ficou a cargo de Bia Paes Leme (“Rosa Morena”, “Mais Simples” e “Asas”) e Célia Vaz (“Tempo Rei”, “O Negócio é Amar”, “Amor à Natureza” e a faixa-título), também responsável pelos arranjos instrumentais. Pela primeira vez em disco, o Quarteto é acompanhado pelo baixo de João Faria, filho de Cynara e Ruy Faria. Nas instrumentações de “Tempo e Artista”, o Quarteto em Cy conta ainda com: Franklin da Flauta; João Rebouças, teclado; João Cortez, bateria e percussão; Zizinho, percussão; Célia Vaz, guitarra e violão; Robertinho do Recife, guitarra e viola de 12; Paulo Sérgio Santos, clarinete; David Chew, cello; Marcílio Lopes, Bandolim. 29 – Brasil em Cy (1996) BRASIL, CID, 00220/2 Dando prosseguimento à série de discos temáticos pela CID, “Brasil em Cy” homenageia o país de origem do grupo, mais especificamente a cidade, conforme texto impresso em seu encarte: “Dedicamos estas canções a Ibirataia (Bahia), pedaço do Brasil muito grande em amor, ponto de partida do Quarteto em Cy”. O repertório de “Brasil em Cy”, no entanto, não segue um conceito hermético. O disco apresenta composições e ritmos bastante diversificados, pinçados do cancioneiro nacional tendo como critério maior a emoção e a representatividade que têm para o quarteto, que assina sua produção artística sob a coordenação de Esdras Pereira e arranjos vocais de Cynara e Célia Vaz – a última também responsável pela direção musical e pela instrumentação. “Isto Aqui o que É”, do mineiro Ary Barroso, abre o disco em tom nacionalis­ta, exaltando o “Brasil que canta e é feliz”. Minas é também representada por João Bosco – em parceria com o carioca Aldir Blanc – em “O Mestre-Sala dos Mares”, canção que narra o histórico conflito conhecido como Revolta da Chibata. A Bahia é destacada pelos pot-pourris de Dorival Caymmi “Saudade da Bahia” / “São Salvador”, com a participação especial da virtuosa conterrânea Gal Costa, e o pot-pourri “Alguém Me Avisou” / “Não Chora Meu Bem”, sambas de roda de autoria da carioca Dona Ivone Lara. O Rio de Janeiro, cidade onde o Quarteto em Cy efetivamente foi formado, aparece represen­tado pelo maestro Tom Jobim por seu “Samba do Avião”, com a participação especial do saxofonista Léo Gandelman – também carioca. Representantes da cidade maravilhosa aparecem ainda em “Alvorada”, (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho), “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” (Paulinho da Viola), “Último Desejo“ (Noel Rosa) – com a participação especial da versátil Zélia Duncan – e “A Noite do Meu Bem” (Dolores Duran), esta última tendo contado com a participação especial da diva baiana Maria Bethânia. Junto do grupo-irmão MPB4, “Mais um Adeus” traz Vinicius de Moraes, outro carioca, e seu parceiro paulistano Toquinho. São Paulo, por sinal, é saudada em “Sampa”, do baiano Caetano Veloso, e bem representa­da por Adoniran Barbosa e Alocin em “Samba do Arnesto”. De outro nordes­tino, o alagoano Djavan, o quarteto traz “Serrado”. O sul é salientado pelo gaúcho Lupicínio Rodrigues com sua “Nervos de Aço”, que conta com a participação especial da carioca Miúcha. Por não ter se prendido a um conceito ou mesmo a uma linha narrativa, “Brasil em Cy” soa livre, e talvez por isso resulte em audição fluida, agradá­vel. Destaque para os suntuosos arranjos de cordas de Célia Vaz no pot­pourri de Caymmi, em “Sampa”, “Samba do Avião” e “A Noite do Meu Bem”. 30 – Bate-Boca - Quarteto em Cy e MPB4 (1997) BRASIL, POLYGRAM / MERCURY, 536 178-2 Dezenove anos após o primeiro LP juntos – “Cobra de Vidro”, 1978 –, Quarte­to em Cy e MPB4 voltam a se encontrar na mesma gravadora para “Bate-Boca”, disco produzido por Guto Graça Mello e direção de Max Pierre que destacou composições de Tom Jobim e Chico Buarque, com ênfase nas raras parcerias de ambos. O octeto apresenta dez das treze composições feitas em conjunto por Tom e Chico, desde as primeiras – “Pois é”, “Retrato em Branco e Preto”, “Sabiá” e “Olha Maria” – até as últimas, como “Meninos, Eu Vi”, “Imagina” e “A Violeira”, resgatadas da trilha sonora do filme “Para Viver um Grande Amor” de Miguel Faria Jr., lançado em 1983. Destaque para “Piano na Mangueira”, derradeira parceria de Jobim e Buarque feita em 1993, pouco antes da morte do maestro. Do repertório individual de Chico o octeto traz, oportunamente, duas composi­ções para duo em casal: a recente “Biscate”, lançada por ele próprio em dueto com Gal Costa em 1993, e a antiga “Noite dos Mascarados”, gravada original­mente por Chico e Jane Moraes em 1967. Somente da lavra de Tom Jobim, “Falando de Amor” foi o carro-chefe do disco, já que havia sido tema da novela “Por Amor” da TV Globo, exibida naquele ano. Também de Tom, a canção-título “Bate-Boca” encerra o disco da mesma forma suntuosa que Quarteto em Cy e MPB4 haviam finalizado o seu LP de 1978: a capela, em arranjo suntuoso de Magro. A canção “Bate-Boca” teria figurado como a décima quarta parceria entre Tom Jobim e Chico Buarque não fosse a morte do maestro. Os arranjos vocais do disco ficaram a cargo de Bia Paes Leme, Cynara, Magro, Miltinho e Maurício Maestro, do conjunto Boca Livre. As instrumentações e regência foram assinadas por Dori Caymmi. Ainda em 1997, o CD “Bate-Boca” atingiu a marca de cem mil cópias vendidas, o que resultou num disco de ouro. O Quarteto em Cy receberia o prêmio Sharp – atual TIM – de melhor grupo vocal, em referência à sua atuação naquele ano. O octeto faria ainda uma turnê com o repertório do disco por várias cidades do Brasil. 31 – Somos Todos Iguais - Quarteto em Cy e MPB4 (1998) BRASIL, UNIVERSAL / MERCURY, 538 704-2 A bem sucedida volta do octeto em 1997 levou a Polygram, que agora se transformava em Universal Music, a lançar novo disco com Quarteto em Cy e MPB4. “Somos Todos Iguais”, sobre a obra de Ivan Lins e Djavan, mostrou a versatilidade dos grupos ao entoar repertório mais voltado ao pop. Das treze faixas do disco produzido por Guto Graça Mello, apenas cinco contam com a participação dos oito vocalistas; nas demais, trios, quartetos e quintetos são formados com os integrantes de ambos os grupos – o que remete ao conceito de “Cobra de Vidro”, primeiro disco da parceria entre Quarteto em Cy e MPB4. Com arranjos vocais de Cynara, Magro, Ary Sperling, Célia Vaz, Maurício Maestro e Miltinho, “Somos Todos Iguais” traz repertório diversificado de Ivan e Djavan, explorando tanto hits quanto composições obscuras. O destaque do disco, no entanto, fica por conta da inovação do octeto ao explorar novas possibilidades sonoras com pitadas de soul e rhythm and blues, sobretudo nas composições de Djavan como “Lilás”, “Nem Um Dia”, “Oceano” e “Pássaro”, que conta com a participação especial do homenageado Ivan Lins. Djavan também marca sua presença em voz na vívida “Novo Tempo”, de Ivan e seu fiel parceiro Vitor Martins. Dentre as demais composições de Ivan e Vitor, destacam-se boleros como “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, que inspirou o título do disco, “Dinorah, Dinorah”, “Velas Içadas” e ainda os sambas “Desesperar Jamais” e “Antes que Seja Tarde” – esta última registrada somente pelo Quarteto em Cy em 1980, agora presente nas vozes do quinteto formado por Cyva, Cynara, Cybele, Magro e Miltinho. 32 - Gil & Caetano em Cy (1999) BRASIL, CID, 00457-2 Com produção do próprio quarteto, o terceiro disco com estrutura de songbook que o grupo grava na CID trouxe agora composições dos conterrâneos e velhos companheiros de música Gilberto Gil e Caetano Veloso. Em “Gil & Caetano em Cy”, ambos os compositores, onipresentes na obra do Quarteto em Cy, têm suas obras mais recentes, das décadas de 80 e 90, destacadas, como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Desde que o Samba é Samba”, “Boas Vindas”, “Menino do Rio” – de Caetano Veloso; “Parabolicamará”, “Estrela” e “Seu Olhar” – de Gilberto Gil. “Procissão”, “Refazenda” e “Aquele Abraço”, de Gil, assim como o pot-pourri de frevos de Caetano são as únicas composições do disco que remontam as décadas de 60 e 70. Um ar tropicalista vem de “Cinema Novo”, parceria entre os dois registrada em 1993 no álbum “Tropicália 2”. O grande mérito do quarteto ao apresentar canções consagradas de Gil e Caetano é o de ouvir as criativas combinações das quatro vozes, em arranjos de Cynara e Célia Vaz. Destaque para a paisagem sonora religiosa de “Procissão” e as participações especiais de Chico Faria, filho de Cynara, em “Desde que o Samba é Samba”; Andréa Chackur, filha da ex-integrante Cylene, na faixa “Menino do Rio”; Marcílio Freire, marido de Cybele, assoviando em “Trilhos Urbanos”; Orlann Divo, representativo sambista da década de 60 intervindo em “Aquele Abraço” com sua impagável imitação de Chacrinha. Em 1999, ainda em referência ao disco “Gil & Caetano em Cy”, o quarteto apresenta no Rio de Janeiro o show “Boas Vindas”, título de umas das canções do disco. 33 – Vinicius - A Arte do Encontro (2000) BRASIL, SOM LIVRE / UNIVERSAL, 7314549049-2 Falecido em 1980, o poeta Vinicius de Moraes foi padrinho e grande incentiva­dor do Quarteto em Cy. Tendo sido a vida para o poetinha a arte do encontro, vinte anos após sua morte, oportuna e justamente o octeto Cy-MPB4 se reencontra para a gravação de “Vinicius - A Arte do Encontro”, projeto idealizado por Luciana de Moraes, filha do poeta, lançado pela Universal Music em parceria com a Som Livre. Com direção de Sérgio de Carvalho e Max Pierre, Quarteto em Cy e MPB4 lançam mão da famigerada fórmula “Cobra de Vidro” neste quinto trabalho conjunto. Os integrantes de ambos os grupos formam novos trios e quartetos para dar vida às mais expressivas composições de Vinicius e seus fiéis parcei­ros Tom Jobim, Baden Powell, Toquinho e Carlos Lyra. Parceiros raros e menos frequentes de Vinicius também são destacados, como em “Arrastão” (com Edu Lobo), “Anoiteceu” (com Francis Hime) e “Odeon”, choro de Ernesto Nazareth e Ubaldo Sciangula composto em 1910 e que receberia letra de Vinicius em 1968 a pedido de Nara Leão – que a registraria naquele ano. As 26 canções do disco ora são apresentadas individualmente, ora criterio­samente encadeadas em pot-pourris de duas, três e quatro, o que por vezes remete à consagrada série Antologia, grande êxito do selo Philips na década de 70. Há ainda uma suíte com cinco canções, intitulada “Esperança”, composta por canções que de alguma forma a evocam: “Tempo Feliz” (Baden e Vinicius), “A Felicidade” (Tom e Vinicius), “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” (Lyra e Vinicius) e “Frevo do Orfeu” (Tom e Vinicius). Em “Vinicius - A Arte do Encontro”, A grande surpresa fica a cargo das milagrosas técnicas de gravação e mixagem que permitiram que o próprio poeta interagisse com declamação e canto em quatro das catorze faixas do disco – tais recursos haviam sido utilizados em 1993 numa das faixas de “Vinicius em Cy”, do Quarteto em Cy. O poeta revive nos pot-pourris “Minha Namorada” / “Primavera” (Lyra e Vinicius), “Samba em Prelúdio” / “Apelo” (Baden e Vinicius), “Se Todos Fossem Iguais a Você” / “Eu Sei que Vou te Amar” (Tom e Vinicius) e também na faixa “Samba da Bênção” (Baden e Vinicius). Destaque-se ainda os arranjos vocais de Bia Paes Leme, Cynara, Célia Vaz, Magro e Miltinho – os três últimos também assinam as criativas instrumentações –, responsáveis por trazer ar de renovação à obra do saudoso Vinicius. 34 – Falando de Amor Pra Vinicius - Quarteto em Cy & Luiz C. Ramos (2001) BRASIL, CID, 00544/9 Em fins de 2000, Cynara remexia seus arquivos tentando dar ordem às antigas fitas. Eis que a cantora encontra um cassete com o registro do show “Falando de Amor pra Vinicius”, apresentado pelo Quarteto em Cy em 18 de dezembro de 1981 em companhia do violonista e até então arranjador e diretor musical do grupo Luiz Cláudio Ramos. A apresentação, realizada no Teatro Paiol de Curitiba, além de comemorar o décimo ano de atividades da casa, também homenageava Vinicius de Moraes – morto em 9 de julho do ano anterior. Acompanhadas pelo versátil violão de Luiz Cláudio, o Quarteto interpretou canções de variados momentos de sua carreira, com destaque para aquelas do repertório de Vinicius e seus parceiros Tom Jobim, Pixinguinha, Francis Hime, Toquinho, Baden Powell e Carlos Lyra. Em ponto alto do show, Cybele apresenta, num comovente solo, a dramática “Serenata do Adeus”, uma das raras composições com letra e música do poeta. O grupo entoa ainda quatro números do LP “Caminhos Cruzados” – “Milagre”, “Desenredo”, “Preconceito” e “Ah, Quem me Dera” –, gravado naquele ano, e ainda “Céu Cor de Rosa”, que integrara a trilha sonora da novela “Ciranda de Pedra”, da TV Globo. Destaque-se ainda a faixa “Fazenda no Ar”, instrumental de Luiz Cláudio Ramos que exibe todo o seu talento ao violão. Com o aval das demais integrantes e de Luiz Cláudio, Cynara propôs à gravadora CID que lançasse este tão precioso registro, o único do Quarteto em Cy em voz e violão. Esta se interessou de imediato, haja vista o imenso valor histórico da gravação. O lançamento do disco veio ainda a louvar o poetinha vinte anos após sua morte e atestar a perenidade de sua obra nas vozes do grupo a quem abençoou. 35 – Hora da Criança (2001) BRASIL, CID, 561-6 Em 2001, o Quarteto em Cy relembra os tempos de infância com o disco “Hora da Criança”, que também homenageia o professor Adroaldo Ribeiro Costa que fora tão importante na iniciação artística das quatro irmãs que compuseram a formação inicial do grupo. De Adroaldo, o Quarteto interpreta “Dodó”; “A História do Rei Barbado”, com a participação de Gilberto Gil; “Cançoneta de Papai Noel”, com a participação de Chico Faria; “Os Dedi­nhos” e “A Cigarra e a Formiga”, parcerias de Adroaldo com Agenor Gomes. De Célia Vaz e Tite Lemos, a inédita “Um Sonho” conta com a participação de Angélica, que ainda se dedicava ao público infantil. De Sullivan e Massadas, o Quarteto resgata “Uni-Duni-Tê”, do repertório do Trem da Alegria. Há espaço para as canções da safra infantil de Toquinho e Vinicius de Moraes – que originara os discos “Casa de Brinquedos” (1983) e os dois volumes de “Arca de Noé” (1980 e 1981) –, com a participação de MPB4 no pot-pourri “A Casa” / “O Pato”. De Chico Buarque, em versão sobre composição de Bacalov e Bardotti, “Bicharia” e “Minha Canção” evocam o consagrado álbum “Os Saltimbancos” (1977). “Hora da Criança” visita ainda o erudito, através de um pot-pourri de canções tradicionais adaptadas por Villa Lobos. 36 – Quarteto em Cy – Gravado Ao Vivo no Rio de Janeiro – DVD e CD (2002) BRASIL, CID, 593-7 (CD) / 10001-4 (DVD) Este primeiro registro em DVD e CD do Quarteto em Cy teve seu reper­tório calcado no mote que intitula o show que lhe deu origem: “Verdades e Mentiras”. Canções como “Verdade”, de Nelson Rufino e Carlinhos Santana (“Descobri sem querer a vida / Verdade...), “Tudo o Que Você Diz”, de Noel Rosa (“É mentira, é usar de falsidade...”) e “Samba do Grande Amor”, de Chico Buarque (“E dou risada do grande amor / Mentira...”) contextualizam o espetáculo dirigido e roteirizado por Ruy Faria, ex-integrante do MPB-4. “Quarteto em Cy – Show Gravado ao Vivo no Rio de Janeiro” faz ainda um retrospecto dos 38 anos de carreira do grupo, trazendo desde clássicos da Bossa Nova até sucessos de seus últimos discos pela CID – “Hora da Criança” e “Gil e Caetano em Cy” –, com arranjos adaptados ao quarteto instrumental composto por João Faria (contrabaixo), Kiko Furtado (tecla­dos), João Cortez (bateria e percussão) e ainda Célia Vaz (violão), que tam­bém assina a direção musical do espetáculo que fora apresentado em outubro de 2001 no Garden Hall. 37 – Quarenta Anos (2004) BRASIL, MERCURY/ UNIVERSAL, 602498203996 Transcendendo o nível de mera coletânea, “Quarteto em Cy - Quarenta Anos” resgata em CD duplo raros fonogramas dos arquivos da Universal Music a fim de saudar o grupo pelas suas quatro décadas de dedicação à música brasileira completadas no ano de 2004. O volume 1, intitulado “Clássicas”, reúne sucessos extraídos dos primeiros LPs do grupo pela Forma e Elenco, além de canções de sua primeira fase na Philips / Polygram, com destaque para “Abre-Alas” (Ivan Lins e Vitor Martins), “Menino Deus” (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) e “Retalhos de Cetim” (Benito di Paula), lançadas somente em compactos na década de 70. O volume 2, intitulado “Raras & Inéditas”, traz canções que por longos anos permaneceram latentes nos arquivos da Universal. “Não Tenha Medo” (Caetano Veloso) e “Credo”, (Milton Nascimento e Fernando Brant) teriam integrado o LP “Quarteto em Cy em 1000 Kilohertz” não fosse o veto da censura. “Boa Noite, Amor” (José Maria de Abreu e Francisco Matoso) e “Cantor de Rádio” (Custódio Mesquita e Paulo Roberto) ficaram de fora do mesmo disco por falta de espaço. “Rainha do Rádio” (Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), fora lançada em 1975* no LP misto “Máximo de Sucesso Nº 12”, integrado por canções interpretadas por artistas do cast da Phonogram. Destaque ainda para “Quem For Mulher que Me Siga”, marcha** carnavalesca de Vinicius de Moraes composta para o bloco baiano “Os Internacionais”, além de “Horas” (Dorival Caymmi) e “Céu Cor de Rosa” (Versão de Haroldo Barbosa), que integraram, respectivamente, as trilhas das novelas “Gabriela” (1975) e “Ciranda de Pedra” (1981) – ambas da TV Globo. *Obs.: Embora o encarte de “Quarenta Anos” informe que tal gravação tenha integrado o disco “Máximo de Sucesso Nº 1” em 1978, na realidade “Rainha do Rádio” foi originalmente lançada três anos antes, em “Máximo de Sucesso Nº 12” (Fontana, 6470 524). Em 1974, o Quarteto em Cy havia registrado “Um Simples Cidadão” (Paulinho Tapajós) no 11º volume daquela série da Phonogram (Fontana, 6470 522) que trazia sucessos e sobras de estúdio de seus artistas. ** Obs.: “Quem For Mulher que Me Siga” foi lançada em 1974 no LP “Carnaval 76 - Convocação Geral - 1”, pela Som Livre (403.6079). Notas: “Quarenta Anos” trouxe o conceito do design das capas da Elenco, desenvolvido por César Gomes Vilella, em projeto gráfico luxuoso de Gê Alves Pinto e Michel Canno. Em 2005 o Quarteto em Cy foi indicado ao Prêmio Tim de Música Brasileira juntamente com os grupos A Quatro Vozes e Garrafieira, sendo este último o agraciado pela premiação. O Quarteto apresentou no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, um espetáculo em comemoração aos seus quarenta anos. 38 - Samba em Cy (2006) BRASIL, FINA FLOR, FF 010 Com produção de Ruy Quaresma, aclamado produtor de samba, em 2006 o Quarteto em Cy voltava à cena com o álbum “Samba em Cy” após quatro anos afastado dos estúdios. Lançado pelo selo Fina Flor, de propriedade de Quaresma, em “Samba em Cy” o quarteto honrou o mais brasileiro dos estilos musicais e várias de suas vertentes – partido-alto, samba-enredo, samba maxixado, samba de terreiro, dentre outros – trazendo regravações de composições consagradas de autores como Paulo da Portela, Cartola, Paulinho da Viola e Chico Buarque, além das inéditas “Investida Fatal”, (Dona Ivone Lara, André Lara e Bruno Castro), “Questão de Tempo” (Sombrinha), “O Canto dos Orixas” (Almir Guineto), “A Saudade é que me Consola” (Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro), “Pra Sentir Amor” (Noca da Portela) e “O Samba é o Som” (Rubens Nogueira e Paulo César Pinheiro). Também inédita é a canção que intitula o disco. Composta por Ruy Quares­ma e Ney Lopes em estilo samba-enredo, “Samba em Cy”, a canção, home­nageia o Quarteto em Cy ao narrar sua história “de muitas lutas e vitórias” que tivera início “Em Ibirataia / No Interior da Bahia” e já se estende em mais de quarenta anos de sucesso. Com arranjos instrumentais de Ruy Quaresma e Humberto Araújo o quarteto abre suas vozes, arregimentadas por Cynara, sobre instrumentação básica formada por violões (Ruy Quaresma e Carlinhos Sete Cordas), sopros (Andrea Dias, flautas; Humberto Araújo, saxofone), cavaquinho (Alceu Maia e Nilze Carvalho), bateria (Jurim Moreira), baixo (João Faria), piano (Fernando Merlino) e muita percussão (Ovídio Brito, Gordinho, Marcelinho Moreira e Pretinho da Serrinha), como pede o estilo. Vibrantes intervenções de naipes de sopros abrilhantam ainda mais aquilo que já se supunha perfeito. O quarteto teve ainda o auxílio luxuoso do grupo Sururu na Roda no coro da faixa-título e a participação especial de Chico Faria, filho de Cynara e Ruy Faria, em “Perdão Meu Bem”, samba maxixado de Cartola imortalizado na década de 30 pela dupla Mario Reis e Francisco Alves. Apesar de o Quarteto em Cy não ser um grupo essencialmente do samba, em reconhecimento a sua ousadia e inovação por explorar de forma magnânima tão plural repertório deste estilo, o grupo recebe, em 2007, indicação para o prêmio TIM de música brasileira na categoria “Melhor Grupo de Samba”, à qual também pertenceram o estreante grupo Galocantô e o tradicional Fundo de Quintal, que foi escolhido para ser agraciado pela premiação. 39 – Vinicius e Caymmi em Cy - DVD (2008) BRASIL, NEO, 008 Quatro décadas passadas do show que consagrou e definiu os rumos do Quarteto em Cy, a produtora Filmação, em associação com a distribuidora Neo, lança em DVD – com impecáveis luz e fotografia, diga-se – o conteúdo do espetáculo em que Cyva, Cynara, Cybele e Sonya homenageiam Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi. O projeto “Quarteto em Cy no Show Vinicius & Caymmi em Cy”, produzido por Miguel Bacellar e dirigido por João Elias Júnior, faz menção ao famoso espetáculo apresentado em 1964 na boate Zum-Zum com o Quarteto, os dois compositores e o conjunto de Oscar Castro Neves, contudo, não se trata de um remake, “é a celebração dos 40 anos de um dos grandes momen­tos da carreira do Quarteto” – como destacou Cynara. Músicas como “Berimbau”, “Saudade da Bahia”, “História dos Pescadores” e “Samba da Bênção” não poderiam faltar, porém, outras tantas da carreira dos compositores e seus parceiros são apresentadas. As integrantes do quarteto também narram divertidas histórias ocorridas ao longo de sua carreira. Uma delas, contada por Cynara, relembra um dos primeiros ensaios do show no Zum-Zum, quando Vinicius, ao avistar o Quarteto, comentou: “Veja lá, Caymmi. Lá vêm elas quatro. Duas pra mim, duas pra você”. Na seção de extras, o DVD apresenta ainda depoimentos de artistas relaciona­dos à trajetória do grupo, como Carlos Lyra, Nana Caymmi e Chico Buarque, além das participações especiais de Ruy Faria no pot-pourri “Sabe Você” / “Samba do Carioca” (Vinicius e Carlos Lyra), e de Chico Faria, filho de Ruy e Cynara, em “Samba da Volta” (Toquinho e Vinicius). O MPB4 também registra sua participação em bate-papo descontraído embalado por “Falando de Amor” (Tom Jobim), marco nas vozes do octeto na década de 90. Discografia Extra 1 - Sônia Ferreira (1965) BRASIL, RCA VICTOR, LC-6189 Faixas: Manhã de Liberdade (Nelson Lins de Barros e Marco Antonio Menezes) Ogum Megê (Nelson Lins de Barros e Marco Antonio Menezes) Ficha Técnica: Arranjos do maestro Orlando Morais 2 - Cynara e Cybele (1967) BRASIL, CBS, 37548 Faixas: Pelas Ruas do Recife (Marcos Valle - Paulo Sérgio Valle, Novelli) Carolina (Chico Buarque) Rasguei a Minha Fantasia (Lamartine Babo) Lua Cheia (Chico Buarque) Fala, Meu Amor (Tom Jobim - Vinicius de Moraes) Anjo da Noite (Dorival Caymmi - Danilo Caymmi) Januária (Chico Buarque) João Ninguém (Noel Rosa) Lua Nova (Maurício Tapajós - Joaquim Cardoso) De Onde Vens (Dorival Caymmi - Nelson Motta) Rancho pra Quem vem Fora (Tamir Drumond - Katia Drumond) Até Segunda-Feira (Chico Buarque) Ficha Técnica: Produção musical: Hélcio Milito Arranjos: Dori Caymmi e Luís Eça Compactos lançados à época: CBS (33528) - 1967 Carolina (Chico Buarque) Oferenda (Luiz Eça e Lenita Eça) CBS (33545) - 1968 Januária (Chico Buarque) Quase um Adeus (Luiz Eça) CBS (33583) - 1968 Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque) Andança (Danilo Caymmi e Edmundo Souto) Com Danilo Caymmi e Vânia Ferreira. CBS (33586) - 1968 Sentinela (Milton Nascimento e Fernando Brant) Luciana (Tom Jobim e Vinicius de Moraes) Participações especiais: CBS (37569) – 1968 - “O Melhor de ‘O Brasil Canta no Rio’” Cynara e Cybele interpretam quatro composições: Bloco do Eu Sozinho (Marcos Valle e Ruy Guerra) / Sem Assunto (Sidney Miller) / Peccata Mundi (Pedro Juraci de Almeida e Marco Antônio Guimarães) / O Jornal (Chico Anísio e Arnaud Rodrigues) CBS (37526) - 1968 - “As 12 Mais do III Festival de Música Popular Brasileira” Cynara e Cybele interpretam quatro composições: Ponteio (Edu Lobo e Capinam) / Domingo no Parque (Gilberto Gil) / A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller) / O Cantador (Dori Caymmi e Nelson Motta) 3 - Cynara - Pronta Pra Consumo (1969) BRASIL, ELENCO, ME-56 Faixas: Pronta pra Consumo (Guarabyra - Sidney Miller) Oração do Astronauta (Cynara - Ruy - Sidney Miller) Pois é pra Que (Sidney Miller) Doce Veneno (Valzinho) Aquele Abraço (Nelson Ângelo) Deus Vos Salve Esta Casa Santa (Caetano Veloso - Torquato Neto) Às Sete em Ponto (Renato Correia - Guarabyra) Nosso Romance (J. Cascata - Leonel Azevedo) Minha Noite (Magro - Milton - Aquiles) Casaco Marrom (Renato Correia - Gut - Danilo Caymmi) Sem Direção (Cynara - Ruy) Umas e Outras (Chico Buarque) Ficha Técnica: Produção: Renato Correa Direcão: Ruy Faria 4 – Cybele (1974) BRASIL, PADRÃO / EQUIPE, 775 Faixas: Cala a Boca (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira) José Lewgoy (Sueli Costa e Vitor Martins) A Dor a Mais (Francis Hime e Vinicius de Moraes) Primavera (Mutinho e Vinicius de Moraes) Ficha Técnica: Participação do Terra Trio: José Maria Rocha: piano Fernando Costa: contra­baixo Ricardo Costa: bateria. 5 – Grupo Chovendo na Roseira Interpreta Tom Jobim (1988) BRASIL, SOM LIVRE, 402.0016 Faixas: Ela é Carioca (A. C. Jobim - Vinicius de Moraes) Samba do Avião (A. C. Jobim) Anos Dourados (A. C. Jobim) Chovendo na Roseira (A. C. Jobim) Eu te Amo (A. C. Jobim - Chico Buarque) Correnteza (A. C. Jobim - Luiz Bonfá) Estrada do Sol (A. C. Jobim) Lígia (A. C. Jobim) Tema de Gabriela (A. C. Jobim) Dindi (A. C. Jobim - Aloysio de Oliveira) Samba Torto (A. C. Jobim - Newton Mendonça) Pra Mode Chatear (A. C. Jobim) Aula de Matemática (A. C. Jobim - Marino Pinto) Janelas Abertas (A. C. Jobim - Vinicius de Moraes) Ficha Técnica: Produção: Raymundo Bittencourt Projeto Gráfico: Felipe Tabordo Arte-Final: Ana Paula Guinle Vocais: Cynara, Bia Paes Leme, Soraya Nunes e Luciana Medeiros Violão: José Murray Flauta e harmônica: Áurea Regina 6 – Sonya - Coisas que Lembram Você (2006) BRASIL, CPC / UMES, CPC 545 Faixas: Oba-La-La (João Gilberto - Versão: Aloysio de Oliveira) Só Tinha de Ser com Você (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Dindi (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Coisas que Lembram Você (Stracey, Marvel e Link - Versão: Aloysio de Oliveira) Demais (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Samba Torto (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Meu Mundo é Você (Aloysio de Oliveira) Inútil Paisagem (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Chatanooga Choo Choo (Harry Warren e Mack Gordon - Versão: Aloysio de Oliveira) De Você eu Gosto (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Obrigada Meu bem (Sylvia Telles / Aloysio de Oliveira) The Old Piano Roll Blues (Cy Coben - Versão: Aloysio de Oliveira) Vou Por Aí (Baden Powell / Aloysio de Oliveira) Eu Preciso de Você (Tom Jobim / Aloysio de Oliveira) Ficha Técnica: Produção Fonográfica: CPC-UMES Direção Artística e de Produção: Marcus Vinicius de Andrade Co-Produtora Associada: Sonya Produtor Executivo: João Cortez Técnico de Gravação e Mixagem: Sérgio Lima Netto Foto de Capa: Antonio Guerreiro Desenvolvimento Gráfico: Janaína Torres (sobre projeto original de Rodrigo Octávio) 2006 Gravado no Estúdio Araras (Petrópolis, RJ) Agradecimentos: Valéria Telles e Leonardo Magrani Arranjos: Gilson Peranzzetta, Célia Vaz, Roberto Menescal, Chiquinho Neto Baixo Acústico: Luiz Alves, Paulo Russo, Gilson Peranzzetta Baixo Elétrico: Adriano Giffoni Baixolão: Jimmy Santa Cruz Sax Soprano e Alto: Mauro Senise Bateria e Percussão: João Cortez Piano acústico: Gilson Peranzzetta, Chiquinho Neto Teclado: Gilson Peranzzetta Flauta G e C: Ricardo Pontes Créditos fotográficos Todas as fotos desta edição fazem parte do acervo do Quarteto em Cy. A Editora agradece quaisquer informações sobre os detentores dos direitos das imagens não creditadas neste livro, bem como de pessoas não identificadas nas fotografias, apesar dos esforços envidados para obtê-las. Coleção Aplauso Série Música Coordenador geral Rubens Ewald Filho Projeto gráfico Via Impressa Design Gráfico Direção de arte Clayton Policarpo Paulo Otavio Editoração Douglas Germano Emerson Brito Tratamento de imagens José Carlos da Silva Revisão Dante Pascoal Corradini CTP, impressão e acabamento Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012 Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Castro, Inahiá As meninas do Cy : vida e música do Quarteto em Cy/ Inahiá Castro – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. 252p. : il. – (Coleção aplauso. Série música / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN: 978-85-401-0028-2 1. Música popular – Brasil – História e crítica 2. Bossa nova – Brasil 3. Cantoras – Brasil 4. Quarteto vocal I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 780. 92 Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil : Cantoras : Biografia 780.92 Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia do organizador e dos editores Direitos reservados e protegidos (lei no 9.610, de 19.02.1998) Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei no 10.994, de 14.12.2004) Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009 Impresso no Brasil 2012 Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo Rua da Mooca, 1.921 Mooca 03103-902 Sao Paulo SP Brasil sac 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br livros@imprensaoficial.com.br www.imprensaoficial.com.br GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Sidney Beraldo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Marcos Antonio Monteiro Formato 21 x 26cm Tipologia Chalet Comprime e Univers Papel capa triplex 250g/m2 Papel miolo offset 120g/m2 Número de páginas 252