Carlos Alberto Soffredini Serragem nas Veias Carlos Alberto Soffredini Serragem nas Veias Renata Soffredini Colaboração: Eliana Pace São Paulo, 2010 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Alberto Goldman Governo do Estado de São Paulo Governador Alberto Goldman Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Ofi cial, visa resgatar a memória da cultura nacio nal, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cine ma, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato en tre biógrafos e bio gra fados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor . Um aspecto importante da Coleção é que os resul ta dos obtidos ultrapassam simples registros biográ ficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Bió grafo e biogra fado se colocaram em reflexões que se estende ram sobre a formação intelectual e ideo ló gica do artista, contex tua li zada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atua do tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, inte ressarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atua lidade de alguns deles. Também foram exami nados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sorti légios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transi tam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de to do o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Quando dizemos que um artista tem serragem nas veias, isso significa que ele nasceu artista, nasceu talhado para essa função. Essa expressão, é claro, tem origem no circo. Para esses artistas que têm os avós, os pais, os irmãos, os tios, todos nascidos no circo, ter serragem nas veias é mais do que uma expressão. É ter no seu ofício quase uma sina, é não ter sangue e sim, tradição. Embora meu pai não tenha nascido no circo, colocou o artista ambulante e sua arte popular no lugar que lhes era devido, um lugar de honra no centro da tradição do teatro brasileiro. Na dramaturgia, eternizou o circo-teatro na peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu. E também na direção de cada ator que, com ele, teve o privilégio de aprender a arte de interpretar segundo o que ele chamava de a nossa linguagem, que é uma estética colhida desse tipo de teatro, o circo-teatro ou teatro ambulante. Meu pai não acreditava em talento. Acreditava em vocação. Achava que se alguém quisesse trabalhar na área, o que importava era a sua capacidade de suportar os reveses da profissão, de superar limites e saber que o artista nunca está pronto – se ele achar que não precisa aprender mais nada, está morto. Toda esta humildade, para ele, tinha limite, principalmente quando o pano subia e as luzes acendiam-se. Ele dizia: sofreu tanto pra chegar até aqui, agora sobe lá e brilha! O ator para ele é a figura principal do teatro. Tudo o que vem antes é preparação para o momento mágico, quando o ator, diante da sua plateia, pode comunicar, através do seu persona-gem, ideias, emoção, prazer. Para tanto, o ator tem que estar com os seus instrumentos afinados: seu corpo, sua voz, seu intelecto, sua alma. Soffredini se considerava um bom autor na medida em que fazia uma boa partitura para o ator. Estas partituras, as obras dramatúrgicas, ficarão para sempre no repertório brasileiro, quando impressas em uma edição ou remontadas. A representação, a função, o espetáculo, o que acontece, enfim, no palco... aquele momento único é efêmero. Qualquer tentativa de registro não tem a mesma qualidade da que fica nas impressões gravadas na memória de quem viu e de quem atuou. É por essa razão que, ao ser convidada por Rubens Ewald Filho para escrever um livro sobre o meu pai para a Imprensa Oficial do Estado, resolvi dar voz à memória de alguns artistas que participaram dos diversos grupos liderados por ele. Foram quarenta entrevistas, algumas escritas e mais de cinquenta horas de gravação, realizadas, na maioria das vezes, na casa do entrevistado, onde fui recebida com muito carinho. Agradeço a todos pela inestimável contribuição que deram a este livro. Fui integrante do Núcleo Estep e, nessa época, me esforçava muito para chamar meu pai de Soffredini ou Soffra. Não queria me diferenciar dos outros companheiros e procurava evitar, desta forma, que ele sofresse acusação de nepotismo. Minhas tentativas foram em vão. Relaxei e só chamo meu pai de Soffredini quando me refiro ao Dramaturgo. O Soffredini, o pai, o mestre e o meu maior fã me fazem muita falta. Sinto muita saudade das coisas que eu não vivi com ele! Dedico este livro a todos os Soffredini que ficaram com a missão de preservar e propagar seu trabalho. E que, de alguma forma, herdaram dele a Serragem nas Veias. Renata Soffredini Capítulo I Rua do Sol Carlos Alberto Soffredini nasceu em Santos, em 6 de outubro de 1939, filho de Gecy Lopes Soffredini e Bruno Soffredini. A rua em que veio ao mundo, a Bambual, no bairro do Embaré, agora aparece nos guias da cidade como Rua São José, mas ainda está presente na memória de Wilma Vicente, sua prima por parte de pai, que foi viver com a mãe, Ida Rossi, o pai e o irmão pequeno na casa dos Soffredini e da avó, Oda Rossi. – Morávamos em Ribeirão Preto quando tio Bruno chamou meu pai para trabalhar com os táxis. Era um casarão de dois andares, com uma grande varanda na frente e na lateral da casa, uma escadaria que dava do quintal para o portão da rua, mais uma escadaria em L na parte dos fundos, que cobria uma sala onde eram feitos os aniversários do Beto. Brincávamos de pique, subindo e descendo aquelas escadas, o Beto encostadinho no corrimão, com medo do papagaio que minha mãe tinha e que sempre queria pegá- lo. Bruno Soffredini nasceu em Cravinhos, interior de São Paulo, e era um dos muitos filhos de Oda Rossi e Ângelo Soffredini, que chegaram ao Brasil como imigrantes e na ocasião administravam uma pensão. Aos 7 anos, Bruno fugiu de casa por causa dos maus tratos do pai e foi recolhido com amor pela família Cenefonte. Começaria ali, com o pai postiço, que era mecânico, sua paixão pelos automóveis e o aprendizado do ofício. Bruno começou a dirigir aos 7 anos, trabalhou duro muitos anos como motorista particular e teve uma frota de táxis em Santos, no bairro do Gonzaga. Ângelo Soffredini morreu durante uma caçada em Ribeirão Preto. Ironia do destino, o tiro que o atingiu foi disparado por um homem que depois teria com Oda Rossi mais um filho, Álvaro, o Nenê – Carlos Alberto Soffredini dizia que a avó tinha pulado a cerca. Oda Rossi era uma mulher de garra, destemida e bem-humorada, que criou todos os filhos sozinha. Além de Ida e Nenê, Bruno tinha como irmãos Alberto, que morreu de bexiga na época da guerra – quando a Defesa Sanitária visitava as casas para recolher os infectados pela doença, ele era escondido em um malão; Nello e Dante. Foi para ajudar a criar os irmãos que Bruno, ainda rapaz, trocou Cravinhos pelo Rio de Janeiro – foi trabalhar como motorista particular de uma família de posses, levando junto o irmão, Nenê, para que ele pudesse frequentar a única escola de surdos-mudos existente no Brasil. Nenê morou a vida toda com Bruno, tinha um carrinho de pipoca junto ao ponto de táxis em que estacionavam os carros do irmão e morreu de um enfarte fulminante apenas um mês depois de Bruno. Tio Nenê é um dos personagens da primeira peça de Carlos Alberto Soffredini – O Caso Dessa Tal de Mafalda, que Deu Muito o que Falar e que Acabou Como Acabou, Num Dia de Carnaval. Gecy nasceu em Santos, de mãe santista e avó alemã, com quem foi criada por causa da pouca idade da mãe – 16 anos na época de seu nascimento. A avó, ao enviuvar, casou-se com um homem sírio, a quem Gecy se afeiçoou muito. Havia um certo refinamento na educação dada pelos avós à neta Gecy, muito embora a família vivesse modestamente, como caseiros em uma residência que ficava na praia. A jovem lia muito, fazia pratos sírios, gostava de cinema e como costurava muito bem, foi trabalhar como modista, inicialmente em casas de famílias e depois em um ateliê. Graças ao fato de não suar nas mãos, ficou a seu cargo a confecção de vestidos de noiva. O encontro de Bruno e Gecy aconteceu em Santos, cidade que Bruno visitava com frequência a serviço da família que atendia como motorista particular no Rio de Janeiro. Quando o casal mudou da Rua Bambual para a Rua do Sol, Carlos Alberto Soffredini – Berto para os pais e Beto para os demais familiares e amigos – já era um menino e a vida da família estava mais estabilizada. A matriarca, Ida Rossi, continuava acompanhando a família. E também Geny, irmã de Gecy, solteira na época e uma figura muito importante para o sobrinho, a quem ajudava na criação. A segunda parte da infância e juventude, Carlos Alberto Soffredini passou na Rua do Sol, o primeiro nome da Rua Barão de Paranapiacaba, que liga os bairros do Macuco e da Encruzilhada e que abrigou não só o namoro com Regina Helena, com quem se casaria muito jovem, mas também, numa feliz coincidência, alguns contemporâneos que foram fazer carreira fora da cidade. É o caso do crítico de cinema Rubens Ewald Filho – a rua ficava junto à linha da máquina, do lado errado dos trilhos, do político Jorge Bittar e do jornalista Edison Paes de Mello – estudávamos todos no Colégio Santista, e eu e meus irmãos, Sérgio e Marcelo, que éramos mais moleques, ultrapassávamos as fronteiras da Avenida Ana Costa para chegar aos campinhos de futebol. Naquela rua viveram também, em tempos bem mais remotos, as atrizes Cacilda Becker e Cleyde Yaconis. – Vovó Oda protegia muito os netos – lembra Wilma Vicente – e ficava uma onça quando nossos pais queriam nos dar uma bronca. Como toda boa italiana, não tomava leite nem café de manhã, tomava pão molhado no vinho que nos dava na boca quando a gente se aproximava dela. Quando morreu, naquela casa da Barão de Paranapiacaba, minha mãe chorava muito, tinha dores de estômago ali no velório e para chamar a atenção, é claro, eu enchia a boca d’água e fingia que vomitava na varanda, todo mundo preocupado. O Beto logo viu que eu estava fazendo uma cena e me denunciou, dizia que eu estava fingindo. Carlos Alberto Soffredini tinha uma educação refinada. Frequentava um colégio de elite em Santos – o Colégio Santista –, fazia natação, ia à igreja com a mãe, ela como Filha de Maria e ele como coroinha. Os Soffredini eram unidos, centrados, organizados. Seguiam rígidos princípios de honestidade e integridade em todos os seus procedimentos, praticavam a generosidade sem ostentação e sem esperar retribuição. Até hoje, muitas dessas pessoas, a quem a família ajudava com material escolar, alimentos ou até mesmo uma orientação profissional, são muito gratas aos Soffredini. – Lembro do Beto de um lado da mesa fazendo lição e um ou outro menino adotado fazendo a mesma coisa do outro lado – diz Wilma, citando Quinzinho e Manoel como algumas dessas crianças que veio a conhecer. – Eram uns agregados que ou aprendiam uma profissão ou recebiam algum auxílio ou orientação. Acho que o coração era aberto como a porta. A casa da Rua do Sol sempre foi uma casa cheia de gente, preferencialmente de mulheres – a avó Oda, a tia Geny, as vizinhas; de conversas femininas – fofocas, troca de receitas; e de corpos desnudos – as clientes de dona Gecy experimentando as roupas que costurava em casa. – A lembrança maior que tenho da tia Gecy quando pequena – diz Wilma Vicente – eram os vestidos feitos de papel guardados numa caixa de sapatos, era aquele papel rosado que na época embrulhava o pão. Ela moldava o vestido todo no papel, num tamanho pequeno, como se fosse um vestido da Barbie, vestidos longos se eram de baile. Até hoje eu me arrependo de não ter batido o pé pra ganhar um vestido daqueles e guardar, enquadrar, era lindíssimo o trabalho dela. A memória mais valiosa de Wilma, no entanto, parece estar nos primeiros trabalhos de diretor de Carlos Alberto Soffredini, nas brincadeiras de teatrinho: – A tia Gecy nos chamava para o quarto dela e o Beto fazia um teatrinho, ele mandava a gente se fantasiar com todas as roupas que encontrava e dizer coisas. Minha mãe era mais tosca, dizia que era uma brincadeira de mariquinha, mas tia Gecy já entendia como teatro e também se fantasiava, vestia um paletó ou uma camisa do tio Bruno. Dona Gecy foi a mentora cultural do filho, uma figura muito forte na vida dele. Os dois conversavam, discutiam, e como ela gostava muito de ler, faziam um intercâmbio cultural à base de livros, recomendavam livros um ao outro. O pai Bruno sentia orgulho do filho artista, que saía no jornal, mas entender a profundidade do trabalho de Beto, quem entendia era a mãe, Gecy. Wilma Vicente, que até os 15, 16 anos, quando mudou-se para São Paulo, frequentava a casa do primo todo sábado, lembra que Carlos Alberto sempre teve muitos amigos. – A turma dele era uma moçada muito gostosa, os bailes eram obrigatórios. Tia Gecy fazia vestidos pras moças, eu ficava maravilhada, lem bro de um que ela fez para a Regina, todo dra pea do, deslumbrante... Foi na Rua do Sol que Beto conheceu Regina Helena. As lembranças dela envolvem o primeiro encontro, os dois bem crianças, o primeiro beijo na casa de uma das vizinhas, Dona Argentina, e os bailes todos que o casal frequentou nos cinco anos de namoro que antecederam o casamento: Eu morava com a minha família no nº 171 quando ele mudou para o 186, com mais ou menos dez anos – o Beto comemorou os onze anos lá. Eu tinha mais ou menos a mesma idade dele, dez meses de diferença, estudava no Liceu Feminino e quando vi aquele menino bonito e bacana, me apaixonei. Ele dançava muito bem e sempre foi muito alegre, meigo, conversador, me ensinou muita coisa boa, eu tinha muito amor e carinho por ele. Tínhamos um campinho de futebol, uma vila de casas boas e um grupo de amigos: Marlene, Marilene, Regina, Dayse, Rubinho, Marcos. Nós todos íamos para a casa da Dona Argentina, uma senhora ótima, viúva, costureira, mãe de cinco ou seis filhos que eram nossos amigos, e lá brincávamos, jogávamos vôlei, queimada, conversávamos. Eu ia porque gostava dele, tinha uma outra Regina que gostava também. Aí, uns quatro anos depois, ele pediu pra namorar comigo, eu tinha 15 anos, já estava no Ginásio. Meu primeiro beijo foi na casa da Dona Argentina, toda vez que eu passo em frente da casa dela eu me lembro, já passei com os meus netos lá. Íamos a muitos bailes, a gente dançou muito, muito. Quando terminou o Ginásio, Beto foi fazer o Científico e depois cursou alguns meses da Faculdade de Engenharia em São Paulo. Quando entrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras para estudar Línguas Neolatinas, já estava casado com Regina e trabalhando na Companhia Docas – uns vizinhos tinham arranjado o emprego. – Quando ele foi fazer o primeiro exame do ves tibular – lembra Regina – eu estava na maternidade, tendo a Renata. Tivemos a Simone um ano e sete meses depois. Foi uma festa para todos o nascimento delas. Já naquela época, Soffredini escrevia seus textos em papeizinhos e colocava no bolso, não tinha cadernos. Ia escrevendo as ideias como surgiam, até em papel de cigarro, tudo à mão primeiro, ficava horas escrevendo, procurava a perfeição. – Quando punha no papel – conta Regina – punha tudo dele, a alma, o espírito, o coração, o que você vê dele escrito é muito verdade. Ficava isolado, escrevendo, pensando e um dia chegava e dizia: Vamos arejar, vamos ao cinema. Depois me contava, quando ia ficando pronto, lia pra mim. Tanto que eu tinha muita preguiça de ler as histórias dele depois de prontas, porque já conhecia tudo. Ele me dizia – Você tem preguiça mental... Tínhamos muitos livros na casa, ele era um bom leitor e absorvia muito. Quando tinha que escrever ou descrever algum tipo característico, procurava, pesquisava... Não fazia esporte, mas gostava muito de música, era apaixonado pela Elis Regina. Gostava mesmo era de teatro, da noite, de comer fora depois dos espetáculos, de ficar batendo papo de madrugada. Acompanhava todos os filmes, todas as peças. Sempre foi alegre, aberto, bom caráter, aprendi com ele a conviver com as pessoas, nossa casa vivia cheia de gente, depois dos ensaios vinham todos pra cá. Quando já estávamos separados, começou a gostar de cozinhar, fazia coisas muito boas. Fiquei devendo a ele uma receita de doce de abacaxi que minha mãe fazia quando éramos namorados. Quando Regina e Carlos Alberto Soffredini se separaram, após uma longa vida juntos, a filha mais velha, Renata, tinha onze para doze anos e Simone, um pouco menos. Renata seguiu a carreira do pai – trabalharam juntos uma boa fase – e tem dois filhos, Ian e Tito. Simone é fotógrafa e vive no Guarujá, onde tem uma Cafeteria. É mãe das duas primeiras netas de Soffredini, Manuela e Bianca. Simone confirma o orgulho que os avós tinham do filho Beto e lembra de bons momentos junto ao pai: – Meu avô era apaixonado por meu pai, tipo Deus no céu e meu pai na terra, sempre apoiou meu pai em tudo. Ele e minha avó iam ver os espe táculos, sempre foram super orgulhosos dele, minha avó tinha todas as notícias recortadas, coisa de orgulho, era para ter orgulho mesmo. Era diferente ter um pai diretor, ator, de cabelo comprido, meus pais nos tiveram muito jovens. Morei com ele em São Paulo e saíamos juntos, íamos a estreias, jantávamos fora. Carlos Alberto Soffredini sempre foi muito presente na vida das filhas, desde a infância delas. Era paciente, ele era quem respondia às dúvidas das meninas, até mesmo sexuais. – Tudo era muito conversado, coisas da vida. A história da sementinha era uma história longa, tudo muito bem explicadinho. Minha irmã perguntava primeiro porque era a mais velha, nunca precisei perguntar nada porque estava junto escutando. Íamos aos ensaios que ele fazia, sempre gostei de ensaios, víamos as peças da coxia. Ele nos ajudava nas lições da escola, ia às nossas festinhas e na nossa fase de namoro, sempre foi cabeça muito aberta. Ele já tinha aquela coisa dos anos 60, de tudo ser muito conversado sempre, sexo, amigos, conhecia nossos namorados. E para os netos foi um super avô, estava presente no Natal, Páscoa, aniversário, Dia dos Pais, Dia das Mães, acompanhou muito de perto a vida deles. Eu observava o trabalho de autor e diretor do meu pai, a maioria das peças que ele escreveu e dirigiu. Um dos que mais gosto é De Onde Vem o Verão. Ele me mandou o texto, eu li e liguei para ele porque vi toda a peça sendo passada como um filme antigo em branco e preto, é muito linda aquela peça. Manuela, hoje arquiteta, filha de Simone, recebeu de Soffredini uma atenção especial por ter vivido, por quatro anos, como única neta. A imagem que ela tem é de um avô sempre presente em suas apresentações de balé, de formatura de escola, aniversários. – Com oito ou nove anos, eu passava férias na casa dele em São Paulo, ficava deitada na cama, ele trazia almoço na cama, chocolates, comprava tudo que eu queria, eu era muito mimada. Ele me levava para teatro, cinema, peças infantis, alugava filmes. A última vez que me levou ao teatro foi durante as férias de janeiro, eu tinha 17 anos, depois da peça tomamos um táxi e ele me deixou na porta de uma boate, esperou eu entrar e voltou para casa. Eu sempre perguntava que peça ele estava fazendo, o que é que estava dirigindo, ia aos ensaios, ficava no camarim, me maquiava, vestia os figurinos, me exibia. Adoro teatro, mas gosto de ficar na plateia. Nunca escrevi, uma vez, uma professora nos mandou ver um filme e escrever. Ela queria que eu escrevesse porque sou uma Soffredini. Eu respondi que não queria esse peso, porque ele era um ótimo escritor e eu não chego aos pés dele, existe essa cobrança... – Todo domingo era lei – lembra Bianca, a segunda neta – a gente ir almoçar na casa da minha bisa, mesmo quando ele foi morar em São Paulo. Ele acordava tardíssimo e ajudava a minha bisa a fazer o almoço. Cozinhava legal, tinha coisas que só ele fazia. Era um avô muito carinhoso, quando eu precisava de alguma coisa para a escola, sobre algum mito ou, lenda, ligava pra ele e ele ficava horas contando várias histórias. Então eu ficava meio de saco cheio porque eu pedia uma e ele contava todas, dava a diferença de mitos e lendas, contava histórias, ficava horas ao telefone. Bianca, que é formada em Administração de Empresas, desde bem pequena já sabia que queria fazer teatro. Em 2009, estreou vivendo a personagem Magda ao lado da tia Renata na montagem da peça De Onde Vem o Verão, do avô, sob direção de Neyde Veneziano, produzida pelo Núcleo Estep. – Eu ia assistir às peças da minha tia Renata, via do lado de dentro e do lado de fora, via o pessoal se maquiando, fazendo a roupa, gosto bastante de atuar, quero fazer cursos ligados ao teatro. Eu estava num dilema horrível por não saber o que ia fazer da vida, não me encaixava em nada, só no teatro, mas sei que o teatro não é uma segurança de vida. Eu me vejo como atriz, como diretora, nunca. Quero estudar, interpretar bem. Fiz um teste na TV Globo para Hoje é Dia de Maria, decorei umas falas. Minha tia me ajudou, me dirigiu, foi super legal, mas ninguém me chamou. Ian, um dos filhos de Renata, diz que desde sempre quis ser ator, ainda mais ao ver a mãe e o pai, Isser Korik, trabalhando com teatro. Quer seguir a carreira, fazer um pouco de tudo na área, estudou teatro na escola de Ligia Cortez e atualmente faz cursos na Inglaterra. Quando o Núcleo Estep, em 2006, ganhou o Programa Municipal de Fomento para a Cidade de São Paulo para montagem da peça Minha Nossa, estreou no palco fazendo o personagem Ramar, escrito pelo avô. – Gosto de teatro, gosto dos bastidores, mas a melhor parte é a cena mesmo, estar lá no palco. Gosto dos papéis que me dão espaço pra brincar, inventar, mas é bom ter alguns desafios. Gostaria de fazer peças profissionais e, quando estiver mais experiente, escrever, dirigir. Vejo dois lados da profissão. O da minha mãe, que vive de teatro mesmo, é apertado, não dá muita grana, e o do meu pai, que trabalhou com teatro amador, escreve, dirige e que tem um teatro com um sócio, o Teatro Folha. Um dos trabalhos de que mais gostei do meu avô foi De Onde Vem o Verão... Gostei da Mafalda também, achei muito bom, vi uma montagem com amadores em Santos. Uma vez, meu avô pediu pra minha avó costurar pra mim uma fantasia de Super Ian, eu tinha sete ou oito anos e ele inventou o personagem. Meu avô gostava muito de circo, a gente ia e ele tomava nota de algumas coisas, eu na época não sabia que ele trabalhava com isso, até perguntava porque ele tomava nota, ele dizia que estava trabalhando. Ele pensava muito além, gostava de fazer a obra dele e curtir, gostava desse momento. Eu sabia que ele era bom porque via muitos prêmios dele. Tito Soffredini Korik lembra dos sanduíches feitos pelo avô, dos passeios no shopping e das peças que viu: Na Carrêra do Divino e Mafalda. Também de seu primeiro trabalho de ator: – Em Vacalhau & Binho, fiz uma participação especial, na segunda vez foi melhor. Eu fazia um menino correndo e todo mundo riu quando eu passei correndo. Gosto de teatro, de cantar, acho o trabalho de ator bem interessante. Na escola, trabalhei em Curupira. Eu apresentava os outros e na hora de dançar, fui e dancei, não tenho vergonha de nada, isso eu faço desde pequenininho. Renata Soffredini seguiu a carreira do pai. Trabalha como atriz e diretora e é dona de um vasto currículo. São 21 trabalhos como atriz, muitos deles nos textos de Soffredini: Pablo e Joana, Minha Nossa, Anita – Heroina do Amor, Na Carrêra do Divino, Trem de Vida, De Onde Vem o Verão, Auto de Natal Caipira, Brasil, Outros 500, Corasãopaulo. E outros tantos trabalhos como diretora. Em 1996, ganhou o prêmio de melhor direção de teatro infantil com a peça Uma Professora Muito Maluquinha, de Ziraldo. Em depoimento dado à pesquisadora Vanessa de Carvalho para a tese A Contribuição de Carlos Alberto Soffredini ao Teatro Brasileiro, Soffredini dizia que na sua família, o artista começava nele. Só tenho um tio, irmão da minha mãe, meio repentista. Ele bebia muita cachaça e fazia versos, repentes. A mãe, no entanto, o estimulava, e cinema e teatro eram programas normais na vida da família. Durante a década de 1950, eu ia muito ao cinema. E frequentei muito o Teatro Coliseu, ainda garotinho. Ir ao teatro, naquele tempo, era um acontecimento na cidade, um dia de festa, o próprio teatro era o evento, principalmente o Teatro Coliseu. Minha mãe vestia a melhor roupa, meu pai ia de terno, eu, todo arrumadinho, ia ver o Vicente Celestino, lá eu podia entrar. Em janeiro, uma época muito ruim pra teatro em São Paulo, havia um evento patrocinado pela Prefeitura ou pelo Estado, e as peças ficavam uma semana em cartaz cada uma. Era esse teatro que eu via, eu via teatro de clube, tudo que era teatro que tinha no pedaço eu via. E quando me casei, a gente vinha ver teatro em São Paulo, eu arrastava amigos que tinham carro. Quando foi cursar Letras e começou a se destacar no TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos -, Carlos Alberto Soffredini trabalhava na Companhia Docas como secretário de um departamento. Como tinha uma sala só sua e muito tempo ocioso, aproveitava o tempo para escrever. Mandou alguns contos para o jornal Os Beletristas, das Docas, e foi em sua sala que escreveu, à mão, porque considerava a máquina de escrever comprometedora, sua primeira peça. O Caso Dessa Tal de Mafalda, que Deu Muito o que Falar e que Acabou Como Acabou, Num Dia de Carnaval recebeu, em 1967, o primeiro prêmio no Concurso Nacional de Dramaturgia, promovido pelo Serviço Nacional de Teatro – SNT. Depois de sete ou oito anos nas Docas, foi trabalhar na Editora Abril, em São Paulo – orgulhavase de ter revisado a primeira edição da revista Veja. Em quatro anos, deixava o emprego para se dedicar integralmente ao teatro, numa carreira que duraria 40 anos, até sua morte, em 10 de outubro de 2001. Considerado um dos mais importantes dramaturgos e diretores do Brasil, Carlos Alberto Soffredini deixou como legado 22 peças, muitas delas premiadas. Sua competência e a grandiosidade de seu talento puderam ser comprovadas, em 2005, quando a TV Globo levou ao ar a microssérie Hoje é Dia de Maria, sucesso de público e crítica, trinta pontos em média de Ibope. Escrita por encomenda do diretor Luiz Fernando Carvalho para um Caso Especial, em 1995, o texto foi retomado dez anos depois para alegria de milhões de telespectadores brasileiros. Capítulo II TEFFI O TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia e Letras de Santos foi criado no ano de 1962 e agregava alunos de todas as faculdades da cidade. Ao contar a trajetória dos vários grupos teatrais que ali se formaram, na obra Memórias do Teatro de Santos, Carmelinda Guimarães, crítica de teatro e historiadora, Doutora em Teatro pela USP e professora da Universidade Federal de Goiás, constata que todos os integrantes do TEFFI atingiram seus objetivos de profissionalização, como foi o caso, só para citar alguns nomes, de Carlos Alberto Soffredini, Jandira Martini, Ney Latorraca, Eliana Rocha e Neyde Veneziano, que alcançaram fama nacional. Em janeiro de 1962, Soffredini se preparava para cursar Letras na Faculdade de Filosofia, fazendo o cursinho para o vestibular. Foi lá mesmo que conheceu Suely Pires de Campos, que ia cursar pedagogia. No mês seguinte, nascia Renata, primeira filha de Soffredini. Suely ficaria então amiga de toda a família. – Considero Renata minha primeira sobrinha e quando ela nasceu, ele perdeu um dos exames – passou na 2.ª chamada. Começamos a ficar amigos desde sempre e como nascemos no mesmo dia, comemorávamos aniversário juntos. Fomos trabalhando e essa amizade continuou. O TEFFI foi coordenado por um ano por Raimundo Campos e, em 1963, assumiu a direção Greghi Filho – ele faria depois teatro profissional que encenaria dois espetáculos: Quem Casa Quer Casa, de Martins Penna, e Nossa Cidade, de Thorton Wilder. Nesta peça, que ganhou praticamente todos os prêmios de teatro amador da época e valeu a Ieda Ferreira o prêmio Governador do Estado de Melhor Atriz, Carlos Alberto Soffredini, que começou a integrar o grupo como diretor administrativo, trabalharia como assistente de direção. Vendo o Greghi dirigir eu pensava: isto eu faria diferente, mas não sabia como fazer – diria Soffredini em depoimento a Carmelinda Guimarães. Neyde Veneziano, Professora Doutora de Artes Cênicas da Unicamp, conheceu Soffredini quando ele entrou na classe dela e de Jandira Martini para convidar os alunos a fazerem um teste porque ia dirigir uma peça pela primeira vez. – Jandira e eu estávamos chegando na Faculdade, vindas de colégio de freiras, o Colégio São José – conta Neyde. Éramos as revoltadas, as rebeldes sem causa, com uma postura irreverente muito mais social do que política, embora não deixasse de ser política. Era uma irreverência a favor da liberdade de expressão, da liberdade de dançar, a gente nem era de aprontar muito, mas estava quase que preparando uma geração que iria aprontar muito depois, e isso confundia todo mundo. Começamos a montar uma peça da qual nós não entendíamos absolutamente nada porque era muito moderna para nós –A Pele dos Nossos Dentes, do Thorton Wilder. Ele então optou por Vestido de Noiva. Participaram dessa montagem, entre outros, não só Neyde Veneziano e Jandira Martini, mas Ilza Novita Garcia como Madame Clecy, Perito Sampaio, Nélio Mendes como Pedro. Ieda Ferreira Chiaratti, que já tinha atuado em Nossa Cidade e como a protagonista Alaíde de Vestido de Noiva, ganhou com essa peça o prêmio Governador do Estado e uma bolsa para a Escola de Arte Dramática, que não aceitou. Laudo Vasques, que participou da peça com os personagens do repórter, do médico e do homem inatual, deu um depoimento emocionante sobre o grupo para o livro Memórias do Teatro de Santos. – No teatro profissional há toda uma estru tura, quem fabrica o cenário, quem carrega. Ali éramos todos idealistas, tínhamos que construir e carregar os cenários. E havia a amizade. Eu diria que a palavra TEFFI é mágica, porque o TEFFI funcionou como um elemento catalisador que fabrica tantas amizades. Todos nós temos o TEFFI como uma parte do próprio corpo, parte da alma, parte do coração. Jandira Martini fala sobre a época: O ano de 1964 ficou marcado pelo Golpe Militar que, até então, era um golpe suave para tudo o que ele foi depois, piorou muito. Toda atividade estudantil era muito extensa e havia muitos festivais de teatro amador e infantil. O Brasil era um país muito ligado ao teatro nessa época. Até 1970, mais ou menos, o teatro brasileiro foi brilhante. O Arena, o Oficina eram resultado de um grande movimento, de uma grande quantidade de gente se movimentando para fazer teatro. E nós no TEFFI tínhamos uma relação ótima, era uma coisa da juventude, tudo muito bom, muito engraçado, divertido. Porque o santista é muito engraçado, muito bem-humorado, muito crítico. Carlos Alberto Soffredini confessa a Carmelinda Guimarães no livro Memórias do Teatro de Santos: Só a minha inexperiência e a minha falta absoluta de noção de dificuldade é que me fizeram escolher Vestido de Noiva, um texto que eu tinha achado maravilhoso mas que não conhecia bem, e uma montagem difícil. Eu trazia mapa de marcação de casa, dos três planos, o pessoal que trabalhava no plano da alucinação tinha uma marcação completamente ilógica, era muita intuição. Mas foi a partir daí que o TEFFI começou a se consolidar. Jandira Martini relembra que Vestido de Noiva foi muito elogiado por ser, plasticamente, muito bonito. Soffredini bolou o cenário – ele cuidava do cenário de todas as montagens que dirigiu – que era muito simples, havia apenas um praticável, com aquela coisa da ação simultânea do Nelson Rodrigues, de várias ações nos planos da memória, da imaginação e da realidade, era tudo feito com luz e era um espetáculo visualmente muito bonito. Havia críticas de que os atores eram amadores, inexperientes, no meu caso, era a primeira peça que eu fazia, eu nunca tinha feito teatro na vida. A Gilberta von Phul fez um vestido para a Neyde que quando ela estava de frente, era todo preto, e na hora que ela saía, ele era todo floreado atrás, com um decote enorme nas costas. Neyde Veneziano complementa a descrição do vestido de Adelaide, sua personagem: – Era um vestido comprido, todo preto na frente, de gola alta, e eu ficava ali velando o cadáver o tempo todo. O Soffredini tinha me dirigido assim, eu não virava em nenhum momento. Quando eu saía, meu vestido atrás era de cetim, com umas flores vermelhas e um decote até a bunda. Aquela virada era antológica, era uma virada na marcação, então, casou a marcação do Soffredini com o figurino da Gilberta e com a ideia do Nelson Rodrigues, que queria ali uma puta rezando. Passados 40 anos dessa encenação, Neyde diz ter conversado sobre ela, há pouco tempo, com o diretor Márcio Aurélio e o dramaturgo José Eduar do Vendramini, que lembravam de ter visto a montagem em Botucatu. – Foi uma montagem antológica, que as pessoas lembram até hoje. Carlos Alberto Soffredini já era, na época do TEFFI , uma pessoa cheia de ideias, como rememora Neyde Veneziano: – Ele falava que teatro universitário tinha que ser de vanguarda ou de pesquisa, que jamais se faria um texto comercial, jamais se faria concessão à plateia, ou a gente faria a vanguarda ou faria a pesquisa. Soffredini tinha uma coisa de cena que ninguém tinha na época, que era a história da marcação, da precisão gestual, de fazer o desenho de cena que ajudava a contar a história, isso é importantíssimo. Eliana Rocha era amiga de Jandira e Neyde des de o Colégio São José e entraria para o TEFFI, a princípio, como espectadora, porque cur sa va Direito. – Nós adorávamos teatro, recitais, concertos, íamos ver tudo, existia em Santos o Centro de Expansão Cultural, que levava bons espetáculos, e, não raro, a Neyde fazia uma barganha com o pai para que ele nos trouxesse para ver alguma peça em São Paulo – depois íamos jantar em algum bom restaurante, como ele gostava. Quando elas começaram a ensaiar Vestido de Noiva com o Soffredini, eu comecei a assistir aos ensaios. Ser atriz era uma coisa que não passava pela minha cabeça, eu não queria fazer teatro nem morta, tinha muita vergonha, era extremamente tímida, tinham que me arrastar com correntes. Em 1965, dirigido por Jandira Martini, Soffredini trabalharia como ator na peça O Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, por quem se confessava apaixonado. Eliana Rocha venceria o medo e debutaria nessa peça como atriz: – Soffredini fazia um fidalgo arrogante e metido, que não ajudava os pobres; a Jandira era a Brígida Vaz, personagem super importante, a cafetina que estava sendo condenada porque arrebanhava mocinhas para se prostituírem; a Neyde fazia o diabo e havia também um anjo. O Rubens Ewald Filho par ticipou como coadjuvante com um pseudônimo, para fugir do controle da família, que não queria um filho artista. E o José Roberto Fernandes, que era da mesma classe de jornalismo do Rubinho, fazia o padre que entrava em cena com a mulher – ele era condenado por ter uma vida mundana, tinha uma amante. Como a mulher do padre não fazia nada na peça, não falava, entrava e fazia uma dancinha medieval, me convenceram e assumi o papel, envergonhada que nem a peste. O Serafim Gonzalez era o cenógrafo, e quem fazia os figurinos era a Gilberta Autran Von Phul. Eu tinha 20 anos, os cabelos compridos, e ela fez um figurino tão lindo para mim que de patinho feio virei um cisne. Como eu sabia fazer crochê, trabalhei em um casquete dourado, me transformei totalmente e comecei a receber elogios. Senti-me especial, não era mais a menina complexada, míope. Jandira Martini se recorda bem dessa montagem: O Serafim Gonzalez, que já era profissional e tinha todo um trabalho de escultura, inclusive na areia, fez o cenário. A frente da barca era toda esculpida em gesso, as velas eram trabalhadas, artesanais, ele fez um trabalho de gesso sobre a madeira, em cinza, branco e preto, muito bonito. Só conseguíamos fazer teatro porque tinha sempre alguém, tão amador como a gente, que nos ajudava. Serafim Gonzalez chegou ao grupo pelas mãos de Ney Latorraca e ajudou não só na confecção das duas barcas, do inferno e do céu, como também nos figurinos e cenários. – Percebi que eles tinham montado um espetáculo sem antes imaginar um cenário, porque queriam usar uma barca de verdade, pesada, não dava para colocar no Teatro Coliseu. Como não sou cenógrafo, minha mulher, Mara Husimant, é que é, ela desenhou um cenário e eu e um outro amigo, o Mancini, que trabalhava comigo em cursos de teatro que eu dava, compramos as tintas, as madeiras e executamos os cenários em um dia e uma noite porque no dia seguinte seria o ensaio geral e logo depois a estreia. Foi aí que conheci o Soffredini. Só trabalhamos juntos no Auto da Barca porque eu já era profissional, tinha que me sustentar no teatro. Por essa época, Ilza Novita Garcia e Nélio Mendes, que haviam acabado de se formar na Faculdade, ganharam bolsas de pós-graduação para o teatro universitário de Nancy, na França, e ficaram fora por um ano. Foi então que veio o convite para o TEFFI participar do Festival Mondial du Theatre Universitaire de Nancy, evento que existe até hoje e que marcaria o início da carreira de dramaturgo de Carlos Alberto Soffredini. Ney Latorraca, que fazia teatro amador no Colégio Canadá, onde estudava, foi convidado a integrar o grupo. Para participar do evento, o grupo tinha que apresentar uma peça de uma hora de duração, de tema livre, e mais um texto de 15 minutos, com tema comum a todos e imposto pela organização: em uma pequena república, há um levante popular contra um ditador; no final, descobrese que o líder do levante era o filho do ditador. Soffredini escreveu então sua primeira peça – O Cristo Nu. O texto curto, de tema comum, foi A Crômica, que envolvia repressão, obediência, considerado o melhor enviado ao festival. O Cristo Nu relatava um fato acontecido no Nordeste: um pintor pintou um Cristo nu e o padre censurou a obra, excomungando o artista. Como a notícia foi publicada em todos os jornais, Soffredini aproveitou a história e colocou na peça, de maneira simbólica, a situação de censura em que o País vivia. Eliana Rocha ganharia nesse espetáculo um pa-pel cômico que considera maravilhoso, ela que nunca havia feito graça: Eu fazia a mulher na janela que comentava tudo que acontecia. Mas nós tínhamos medo da censura e o teatro fazia parte de uma Faculdade Católica, acho que nas primeiras apresentações em Santos não tínhamos nem certificado de censura. Quando o TEFFI resolveu levar o texto para o Festival de Nancy, foi aquela correria, aquela euforia, todos correndo em busca de donativos que custeassem a viagem. Porque a faculdade, que era católica, descontente com a peça, negouse a dar qualquer apoio ao grupo para que ele fosse para a França. Fizemos livro de ouro, vendemos flâmulas na balsa do Guarujá, um dos maiores vexames da minha vida, não vendi nenhuma – ninguém se mexeu, nada aconteceu – relembra Jandira Martini. Mas apesar disso tudo, a gente se apresentou no Teatro Coliseu com as duas peças. Nossos pais não tinham noção de como tudo aquilo seria importante para nós e embora até pudessem, não quiseram nos dar uma força. Nenhum gostava muito da ideia de fazermos teatro – diz Eliana Rocha. Como parte da campanha para levar a peça para Nancy, os atores chegaram a procurar Mário Covas, que seria cassado logo depois, e até o crítico Sábato Magaldi, pedindo uma força, como lembra Eliana Rocha: – Ele estava em Santos com a mulher, a Marilena Ansaldi. Eram recém-casados, então, Jandira, Neyde e eu fomos até ele no Clube XV pedir que divulgasse o TEFFI, falasse da gente, já que tínhamos sido convidados. Mostramos a convocação que havíamos recebido de Nancy, contamos dos textos aprovados. Ele se interessou e na semana seguinte publicou uma matéria no jornal O Estado de São Paulo falando que o Festival de Nancy existia, acho que nem falou no nosso nome. O TUCA, que vinha fazendo sucesso com a peça Morte e Vida Severina, com direção do Silney Siqueira e música do Chico Buarque de Hollanda, mobilizou verba rapidamente e viajou para apresentar seu espetáculo na França. – Essa é uma história absolutamente fantástica que precisa ser escrita segundo a Bárbara Heliodora – diz Neyde Veneziano. O TEFFI então, com o dinheiro arrecadado e que não daria para custear a viagem do grupo, procurou pelo Dr. Alfredo Mesquita e Maria Teresa Vaz na EAD – Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP) e em 1966 montava um curso de teatro com professores da escola: Celso Nunes, recém-saído da EAD e que daria aulas de interpretação, Milene Pacheco para dicção, Sérgio Rovito – expressão corporal e Eudimir Fraga – história do teatro. O curso com professores da EAD mobilizaria a faculdade inteira e como tinha como objetivo a montagem de uma peça, Celso Nunes preparou com o grupo a peça A Falecida, de Nelson Rodrigues, que já havia feito com Antunes Filho. Ney Latorraca fazia um personagem central pela primeira vez e Soffredini interpretava o Dr. Borborema. A peça foi apresentada em vários festivais, com sucesso. No livro Memória do Teatro de Santos, Celso Nunes lembra bem dessa época: Considero muita sorte ter ido para Santos e ter feito aquele trabalho. Quando formei o elenco de A Falecida, eu estava entre pessoas muito talentosas. – Vínhamos de uma outra montagem de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva, que eu não conhecia bem, não tinha muita noção, mas dirigi – declarava Carlos Alberto Soffredini. Aí, quando o Celso montou A Falecida, me firmou no Nelson Rodrigues. A peça foi encenada em 1966 e em janeiro de 1967, os integrantes do TEFFI tomavam novos rumos. Jandira Martini casou-se, mudou-se para São Paulo e rapidamente se inscreveu na EAD – no primeiro ano, pegava a estrada quase diariamente para conciliar o curso com o último ano da faculdade. Ney Latorraca também teve sua inscrição aprovada. O ano de 1967 transcorreu sem atividades do grupo e, em 1968, com a entrada de Eliana Rocha e Carlos Alberto Soffredini na EAD, o TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia e Letras de Santos dava como encerrada sua gloriosa trajetória. Admiração pela Coerência Tenho muita admiração por pessoas que mantêm sua linha de pensamento, que não vendem totalmente sua consciência e continuam trabalhando pra chegar aonde gostariam, sabendo inclusive que podem não chegar. Nesse sentido, o Soffredini fez um tipo de trabalho no qual ele acreditava, independente do sucesso que pudesse ter ou não, e acho isso admirável. Nós nos conhecemos no TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia de Santos, onde ele pretendia dirigir A Pele dos Nossos Dentes. Era uma peça do Thorton Wilder muito complicada em termos de cenário, de elenco, para um teatro praticamente sem recursos. Soffredini então optou por fazer Vestido de Noiva e acertou na escolha, tanto que fizemos várias apresentações, inclusive em festivais. Foi meu primeiro trabalho. Claro que nós conhecíamos o Nelson Rodrigues, claro que éramos estudantes de literatura, claro que não éramos ignorantes, mas o Soffredini tinha uma ideia e plasticamente o espetáculo era bonito, ainda que o cenário bolado por ele fosse muito simples, todo feito com luz. No ano seguinte, inventei de dirigir o Auto da Barca do Inferno para poupar o Soffredini, hoje penso como eu era metida, imagina, estava com 19 anos e do Gil Vicente só conhecia a literatura. O Soffredini fez o papel do fidalgo. A direção aconteceu comigo por acaso, para não parar o grupo, senão não faríamos nada naquele ano e não fazer nada em um ano talvez significasse também não fazer nada nunca mais. Para mim, o teatro é o ator e dirigir o ator é complicado, difícil, porque eu não acredito no método tortura, no grito. A gente precisa de um tempo, entender a linguagem do ator. Acho os atores brasileiros mais jovens muito despreparados, com um tipo de interpretação que me parece muito antiga, tenho visto coisas que me parecem estar vendo Procópio Ferreira, alguma coisa deslocada, fora de época. Acho que estamos passando, em direção e ator, por uma grande mudança e espero que haja sim essa mudança, porque não se sabe mais o que é teatro ou televisão. Ainda acredito que bom teatro é mesmo o teatro de grupo, que os grandes resultados você consegue em um longo trabalho, de longa convivência. O grande teatro é a Commedia Dell Arte, aquele teatro em que o ator é capaz de tudo, a partir de um tema que o ator pode desenvolver, esse é o bom teatro, o teatro de imediato, de momento, que está ligado à plateia. Quando a faculdade recebeu um convite para apresentar seu teatro em Nancy, na França, descobrimos que não tínhamos autor para escrever um dos textos. Soffredini resolveu escrever A Crômica, que tratava o tema proposto de uma maneira brilhante, visual, em que a revolução é percebida através das cores. E foi então que, de uma certa forma, ele descobriu o caminho dele, porque, apesar de gostar de teatro, não tinha pensado exatamente em ser um autor. Acredito que foi aí e com a peça O Cristo Nu que ele se encontrou, se achou mesmo, percebeu que o negócio dele era por ali. Talvez até tivesse pensado nisso, mas a partir daí é que passou a se dedicar mais, a pensar mais com olhos de autor do que de ator e de diretor, embora fizesse sempre tudo, como a maioria das pessoas acaba fazendo em teatro. Santos é uma cidade pacata, uma cidade de gente feliz, o que é ótimo. Eu tenho a impressão, posso estar errada, de que o mar, o porto proporcionam uma visão de mundo muito diferente, porque você tem um horizonte imenso. Esse desejo de amplitude, de imensidão, tinha muito a ver com nosso grupo e é por isso que tínhamos ideias. Quando o Soffredini escreveu Vem Buscar-me, queria que eu fizesse a Amada Amanda. Mas a peça foi montada tantos anos depois que quando o Gabriel Vilela fez, eu já nem poderia mais fazer a Amada Amanda, teria que fazer a mãe. Na versão para o rádio, em capítulos, eu fiz a mãe. Aliás, foi ele que me procurou para fazer novela de rádio, ele demonstrou interesse em conhecer essa linguagem da rádio, essa interpretação que é só a voz, e topei. Foi legal, divertido, gostoso, elenco bom pra novela de rádio, pena que acabou morrendo. Era uma experiência, mas que se tivesse dado certo, podia representar campo de trabalho pra muita gente. Escrever eu nunca tinha pensado, e é engraçado isso, porque sempre fui excelente aluna de português, fazia redações consideradas ótimas, mas nunca tinha me passado pela cabeça essa história de um dia escrever um livro, uma poesia, um romance. Até que fizemos uma experiência no Royal Bexigas Company, de texto coletivo, que agora tem um outro nome, alguma coisa assim corporativa. Eu escrevi, todos escreveram um pouco. Mais tarde, ao fazer uma pesquisa no Brás, para um outro trabalho, vim a descobrir um sobrado com um teatrinho, o Clube Oberdan, que tinha surgido com anarquistas italianos, entre eles o Gigi Damiani, jornalista, pintor figurativo e pintor de telões de teatro. Resolvemos, eu e Eliana Rocha, escrever uma peça que foi um fracasso tremendo e nos deixou muitas dívidas. Escrevi também sobre o Pietro Gorki, um outro anarquista, que foi o autor mais montado de São Paulo. Tem uma peça famosíssima dele chamada Primeiro de Maio, acho que supera o Deus lhe Pague em número de pessoas que assistiram. Era feita para os operários interessados naquele tipo de luta social. Vou atrás, gosto de fazer esse tipo de coisa. Felizmente, o dinheiro que perdemos com o Gigi Damiani, eu consegui recuperar com o roteiro e a montagem da comédia Sua Excelência, o Candidato, em conjunto com o Marcos Caruso. Jandira Martini atriz Aprendendo a Fazer Teatro A EAD do Dr. Alfredo Mesquita ficava no prédio da Pinacoteca, eram salas imensas, aquela sopa famosa, um teatro, o pátio com pássaros. Ficamos lá os dois primeiros anos e depois fomos para a USP, com móveis de aço, iluminação de mercúrio, o teatrinho era um buraco, foi um banho de água fria, não tinha mais clima. A Myrian Muniz gostava muito de laboratório, dessa coisa do toque, de pegar o corpo do outro, e como o Adhemar Guerra também gostava, durante todo o curso dele a gente fazia árvore, semente, verme, até ameba que se arrasta. A Jandira e o Ney Latorraca achavam tudo um saco, não acreditavam, mas eu e o Soffredini sempre achávamos bom fazer, éramos da turma dos crentes, que se atira em qualquer proposta para depois ver do que se trata. Ele era aplicado, atirado, gostava de ser ator no começo, mas tinha senso crítico e começou a perceber que a repercussão do trabalho dele de ator não correspondia ao que ele tinha como autor e depois, como diretor, acabou escolhendo aquilo que sabia fazer melhor. Lembro que ele dizia que não tinha ido para a EAD para se transformar em ator, mas para aprender a fazer teatro, porque quem escreve tem que saber como é de dentro, quanto demora para um ator trocar de roupa, sair por uma porta e entrar pela outra, de como você estrutura a cena sabendo que ali não pode mudar para outro cenário, você tem um projeto de luz que tem que ser benfeito. Ele dizia que é muito diferente quem escreve de dentro e quem escreve imaginando uma história, como quando escreve um conto, um romance e não sabe como vai funcionar no palco. Então, quando ele foi para a EAD, já não foi com o sonho de ser ator, mas é lógico que é gostoso ser ator e acho que ele pegou aquele prazer, aquele gosto, mas sabia que o foco principal dele era texto. Eliana Rocha atriz Saudade e Orgulho O que escrevo aqui nesta página em branco me deixa cheio de saudades, muitas saudades e muito orgulho. As saudades não vão passar porque mantenho dentro de mim a minha amizade, o meu carinho e o meu amor pelo amigo e irmão Soffredini. Sinto falta dele, acho que partiu muito cedo. Por quê? Sem dúvida, foi embora um dos maiores autores deste Brasil, junto, posso afirmar, no céu, com Nelson Rodrigues, Plínio Marcos e outros gênios. Quando uso a palavra gênio, ela cabe como uma luva no meu querido amigo. Soffredini escrevia diretamente para o povo (Shakespeare brasileiro), desde o início no TEFFI, com A Crômica e O Cristo Nu, que tive a honra de fazer na Faculdade de Filosofia, em Santos, levado pela Jandira Martini. Havia muita gente amiga no grupo: Neyde Veneziano, Rubens Ewald Filho, Nélio, Perito, Eliana Rocha, dentre outros. Quando escreveu a Mafalda, foi a Jandira, com o meu total apoio, que fez de tudo para ele mandar o texto para o Concurso de Dramaturgia do SNT. Acho que ele não imaginava que naque le ano seria eleito, por unanimidade, o melhor autor do País, ganhando todos os prêmios com Mafalda. Sempre achei que o Soffredini não tinha muita noção de sua grandeza como autor e homem de teatro. Seu senso crítico dava uma segurada na sua trajetória, mas nunca impediu a estrela de brilhar. Foi um excelente aluno na EAD, autor de obras geniais. Minha preferida: Mais Quero Um Asno... Se o Soffredini estivesse vivo, posso garantir que todos nós seríamos menos medíocres. Ele se divertia muito comigo, o palhaço Ney Latorraca fazia ele chorar de rir! Amava minha mãe, se dizia fã de Jocasta, era como ele a chamava, e o amor era recíproco. Com o Soffredini fiz A Crômica e O Cristo Nu, em 1965. Muito depois fiz, em 1990, Brasileiros e Brasileiras, novela dirigida pelo Walter Avancini no SBT. Foi uma indicação minha porque eu achava que tinha tudo para dar certo: novo horário, campo de trabalho, novo autor em novelas, trinta pontos na primeira semana, depois foi difícil manter. Mas valeu! Em 1992, fizemos o Prêmio Sharp, sobre a vida do Luiz Gonzaga, com a minha direção e texto do Soffredini. Até hoje esse prêmio é lembrado pela genialidade com que o autor tratou a obra do Rei do Baião. É muito difícil falar de alguém tão próximo e que partiu tão rápido. Quando ando na Lagoa, aqui no Rio, algumas imagens que vejo na natureza, no cotidiano em volta dela, me fazem lembrar de Soffredini – eu penso muito nele e sinto falta. Mas continuo andando, não com a mesma agilidade, mas cheio de orgulho de saber que Soffredini foi e sempre será meu amigo, meu irmão. Como título de sua grande obra: O Caso de Um Tal de Soffredini, que Deu Muito o que Falar, e Acabou Como Acabou, Num Dia de Carnaval. Ney Latorraca ator Trajetória de um Dramaturgo No TEFFI, não éramos tão somente um grupo que tinha se reunido para montar peças. Formávamos um grupo com objetivos muito claros e embora naquele momento nós não tivéssemos consciência de estar fazendo aquilo, sabíamos muito bem qual era o nosso papel naquela sociedade universitária. Aquele grupo era especial inclusive porque vivia-se um momento de tensão política, e o grupo era muito intelectualizado e elitizado. O TEFFI por si só já desenvolvia uma estética. Foi além do teatro, foi um movimento estético porque todas essas pessoas que estão aí, quando se encontram, falam sempre das mesmas coisas – estética, teatro popular. Ou seja, nós todos somos populares no sentido de que gostávamos de comédia, de Gil Vicente, a gente não fazia autores estrangeiros, mas brasileiros, e o Soffredini pesquisando essa linguagem. Fomos todos contaminados uns pelos outros, até hoje. A gente se encontra e todos falam a mesma língua até hoje, por isso eu falo que é um movimento, unido pelos interesses comuns. Vejo o Soffredini como um dos nossos gran des dramaturgos e já temos uma nova geração de autores que estão seguindo com muito su ces so e êxito os passos dele, acho até que ele abriu caminho para um Luís Alberto Abreu, por exemplo, que está fazendo coisas... Se fizermos um paralelo entre dois dramaturgos santistas, Plínio Marcos e Carlos Alberto Soffredini, veremos que o Plínio Marcos pertence a uma geração que fazia um recorte na realidade e apresentava aquela realidade, como ele dizia, nua e crua. Isso tem a ver com a estética realista naturalista que surgiu no Brasil com ele. Ele cria situações muito bem e aí as personagens aparecem para a plateia, a força interna delas aparece porque a situação é muito bem armada. Isso numa estética bem realista, como se tudo fosse verdade e elas representando lá dentro do palco. O Plínio Marcos é o máximo em estética em um teatro que se diz de protesto e de resistência. 0 Soffredini pertence a uma geração posterior e não é só uma questão de ser mais novo que o Plínio Marcos, ele frequentou outras pessoas, que eram as da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Santos. Ele chega poucos anos depois do Plínio Marcos, mas chega a atuar na mesma época, não faz um teatro de protesto e reivindicação porque vinha de um grupo diferente, embora ambos viessem da cidade de Santos. O Plínio tem um tipo de dramaturgia solitária, que depois é montada por grupos. O Soffredini acumulava as funções de autor e de diretor e isso já é uma diferença fantástica porque ele escreve para a cena. E por esse motivo, ele fazia muitas pesquisas de teatro popular porque, mais do que uma preocupação política, ele tinha uma necessidade muito grande de se comunicar com a plateia. Nesse sentido, a quarta parede para ele não funciona, porque ele fazia peças voltadas para o público. E se se rompe a quarta parede, a estética não é mais realista naturalista. Com o Plínio Marcos, as personagens se definem através das situações; no Soffredini, as persona-gens se definem através da fala. Ele é altamente poético nesse sentido, é poesia pura e, digamos, mais lírico do que dramático porque na dramaticidade dele as personagens se instalam através da fala e não através da situação. Acredito que o Plínio Marcos fizesse mais sucesso que o Soffredini porque aparecia mais e, seguramente, interessava mais a nós todos naquele momento social, porque estávamos numa época de rejeição a determinadas estéticas. Nossa geração lia Marcuse, Sartre, MacLuhan estava chegando, então, as coisas estavam mudando, e o que nos interessava era um teatro que nos falasse a verdade, e que fosse um pouco espelho da nossa sociedade. E o Soffredini vinha com coisas divertidas, altamente estetizadas e poéticas, líricas. O Plínio Marcos foi reverenciado porque retratava a sociedade. O Soffredini retratava a forma como essa sociedade se comunica, é diferente... A peça dele que eu mais gosto é De Onde Vem o Verão. Embora as pessoas não consigam ler isso, ele se coloca muito na pele das personagens, ele pessoa, o que fica muito lírico. De Onde Vem o Verão é muito forte nesse sentido, é a peça que eu gostaria de fazer um dia... Neyde Veneziano Prof.ª Dra. de Artes Cênicas da Unicamp Um Autor de seu Tempo Renata Soffredini é agora uma mulher escrevendo um livro sobre o pai, Carlos Alberto Soffredini. Parece uma volta no tempo, a Renatinha correndo no meio das pernas do pai, Soffredini bonachão, conversando sobre teatro. Sempre conversávamos sobre teatro. Ele, como toda aquela nossa turma entusiasmada de Santos, só falava de teatro. O amor pelo teatro nos uniu. Impossível falar sobre Soffredini sem falar sobre a cidade de Santos e o TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia, e dos saudosos anos 1960. Sobre o entusiasmo que reunia a todos: Neyde Veneziano, Jandira Martini, Ney Latorraca, Ilza Novita, Nélio Mendes, Perito Monteiro, Rubens Ewald Filho (o Rubinho preferia o cinema, mas estávamos todos juntos). Prometeu Acorrentado marcou época. O público de São Paulo ia a Santos ver a peça. Foi um sucesso inusitado. Claro, tudo com as devidas proporções, mas se vinte pessoas se deslocassem de São Paulo para ver uma peça de teatro em Santos, já seria uma comoção na cidade, e Prometeu levou muitas pessoas a descerem a serra para assistir teatro em Santos. Isso foi extraordinário. Mas desde esse início, final dos anos 1960, início dos 1970, Soffredini já manifestava talento para escrever para o teatro. Seu diálogo era fluente, funcionava no palco, uma coisa muito difícil. Aquilo que ele escrevia tinha o ritmo certo de representação. Suas duas primeiras peças – O Cristo Nu e A Crômica – foram escritas para o Festival de Nancy, mas acabaram não indo. Quem foi a Nancy naquele ano foi Morte e Vida Severina, dirigida por Silney Siqueira. O grupo do TEFFI era muito solidário. As pessoas não competiam entre si, ajudavam-se umas às outras. Isso fez com que todos ganhassem autoconfiança e depois seguissem caminhos individuais de êxito. Depois veio o Concurso de Dramaturgia do Ser viço Nacional de Teatro. Soffredini escreveu, então, O Caso Dessa Tal Mafalda... O concurso exigia seis cópias, não havia xerox, muito menos computador. Era tudo feito nas velhas máquinas Olivetti, com papel carbono. Todos ajudaram a reproduzir o texto – Ney Latorraca, Jandira Martini, Neyde Veneziano. Estimulavam o Soffredini a terminar de escrever a peça e ajudavam a fazer cópias. Um belo texto. Ganhou o primeiro prêmio do concurso que já havia consagrado Rasga Coração, de Oduvaldo Vianna Filho e também Jorge Andrade. Aquele foi o empurrão que Sof fredini precisava para se assumir como autor. Excelente autor. O que fez depois – e considero Na Carrêra do Divino sua obra mais importante – foi consequência daquele prêmio que consagrou Soffredini como autor. Na Carrêra do Divino, escrita em 1979, mostrava o compromisso de Soffredini com as tradições e a realidade brasileira. Produto de uma pesquisa séria e profunda, como tudo que ele fazia. Estreou no mesmo ano, no Teatro de Arena, dirigida por Paulo Betti, com Eliane Giardini e a Turma do Victor ou As Crianças no Poder (outro grupo fundamental naquele período e que, como a turma do TEFFI, também passou pelas mãos do diretor Celso Nunes). A peça foi encenada em Goiás pelo diretor Marcos Fayad em 1997 e cumpriu nova trajetória de sucesso pelo Brasil Central, sendo apresentada em São Paulo e depois no FITEI – Festival de Teatro de Expressão Ibérica no Porto, em Portugal, entusiasmando a crítica portuguesa, como já havia entusiasmado a brasileira. Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, dirigida por Gabriel Villela, foi uma nova afirmação desse talento formidável. Carlos Alberto Soffredini marca a dramaturgia brasileira e se impõe como um autor de destaque nos anos 1980 e 1990. Deixa inscrita na história do teatro brasileiro uma obra muito significativa. Ajuda a desvendar, como Oduvaldo Vianna Filho, a trajetória do homem do campo, explorado e maltratado que dará origem a movimentos como o MST. Como um intelectual comprometido com seu tempo, Carlos Alberto Soffredini nos ajuda a entender melhor as causas que movem a história do homem brasileiro. Como amigo, deixou muita saudade. Carmelinda Guimarães crítica de teatro Capítulo III Mafalda Com o final do TEFFI e o encerramento do curso de línguas neolatinas na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santos, em 1965, Carlos Alberto Soffredini começaria a dar aulas de teatro e se voltaria para a dramaturgia, escrevendo O Caso Dessa Tal de Mafalda, que Deu Muito o que Falar e que Acabou Como Acabou, Num Dia de Carnaval. A peça recebeu, em 1967, o primeiro prêmio do Concurso Nacional de Dramaturgia promovido pelo Serviço Nacional de Teatro – SNT e Santos conferiu ao filho ilustre a Medalha de Honra ao Mérito da Prefeitura de Santos, em ouro, 14 gramas, que se encontra guardada com a ex-mulher, Regina. O júri que concedeu o prêmio a Carlos Alberto Soffredini, formado por Paschoal Carlos Magno, Benedito Nunes, Raimundo Magalhães Jr., Alberto D’ Aversa, Miroel Silveira e Adhemar Guerra, dizia em seu parecer: – A peça vencedora sobressaiu-se por seu grande senso de humor e humanismo numa extraordinária sátira de costumes. O telegrama do SNT com a boa nova, assinado por Paschoal Carlos Magno, chegou às mãos de Soffredini em 28 de setembro de 1967. No dia seguinte, o autor era destaque nos principais jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. O jornal Última Hora, de São Paulo, deu meia página ao fato, frisando que Carlos Alberto Soffredini, então com 27 anos, havia recebido a notícia com naturalidade, sem demonstrar emoção, mostrando que, para ele, a peça era dividida, não em atos, mas em casos. Dizia o premiado na entrevista: Estou muito contente e devo frisar que concorri mais em função do incentivo que recebi de três elementos ligados à classe teatral em Santos: Jandira Lália, Neyde Veneziano e Roberto Iafulio, os quais, inclusive, datilografaram o texto da peça. A Jandira Lália a que Soffredini se referia é Jandira Martini, que participou da empreitada ajudando a duplicar o texto com estêncil, uma vez que na época não existia xerox. – O Soffredini sempre nos perguntava o que a gente achava legal de fazer em teatro, de personagem. O Ney falava que queria fazer um burro e eu dizia: Acho que puta, prostituta. E aí um dia ele aparece com uns papéis e diz: Escolham os personagens que vocês queiram fazer. Era a Mafalda. Mas, em vez de fazer, nós preferimos mandar para o Concurso do SNT. Como o Soffredini era um pouco sossegado, pra não dizer preguiçoso, nós nos juntamos para providenciar as cópias. Ele dizia: Que bobagem, não vai ganhar nada. Nunca foi montada, embora o prêmio desse direito a uma ajuda de custo para isso, porque era uma peça complicada pra ser montada por um grupo de teatro amador como o nosso. Era uma peça cara, com muitos personagens. Para teatro profissional era mais fácil. Neyde Veneziano, que ajudou a datilografar a peça (seu marido, Perito Sampaio Monteiro, foi quem levou o texto para o Rio de Janeiro) analisa aquele momento: – O Grupo TEFFI foi muito forte, todos praticamente se transformaram em profissionais muito bem-sucedidos que mudaram os rumos do teatro. Isso é importante de se pensar, porque não formávamos apenas um grupo de amigos. O que nos interessava era um teatro que nos falasse a verdade e que fosse um pouco espelho da nossa sociedade. E o Soffredini vinha com coisas divertidas, altamente estetizadas e poéticas, lí ri cas. Vejo o Soffredini como um dos nossos gran des dramaturgos. Em dezembro desse mesmo ano, Soffredini diria em entrevista ao Jornal do Brasil: Não estou contente com quase nada que existe por aí. Como qualquer artista, quero usar a minha arte para transformar as coisas e, para isso, fiz um plano de trabalho. A maneira pela qual pretendo mudar as coisas não pode ser dita em uma só peça. É o conjunto da minha obra que vai trazer a minha mensagem. Ao Correio da Manhã, do Rio, em 22 de dezembro, ele diria: Meu teatro é essencialmente popular, porque me fascinam a gente e os costumes desta terra. Mas é popular não só porque focaliza o povo, mas principalmente porque é escrito para ele, embora eu saiba perfeitamente que não é exatamente o povo que frequenta as nossas salas de espetáculos. Então, eu consideraria a minha obra plenamente realizada no dia em que fosse representada por uma dessas companhias ambulantes que percorrem os bairros das cidades grandes e as cidades do Interior e que são conhecidas pelo nome de pavilhões. Tenho certeza de que essas companhias e suas plateias sentiriam e compreenderiam a minha peça porque ela transmite principalmente gente e não principalmente ideias Ao entrar na EAD, Soffredini ouviria do diretor da Escola de Arte Dramática, o Doutor Alfredo Mesquita, em uma aula inaugural, que o autor de Mafalda era comparável a Nelson Rodrigues, até melhor, porque não tinha a morbidez do Nelson Rodrigues. Soffredini, que tinha Nelson Rodrigues como ídolo, ficou ainda mais incentivado com a comparação. Mafalda deixou seu autor em evidência por um bom tempo. Adhemar Guerra e seu grupo, que tinham acabado de fazer Marat Sade, quiseram montar a peça. Eva Wilma e John Herbert também demonstraram interesse, assim como Maria Della Costa. O ator e escultor Serafim Gonzalez, que foi quem apresentou Carlos Alberto Soffredini a Adhemar Guerra, lembra bem dessa tentativa de negociação: – Eu estava no elenco de Marat Sade, e o Adhemar Guerra me perguntou se eu conhecia al guém de Santos que tinha escrito uma peça cha ma da Mafalda. Ele dizia tratar-se de uma peça muito boa, a qual queria premiar na qualidade de jurado do Serviço Nacional de Teatro. Ganhasse o prêmio ou não, ele queria montar Mafalda. Eu então levei o Soffredini para assistir Marat Sade num sábado e conversar com o Adhemar. Ele assinou um pré-contrato com o Armando Bógus e o Adhemar Guerra, que eram os donos da companhia que fazia o Marat Sade. Mafalda ganhou o prêmio, mas a companhia do Adhemar se dissolveu, não montou mais nada. Apaixonado pela peça, Zbigniew Ziembinski entrou na história quando demonstrou interesse na montagem – graças ao prêmio do Serviço Nacional de Teatro, havia subvenção – e se fechou com Soffredini no apartamento de um parente no Guarujá, durante dois meses, para reduzirem o texto. Ele representava todos os personagens pra mim, isso me deixou em estado de graça – confessaria Soffredini. Serafim Gonzalez também acompanhou essa fase: – O Soffredini havia feito um curso de teatro com o Ziembinski em Santos, promovido pela Comissão Municipal de Cultura – era um curso de direção, ator, figurinos, cenários – e quando leu a Mafalda, o Zimba se apaixonou, todo mundo se apaixona pela Mafalda. Era um sonho o espetáculo na cabeça dele. O que realmente espantava na Mafalda era o texto, tanto que o Zimba se apaixonou pelo texto, a paixão que o Soffra despertou foi pelo talento de escritor. A produção seria do Joe Kantor, que era o dono do Nick Bar, e contaria com patrocínio também da Ultragaz. O Ziembinski achava que ia fazer do Soffredini um outro Nelson Rodrigues, dizia que tinha nas mãos um novo Vestido de Noiva e, por mais que tivessem reduzido o espetáculo, ele ainda ficou muito grande. Eu fazia a ligação entre o Zimba e o Joe Kantor enquanto o Soffredini trabalhava no texto. Eles se davam muito bem, só que as notícias que eu recebia eram sempre terríveis para a produção. O Ziembinski tinha na cabeça um elenco de peso, eram muitos personagens muito difíceis Se fizéssemos com amadores, talvez conseguíssemos, mas eram necessários atores muito especiais para fazer profissionalmente, a ideia era que o Stênio Garcia fizesse o Mudinho. O Joe Kantor e eu fazíamos a tomada de preços, não tinha a menor condição, e a conclusão foi que era impossível montar a peça, mesmo considerando a verba de montagem e o apoio da Ultragaz. Foi uma decepção, e o Ziembinski me deixou numa situação difícil. Queria que eu processasse o Joe Kantor por causa disso, e o Soffredini não concordava. Ironicamente, até hoje O Caso Dessa Tal de Mafalda, que Deu Muito o que Falar e que Acabou Como Acabou, Num Dia de Carnaval não foi montada. – A Mafalda, embora não seja o meu primeiro texto, foi um momento em que falei: eu sou dramaturgo. É um texto que tem muita reminiscência, é um eco do meu passado, do bairro onde morei. É claro que tenho facilidade de pegar o som da fala dessa classe, mas eu percebo quanto, teatralmente, dramaturgicamente, a palavra é excessiva no texto. Uma coisa que eu só fui perceber na EAD, quando trabalhei com a Myrian como ator, é o quanto a dramaturgia serve melhor se ela for mais precisa, mais direta. Mafalda fez sucesso, embora nunca tivesse sido montada. Capítulo IV EAD Com o prêmio do Serviço Nacional de Teatro, Soffredini largaria o trabalho nas Docas de Santos e ingressaria, em 1968, na Escola de Arte Dramática em São Paulo, tendo aulas com grandes nomes de importância no teatro brasileiro, como Sábato Magaldi e Jacob Grinberg. Estudava na mesma turma de Eliana Rocha – Jandira Martini e Ney Latorraca já estavam entrando no 2º ano e Neyde Veneziano ficara fazendo carreira em Santos. – Entrei na EAD à procura de trabalho de ator – diria ele em entrevista para Vanessa de Carvalho, que escreveu a tese sobre sua contribuição ao teatro brasileiro. – Eu procuro até hoje fazer minha dramaturgia partir da representação, partir do ator. Eu me sinto um bom dramaturgo na medida em que percebo que fiz uma boa partitura para uma representação. Porque, para mim, o teatro é a arte do ator mesmo, o ator vivendo um papel no palco. Isso é fundamental no teatro. Eu tinha essa noção, um pouco porque tinha sido dirigido pelo Celso Nunes no TEFFI. Como era praxe na escola, os grupos montavam dois espetáculos anuais. O primeiro seria um show, logo no primeiro semestre, e Soffredini foi requisitado para, a partir de ideias trocadas em classe, escrever um texto que Eliana Rocha lembra ter sido engraçadíssimo, sobre uma tentativa de roubo do Cristo Redentor. A montagem, quase um show de calouros, fez muito sucesso sob a direção de Soffredini, todas as demais classes foram assistir. – Como estávamos no auge do tropicalismo, era um espetáculo tropicalista, com as influências da época: março de 1968, aquele ano em que tudo aconteceu neste mundo, passeata, movimentos políticos. Juntamos tudo, ele fez uma compilação, eu fiz a Carcarina, inspirada na Maria Bethânia, que só citava dados estatísticos horríveis, tinha um personagem ufanista, que era O Maior do Mundo. Nesse mesmo ano, Carlos Alberto Soffredini faria parte do coro da peça Sonhos de Uma Noite de Verão e, para continuar sustentando a família, que morava em Santos, foi trabalhar na Editora Abril quando a revista Veja abriu inscrições não só para jornalistas, mas para escritores também. Queriam textos para analisar, e os autores que fossem selecionados fariam um workshop para montagem da nova redação. Seriam anos de intenso trabalho para Soffredini esses que envolveram a Editora Abril, o curso na EAD e a direção de grupos de teatro amador em Santos: Teatro do Colégio e Teatro Estudantil Vicente de Carvalho. – A Veja era a menina dos olhos da Abril – conta Eliana Rocha – e o Soffredini foi selecionado, mas não suportou a pressão e pediu para ser aproveitado de outra forma. O ambiente na revista era de extrema competitividade, e acho que ele sentiu que não era a dele, que não conseguiria fazer a Escola de Arte Dramática ao mesmo tempo. Foi então para a revisão, um cargo legal, que dava para pagar apartamento, escola e demais despesas. Aí ele me indicou, fiz uns testes e fui chamada para o pool da revisão. Ele alugou um apartamentinho no meu prédio com o Mário Garcia, que estudava medicina e depois casou com a Ilza Novita Fortes. A Suely e o Amilton também moravam lá e nós circulávamos por todos os apartamentos, aquilo virou uma comunidade. Pegávamos um ônibus da empresa, íamos para a Abril, almoçávamos lá – tínhamos horários loucos, numa certa época, trabalhávamos no sábado da madrugada, mas achávamos bom – e na volta pegávamos um ônibus para ir para a EAD. Estivemos muito próximos. Na montagem de Adhemar Guerra para Os Exercícios Americanos, de Jean Claude Van Italy, no ano seguinte na EAD, Soffredini daria continuidade a seu trabalho de ator. A peça fez muito sucesso, atores famosos iam ver a montagem. Na formatura dos 2.º e 3.º anos, ele e Eliana Rocha fariam coro na peça As Alegres Comadres de Windsor: Estávamos ridículos com aquela fantasia de malha azul, cheia de velcros – ela lembra. E, em 1969, Emilio Di Biasi seria chamado para a direção de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, em que Soffredini faria um dos Prometeus. A turma ficou unida, foi um trabalho bonito documenta Eliana Rocha – e ele estava muito bem como ator, porque o espetáculo exigia expressão corporal, e nisso ele era muito bom. Tinha uma flexibilidade invejável, muita expressão de corpo, dava de dez a zero em todos os outros. Quando ele saiu da EAD, resolveu montar um Prometeu diferente com um grupo de Santos, uma montagem muito mais ritual, com tambores. Ele pegou todos os rituais dos ditirâmbicos. Essa disposição física de Carlos Alberto Soffredini seria lembrada quando, na Escola de Arte Dramática, em 1970, surgiu a ideia de encenarem Cândido, de Voltaire, com direção de Myrian Muniz e Silvio Zilber e cenário assinado por Flávio Império. Na montagem, que servia como exame aos alunos do curso de interpretação, Soffredini faria o papel principal não só pela expressão corporal mas pelos conhecimentos que tinha de esgrima. A montagem previa plataformas, espaços físicos em planos diferentes. Teria início nessa época sua relação de aprendizado com Myrian Muniz e a consciência da necessidade de energia para bem exercitar o trabalho de ator. A respeito da montagem de Cândido, Eliana Rocha reforça as lembranças: Ele foi escolhido primeiro porque tinha expressão corporal muito boa e parecia muito mais jovem do que realmente era. Naquele pátio da EAD, sextavado, o Flávio Império estendeu uma rede e fez um praticável na volta inteira. O público ficava embaixo da rede. Como o Cândido é atirado no mundo, tudo o que era representado pelo mundo instável acontecia na rede, e o estabelecido era no praticável, esse era o conceito geral. Eu achava sempre que faltava uma coisa técnica no Soffredini, não sei se no domínio da voz, mas nesse espetáculo, juntando a qualidade de expressão corporal com o entendimento da ingenuidade do personagem e essa disponibilidade juvenil, eu acho que ele fez bem como ator. Myrian Muniz confirma que Soffredini queria fazer curso de ator para ser dramaturgo, precisava entender de atuação. Eu falava assim pra ele: Olha, meu filho, eu sei que você vai ser dramaturgo, ou seja, mesmo que você não se ache um ator, tem que fazer uma experiência de ator e bem funda. E aí fizemos o Cândido de Voltaire, e ele fez muito bem a peça, tinha grande agilidade corporal. Na época, eu, que sou de Escorpião, era muito possessiva no sentido de que quando pego uma coisa pra fazer, vou fundo. Ainda mais quando a pessoa me diz que não é capaz, eu caio em cima feito uma anta porque eu achava que ele era capaz. Então, a gente ia pra minha casa, ficava até de madrugada, às vezes ele dormia lá, eu possuí a alma dele. Ficamos muito amigos e depois a vida nos separou. – Ele era aplicado, atirado – diz Eliana Rocha – Lembro que dizia que não tinha ido para a EAD para se transformar em ator, mas para aprender a fazer teatro, porque quem escreve tem que saber como se estrutura uma, cena sabendo que ali você não pode mudar para outro cenário, você tem um projeto de luz que tem que ser benfeito. Ele dizia que é muito diferente quem escreve de dentro e quem escreve imaginando uma história, como quando se escreve um conto, um romance e não se sabe como vai funcionar no palco. Então, quando ele foi para a EAD, ele já não foi com o sonho de ser ator, mas é lógico que é gostoso ser ator e acho que ele pegou aquele prazer, aquele gosto, mas sabia que o foco principal dele era texto. Soffredini consideraria a experiência de Cândido fantástica e nunca negou que foi Myrian Mu niz quem lhe ensinou os principais macetes de representação: Ela fez minha cabeça, me levou pro palco, pra direção, pro ator. Fazer o Cândido foi um dos maiores presentes que eu poderia esperar dos deuses do teatro. A Myrian me mostrou como encontrar o personagem na vida. E foram dias muito fecundos na minha vida, com certeza, os mais fundamentais de toda a minha carreira. Porque eu não aprendi como se constrói um personagem, mas vivenciei o processo por dentro. Reconheço na Myrian, nessa experiência, a origem de toda a minha visão atual do que seja teatro, a minha descoberta do ator e seus instrumentos, a minha certeza atual de que o teatro é a arte do ator. No livro Giramundo – Myrian Muniz, o Percurso de uma Atriz, de Maria Thereza Vargas, coube à própria Myrian confirmar seu carinho de amiga e irmã para com Soffredini, como ela mesma colocou na dedicatória feita a ele. Na apresentação desse livro, Soffredini escreve sobre o deslumbramento e o privilégio de ter como professora uma personalidade como Myrian Muniz e privar da amizade dela; Teatro eu aprendi com ela. Em 1970, Celso Nunes chegou da Europa e, usando com os alunos da EAD o método psicofísico, montou As Bacantes, de Eurípedes, em que Soffredini faria Dionísio ao lado de Eliana Rocha e algumas alunas da Escola de Comunicações e Artes da USP, como Mariângela Alves de Lima, crítica de teatro, e Sonia Samaja. – Ele não tinha medo de se atirar, dava cambalhotas e ficava sobre um barril de vinho, com a posição de lótus. Era uma montagem muita bonita, ficou um espetáculo ritual, sem cenário, com muita coisa corporal, coro, tambores. Luiz Monforte, renomado artista gráfico, santista como Soffredini e um apaixonado por teatro, tem na memória até hoje o trabalho de ator de Carlos Alberto Soffredini em As Bacantes: – Num dia chuvoso, desbravei os caminhos tortuosos que levavam à USP para, num canto da plateia, assistir aos exames públicos da Escola de Arte Dramática, a EAD. E, num átimo de memória, enquanto as mãos do ator que interpretava Dionísio traçavam grafias de sabor oriental no ar, penso no que me ensinou um professor: as mãos do artista revelam a grandeza de seu talento… E o ator era Carlos Alberto Soffredini… Eliana Rocha, dona de mãos não menos reluzentes, também estava no elenco. É ela quem irá confirmar e revelar a existência daquele espetáculo e de um ator que bem poucos tiveram a oportunidade de assistir. Todos o conhecem mais pelo que escreveu e dirigiu. Configurar Soffredini é lembrar de seu semblante calmo, sempre calmo, de sua voz cálida, de um olhar tranquilo que parecia sempre dizer: sei o que quero. Sabia. Depois de formado, em 1971, Soffredini, ainda trabalhando na Editora Abril, faria seu primeiro trabalho como ator profissional em O Interrogatório, de Peter Weiss, no Studio São Pedro, com direção de Celso Nunes. A peça, com duas horas e meia de duração, abordava o holocausto. O sucesso foi incrível, a montagem ficou mais de um ano e meio em cartaz com casas lotadas e recebeu cinco prêmios da APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Soffredini contava que a peça era tão pesada, que os atores saíam exaustos do espetáculo. – Um dia, fui procurado no camarim por uma senhora judia que, aos prantos, falava da minha semelhança com um parente que ela havia per-dido num campo de concentração. Ela foi ver o espetáculo várias vezes e sempre se emocionava muito. Era um trabalho muito sofrido para atores e espectadores. Com o Brasil em clima de violenta repressão, um pouco antes da estreia da peça O Interrogatório, foi preso Maurício Segall, diretor do Studio São Pedro, acusado de subversão, o que impediu que o grupo continuasse sendo mantido. Maurício Segall cedeu, então, o espaço a Silvio Zilber, que resolveu remontar Cândido com o mesmo elenco da EAD – Jandira Martini, Eliana Rocha e Regina Braga, com direção de Myrian Muniz e cenários de Flávio Império. – Foi nossa última peça como atores juntos e embora fosse uma montagem diferente por causa do espaço, tivemos boa crítica, mas não fizemos sucesso. Perdeu o encanto daquela mágica da EAD – relembra Eliana Rocha. Capítulo V As Tragédias Gregas O final dos anos 1960 e o início dos anos 1970 seriam de muita atividade para Carlos Alberto Soffredini. Ele passaria a ministrar cursos de teatro patrocinados pela Prefeitura Municipal de Santos, daria aulas de introdução ao teatro na Escola de Comunicações da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da cidade e faria parte do corpo docente do Colégio Equipe, na cadeira de teatro. Seriam os anos, também, nos quais Soffredini se dedicaria às tragédias gregas. A primeira delas ele montaria com o TECO – Teatro do Colégio, que surgiu no Colégio São José, em Santos, que possui ainda hoje um teatro com um belo palco. Em 1968, a professora de história, Elizete Sailo, resolveu montar uma peça de teatro com as formandas e convidou Carlos Alberto Soffredini para coordenar os trabalhos. A opção dele caiu sobre Electra, de Sófocles, e como o colégio era feminino, foram convocados alunos do Colégio Santista, dos padres Maristas, para completar o elenco. O espetáculo recebeu praticamente todos os prêmios do Festival de Teatro do Teatro Anchieta: melhor atriz, melhor ator coadjuvante, melhor espetáculo segundo o Júri Oficial, melhor espetáculo segundo o Júri Popular, melhor cenário e melhor direção. Selma Luchesi, que participou dessa montagem no papel título – Soffredini achava que ela tinha uma figura trágica porque era magra e alta – acredita que a tragédia estava sempre como pano de fundo das grandes realizações de Soffredini. A tragédia e as pesquisas, como essas que antecederam a montagem de Electra. – Era um trabalho magnífico o dele, de pesquisa pictórica. Estudamos as estátuas, os relevos, os movimentos, como é que elas deveriam se posicionar, foi um espetáculo maravilhoso, tanto é que ganhou todos os prêmios da época. Soffredini fazia a marcação toda na diagonal nas escadas. Os ensaios da peça, intensos e diários, se estenderam por todo o ano de 1968 e ocupavam não só as instalações do Colégio São José mas também o galpão de uma igreja no Gonzaga. Electra estreou em 1969, fez duas ou três apresentações e foi um sucesso total. Além de ter tido remontagens posteriores em São Paulo, com Paulo Autran e Valderez de Barros e de virar cult em Santos, deu nome a vários estabelecimentos comerciais da cidade, desde oficinas de conserto de aparelhos de som a boutiques. – Uma vez – lembra Selma Luchesi – eu acordei com uma dor de dente que eu não podia abrir a boca, fui parar no pronto-socorro e fiz o espe táculo anestesiada. Quando terminou, caí dura, desmaiei. Mas naquele momento percebi quão frágeis nós somos, tão grandes nós somos. O ator, quando está no palco, não existe nada que possa tirá-lo daquele momento, foi o Soffredini quem nos ensinou. Ele era muito enérgico, exigia, mas era muito suave para dirigir. E era um bailarino natural, tinha uma visão absurda do espaço. Electra seria apresentada, também com sucesso, na Cava do Bosque, em Ribeirão Preto, em uma arena estilo teatro de epitrautos. – O espetáculo começou lá pelas cinco horas da manhã. Em volta da arena colocamos tochas, lotou de gente, foi a realização máxima. Demos a primeira fala da Electra: divina claridade e ar, estilo lúdico da terra – eu me lembro até hoje, e começou o amanhecer, era uma coisa magnífica, muito linda, a gente conseguiu chegar à essência da representação cênica mesmo, de como foi concebida, acho que naquele momento desceram todos os deuses gregos para fazer com a gente o espetáculo. Em 1971, Soffredini substituiria Carlos Pinto na direção do TEVEC – Teatro Estudantil Vicente de Carvalho e responderia pela montagem de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo. Um trabalho experimental, premiado em festivais estaduais e nacionais de teatro amador, sucesso arrasador de público e crítica, um espetáculo de beleza plástica ao qual ninguém ficava indiferente não só pelo arrojo na sua concepção como pela ousadia da montagem. A censura ficou de olho na peça porque o Brasil enfrentava, na época, um momento político delicado. Doze atores se revezavam no papel de Prometeu, com um trabalho corporal muito forte – cada momento do personagem era vivido por um ator, exatamente, para mostrar as várias características do personagem. O elenco respondia por tudo o que aparecia em cena: as figuras, os monstros, o mar, a tempestade. Não havia cenário, e o figurino de Nelson Ramos era ousadíssimo – as roupas, mínimas, eram confeccionadas manualmente em tecido rústico. A trilha sonora era feita sem nenhum instrumento musical, mas com latas, folhas de latão e cabaças, a maioria absoluta dos sons era idealizada por Soffredini e produzida pelos atores que dançavam com máscaras brancas com movimentos angulosos muito marcados, ao som da percussão, uma movimentação meio oriental. Celso Batista, que já fazia teatro em Cubatão desde menino e considera Carlos Alberto Soffredini um precursor, um criador, começou a fre quentar as aulas na Rádio Clube e estreou com a montagem. Ele conta que na época de Prometeu, ir para o ensaio era uma missão, um prazer, e o trabalho com Soffredini, gratificante. – A gente sabia que o espetáculo era muito bom, adorava, mas foi um deslumbramento, a gente se jogava, era uma coisa feita visceralmente. Não tinha técnica, mas tinha tanta gana que a emoção aflorava. Tínhamos um tremendo orgulho, a palavra é essa, de dizer: eu faço Prome teu Acorrentado. O ator lembra, com clareza, a cena do nascimento de Prometeu, uma das mais elogiadas do espetáculo por sua força e grandiosidade: – O elenco inteiro ia se juntando fisicamente, formando uma enorme massa em direção do centro do palco, com sons guturais e gemidos simulando a contração, e de repente, no meio daquela massa de corpos, surgia Prometeu nascendo, era um parto. Rememora, também, uma outra cena com o mar: – Havia uma escultura imensa, embaixo da qual gente entrava, com mini-lanternas nas mãos. Aquilo ficava ondulando, o palco inteiro ondulava, e dali saía o personagem do Marinho, uma entidade do mar que tentava seduzir o Prometeu que era feito pelo Antonio. Na cena da sedução, ele beijava o Prometeu na boca e o Prometeu vomitava como que rejeitando a proposta. O Antonio vomitava de verdade em todos os espetáculos, eu não sei como ele conseguia, era um trabalho absolutamente verdadeiro e fascinante, a plateia se contaminava com essa garra que estava no palco. O ensaio, para a censura, era obrigatório – muitas cenas, inclusive, tiveram que ser feitas com esparadrapo na boca dos atores. Celso Batista lembra um episódio interessante, para não dizer irônico, dessa fase: – Em uma cena muito forte, a atriz entrava no palco sozinha, seguida por um canhão de luz muito forte. Ela fugia da luz, e o texto, extremamente reacionário, dizia mais ou menos assim: Que não se case o rico com o pobre, que não se alimentem uniões de desigualdade. Um censor depois veio conversar, queria saber o que significava aquela luz que perseguia a menina. Todo mundo sabia o que era: a polícia, a ditadura, era como se fosse uma batida policial procurando a menina para matar. E o Soffredini, com a cara mais santa do mundo, respondeu: São os olhos de Zeus... O censor deixou passar a cena. Selma Luchesi, que já havia trabalhado com Soffredini em Electra, também estava nessa montagem e declara que tudo o que conhece de teatro, – o pouco que eu sei – deve a esses momentos, inesquecíveis. – Ele usava o conceito do ator santo, estar inteiro com todas as suas capacidades, todos os seus sentidos aguçados. Então, por mais pesado que fosse o espetáculo, não rolava droga. No final a gente ia tomar cerveja no Gonzaga. A nossa viagem era pessoal, era a transgressão do nosso próprio corpo. Douglas Salgado cursou Rádio e Televisão na ECA Escola de Comunicação e Artes da USP, e seu primeiro contato com Soffredini como homem de teatro foi em Prometeu Acorrentado. No Prometeu estava toda a concepção dele, um homem de teatro que era um esteta, preocupado com a luz, a composição, a coreografia, a marcação, tudo aquilo envolvendo as pessoas, era de se deslumbrar. Ele estava no Grotovsky, ou seja, na vanguarda da vanguarda. O pessoal da esquerda não se ligava na estética, não achava esse teatro formalista, digamos assim, político, e nesse ponto, acho que o Soffredini ficou um pouco deslocado entre o pessoal da esquerda, o que não é verdade, porque é claro que era um teatro político, ele era político, evidente que sim. A convite do SESC (Serviço Social do Comércio) e depois de receber o prêmio de primeiro lugar nacional de teatro amador, o grupo apresentaria Prometeu Acorrentado em São Paulo, em 1972, no Teatro Anchieta, em uma temporada profissional que teve casa lotada em todas as apresentações. Para Celso Batista, a montagem representou um rito de passagem para muitos atores: – Tinha cenas em que ficávamos nus e na cena das virgens, em que elas entravam envoltas em peles, de seios nus, de costas uma para as outras, com as mãos amarradas, havia um texto maravilhoso, a plateia não conseguia desgrudar os olhos, tal era a força. A partir dessa temporada, muita gente resolveu não mais voltar a Santos: muitos se profissionalizaram ou aceitaram convites para novos trabalhos. Durante as viagens para apresentação do espetáculo em outras praças, o elenco de Prometeu Acorrentado viveu momentos difíceis por conta das ousadias da montagem. Em São José dos Campos, os camarins foram atacados por pedras, e os atores tiveram que se esconder no ônibus para saírem ilesos das agressões. Depois desse sucesso, o grupo trabalhou em dois outros textos que não chegaram a ser montados – Titos Andrônicos, de Shakespeare, e A Destrui ção de Numância, de Cervantes – e que, segundo os atores que deles participariam, seriam tão impactantes em termos de cena, de imagem e de estética quanto Prometeu Acorrentado. O grupo original do Prometeu foi se dispersando e não tinha como repetir esse processo nosso tão amalgamado – lembra Celso Batista. Mas, se as peças chegassem a estrear, o Soffredini queria os atores todos absolutamente depilados, pretendia trabalhar em cima da estatuária greco-romana, a ideia era que todos estivessem pintados de branco. Anos depois vimos o Antunes Filho usando isso no Macunaíma, em uma cena com os atores todos brancos, nus. O Soffredini era um precursor, tinha uma criatividade e uma imaginação acima da média. Era um homem e um artista iluminado, esteve sempre à frente do seu tempo. Todos os trabalhos dele evidenciam isso, uma coisa de criação muito original, sempre focados na emoção. Em 1973, Carlos Alberto Soffredini retornaria aos palcos do SESC Vila Nova para montar As Troianas. Douglas Salgado, que mais tarde ocuparia um cargo no Departamento de Rádio e Televisão da entidade, lembra que o SESC abriu muitas portas para Soffredini por acreditar em seu potencial Programa de As Troianas, no Sesc e seu talento. Para a formação do elenco de mais essa tragédia grega, Soffredini foi ver o que estava acontecendo em festivais amadores de outros municípios – Ribeirão Preto, Araraquara, São Bernardo do Campo, São Carlos – e fechou a montagem, entre outras atrizes, com Selma Luchesi como Andrômeda, Eunice Mendes como Ékuba, Noemi Gerbelli e Beth Fontes, que interpretavam Electra. Era um pessoal novo interessado em fazer teatro sob a direção de Soffredini e que não tinha qualquer pudor em se submeter a testes. Apesar de ter lutado contra a família, que nunca lhe deu autorização para fazer teatro, Selma Luchesi trabalharia com Soffredini nas três tragédias gregas que ele montou – Electra, Prometeu e As Troianas – e não esconde o orgulho de ter sido dirigida pelo amigo: – Eu acho que a gente tinha um grande prazer em fazer teatro. Primeiro, porque eu era jovem e a linguagem teatral era uma coisa muito nova, tudo estava sendo testado. Você sabia que estava fazendo uma coisa muito boa, que ninguém ia fazer igual. O teatro era marcante por isso e eu fico orgulhosa de ter participado desse momento da carreira do Soffredini, que foi quando ele pôs a cara pra fora e lançou-se como um grande diretor, essa parte da criação artística, da criação mesmo, da pesquisa. Aquilo foi um marco, com certeza, depois disso é que ele começou com os espetáculos de autoria. Em As Troianas, a forma que Soffredini encontrou para mostrar a supremacia da cultura grega contra Troia foi comparar essa opressão com a cultura sul-americana sob o jugo do imperialismo. Sua leitura visual da montagem, portanto, era latino-americana, e como os figurinos criados por Gláucia Amaral representavam as culturas maia e asteca, os trajes das mulheres eram muito coloridos, com vermelho e azul, e joias artesanais foram especialmente desenvolvidas para as atrizes – os adereços eram considerados fantásticos. O espetáculo não ocupou o palco italiano, mas a quadra de esportes sociais, e o cenário era uma pirâmide asteca de cinco metros de altura. A exemplo de outras montagens assinadas por Soffredini, intensas pesquisas de indumentárias, tecidos, tons e cores antecederam as apresentações, bem como os laboratórios. Na peça, coube a Douglas Salgado o papel de Hidro: Na cena da minha morte, eu era carregado pirâmide acima num ritual, e o elenco de mais de 40 pessoas subia em cortejo. Eu usava uma máscara em metal maravilhosa, feita pela Gláucia Amaral, que era também artista plástica. Ele acredita que o mais famoso laboratório de Soffredini tenha sido dado em As Troianas: – Os atores tinham que tirar a máscara um do outro, então, foi uma manipulação pesada, perigosa, um lambia o outro pra tirar a máscara, foi terrível, houve reações histéricas, durou só três minutos o laboratório. Noemi Gerbelli também tem lembranças preciosas do espetáculo: Foi uma montagem maravilhosa. Os gregos usavam coturnos e a Helena de Troia ficava de coturnos em cima de uma gaiola. E tinha a Cassandra, que entrava de carrinho dentro da pirâmide. Eunice Mendes, que tinha ficado impressionada com Soffredini quando o conheceu em São Carlos e foi selecionada para a montagem, desembarcou em São Paulo para uma experiência que consideraria uma das mais ricas de sua vida. – Eu morava no interior, filha de militar com uma dona de casa, e vir para São Paulo foi como se fosse um outro jeito de viver, de enxergar a vida, todos tínhamos por volta de 20 e poucos anos e ficamos ensaiando no SESC. Tínhamos tudo ao nosso dispor: excelentes profissionais para figurino, cenário, iluminação, tudo. Nós ensaiávamos das 18 horas às 3 horas da madrugada e o Soffredini pegava o texto fala por fala, discutia o que a gente entendia daquela fala. Para Selma Luchesi, a montagem de As Troianas representou o inicio do CPT de Antunes Filho. Tudo era produzido por lá, dos figurinos, lindos, feitos à mão, aos cenários. O meu personagem usava um corpete de bronze bruto, bronze mesmo, todo talhado no machadinho, e uma saia comprida colorida, era lindo esse figurino. As Troianas ficou em cartaz pelo período estipulado, aproximadamente uma semana, e foi muito bem recebida pela crítica. Mas, depois dessa montagem, Selma Luchesi e Soffredini nunca mais trabalharam juntos. Ele ainda tentaria puxar Selma para integrar o Grupo Mambembe, mas sem êxito – ele confessaria a ela sua mágoa pela recusa ao convite – e os dois continuaram se vendo apenas como amigos. – A imagem que ficou desses anos todos, pro resto da vida, foi de aprendizado. Porque acho que sou um pouco parecida com ele, meio como irmãos, o mesmo perfil dele. Mas de tudo o que fiz no teatro, a minha grande emoção foi do que fiz com ele. Acima de Tudo, um Mestre Ao longo dos anos, eu sempre dizia que o Soffredini não era só um autor e diretor maravilhoso, mas um mestre. Porque ele sempre teve, e eu acho que era isso que o diferenciava dos demais, uma coisa do saber ensinar, de passar o conhecimento, e isso era tão natural que ele estava sempre dando aulas. Ele tinha uma ascendência muito grande sobre o grupo e não havia como não confiar nele, então, a gente se entregava cegamente aos laboratórios. Éramos muitos naquela roda e ele ou caminhava em volta da gente, ou sentava no centro, como um grande guru, o poço de sabedoria do qual a gente bebia . Lembro de uma vez que ele fez um laboratório e quando terminamos os trabalhos da parte da manhã, ele pediu que voltássemos do almoço com uma fruta. Nem perguntamos o porquê, levamos, e ele então mandou todo mundo sentar em círculo e com uma voz absolutamente melodiosa, orquestrada, mandou que cada um começasse a morder a sua fruta. No correr do exercício, foi aumentando as sensações, dizia que era uma situação de tensão, agora imaginem que vocês estão com muita raiva, estão se sentindo ameaçados, e foi num crescendo tão forte que passamos a comer com um ódio tão grande que não bastava mais só comer a fruta com raiva, a gente cuspia a fruta, virou uma guerra de fruta. Em um outro exercício, eu, literalmente, me senti cego, de olhos abertos eu olhava e não enxergava. Ele sugeria uma ação de um encontro com Deus, e esse deus era uma luz tão brilhante, tão forte que cegava, e no meu caso foi uma experiência tão forte que eu me senti de verdade cego. Era um trabalho maravilhoso, profundo, forte. Em outra fase, íamos assistir ao circo-teatro, que era feito com pouquíssimos recursos. O próprio despojamento da produção, a pureza, a não pretensão dos atores emocionava, era comovente, e os textos eram lindos. Para nós que éramos artistas e que procurávamos a emoção, a pureza, era muito bonito. Você aprendia coisas tão simples, tão básicas, porque os circos eram literalmente famílias. Aqueles trabalhos passavam de geração para geração, o vilão era o vilão a vida inteira; a senhora fazia sempre a mocinha extremamente ingênua e pura. São arquétipos, mas feitos de maneira tão pura que você embarca na historia. E tem os truques, o caixão que fecha a tampa e a atriz de repente aparece subindo, você até escuta ela sair dali, mas acredita e quer acreditar na cena porque eles fazem com amor. Depois íamos conversar com eles, o Soffredini conduzia a conversa; era o popular que ele buscava e ele era especialista nisso, eram depoimentos muito ricos. Ele adorava essa cadência de três coisas. A musicalidade de três elementos sonoros, sendo frases ou palavras, vira uma cadência, um jargão, uma marca. Ele brincava disso nos ensaios, falar três coisas de som parecido como recurso. Usava isso não só nos nomes mas nos textos. Já era da dramaturgia dele, marca registrada dele, exemplo: ponto cruz, rococó, arremate. Dom Quixote era recheado de coisas assim. O Soffredini era um autor de recursos, qualquer coisa que escrevesse era poético. Ele fazia uma lista de compras virar poesia, e essa coisa poética permeava o espetáculo todo, era um popular muito rico. Dom Quixote era um folhetim extremamente benfeito e irresistivelmente saboroso, dava prazer enorme em assistir. Eu pessoalmente não estranhava, porque a preparação tinha sido tão benfeita, a mudança tão bem estruturada, que a gente sabia por que estava acontecendo e o que buscávamos. Ele sabia e passava para nós, então nós compreendíamos e fazíamos de forma relaxada, gostosa, porque não tinha um rigor, o mesmo rigor cênico e de marcação do Prometeu e das Troianas. Não que agora esse não tivesse, mas as marcações agora eram muito soltas, pra fora, era mais divertido. Não era tensionado, era tudo muito relax, light, e como era picaresco, engraçado, era uma delícia de fazer, além do que a reação da plateia sempre era extremamente positiva. Se no Prometeu os espectadores ficavam vidrados, magnetizados e quietos, sem reação sonora nem movimento, a energia que vinha da plateia era densa, pesada, no Mambembe era ao contrário: a plateia participava, ria, torcia, reagia, gritava e isso pro ator é uma delícia. Uma vez, em um bar, eu falei que era um ator dramático, que só gostava disso. Ele me disse: – Celso, o seu negócio é comédia. Começamos uma discussão porque eu não achava isso e anos depois, percebi que os personagens que eu fiz e que deram muito certo eram absolutamente cômicos. Voltei a trabalhar com ele em 1997 em Cindy, o Freje. Parecia que não tinha passado tanto tempo, talvez pela amizade, pela admiração que eu sempre tive por ele como artista. Foi tão bom como se tivesse sido ontem, a gente nem envelheceu. Pra mim ele continuava tão instigante, provocativo e desafiador como há 30 anos. Continuava sendo pra mim um mestre. Ele tinha um toque especial, desde sempre eu soube disso. Ele foi um dos, senão o melhor, diretor e autor que este país já teve de teatro. Não há um texto dele, mais simples que seja, que não tenha poesia, não tenha uma mensagem maravilhosa, uma cadência, uma musicalidade. É um material tão rico que cada parágrafo é uma sequência inteira de cenas, ninguém faz. Celso Batista ator Relembrando Soffredini Conheci o Soffredini no final dos anos 1960, por ocasião da montagem de Vestido de Noiva, pelo TEFFI – Teatro Escola da Faculdade de Filosofia. Eles haviam contratado o Celso Nunes, recémsaído da Escola de Arte Dramática para dirigir o texto de Nelson Rodrigues. No elenco, além do Soffredini, figuras que hoje se destacam no teatro profissional brasileiro: Ney Latorraca, Jandira Martini, Eliana Rocha, Jonas Melo, entre outros. Acompanhei toda a sua trajetória na montagem de dois de seus textos, selecionados para o Festival de Nancy, na França. Posteriormente, comemoramos sua vitória no Concurso Nacional de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, com seu texto Mafalda. Ele começava a despontar no cenário nacional. Assisti sua montagem de Electra, para o Teatro do Colégio, que chegou à fase final do Festival Estadual de Teatro Amador, realizada em Ribeirão Preto, em 1971, conquistando o terceiro lugar. Lembro que fizemos uma apresentação às seis horas da manhã, no teatro grego da Cava do Bosque, acompanhando o nascer do sol, bem ao gosto dos gregos. No ano seguinte, Carlos Alberto Soffredini foi contratado pelo Teatro Estudantil Vicente de Carvalho para dirigir Prometeu Acorrentado. Uma encenação avançada que mereceu os melhores elogios da crítica santista e paulistana. Com essa montagem, Soffredini recebeu a segunda colocação no Festival Estadual de Teatro Amador de São Paulo, realizado em São Carlos. Foi aí que tivemos a oportunidade de trabalhar juntos. Ele como encenador e eu como produtor, com excelentes resultados cênicos e de revelação de atores e atrizes. Essa montagem o levou definitivamente para São Paulo, onde se consagrou com o espetáculo Na Carrêra do Divino, e onde desenvolveu brilhante trabalho até seu falecimento. O que lamento é que a cidade de Santos, seu berço natal, ainda não tenha prestado a ele a homenagem de que se faz merecedor. Mas nunca é tarde para que ocorra e, quem sabe, em breve acontecerá. Carlos Pinto secretário de Cultura de Santos O Teatro como um Espaço Sagrado Eu estava em São Carlos, era a eliminatória de um festival de teatro, quando o vi entrar em um restaurante. Ele era magro, alto, usava uma roupa branca e naquele momento parecia um deus do Olimpo, um deus mitológico, eu fiquei absolutamente fascinada pelo olhar dele, extremamente penetrante, pela voz, que era muito forte, e pelo jeito de tratar as pessoas. Ele então viu meu trabalho na peça Aquele que Diz Sim, Aquele que Diz Não, do Brecht, e me perguntou se eu tinha interesse em um trabalho amador que seria montado pelo SESC em seis meses. Eu fazia faculdade em Ribeirão Preto e logo disse sim, eu não queria nem saber, só sabia que queria trabalhar com aquele homem, aquele ser humano que tinha me transmitido uma luz tão forte. Hoje se fala em luz de um jeito banalizado, mas a presença dele nunca foi banal. Era luz mesmo, uma presença muito forte, uma coisa física, da disciplina física, de energia mesmo. O trabalho com o Soffredini em As Troianas representou pra mim um salto para a maturidade. O fato de ele ter acreditado em mim tinha uma importância tão grande que era como se ele pegasse a minha autoestima, que estava permanentemente ao rés do chão, e falasse: Você pode. Foi o primeiro trabalho coletivo do qual participei e pude apreender o que era trabalhar um texto, o que estava embaixo do texto que não aparecia, o que era usar a voz, porque nós tínhamos aulas de tudo, um trabalho de jogos teatrais. Ele trazia essa magia dos jogos pra você interagir, pra aceitar e compreender como era o outro, trabalhar em grupo. E então, quando ninguém falava em grupo, em liderança participativa, ele já fazia isso e deixava as pessoas abusarem da criatividade, não gostava da mesmice. Foi aí que comecei a gostar de trabalhar em grupos, foi aí que comecei a gostar muito de teatro, de só fazer teatro sério. Até hoje, quando entro no SESC, sinto um aperto no coração, aquele cheiro de cloro da pis ci na entra nas minhas narinas, é um cheiro de coisas bonitas que fiz na vida. E estar no meio daquelas pessoas pela primeira vez foi absoluta men te mágico. Cada um tinha seu papel, mas todos buscávamos essa questão da equipe. Era um trabalho muito concentrado, os conflitos eram resolvidos ali mesmo, com todo mundo, e o que eu achava mais bonito era a minúcia do trabalho, acho que foi a primeira vez que vi um trabalho visceral. Porque o Soffredini tinha uma coisa que se chama paixão, era uma paixão que parecia transpirar dos poros dele e ele fazia com que nós também sentíssemos essa paixão, era como se a paixão dele cutucasse a paixão do outro pro outro criar. E ele tinha esse poder, de apertar um botão pra você trazer aquilo que tinha de melhor. Ele me dizia: Eunice, olha a vida, olha o chão, olha o trabalho. Ele me trouxe a paixão, a garra. Ele dizia: – Teatro tem que ser com alma, você não pode deixar a alma deitada em casa, e até hoje eu carrego isso. Ele construía no espetáculo dele imagens, ele sempre foi de muita imagem, então, não era só um texto lido burocraticamente, aquilo tinha vida, tinha alma. Aprender, ficar lá, ficar insegura, era um turbilhão de emoções, era uma coisa de vida ou morte. Ou você fazia uma coisa com paixão e vida ou era espirrado do grupo. Ali parecia que havia um imã, um elo que ligava todas as pessoas em nome de um objetivo e esse objetivo era sagrado. Tenho certeza de que o Soffredini me fez ver o teatro como um espaço sagrado, onde você só podia estar inteira, porque era preciso lidar com esse sagrado, era como se tivéssemos que entrar de joelhos nesse espaço parecendo penetrar no terreno dos deuses. E não podia dar menos porque os deuses não te perdoariam mais. Ele tinha essa paixão, gostava muito de trabalhar com as coisas fortes, parece que essas coisas menores não entravam na vida dele, ele queria sempre o mais, o mais, o mais. Eunice Mendes atriz Quebrando Todas as Regras Prometeu era um grande sonho da vida do Soffredini, ter um grupo forte com que pudesse trabalhar com a estética em que acreditava, ele era uma pessoa visionária. Esse grupo éramos nós, uma taba, uma congregação. Hoje em dia não tem mais isso, essa paixão pelo teatro que ele nos colocou na época. A gente ensaiava no centro de Santos, numa salinha, todo mundo pelado, era uma orgia mesmo, porque ele foi ao máximo do Dionisíaco, estilo Zé Celso Martinez Corrêa em 1970, era o experimento. Os soldados tinham cena se masturbando, literalmente, era muito louco. A mulher não era a sedução, ele via o feminino muito delicado. As mulheres, ele tratou sempre de uma maneira muito delicada, e sempre bem retratada como a guerreira, mãe, aquela que apoia, a grande mãe terra. Prometeu Acorrentado foi o espetáculo mais underground que ele fez, porque arrebentou tudo o que podia, ele pegou uma obra clássica grega e desmanchou tudo. Além dos doze Prometeus, ainda colocou em cena um Prometeu mulher, a Ângela Rodrigues, que ficava amarrada, os seios nus, aquilo foi um escândalo, tanto que a censura obrigou a Ângela a vestir uma malha e os rapazes a usarem tapa-sexos. É claro que depois a gente tirava tudo aquilo. Porque a gente trabalhava com o teatro laboratório de Grotoviski, quer dizer, o ator santo. Os Prometeus estavam nus, e a gente suava e ficava todo mundo se pegando porque tinha essa coisa visceral, brutal, não era um espetáculo limpo. Então, o público respirava junto com a gente, era um espetáculo que pulsava, mexia muito com as ideias. A catarse era muito forte, e isso provocava na plateia uma reação esperada. As pessoas ficavam indignadas, ele dizia que a gente tinha que aproveitar a catarse da plateia, respirar junto com ela até que ela respire com você, isso a gente nunca mais esquece. Era um experimento mesmo. Naquele momento o Soffredini parecia estar quebrando todas as regras dele como artista, acho que ele queria começar uma nova fase. O SESC, As Troianas, vieram exatamente para resgatá-lo daquele momento, foi o grande amadurecimento dele. Ele poderia ter seguido o caminho do Zé Celso, mas não seguiu, porque era uma pessoa de extrema inteligência, ávida por conhecimento, por fazer um trabalho antropológico mesmo, com toda essa história das pesquisas que começou em Electra. Ele foi se enredando pelo caminho da pesquisa pura mesmo, sociológica, antropológica, de linguagens, de estéticas e tudo. A gente trabalhava em cima de uma proposta e não era de qualquer jeito, era tudo dirigido. O Prometeu vai nascer, ele nasce, esse ser vai nascer, é o ser novo, o ser que vai ver a luz, vai ter o conhecimento. Ele sabia exatamente o que estava fazendo na cena que ele queria, só que aplicava o laboratório criação coletiva e amarrava isso cenicamente. A gente já tinha o processo, era laboratório puro, junta o grupo todo, somos crianças, cada um vai procurar o seu eu interno mais puro, saiu do útero da mãe. Então, na cena em que o Prometeu era um ser humano sendo parido, literalmente, a gente fazia um útero, a gente paria. Na cena do parto estava todo mundo junto, abraçado, amarrado, sofrendo do parto, e o ator saía e se jogava. Selma Luchesi atriz Capítulo VI Diretor na EAD Carlos Alberto Soffredini voltaria à Escola de Arte Dramática em 1974 para dirigir uma de suas paixões: Garcia Lorca, o maior poeta das línguas hispânicas. A produção da EAD para a peça A Casa de Bernarda Alba – que fala de repressão ao mostrar o luto decretado pela viúva Bernarda Alba às cinco filhas jovens e virgens, por um período de oito anos – é considerada por grande parte do elenco muito feliz graças ao visual – cenário e figurino – assinado por Irineu Chamisso Jr., um eterno parceiro de Soffredini, e Eurico Sampaio, com quem Soffredini estabeleceria um forte relacionamento pessoal e profissional. Dizia Soffredini que sua ligação com Garcia Lorca tinha começado na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, durante as aulas de literatura espanhola e hispano-americana da professora Maria Helena Martins: – Ela me marcou muito, eu adorava as aulas dela, eram fantásticas. Uma vez, ela resolveu abrir para o segundo ano um curso de férias sobre Garcia Lorca. Eu fui falar com ela, queria fazer o curso e ela deixou numa boa. E ela me ensinou Garcia Lorca, me ensinou a ler, a ver Garcia Lorca, terminei lendo o Lorca inteiro e tenho uma influência muito grande dele, essa coisa com mulheres muito fortes. Maria Helena me levou pro Garcia Lorca, pra dramaturgia, e Myrian Muniz pro diretor, pro ator, pro palco. Maria Helena Martins, pelas observações de Ney de Veneziano, tinha sido colega de Cacilda Be cker e ensinava literatura de um jeito não convencional. – Ela não nos ensinava a vida dos autores, ela nos fazia ler a obra e nos pedia para contar a história. Era um processo que nos fazia viver a história e ficava uma coisa meio dramática mesmo. Ela começou a nos fazer entender literatura. Outro apaixonado por Garcia Lorca era Wanderley Martins, que foi fazer a Escola de Arte Dramática sem maiores pretensões, por gostar de música e literatura. A exemplo de Soffredini, era também encantado por Myrian Muniz. – A Myrian nos deu, no primeiro ano, um banho de Garcia Lorca e nos ensinava a cantar as músicas tradicionais dele, que, além de dramaturgo, poeta, encenador e teórico, escrevia ou recolhia canções. Lorca era parceiro do Manoel de Falla, um grande maestro na Espanha que trabalhava com o teatro folclórico espanhol e que montou muito Lope de Vega, Calderon de la Barca, os clássicos. Dentro de uma dessas peças tem o personagem do Dom Perlimplim, que é bem conhecido, e a Canção de Beliza, tirada de um poema de Lope de Vega que o Calderon escreveu praticamente sobre a poesia da velhice, uma música muito linda. Quando a Myrian nos passou esse material fascinante, indicou que havia uma coisa faminta nele, que pra mim era uma novidade. No nosso 2.º ano, conhecemos o Soffredini, que foi aluno da Myrian, e que sugeriu trabalhar com o Lorca. Como a nossa classe era mista e bem dividida – doze mulheres e onze homens – e estávamos todos interessados no universo lorquiano, feito só de personagens femininos, montamos A Casa de Bernarda Alba, em que eu fiz a Poncia, porque todos os papéis eram interpretados por homens e mulheres. Era uma continuidade das pesquisas que o Soffredini vinha fazendo desde a encenação de Prometeu. Como não havia espaço para a encenação – era uma sala retangular com um chão rebaixado que os atores chamavam de piscina – nem dinheiro para construir cenários, a concepção do espetáculo foi criativa ao extremo e aparentemente muito simples. Um enorme pano preto, apoiado em uma trave, servia de cenário e figurino meio entrelaçado, na medida em que vestia não só Bernarda Alba mas todos os demais persona gens. As cenas aconteciam embaixo e em cima daquele pano preto que representava reclusão, e os atores brotavam nos rasgos, com objetos e roupas coloridas em contraponto ao luto. Era uma atmosfera opressiva e dramática cercando a sala, e uma trilha sonora subterrânea foi criada pelos atores, que cantavam as canções ensinadas por Myrian Muniz no 1.º ano da EAD eles aprendiam a tocar castanholas e a dançar flamenco, inclusive. Ele fez um suporte de madeira grudado em uma das paredes e de lá vinha um pano que cobria todo o chão – diz Flávio Dias, que trabalhou na peça. De repente, aquele rasgo era muito grande, então você puxava o pano e botava na cabeça, como um xale que prendia o elenco inteiro e todos ligados a Bernarda no centro. De repente, o pano descia para a cintura e virava uma saia. Era impressionante. Então se comentava que com um pano, o Soffra fez uma montagem inesquecível. Rolava até comentário com ciúme dizendo que o melhor ator do espetáculo era o pano. Soffredini trabalhou em A Casa de Bernarda Alba com o sistema de dobra, ou seja, cada personagem era feito por vários atores, homens ou mulheres. Cinco faziam a velha Josefa. Isso permitiu que o elenco participasse ativamente do processo, criando inclusive sons e instrumentos. Era um diretor profundamente personalista e autoral e, na verdade, com um processo de trabalho coletivo, uma marca pessoal. Enquanto uma parte do pessoal ensaiava uma cena, outro grupo confeccionava adereços. O elenco não parecia preocupado em fazer papéis, mas sim em ajudar no que fosse preciso. O Lorca era reconhecido como um autor político e estava muito em evidência na época conta Mauro de Almeida, um dos atores da peça – Então, fazer Lorca era não só uma opção perfeitamente viável, mas também um ato político, uma forma de a gente se posicionar dentro da nossa situação – estávamos em plena ditadura Médici. O Soffredini criou uma coisa forte, emocional ao extremo, ninguém imaginava um Garcia Lorca daquele tipo. Era a Espanha, era o luto, era o Lorca, o sangue correndo, era uma peça de tecido vermelho que rolava como sangue e brotava como que da terra. E Bernarda Alba era a própria história do Lorca, da sua luta. Na nossa montagem, era o tom político que prevalecia, que pra nós era o mais oportuno, o mais necessário naquele momento, que também nós estávamos vivendo no Brasil. Falávamos também de seres humanos, gente com desejos não atendidos, sonhos não realizados. E além da peça já ter esse tom emocional exacerbado, ha-via a nossa emoção de estar fazendo um teatro que achávamos que era de luta: como é que a liberdade podia ser tão negada, tolhida, aviltada em nome sabe-se lá do quê? Para Mauro de Almeida, a montagem de A Casa de Bernarda Alba foi uma das mais belas encenações que ele já viu. – O Soffredini era genial nessas coisas, brilhante, as pessoas viram um grande espetáculo, não porque o elenco tivesse bons atores, que éramos alunos, mas pela concepção do espetáculo, fantástica. Quando terminou a estreia, o pano vermelho cobria o pano preto, o Paulo Betti, que estava na arquibancada, saltava no ar gritando bravo!... essa é a imagem que eu tenho, uma loucura. Susana Lakatos, amiga de toda uma vida de Soffredini, interpretava Adela, a filha mais nova e mais corajosa de Bernarda, a única que se rebela contra as regras daquela sociedade opressora e foge para lutar pelo amor de Pepe Romano, na verdade, a paixão de todas as irmãs. – O verso do leque da Adela era colorido, com flor verde e vermelha, ela é quem traz cor. Dava pra perceber que o Soffredini, como diretor, trazia o dramaturgo, porque fez através da imagem uma leitura clara do que o personagem representava. E quando a Adela percebia que o Pepe Romano tinha morrido, ela gritava e o pano preto subia, era como se ela voltasse pro breu de onde veio. Era uma coisa maravilhosa da paixão, da vida, de onde brota a vida, e éramos todos novos, a vida acontecendo, brotando – continua Susana. Então, tudo o que se estuda dessa coisa da inversão era isso, era o negro e a cor, a paixão estava na cor. Na hora que aparecia a louca, Maria Josefa, no fim, ela vinha com uma saia verde com flores vermelhas e flor na cabeça e esse era o mesmo figurino da Adela quando matavam o Pepe Romano. Que era a morte da Adela também, ela voltava pro preto, e o Soffredini configurava junto com a paixão, porque ela não ia seguir o sistema. O Lorca era genial por causa dessas coisas, e o Soffredini também, de igual tamanho. Então, se ele pegasse o Lorca na mão, ficava esse tanto de preciosidade. Era vida, era essa coisa da inversão, do que te faz repensar, do quanto que míngua, do quanto que morre, do quanto que fica preto, então, então ele estava escrevendo junto com o Lorca, ainda mais junto com o Irineu, que sabia transformar isso em imagem... O depoimento emocionado de Susana confirma a paixão que Carlos Alberto Soffredini tinha pela obra de Federico Garcia Lorca: – O Lorca era a bíblia dele, o livro de cabeceira, ele dormia com o Lorca. Era uma coisa forte, só sabe fazer Lorca quem tem essa paixão, como o Carlos Saura, o cineasta, e o Soffredini. Em 1978, já morando na Bahia, ele montaria no Teatro Castro Alves, de Salvador, Yerma que, ao lado de A Casa de Bernarda Alba e Bodas de Sangue, completa a trilogia de Lorca. Yerma é um texto trágico escrito em 1934, dois anos antes de o dramaturgo espanhol ser fuzilado pelo regime de Franco. Em 1975, a mesma turma da EAD voltaria a convidar Soffredini para dirigir seu espetáculo de encerramento de curso. Ele então dirigiria uma montagem bastante polêmica, a de Yabu no Naka – Rashomon, um texto literário de Ryunozuke Akutagawa que foi transformado em uma peça de teatro nô, com cenários e figurinos muito ricos e elaborados, assinados por Irineu Chamiso Junior e Eurico Sampaio. Proibida logo após a estreia por causa dos nus em cena, era uma história sobre versões reais e versões mentirosas de um caso de estupro, com quatro confissões e três depoimentos. – Era o primeiro nu dentro da EAD e achavam que o Soffredini, que já era o enfant terrible, queria provocar – diz Mauro de Almeida, que estava no elenco. Ele queria o nu natural, total, era uma coisa muito nova, fazia parte da ideia Cenas de Yerma, montagem do Teatro Castro Alves, Salvador dele, porque ele era irreverente, não se curvava, não queria nem saber. Mas, recuperado o choque de todo mundo ficar nu em cena, que era traumático pra gente como ator, o espetáculo era belíssimo, de uma plasticidade incrível. A Renata Pallotini (Diretora da EAD) foi chamada a intervir e a peça saiu de cartaz no dia seguinte ao da estreia. A sugestão de montarem Rashomon foi do próprio Soffredini, atendendo às expectativas do grupo de melhor conhecer uma das formas teatrais japonesas mais famosas, o teatro nô, simbólico e esquemático, feito de poucos atores, movimentos lentos, a economia e exatidão dos gestos, as máscaras para indicar seus papéis. A montagem foi antecedida de extensos contatos e pesquisas feitos no bairro da Liberdade, junto a estudiosos do assunto pertencentes à colônia japonesa e que se propuseram a dar aos atores aulas sobre o teatro kabuki e o nô, dança do leque, a luta dos samurais, os instrumentos típicos e a maquiagem que caracterizam aquela performance. – A pesquisa começou com o teatro nô, e a Fundação Cultural do Japão abriu um leque de possibilidades – diz Eurico Sampaio. A gente viu muita coisa do teatro nô, mas o kabuki tem uma relação mais forte com a cultura brasileira. O nô é um teatro mais clássico, o kabuki é mais popu lar. O Rashomon era a conclusão das pesquisas do Soffredini sobre o teatro oriental. Mauro de Almeida também fala dessa montagem, dizendo que, com ela, Soffredini foi um exemplo para toda a escola: – Nós não conhecíamos nada daquilo, daquele teatro ritualizado, e ele tinha noção do belo, do espetacular. Transformamos aquela sala retangular em um tablado lindo, com madeirinhas, e tentamos incorporar o que víamos, usar e trabalhar com aquela estética, chegar o mais próximo possível da verdade daquele texto usando aqueles elementos, e não fingir que éramos japoneses. Fazíamos muitos exercícios corporais, musculares, individualizando cada movimento. Levamos ao palco esse jeito de ver e de fazer o gestual. Ele nos dizia que a ferramenta do ator é o corpo e como a peça girava em torno de um interrogatório, onde as pessoas davam suas próprias versões de um crime, o Soffredini nos fazia mexer o rosto insistentemente. Flávio Dias conta do processo de trabalho e da música de Rashomon: – Tudo era medido, cronometrado. As músicas do Wanderley Martins eram todas elas metodicamente marcadas em ritmo e tamanho para uma se sobrepor a outra. Eram quatro músicas que se complementavam, era a mesma melodia, só mudava a letra. Tajomoro é o bandido que mata o marido e estupra a mulher. Ele era feito por três atores. Eu era o mais romântico, o Mauro era o guerreiro e o Wanderley Martins era o terceiro, o ladrão. A mulher era Massago, feita por três atrizes, e o marido também era interpretado por três atores. Os Tajomoros tinham um quimono azul marinho, os maridos vestiam quimono azul claro e as mulheres um quimono longo, até o joelho, lilás. O tom geral do espetáculo era nessas três cores e quando a luz batia, ela já era preparada para explodir em cima da cor. No fim você via aquele grupo de ocidentais fazendo uma peça oriental, a maneira de andar, de se comportar, de cantar, a boca chiusa... Susana Lakatos, que estava no elenco, fala da nudez da peça que tanta celeuma provocou: – Na Casa de Bernarda Alba, eles proibiram os seios de uma das atrizes, e o Soffredini, embora chateadíssimo, acatou. No Rashomon a gente ficava nu mesmo, porque tinha uma hora, a da verdade indiscutível, em que existe o estupro – é um fato e o fato é indiscutível. E quando era uma coisa de fato, que era uma realidade, havia um trabalho de exatidão que a voz mudava. O que podia ser verdade ou podia ser fantasia era outra alteração, como se outra atriz estivesse falando, como uma voz interna que a gente tem. Era uma coisa inovadora, com um trabalho psicológico por trás disso, do que é verdade ou mentira, desse trabalho de voz interna, era lindo. E o fato indiscutível que acontecia era o estupro, e o Soffredini colocou o estupro em cena, quem fazia eram o Flávio e a Marina, que eram casados. Na hora do estupro, o elenco inteiro entrava e abria o quimono branco e por dentro o quimono era vermelho, tingia tudo de vermelho, e era o final de um ato, todos nus. Nessa cena, a gente nem se olhava na cara, todo mundo só se relacionava da cabeça pra cima, todo mundo morria de vergonha. Mas era uma ideia e tanto, e a gente resolveu batalhar por ela porque tinha uma função muito forte, não tinha outro jeito pra mostrar isso. O elenco não acatou a proibição imposta por Renata Pallotini, do nu em cena. Brigou muito pela ideia proposta por Soffredini, tirou a peça de cartaz e teve que se contentar com uma nota qualquer para passar de ano, porque Rashomon seria o espetáculo de formatura da turma. No entanto, por pressão de quem não tinha visto o espetáculo e queria ver, o grupo foi praticamente obrigado a fazer uma nova sessão no Teatro Ruth Escobar, que não saiu como o previsto. Conta Flávio Dias sobre essa apresentação: Fizemos uma apresentação para a classe no Ruth Escobar, morrendo de medo. A gente sabia que aquele teatro era vigiado direto – manhã, tarde e noite. A polícia poderia criar algum problema independente do nu explícito que tinha no espetáculo. Não sei exatamente qual foi a situação, mas me magoou muito não ter levado esse espetáculo adiante, teria sido um marco. Quando saiu da Escola de Arte Dramática, Susana sentiu-se desamparada. Aqui, seu desabafo: – A sensação era que tinha acabado tudo, porque eu não tinha pique pra sair e batalhar peça, ficar famosa. Pra mim não era isso o que interessava porque o que eu gostava era o que eu tinha feito na EAD com o Soffredini, essa coisa de pesquisa, do Lorca. Pra mim então tinha acabado, depressão geral. Até que ele me chamou pro Mambembe. Trabalhamos juntos muito mais vezes e até a morte dele a gente se telefonava, ficava madrugadas conversando. Tudo o que ele escrevia ele me mandava pra ler. Era uma honra porque ele queria saber o que eu achava, a gente fazia confidências de amigos, irmãos. Porque o Soffredini era e sempre foi a minha possibilidade de ter vida inteligente nessa encarnação, ter o que falar, ter graça, ter profundidade, pensar a mesma coisa. Um Gênio na Análise Política, Lírica e Social de Texto Por pouco fico sem minha história com o Soffredini, porque logo que entrei na EAD, em 1971, fui exilado por causa das minhas atividades políticas. Voltei escondido em 1972 e fui procurar as autoridades, dizendo que eu queria terminar meus estudos, que não tinha mais nenhuma atividade política e que pretendia seguir carreira fora do País. Maior mentira, mas... ator, né? Então, voltei para a EAD e no segundo ano o diretor convidado era o Soffredini. A montagem de A Casa de Bernarda Alba foi um arraso, porque tinha um cunho político muito tenso, a peça falava sobre poder. E o Soffredini, que realmente era um gênio na análise política, lírica e social de texto, fez uma montagem com elenco misto, a cada vez que a situação era política, era o homem de cada personagem quem assumia. Estávamos cercados de competência e de qualidade, não tinha como não ser bom. Com o Soffra nós aprendemos o ABC do teatro: entender, analisar e decupar o texto, entender cada personagem e a força deles. Posso dizer que nunca fiz um trabalho tão elaborado, perfeito e compacto quanto em Rashomon. Acredito que ele também estava pesquisando para achar um caminho, pra transformar a narrativa em dramaturgia, e que resultou numa coisa impressionante. No teatro nô, os personagens entram individualmente, um a cada vez, e você fica parado diante da plateia, os movimentos são repetitivos. Então, a mecânica da plástica, a gestualidade do espetáculo tinham que ser idênticas, você não podia errar. Havia a garantia de que fora preservada a gestualidade daquela cena quando ela foi concebida. E trouxemos isso pro palco. Tudo era medido, cronometrado. As músicas eram todas elas metodicamente marcadas em ritmo e tamanho para uma se sobrepor à outra Eram quatro músicas que se complementavam, ficava a mesma melodia, só mudava a letra. Não tinha um que não ficasse com a boca aberta, era deslumbrante e perfeito, nada fora do lugar. O Soffredini arrancava o personagem de dentro da gente. A força dele estava nisso, em realmente trabalhar o ator. É isso que ele nos dava, você era obrigado a entender aquilo que você estava fazendo! Ou então você estava no lugar errado. É o que ele sempre dizia. Foi no Rashomon que talvez eu tenha ficado maravilhado com ele Era uma história baseada no comportamento e na atitude filosófica do próprio povo japonês. Durante o Projeto Mambembe, nós fomos ao Circo Bandeirantes, onde havia um espetáculo diferente a cada noite. Então, a gente assistiu A Maldição do Lobisomem, Maconha, a Erva Maldita, O Céu Uniu Dois Corações. O Soffredini dizia que tinha que montar essa peça, acho que foi isso que o estimulou a escrever Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu. Porque ele queria escrever alguma coisa que tivesse um caso de amor, que terminasse com um coração enorme de papel crepom no meio do palco, que é da cultura tipicamente brasileira. A quantidade de estampados usados no palco do circo-teatro era impressionante, não tem nada mais popular que isso, é a coisa do estampado. Os tecidos coloridos, telões, sofás, você tinha três sofás em cena e cada um com uma estampa diferente, eles botavam o que tinham. No dia seguinte mudava a peça, mas o mobiliário era o mesmo. No Quixote, eu e o Rubinho, que basicamente estávamos em cena o tempo inteiro – o Sancho Pança e o Dom Quixote –, fomos descobrindo aos poucos a triangulação. E o Rubens desenvolveu uma técnica de me marcar em cena muito engraçada. Ele parava do meu lado e pisava no meu pé. E ele botava o pé, não era por sacanagem, mas sim pra saber onde eu estava. Por isso a gente se sacaneava em cena o tempo inteiro, eu fugia dele e ele de mim. Quando fomos nos apresentar no SESC Brasília, a criançada fez uma algazarra tão grande que a gente não conseguiu falar o texto. E então ficamos eu e o Rubinho fazendo a mímica, como se estivéssemos falando alguma coisa, a gente só fazia o gestual. Tinha umas 400 crianças, fora os adultos. E teve um dia em que um cara arrancou o pano que ficava em volta do palco pra ver as meninas se trocando. Eu puxei a espada, a Susana gritando: Nãaooo, Flávio!, Olha que atitude mais impensada, é aquela relação de você proteger o seu grupo. Não era à toa que a gente era apaixonado por ele, era muito séria a pesquisa que ele fazia em todas as instâncias. Ninguém foi pro palco sem saber o que estava fazendo. Não tinha um ator sequer inconsciente e também o cara que estivesse se sentiria deslocado, porque a função imediata não era brincar de fazer teatro, era fazer teatro e com tudo, com alma. Flávio Dias ator O Surto Criativo Naquela época havia uma escola de direção meio tirânica, meio impositiva, o poder dos diretores era absoluto. Foi um período em que o teatro tinha diretores, os espetáculos eram de direção. Então, quanto mais violenta fosse a relação ator e diretor, melhor você achava que um diretor era. Uma das formas de avaliar um diretor era ver o quanto ele socava e humilhava pra sacar emoção do elenco. O tom dramático do Soffra sempre foi alto, ele nunca foi um cara de meio tom e a gente pedia isso, a gente estava na fase de aprendizado e confiava, não tinha outra proposta pra discutir com ele. Quando você tem experiência e trabalha numa produção, contesta a direção quando não sabe aonde ela quer chegar, como quer conduzir. Mas naquela fase a gente não tinha conhecimento técnico nem bagagem de vida pra objetar nada e, além do mais, o que a gente via sendo realizado era maravilhoso, não cabia discussão. O teatro naquele período era muito restrito, tinha uma função muito especifica de debater a ditadura, e qualquer tema, por mais complicado que fosse, tinha como objetivo falar de liberdade de qualquer forma, era nosso dever. A gente, então, pra assumir essa responsabilidade, confiava muito na direção. Era o teatro ideológico e nem cabia muita discussão interna. Todo mundo tinha fechado com a ideia daquele trabalho, daquele espetáculo, com aquele cara dirigindo, não havia por que brigar. Fazíamos trabalho de mesa, no mínimo, uma semana de trabalho de mesa. Discutia-se muito o texto, o personagem, o que ia dizer, o que estava envolvido, para que quando a gente levantasse já estivesse mais ou menos encaminhado, porque a ideia era sempre ampliar, sempre mais. O Soffredini cobrava e isso era bom, ele foi o melhor diretor que tivemos e o melhor que a gente podia ter arrumado. Ele não gostava que as pessoas vissem o espetáculo enquanto estava sendo ensaiado. E foi o único diretor, na minha vida – e trabalhei com o Vignatti, Ruy Guerra, Silney Siqueira, Gianni Ratto –, que eu via o momento do surto criativo. Tivemos uma sorte muito grande de pegar o Soffredini para trabalhar conosco. Tinha o tesão de estarmos juntos fazendo. A gente sabia que aquilo era bom, bonito, muito criativo, comparando com o que se fazia na época. A gente sabia que era muito especial, que não era um teatro sem compromisso. O Soffredini era o diretor da invenção, da criação. Essa invenção que a gente vê hoje, e que é aclamada como espetacular, ele já tinha. Com ele ficamos sabendo que o teatro é uma coisa sacrificada e você tem que estar muito determinado e empenhado pra fazer. Mauro de Almeida ator A Profundidade da Dimensão do Ator Tanto quanto o Soffredini, eu fui privilegiada por ter feito interpretação na EAD, com a Myrian Muniz. Muita gente detestava as aulas dela, diziam que era maluca, que berrava, desestruturava as pessoas, mas essa profundidade da dimensão do ator, o Soffredini aprendeu com a Myrian Muniz., Ela tinha isso e isso morre com ela, que sabia enfiar a mão a buscar das trevas e inverter, pegar da sombra e trazer pra luz. E como ela não me desmontava, eu me construía, tinha a possibilidade de subir mais um degrau, uma oitava acima. Era como se a Myrian e o Soffra conseguissem me dar a mão para me fazerem mudar de oitava, pois sozinha eu não ia conseguir. Eles tinham esse talento e essa química comigo... Ele era uma estrela, e as pessoas faziam o que ele queria. Foi criticado por isso, porque tratava as pessoas feito bonecos, mas pra mim não era assim, ele não destruía nada em mim, só construía. Então, a Myrian também foi uma perda irrepa rável porque são os valores que estão indo embora, e o que ela sabia fazer era mudar as pessoas de oitava, era trazer a energia subsutil, era mudar, preencher, te puxar pra uma outra oitava mesmo , mudar de degrau, subir, é um trabalho de alma, é arte. E a Myrian Muniz, aos berros, do jeito que podia, foi a precursora disso no Brasil porque se atirava de corpo e alma a buscar o mais escuro da pessoa e trazer pra a luz a arte, o que ela tivesse de mais bonito. Os conhecimentos transmitidos a Soffredini por Myrian Muniz estavam na montagem de A Casa de Bernarda Alba. Ele deu mais profundidade aos personagens. Não que antes não tivesse uma pesquisa, uma direção de ator, mas a partir do trabalho com a Myrian Muniz, no Cândido, é que ele começa a entender o que é a direção de ator, como é que funciona, e aí ele une o trabalho de ator com um trabalho que ele já tinha de estética mesmo. Porque, visualmente, os trabalhos dele eram muito bons, ele tinha uma noção de estética muito importante, e os trabalhos eram muito bem contados, porque ele era dramaturgo e sabia o nó das cenas, conhecia todas as curvaturas de um texto. Em A Casa de Bernarda Alba, em uma cena eu tinha que entrar como a Adela, rindo, às gargalhadas, e eu não tinha noção de como se fazia, como era que se saía do seco e entrava. E nessa entrada ele gritava comigo pra eu gargalhar, eu sem referência, e dali a pouco eu comecei a gargalhar, num desespero, não sei de onde brotava. Eu ia trabalhar com o Soffredini completamente segura, porque o que eu não soubesse fazer, ele ia me dar a mão e puxar pra onde precisasse, por isso fiquei tão comovida quando ele me falou que eu podia fazer sozinha, que não precisava de direção. É aquela coisa do mestre que te leva pra onde ele está, pra poder mudar de lugar. Então eu virei diretora de ator dele para que ele pudesse mudar de lugar. É um trabalho de alma, é isso o que eu aprendi a fazer, é isso o que eu sei fazer, é isso que me construiu. Para mim era luz, era vida inteligente, e quando eu vejo que não há mais necessidade disso, parece que eu não tenho mais pra onde voltar. Porque com o Soffredini vivo, eu sempre ia ter pra onde voltar, porque alguma coisa eu ia ter pra fazer que tivesse sentido, que tivesse luz e que tivesse essa alma, essa vida. Suzana Lakatos atriz Incorporando a Música à Dramaturgia Em A Casa de Bernarda Alba, do Garcia Lorca, que montamos na EAD, o Soffredini escalou um elenco de mulheres para fazerem os persona-gens tradicionais – Bernarda, Poncia, as cinco filhas – e também de homens. Formavam-se duplas, os homens atuavam nas cenas em que a Bernarda praticamente fazia um trabalho de chefe de Estado, porque, além da grande mãe, protetora, era também dominadora. A mãe da Bernarda, Maria Josefa, a louca, era feita por cinco homens enfeitados com guirlandas na testa, a representar o elemento da liberdade. Quem interpretava a Bernarda Alba mãe era a cantora Edmar Ferreti, que trouxe cantigas de Manoel de Falla feitas especialmente para a montagem, inclusive algumas canções infantis que o Manoel de Falla compôs especialmente, pensando no universo em que ele e o Lorca trabalhavam. Foi quando eu fiz a minha primeira composição séria em teatro. Estudei todas as poesias do Garcia Lorca (tenho as obras completas dele), escolhi algumas em espanhol. A peça começa, então, com Calem a Boca, Silêncio e termina com a Poesia do Silêncio sendo cantada por um elenco de 23 pessoas, quase que sussurrando. Era a voz do silêncio coletivo contra uma voz que mandava fazer silêncio. É praticamente uma cantiga de ninar, porque uma das paixões do Garcia Lorca eram as canções de ninar tradicionais da Espanha, que têm toda uma tragicidade, uma coisa da guerra, um perigo muito forte, um soldado que vem pegar, tudo isso aparece também em Yerma e Bodas de Sangue. Além dos cantos tradicionais e das canções líricas, Soffredini nos estimulou a trabalhar com a sonorização, os sinos da igreja eram feitos ao vivo, com uns canos. A música não se distanciava do texto. Não havia um distanciamento, mas uma aproximação, como era uma peça que falava sobre repressão, a resposta era o cantar coletivo. O Soffredini sempre foi sensível à música, tanto é que toda proposta que a gente levava, ele olhava com o olhar dele, de diretor, e gostava, a gente já sabia o que propor a ele. Mas era um trabalho sempre coletivo. Tive uma história com ele superprodutiva, fizemos coisas legais juntos, incorporamos a música à dramaturgia. Agora, no Grupo Teatro Ventoforte, estamos com uma outra montagem de Lorca, Bodas de Sangue, que acabou virando um legítimo espetáculo brasileiro, com porta-bandeira e escola de samba. Lá também existe essa proposição coletiva de a música ser parte do espetáculo, o Ilo Krugli faz isso, existe essa tradição do canto, de se envolver com a música. A cena de morte é feita com um samba em que eu coloquei uma letra do Lorca, ficou trágica e densa. Wanderley Martins ator e músico Capítulo VII Pavilhão Em 1975, Soffredini foi chamado por Vic Amor Militello para dirigir, no pavilhão que ela mantinha com a mãe, Dirce, na Praça 14 Bis, em São Paulo – o Circo-teatro de Cordel – a peça Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre, de Chico de Assis. Vic, que vem de uma tradicional família circense – o pai fugiu para um circo aos doze anos e quando o avô o encontrou, deixou o menino por lá para que seguisse seu caminho – havia transformado um teatro de alumínio em teatro de cordel, com direito a plateia, um picadeiro, um palquinho e quatro camarins, dois de cada lado. Ao aceitar o convite de Vic Amor Militello, Soffredini dava continuidade às suas pesquisas sobre circo-teatro, iniciadas em 1972, confirmando, assim, sua tese de que a tradição do teatro brasileiro está no circo-teatro, no teatro de revista, no melodrama, nas comédias: – Teatro popular geralmente é tido como sinônimo de coisa malfeita. Eu nunca havia feito esse tipo de trabalho, mas considero uma continuidade do que vinha fazendo, por ser experimental em termos de realização artística. E para mim teatro popular significa teatro que trata de temas populares. Comecei a perceber que achavam meu teatro popular. Eu não sabia, e a partir daí comecei a entender, a querer, a me aprofundar em teatro popular, a ler coisas, a ter consciência de que o que eu fazia era isso, e aí o texto vem na sequência. Quando a Vic me convidou para trabalhar com ela, foi a oportunidade de me aprofundar nesse universo. Em entrevista a Vanessa de Carvalho, Soffredini justificava seu interesse pelo circo com estas palavras: Eu comecei a perceber que o teatro brasileiro tinha uma tradição. O TBC e o Stanislavski vinham depois, meio importados, trazidos por uma classe média alta, mas o teatro popular já existia e eu comecei a ir ver, conhecer. Soffredini tinha visto um trabalho feito no Pavilhão por Ewerton de Castro em cima do teatro de cordel e gostado muito: – Adorei, achei fantástico aquilo tudo. Foi meio puxado pelo Eurico que comecei a entrar nessa história de circo-teatro. Passei cinco anos com o pé na estrada percorrendo a periferia; onde eu sabia que estava um circo, ia ver e passava a tarde lá. O que tinha mais nessa época era o Circo Carlito, com dois pavilhões. Cheguei a ver também um circo chamado Bandeirantes, mas era apenas um circo, não era um circo-teatro como o Carlito. Mas eles faziam o que se chama de comédia, em que inventam o que está passando na novela. No circo, conheci um anão chamado Goiabinha, que eu levei pra fazer a novela Brasileiros e Brasileiras. Goiabinha era um dos artistas circenses que Soffredini levou para o espetáculo Farsa com Cangaceiro, Truco e Padre. Estavam no elenco também, entre outros, Nair Lienzi, que era a Maria Cabeluda, e o palhaço e humorista Simplício. Irineu Chamisso assinava cenário e figurinos. Eurico Sampaio, que acompanhou Soffredini nas visitas ao circo, detalha esse trabalho de pesquisa: Ele estava entrevistando alguns artistas de circo por conta própria. Rodamos a periferia de São Paulo toda e isso se intensificou depois que a Vic fez o convite pra montar o espetáculo no Pavilhão. Quando começou a montagem da Farsa, todo o elenco ia nessas visitas. Noemi Gerbelli, que estava na peça, também se envolveu nas pesquisas sobre circo-teatro que Soffredini fazia na época: – Nessa peça ele já tinha feito uma pesquisa grande com o pessoal de circo-teatro e já conhecia a vida desse pessoal. A Vic é uma atriz fantástica, ela era quem nos dirigia nos sapateados, nas danças, no sapateado americano, milhões de coisas incríveis que aprendemos a fazer. Era uma grande enganadora, porque a gente não sapateava, e todo mundo achava que a gente sapateava. Ela tinha essas manhas, os grandes segredos do flamenco, da rumba, essa coisa que o pessoal de circo fazia muito nessa época, enganar que fazia. Eu, que tinha flexibilidade no corpo todo, fazia uma contorcionista e entrava na caixa do mágico, era uma coisa deliciosa. E tinha o mágico, o anão, o palhaço que faziam os personagens da Farsa. Ficou um trabalho muito interessante, a gente ficava naquele pavilhão dia e noite ensaiando, fazendo até os telões. Qualquer manifestação popular tem uma natureza teatral, já vem tudo junto ali: dança, teatro, música, artes plásticas, existe uma interdisciplinariedade. E também tem os códigos de linguagem dessas manifestações artísticas e toda a estética, o universo estético do popular. Ainda é um trabalho difícil, porque as pesquisas em arte cênica são recentes no Brasil, fica todo mundo copiando todo mundo, porque teatro é terra de ninguém. Rubens Britto, que foi ver o espetáculo em uma das sessões em que o crítico de teatro Sábato Magaldi estava na plateia, dá sua impressão: – Tinha pouca gente, tinha chovido muito, e aí chega um ator completamente bêbado, cheirando a pinga, ficou aquele constrangimento, eu olhava pro Sábato e pensava:- que mico que esse elenco vai pagar. E aí começa a peça, e ficamos sabendo que aquilo era do próprio espetáculo, graças a Deus. Sábato Magaldi, em crítica publicada no Jornal da Tarde exatamente nessa época, analisava a direção de Soffredini: – Além de preservar no espetáculo os recursos simples da farsa, introduziu nele as atrações circenses. Assim, ele quebra com frequência a continuidade da história para apresentar uma cortina de canto ou acrobacia. Um divertido mambembe é o denominador comum de todas essas apresentações. Os problemas da parceria estabelecida por Soffredini com Vic Amor Militello, que bancava a produção, começaram a surgir quando faltou verba para remunerar o elenco. Os atores chegaram a pedir até a interferência do Sindicato dos Atores para resolver o problema, como conta Noemi Gerbelli: – Trabalhamos dois, três meses, ninguém sendo remunerado, muito menos o Soffredini e os músicos. O Irineu Chamisso e o Eurico não tinham dinheiro nem pra comprar tinta, nem a Vic tinha ou dava, então eles faziam misturas com pó de café. Era uma coisa impressionante o sacrifício pra pintar os telões. E quando estreamos e ficamos vários meses em cartaz, com público, pensávamos que íamos receber, e nada. A Vic não pagou ninguém. Ela nos dizia que ia fazer uma remontagem do espetáculo de teatro de cordel que o Ewerton de Castro dirigiu. A gente se ofereceu pra fazer o espetáculo. Fizemos umas viagens pro Interior pra poder receber. De algumas cidades saímos apedrejados porque ela não pagou hotel. Teve cidade em que os cenários e figurinos não chegaram, ficou uma coisa tão absurda que resolvemos chamar o Raul Cortez, que era do sindicato, pra nos dar uma solução. Ele nos aconselhou a pegar a féria do dia e dividir entre nós. Mas o público foi caindo, chegou um tempo em que a gente não conseguia nem dinheiro pra condução. Paramos a temporada, entramos com um processo e a Vic Militello ainda ganhou, alegando abandono de trabalho de nossa parte. Uma coisa vergonhosa, e mais vergonhoso ainda foi o sindicato não ter defendido todos os profissionais que se dedicaram por sete, oito meses. Segundo Vic Amor Militello, ninguém deu ao espetáculo a importância que ele merecia, embora as críticas não fossem ruins – foi um dos mais bonitos que já fiz, mas o investimento não compensou, porque não havia público. Ela não esconde seu desconforto ao falar do episódio. – Eu fiquei magoada com os artistas na época, mas até entendi, porque foram quatro meses de ensaio perdidos, não havia quem visse o trabalho deles. Eu esperava uma verba da prefeitura, que ia repassar aos artistas, mas quando eles se rebelaram, acabei perdendo direito ao dinheiro e não pude nem mesmo continuar com o Pavilhão, porque não tinha como pagar as promissórias que tinha assinado – meu teatro acabou em 1975. Era um espetáculo riquíssimo, mas totalmente fora das possibilidades do pavilhãozinho. A montagem do Soffredini para a Farsa do Cangaceiro me encantava, ele fechou o proscênio com juta e quando a luz se acendia, o espectador via os artistas se maquiando. Ele usava o texto do Chico de Assis mais como um pretexto, porque o trabalho era todo baseado no circo-teatro. O espetáculo trabalhava com três vertentes: a vida real, o que acontecia no palco e o que acontecia no picadeiro. Quando o ator bêbado entrava no teatro, os outros davam bronca nele, no camarim, antes que ele fizesse seu personagem. O Soffredini fez quatro cenários com quatro telões pintados que mudavam com a luz. Eu tinha assistido a todas as peças dele, éramos amigos. Ele era o erudito, eu usava uma linguagem mais popular, era essa a mistura que queríamos. Na verdade, nesse espetáculo eu estava mais como produtora, nunca levava os problemas a ele, mas também ficava nas oficinas dando o tom de representação para as atrizes. Depois desse episódio, cada um seguiria seu caminho, mas a atriz, ainda hoje, faz elogios a esse trabalho: Ele era um perfeccionista e eu admiro a perfeição. Vi Hoje é Dia de Maria, um texto incrível, aquele cenário mudando de cor, um trabalho primoroso dos atores. Entusiasmo Absoluto Quando fiz cenários e figurinos de A Casa de Bernarda Alba na EAD, tudo era novidade, foi um beabá, porque o teatro nunca me passou pela cabeça. O Soffredini estava muito interessado também no processo da ditadura, que rolava no momento, e aquele texto foi exato, tinha todo aquele sentimento poético dele, ele não queria fazer um espetáculo realista. Era um espetáculo belíssimo. Ele não era de militância política, tinha um entendimento claro das coisas, tanto é que o espetáculo não foi censurado. Ele valorizava muito mais o lado humano que o lado político. Até então, minha intimidade com o teatro era nenhuma. Eu contava para ele do teatro que eu via na minha infância, os dramas, a gente chamava assim. Juntava aquela turma no rancho e na sexta-feira a gente fazia a peça. Eram histórias que o circo tinha contado por lá. Tinha palhaço, tinha rumbeira. No Dom Quixote, ele adorava o texto, então, eu saí pesquisando e andando no Largo São Francisco. Achei num sebo a versão para teatro de bonecos do Antônio José da Silva, o Judeu, era um livro bem envelhecido. O Dom Quixote para bonecos era feito em uma linguagem popular, e não havia nada mais popular para montar em praça pública do que teatro de bonecos. O texto é cheio de artifícios mágicos e foi inteiramente adaptado. Ele inseriu música que não era nem sequer sugerida pelo autor, as letras eram dele. Os atores tiveram que fazer aulas de corpo, de interpretação. Eu tive que fazer também e foi maravilhoso, foram oito meses de preparação, foi uma escola para muita gente. O entusiasmo do Soffredini era absoluto. Nessa época, a pesquisa do circo-teatro estava no auge, entrevistávamos umas companhias bem mambembes, que andavam pela periferia. A gente via o espetáculo, depois ia entrevistar o pessoal. Quando fomos ver o circo- teatro, ele já estava meio decadente, não tinha muitos dramas, eram mais paródias. A crítica foi terrível com ele, tratava-o como um garotão de futuro, nunca soube reconhecer o valor que ele tinha. Não sabia lidar com aquela linguagem que era nova, mas bem brasileira. Ele repetia uma frase seguidamente, que era: Você tem que ir pros Estados Unidos e desembarcar aqui pra ser respeitado e fazer algum sucesso. Alguns diretores e atores faziam isso, iam para lá, estudavam e voltavam com sucesso garantido. E faziam seu lobby, o que o Soffredini nunca fez. Ele era determinado, não era de fazer concessões. Não era aquele cara que fazia aquele sucesso todo, por exemplo, ele nunca fez fila na porta do teatro, mas as pessoas gostavam muito do trabalho dele, muitíssimo. E sempre teve essa briga com a mídia, de estar sempre à margem... Ele nunca se acomodou em cima de ideias, estilos. Eurico Sampaio cenógrafo e figuninista Quer Ser Ator? Foda-se Eu soube que o Soffredini estava precisando de mais mulheres para a montagem de As Troianas, que estava ensaiando no SESC e fui até ele. Até então, eu só tinha feito um boi na peça A Revolução dos Beatos do Dias Gomes. Era um boi que dançava o Bumba Meu Boi e que depois virava um santo, ficava em cena no pedestal. Ninguém queria fazer o boi, eu quis, e esse boi foi um acontecimento, porque tinha todas as variações possíveis: eu corria, dançava, cruzava as pernas, sentava, me assustava. As Troianas era uma produção profissional maravilhosa, feita por atores amadores que ele selecionou no Interior, umas trinta pessoas, um elenco maravilhoso de mulheres incríveis, eu fazia parte do coro. Ele dava uns exercícios como de exército, e uma vez nos mandou pular sela. Eu nunca tinha pulado sela na minha vida, então disse a ele que tinha problemas de coluna. Ele me liberou, e num intervalo eu pedi pra Tânia me ensinar. No outro dia eu já estava pulando sela. Fui me desinibindo e os exercícios que ele dava iam me desenvolvendo numa velocidade impressionante. A primeira frase que eu dizia na peça era – E para onde eu irei, irei para Argus ou para Ischia? Ou para uma ilha cujo nome eu desconheço? Os soldados já tinham devastado Troia, tinham feito as mulheres de escravas, iam levá-las para um outro lugar e tinha o diálogo das Troianas a respeito do futuro delas. Eu estava no fundo do palco e ele me disse: Agora chegou a hora da tua fala. Eu falei baixinho, ele berrou: Pense onde você está, onde você vai ser escrava. Eu fiquei num desespero, aí percebi que ele não me dava marca nenhuma, só eu que não tinha marca, eu me achava uma bosta, tinha crises. Passados uns dias, faltavam dez dias para estrear, ele reuniu o grupo e disse: essa peça não vai estrear mais porque não tem ninguém com um personagem pronto, só uma pessoa, e essa pessoa não recebeu marcação nenhuma, ela está fazendo as marcações porque está tão dentro do personagem que eu não preciso marcá-la para nada. E eu fui pro banheiro chorar, como estou fazendo agora, porque ele me deu o prêmio da minha vida, foi meu Oscar. Eu disse a ele como tinha amadurecido, eu era uma freira e virei uma guerreira. A gente conseguiu fazer a temporada e eu parecia um homem, era o único guerreiro que sobrou em Troia, eu era o primeiro Corifeu, o que mais falava, eu subia correndo na pirâmide e ele ia me dando cada vez mais falas. Quando terminou essa temporada, ele me convidou para o Mais Quero Asno. Eu dizia que não tinha jeito, só tinha feito As Troianas na minha vida, e ele me disse: Vai fazer, você é uma atriz, você nasceu atriz. Não parei nunca de trabalhar com ele. O Soffredini era uma pessoa fantástica porque além de ser um diretor, foi ele quem me fez, me ensinou o beabá como atriz, como gente, como pessoa pensante, no meu gosto cultural. Ele foi o responsável por isso. Com ele eu dançava, ele dançava pra caralho, tinha um corpo maravilhoso, um ritmo, um savoir faire, um magnetismo. A mulherada toda se apaixonava por ele, era incrível. E acho que comigo o buraco foi mais embaixo, não era a paixão de uma atriz pelo diretor, pra mim ele foi um pai, um irmão, um filho, um amigo, a gente se entendia sem falar. Eu ia pro palco e fazia, era uma coisa de alma mesmo, inexplicáve. Eu era e sou totalmente apaixonada por ele em todos os sentidos: como profissional, como homem, como ser humano, como intelectual, tudo. Muita gente diz que eu sou boa atriz, mas eu jamais seria sem o Soffredini. Ele me abriu, me deixou em carne viva, só ele poderia fazer, só ele. As frases dele me acompanham e vão me acompanhar a vida inteira. Ele dizia: o ator não justifica, faz. E também: quer ser ator? Foda-se. Noemi Gerbelli atriz Capítulo VIII Projeto Mambembe Um convite do SESC Vila Nova, feito em 1976, levaria Carlos Alberto Soffredini ao Projeto Mambembe. Gláucia Amaral, que vinha promovendo grandes projetos na entidade, mais conhecida na ocasião como Centro Desportivo e Cultural Carlos de Souza Nazareth, integrada ao Teatro Anchieta, tinha gostado de Prometeu Acorrentado e As Troianas. Ao sentir a competência de Soffredini, com quem dividia o mesmo interesse pela cultura popular, abriu caminhos lá dentro para ele. A proposta feita ao diretor era para coordenar um projeto bastante audacioso, patrocinado pelo SESC, de um teatro que viajasse, mambembe, a levar bons e belos espetáculos para todas as cidades em que a entidade possuía unidades. O primeiro trabalho desenvolvido para o Projeto Mambembe foi a peça A Vida do Grande Dom Quixote De La Mancha e do Gordo Sancho Pança, uma versão brasileira do Dom Quixote, obra-prima de Miguel de Cervantes, escrita por Antonio José da Silva, o Judeu, no século 17, e que Soffredini atualizou a partir de uma pesquisa de interpretação e de estética feita com o apoio de Eurico Sampaio e Irineu Chamisso. O resultado foi um novo tipo de teatro, que Soffredini foi buscar no circo, em cima da cultura popular, um espetáculo de comunicação popular ao ar livre, simples, mas não simplório, sofisticado e ao mesmo tempo despojado, uma recriação do circo e sua estética. Carlos Alberto Soffredini arregimentou para o Projeto Mambembe todos os companheiros que comungavam do mesmo propósito de fazer teatro popular e concretizou um antigo sonho, de formação de um grupo com diretor, atores, cenógrafo, figurinista, coreógrafo, projetista, artistas plásticos e músicos, todos devidamente remunerados. Trabalhou com uma linguagem de circo, de teatro de revista, fundamentou os personagens nos tipos brasileiros – o caipira, o mineiro, o nordestino – e substituiu os cenários por telões tridimensionais que reproduziam o clima do espetáculo. Todos os elementos da cultura popular, até críticos, estavam na montagem, como os bonecões de Olinda que brotavam de buracos no chão – Dulcinéia, a amada de Dom Quixote, era um deles, mais o Anjo e o Diabo. A trilha sonora girava em torno de ritmos brasileiros, como samba, xaxado, maracatu e maxixe. Era um trabalho coletivo, considerado o sistema ideal de um grupo e, embora cada membro da equipe tivesse uma função, todos os demais interferiam no processo de criação e entravam em cena, inclusive o diretor. Eurico Sampaio, que se encarregava das pesquisas bibliográficas para respaldar o trabalho de Soffredini, conta que o amigo adorava Dom Quixote, de Cervantes: – Andando no Largo São Francisco, descobri em um sebo a versão para teatro de bonecos de Dom Quixote, de Antônio José da Silva. Era um livro bem envelhecido que acabei encontrando por acidente, achei ele lá bonitinho na estante. Eunice Mendes, que havia trabalhado em As Troianas, também uma produção do SESC, conta que se naquela montagem havia um autor definido, em Dom Quixote não. – Nós íamos construindo sobre uma base que ele tinha criado em cima do Sancho Pança e do Dom Quixote, deixando essa base cada vez melhor pra ele poder trabalhar essa farsa com mais consistência. Tínhamos o roteiro, mas criávamos as falas, apresentávamos e ele ia limpando e tecendo. Bordava, juntava, tirava, ia raspando aquilo que sobrasse, um verdadeiro ourives. Era maravilhosa essa experiência de escrever o texto, fazer vários papéis, opinar ou criar seu figurino. Ele nunca dizia que você era ridícula e então podíamos ousar à vontade, quebrar a cabeça, porque sempre tinha alguma coisa que se ia aproveitar. Éramos os palhaços e já que éramos os palhaços, tudo podia. Não era para incorporar o drama, mas para brincar de drama, soltar o lado mais leve, brincalhão. Não se falava em naturalismo, era uma interpretação mais teatral. No Mambembe você podia brincar, como se fazia no circo-teatro. A montagem, extremamente requintada nos cenários e figurinos, contava com um elenco de quase trinta pessoas, todas contratadas com exclusividade pelo SESC, com carteira assinada. Por quase um ano, o grupo ocupou um galpão onde seria instalado, mais tarde, o SESC Pompéia, para um trabalho estafante de oficinas e laboratórios, aulas de voz e canto, quase uma universidade de teatro em que se folgava apenas uma vez na semana. Ali passou a funcionar também uma oficina de adereços e cenários, uma verdadeira usina de produção em que, de manhã até a noite, o grupo todo colocava a mão na massa costurando ou fazendo adereços. O pessoal de artes plásticas pesquisava o universo estético do circo e da cultura brasileira para conceber os telões e figurinos, e realizava um estudo muito profundo das cores que são fundamentais na estética popular: cada cor traz uma máscara, uma tipologia. Noemi Gerbelli conta que passava os dias inteiros ensaiando e, à noite, no apartamento de Soffredini, ajudava a costurar e bordar os telões que Irineu e Eurico pintavam enquanto ouviam Milton Nascimento ou os sons da Broadway. – Tinha um telão que o Soffredini queria, do Parnaso, com uma cortina no fundo preta, um disco enorme que era o mundo girando e na frente desse mundo, um outro telão com duas colunas de mármore, flores enormes de um lado e entre uma coluna e outra uma tela de ponto cruz. Então, você via um telão com o mundo vazado lá atrás. Fizemos uma reunião só pra estudar esse telão, que tinha dez metros. Passamos a noite inteira no chão, pespontando tudo, pregando argolas, fazendo a barra, era um trabalho incrível mas de uma satisfação... Eunice Mendes conta que o que impressionava no trabalho do grupo era a dedicação. Ninguém faltava, era como se fosse uma faculdade mesmo. – Hoje, quando vejo os cursos de teatro, eu pergunto: como é que pode em uma semana alguém dar esse pequeno número de informações quando em um dia o Soffredini trazia tanta coisa? Só uma figura mágica como ele, que estava ali para unir, nunca desagregar. Como em todos os trabalhos assinados por Carlos Alberto Soffredini, a montagem foi precedida de um trabalho de campo feito de muita pesquisa e não só de estética visual. O elenco ia atrás de toda e qualquer fonte indicada pelo diretor – teatro de revista, qualquer circo que tivesse teatro, sessões de strip tease, fundamentos do folclore, cultura popular – para recolher elementos que pudessem ser usados na montagem. No teatro de revista, por exemplo, analisava-se a interpretação, como o ator trabalhava um quadro de esquete, de piada. No circo, Soffredini mostrava ao seu grupo como o artista circense trabalhava, a desenvoltura com que o ator entrava e saía do personagem, como triangulava com a plateia, a maquiagem muito forte, surrealista, as estruturas de dramaturgia – em seus trabalhos ele misturava o melodrama com a comédia, com o lado musical. Aquelas situações eram complementadas muitas vezes com entrevistas e depois recuperadas nos exercícios de improvisação feitos com o elenco para servir de base para o que seria o trabalho teatral. Noemi Gerbelli exemplifica que esse trabalho de pesquisa feito pelo grupo incluía até mesmo estudos sobre a época em que viveu Antonio José da Silva, o Judeu, um brasileiro que ninguém conhecia, queimado pela Inquisição em Portugal e que, em sua versão da aventura de Dom Quixote, transforma Sancho Pança no herói: – Fizemos um trabalho de mesa insano, de muito tempo. A época da Inquisição, quando ele escreveu o livro, era muito parecida com a que a gente estava vivendo. A nossa Inquisição era agora, e você sempre encontra no trabalho um eco daquilo que você é, ou de época, ou de história, ou de emoção ou vivência. E no circo, a gente via o que chamávamos de generosidade, porque você tem que ser generoso a ponto de se anular para o personagem existir. Se você não faz isso, não consegue. A gente sacou isso logo de cara, era o mais visível em tudo que se via nos circos-teatro, nas pessoas. Quando o ator falava, era o dono absoluto do palco: a fala é minha, a luz é minha, é tudo meu. E quando o outro se mexia, o ator dizia: não precisa tanto. Não acontecia muito porque havia uma moral muito forte, um senso de ética que me chamou muito a atenção, não essa moral babaca... Esse pessoal tinha muito isso, a dama galã é aquela, é ela, vai ser até morrer, não importa a idade que tenha, vai fazer a vedete, mesmo que esteja com 500 quilos, porque ela batalhou pra isso, é uma coisa de respeito. Ednaldo Freire, que tinha Soffredini como uma referência desde quando fazia teatro amador no ABC, ao lado de Calixto de Inhamuns e Noemi Gerbelli, entre outros, fala de uma tradição do circo que Soffredini resgatou para seus trabalhos: a triangulação. – Era um trabalho de importância muito grande do ponto de vista de estética, de forma de interpretação brasileira, incomum na época. Na triangulação, você estabelece um vínculo com o público, o público passa a ser seu cúmplice na ação. A gente concebeu como triangulação essa coisa intencional, essa quebra da quarta parede: eu interpreto com você e o público junto, eu informo... É como se você estivesse lá na plateia também, o público sente que está dentro da ação. Na peça, eram dezesseis atores em cena fazendo cada um mais de dez personagens. Noemi Gerbelli, que trabalhou como assistente de Soffredini, além de atuar, cuidava também das roupas – chegou a contar quatrocentas peças – e dos bonecos. Em uma das fotos de seu arquivo, está costurando a roupa do cavalo do Sansão Carrasco. Soffredini explicava ao elenco que em uma obra como aquela, o herói não era o Quixote, mas sim o Sancho, o povo. E dirigia os atores mostrando que o vilão tem que entrar em cena e ser o vilão logo de cara; que os atores deviam estar sempre de frente para a plateia, jamais virar pra trás; que a ingênua tinha que ter uma postura imediata de ingênua. Entre vários personagens, Noemi fazia também uma fidalga e uma rumbeira que apareciam muito próximas, a fidalga saía e entrava a rumbeira. – Em quinze segundos, eu tirava a peruca de escola de samba, um vestido preto e vermelho e os sapatos de salto alto e vestia a saia da rumbeira, uma sapatilha, punha uma flor no cabelo e retornava. E voltava pro palco de fidalga de novo e entrava pra fazer a voz da Dulcinéia. Quem não estava em cena ficava embaixo do palco, tocando algum instrumento ou cantando, ou ajudando alguém a se trocar, ou manipulando os bonecos, um trabalho enorme porque a gente tinha que carregar os bonecos, ajudar a vestir... Outra sequência lembrada por Noemi é um desfile de odaliscas em que, por cima do biquíni, ela tinha uma roupa de vendedora de bilhetes. Por cima dessa roupa, uma camisola de velha e por cima ainda, a carcaça da parte da frente do cavalo do Sansão Carrasco. – O Calixto ficava na parte de trás, segurando na minha cintura, eu segurava o Douglas e fazíamos uma batalha no palco. Tirava o cavalo e aparecia a velha; tirava a velha e surgia a vendedora de bilhetes. Era uma coisa incrível, fantástica, um personagem atrás do outro. Rosi Campos fazia jornalismo na ECA e participava lá dentro de um grupo de teatro quando, em 1976, foi chamada por Douglas Salgado para fazer uma substituição no Dom Quixote, então encenado no Teatro Anchieta. Na mesma ocasião, Rubens Britto indicou a Soffredini mais um nome, o de Roseli Silva e, apesar da confusão, Rosi foi contratada para a montagem. – Eu cheguei antes dela pra conversar com o Soffredini e tivemos um papo que eu não entendia nada. Ele perguntava de trabalhos que eu não tinha noção, e eu dizia que estudava jornalismo. Aí ele me perguntou se eu cantava, eu respondi que sim, fui fazer um teste com o Tato Fischer, e o Soffra, muito maluco, me escolheu. Rosi fala de seu trabalho junto a Carlos Alberto Soffredini: Ele tinha esse espírito de rodar, de sair, de ir aonde o público está, e ficamos nessa toada trabalhando anos e anos e anos, e pesquisando, e lendo. Ele sempre falando da pesquisa dele, do circo, da linguagem, era uma coisa muito benfeita. Até hoje eu tenho uma saia de rumbeira que usava no Dom Quixote. Na peça, eu tinha também um vestido da Calíope, com seis ou sete saias, que parecia um arco-íris, um deslumbre. A gente curingava tudo. Eu fazia a Calíope, a musa do Parnaso, a rumbeira. A cada cena você assumia um personagem. A vida inteira eu sempre fiz isso e é isso o que eu gosto de fazer até hoje. Gosto de espetáculo com gente entrando e saindo e cantando, curingando. As pessoas nem sabem que eu faço musical. As composições, com músicas de Tato Fischer e Wanderley Martins e letras de Carlos Alberto Soffredini, tinham a função de reduzir a quantidade de cenas, uma vez que o texto original era muito extenso. Flávio Dias fala desse processo: – Se tinha quinze cenas em determinada sequência, ele deixava cinco para contar a essência da história. A história do Parnaso, por exemplo, em que ele vai encontrar com as ninfas, era feita de dezesseis cenas que foram reduzidas para quatro, fundamentais. Já a chegada do Quixote no Parnaso era cantada. A abertura de cada cena era musicada e isso servia também para troca de telões e figurinos. Dom Quixote fez cerca de vinte apresentações de sucesso, algumas delas em São Paulo, na Praça da República, para uma plateia diária de até mil espectadores de todos os tipos, incluindo travestis, camelôs, moleques de rua, mendigos, as pessoas iam chegando e ficando. Noemi Gerbelli conta que essas apresentações simbolizavam um alimento diário, constante para o elenco, porque via-se o resultado imediato daquele esforço ali na plateia, no rosto das pessoas em praça pública. – O fazer teatro, o fazer emoção, o transmitir vida pras pessoas era tão forte e rico que você percebia ali, à sua volta, isso era flagrante. Você via um mendigo passar, olhar, parar, e depois voltava e ficava; você via um monte de gente debaixo de chuva sem arredar pé, a nossa sapatilha se desfazendo com a chuva, e a gente sem poder parar porque tinha gente demais assistindo. Susana Lakatos era uma das atrizes que mais atraía admiradores, talvez pelo apelo lírico e afetuoso de sua personagem. Em uma das apresentações em Santos, em um conjunto habitacional, para uma plateia de mais de mil pessoas, a atriz teve que sair escoltada por guardas para poder escapar de um grupo de meninos que queria sequestrá-la. A cada vez que a caravana chegava às cidades do Interior, era um acontecimento. Em Santos mesmo, as pessoas da plateia jogavam sabugos e ovos nos atores como forma de participação no espetáculo. – Quando eu vejo o Asdrúbal, percebo que o Soffredini já fazia esses trabalhos libertários há muito tempo, ele enxergava na frente porque sempre foi um visionário – declara Eunice Mendes. – Porque ele fazia um teatro de rua, essa coisa mais solta, um teatro popular há mais de 30 anos. Ele tinha essa simplicidade sofisticada. Ednaldo Freire diz que o projeto tirava os espetáculos do teatro e levava para um espaço não convencional, portanto, não podia haver a mesma postura cênica. – Então, tínhamos que criar algum canal de comunicação com o público. O conteúdo político do nosso trabalho era fantástico. Nós representávamos nossas peças em conjuntos habitacionais, como aconteceu em Santos. Nosso trabalho era muito respeitado, mas nunca foi prestigiado do ponto de vista de políticas públicas, ralávamos muito. – A gente sacou que para o público, aquelas informações fornecidas pelas pesquisas funcionavam – confirma Douglas Salgado, que viveu um momento doloroso quando Dom Quixote estreou na Praça da República. – No terceiro espetáculo da noite, quando eu fui entrar em cena, chegou um tio meu de pijama me avisando da morte do meu pai. Eu engoli aquilo, o espetáculo começando, o Soffredini me deixou à vontade para parar, mas eu resolvi continuar. Não sei como fiz isso, é uma experiência que eu não recomendo pra ninguém, foi muito duro pra mim. Douglas confessa que muitos atores não entendiam a proposta de Soffredini: Achavam aquilo alienado, coisa de veado. Ali tinha essas contradições, mas quando a gente entrava no palco, o espetáculo acontecia. Você fazer o Dom Quixote na rua, seja na Praça da República, ou em Santos, na praia, era um encanto. Nossos melhores espetáculos foram para aquele povão. Na peça, Douglas manipulava os bonecos, interpretava Sansão Carrasco e, além disso, fazia o backing vocal com Eurico Sampaio e Julinho, os três vestidos como para um show de vaudeville, com calça de smoking, camisa de paetês, colete dourado, cartola e gravata borboleta. Fazíamos o backing vocal de música americana continua Douglas – começamos a misturar coisas de folclore, de raiz, o Soffredini gostava disso. Porque na nossa montagem o Sancho Pança não era espanhol, mas tinha muito do caboclo, do Policarpo Quaresma, do Mazzaropi, do caipira de borzeguim. O Soffredini pegava no registro mais popular mesmo, o circo mambembe faz isso, é uma grande fonte, se inspira no show biz e traduz no repertório. Era o que a gente fazia também. Gláucia Amaral relata que antes de lançar o Projeto Mambembe, o SESC já vinha promovendo bons espetáculos, exposições, até mesmo um festival de cinema. Só não estava acostumado a fazer coisas tão grandes e importantes: A montagem que Soffredini fez para o Dom Quixote era vanguarda na época, uma comédia com telões. O teatro popular ainda não estava na moda e era exatamente o que a gente queria mostrar para o povo, a partir da raiz. Eu já havia encomendado ao Soffredini uma pesquisa sobre o circo mambembe para uma exposição temática, de cultura popular. O resultado foi maravilhoso, a crítica adorou Dom Quixote, achou perfeito. Na época, não existia cultura popular em São Paulo, principalmente na Capital. Eu comecei a pesquisar cultura popular quando vi em Salvador, em 1964, uma exposição lindíssima da Lina Bo Bardi no Solar do Unhão, que era uma fábrica de café na beira do mar que ela restaurou. Ela montou uma exposição com fotos, bonecas, redes, colchas. ,Foi a primeira vez que vi isso organizado, fiquei fascinada e comecei a ir atrás. Agora é que as pessoas estão se voltando um pouco mais pra cultura popular, talvez com a globalização, tenham necessidade de voltar um pouco mais pra suas raízes. O cenário concebido para Dom Quixote e que o SESC construiu é lembrado pelo elenco ainda hoje, por suas proporções gigantescas – pesava uma tonelada – e por sua complexidade – era difícil de carregar, armazenar e montar. Tratavase de uma estrutura imensa, em ferro e madeira, em sistema de andaimes – só o palco tinha dez metros. Sob essa estrutura funcionavam os ca marins, cada ator com seu canto e seu figurino. A montagem era feita por onze homens a cada apresentação do espetáculo e, na falta de operários para esse serviço, os atores tocavam essa empreitada reclamando. Soffredini, do chão, torcia para que ninguém desabasse lá de cima. – Era uma encheção de saco você montar aquilo, viajar com aquela estrutura – lembra Calixto, cujo nome real Soffredini nunca assimilou – Ele se confundia, me chamava de Calixto em vez de Expedito e como eu fazia um menino na peça, inventei o Inhamuns de sobrenome. Nem meus filhos me conhecem como Expedito Ilton Leonel, meu nome verdadeiro. Calixto tinha trabalhado na roça até os 12 anos, fazia teatro político em São Bernardo e enquanto integrou o Grupo TEC, em Manaus, continuou trabalhando na linha de Grotovosky, que considerava um teatro mais de experiência, mais culto. – Com o Mambembe, caímos no teatro mais popular, na pesquisa do teatro popular, e provavelmente o meu conhecimento era o mesmo que os outros tinham quando começamos a fazer, na medida em que eu vivenciei essa experiência. O circo sempre foi uma referência minha, eu via muito dessas coisas no Interior, tinha uma proximidade com o circo, uma visão diferente da deles que tinham um olhar crítico de aproximação que não era o meu. Inclusive, com o Soffredini eu aprendi a valorizar essa coisa que fazia parte do meu cotidiano, mas da qual eu tinha um distanciamento. O pessoal da ECA estava se aproximando de um mundo do qual eu estava saindo. Douglas Salgado diz que só foi entender completamente o que poderia ser Dom Quixote quando foi ver os filmes de Pedro Almodóvar da primeira fase de sua carreira, em que ele vai pegar também os personagens do povo com aquela estética, os sentimentos derramados chamados de bregas. Se o Almodóvar tivesse conseguido fazer aquilo naquele tempo.. . O Projeto Mambembe teve curta duração, fato lamentado por todos os envolvidos na montagem de Dom Quixote: foi quase um ano de ensaios para dois meses de apresentações na rua e um mês no Teatro Anchieta. Gláucia Amaral diz que o SESC não deu continuidade ao Projeto Mambembe – a ideia original era que enquanto se levasse uma peça, se pesquisasse outra – porque ficou uma coisa muito grande e cara para a entidade. A cada viagem eram necessários três caminhões, três contêineres para carregar a parafernália. – Nem o Soffredini nem eu sabíamos fazer coisas simples, ele era muito requintado e detalhista. O SESC estava começando a desenvolver seu trabalho de cultura. Só depois da inauguração do SESC Pompéia, em 1982, é que realmente passou a ser respeitado como uma entidade que trabalhava a cultura seriamente. Então, a grandeza da montagem assustou o Conselho, que achava uma fortuna o transporte de toda aquela estrutura. E houve um pouco de ciúme também, porque o Soffredini aparecia mais que o SESC. Uma pessoa como o Soffredini, com aquele talento e competência criativa, especial, não podia ter nos abandonado tão cedo. Eu tive muita sorte, não só de encontrá-lo mas de podermos fazer coisas juntos, quanta coisa eu aprendi com ele. Eu, se soubesse que ele ia morrer tão cedo, teria procurado ficar mais próxima. Calixto concorda em parte com a análise de Gláucia, de que o projeto terminou um pouco pela falta de praticidade do cenário, que impedia as viagens. – Quando eu falo que nós jogamos fora o Dom Quixote, é porque havia uma estrutura que não foi dimensionada. Se tivéssemos trabalhado mais racionalmente, se tivesse dado mais resultado, com aquele dinheiro a gente tinha feito, com o SESC, O Diletante e A Farsa de Inês Pereira. Para Ednaldo Freire, o Projeto Mambembe aconteceu numa época em que o teatro representava uma resistência, e os espetáculos na praça significavam não apenas pioneirismo, mas audácia. – Nós quase que provocávamos uma desobediência civil, a gente na verdade não estava ligando muito pra censura, ia para a praça e fazia, ninguém fazia teatro de rua. Tá bom que a gente tinha toda a infraestrutura do SESC, até mesmo tecnológica, com microfones. Mas foi legal porque gerou pro teatro brasileiro bons frutos e por causa da forma da interpretação brasileira, o Soffredini acabou desenvolvendo com a gente a técnica da triangulação, que nunca tinha se ouvido falar. Rubens Britto, que fez Teatro aplicado à Educação na ECA e é um estudioso do teatro popular – defendeu tese sobre o Mambembe, teatro de rua – admirava muito Soffredini por conta das montagens de A Casa de Bernarda Alba e Prometeu Acorrentado. – Com esses dois espetáculos, que marcaram minha formação, ele estava cinco anos à frente do Antunes Filho. Ele já indicava ali muita coisa que viria a ser trabalhada por outros diretores. Para ele, o Projeto Mambembe não foi em frente exatamente pelos problemas econômicos justificados pelo SESC. E também porque Dom Quixote era uma superprodução com um enorme elenco, um espetáculo longo, que representava uma mudança de padrão. – Se você for analisar todo o material, vai ver que eles não abdicavam da qualidade do trabalho, do visual. Era um figurino maravilhoso, com tecidos caros, sapatos decentes, ator muito bem vestido em cena. Só os chapéus que a gente tinha custavam uma fortuna. O povo amava, gostava de luxo, mas a relação custo-benefício não compensava. Além disso, as apresentações na rua estão sempre sujeitas a saias justas, principalmente naquela época de ditadura. Uma vez, um grupo de soldados foi ver o espetáculo na Praça da República e começou a fazer gracinhas. Nossos amigos travecas mandaram o pessoal embora. Numa outra apresentação, quando eu vejo, entram o então prefeito Olavo Setúbal e uns generais no palco. O prefeito queria fazer um discurso, mas acabaram saindo embaixo de vaias. No parecer de Rubens Britto, o Projeto Mambembe acabou se perdendo também porque não aparecia do ponto de vista social e político. O SESC tinha a ideia de fomentar o surgimento de grupos amadores, mas isso não deu certo, a gente não foi preparado para isso. Hoje, depois do espetáculo, você fica na comunidade, dá uma oficina, uma palestra. Esse é o trabalho que o pessoal do teatro erudito que foi pra periferia fazia: se amalgamava, se misturava com a comunidade local e acabava fazendo uma série de outros trabalhos que não eram somente apresentação pura e simples do espetáculo, só que não nos deram estrutura pra fazer isso. Posição semelhante à de Rubens tem Noemi Gerbelli, para quem a temporada de Dom Quixote foi curta por questões políticas: O Soffredini sempre dizia que o SESC preferia investir no esporte, era o forte deles, mas o Antunes conseguiu entrar e ficou lá pra sempre, até hoje. Douglas Salgado queixa-se da omissão da crítica especializada e da imprensa em geral em relação ao espetáculo. E Eunice Mendes acredita ter faltado a Dom Quixote um trabalho merecido demarketing, já que a peça estava muito à frente de seu tempo. Era pra ficar dez anos em cartaz. O Soffredini olhava pra uma coisa que ninguém falava, ele foi mal compreendido no seu tempo, a peça não teve o retorno que merecia por conta dessa falta de visão. Energia, Rigidez e Pique de Trabalho O Soffredini tinha uma energia de trabalho muito grande, mas era uma máquina que demorava a pegar. Ele tinha uns momentos de introspecção, de ficar lá enrolando o cabelo, se fechava no mundo dele, resolvia com ele e depois ia resolver com os outros. Quando descobria o fio, a cena se resolvia na cabeça dele, então sai de baixo, vamos marcar, vai que é uma maravilha. Porque ele era muito prático, tinha pique de trabalho, tanto que nós montamos O Diletante em sete dias. Com ele aprendi a montar uma peça em uma semana. Ele era meio duro, exigente, era cruel, fisicamente exigia muito, e se não ficamos com o talento dele, ficamos com essa energia. Ele fazia umas marcações muito rígidas, principalmente pro teatro popular. Era difícil pra nós, que vínhamos de um teatro de Stanislavski, de um teatro de anarquia, de jogar pra fora os bichos, porque o teatro popular é um teatro de contenção, de previsão, você tem que controlar, soltar os bichos de uma forma controlada, precisa. Eu soltava uma cobra pra cá e uma garça pra lá, e você tinha que ter essa precisão de corpo, era um teatro muito de ações físicas. O Soffredini trabalhava muito a ação física, porque era um puta coreógrafo também, então você tinha que ter um domínio físico, um controle. As coisas mudavam na sua cabeça, e o seu corpo tinha que ser inteligente, tinha que sentir de uma forma precisa, as mudanças eram difíceis. Na triangulação, de trocar e voltar com o público, isso é que era bonito no trabalho e que até hoje as pessoas não entendem bem. Você está falando olho no olho e quando você quebra pra plateia, é outra interpretação, é outra coisa, é outra situação. Você é outro personagem, é outra circunstância. Você comenta com a plateia, então, você deixa de ser o personagem e volta a ser o ator e conversa com a plateia, dá a informação pro seu amigo, o seu compadre da plateia. Você conversa com essa pessoa e volta, essa coisa é precisa. É essa precisão do ator que o Soffredini falava que tinha que mudar na cabeça, tinha que mudar na hora, era um exercício que a gente passava noites fazendo. Eu fazia isso como o Paulista, personagem do Martins Penna em O Diletante. Neste ângulo do triângulo, eu falo como o Paulista, neste outro, como Calixto, que é um personagem, que é um ator que fala aqui para um amigo que está na plateia. Eu quebrei, tenho um segundo pra fazer isso e volto pro Paulista, essa coisa precisa. A gente ensaiava muito isso, o Soffredini sofria porque também era uma experiência pra ele, era uma descoberta juntos, ele foi amadurecendo conosco. Racionalmente, ele já tinha na cabeça o que era, mas experimentar foi com o Mambembe. O Grupo Mambembe foi uma chance que a gente jogou fora desde a produção do Dom Quixote. Jogamos fora a oportunidade de nos fixarmos no cenário nacional, porque a produção ficou inviável dentro do panorama teatral. Se nós tivéssemos trabalhado mais racionalmente, teríamos mais resultado. Porque eram cabeças de artistas, a gente vivia vida de artista, e então demorou um ano pra gente estrear a primeira peça. O Irineu Chamisso passava as noites mexendo tinta, provando material. Pro Soffredini encontrar a palavra certa do texto demorava, ele era muito refinado, estudioso, estudava a origem das palavras, tinha uma puta informação linguística, uma puta compreensão das coisas. No Mambembe, eu era essa pessoa prática que vendia os espetáculos, que organizava. Eu era meio bicho naquele meio, era um grupo de artistas com um troglodita no meio. Como ator, eu fazia o apresentador oficial, o mestre de cerimônias, o que fazia as emendas. Tinha a ver com a estrutura do circo, aquela função antiga do cara que era o dono do circo, que geria o espetáculo, que fazia a apresentação. Essa era a função que eu exercia dentro do grupo, dentro dessa formação assim, de teatro popular, de revista. Apresentar era comigo. Numa época em que o teatro tinha que ser engajado, o nosso teatro era totalmente engajado em cima da cultura popular. Ninguém falava isso naquela época, mas dez anos depois, na década de 1980, começaram a trabalhar com circo, o Ubu Rei, do Cacá Rosset, que era um pouco o trabalho sobre circo, era um pouco o Dom Quixote. O teatro tinha uma certa exigência de um determinismo de conteúdo, e quando o Soffredini começou a trabalhar com estética, isso deu um certo estranhamento. Acho que ele fez isso um pouco antes do tempo, não era o tempo propício pra desenvolver uma linguagem que fugisse um pouco de um conteúdo determinado. A gente tinha um grupo bem equilibrado, porque um grupo anda pelas tensões, os confli tos dentro do grupo é que fazem o grupo andar. Quando você consegue estabelecer papéis definidos no grupo e existe respeito, a coisa funciona. Todo grupo de teatro tem princípio, meio e fim, e eu acho que o Mambembe foi meio abortado. Por isso, a pesquisa do Soffredini não chegou a terminar, acho que o refinamento dessa linguagem não foi levado a fundo até agora. Essa linguagem, várias pessoas utilizam, várias pessoas montam, ele deixou vários discípulos. Mas o refinamento, acho que não foi completado. Calixto de Inhamuns ator A Sofisticação e o Requinte Poucas pessoas estavam preocupadas em en-tender o que era aquilo, o que foi uma pena, os próprios jornais não perceberem o valor do trabalho, que era de pesquisa. Infelizmente, os caras não se manifestavam, sempre falavam dos mesmos; na época de premiação, eram sempre os mesmos trabalhos... Acho que o pessoal não tinha ferramentas para analisar, o crítico ia dizer gostei ou não gostei? É uma postura do pessoal de esquerda ignorar, que é a pior maneira de censura. É que não era uma história de concessão barata, era tudo muito elaborado, muito sofisticado, requintado. Ele tentou mostrar o quanto aquilo tinha de dignidade. Havia generosidade em tudo, não era esse mundo que a gente imaginava que ia ser, em que as pessoas são ilhas. Lá vivemos o coletivo, vivemos juntos esse sonho, essa utopia, nós tínhamos o sonho de que esse ideal se espalhasse, mas o mundo mudou radicalmente. Soffredini perdeu a oportunidade do reconhecimento imediato para ganhar a eternidade. Ou como explicar que depois de tanto tempo, o trabalho dele sempre volta, está em cena? O trabalho dele só tende a crescer. Ele talvez tenha perdido a oportunidade de ter sido celebrado quando as coisas aconteceram pra realmente permanecer. Douglas Salgado ator Em Busca de uma Estética Brasileira Alguns setores diziam que nós fazíamos um trabalho pão e circo, achavam que se devia fazer um teatro de realismo social, de bandeira política. Na verdade, não entendiam que o teatro que a gente estava fazendo era muito mais político do que qualquer teatro, digamos assim, panfletário, na medida em que buscávamos uma estética brasileira. Estou falando de alguns obtusos intelectuais que torciam o nariz para um teatro feito na rua e que queriam exercer uma certa patrulha ideológica. Confundiam um teatro popular com um teatro de concessão, um teatro menor. Isso é falta de visão histórica. Um jornal chamado O Movimento fez uma crítica ao Quixote, dizendo que era um grupo pão e circo porque fazia circo na praça quando não era o momento pra isso. Na verdade, nós estávamos exatamente negando qualquer tipo de imperialismo na nossa estética, rechaçando qualquer estética que não fosse a brasileira. Quer coisa mais revolucionária que isso? Estávamos retratando a cultura brasileira como identidade mesmo, num momento em que a grande peça de resistência era rechaçar o colonizador, o explorador que queria impor uma cultura pra gente. O teatro sempre retratou as coisas do ponto de vista da elite, da aristocracia, e quando você coloca o povo como protagonista, sofre o preconceito. O gênero da comédia é o que mais está ligado ao povo, à maioria, até mesmo pela temática. E o que a gente fazia também era quase uma homenagem aos artistas nômades, populares. Porque tentávamos valorizar a cultura do circo, aquele teatro que é feito pra agradar, porque se a pessoa não vier no outro dia, não tem espetáculo, e se não tem espetáculo, ele não tem comida pro filho. O cara é um trabalhador mesmo, que se mistura na comunidade e faz entretenimento nessa comunidade. O artista circense é esse. O patrulhamento começou a acontecer quando fomos nos apresentar em praça pública, a exemplo de Brecht, que era extremamente popular – as pessoas não sacam isso – e que fazia espetáculos nas cervejarias, nos ringues de boxe. No circoteatro, os atores utilizam sem querer o distanciamento brechtiano, que é o ator interpretando seu personagem aqui e de repente ele se distancia e comenta com você. Isso é a triangulação. Nós estávamos em um determinado espetáculo de circo, nos melhores lugares, o vilão falava com a mulher, e nós ríamos, então ele nos fez um sinal pra não rir. A gente admirava a interpretação e ao mesmo tempo o fato de ele sair e voltar pra cena com uma desenvoltura tranquila. Isso eles faziam com um pé nas costas, sem estudar. Era uma necessidade de se comunicar com o público. Essa contribuição pra interpretação era uma coisa que o próprio Soffredini nunca se preocupou em registrar com mais contundência, mas que precisa ser resgatado mesmo. Deveria deveria ter sido feito como um pequeno manual do tea tro popular. O trabalho do Soffredini de estética teve desdobramento e, de certa maneira, eu venho continuando isso com meu grupo. Tem muitos elementos que eu trago do Mambembe e que se misturaram a outros elementos. O Soffredini foi meu grande inspirador nesse movimento de teatro popular, principalmente do ponto de vista de estética popular que se encaminhava pro circo e pro teatro de revista. Pra mim, a contribuição que ele deu ao teatro bra si leiro não está nem na dramaturgia, mas no cam po da interpretação popular mes mo. Ele ten tou buscar uma forma de interpre ta ção brasi lei ra, tentou criar uma poética de interpretação. Foi uma grande contribuição dele, que não aparece, mas fica no depoimento de quem viveu, como testemunha. Ednaldo Freire ator e diretor Um Desbravador Eu sempre fui muito disciplinado e aplicado na ECA. Não podia fracassar, queria continuar naquela linha de espetáculos compromissados e sérios, bem vistos pela crítica e pelos historiadores, trabalhos consequentes do ponto de vista histórico e estético. Na época, o Soffredini já era um grande diretor e ator reconhecido pela crítica e eu o considerava um mito. Aí, o Irineu Chamisso Junior me convidou para integrar o Grupo Mambembe, a ser dirigido pelo Soffredini e quando ele colocou a proposta, era tudo ao contrário para o que eu vinha sendo formado. Então, ao integrar o grupo, tive que rever aquilo tudo, porque fazíamos na ECA um trabalho politizado mesmo, eu não entendia nada de teatro popular e era pra fazer teatro em praça pública, que ninguém fazia. Aquilo não se estudava na universidade, nem teatro popular, nem teatro em praça publica. A ECA não preparava pra isso, desconsiderava totalmente as formas de teatro popular. O único que defendia era o Miroel Silveira, que tinha coragem de falar em teatro de revista na universidade, era uma voz clamando no deserto. O Mambembe é que começou, com ele, a quebrar essas barreiras, ele foi um desbravador nesse sentido. Com o Soffredini fui aprender também o folclore, as raízes, porque é uma coisa toda misturada. Qualquer manifestação popular que tem uma natureza teatral, já vem tudo junto ali: dança, teatro, música, artes plásticas. E também há os códigos de linguagem dessas manifestações artísticas e toda a estética, o universo estético do popular. Cada coisinha tem o seu significado próprio, cada cor tem o seu significado próprio, o azul é o cristão; o vermelho é o mouro, o ateu, o demônio; o negro é o vilão. Então você começa a entender uma série de coisas. Aí eu fui assistir cavalhada. Se você pega uma cena do Dom Quixote, ela é esteticamente resolvida na base de uma cena da cavalhada. Não foi na universidade que aprendi isso, que hoje eu ensino pros meus alunos. Incorporando e aprendendo é que a gente aprende a se comunicar. Porque as pesquisas em arte cênica são recentes no Brasil, fica todo mundo copiando todo mundo. Muita gente que pertence à minha geração e às que vieram depois é que desconfiaram. É essa tradição que o Soffredini questionou, porque teatro é terra de ninguém, ele questionou antes e nós questionamos dentro do grupo. Não se dá valor ao circo-teatro, não tem uma linha nos livros de história do teatro brasileiro sobre isso, nada sobre teatro de revista. Então, tudo o que a gente foi fazer era fora da história. O Soffredini conhecia muito bem a história do circo-teatro, em que há a tradição da comunicação com o povã. Eles é que sabem, eles é que têm o conhecimento. Nós, que somos do teatro erudito, tínhamos que aprender com esse povo que fazia aquele teatro popular. Por isso é que começamos essa pesquisa. Esse teatro brasileiro que emerge do povo, que é o popular, sempre foi considerado o melhor teatro do mundo. Os portugueses já vinham fazendo teatro nas naus, chegaram aqui e continuaram fazendo os entremeios. O pessoal começou em seguida a fazer a cavalhada, a congada, bumba meu boi, maracatu, representações populares, tudo no século 16. E no período da guerra, nos séculos 17 e 18, é justamente quando crescem todas as manifestações artísticas de natureza teatral realizadas fora do edifício teatral. Isso está registrado nos livros de folclore, não nos de teatro. Hoje já tem livros que cobrem essa história que estou contando. Rubens Britto ator e professor Capítulo IX Grupo Mambembe Com o fim do projeto do SESC, a equipe continuou se reunindo e estudando no apartamento que Carlos Alberto Soffredini então ocupava na rua Vitorino Carmilo – Barra Funda. É ele mesmo quem fala dessa fase, que culminou com a criação do Grupo Mambembe: – Em princípios de 1977, o SESC retirou o financiamento ao projeto. Então, eu e mais alguns remanescentes dele resolvemos formar uma empresa, o Grupo de Teatro Mambembe, para, por conta própria, continuarmos a desenvolver a linguagem. O financiamento a essa pesquisa sairia, evidentemente, agora, da bilheteria dos espetáculos que montássemos. Deliberamos experimentar a linguagem em clássicos da dramaturgia em língua portuguesa, como Gil Vicente e Martins Penna, e nos apresentar nos bairros da periferia da cidade, para, sempre em contato com o público popular, testar a eficiência da lingua-gem, visto que ela tinha se originado num teatro popular. Artisticamente, a experiência foi um sucesso. Financeiramente, não. Assim: tínhamos sempre casas lotadas, mas tínhamos que cobrar um preço ao alcance do público de periferia. Resultado: a arrecadação não dava para manter a empresa. Então, o Grupo Mambembe teve que seguir os caminhos das empresas comerciais, isto é: se estabelecer num teatro no centro da cidade e encher a agenda das apresentações para sobreviver e a partir de então não sobraria mais espaço para a experimentação. Um dos textos analisados pelo Grupo de Teatro Mambembe foi A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, toda falada em versos quinhentistas, que, para melhor compreensão, ganhou de Soffredini uma tradução contemporânea. Estava criado o Grupo Mambembe – o nome foi conservado do projeto do SESC – que tinha como objetivo fazer com que o povo tivesse acesso, não só ao teatro, mas a um teatro benfeito e que, além de plateia, fizesse parte da história. Dele faziam parte, além de Soffredini, na direção artística, Rubens Britto, Calixto de Inhamuns, Flávio Dias, Irineu Chamisso, Eurico Sampaio, Wanderley Martins, Sergio Rossetti, Susana Lakatos, Ednaldo Freire, Noemi Gerbelli, Rosi Campos, Maria Eugênia De Domênico e Maria do Carmo Soares, enfermeira por formação que se juntou à equipe para ajudar na produção e que aos poucos foi fazendo alguns papéis nas montagens. – O Soffredini me disse que iriam montar uma companhia e me chamou para as reuniões. Eu fui, conheci todo mundo, mas não sabia nada de teatro, não tinha nem o que dizer. Mas ele e o Rubinho Britto tinham embates intelectuais, discutiam muito a respeito da própria virtude do teatro que ele queria fazer, as pesquisas do circo, discutiam a raiz popular, aí é que eu comecei a entender. Eu tinha receio de falar bobagem e ele me mandar embora, então, ajudava com a minha alma enfermeira; quando comecei a entender que podia falar alguma coisinha, passei a ter um grau de intimidade pra falar. Eu ia fazendo mais produção, porque tinha mais disponibilidade, ficava atuando nos bastidores. Quando eles montaram O Diletante, o Soffredini me deu o papel de uma professora no prólogo. Já na Farsa, eu fiz a amiga da Inês e era a camareira da Eugênia de Domênico. As roupas das meninas eu lavava em casa, não tinha lavanderia, eu lavava os maiôs, perucas. O Grupo Mambembe tinha um trabalho muito respeitado, mas nunca foi prestigiado do ponto de vista de políticas públicas. Por essa razão, a equipe se ressentiu quando o SESC acabou com o patrocínio. Do grupo que participou da montagem de Dom Quixote, ficaram doze ou treze que optaram por espetáculos mais simples, ao mesmo tempo em que investiam em um projeto de arte, teatro e estética muito bem estruturado, direcionado a escolas. Maria do Carmo Soares é enfática ao confessar sua admiração por Carlos Alberto Soffredini como homem e como artista: – Quando comecei, era fase de teatro, da encenação, dos diretores, então você ia ver um diretor ensinando e fazendo. Depois veio a época do texto, você ia ouvir um texto. Aí tem a época dos atores, em que você vai ver e ouvir um ator. O Soffredini se enquadraria no artístico puro porque tudo dele foi muito bem cuidado, da melhor qualidade embora pobre. Ele fazia a encenação muito bem cuidada, sabia muito bem como colocar o ator em cena, pegou as pessoas certas pra fazerem tudo. Quando você chegava ao ensaio, já sabia o que ele queria, o que a personagem queria, como a gente ia fazer aquele papel. O Mambembe durou dez anos, teve Soffredini à frente por aproximadamente cinco e montou três peças: A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, em português arcaico, durante uns dois anos; O Diletante, de Martins Penna, por uns três anos; e numa segunda fase, quando Soffredini voltou a São Paulo depois de algum tempo em Salvador, Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, do próprio Soffredini, com direção de Yacov Hilel. Todos os que faziam e ainda fazem estes dois autores de época – Gil Vicente e Martins Penna – optam por montagens bem clássicas, o que não foi o caso de Soffredini, que realizou montagens populares, ainda que absolutamente técnicas. A Farsa ficou mais de oito meses em cartaz, e as escolas tinham que se candidatar com dois meses de antecedência para ver a peça, que recebeu financiamento do Serviço Nacional de Teatro para ser mostrada em boa parte do País. – A Farsa era um primor de técnica, de interpretação. O elenco foi escolhido a dedo pelo Soffredini, que deu ao texto uma linguagem absolutamente anarquista que chocava as pessoas mais puristas – conta Rubens Britto, convidado a fazer parte do grupo por Irineu Chamisso. Teve gente que se horrorizou com a montagem, fazer A Farsa de Inês Pereira como se fosse musical... Mas era muito bom o espetáculo com aquele tipo de produção, de visão. O pessoal não tinha nem a visão clássica do Gil Vicente, e a gente estava levando um Gil Vicente cercado de elementos altamente sofisticados, ainda que dentro de uma linguagem popular, que é sempre sofisticada. Mas eram dois espetáculos – também O Diletante – absolutamente perfeitos. A gente aplicava a triangulação e os vários elementos da interpretação popular. Só que não montamos pra palco italiano, mas sim para colégios, faculdades e outros lugares semelhantes. Era o que se chama hoje de projeto de fomento e formação de público. Para Maria do Carmo Soares, a encenação de A Farsa era um trabalho para a posteridade. – Ele montou Gil Vicente com um texto pra todo mundo entender, sem roupa de época, quebrou esse lado, tirou tudo, era roupa normal para o ator poder brincar em cima daquilo. Rosi Campos, que nos espetáculos ficava com papéis pequenos, de dama galã – no circo, é um tipo de curinga que faz qualquer personagem – concordava com o objetivo do grupo, mas também fazia suas críticas: O Soffredini falava muito isso, de formação de plateia, a gente tinha que ir aonde o povo estava. Então, trabalhamos cinco anos de graça, só quando íamos pros colégios é que a gente ganhava bem. Que se foda a formação de público, é o que eu dizia pro Soffredini vinte anos atrás, que a Secretaria de Educação é que deveria fazer isso e não nós, como atores, que saíamos às sete horas da noite pra vender espetáculo, um puta de um sacrifício pra gente ter um espetáculo de teatro. Calixto de Inhamuns respondia pelas vendas dos espetáculos nas escolas e faculdades – cobravase 80% do preço do ingresso normal de teatro – contando com a ajuda dos professores. Era ele quem coordenava os debates que se seguiam às apresentações e que enfatizavam a cultura e o papel do teatro. Houve vezes em que o Grupo Mambembe fez oito espetáculos em um dia, tal o sucesso da iniciativa e do elenco. – O Soffredini montou o Gil Vicente como um espetáculo moderno, com música. A gente fazia o texto original, que é em português arcaico, e o pessoal entendia, porque o texto era explicitado na marcação. A Farsa de Inês Pereira contava com oito telões de seda como cenário e música ao vivo. Durante os ensaios da Farsa, Noemi Gerbelli e Maria Eugênia de Domênico foram surpreendidas em cena com a entrada de um casal em fuga. Os jovens vieram pela plateia, cruzaram o palco e saíram pelos fundos. Logo atrás, entraram dois policiais com metralhadoras, ameaçando as duas atrizes. Maria Eugênia foi agarrada pelos cabelos; Noemi chegou a ser colocada em um camburão; Soffredini, pasmo com a situação, ia atrás dizendo que ela tinha documento, carteira de trabalho, até que a atriz foi solta. É que em frente ao teatro havia uma passeata, e a policia procurava pelos líderes, que eram o casal em fuga. Na montagem de O Diletante para as escolas, Soffredini escreveu um prólogo contando a história do teatro de Anchieta até Martins Penna. -,Eu me lembro que a gente fazia uma cena logo no começo – diz Flávio Dias – eu como o Anchieta escrevendo o poema na areia, e vinha o Ednaldo como Manoel da Nóbrega e perguntava: ô, Anchieta, o que estaire a fazeire? Que estás a rabiscaire? E o Anchieta respondia: estou a escreveire um poema. – olha a onda, olha a onda... A gente segurava a barra da batina e pulava como se estivesse no mar, e a plateia se matava de rir. No final, os dois olhavam pra uma imensidão de onda, tipo tsunami, que vinha pra cima dos dois e saíam correndo da praia que nem loucos... Com isso, a gente mostrava pra plateia mímica, criação, conceituação, um tipo de teatro que já tinha se perdido no tempo e que estava vivo no circo-teatro. O Diletante foi feito com um pé nas costas. Foi decorar o texto e ir pro palco. O grupo inteiro já sabia exatamente o que o Soffredini queria reflete Flávio Dias ao comparar esse trabalho com Quixote, a primeira montagem do Grupo Mambembe, e que levou quase um ano para ser concluída... Ednaldo Freire acredita que, guardadas as devidas proporções, uma vez que o Mambembe fazia um teatro mais direcionado para o povo, os trabalhos do grupo não estavam muito distantes daqueles feitos pelo Arena e pelo Oficina: – Só que existia um preconceito muito grande. Além do preconceito ideológico, de que o nosso trabalho era coisa menor, ainda mais porque fazíamos comédia, que, historicamente, sempre foi considerada um gênero inferior. Junte-se a isso o fato de que, nessa época, o teatro popular de rua nunca era a bola da vez dos jornais... Essa mesma crítica à mídia e a outros diretores de teatro, Carlos Alberto Soffredini endossaria em depoimento a Vanessa de Carvalho: – A mídia, formadora de opinião, começou a eleger algumas musas da estação, o Gabriel Villela, o Gerald Thomas, e essa gente faz tudo menos teatro. Nas peças do Gabriel Vilella é tudo muito bonito, mas eu não vejo ator lá, ele não sabe o que é teatro, não tem a menor ideia do que é uma cena. O Gerald Thomas é outro, fui ver uma única coisa dele, Don Juan. Eu tive vontade de ir embora, mas não sou daqueles que saem no meio do espetáculo...Isso tudo é feito por uma mídia absolutamente equivocada, de um pretenso modernismo, formadora de opinião, a bem da verdade, principalmente na classe que consome teatro. Por outro lado, também tem a invasão absurda dos atores na mídia, que em geral fazem o que eles chamam de bate carteira. Então, o público vai, mas não volta, porque não é bobo. Além disso, nós não temos mais críticos hoje, o último remanescente foi o Alberto Guzik. E, então, você não tem mais diálogo com a imprensa. Eu, pelo menos, há muito tempo não vejo uma coisa sobre o meu trabalho que me entusiasme. Antigamente, eu lia o Sábato Magaldi e ficava puto com ele, esse cara não sabe nada do que eu quero. Eu jogava a crítica na parede e deixava lá. Uma semana depois, eu ia ler de novo e realmente ele me ajudava. Hoje, os críticos não têm mais o que dizer, são completamente desinformados sobre teatro, eles escrevem peças literárias. Calixto, que a exemplo de Ednaldo Freire, trabalha atualmente com espetáculos dentro de empresas, não tem uma visão muito diferente a respeito dessa fase: – É lógico que o que a gente faz até hoje leva a marca do Soffredini, algumas coisas de interpretação, ele lidava bem com o repertório de ator, formou esse repertório na gente. Até hoje a Rosi, a Noemi, o Rubinho, o Ednaldo Freire, quando no palco, levam o dedo do Soffredini. Mas na época nós sofremos um pouco com esse trabalho;, diziam que fazíamos muito circo e pouco pão, tivemos alguns problemas. Eu acho que fazer teatro é uma questão de tolerância e eu era o ponto de equilíbrio. Eu era quem resolvia os pepinos, porque a minha função no grupo era ficar na pressão, essa racionalidade; eu enchia o saco, porque era uma questão de tolerância, de respeito. Eu tinha que convencer o Soffredini de que ele tinha de acordar mais cedo e terminar aquele texto, porque a gente tinha que estrear a peça. Ele dizia: vou estrear em abril. Como eu já conhecia a cabeça dele, me programava para o final de maio. Douglas Salgado lembra que, para Soffredini e todos os demais, o que houve de mais importante nessa fase foi exatamente a construção de um grupo que apostava nas pesquisas de seu líder, saboreava esse trabalho. – Tudo depois disso seria a repetição do que a gente havia feito, e a repetição nunca é tão estimulante quanto a criação. O Soffredini era um homem de criação, não era de ficar se repetindo, e um grupo de dez anos tem que acabar mesmo, ou vira um museu. Ter feito o Quixote foi a melhor fase da minha vida. O teatro me deu aquilo que eu buscava até então e que tinha tentado na religião, na política; nada chegou perto do que eu vivi e aprendi, virei gente fazendo teatro. Antes de estrear em São Paulo, em 1.º de março de 1978, no Teatro Ciranda, A Farsa de Inês Pereira tinha atingido um público de 14,5 mil espectadores durante apresentações feitas em vários bairros de São Paulo, inúmeras cidades do Interior e diversos Estados brasileiros. Foi o primeiro grupo profissional paulista a se apresentar em Rio Branco, no Acre, e em Porto Velho, no território de Roraima. O Grupo Mambembe viajou muito pelo Serviço Nacional de Teatro, que trabalhava com rotas definidas – a equipe pegou Norte e Centro Oeste. Eram viagens rápidas, mambembes mesmo, e, numa delas, Soffredini e Rosi Campos visitaram uma emissora de rádio para falar da peça de Gil Vicente que apresentariam. O locutor não teve dúvidas: e agora, aqui com vocês, Gil Vicente. Rosi explicava: não, o Gil Vicente já morreu, quem está aqui é o Soffredini. Noemi Gerbelli também tem uma história engraçada para contar dessas viagens: – O Soffredini me dizia que se eu tivesse medo de andar de avião, que tomasse umas e outras. Eu não bebo, e ele devia ter medo porque, uma ocasião, ele viajando bêbado pra caramba, o avião decolou, pousou no Rio, fez escala em Cuiabá e, em vez de ir para Rio Branco, fez um pouso de emergência em Manaus. Tínhamos que chegar, montar cenário, todos já estavam bêbados e eu chorando no meu canto, achando que aquela merda ia cair e eu ia morrer. Enfim, chegamos em Manaus, ficamos no Hotel Tropical, foi uma farra, e depois nos apresentamos em Rio Branco. Dezesseis pessoas num palco de dois metros quadrados e um ventilador enorme rodando. Na montagem, eu era a alcoviteira e a Eugênia de Domênico fazia a Inês. Só que a Eugênia não quis viajar, e eu fui fazendo a Inês sem ensaio, não deu nem tempo de ensaiar em Rio Branco. Na peça, a Inês lia duas cartas de um pretendente em cena, uma em que ele a pedia em casamento e outra em que ele anunciava a chegada para casar. Eu li a primeira carta e quando foi a vez de ler a segunda, não tinham me dado a carta certa, era a mesma. Saí de cena desesperada, chorando e xingando o Soffredini que não tinha me deixado ensaiar. Vem Buscar-me que ainda sou Teu, baseado na música Coração Materno, de Vicente Celestino, é o resultado dramatúrgico da pesquisa sobre circo-teatro levada a efeito por Carlos Alberto Soffredini no Grupo Mambembe. Para Ângela Maria Dias e Paula Glenadel, no livro Estéticas da Crueldade, capítulo Carta a Artaud, o texto está repleto de reflexões sobre o teatro em si, enfocando a situação do circo-teatro como uma arte decadente: – (...) A justificativa de que o artista deve fazer a vontade do público explica a estética desenvolvida no circo. Opõe-se à verdade ´de algum princípio estético moderno – Prefira a mentira da verdade à verdade da mentira´ – e fundamenta o princípio romântico. (...) Fico aqui, por ser somente o que acima deixo expendido, aquilo que foi-me possível coligir e coordenar sobre esta peça e tuas teorias, que, não obstante, julgaria ser um dos mais felizes trabalhos teatrais de todos os tempos. (Rio de Janeiro, 15 de abril de 2003). Soffredini tinha visto Vicente Celestino no Teatro Coliseu, em Santos, quando o ator e cantor apresentou-se com a mulher, Gilda de Abreu, na peça Coração Materno. Era bem garoto na época, mas lembrava do espetáculo, que achava muito parecido com circo. Porque era um melodrama, um drama romântico, a peça de circo também era. Vicente Celestino, quando ia a uma cidade que não tinha teatro, apresentava-se em circo. O grupo dele convidava outros cantores e atores. Então, era tudo muito misturado; o circo-teatro se confundia muito com revista, com quadro de variedades, comediantes. Mas quando o Vicente Celestino ia a Santos, tomava status de teatro, porque ele se apresentava no Coliseu. Eurico Sampaio, que compunha a equipe de artistas plásticos do Grupo Mambembe, ao lado de Irineu Chamisso Jr., fala do processo de trabalho do amigo: – Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu foi pensado durante o processo de pesquisa no circo-teatro e escrito devagar, não em um estado febril. Era uma coisa caseira, ele não tinha urgência de entregar; deve ter sido muito prazeroso ter escrito o texto que é o casamento de suas pesquisas com a dramaturgia. Ele ficou muito ressentido quando o grupo escolheu outro diretor para dirigir o espetáculo, ficou enciumado. É que antes que a peça tivesse ficado pronta, Soffredini viajou para a Bahia, onde o texto foi finalizado. Calixto se recorda dessa fase: – Quando o Soffredini voltou da Bahia, um ano depois, a ideia é que ele dirigisse a montagem. Mas nós já estávamos em um outro processo, queríamos montar A Lata de Lixo da História com direção do Yacov Hilel, que se mostrou mais interessado na montagem do Vem Buscar-me. O Soffredini tinha escrito o papel da Mãezinha pra Myrian Muniz, então, começou dentro do grupo uma discussão; nós não queríamos ninguém de fora. Soffredini sofria com isso porque não tinha escrito o texto pra gente, ele tinha escrito a Mãezinha pra Myrian Muniz, que não quis fazer o personagem porque tinha um filho excepcional, e seu papel repetiria essa situação. Wanderley Martins conta um pouco mais da montagem: – Descobri que o Vem Buscar-me na métrica era maravilhoso; eu estudava pra caramba e, como queríamos estrear em outubro de 1979, tínhamos que fazer música de um dia pro outro. O Irineu fez um trabalho fantástico e eu ganhei um prêmio Mambembe e o da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte. Nosso concorrente era A Ópera do Malandro, do Chico Buarque. No ano seguinte tinha Calabar e ganhamos também. Soffredini achava o texto de Vem Buscar-me enorme: É um texto que não acaba mais, as pessoas só montam ele picado, então cada montagem é uma montagem diferente. Rosi Campos, que ganhou prêmio como revelação, só tem elogios para a peça – dava pra ver a qualidade do texto, maravilhoso, é uma das obras mais marcantes do Soffredini –que não contava com qualquer tipo de patrocínio, nem mesmo divulgação e para os telões em preto e branco do cenário. – Fazíamos teatro assim, fosse quem fosse, não tinha essa coisa de mandar release, o crítico ia, fazia a crítica e as pessoas iam ou não. A gente tinha muito público universitário. E nossa montagem era lindíssima, um luxo, porque o Soffredini fazia um trabalho muito forte do melodrama que foi sumindo, há preconceito. Também temos esse problema com musical, com comédia; o tratamento que nos dão é diferente, a gente enche teatro mas não é tratado como se fôssemos atores. Vem Buscar-me foi encenada no Teatro Célia Helena, recebeu elogios da crítica, mas fez carreira curta. Para Ednaldo Freire, o Grupo Mambembe transformou-se em outra coisa quando Soffredini saiu, perdeu aquelas características de uma pesquisa ligada ao circo: Era uma coisa intrínseca no Soffredini. Ele saboreou muito esse processo, principalmente no Dom Quixote, e depois parece que partiu pra outra. O que ele queria tirar do circo-teatro ele tinha conseguido com esse trabalho, que ainda rendeu o Vem Buscar-me. Acho que ele estava certo, senão ia ficar fossilizado. Então foi fazer Na Carrêra do Divino, maravilhoso, que era uma pesquisa de dialeto, de prosódia, foi pra outros campos. Acho isso uma coisa lógica, interessante. Foi um salto na dramaturgia dele. Em 1977, Carlos Alberto Soffredini colocaria suas observações sobre o teatro que estava realizando com o Grupo Mambembe no artigo De um Trabalhador sobre seu Trabalho, publicado em julho de 1980, na Revista Teatro: (...) Nós achamos que teatro é a hora de encher os olhos. É a hora de aprender, sim, mas pelo amor de Deus, não ensinamento de cima pra baixo, sectário, de uma verdade previamente selecionada. É a hora de penetrar na vida dos outros, daqueles personagens incríveis, incomuns, dos quais a gente já ouve falar faz tempo. É a hora de olhar para a intimidade dos reis. É a hora de ficar frente a frente com os eternos grandes medos do homem, e que provocam nele o arrepio da atração do abismo: o incesto, o matricídio, o canibalismo, a traição, a paixão cega, a morte... e outros. É a hora de se ver no espelho sim, mas não um espelho comum, que esse a gente tem no guarda-roupa, mas um daqueles espelhos que fazem a gente rir, se vendo de uma forma inesperada. É a hora de rir. Um Acolhedor de Pessoas Ele veio pra este mundo pra ensinar, tinha métodos, eram ensinamentos pedagógicos, nada era hermético, fechado. Ele veio pra dispor do conhecimento, pra transmitir, e veio também pra modificar a vida das pessoas; modificou a vida de cada um que encontrou pelo caminho. Era generoso, sempre foi, abriu o coração, a casa, o ensinamento, nunca escondeu nada de ninguém. Foi, na verdade, um acolhedor das pessoas. Por que através do teatro ele te tocava não só pela amizade, mas como te conduzia, ele entendia o teu limite e mostrava e ensinava a arte dele. O circo foi ele que olhou, refinou e elaborou pra nós. Viu que aquilo era brasileiro, era popular, tinha valor e transformou pra nós. E isso é um olhar artístico, porque no circo tem malabarista, tem globo da morte, tem a roda gigante, tem o riso do palhaço e tem o amor em que você se reconhece. O olhar dele foi muito avançado; olhar lá e transformar pra cá, porque se você não viu, sua mãe viu, sua avó viu. Ele aproveitava o que a gente já tem e nem sabe. Não era o circo que você reconhecia, mas gente perto de você, o galã, a mocinha, e isso é que era extraordinário dele e dava o artístico. Ele trazia aqueles arquétipos de circo e não falava que era de circo e quando você olhava uma ingênua, você identificava; a maioria das pessoas sabia que aquilo era circo porque o olhar dele era transformador. Ele podia ter feito o que quisesse, todo tipo de teatro, mas optou por fazer aquilo que queria fazer e montou um grupo a serviço de uma ideia. E o Soffredini tinha uma coisa fantástica, ele era refinado, os espetáculos dele não ti nham escatologia. É difícil distanciar o homem Soffredini do artista Soffredini, ele viveu plenamente os dois a vida inteira. Foi um transmissor do seu tempo como homem e como artista. Foi transgressor a vida inteira na arte e na vida.Tudo o que ele escreveu tinha tudo a ver com quem ele estava convivendo. Era um observador das pessoas, gostava do ser humano, não tinha rancor, nunca foi de falar mal de ninguém. Ele modificou a minha vida porque me deu uma coisa que é a arte. E a arte é eterna. Maria do Carmo Soares atriz Ele Já Era Moderníssimo Nunca imaginei onde eu estava me enfiando, porque o Mambembe já era um grupo com característica profissional, e eu nunca tinha feito rua. Só sei que pegar uma substituição do Dom Quixote foi a maior escola que eu tive na vida, porque era um espetáculo lindo, deslumbrante, dificílimo – aliás, está na hora de remontar – porque eram milhões de quadros e era um tal de sair, tirar a roupa, botar roupa, cantar, dançar, representar, mudar o personagem, adorei fazer. Gosto de estar na bagunça, gosto do jogo teatral, da pesquisa. Engraçado é que na época, na ECA, você não podia falar em circo porque era uma coisa reacionária e quando me perguntavam o que eu estava fazendo, eu disfarçava. Era época de ditadura, a gente tinha que falar de tortura, tinha que denunciar. Minha experiência no Grupo Mambembe foi maravilhosa, a gente trabalhava muito, ensaiava até meia-noite, depois ia o elenco inteiro pra casa do Soffredini. Ele fazia o jantar, sempre cozinhou muito bem, aquela cozinha tinha montanhas de panela. Era uma coisa muito afetiva, muito família, amorosa. Ele conseguia juntar pessoas legais, era um grande amigo, tio, pai, era de agregar as pessoas. Então, você conversava, discutia, resolvia os problemas, eu nunca mais tive essa relação com um outro diretor. Ele era muito de conversar, bater papo, nos pegava pelo projeto, não tinha essa coisa de ego, do papel do outro ser maior ou menor, mais ou menos importante. O que importava era a peça, era a celebração, era uma coisa feliz e era isso que a gente queria, participar. O Soffra foi muito low profile em tudo. Eu e ele somos de uma geração que não quis ir pra televisão. O Paulo Betti, quando estourou em Na Carrêra do Divino, foi pra Globo, em 1980, construiu uma puta carreira, que é uma coisa que a gente nunca fez. Eu fui pra Globo com quarenta anos, hoje em dia tem que ir com vinte anos pra ter oportunidades legais. Se você souber se mexer lá dentro se dá bem, não é porque você faz televisão que não pode fazer teatro, cinema. Pelo contrário. Naquela época não existia uma política, nunca teve, nosso grupo sempre foi contra qualquer tipo de apadrinhamento, e ele também era assim, a gente sempre trabalhou sem verba, sem nada. Era o momento, era uma geração, a gente fazia por amor, sem visão empresarial ou mercadológica de um produto. Ele só deu, doou o tempo inteiro, era uma pessoa de doação, não lembro dele dizendo: agora vou tirar isso pra mim. A liberdade que ele dava pra gente, o que você quer fazer, o que você gosta de fazer... ele aproveitou o talento de todo mundo, sabia colocar muito bem as pessoas, definir muito bem as coisas. O Soffra tem essa qualidade de resgate total dentro do panorama da dramaturgia brasileira, que é importantíssimo. Sempre foi um cara avante da época dele, ele já era moderníssimo. Hoje todo mundo faz o que ele fazia e ganha prêmio. Rosi Campos atriz Capítulo X Salvador Em 1978, Carlos Alberto Soffredini foi para a Bahia a convite de Teodomiro Queiroz, que tinha conhecido em São Paulo, quando este trabalhava como assessor artístico de Luiz Nagib, então dire-tor do Teatro Municipal. Teodomiro cuidava da parte de teatro e dança e fazia a programação dos chamados teatros experimentais quando, de volta a Salvador, decidiu criar, no Teatro Castro Alves, um curso livre de teatro, que durou cinco anos, oferecendo a Soffredini os cargos de diretor geral e diretor artístico. Hoje, ocupando o cargo de diretor daquela casa de espetáculos, relembra seu trabalho com o amigo: – O trabalho dele de pesquisa me levou a escolhê-lo, era muito importante. Eu precisava de um diretor que se devotasse à formação do ator, e seu trabalho me deu subsídios para compreender o teatro baiano na época. O Teatro Castro Alves era um elefante branco, porque era um teatro esplêndido, com 1693 lugares, mas que não tinha público. Então, entre 1978 e 1983 criamos o balé, a orquestra sinfônica, o curso livre de teatro, convidando artistas como o Soffredini. Marcamos a nossa presença nessa época, viramos referência. Soffredini contribuiu com o teatro baiano com duas montagens: Yerma, que já tinha dirigido na Escola de Arte Dramática, e O Asno, adaptação livre de um texto de Gil Vicente. Com o curso livre de teatro – lembra Teodomiro revelamos muitos atores e contribuímos para a profissionalização do teatro baiano. O Soffredini foi um marco na vida do Teatro Castro Alves, o primeiro diretor convidado. Ele se apaixonou pela cidade, era muito querido, tinha muitos amigos aqui, nunca estava sozinho, passou uma boa temporada conosco. As audições, a seleção de atores, a equipe que estava sendo montada, tudo era uma coisa muito nova pra mim, e o trabalho dele foi determinante. A gente conversava muito e trocava muitas ideias, e toda minha referência do trabalho de teatro começa com ele, digamos assim... Yerma foi gerada em quatro meses e ficou um mês em cartaz. A escolha da atriz que faria a personagem principal foi engraçada, como lembra Soffredini: – Meu processo de adaptação à cidade, às pessoas foi difícil. A cidade é encantadora, todo mundo é encantador, muito encantador demais pro meu gosto; eu não vejo consistência, e cheguei lá querendo trabalhar como paulista. Eu tinha três meses para montar uma peça, uma peça difícil, com 24 pessoas no elenco, e já cheguei mandando embora a prima dona, que ficava sempre sentada. Eu mandava ela ensaiar, fazer trabalho de corpo e ela dizia que já tinha o corpo trabalhado, ela se achava uma grande atriz. Aí dispensei e coloquei no papel a Maria Rivas, uma atriz de talento totalmente disponível, uma mulher linda que não preencheu completamente o papel mas fez bem... Como todo mundo trabalhava durante o dia e eu só podia trabalhar durante a semana, tentei trabalhar no sábado, mas marcava às três da tarde e as pessoas apareciam às cinco, de pilequinho, faltava muita gente. Eu fui ficando nervoso, tive medo de ter um enfarte, resolvi maneirar e então pedi seis meses pra ensaiar . O Asno estreou na sala do coro – o espaço nasceu com Soffredini, era uma semi arena – e foi ensaiado em menos tempo, cerca de um mês e meio. Ficou em cartaz por um mês. – Quando convidei o Soffredini, eu conhecia o trabalho dele, nos tornamos amigos aqui – diz Teodomiro. Ele estreitou a relação com os atores, desenvolveu uma relação de muito amor com Salvador e veio num momento difícil, um momento muito novo. Ele foi uma peça muito importante nessa minha primeira empreitada no Teatro Castro Alves. Houve um intercâmbio, uma ajuda mútua. Eu o convidei para um desafio, dei uma estrutura. Eurico Sampaio tinha feito cenários e figurino de uma obra de Garcia Lorca na Escola de Arte Dramática de São Paulo – A Casa de Bernarda Alba – e na montagem que Soffredini fez de Yerma no Teatro Castro Alves, assinou cenário e figurino, respondendo também pela direção de produção. Diz ele: – Naquele meu primeiro momento na EAD, tudo era novidade, era meu primeiro contato, foi quando eu comecei a ter meu primeiro entendimento de teatro. O Soffredini deu uma interpretação toda particular à Casa de Bernarda Alba. Foi um trabalho muito pungente, aquele texto foi exato, resultado da competência. A ideia era não fazer um espetáculo realista. O Soffredini tinha uma obra única e muito integrada; ele montava a cena com todos os elementos dela: cenário, texto, voz, figurino, marcação, tudo. E tudo importava para ele, desde os atores com papéis menores até os protagonistas...Quando foi para montar Yerma, ele colocou no papel de protagonista uma jovem completamente inexperiente, e foi retaliadíssimo por isso em Salvador. Ele trabalhou essa menina à exaustão. Antonia Adorno, atriz e diretora de teatro, foi indicada para trabalhar na produção e divulgação e conta como foi seu primeiro encontro com Soffredini: – Chegou o dia da minha reunião com o diretor que eu não sabia quem era. Virei pro seu Miguel, porteiro do teatro, e perguntei: seu Miguel, quem é o homem? Aí o Soffredini, o próprio, virou e disse: Eu sou o homem! Aí eu falei: vim conversar com você para saber detalhes. E ele me disse: por que não fazes o espetáculo como atriz? Era o dia do teste, ia começar às dezoito horas, e eu não tinha memorizado, não tinha preparado nada, e ele: não sabes nada de cor? Um poema, qualquer coisa? Eu sabia um poema de Brecht, fui fazer o teste e passei. Era um teste aberto pra comunidade artística. Lógico que quando o Teatro Castro Alves abre um edital, patrocina um trabalho profissional com um diretor de fora, como ele era, quem se inscreve é ator, não necessariamente um ator de carteirinha, que já fez universidade, mas com alguma experiência em teatro. Ele foi uma grande surpresa para nós, nós não o conhecíamos. Ele fez uma análise, primeiro histórica, contextualizando a obra. Primeiro a Espanha, terra de Lorca, que morreu no franquismo, e aí ele fez uma análise do contexto da época em que Lorca viveu, o assassinato de Lorca pela guarda civil espanhola; situou o teatro de Lorca como um teatro eminentemente popular. Então, ele fez uma exegese de palavra a palavra, frase a frase, que ficou um mês só na mesa. Todos os dias, eram seis horas de ensaio, entre a doçura dele, coisa de amigo e tal, e a rigidez na direção. O público gostava da peça, chegava a ter mais de mil espectadores. (...) Ele veio dirigir uma peça e montou duas. O elenco se apaixonou por Soffredini e queria ter mais uma experiência com ele. Ele então dirigiu uma comédia, outra linguagem, em que cada ator dava seu show. A gente acabou se soltando, não teve um trabalho de marcação rígida como em Yerma. A gente improvisava e ele aproveitava o material. Em 28 de maio de 1978, o Jornal da Bahia escrevia, com o título Yerma, um Grande Teste para os Atores Baianos, o que segue: – Se alguém ainda tinha alguma dúvida de que estão em Salvador alguns dos melhores atores brasileiros, deve ter ficado definitivamente consciente disso se já teve oportunidade de assistir Yerma, espetáculo dirigido por Carlos Alberto Soffredimi, da obra de Garcia Lorca, e primeira produção do Teatro Castro Alves na área de teatro adulto em 1978. A maior e mais expres siva lição que o espetáculo pode nos dar é a da competência de seu elenco que atravessa as duas horas de função sem maiores desequilíbrios e oferecendo, ainda, três grandes trabalhos dignos de menção e elogio: Marisa Rangel, Lola Laborda e Orlanita Ribeiro. Estruturado num esquema de superprodução, Yerma foi gerado durante quatro meses quando ocorreram mudanças de elenco e de proposições. O que chegou ao palco do TCA foi, no mínimo, um espetáculo maduro nas cabeças de seus intérpretes que conseguem transmitir ao público o que há de mais belo em Garcia Lorca: a poesia de seu texto Anotações do Diretor foi o título dado por Sof fredi ni ao texto que escreveu no programa da peça: É a segunda vez que trabalho com Federico Garcia Lorca. É um prazer incrível trabalhar com esse homem universal nascido na Espanha. Penetrar seu texto é penetrar um mundo inacreditavelmente humano e poético, cheio de espaços belíssimos, cheio de gostos dignos, cheio de gritos atormentados, cheio de sangue. Penetrar seu texto é ter um arrepio à flor da pele. Muitas vezes, quando estávamos montando as cenas das peças, muitas vezes todos nós choramos – Yerma Salvador – 1978. Um Diretor que Merecia Todos os Títulos Um ano antes do Soffredini chegar ao Teatro Castro Alves, o Maurice Vaneau estava dirigindo o teatro, montou lá O Auto da Compadecida. Aí chega o Soffredini pra fazer esse espetáculo. Nós chorávamos na análise de texto, ele era muito sensível, nós também. Era um grande diretor vindo de fora que merecia todos os títulos que tinha... Nós é que escolhemos o elenco. Um dia, ele mandou que escrevêssemos em papéis quem seria quem e quase bateu com a lista dele. Alguns me indicaram para fazer a Yerma, mas eu não achava que podia, era um voo muito alto... Meu personagem foi meio torturante, porque eu via as cunhadas como cobras e não como militares, como ele, que tinha aquele veio social formidável, socialista. O público gostava. Tivemos um mês e meio ou dois de ensaios, teve todo o processo de figurino; o Sérgio Souto compôs as músicas para Yerma. O Soffredini já tinha algumas músicas prontas, que ele havia trazido, fizeram aqui os arranjos para execução. Para mim, como atriz, foi um verdadeiro desafio, foi o trabalho mais centrado, mais organizado que fiz, com a preocupação para a forma. O ator fica solto, mas, na verdade, se enquadra dentro de um contexto visual... A contribuição maior do Soffredini foi a seriedade com que lidou comigo. O ator tinha que ser respeitado, mas tinha também que dar sua contribuição. Ele escutava todos, tanto aqueles que tinham compreendido a linguagem, como aqueles que não tinham. Aproveitei dele a disciplina espartana que ele passava para os atores. Ele tinha aquela estrutura de texto, que mostrava a concepção de suas ideias para nós de A a Z. O formalismo dele era simples como a arte quer, muito simples... Ninguém jamais esqueceu Yerma. As pessoas de teatro que foram assistir jamais esqueceram. Os textos que ele montou deram uma contribuição enorme para Salvador. Não digo que tenha mudado uma mentalidade, porque ficaram pouco tempo em cartaz, mas aquela amostragem de atores... todos continuam no teatro. Foi um dos maiores diretores que conheci e o maior que já me dirigiu. Ele era especial de fato. Aprendi muito com ele, aprendi muito mais sobre Lorca com ele. Antonia Adorno atriz Um Diretor Devotado à Formação do Ator Morei cinco anos em São Paulo e isso passou a ser a minha referência. Tudo o que eu queria fazer no Teatro Castro Alves passava pelo que eu tinha feito no Teatro Municipal de São Paulo; era o meu modelo. Entre 1978 e 1983, marcamos a nossa presença, viramos referência, convidamos artistas como o Soffredini, que fez parte de um momento em que a gente trouxe o novo para Salvador. O trabalho dele de pesquisa em São Paulo me levou a escolhê-lo. Eu precisava de um diretor que se devotasse, que fosse muito interessado... Eu também estava acabando de chegar, e o trabalho dele me deu subsídios para compreender o teatro baiano na época. As audições, as seleções de atores, a equipe que estava sendo montada, tudo era novo pra mim. A gente conversava muito e trocava muitas ideias, e toda a minha referência do trabalho de teatro começa com ele, digamos assim... Ele veio num momento difícil, um momento muito novo. E foi uma peça muito importante dessa minha primeira vez no Teatro Castro Alves. Houve um intercâmbio, uma ajuda mútua. Hoje, as condições são melhores, mas naquela época tudo era desafio. No entanto, fizemos dois espetáculos e um curso. Imediatamente após ele chegar, Yerma, de Garcia Lorca; e depois, uma adaptação livre de Gil Vicente, O Asno. De uma certa forma, a gente contribuiu muito para a profissionalização do teatro baiano. Com o curso livre revelamos muitos atores, profissionais de prestígio que saíram dali e seguramente estiveram com o Soffredini em Yerma e O Asno. Teodomiro Queiroz ator Capítulo XI Dramaturgia de Encomenda Em 1972, Soffredini voltaria a trabalhar com a Escola de Arte Dramática, escrevendo, a pedidos, o texto Mais Quero Asno que Me Carregue do que Cavalo que me Derrube, versão livre de A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente. A peça, dirigida por Celso Nunes, seria considerada um sucesso por Soffredini e daria início a uma série de montagens do texto – seis, para sermos exatos – muito bem-sucedidas. – Eu adorava Gil Vicente e essa história – ele confessava – e como a classe que tinha me pedido um material era formada na maioria por mulheres, entreguei esse texto, que já estava alinhavado. Como foi numa fase em que eu estava interessado em teatro de revista, resolvi fazer algumas cenas cantadas, fiz os versos. A montagem de Mais Quero Asno na EAD incentivou Elvira Gentil, Jandira Martini e Francarlos Reis a levar profissionalmente A Farsa de Inês Pereira para um espaço chamado Casa do Pequeno Trabalhador, uma entidade que orientava menores para o trabalho e que funcionava embaixo do Viaduto do Chá. A direção foi entregue a Elvira Gentil, mas no decorrer da montagem, Soffre dini, que estava encarregado da coreografia, acabou se envolvendo no processo. Depois disso, a peça foi para o Teatro do Meio do Teatro Ruth Escobar, onde ficou em cartaz por oito meses, com sessões lotadas e, em 1973, foi apresentada no Teatro Municipal – uma experiência fantástica para o elenco integrado, entre outros, por Eliana Rocha, fazendo a protagonista, Carmem Silva, como a mãe, Cacilda Lanuza, no papel da portuguesa, e Noemi Gerbelli, Ileana Kwasinski e Jandira Martini como as coristas. – O Soffredini fez as coreografias, que eram o forte do espetáculo, e deu bastante palpite – lembra Eliana Rocha. A música era do Fabinho Cintra, que já tinha uma certa parceria com o Soffredini. Talvez a concepção da Elvira tenha sido boa, porque ancorou uma simplicidade que o texto precisava. Foi uma feliz coincidência de pessoas diferentes e talvez incompatíveis de outras maneiras. Era uma gracinha, uma peça meio cult, foi muito bom fazer. Jandira Martini conta que era um espetáculo muito interessante, muito benfeito, muito adequado e muito bem-sucedido que depois foi montado no Rio de Janeiro em produção de Thereza Rachel, direção do próprio Soffredini e com Carmem Silva no elenco. A peça recebeu o prêmio Grilo de Ouro de melhor espetáculo nacional e deu a Carmem Silva seu primeiro prêmio como atriz em 34 anos de carreira: o prêmio APCA de melhor atriz coadjuvante no ano de 1973. Sábato Magaldi, crítico de teatro do Jornal da Tarde, viu a montagem de O Asno em São Paulo e, na edição do jornal de 15 de maio de 1973, elogia o espetáculo: ... Não sei há quanto tempo não me divertia tanto como na nova estreia do Teatro do Meio. Carmem Silva é um fenômeno inédito no teatro brasileiro: tendo passado despercebida e sem oportunidade anos e anos de carreira, sacode todo mundo com dois desempenhos brilhantes no momento em que ameaça aposentar-se: na peça Nossa Vida em Família, de Oduvaldo Vianna Filho, e agora em Mais Quero Asno. Cacilda Lanuza exterioriza tudo, até o paroxismo, e não se importa de mergulhar numa composição que a desfigura fisicamente. ... Carlos Alberto Soffredini soube abrasileirar A Farsa de Inês Pereira de Gil Vicente, o fundador do teatro português. A adaptação encontra um equivalente delicioso nessa história que poderia acontecer em qualquer bairro popular da cidade. O tratamento de comédia musical ajuda a dinamizar o mecanismo dos diálogos. ... Verifica-se com prazer como uma farsa portuguesa se aclimata perfeitamente ao estilo de uma comédia brasileira de costumes... Em 1978, O Asno foi dirigida por Soffredini no Teatro Castro Alves de Salvador e em 1987, ainda por ele, em montagem do Núcleo Estep. Em 1985, foi montada pelo diretor Ednaldo Freire, que recebeu crítica elogiosa por parte de Edélcio Mostaço na Folha de S.Paulo de 29 de novembro daquele ano: – Com esta nova encenação, pela direção de Ednaldo Freire, Mais Quero Asno, farsa de Carlos Alberto Soffredini, parece definitivamente integrada ao repertório brasileiro. Capítulo XII Dercy Beaucoup Em 1979, Carlos Alberto Soffredini assumiria uma missão espinhosa: trabalhar ao lado de Dercy Gonçalves escrevendo e organizando o texto do espetáculo Dercy Beaucoup. Quem o apresentou a Dercy foi a prima Wilma Vicente, que havia seguido uma carreira paralela no teatro, trabalhando primeiramente na SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e depois na administração de espetáculos – entre eles, Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri, com Martha Overbeck e Othon Bastos. Wilma aceitou então um convite de Dercy Gonçalves para secretariá-la – ocuparia esse cargo por seis ou sete anos – e como continuava em contato com Soffredini, aproximou os dois. – A Dercy queria mudar o espetáculo Dercy Beaucoup, que era autobiográfico; fazer uma coisa diferente, e então o Beto propôs que a vida de teatro dela começasse em um carroção. Eram quatro atores em cena e a equipe se envolvia em todas as fases do projeto, construindo cenários, desenvolvendo figurinos. Wilma conta que a relação dos dois era tumultuada e que o texto que Soffredini escreveu em conjunto com Dercy foi feito na íntegra pela atriz por uns seis meses – depois Dercy passou a fazer alterações no material. A carreira da peça foi bem, mas, aos poucos, outras mudanças foram sendo feitas no espetáculo e, na temporada do Teatro das Nações, o carroção saiu de cena porque custava caro para transportar. Foi substituído por uma tenda, mais fácil de montar. – Só que o que o Beto fez foi uma coisa mais teatral – lembra Wilma Vicente. Os atores saíam do carroção em andrajos e por baixo havia as roupas que eles transformavam em arlequim, palhaço, feito a Commedia Dell’ Arte, a roupa da Dercy também era muito bonita. Acho que até o fim ela seguiu o texto que ele escreveu. A costura do espetáculo, o que era o começo, o meio e o fim, a linha, foi ele quem deu. Ela incluiu algumas histórias que criou, com o tempo, mas depois voltava no texto dele. Soffredini gostava de Dercy, dizia que ela era muito rica em ideias, mas com o tempo passou a achar que ela era muito maluca, desrespeitosa e mal-educada. Ele dizia que a Dercy Gonçalves o deixava aflito, que transformava tudo, mudava o texto, uma de suas características como atriz, e quando chegou lá pela quinta, sexta apresentação, Soffredini não queria mais saber do espetáculo. Entendo que naquela época, com 75, 76 anos, ela já tinha falhas de memória e talvez mudasse porque não lembrava do texto e improvisava, ia em frente. Acho que ela não sabia se explicar para ele, não conseguia alcançar as diferenças de gerações – diz Wilma. Capítulo XIII Na Carrêra do Divino Por volta de 1979, Soffredini escreveria para o Pessoal do Victor sua primeira peça em dialeto, Na Carrêra do Divino. O grupo, que era formado, em sua maioria, por gente do interior do Estado, queria contar suas histórias, afirmar sua identidade. Já tinha uma pesquisa do universo caipira, mas não sabia como transformá-la em dramaturgia. Foi a partir desse material, amadurecendo essa pesquisa, que Soffredini escreveu o texto que foi premiado pela APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte e com o Prêmio Mambembe. A peça rendeu ainda os prêmios APCA, Mambembe e Molière de melhor diretor para Paulo Betti; Mambembe de melhor ator para Adilson Barros; APCA e Mambembe de melhor música para a direção musical de Wanderley Martins. O próprio Soffredini é quem relata a Eliane Lisboa como foi esse processo que o levou ao estudo do dialeto e ao aprofundamento de suas pesquisas junto a autores como Amadeu Amaral que havia escrito um dicionário caipira –, João Pedro e Ivo Silveira: O Pessoal do Victor, do Paulo Betti, tinha um trabalho inspirado no Asdrúbal Trouxe o Trom bone, o grupo que fez o relato da sua geração, inclusive da sua geografia, era o pessoal de Ipanema, e que fez o Trate-me Leão. O Pessoal do Victor queria fazer o Trate-me Tatu, que era a reminiscência deles, a vivência no interior. Então, eles se juntavam, fritavam mandioca, conversavam, lembravam, anotavam, mas nada acontecia, estavam muito amarrados. Quando cheguei, eles estavam lendo Os Parceiros do Rio Bonito. Resolvemos montar, mas eu disse que não era caipira, não era a minha linguagem, a minha era a urbana, litorânea. Então, eu disse: olha, eu escrevo na minha linguagem e vocês traduzem, mas eles pensavam que estavam falando caipira. Então, eu fui lendo todo esse povo que lidava com dialeto e comecei a descobrir que existia um dialeto que eu não sabia nem eles. Recolhi tudo, fui pra casa e comecei a estudar. Fui me aprofundando e só quando comecei a raciocinar no dialeto é que voltei a escrever. Aí foi num salto porque nada que eu vinha fazendo até então tinha a ver... Soffredini permitia a Deise Sartório, amiga por toda uma vida, que ela lesse algumas das cenas de Na Carrera, ainda na máquina de escrever. Deise acompanhou todo o trabalho com o Pessoal do Victor, ia aos ensaios, observava o jeito de falar dos atores e considera a fase de Na Carrêra do Divino uma das melhores da vida do amigo: – É claro que eu não entendo de dramaturgia, de teatro. Eu lia como qualquer leigo e perguntava: mas por que esse personagem tem que ser assim? Por que essa mulher tem que ser dessa forma? Aí ele tinha paciência e me explicava. Como meus pais são do interior, ele me perguntava algumas coisas de linguagem, algumas expressões. Ele escrevia nos papeizinhos, fazia todos os rascunhos nas agendas, acordava tarde, depois ia pra máquina de escrever no final do dia e só saía de manhã. Nem sei como a gente conseguiu ter amizade, porque não se encontrava nunca. Como nunca trabalhou com teatro, Deise acredita ter sido uma outra referência para Soffredini. – Nas estreias, por exemplo, ele não ia, ficava no bar mais próximo. Passavam uns dias e ele dizia: Você gostou do espetáculo? O que é que você achou? E eu respondia: mas por que é que você vem perguntar pra mim? Tem que perguntar pras pessoas que entendem... Ele tinha plena consciência de que o que fazia era bom, mas na minha opinião o Soffra não sabia fazer marketing, o jogo, ele não lidava bem com isso. Ele sabia trabalhar, era uma coisa de engenharia, de montar aquilo, aquela ideia, aquele texto daquele jeito, de pesquisar, ele ia fundo, era uma pessoa aplicada. Conhecia as pessoas, mas não tinha esse impulso de ir pra mídia, de buscar a mídia, isso ele não tinha, até mesmo por ser uma pessoa de vida muito reservada. Não fazia esse lobby. Soffredini teve como parceiro na montagem de Na Carrêra do Divino Wanderley Martins, que lembra com carinho dessa fase: – O Pessoal do Victor tinha a voz linda da Eliane Giardini, a musicalidade de Adilson Barros e então nós ficamos um tempão trabalhando com as canções caipiras tradicionais: Tristeza do Jeca, Cuitelinho e outras. Eles já cantavam algumas canções, até começarem a aparecer as primeiras cenas. Eu tocava e o Soffra passava pra forma mais acabada, ele foi fazendo aos pouquinhos. O Paulo Betti foi muito importante nesse processo porque tinha uma clareza pra direção muito interessante, muito madura pra idade dele, tanto que ganhou muitos prêmios, todos justos. Eles queriam mesmo era valorizar a cultura caipira. Soffredini fez as letras das canções, tinha facilidade para isso, como diria: Pra você dirigir bem, você tem que ter bom ouvido, é como um maestro, você tem que ouvir o ator falar. Wanderley Martins confirma esse dom do amigo: Ele tinha o domínio da letra, o que pra ele era de uma facilidade tremenda e pro músico é maravilhoso, porque se você tem a métrica perfeita ou um estudo dessa métrica, você consegue compor isso numa boa. Além disso, o trabalho da interpretação dos atores era magistral, porque o mais importante era como fazer isso em cena e da maneira mais digna possível. Na Carrêra do Divino estreou em Piracicaba com boa plateia e veio para São Paulo já afinado. Apesar da receptividade, causava um certo estranhamento por causa da musicalidade da montagem. O trabalho desenvolvido por Adilson Barros para o personagem Jeca foi bastante elogiado: era um trabalho emocionante, deslumbrante o dele, com aquela enxada – diz Paulo Betti. Wanderley Martins conta que no final do espetáculo, já integrada à proposta, a plateia chegava a se emocionar. A peça acabou fazendo tanto sucesso que ficou três anos em cartaz, ganhou todos os prêmios do momento, viajou por várias praças e, em 1980, a RCA lançou um disco com a trilha sonora do espetáculo. Na verdade – diz Wanderley Martins – a gente tinha uma perplexidade de saber o que é que ia acontecer, foi assustador pra todos, mas gratificante. Eu brinco que o sucesso do Pessoal do Victor foi a tecnologia Mambembe...Quem merecia registro da trilha sonora até então eram só os grandes, como Chico e Edu Lobo, mas o disco Na Carrêra do Divino ficou como um registro da linguagem, da musicalidade do espetáculo. Ganhamos espaço nas rádios FM e em função disso abriu-se um mercado comercial. Paulo Betti havia estado com Carlos Alberto Soffredini por volta de 1968, 1969, em Sorocaba, durante um curso de teatro – lembro dele sentado em posição de lótus, fumando e com uma voz linda falando: não se poupe. Parece que esse não se poupe me persegue até hoje, parece que o tempo todo ouço a voz dele exigindo irmos mais fundo, pesquisar mais, trabalhar mais conhecia os textos de Mafalda, O Cristo Nu e Mais Quero Asno – havia assistido às montagens de Elvira Gentil e Celso Nunes, tinha sido um espectador atônito de Prometeu Acorrentado, quando apresentado no Festival de São Carlos, em 1971 – um deslumbramento, uma loucura – e viria a trabalhar com Soffredini pela primeira vez quando montaram Na Carrera, com o Pessoal do Victor, grupo que dirigia. Revelou-se sempre um admirador incondicional da obra e do artista. Considera Carlos Alberto Soffredini um dos maiores autores do teatro brasileiro e torce para que sua obra seja reeditada e montada. Nossa montagem de Na Carrera foi inesquecível. Depois de trabalharmos uns seis meses e de muita pesquisa, percebemos que nada iria adiante sem um autor – nossa sorte foi chamar o Soffredini, que era um autor e diretor que todos nós admirávamos desde a época do teatro amador. Conversamos bastante, ele levou uns livros e quando nos trouxe, o texto estava 70% pronto. Nós adoramos, ensaiamos e quando aquilo estava pronto, ele foi ver e disse: eu faria diferente, mas gostei do jeito que vocês fizeram. Agora posso escrever os 30% que faltam. E foi mandando cena por cena, a gente ficava esperando. Quando chegava, imediatamente ensaiávamos, era lindo. Ele ganhou todos os prêmios de autor naquele ano de 1979, e a peça foi um tremendo sucesso, fizemos até no Municipal. Acho que em Na Carrera começou uma nova fase de sua maravilhosa trajetória, incorporando o caipira à sua preocupação com a cultura popular. Paulo Betti lembra que Na Carrera quase virou filme, a ser dirigido por Jorge Bodanski, mas acabou dando origem ao filme A Marvada Carne, de André Klotzel, lançado em 1984 com roteiro assinado por Soffredini. Capítulo XIV Pássaro do Poente Carlos Alberto Soffredini escreveu Pássaro do Poente a partir de uma fábula japonesa, um poema, que lhe foi apresentado por Paulo Yutaka, com quem trabalhava no Núcleo Estep. O texto foi encenado pelo Grupo Ponkã com direção de Márcio Aurélio, hoje um dos diretores de teatro mais prestigiados, graças à excelência de seu trabalho. Com um detalhe: o texto foi sendo desenvolvido durante a montagem. A cada ensaio, Soffredini entregava uma parte do material. – O Ponkã era um grupo híbrido, formado de diferentes naturezas culturais – relembra Márcio Aurélio – e a gente acabava trazendo uma poesia onírica, era uma beleza plástica ligada a uma linguagem do Teatro Novo. Então, eu pude fazer uma simbiose de diferentes elementos de linguagem, uma mistura de uma outra lingua-gem do teatro oriental, que é o teatro cômico. Então, no fundo a gente acabou misturando diferentes universos. Nesse sentido, eu dava aos atores o suporte para que pudessem realizar plenamente o processo dramatúrgico. Nós pegamos duas máscaras e cortamos, o que era uma heresia para os japoneses. No dia em que chegaram as máscaras e a gente cortou, eu coloquei a máscara em uma atriz, ela ficou assustada, aí peguei uma peruca com um cabelo bem esticado, como cabelo de japonês, coloquei na cabeça dela e dei um tapa na bunda dela falando: Agora você tem que descobrir a Dercyzona que está dentro de você. Pássaro do Poente foi encenada em 1986, 1987 e como havia uma evidência na questão do homossexualismo, um homem fazendo o papel de uma mulher, houve um certo estranhamento sobre o trabalho na época. Soffredini diria, em uma carta, que se achava por demais exposto na peça e por isso tinha inveja do público, que não estava ali para se expor, mas sim para receber. – Eu acho que Soffredini era um grande poeta nesse sentido. Ele utilizava a poesia mesmo quando falava de coisas terríveis – diz Márcio Aurélio. Ficava clara ali a manifestação de uma natureza transformada, porém, como isso era encarado com seriedade, havia o caráter de dignidade que a personagem precisava. Importava mais como se dava o processo de transformação social de aceitação ou não aceitação de uma realidade. A questão da exclusão era muito mais importante que o enfoque do homossexualismo. Ainda hoje encontro pessoas que falam que o espetáculo mudou suas vidas. Pássaro do Poente era um espetáculo esmerado, que fez sucesso no Rio e em São Paulo, tendo conquistado os prêmios APCA e Mambembe, entre outros. Eu acho que foi um espetáculo que realmente formou uma geração – enfatiza Márcio Aurélio falo isso sem a menor modéstia. Tudo ali era estudado: a escolha da cor, o branco. O conjunto todo criava uma magia que encantava a nova geração. Era um espetáculo que dialogava com a ideia de pós-modernidade que surgiu muito depois. O texto tinha muito material. E como é que desenrolava isso tudo? E como é que puxava e enrolava de novo? Enfim, tinha muito talento nisso tudo. Era uma arte antinaturalista e isso desestabilizava o público pela maneira como era apresentada. Eram diferentes recursos de linguagem. A versão japonesa da fábula é esquemática. O Soffredini que eu conheço olha e transforma aquilo tudo através do olhar, tudo depende do olhar das coisas. Um dos elementos que o Paulinho Yutaka introduziu no processo de ensaio, junto com a figura do Agatá, era a figura do Oxumaré, que é seis meses homem e seis meses mulher e que também é um elemento do imaginário religioso brasileiro, uma figura que satisfaz o imaginário. A Fera do Pedaço Hoje tirei o dia para Soffredini. Li A Madrasta e me deliciei com o universo que ele recriou, dos contos de fadas. Sempre gostei muito de ler contos, um encantamento que naturalmente vem com gosto de infância, só que atualmente mais elaborado! Não, mais dissecado e costurado com autores que veem nessas narrações vestígios de uma origem mais divina que humana. Ítalo Calvino, Sílvio Romero e os junguianos, todos bebem nessa fonte. Mas o caipirismo de nosso Soffra deixa tudo ainda mais saboroso. O meu Soffredini é anterior a essa fase. Minha lembrança mais remota dele vem com o Festival de Teatro Amador de São Carlos, único, aliás, do qual participei. Lá, ele já era a fera do pedaço. Em primeiro lugar, porque era o diretor da turma de Santos, o pessoal mais moderno e desinibido. Eram muitos os atores, andavam em bando, ruidosos, coloridos e confiantes, o que contrastava enormemente conosco, atores de Sorocaba, tímidos interioranos e sem muita experiência. E o diretor, Soffredini, era uma figura magra e alta, com os cabelos compridos, uma voz poderosa e presença ameaçadora para mim. A peça era Prometeu Acorrentado, numa versão anos 1970, quer dizer, muito nu, muita organicidade, muita entrega física, corrente que vim a conhecer melhor quando entrei na EAD e tive, por três anos, aulas com um Celso Nunes recém-chegado da Europa e feito no teatro sagrado de Grotowsky. Mas naquele momento, aquela experiência teatral foi uma fenda no meu ainda insípido universo de referências. Mais tar-de, tivemos aulas de teatro com ele, num curso em Sorocaba, e a frase “não se poupe”, repetida inúmeras vezes, é ainda uma lembrança auditiva das mais fortes. Anos mais tarde, já fazendo teatro profissional com meu grupo, no meio de uma crise de criação, decidimos procurar Soffredini para desembaraçar a meada que já ameaçava nos sufocar. Sabíamos que o espetáculo deveria falar de nossa origem caipira, procurávamos pela nossa identidade artística, mas estávamos sendo arrastados pelas muitas memórias evocadas em meses de trabalho. Soffredini mergulhou fundo na história e voltou tempos depois com um esboço que traduzia com toda clareza o espetáculo que nós queríamos fazer desde o início. As cenas foram chegando, perfeitas, indiscutíveis e, meses depois, o espetáculo, dirigido por Paulo Betti, respondia a todas as nossas vontades. Um mergulho emocional e quase científico no universo caipira. Eu poderia evocar mais e mais lembranças, mas gosto de deixá-lo nesse lugar, na minha origem artística. A personagem que ele criou para mim, na peça Na Carrêra do Divino, Sá Marica, é a mãe de todas as minhas outras personagens mais empáticas, um misto de temperamento forte, quase violento, e muito humor. É uma receita mediterrânea puxada no sotaque caipira. E isso é tão verdade que minha filha caçula, Mariana, hoje estudante de teatro, procurando um texto para apresentar, escolheu um dos monólogos da Sá Marica falando com Santo Antônio. A reação da turma foi um uníssono: nossa, mas é muito a sua mãe. Soffredini, Celso Nunes e Myrian Muniz eram minhas referências de modernidade, e os três, mais Peter Brook, são até hoje meus quatro elementos formadores. Eliane Giardini atriz Não Se Poupe A gente queria fazer uma espécie de Trate-me Jeca Tatu, dizendo que gostava de rock ’n’ roll, mas também de moda de viola, era uma certa afirmação de identidade. Não tínhamos nenhum texto, mas começamos a nos reunir na casa do Adilson e a falar das coisas que queríamos botar na peça, das músicas, das histórias, os causos. Depois de uns seis meses de trabalho, percebemos que tínhamos um monte de coisas, mas não uma peça. Então, chamamos o Carlos Alberto Soffredini, um autor e diretor que todos nós admirávamos desde a época do teatro amador. Eu me lembro do Adilson absolutamente tomado pelo personagem dele, era um trabalho deslumbrante, emocionante. A peça foi um sucesso tremendo, todo mundo ganhou todos os prêmios; a Eliane foi diversas vezes ao programa do Rolando Boldrin na Globo fazer o monólogo do Santo Antônio. A gente ia de ônibus para os lugares; aí chegava, montava o cenário, montava a luz, depois entrava em cena sem tomar banho, porque quanto mais sujo a gente estivesse era melhor para a peça. A gente tinha uma caixa de terra e se esfregava nela antes de entrar em cena. Tinha que sujar bem o pé antes... Eu adorava fazer essa peça, era uma catarse. Desde o curso que fizemos em Sorocaba, o Soffredini ficava o tempo todo dizendo assim, com um vozeirão: Não se poupe, não se poupe. Ele achava que a gente devia ir mais fundo, exigir mais, querer mais, tentar mais, não se poupar fisicamente. Até hoje eu ouço a voz do Soffredini falando: não se poupe. E eu não me poupo mesmo, eu anoto, eu escrevo, eu vivo ligado, trabalhando, prestando atenção em tudo. Na Carrera foi um grande sucesso e, como todo grande sucesso, também teve seus problemas. O grupo começou a ficar meio dividido: de um lado ficamos eu, o Adilson e a Eliane e de outro lado ficaram o Márcio, a Marcília e o Reinaldo. E essa divisão ficou mais acentuada quando levamos a peça para o Rio. Não teve nenhuma briga feia, mas tinha os problemas de sempre, de vaidade, ou então, o destaque que a imprensa dava mais para uns do que para os outros, essas coisas. Enfim, começou a surgir uma certa discórdia e uma certa vontade de fazer coisas diferentes, e daí a gente se dividiu. O Márcio, a Marcília e o Reinaldo quiseram fazer outra peça com outro nome de grupo, e a gente continuou com o nome Pessoal do Victor, aí só nós três. Paulo Betti ator e diretor Atitude e Consequência Pássaro do Poente é um texto primoroso. Uma pérola da dramaturgia brasileira. Considero Pássaro do Poente uma pequena obra-prima. Como a natureza da figura mulher-pássaro é uma natureza híbrida, essa própria natureza se resolve pela ignorância de não saber atuar numa ação tão humana e tão profana. Quando tivemos a primeira reunião com o Soffredini, ele dizia que Pássaro do Poente talvez tivesse um personagem que era uma árvore, outro que era uma flor. Então eu acho que na ocasião ele estava muito ligado ao Guarani, porque tinha um personagem que era um rio e tinha umas alegorias. Então, eu sentia que tinha alguma coisa ali que ele estava tentando descobrir, fazer. Durante todo esse processo da criação do Pássaro do Poente, que durou de oito a nove meses, a gente, de tempos em tempos, pegava um bloco, uma parte. Logo no começo, a gente sabia que tinha um velho, um maduro e um jovem. Então, comecei a trabalhar com os atores e propus que a gente pegasse para estudar as características do jovem, do maduro e do velho que estão na retórica de Aristóteles. Ficamos trabalhando atitude e consequência que apontava esse observante histórico. Isso foi todo um repertório muito interessante. Com isso, observamos, ao longo do espetáculo, o que determinava as diferenças de atitudes. Eram sempre levadas em consideração as questões humanas apontadas na retórica. O texto do Soffredini tinha uma abertura onde ele evoca a questão da terra, terra, terra. Foi um longo período que eu descobri como mexer e fazer aquilo. Eu não queria que ficasse uma coisa maniqueísta, mas, ao mesmo tempo, pintou a ideia do circo. Todos os dias começávamos a trabalhar num circo, que na época era uma boa ideia para começar a fazer. A Terra é um circo, então vamos conservar. E eles usavam uns cajados em cena que foram usados como uma marcação rítmica, como uma transferência de cadência. E aí a gente pegava a estrutura do verso e tentava descobrir nas sílabas um dedal. Enfim, foram tempos grandes de investigação para saber de onde saía o velho, de onde saía o maduro, de onde saía o jovem. É como se isso brotasse da terra. A natureza protege a ideia de humanidade. Foi muito legal porque eu achava que um trabalho que mexia com coisas tão primárias da natureza precisava ganhar um traço poético, de forma que tivesse autonomia. Compreender que isso era um processo de evolução. O jovem, o maduro e o velho transformados numa atitude. Foi lindo. Nós tínhamos todo um repertório. Tanto que a gente chegou a ter uma conversa com ele e eu sugeri algumas coisas para o último bloco, não sei se ele aceitou ou não. A gente tinha tudo pronto, esperando ele acabar. A gente sabia que ele tinha que ter todo o tempo dele e não adiantava forçar, e tivemos muita paciência. Por outro lado, ficou um caldeirão e mais três bacias de material e uma canequinha. Daí veio a pergunta: E agora? No último bloco eu tive que cortar um pouco a estrutura do texto em função de achar que o espetáculo já havia construído todo o arco que precisava. E tinha algumas coisas naquela encenação – não que o texto tivesse isso – que eu não poderia deixar de colocar. Eram situações que dramaticamente se apresentavam e se justificavam no texto. E estavam bastante resolvidas cenicamente, como organização do discurso. Acho que foram cinco blocos. Os quatro primeiros ficaram impecáveis, sem cortar nada. Foi colhido todo o material para caber totalmente dentro da estrutura que ele propôs. Somente no último bloco ocorreram sessões e sessões internas para discutir: O quê? Como? E por quê? Eram determinadas coisas que justificavam atitudes. E que literariamente eram absolutamente perfeitas, mas em função de como as coisas haviam sido construídas. As ações eram claras. As contradições humanas eram claras. E ele era muito preocupado com isso e então, elas estavam absolutamente discutidas na encenação. A questão do cara da cidade que vinha comprar o pano. A atitude da roça. A influência do mundo urbano nas construções humanas que vai deteriorando a ideia de natureza. E isso é a função do texto. A poesia do texto, quando a natureza se trans-forma. Soffredini consegue uma estrutura quase arcaica na configuração do texto que são joias. A figura dos dois da cidade já trazia uma mistura. A visão que tenho das obras de Soffredini é de uma grande contribuição para o teatro contemporâneo. Embora pegasse determinados recortes para tratar, o diálogo que tinha com a contemporaneidade, ele era um homem que sabia formular dentro do contexto. E dava para reconhecer no Soffredini, o homem de teatro, de modo amplo. Ele conseguiu isso porque processou sua forma de ver o mundo, a forma de viver. Márcio Aurélio diretor Capítulo XV Núcleo Estep O Núcleo de Estética Teatral Popular – Estep teve origem na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, em 1985, em uma oficina de teatro dada por Soffredini. Chico Cabrera, que fazia parte do grupo, conta: Ele ia nos ensinar a ler um texto. Toda a fala era estudada: a intenção de cada fala, as pausas, a força ou a leveza. Aquilo foi me deixando enlouquecido. O texto escolhido por Soffredini para essa leitura foi Minha Nossa, que escreveu em 1983. Originalmente, esse texto havia sido criado como um roteiro para a TV Globo, atendendo a um projeto de direção de Regina Duarte que não chegou a ser produzido. A primeira montagem em cima dele foi feita pelo Grupo Mambembe, quando da inauguração do Teatro Mambembe: – Ensaiamos durante seis meses, mas percebemos que o texto não foi bem compreendido nem pelo grupo nem pelo público nem pela crítica – lembra Renata Soffredini. Nosso trabalho não teve uma carreira feliz porque também o espaço era novo, desconhecido do público. A peça era composta de 61 trechos noticiosos extraídos de jornais e revistas que Soffredini propunha serem mostrados em cena pelos atores. Parte de um fato real acontecido na cidade de Aparecida do Norte em maio de 1978. Eis como o autor define sua peça: Em cinco partes, conta e reflete sobre a trajetória de um indivíduo equilibrando-se entre, de um lado, seus impulsos vitais e, de outro, os caminhos prontos, as normas rígidas que a sociedade lhe impõe na tentativa de enquadrá-lo nela. Reflexões sobre a fórmula da felicidade, já pronta, em choque com os impulsos mais íntimos do homem sempre reprimidos pelo mundo que o cerca. Num desenvolvimento não cronológico, a peça mostra o indivíduo num estado de pressão tal dessas duas forças antagônicas, que o leva a cometer um ato extremo, que por um momento desequilibra a sociedade, que, por sua vez, se recompõe, punindo o indivíduo, alienando-o. Soffredini via no contato com os jovens da Fundação das Artes a oportunidade de retomada do espaço para a criação, a experimentação e a pesquisa de linguagem lá atrás abandonada, como relata: – Fui dar um curso em São Caetano e encontrei gente muito interessante querendo fazer teatro de verdade. Me animei em trabalhar com eles, nada estava me animando muito, aí propus pro diretor da escola, Roberto Manzano, a montagem de Minha Nossa. Era gente de São Bernardo, São Caetano, o pessoal da região que tinha ido cursar a Fundação das Artes. Fui chegando cada vez mais perto da interpretação, percebendo gradativamente como era fundamental a formação do ator. Os alunos ficaram meio assim porque o texto de Minha Nossa é meio esquisito, estranho, tem uma estrutura, mas afinal toparam. A Fundação das Artes era forte em música, era uma escola que servia à comunidade, e isso era maravilhoso. Eles não queriam que a gente fizesse a peça, mas com Minha Nossa triplicou o número de alunos. Chico Cabrera, que se integrara à oficina desde que Soffredini dera início à leitura do texto de Minha Nossa, confirma: – Éramos de doze a quinze meninos inexperientes; não conhecíamos em profundidade o trabalho de ator, mas tínhamos vontade e, como Soffredini dizia, 10% de talento e 90% de transpiração. Ele viu ali um terreno fértil e começou o processo. Ele era um agregador de ideias; se não tivesse aparecido lá, não haveria articulação para formarmos o grupo, os meninos não tinham essa capacidade. Só que ele vinha com um ritmo de teatro profissional, e nós éramos muito jovens; eu tinha 21 anos, era muito crítico comigo mesmo. Ele ia nos ensinando a ler o texto, a entender o sentido de cada palavra, o que o ator está falando, o texto se aprofundava em cada frase, em cada intenção. Quem não aguentava o tranco acabava sendo eliminado. Ficavam os que conseguiam encarar o ritmo, que era alucinante; cada cena era trabalhada à exaustão. Mas ele botou naquele grupo uma responsabilidade ética dentro de um trabalho de teatro e uma estética. A proposta básica da encenação de Minha Nossa era a da narrativa. Partindo do nada, isto é, de um palco limpo, sem cenário, sem rotundas, sem tapadeira, e contando apenas com a capacidade de imaginação do espectador. Os atores iam criando os ambientes a partir de objetos corriqueiros. A interpretação também seguia a proposta da narrativa: o ator em cena. Na frente do espectador, ele monta ou desmonta o seu personagem, quando vai colocá-lo em ação ou tirá-lo dela. Dessa forma, o ator conta o seu personagem para o espectador. – Era um momento de diretor que ele estava exercendo naquela hora e ele quis fazer praticamente dessa montagem do Minha Nossa um tratado sobre o que era a linguagem que ele desenvolvia. Ele explicitou no Minha Nossa essa linguagem que ele estava propondo – diz Isser Korik que substituiu um dos atores a convite de Soffredini. Foi por intermédio de Suzana Lakatos que Isser acabou conhecendo Renata Soffredini e, por tabela, Carlos Alberto Soffredini. Renata se tornaria sua esposa, e Soffredini, seu sogro, avô de seus filhos Ian e Tito. – Entrei a três semanas da estreia e para mim foi um aprendizado enorme logo de cara, mas foi super desgastante porque era um pique de trabalho muito profissional, apesar do grupo ser amador. O Soffredini era um diretor muito exigente, que sabia exatamente o que queria, e tinha uma ansiedade pela estreia, tinha que fazer. O texto é difícil porque não é um texto linear, um texto de uma história fácil que vai e volta. Ele conseguiu explicitar bem melhor o texto do que talvez tenha sido na primeira montagem. Eu não vi a primeira montagem, mas as pessoas que viram entendiam melhor o texto. Essa linguagem a que Isser Korik se refere exige do ator certas características, uma vez que é na interpretação que está o maior peso dela. É uma interpretação que se afasta do realismonaturalismo e exige do ator uma postura por assim dizer teatral e um cuidado extremo com todos os detalhes externos da composição de seu personagem, o que equivale a dizer que exige do ator uma dedicação técnica. Para desenvolver esse trabalho técnico, Soffredini convida, num primeiro momento, Wilder Miranda Costa, para aulas de música e preparação vocal, Fernando Neves para preparação corporal e Irineu Chamisso Jr. para os figurinos. Lembra Chico Cabrera: O Irineu Chamisso era um figurinista conceituadíssimo e premiadíssimo, e como não havia dinheiro, invadimos o guardaroupa da Fundação das Artes. O Irineu pegou todo aquele material, espalhou no palco e fez divisão de cores, mandando cada um escolher o que teria mais a cara de seu personagem. E daquele resto de figurino surgiram coisas geniais, chapéus maravilhosos com penas. Quem olhava aquilo no palco não acreditava que eram restos de figurinos reformados. Como o texto falava de Nossa Senhora Aparecida, achamos lá uma cortina que, pendurada num gancho, fazia um manto da santa que impressionava. Além disso, o Soffredini nos levou até Aparecida do Norte pra conhecermos a igreja, as imagens, os personagens da peça; passamos pelo Rio Paraíba, fomos ao santuário, observamos os romeiros, os padres, as freiras, a reação dos fiéis, a fé que move as pessoas. Valmy Rocha fazia teatro amador e música – estudava violão erudito, compunha e tocava na noite – quando foi assistir a uma apresentação de Na Carrêra do Divino no Teatro Municipal. Ficou tão embasbacado com a montagem do Pessoal do Vitor – poucas vezes, na minha vida, a arte fez um trabalho tão forte comigo, essa coisa de dar luz no fim do túnel, uma esperança, porque ele tinha uma coisa de lidar não só com a coisa do cotidiano, mas com a alma – que quando soube que Soffredini precisava de um músico para substituir Wilder Miranda Costa, tremeu nas bases. – Logo de cara ele me encomendou a criação do tema da Uiara. Fui criando; ele só ouvia, não dizia sim nem não, aí levei meu grupo de música pra lá. Eu não via dificuldades em compor, musicar as letras do Soffredini porque, como artista, ele se comunicava comigo, me dava dicas de ritmo, de tom, era tudo métrico; ele fazia tudo com muita seriedade. A peça já tinha a musicalidade típica do brasileiro. Havia uma sintonia fortíssima entre eu e ele e, sobretudo, respeito pelo trabalho. Soffredini chamaria para compor o elenco de Minha Nossa dois atores da época do Mambembe: Susana Lakatos, para o papel da louca, e Flávio Dias, para o papel do pai. Susana Lakatos fala de sua entrada no espetáculo: – A Célia, que fazia a louca, ficou grávida, e o Soffredini queria que eu a substituísse, mas pra mim não dava, eu tinha que viver da minha grana. Aí ele disse que me pagava com o que fosse receber da escola de samba X-9 Paulistana, para quem e ia fazer um enredo. E foi a primeira vez que ele não me dirigiu.Foi a novidade dessa montagem, porque ele fez comigo uma roda de personagens: cada um fazia a louca na roda e voltava pra mim, foi o único trabalho que ele fez comigo de direção. Ele tinha confiança, certeza de que eu podia fazer... Flávio Dias fala de sua surpresa com o convite para integrar o elenco de Minha Nossa: – Minha primeira função foi trabalhar o sotaque dos três meninos que faziam os portugueses. No espetáculo tinha um rodízio e cada dia era um que fazia o pai. Quando eu cheguei, o espetáculo já estava amarrado; entrei como complemento, mas pra mim já era o bastante estar fazendo um trabalho dele. Porque não tinha ninguém comparável a ele no mercado de São Paulo e nunca teve. Minha Nossa estreou no teatro da Fundação das Artes em 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, e ficou em cartaz com lotação esgotada. Foi apresentada em toda a região do ABC e também em várias cidades do interior do Estado: São José Flávio Dias, Mércia Corrêa e Jairo Alvarenga em Minha Nossa, no Núcleo Estep dos Campos, São José do Rio Preto, Santos. Fez temporada de quatro ou cinco meses no Teatro Marcante, um espaço criticado por todo o elenco por causa de suas péssimas condições, até mesmo de salubridade – estava mofado, a chuva forte alagava o palco e os camarins, molhava os figurinos; a luz não funcionava direito, havia problemas técnicos. O trabalho do grupo não decolou, mas, no entanto, teve repercussão. O jornalista Maurício Kubrusly, da TV Globo, chegou a fazer matéria no local, recomendando a peça, e o crítico de teatro Luiz Carlos Cardoso, da revista Visão, escreveu em 16 de março de 1986: Discorde-se de detalhes mas reconheça-se que é esse um trabalho instigante e inovador do Núcleo Estep que reafirma o talento de Carlos Alberto Soffredini. Para Alberto Guzik, do Jornal da Tarde, o resultado é um trabalho rico, complexo, que integra num todo consistente processos cênicos oriundos de diversas fontes. Para o equilíbrio geral também concorrem intensamente o espaço e os figurinos de Irineu Chamisso Jr., a preparação mímica feita pelo Grupo Quadricrômico e a iluminação projetada pelo encenador. A marcação fluente e dinâmica têm uma função crucial na montagem: ocupar o lugar da cenografia e desenhar com o corpo dos atores os diversos ambientes em que transcorre a ação. A consolidação do Núcleo Estep se daria com a montagem de Na Carrêra do Divino, quando o grupo passa a se aprofundar na temática do universo do caipira paulista, seus usos e costumes, fazendo pesquisas e assistindo a apresentações de grupos folclóricos. O que Soffredini pretendia, na verdade, era a criação de um repertório que conquistasse um público mentalmente jovem, interessado na experimentação, na reflexão e nas coisas da nossa cultura. – Em Na Carrêra do Divino, lidamos com personagens mais humanos. Então, nos propusemos ainda a contá-los, mas desta vez num momento mais interior. É esse o nosso exercício nesta montagem – dizia ele no programa da peça. Embora todos nós tenhamos referências da cultura que recriamos no palco – todos nós temos avós, pais ou tios que viveram no campo – não temos a vivência desse universo. Nem que fôssemos viver e trabalhar durante um tempo no campo, nós a adquiriríamos. Então, partimos da seguinte realidade: somos pessoas urbanas que vamos contar no palco um tipo humano e uma cultura que, embora estando nas nossas raízes, não estão na nossa vivência. Lembra Chico Cabrera: A cada momento você aprendia alguma coisa. Fomos conhecer o Toninho Macedo, ligado ao folclore; tivemos aulas de dança, da catira, lemos Os Parceiros do Rio Bonito, do Antonio Cândido. O grupo já entendia melhor as ideias do Soffredini, de como ele se envolvia na cultura popular, do triangular com a plateia, uma forma de teatro em que o público se sente mais participativo dentro do espetáculo e você faz com ele o que você quer . Isser Korik recorda que o grupo ficou meses e meses estudando para a montagem de Na Carrêra do Divino sem que Soffredini definisse que papel seria feito por quem durante o processo. Lembro claramente que quando ele definiu quem ia fazer o que, não escolheu visando o melhor resultado para o espetáculo, mas o melhor resultado para o processo de cada um. Por exemplo, tinha um mascate árabe que nas leituras eu fazia super bem; todo mundo apostava muito que eu ia fazer o Adib, e acabei fazendo o Nhô Juca. Na hora em que ele falou foi um choque. Depois entendi que ele estava muito mais preocupado com meu crescimento como ator, que cada uma daquelas pessoas crescesse como ator, do que com o resultado imediato do espetáculo. A proposta do Nhô Juca para mim era a necessidade de aprofundamento, porque ele achava que eu funcionava melhor em papéis mais histriônicos, mais pontuais, mais farsescos, e o Nhô Juca, apesar de ter um lado cômico, era um personagem que atravessava a peça e, portanto, tinha um aprofundamento psicológico maior do que o Adib. Rita Ivanof, que desde Minha Nossa acompanhava os ensaios de Soffredini, integrou-se ao elenco em Na Carrêra do Divino, depois de ser submetida a testes: – Foi com ele que adquiri plena consciência de que a gente estudava uma linguagem, fazia um trabalho de pesquisa. A gente partia de fora pra dentro, tinha um tom a mais que ele fazia questão, mas havia um embasamento, não era aquela coisa palhaço. E no trabalho individual havia muita limpeza, não havia o exagero, era saber onde olhar, como falar, porque o Soffredini dizia: ou você fala ou você se movimenta, porque uma coisa rouba a atenção da outra; a gente carrega com a gente isso. Eu bebia dos ensinamentos dele, fascinada. Era uma lingua-gem totalmente diferente de tudo o que eu tinha assistido, arrojada, moderna. Ele falava de mudança de foco, de limpeza, de precisão, era uma linha de interpretação que eu não conhecia. Ele era maravilhoso, generoso. Valmy Rocha conta do processo de musicar Na Carrêra do Divino: – Quando eu peguei o texto pra ler, fiquei louco. A música do Wanderley Martins era maravilhosa, mas eu musiquei tudo de novo, porque sentia diferente, mas o texto já era sonoro, já tinha tempos marcados, o som das palavras. Eu recriei a música porque entendia o trabalho do Soffredini muito fácil; teve músicas que eu criei num instante, rapidinho. Eram composições elaboradas especialmente para os personagens, aproveitando a musicalidade deles. Então, usei meus conhecimentos de música para o teatro, usando a maneira dos atores se expressarem; tem inflexões que são tonais mesmo, o cara fala aquilo sempre do mesmo jeito, a pessoa em cena já tem uma partitura registrada e de tanto repetir aquilo em cena vira uma música. Então, eu não criava canções, mas sim um personagem dentro daquela canção, o jeito dele cantar. Para essa montagem, Soffredini foi buscar o apoio de Eduardo Coutinho, um jovem mímico que havia chegado da França; de Eudosia Acunã, fonoaudióloga e preparadora de voz, e de Paulo Yutaka, com quem fez um acordo especial: suas aulas seriam pagas com um texto-poema a partir de uma fábula japonesa que daria origem à peça Pássaro do Poente. Eduardo Coutinho foi apresentado a Carlos Alberto Soffredini por Eudosia Acunã para substituir Paulo Yutaka nas aulas ao Núcleo Estep, imprescindíveis na medida em que toda a ambientação era mostrada pelo ator por meio da mímica – a peça não contava com recursos cenográficos. – Foi minha entrada no mundo teatral. A gente começou a trabalhar e fluiu muito bem. Ele foi me dando umas aulas, me ensinando sobre teatro. Muitos dos parâmetros de pesquisa que eu tenho hoje como professor vieram dessa experiência com Soffredini. Ele me deixava muito solto no trabalho e isso me ajudava. Na Carrêra do Divino estreou no Centro Cultural São Paulo e cumpriu uma temporada de dois meses em horário alternativo, de segundas a quartas-feiras, com superlotação. – Foi um sucesso – confirma Isser Korik – e o grupo passou a acreditar que a partir disso, poderia se profissionalizar e fazer novas produções. Esse momento de decisão foi colocado ao grupo porque os atores teriam que abandonar seus empregos para se dedicar exclusivamente ao teatro. Naquele momento, uma parte embarcou na proposta, e o Núcleo Estep se profissionalizou exatamente no final da temporada do Centro Cultural São Paulo para nova carreira no Auditório Augusta. A convite de Regina Gerard, proprietária do Auditório Augusta, Na Carrêra do Divino ocupou aquele espaço numa brecha na pauta do teatro. O choque inicial, de dez espectadores pagantes na plateia, mobilizou o grupo para um grande trabalho de divulgação que resultou em casa lotada no final da temporada. Diria a respeito da peça Alberto Guzik, crítico de teatro do Jornal da Tarde: – A nova edição do texto sob direção do autor é muito diversa do espetáculo do Pessoal do Victor e, em muitos sentidos, melhor. É mais fluente. Soffredini domina tão bem os segredos do palco quanto as complicações da estrutura dramatúrgica. Seus espetáculos se constituem em fonte de constante surpresa para o espectador, que se espanta ante a pródiga quantidade de efeitos a que recorre para definir cada cena. Para Fausto Fuser, crítico da revista Visão, a arte de Soffredini não se apoia apenas nas palavras ditas ou cantadas, mas também nos gestos que são buscados com o mesmo cuidado e a mesma finalidade de retratar um Brasil prestes a desaparecer definitivamente. Cumprida a temporada no Auditório Augusta, e com seu histórico consolidado, o Núcleo Estep levaria Na Carrêra do Divino para a Sala Asso bradado do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. Foi nessa época que o grupo, procurando melhores condições de sobrevivência, produziu seu terceiro espetáculo – Mais Quero Asno que Me Carregue do que Cavalo que me Derrube – apresentado às terças e quartas-feiras, enquanto Na Carrera ocupava o horário nobre, de quinta a domingo, com duas sessões aos sábados e domingos. Numa época em que não havia uma política cultural em vigor, o Núcleo Estep, com essas duas montagens, não só colocava em prática seu projeto de repertório como começava a ter vida própria e a se manter graças também às apresentações extras que vendia para escolas. – A estreia foi um sucesso, O Asno foi melhor até que Na Carrêra do Divino. Era uma comédia rasgada e o público se multiplicava. Começaram a nos servir champanhe no camarim e viramos meio a sensação do momento porque embora nenhum de nós fosse conhecido, passamos a concorrer com grandes sucessos da época. O grupo já estava bem mais preparado tecnicamente, e o Soffredini, a cada trabalho, exigia mais da gente – conta Chico Cabrera. No Asno, inclusive, alguns atores tinham que fazer papéis travestidos, buscava-se a essência feminina nesse trabalho, era um deboche mas com responsabilidade. Pra mim foi um parto porque o ator, pra fazer comédia, tem que se desnudar, se entregar ao ridículo, e o Soffredini acabava comigo porque eu não sabia o que ele queria. No humor, se você erra o tempo, esquece, não tem volta; fazer humor é mais difícil do que fazer drama. Então, O Asno me possibilitou experimentar o humor, e foi quando nós invadimos a plateia; aprendemos a falar e a brincar diretamente com o público. Muitas vezes a plateia reagia e você tinha que aprender a segurar a peteca. Foi uma escola, o Soffredini assistia todo dia e vinha pro ator e falava: tenta mais por aqui, caminha por ali. Ao musicar O Asno, Valmy Rocha, então bem mais seguro, interferiu na linguagem. – Eu senti que tinha que haver uma elaboração maior de ritmo, de articulação de sons, tinha que usar a linguagem com sabor. A maneira como o Soffredini escrevia tinha um sabor porque ele trabalhava com tempos de falas, com o som correto, e eu quis trabalhar isso, com a métrica. Isser Korik conta que o Asno começou devagarzinho: Também não tinha público no começo, mas claro, você estava com outro espetáculo, já recomendava para assistir e aí começou a ter público no Asno também. Era uma comédia, um espetáculo muito pra cima, então a gente conseguiu ter público de terça a domingo. O Núcleo Estep era um grupo alternativo e muito avançado em termos de pesquisa e de linguagem, tanto que suas montagens passaram a concorrer com grandes produções da época, outra grande vitória de seu líder. Em 1988, Carlos Alberto Soffredini recebeu da Fundação Vitae uma bolsa para desenvolver um projeto de dramaturgia intitulado Melodrama Resgatado, audacioso na medida em que, na época, melodrama era sinônimo de mau gosto, dramaturgia menor. Ele concretiza então, com o Núcleo Estep, um processo de criação conjunta, desde o texto até o produto final, nos moldes daquele feito com o Grupo Mambembe. Trem de Vida é o resultado dessa pesquisa. Era um trabalho focado no ator, somente com canto e gestual, ou mímica, que nunca seria viabilizado e permanece inédito. – Então ele pegou a grana que era para ele e enfiou dentro do grupo, coisa que é muito rara alguém fazer, acho coisa de louco mesmo, mas ele fez – diz Isser Korik. Como o Núcleo Estep tinha aquela receita fixa e mais o arrecadado por espetáculo, para ficar estudando e trabalhando em cima do que seria a proposta dele, alugamos um espaço... Chico Cabrera lembra dessa postura de Soffredini como uma prova de amor ao teatro: Ele nos deu uma prova de caráter, mais uma, de respeito, profissionalismo, responsabilidade ao dividir a bolsa com o grupo que o acompanhava. Passamos então para uma outra situação – como tínhamos uma verba, arriscamos uma sede própria. Éramos um grupo que tinha que ser patrocinado por alguém, ter acolhida do poder público para poder trabalhar, desenvolver suas pesquisas, mas não tivemos um amparo, um olhar dos órgãos públicos. Nossa sede era na Rua Helvetia, ao lado da Estação da Luz, com marginais e prostitutas ao lado – nós mesmos pintamos aquele espaço. Nós éramos experimentos dele, no melhor sentido do termo – diz Luiza Albuquerque, que se incorporou ao Núcleo Estep substituindo uma das atrizes quando da temporada no TBC. Era um método inovador, a gente precisava estar despido de vaidade para fazer aquilo. O processo de criação pertencia a ele, o diretor, o autor, era um processo em aberto. A gente estudava, pesquisava, fazia improvisações, workshops, estudava música, foi um enriquecimento para nós. Para Valmy Rocha, Trem de Vida seria o ponto alto, o auge da evolução da linguagem, a lingua-gem da música. Chico Cabrera concorda e diz que o grupo estava no seu limite, a ponto de explodir em um espetáculo extremamente avançado e emocionante: Foi um grande momento porque, além de a peça não ter palavras, só a síntese da emoção, o traço forte de tudo era a essência da linguagem ali, a cereja do bolo. A música era uma coisa de arrepiar, o Valmy estava iluminado, não tinha como aquilo não ser maravilhoso. Eduardo Coutinho lembra que a montagem de Trem de Vida começava com a música de Milton Nascimento, Encontros e Despedidas. – Era uma valsa de despedida, a música trazia a imagem da estação ferroviária, pessoas felizes, tristes, que você não sabe se estão chorando por chegar ou por ir embora. Queríamos contar a vida dos personagens a partir dessas ideias... E não havia palavra falada, somente cantada. Foi nessa época que surgiu uma proposta diferente para o grupo: atuar durante um lançamento imobiliário, mais exatamente do primeiro flat de São Paulo. Soffredini escreveu um texto chamado Alegre Vizinhança, e um elenco de sete atores participou da peça, encenada dentro do estande de vendas. As unidades foram vendidas no primeiro dia. O Núcleo Estep chegava, então, ao auge de suas atividades: além de estudar, pesquisar e ensaiar seu novo espetáculo, viaja pelo INACEN – Instituto Nacional de Artes Cênicas levando seu repertório a diversas cidades do Estado de São Paulo. A necessidade de trabalhar com atores mais preparados na linguagem estética desenvolvida – a nossa linguagem, como dizia Soffredini – e de dar uma arejada ao núcleo original levou à formação do Núcleo Estep 2. Os problemas de relacionamento começaram a aparecer durante a montagem de Trem de Vida. O Núcleo Estep, que fez história por reunir tanta gente com o mesmo ideal, em torno de uma proposta de trabalho e sob a direção de quem conhecia absolutamente tudo de teatro, dissolveu-se depois de mais de quatro anos de existência, num processo tão traumático que os atores, ao serem indagados sobre os motivos que levaram ao final do grupo, tergiversam: – Era muito saudável a gente ter tomado as rédeas do grupo, mas não sabíamos o que fazer com todo aquele poder – declara Renata Soffredini. Porque estávamos não apenas fazendo teatro, mas um teatro através de uma linguagem que íamos aprimorando. Era quase que uma viga mestra nossa. Nosso prazer era fazer um espetáculo daquele jeito, com aquela linguagem popular. Valmy Rocha – Éramos todos artistas e com a sensibilidade à flor da pele. Chico Cabrera – Se o Soffredini tivesse o apoio de uma estrutura de cooperação, o Estep estaria vivo. Rita Ivanof – O ser humano muda, as pessoas têm expectativas e objetivos diferentes. Eduardo Coutinho – O grupo não estava tão fluente, estava minado. Isser Korik – É uma ditadura do estômago. A forma como o Núcleo Estep terminou é cruel. Luisa Albuquerque – Não tivemos maturidade para lidar com tanta generosidade. Renata Soffredini – É muito difícil superar limites. Com o final do Núcleo Estep, Carlos Alberto Soffredini escreveria, em 1989, o texto De Onde Vem o Verão, resultado de pesquisa patrocinada pela bolsa Vitae e dirigiria para o Arsenal das Artes o espetáculo Castro Alves Pede Passagem, de Gianfrancesco Guarnieri. Uma Comunhão de Confiança e Entrega Fazer teatro é uma carreira dura, é uma entrega, um sacerdócio e eu era um vampiro do Soffredini, tudo que ele falava eu tentava fazer da melhor forma possível. O entendimento era difícil porque nós não tínhamos intimidade com aquele processo, mas havia confiança e eu entreguei minha alma para aquele homem. Ele me invadia no sentido de busca, de exigência, era uma comunhão de confiança, de entrega. Ele era um pesquisador de uma lingua-gem do teatro e aquela molecada não sabia nada; ele queria uma estética que a gente não entendia. A gente não sabia aonde ele queria chegar, repetíamos um movimento à exaustão até que aquilo ficasse orgânico e não decorado. Ele me mandava levar meu humor da vida pra dentro do palco, eu não sabia fazer isso. Só mais tarde entendi; quando aprendi a desenvolver uma veia cômica, foi uma revolução na minha vida. O teatro te dá essa possibilidade de você errar e amanhã fazer melhor por causa dos exercícios diários. A cada dia você aprende, acha uma nova maneira, aprofunda um gesto, uma fala. O fazer teatral não tem fim, o mergulho dentro do espetáculo existe enquanto ele durar. Antes das estreias, o Soffredini dava um chute na bunda de cada ator e dizia: vire-se. Era uma forma carinhosa de dizer: agora é com vocês. Você estava diante de um criador, de um pesquisador, uma pessoa extremamente apaixonada pelo que fazia. Eu diria que toda a minha trajetória vem baseada na responsabilidade e no respeito ao público que aprendi com ele. Até porque, além de ser extremamente talentoso, o Soffredini era muito generoso. Chico Cabrera ator A Dramaturgia da Ação Eu me iniciei na mímica na rua, algo popular. Hoje é refinado, mas a mímica é uma arte de rua, e comecei a trazer a mímica para o Núcleo Estep. A lógica da dramaturgia de rua é a dramaturgia do corpo. O Soffredini era dramaturgo de texto, mas foi beber nessa fonte, e o fato de ele ser um dramaturgo facilitou meu processo de entender que isso era dramaturgia. Ele me deu o material; a reflexão veio com o tempo. O Soffredini era dramaturgo, mas eu só mexia na dramaturgia da ação. Ele era ator, dirigia e escrevia, portanto, acho que pesquisava e sabia o que queria. A mímica traz a essência da realidade. Hoje, vejo que eu tinha todos esses conhecimentos in natura, e o Soffredini sabia que eu tinha isso, foi uma grande experiência essa junção dele comigo. O olhar que ele tinha quando pegava um texto era de dramaturgo. Ele fazia primeiro a decupagem, o tom da cena era de um dramaturgo. Então, a linguagem do espetáculo mantinha-se, mas ele não esquecia a linguagem do ator, valorizava essa linguagem. Enquanto princípio, ele dominava a carpintaria dramática, a linguagem da palavra, que tornava-se fluente. Acho que as maiores discordâncias minhas com ele foi com a linguagem da encenação que ele tinha. O cenário é um elemento essencial do teatro, é uma linguagem, ele não vem para emoldurar, mas para se comunicar com a plateia. Ele era assimétrico, não obrigava ninguém a ser pupilo dele. Havia uma mágica entre nós, não de sentar e beber, mas um respeito incrível pelo trabalho um do outro. É importante que se fale do Soffredini enquanto ser do teatro e história do Brasil. É importante para nossa memória, para nossa riqueza. Temos que colocar isso para o público. É fundamental cravar a participação dele como dramaturgo no teatro do Brasil. Eduardo Coutinho mímico Um Diretor Genial e um Grande Líder O Soffredini é mais conhecido como dramaturgo, mas era um diretor brilhante, um diretor genial e um grande líder intelectual. Era um diretor muito exigente que sabia exatamente o que queria. Na hora dos ensaios ele falava: Faz, não vamos perder tempo, não vamos discutir, fazendo vocês vão entender a linguagem. E aí você passava cinco, seis horas ensaiando e quando acabava o ensaio, todo mundo ia tomar cerveja, e aí era aula mesmo, porque ele explicava, priorizava sobre o que era aquilo, qual era a ideia. Era uma conversa deliciosa e ficávamos até madrugada conversando e daí vinha o embasamento. Ele era partidário de aprender fazendo; primeiro você faz, aí você vai entender por que você fez quando for ver o resultado. Ele dizia: Eu quero atores preparados tecnicamente. Porque não é um trabalho realista, é um trabalho muito teatral. Você tem que preparar os atores com os instrumentos do ator: a cabeça, o corpo, a voz e a alma do ator, que são os quatro instrumentos que ele falava que tinham que ser sempre preparados. Então a gente podia estar passando a maior dificuldade, mas tinha que ter alma. Podia não ter dinheiro para dividir entre nós, mas tinha que gastar com professor para ter aula. Se não fosse assim, ele falava, não me interessa dirigir esse grupo. No processo de montagem de Na Carrêra do Divino, o Soffredini deu um exercício, mandou cada um fazer uma coisa, eram tarefas bem simples. Então, um tinha que contar as cadeiras na plateia, outro ia medir quantos palmos tinha a boca de cena e a minha tarefa era contar quantos quartelados tinha no palco. Eu sou um cara formado em administração de empresas, então era só multiplicar quantos havia de um lado, quantos de outro e pronto, fiz a conta exata. Sentei lá e fiquei esperando o resto do pessoal contar cadeiras, coisa esquisita! Aí, quando ele foi avaliar o exercício, falou que eu não tinha feito a minha parte. Respondi: claro que eu fiz. Tem tantas quarteladas vezes doze quarteladas, eu sei quantas têm. E ele me falou: Quem te perguntou quantas têm? Não é essa a questão, o exercício não era procurar o resultado, era con-tar. E eu: Para que se conta? Você só conta para saber quantas têm. Qual o objetivo de contar? E ele: Não importa, o objetivo é contar, o processo é um objetivo em si. Eu não me conformava e foi uma discussão violenta. Uma hora ele gritou comigo, me deu uma chacoalhada e eu entendi uma coisa que me marcou para a vida inteira. Que nem tudo é a busca de um resultado; às vezes você vivenciar um processo, se aprofundar nele e seguir aquela proposta é muito mais importante do que você chegar a um resultado prático lá na frente. E isso orienta até hoje a minha carreira, tudo o que faço como artista tem que estar pensado desse jeito. Isso não serve quando você é produtor; em outras áreas talvez não, mas como artista é o único caminho. Você tem que entrar, mergulhar naquele processo, entender cada passo dele, senão não acontece. Isser Korik ator e produtor Um Autor Único e Revolucionário Para mim, ter estado no caminho do Soffredini reforçou mais ainda que sou uma atriz de teatro de grupo, que quer uma formação embasada, bons textos, bons personagens. Pode ser uma ponta, mas tem que ser legal. Sei que daqui a al-guns anos as pessoas vão ler a obra dele e lembrar de como ele pode ser atual e genial. Ele fala das coisas de uma maneira profunda, tem piada, tem comédia, mas tem poesia, tudo tem melodia, uma certa melancolia. Não dá pra rotular o Soffredini como um escritor de comédia de costumes. Ele é único. Um autor de vanguarda. Estamos ainda para descobrir uma definição para sua obra. Soffredini foi revolucionário e precisamos descobrir mais sobre ele num sentido dramatúrgico. Ele, como diretor, sabia o que queria dos atores, e os atores tinham que interpretar o personagem como ele criou. Alguns autores não mostram no texto como os personagens são, mas ele sim. Ele já trazia isso na palavra. Acho importante falar do Soffredini enquanto ser do teatro e da história do Brasil. Como dramaturgo, era fundamental cravar a participação dele no teatro do Brasil. É importante para nossa memória, para nossa riqueza. Luisa Albuquerque atriz O Grande Mentor Artístico Tudo o que eu aprendi e sou como atriz e até como pessoa, eu devo ao teatro, que transforma tanto quem assiste como quem faz. No Núcleo Estep, todos nós éramos muito jovens e não conseguíamos dimensionar o nosso trabalho, saber o que existia fora dali, pra poder analisar o que estávamos fazendo, o que representava no panorama teatral essa linguagem, essa característica de companhia. Um grupo como o Estep, hoje, faria um baita sucesso, porque nós tínhamos um trabalho forte, um grupo forte, um diretor forte. Mas a gente não conseguia se localizar, não sabia mesmo investir nessa proposta de um trabalho inovador, experimental. Ainda hoje, acredito que a força de trabalho dos atores de São Paulo está nos grupos, nisso de trazer pessoas para dar aulas, instigar, dar oportunidades que vinculem o ator ao trabalho de uma maneira amorosa, prazerosa, que o ator entenda aquele trabalho como parte dele também. O prazer tem que estar não só em quem assiste, mas em quem faz. Nós tínhamos o prazer da descoberta a cada trabalho; a cada aula você aprendia coisas de arte, teatro, estética do teatro que ia além do ato de criar, de fazer. Para todos os que passaram pelo Núcleo Estep, ele foi o grande mestre, um grande mentor artístico, um exemplo de homem de teatro, uma pessoa apaixonada pelo que fazia e que mostrava o quanto é importante você se apaixonar por uma ideia, por aquilo em que acredita. O Soffredini passava essa paixão pra gente, a paixão pela estética, pelo personagem, pelo espetáculo, eram descobertas maravilhosas que nós devemos passar para as pessoas. Além da estética, esse é o grande fruto que ele deixou e eu espero que isso possa ser preservado, transmitido de alguma maneira. A gente tem que se apaixonar pela ideia de alguém, tem que querer fazer igual a essa pessoa. Eu espero que o trabalho dele, o texto e a linguagem possam ser preservados, transmitidos de alguma maneira e, mais que isso, que as pessoas possam buscar essa paixão, esse prazer em fazer aquilo em que acreditam e que acham que é certo. Se for feito desse jeito, dá certo como deu certo pra ele e dá certo pra gente e dará certo pras novas gerações que vêm por aí. Rita Ivanof atriz Lidando com o Cotidiano e a Alma O Soffredini tinha uma coisa de lidar com a alma, não só com a coisa do cotidiano. Ele falava da alma humana e esse profundo é que me marcou. Era uma pessoa encantadora, um paizão, foi uma história boa na minha vida. Ele sempre passava: o caminho é esse. Poucas pessoas no mundo que eu conheci eram desse jeito; ele tinha certeza das coisas na arte, indicava caminhos. Com o Núcleo Estep, fizemos história, uma coisa marcante. A impressão é que hoje o individual é que é forte, não se trabalha tanto em grupo. Uma coisa como o Estep foi quase um milagre, reunir tanta gente com o mesmo ideal, a mesma vontade. Eu acho que havia um lado mítico, de alma mesmo, porque as pessoas tinham sonhos iguais, perspectivas de vida. Éramos todos artistas e com a sensibilidade à flor da pele, e tinha uma proposta a nos unir e a força do próprio Soffredini, uma pessoa mais madura, experiente e que conhecia tudo. Uma das primeiras coisas que eu aprendi com ele foi a disciplina: ou você está ou não está presente. Não era aquela coisa de quartel, mas de amor ao que você faz, de fazer benfeito, fazer o melhor. As músicas de Na Carrera eram mais líricas, estritamente sonoras. Já no Asno, eu senti que tinha que haver uma elaboração de ritmo, de articulação de sons; tinha que usar a linguagem com sabor, a maneira como ele escrevia tinha um sabor e eu tive que elaborar mais. No Asno é que eu comecei a entender mais, interferir mais na linguagem. Porque o Soffredini trabalhava com tempos de falas, com o som correto, e eu quis trabalhar isso, com a métrica. Valmy Rocha músico Capítulo XVI Tatális Carlos Alberto Soffredini, após o final do Núcleo Estep, se concentraria na sua produção dramatúrgica, escrevendo De Onde Vem o Verão, Quixote, Vacalhau & Binho e Vacalhau & Binho – Curso Abançado. Todos esses trabalhos foram produzidos pela Tatális Produções e Promoções Artísticas, criada pela filha Renata e pelo então genro, o produtor Isser Korik. Com De Onde Vem o Verão, Soffredini concretizava seu trabalho de pesquisa sobre o gênero teatral melodrama para a Fundação Vitae, interrompido com a dissolução do Núcleo Estep durante a montagem de Trem de Vida. O texto foi escrito entre 1989 e 1990. Porque o verão é o tempo em que todas as histórias são possíveis. É o tempo em que todas as perguntas são perguntáveis, como: de onde será que vem o verão? Será que é do mesmo lugar de onde vêm as andorinhas? Ou é deste arrepio na raiz do corpo? – escreve Soffredini no programa da peça ao descrever o melodrama. O melodrama no decorrer do tempo acabou tomando uma conotação meio pejorativa, como se melodrama fosse sinônimo de gênero menor. Já ouvi muita gente séria usar a palavra melodrama para designar apenas coisa que emociona, que provoca lágrimas. E como nos dias que correm, de obsessiva pós-modernidade, só tem nobreza o que é obsessivamente racional. Aquilo que esbarra na emoção humana foi relegado a um lugar plebeu, pondo toda a arte (principalmente a teatral) em risco de se tornar um teorema frio e chato! Além do que, conotar melodrama com lágrimas piegas é de uma obsessiva falta de conhecimento. Porque o gênero melodramático é definido por uma riqueza muito maior de regras, que só fazem devolver ao teatro a sua dimensão de legítimo divertimento... – E a regra que mais me impressionou durante a pesquisa, e que na minha opinião se sobrepõe a todas as outras, é aquela que define o público como foco principal das intenções. – E durante a pesquisa eu me pus a perguntar – coisa permitida, já que era verão! – se não seria possível fazer um teatro que fizesse o público ser reconhecer, sim... refletir, sim sobre a condição de ser humano vivendo no mundo com as características do nosso mundo – objetivo, de resto, de todo teatro sério que se faz no mundo de hoje – mas fazer isso tentando devolver ao teatro seu encanto, o seu papel de sedutor. Programa de De Onde Vem o Verão O manifesto de fundação da Tatális observava que o que é produzido dentro de critérios voltados à excelência artística está sempre fadado a ser considerado experimental, conotando uma produção amadora, não comercial e quase sempre cooperativada. Por outro lado, os espetáculos produzidos dentro de critérios voltados ao sucesso de bilheteria, normalmente se caracterizam como produções comerciais (no sentido negativo da palavra). – Tentamos unir essas duas ideias em um espetáculo – diz Isser Korik – e produzimos então a peça de Soffredini, que tem uma carpintaria super rebuscada; eu acho inovadora, muito importante culturalmente falando, com um nível de investimento no acabamento tão grande quanto o que é dado a um espetáculo comercial. A peça ficou dois meses e meio em cartaz no TBC – Teatro Brasileiro de Comédia com um elenco formado por Renata Soffredini, Cláudia Mello, Maria do Carmo Bauer, Cláudia Freitas, Walter Breda e Isser Korik. A direção era de Carlos Alberto Soffredini, e cenário e figurinos, assinados por Fábio Namatame . Valmy Rocha achou complicada a missão de musicar a peça: De Onde Vem o Verão foi muito difícil musicar porque não tinha muito texto. Eu queria criar uma coisa mais maluca, mas fiz uma opção de dissonância; hoje eu teria melhores condições de fazer isso, mas na época não tinha técnica nem tempo. Hoje o que estou fazendo em música é o que eu faria em De Onde Vem O Verão: uma roupagem diferente, uma coisa mais musicada talvez, menos rítmica. Era uma peça mais densa, com interpretações fortes, marcantes, e eu tinha duas opções. Se eu seguisse o fio condutor da Marlene, que era maluquinha, eu faria uma música meio pirada, estranha, partindo para dissonâncias totais, em que a música fosse sentida, e não entendida. A outra forma era seguir o Natalino, que era quem cantava a maioria das vezes, e eu peguei o fio condutor dele, porque ele ia se modificando e a música ia se modificando também. Em depoimento para a tese de doutorado de Eliane Lisboa, Soffredini define seu texto: – É o mesmo universo da Mafalda, o universo feminino, mas não tem história nenhuma, é um melodrama engraçado. Eu ouvi alguém contar de uma mulher que era absolutamente dominada pelo marido estróina e que um dia ela matou ele. Baseei a personagem na Marlene, que era casada com meu primo, uma pessoa pacata, incapaz de alguma atitude. Tem muita coisa a ver com a minha ex-mulher, esse universo da cozinha, do bordado, a Regina tem um domínio total sobre isso, ela é a famosa mão de fada. Eu queria fazer um exercício de carpintaria e foi muito louco fazer essa peça porque eu vinha trabalhando com sinopses, e a sinopse de De Onde Vem O Verão é incrível. São dez tópicos, cabe tudo numa folha de papel, era um quebra-cabeça. Eu punha as folhas pregadas numa cortiça, cada cena em uma folha de papel pra poder dar sentido às coisas. Foi um texto que me deu um puta prazer fazer, porque era um desafio; eu tenho que sentir que estou experimentando caminhos. A peça ficou pouco tempo em cartaz, mas recebeu os prêmios Molière e APETESP de melhor autor no ano de 1991. Diz Isser Korik: – Tivemos pouco público por causa de alguns erros na produção, mas a classe artística adorou o espetáculo, quem viu ficou marcado pela peça. Naquela época não havia muita opção de texto brasileiro, e era um texto muito bom, era digno de prêmio. Foi uma experiência economicamente frustrante mas ao mesmo tempo edificante. Tínhamos uma folha de pagamento muito alta e tivemos que tirar a peça de cartaz antes que o boca a boca pegasse. Jovem Dom Quixote ou Quixote apenas? Isser Korik comenta os dois títulos: Quando a gente ficou próximo, eu passei a interferir nos títulos das peças. O Pássaro do Poente ia se chamar A Garça do Crepúsculo, fui eu que sugeri Pássaro do Poente. Quixote, quando ele escreveu, era Jovem Dom Quixote, mas eu achava que esse título depreciava a peça, dava a ideia de um espetáculo menor. Eu sugeri Quixote e ele concordou. A peça estreou entre o final de 1992 e o início de 1993 no Teatro Faap em horário alternativo, com direção de Eliana Fonseca e músicas de Valmy Rocha. A ideia inicial era de uma peça infantil, que Soffredini teve dificuldade para desenvolver, a exemplo de Saci, um outro texto encomendado e que não aconteceu porque o autor caracterizava as borboletas da história como prostitutas. Ele tinha uma visão muito madura para espetáculos infantis – diz Isser Korik. O próprio Quixote é um espetáculo adulto com temática adolescente. Em entrevista concedida ao crítico Alberto Guzik para o jornal Estado de São Paulo, o próprio autor falava das diferenças entre as duas versões teatrais de Quixote: – O primeiro Quixote, trabalhei não em cima do romance de Cervantes, mas da adaptação clássica de José Antonio da Silva, o Judeu. Agora, a fonte de inspiração foi o romance de Cervantes. Num país como o nosso, Quixote é um personagem que se encaixa como uma luva. Mas como ia mostrar as aventuras de Quixote hoje? Inverti as coisas. Bolei um garoto apaixonado pelo Quixote e que descobre a realidade da cidade dentro da ótica do Quixote. O fato de ele ser apaixonado pelo Quixote significa que ele é apaixonado pelo sonho. Cervantes escreveu numa Espanha decadente, onde o povo não acreditava mais no poder da Coroa. A autoridade era corrupta, a justiça funcionava mal. Parece um país que a gente conhece muito bem, não é mesmo? Vacalhau & Binho foi apresentado ininterruptamente por mais de oito anos, com muito sucesso, nos teatros Crowne Plaza, Hilton e Maria Della Costa. O texto de Carlos Alberto Soffredini se inspirava no humor e na irreverência de Zé Fidelis. Noemi Gerbelli foi convidada pelo amigo para atuar na comédia e começou a ensaiar, embora tivesse que se dividir com o espetáculo Trair e Coçar é Só Começar. As sessões eram às sextas e sábados à meia-noite, e a peça teve que se transferir para um teatro maior graças ao sucesso da temporada. – Eram ensaios hilários em que comíamos muito, a troca de letras era difícil, eu ainda hoje brinco com isso. Fomos descobrindo essa linguagem do português de Trás os Montes que o Zé Fidelis já fazia, e o Soffredini foi escrevendo e criando aos poucos. Aí veio a ideia de uma camareira que seria um travesti; o Edvaldo e o Moisés se revezavam e, como eram muito diferentes, era muito engraçado. Eu fazia a Carmem, que dava uma receita de Caldo Verde, que era do próprio Soffredini, e conseguimos um restaurante que servia o caldo verde pra plateia. Vacalhau & Binho – Curso Abançado estreou em 1997 e era feito de paródias de alguns dos musicais da Broadway, como West Side Story, A Noviça Rebelde e Cantando na Chuva, entre outros. Ficou em cartaz por aproximadamente cinco anos. Diz dele Isser Korik: – O Soffredini é o meu grande mestre... sempre vai ser. E foi amigo pessoal durante muitos anos. Éramos apaixonados pelas mesmas coisas. Ele era um Homem de Teatro com H maiúsculo e T maiúsculo; poucos foram tanto como ele foi... Ele dormia e acordava teatro, era um cara que nunca procurava o caminho mais fácil, sempre queria dar um salto artístico qualitativo. Ele não aceitava fazer uma coisa menor. Revista Carlos Alberto Soffredini trabalharia, du ran te toda a sua carreira, não só com gerações di ferentes mas com atores com formações e currículos diversificados. Laert Sarrumor, líder da banda Língua de Trapo, famosa desde os anos 1980, conheceu Soffredini em 1990, quando da montagem de A Estrambótica Aventura da Música Caipira, a partir dos textos de Cornélio Pires. Soffredini era o responsável pelo roteiro final e direção do espetáculo, que mostrava sessenta anos de trajetória do som rural paulista em forma de revista. Do elenco faziam parte músicos regionais como Pena Branca e Xavantinho, Alvarenga e Ranchinho, o compositor e cantor Paçoca, o mímico Eduardo Coutinho e artistas circenses como o pessoal do Acrobático Fratelli. – Eu já tinha feito alguns filmes, alguns comerciais, mas teatro mesmo foi a primeira vez – conta Laert Sarrumor. Foi um espetáculo lindo. O Soffredini imprimiu sua marca de uma tal forma, mas respeitando o estilo e o brilho próprios de cada artista. Foi um sucesso, três apresentações no Sérgio Cardoso, o ingresso foi um agasalho. Tanto os mais jovens como os mais velhos sabiam e queriam ver a história da música caipira, e a gente contava a história do Chico Mineiro, do Cornélio Pires até os dias de hoje. Depois começamos a viajar, mas o trem descarrilou e não terminamos a turnê. Paramos no décimo show, e era uma loucura, quarenta pessoas viajando juntas. Laert voltaria a trabalhar com Soffredini como colaborador na redação da novela Brasileiras e Brasileiros, levada ao ar pelo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão, em 1991. Esta seria a primeira e única telenovela assinada por Soffredini. – O Soffredini foi chamado pelo Avancini para fazer a novela. Ele tinha gostado muito de mim e do Wandi Doratiotto, do Premeditando o Breque, que também tinha participado do show Estrambótica, da nossa maneira de pensar, e nos convidou como colaboradores na redação da novela. Tinha também o Perito Monteiro. Acabamos ficando amigos. Era uma novela legal, mas ele escrevia quarenta laudas de um capítulo, daí ligavam e falavam que era para reescrever tudo. Depois de um tempo, a gente acabou abandonando. Não deu certo porque o rumo que a coisa tomou foi um desperdício. Era uma somatória de coisas, o argumento, aliás, era do Avancini, depois a história mudou, foi para o outro lado e não deu em nada. Aquela novela acabou deixando ele pirado. Em seguida, Laert convidava Soffredini para dirigir dois shows de sua banda: Brincando com Fogo e Fim de Século. – No primeiro espetáculo, ele só deu uma limpada na obra. O Soffredini ensinava a não desperdiçar nosso talento, a não dar uma encavalada no texto. Em Fim de Século, ele organizou o texto, sugeriu um monte de coisas, o resultado foi bem legal. Tivemos uma tremenda convivência, muito bem-humorada, ele tirava um tremendo sarro da gente... Como na banda eu era rebelde, ele me ajudou a construir personagens formais. Era uma pessoa maravilhosa, mas que não teve o reconhecimento que devia... Ele dava as broncas, mas sempre com bom humor. Dizia: meia hora é atraso, mais meia hora é pouco caso. Ele tinha disciplina e uma autoridade moral muito grande. Ele paira sobre a gente, tem vários aspectos dele que a gente carrega. Vacalhau & Binho marca o início de uma nova fase de Soffredini – a comédia musical –, inspirada nas revistas, que se caracteriza pela sátira ao momento, pela crítica e pela paródia, elementos presentes nos espetáculos Vacalhau & Binho – Curso Abançado, Cindy o Freje, Corasãopaulo e Os Garotos da Sauna. Zé Fidélis é um personagem lusitano, radiofônico, dos anos 1940, que acabou ficando mais popular do que seu criador, Gino Cortopassi. Carlos Alberto Soffredini dá a receita da dramaturgia no programa de Vacalhau & Binho: – Do Cortopassi estão em cena quatro paródias de obras clássicas do teatro universal e uma filosofada sobre a música. Os textos de ligação escrevi a partir da ideia do casal de portugueses. Procurei, o mais possível, fundir o meu estilo com o do Gino Cortopassi. Na verdade, quando os textos dele caíram na minha mão, a primeira coisa que me ocorreu foi que quem pontificou que o gênero besteirol foi criado recentemente no Rio de Janeiro estava redondamente enganado. Já nos anos 1940, o Gino fazia esse tipo de humor leve, irreverente, absurdo e descartável. No mínimo, ponderei, a obra de Cortopassi dá status de gênero teatral brasileiro ao besteirol, do qual é um clássico. A verdade é que essa qualidade de humor do besteirol e do Gino – é da própria índole do povo brasileiro e sempre correu solta pelo nosso teatro, chamado ligeiro, pela nossa música, hoje pela nossa televisão e tanto ontem como hoje pelas piadas contadas no bar da esquina, no meio das cervejinhas depois do batente. Quem não sabe uma do português?! Uma novidade dessa peça seria a estreia no palco de um personagem bastante popular nas boates LGBT de São Paulo, Grace Black, criado por Moisés Inácio, integrante do grupo Língua de Trapo há mais de vinte anos e que vinha complementando sua formação de ator com aulas na Casa de Cultura Mazzaropi. Da mesma forma que Selma Luchesi participou de toda a fase de Soffredini nas tragédias, Moisés Inácio trabalhou em todos os espetáculo da fase comédia musical. – Desde 1986 eu trabalhava na noite fazendo performances e interferências em bares e boates e até em casamentos de lésbicas. Uma noite, o Soffredini foi assistir a um show do Língua de Trapo e ficou com os olhos brilhando ao me ver fazendo a Grace Black. Achou que eu me destacava no grupo com uma coisa mais teatral. Como ele estava preparando a montagem do Vacalhau & Binho, convidou a Grace Black pra fazer a personagem da camareira. Moisés fala da diferença entre trabalhar em um teatro convencional e trabalhar na noite: – Há um preconceito do teatro com a noite e vice-versa, mas palco é sempre palco, existe sempre o contato com o público. Os públicos eram diferentes, geralmente o público da noite, que era gay, era mais exigente, porque reparava em tudo. O teatro traz a mensagem; só depois é que a plateia olha o figurino, a maquiagem... Foi com o Língua de Trapo que eu tive uma noção mais profissional do fazer teatral. Eu já estava mais experiente para trabalhar com o Soffredini. A linguagem dele é muito específica, é uma linha sutil, mas muito forte ao mesmo tempo; o jogo com a plateia tem um peso muito importante nessa linguagem. Eu já tinha, nas boates, o exercício do jogo com a plateia, e o Soffredini só me lapidou. O que mais aprendi com ele foi a maneira de lidar com a plateia, a maneira de respirar, de articular. Ele me deu uma noção de disciplina de teatro incrível e levei meu improviso da noite para o teatro. Cindy, o Freje, paródia de Cinderela para o universo gay, escrita e dirigida por Carlos Alberto Soffredini, é o espetáculo que melhor representa essa sua fase que chamamos de comédia musical. Todos os atores da peça, inclusive os go go boys, vinham de trabalhos em boates, e com ele estrearam em um palco convencional – o espetáculo fez carreira na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. Soffredini enfrentaria, por causa dessa ousadia, muitos problemas, começando pelos preconceitos por estar trabalhando com a temática gay, como se sua forte dramaturgia tivesse se limitado a essa fase, considerada por alguns, menor. – Nosso público era normal, bem família – lembra Moisés Inácio. Foi fácil e proveitoso porque ele sabia que ali, na boate, poderia tirar um bom material de trabalho. Foi uma ousadia dele por causa do preconceito que existe, de um diretor famoso trabalhar no mundo gay. Ele ousou mudar de rumo e tentar novos projetos. Essa ousadia de Soffredini já havia sido observada nos anos 1970. Numa época de extrema valorização do teatro político e politizante, ele mergulhou nas raízes do teatro popular brasileiro e chegou ao circo-teatro. Com Cindy, o Freje, Soffredini enfrentaria o mesmo preconceito que o teatro de revista havia sofrido em épo cas remotas. Chamada de peça show, Corasãopaulo não era voltada somente para o público LGBT Era feita em quadros e falava de uma megalópole que Mário de Andrade já apelidara de desvairada. Em cena, as ruas, os bairros, as tribos, os tipos humanos e os sons da capital paulista. Em foco, situações do cotidiano da grande cidade, como o trânsito, a vida noturna, o samba paulistano, a informatização da metrópole projetada para o futuro. Os atores cantavam ao vivo dezoito músicas da MPB dos anos 1940 até hoje. Estreou em 4 de dezembro de 1998 na casa noturna Blue Space e reestreou em 28 de março de 1999 no Café Teatro Sandro Polloni, anexo ao Teatro Maria Della Costa. Todo mundo foi ver e era muito engraçado fala Moisés Inácio. Tinha mulheres, héteros e homos trabalhando juntos. Lembro desse espetáculo com muito carinho... Aguinaldo Ribeiro da Cunha, em crítica publicada na Revista do Diário Popular de 8 de abril de 1999, fala desse musical, que considerava inteligente e divertido: ...Com o talento e a habilidade que marcam sua trajetória de autor e homem de teatro, Soffredini traça um interessante e vívido painel da cidade, de seu passado, de sua paisagem, de seu ritmo, das diferentes raças e povos que a povoaram. ....O público acompanha com intimidade o espetáculo e interage facilmente com os atores, participando das brincadeiras propostas e acompanhando as músicas. O último espetáculo dessa fase foi Os Garotos da Sauna, escrito por encomenda para a boate Blue Space. A peça tirava a comédia do homossexual não assumido. Era interpretada por atores da noite e ocupava um espaço dirigido ao público gay. Tinha um lado da conscientização do preconceito entre os próprios homossexuais. – Aprendemos muito, e o fato de ele ter dado uma força para as nossas carreiras foi fundamental para a construção de nossos trabalhos, que eram muito arraigados na noite e precisavam de novos horizontes. Lembro que quando surgiu a possibilidade de trabalhar com ele, eu pensei: puxa, vou trabalhar com o cara que eu lia e leio ainda. Eu achava que ele teria alguns bloqueios comigo por eu ser da noite, mas ficamos amigos mesmo. Tudo isso até hoje tem reflexo: as brigas, as cervejadas, as impressões, tudo isso me influencia até hoje. Mudou minha vida trabalhar com ele, me ajudou a valorizar o meu trabalho. Vou sempre levar um pouco dele. Capítulo XVII Outras Mídias Ao longo de 40 anos de carreira como dramaturgo e diretor, Carlos Alberto Soffredini faria poucas incursões pela mídia eletrônica. A experiência mais longa nessa área seria com as radionovelas, processo que teve início em 1982, quando foi convidado a envolver-se com o Projeto de Renovação da Novela Radiofônica, patrocinado pelas Indústrias Gessy Lever. Um ano antes, mais exatamente em 1981, ele teria um primeiro contato com o cinema, ao escrever o roteiro de Tessa, a Gata, romance de Cassandra Rios. Sua contribuição mais importante para o cinema nacional seria, no entanto, o roteiro de A Marvada Carne, escrito a convite do cineasta André Klotzel e baseado no seu já premiadíssimo texto dramatúrgico Na Carrêra do Divino. O filme, uma produção da Tatu Filmes, com Fernanda Torres no papel principal e Adilson Barros, Dionísio Azevedo, Geny Prado, Regina Casé, Lucélia Machiavelli, Paco Sanchez, Henrique Lisboa e Chiquinho Brandão, além da dupla Tonico e Tinoco, foi sucesso absoluto de crítica e público e conquistou quase todos os Kikitos do Festival de Gramado de 1985, inclusive o de melhor rotei rista para Soffredini. A música era assinada por Rogério Duprat e a fotografia, por Pedro Farkas. A Marvada Carne conta a odisseia cabocla de Nhô Quim, do fundo da roça até a grande cidade. Obstinado em provar, uma vez na vida, a carne de vaca e a encontrar uma noiva, em uma aldeia, ele conhece Sá Carula, a moça casadoira que reza diariamente para Santo Antônio pedindo um marido. – Esse trabalho de reconstituição da linguagem caipira reafirma o seu caminho na busca da oralidade na dramaturgia, permitindo-lhe ganhar um domínio de linguagem o qual voltaria a explorar no roteiro de A Marvada Carne – escreve Eliane Lisboa em sua tese. A experiência de A Marvada Carne não seria das mais agradáveis para Soffredini que discordava da cena final do filme e do pouco destaque dado ao seu nome e ao de alguns de seus colaboradores nos créditos do filme. Wanderley Martins, autor das músicas de Na Carrêra do Divino, que deram origem a um disco, discorda da forma como André Klotzel utilizou seu trabalho: – Foi maravilhoso o que o Soffredini conseguiu em termos de resultado de roteiro. O que me magoou foi porque a música que fiz do Santo Antoninho e que está no filme não poderia entrar sem destaque nos créditos. É parte integrante da dramaturgia, da estrutura, letra e música são indissolúveis. Eles usaram a gravação da RCA Victor com a interpretação da Eliane Giardini, e como o Soffredini e eu tínhamos reduzido nossos ganhos de direitos autorais, acabei não recebendo um tostão. O filme ganhou prêmio de música – a participação de Tonico e Tinoco e a composição do Santo Antoninho são as duas coisas musicais mais importantes do filme. Paulo Betti concorda, em parte, com a crítica de Wanderley Martins: – Na época ficamos um pouco grilados, porque o André não falava nada da peça no lançamento. A gente queria que ele dissesse alguma palavrinha, mas hoje dou graças a Deus por ele ter feito esse filme maravilhoso. Dá uma ideia do que era o trabalho do Adilson em Na Carrera... Saiu em vídeo, depois em DVD, tem em qualquer locadora. No filme tem a Eliane cantando também, na mesma cena do Santo Antônio, que era o maior sucesso dela na peça, e que no filme é a Fernanda Torres quem faz. Outro processo difícil para Soffredini foi aquele que envolveu a novela Brasileiras e Brasileiros, com direção de Walter Avancini e que foi ao ar pelo SBT – Sistema Brasileiro de Televisão. Isser Korik, que era um colaborador não oficial de Soffredini nessa empreitada, ao lado da equipe de escritores formada por Laert Sarrumor, Wandy Doratiotto, Perito Monteiro, Flávio de Souza e Kakos, lembra da época: – Foi tumultuado, o Soffredini sofreu muito com essa novela. O Avancini pedia a toda hora para mudar os rumos da novela, era de enlouquecer mesmo. O exemplo claro disso era o Goiabinha, o anão. O Soffredini teve a ideia de por um anão de jardim que de repente virava um anão de verdade. O Avancini não gostou da atuação do anão e mandou o tirá-lo de cena. O Soffredini teve que reformular tudo, porque o persona-gem era importante na trama. Depois de uma semana, o Avancini, que era muito pirado, fa-lava: põe o anão, as crianças estão gostando do anão, ele está dando Ibope. O Soffredini ficava louco! Não era um trabalho para ele, que era muito profundo e muito artesanal, pensava em cada palavra. Essa coisa de produção era muito pesada para ele, ele não era tão industrial como requer a TV, diferente da novela de rádio, em que você escreve tudo e depois grava... Como parte de um projeto de marketing de alcance nacional, a Gessy Lever, com o objetivo de redinamizar a novela radiofônica, encomendou a Carlos Alberto Soffredini, por intermédio da SSC&B Lintas Publicidade, uma novela. Pablo e Joana foi escrita em 1982, com 120 capítulos, e tinha como temática o circo, o rural, gente da cidade grande e do interior. Foi transmitida inicialmente por 120 emissoras de todo o País, chegando a atingir um universo de 300 rádios, graças ao sucesso alcançado. – Foi uma inovação completa, tanto em texto de um autor novo que nunca tinha escrito novela radiofônica, como na direção – diz Castro Negrão, supervisor de radionovelas da Lintas. Nossa primeira preocupação foi modernizar o texto e a interpretação, porque a novela radiofônica tradicional era naquele estilo rançoso, empolado, antiquado, cheio de canastrices, embora feito honestamente. Os atores recebiam o texto no dia da gravação e iam pro estúdio direto, sem ensaiar sem nada, e gravavam quinze capítulos por dia. Nós gravávamos no máximo seis capítulos por dia, porque ensaiava-se, discutiam-se as cenas. O Soffredini era um diretor muito rigoroso e tinha o respeito do elenco. Soffredini levou para as radionovelas atores de teatro: Jandira Martini, Walter Breda, Rosi Campos estavam em Pablo e Joana – Renata Soffredini como protagonista. Cabia à Lintas a contratação do estúdio, a remuneração do dire-tor e dos atores e a distribuição da novela, em rolos, carretéis, para as emissoras transmitirem gratuitamente. A vantagem para as rádios era que elas recebiam um programa pronto e tinham o direito de utilizar comerciais na abertura e nos entremeios dos capítulos. Para cada história havia uma trilha sonora original, criada especialmente. Depois de Pablo e Joana, Soffredini escreveu mais quatro novelas para rádio como parte do projeto da Gessy Lever. Eram trabalhos que se caracterizavam por uma outra inovação: a música em estreita relação com a dramaturgia, característica já observada em toda a sua obra. Anita Garibaldi, Heroína por Amor, com 80 capítulos, tinha Rosi Campos como protagonista. Wanderley Martins criou especialmente para a novela a trilha sonora. – Fiz um tema específico para a Rosi Campos, que também cantava. Trabalhei com um grupo de músicos, fiz algumas canções, pesquisei muito a música do Sul, as coisas tradicionais, o material do Marcos Pereira. Eu lia antes de todo mundo os capítulos pra poder fazer a trilha, não adiantava só ler a sinopse. A radionovela seguinte foi Sal da Terra, sobre a Guerra de Canudos, cabendo ao ator Bahia o papel de Antonio Conselheiro. O publicitário Castro Negrão lembra que esse trabalho ficaria marcado pela redução no número de capítulos. – Depois de três anos de sucesso, algumas emissoras começaram a pedir histórias mais curtas. Pablo e Joana tinha sido escrita com 120 capítulos; a Anita tinha 78. Sal da Terra tinha 30 capítulos e se transformou em um filé mignon; foi transmitida por mais de trezentas emissoras, fora os pedidos de pessoas que queriam produzir essa obra fora do Brasil, acho que no México e Peru. Encaminhei esse assunto ao Soffredini por causa dos direitos autorais – ele tratava direto –, mas não sei o que deu depois. Com a demanda de textos mais curtos, Soffreddini resolveu adaptar sua peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu para seis capítulos. Jandira Martini fazia a Mãezinha, Wanderley Martins ficou com o papel de Campônio e a direção musical, e Renata Soffredini fez a Cancionina Song. As músicas utilizadas na novela radiofônica eram as mesmas compostas por Wanderley Martins para o teatro. Bruno, que Carlos Alberto Soffredini escreveu e dirigiu, tendo a história do pai como tema, foi a última radionovela assinada por ele. Castro Negrão fala da contribuição do gênero para os atores e em especial da repercussão desse último trabalho: – A contribuição do rádio para o ator é fantástica, é uma nova versão, um novo caminho, dar vida ao personagem apenas com a fala, o timbre. Era uma coisa elétrica, a experiência de cada um passava na hora. Em Bruno, todo mundo foi às lágrimas. Onde é que já se viu isso? O pessoal da velha guarda não ia saborear isso nunca, eu nunca vi eles ficarem emocionados, eles eram muito ligeiros, não dava nem para perceber certos erros. Naquela época a produção era fabril, tinha que entrar em estúdio e gravar dez, doze capítulos num dia, não dava pra repassar textos, propor uma inflexão, trocar ideias. Com Bruno, Carlos Alberto Soffredini encerrava seu trabalho em rádio, ainda que o projeto patrocinado pela Gessy Lever tivesse continuidade. – Não era um produto que compensasse as despesas, porque teríamos que pagar o espaço nas grandes capitais. Quando o projeto terminou, quase 240 emissoras estavam retransmitindo, muitas reprisavam capítulos. A radionovela ficou órfã. O ouvinte gostava e saiu perdendo. Eu tinha resposta das emissoras, de que as novelas estavam indo bem, conseguiam vender bem o patrocínio. A mais perfeita liga de Soffredini com a mídia eletrônica pode ser observada em Hoje é Dia de Maria, levada ao ar pela TV Globo em duas temporadas no ano de 2005. Tendo como base alguns contos populares registrados por Luís Câmara Cascudo na obra Contos Populares do Brasil e por Sílvio Romero em Contos Tradicionais do Brasil, Soffredini escreveu o texto em 1995, por encomenda do diretor Luiz Fernando Carvalho, para um especial de uma hora e meia de duração que seria apresentado pela TV Globo. A microssérie, com texto adaptado por Luís Alberto de Abreu, autor muito respeitado por Soffredini, foi ao ar em duas edições: de 11 a 21 de janeiro e de 11 a 15 de outubro. No elenco, atores de prestígio da Rede Globo como Stênio Garcia, Fernanda Montenegro, Rodrigo Santoro e Letícia Sabatella, além da menina Carolina Oliveira no papel principal. Todos fizeram aulas de canto e de pronúncia das palavras – Renata Soffredini deu ao diretor Luiz Fernando Carvalho consultoria sobre a linguagem do texto, toda ela em dialeto caipira, uma das características do trabalho de Carlos Alberto Soffredini. Cenários, figurinos e maquiagem foram cuidadosamente elaborados, e o grupo de teatro de bonecos Giramundo criou figuras com mais de três metros de altura que contracenavam com os atores. A acadêmica Vanessa de Carvalho, com mestrado pelo Departamento de Artes Cênicas da ECA/ USP, analisa esse trabalho: ... Nesse texto, vamos encontrar um intenso estudo dialetal, como o realizado em Na Carrêra do Divino, revelador da expressão do caipira típico, por meio de seu universo, seus causos, mas formado por vocabulário bastante específico, retirado sobretudo dos estudos feitos por Amadeu Amaral. Esse trabalho de reconstituição da linguagem caipira reafirma o seu caminho na busca da oralidade na dramaturgia, permitindolhe ganhar um domínio de linguagem que voltaria a explorar no roteiro de A Marvada Carne. ... Luis Fernando Carvalho, diretor de Hoje é Dia de Maria, afirmou que o texto poderia ser interpretado tanto como resgate das origens da cultura popular brasileira, quanto como processo de individuação, representado pela trajetória da protagonista Maria. O mitologista Joseph Campbell observou, certa vez, que um povo não pode existir sem suas raízes. Essa capacidade de resgatar nossas origens era uma constante no trabalho de Soffredini. A segunda interpretação diz respeito a um processo de individuação, simbolizado pela jornada da personagem Maria desde o momento da perda da infância até a hora de conhecer o amor e os revezes da vida adulta. Nesse percurso, ela encontra amigos que ajudam a concluir a missão da heroína, enfrentando obstáculos em prol de sua salvação. Ainda que não tenha tido a oportunidade de observar o sucesso de seu trabalho, Hoje é Dia de Maria deu a Soffredini tudo o que ele merecia: reconhecimento e sucesso de público em nível nacional. A microssérie foi considerada o melhor programa da televisão brasileira em 2005 e registrou audiência superior a 30 pontos durante sua exibição. Radionovelas: Inovação Completa A minha relação começou, historicamente, não com o rádio, mas com teatro. Eu fiz teatro com o Emilio Fontana, depois tive uma bolsa de estudos para a Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Fiquei um ano lá. A Lintas administrava a radionovela da Gessy Lever – os grandes autores da época escreviam para a Gessy Lever – e em 1981 o projeto seria encerrado porque a novela radiofônica vinha sofrendo um desgaste grande. Fui cuidar disso por causa do meu envolvimento com teatro e cultura. E quando me deram carta branca, sugeri chamar o Soffredini por causa de Na Carrêra do Divino, que eu tinha visto. Nosso primeiro contato foi maravilhoso, porque nos entendemos muito bem. No primeiro projeto, Pablo e Joana, foi uma inovação completa porque trabalhamos com gente que nunca tinha feito radionovela e com o texto de um autor novo que nunca tinha escrito novela radiofônica. A direção dele era naturalista, sem empáfia, sem aquela coisa elaborada, decorada. Foi um voo no escuro que deu certo, virou uma pe ça maravilhosa. Nosso projeto era inovador em textos, histórias, temáticas, interpretação, completamente diferente das radionovelas tradi cio nais. Nós discutíamos o tema, os atores tinham di rei to a sugestões. Em 1985, começamos a co piar os capítulos em cassete em vez de rolos, que eram caríssimos. A maioria das pessoas da radionovela era de teatro. Era uma festa a cada gravação. A gente fazia um lanche na hora, começava ao meio-dia pra ganhar tempo e era uma alegria porque era uma relação muito amistosa e fraterna de todo mundo. Era uma energia formada lá, pelo fato de serem todos oriundos do teatro e fazendo uma coisa nova para eles; faziam com muito prazer. Depois do Soffredini, criei um atrativo pra emissora colocar no ar temas promocionais: Dia das Mães, Dia dos Pais. Semanalmente tinha gravação. Ou era uma história de seis capítulos ou seis histórias de um capítulo. Eu ensinava pra emissora como promover, como fazer faixa, como visitar livrarias, papelarias, como dar desconto pra quem assistisse à novela; eles vendiam cotas de patrocínio. Quando terminou o projeto, a radionovela ficou órfã. A própria Lintas ainda tentou fazer o novelão com o antigo produtor, mas não deu certo, morreu. Sofri muito quando me afastei do projeto. Mesmo assim, conseguimos levar o projeto de radionovela por dez anos. Se eu ganhasse dinheiro na Sena, comprava um horário e colocava a radionovela no ar, em horário nobre, queria ver se não emplacava. Castro Negrão publicitário Meu Melhor Presente como Atriz Até hoje as pessoas me falam sobre a peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, texto do Soffredini que fiz sob direção do Gabriel Vilela. Quando levamos a peça no Rio e em São Paulo, as pessoas ficaram penduradas quase que nos lustres. Foi uma loucura, ganhamos vários prêmios, eu inclusive ganhei todos os que existiam na época. A Xuxa Lopes fez uma produção maravilhosa, aliás, toda vez que ela se propõe a fazer alguma coisa, ela faz sempre umas coisas muito boas, muito bonitas. Todos nós dançávamos e cantávamos;, tivemos aulas de canto com o pianista Dagoberto Feliz, uma pessoa sensacional, eu que achava que não ia cantar nada. Aliás, tivemos tudo do bom e do melhor, a partir do autor, e o Gabriel Vilela tinha uma joia na mão. Ficamos em cartaz uns seis ou sete meses. Eu tive a sorte de ser escolhida para fazer esse personagem que era a mãe e quero agradecer ao Soffredini, esteja ele lá onde estiver, espero que em um lugar maravilhoso, e dizer de coração: Obrigada, obrigada, obrigada, Soffredini. Obrigada por esse personagem, o trabalho mais importante da minha vida, em que me realizei porque dancei, cantei, representei. Era, é e será um dos melhores textos. Eu acho que o melhor texto e o melhor personagem que já fiz em toda a minha carreira de mais de 50 anos. Porque ele era deslumbrante, o personagem é divino, e porque ninguém retratou melhor, escreveu melhor o amor materno do que o Soffredini. Quando lembro fico comovida, com os olhos cheios de água, um personagem que qualquer atriz gostaria de fazer, porque é completo. Ele é o amor de mãe, o amor de mulher, o amor do ser humano, o entrosamento dos seres humanos, a luta dessa mulher para preservar, para salvar aquele filho. Aquela mulher, que era uma mulher de circo, que já é uma coisa fantástica, deslumbrante, porque o circo já é encantado, frequento circo desde pequena porque meu pai amava também; todo mundo gosta de circo. Infelizmente, tiraram do circo aquela coisa ingênua, bonita que o circo tem, aquela coisa quase primária que se torna depois uma coisa séria e importante. O circo é uma escola maravilhosa porque você usa o corpo, a inteligência, a vivacidade. Eu acho o circo tão belo... Fiz um pouco de circo para fazer a peça Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, tive aulas com uma menina de 8 ou 9 anos que me ensinou uma porção de coisas: como é que o ator agradece, malabarismos, que eu achei dificílimo, aquela cama elástica. Era uma gente maravilhosa, aberta, que está sempre te recebendo como se você fosse um rei, quando os reis são eles; eles é que são o princípio da coisa, são eles que sabem de tudo. Tive colegas que foram de circo, o Walter Stuart nasceu dentro daquilo, fez muitas peças e quis reavivar um pouco o circo de antigamente, mas não conseguiu. Na peça, o Soffredini transforma aquela mulher que era minha personagem, não numa derrotada, mas numa guerreira, porque ela fazia os espetáculos, ela contava sua história, mas dentro de uma tragédia; e dentro havia também a coisa leve, inclusive também um pouco de comicidade. Essa peça reuniu tudo o que um ator quer mostrar. A tragédia, a comédia, a delicadeza, a brutalidade, a luta pela vida. Sou grata ao Soffredini por essa mulher que ele escreveu e que gostaria que eu tivesse feito, e graças a Deus eu fiz. Então, tenho um carinho especial por ele, pela família dele, por tudo o que ele escreveu, por tudo o que ele fez, por tudo o que ele inventou neste mundo, porque tudo é lindo, de uma sensibilidade... Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu ficou guardada no meu coração, na minha pele, na minha alma, também por causa de uma equipe maravilhosa de atores que conseguiu uma química, um entrosamento, e pela direção genial do Gabriel Vilela. Houve uma energia, uma linha unindo tudo e todos. Quando entrávamos no palco para representar, desaparecia tudo, era o circo, a música, o texto deslumbrante. Soffredini era um homem maravilhoso, um ser humano inteligente, gentil, que sabia o que pedia. Fomos dirigidos por ele em um pequeno trecho dessa peça durante um festival aqui em São Paulo e ele sabia o que queria, sabia o que pedia, era um homem de teatro, era um homem de letras, enfim, e tinha uma legião de fãs. Talvez nem ele soubesse o quanto era querido e admirado como diretor e como autor. Na TV Globo, participei de um outro trabalho dele, Hoje é Dia de Maria. Na primeira montagem, fiz a narradora; o Luiz Fernando de Carvalho seguiu essa linha de adaptação do Luiz Roberto de Abreu. Era como se eu fosse uma avó contando uma história. Na segunda montagem, eu tinha um personagem. E quando você faz um texto do Soffredini, logo reconhece pela beleza, pela humanidade, você diz – isto é dele – e foi outro trabalho maravilhoso que fiz, agradecendo aos deuses do teatro. Foi um presente também do Luiz Fernando Carvalho, um homem inteligentíssimo, que sabe quem é quem, e que adora o Soffredini. Recebi cartão, recebi elogios, foi muito gratificante fazer aquela narração, aquela avó. Laura Cardoso atriz As Várias Faces de Soffredini Conheci Soffredini quando ainda era ator de teatro amador, no começo dos anos 1970. Tinha menos de 20 anos e Soffredini já era conhecido como encenador de um grupo amador santista, responsável por uma polêmica montagem de Prometeu Acorrentado numa mostra de Teatro Amador ocorrida no SESC Vila Nova, em São Paulo. A partir daí, comecei a acompanhar sua carreira ascendente. Parece que nessa época Soffredini tinha uma predileção especial pelos clássicos gregos. Tanto que, pouco depois, assisti sua montagem de Electra e acompanhei mais de perto sua emocionante encenação de As Troianas, realizada numa das quadras do SESC Vila Nova. Foi um trabalho deslumbrante, uma encenação forte onde a intensidade do texto de Eurípedes soou contemporânea aos nossos jovens ouvidos. E, onde se esperava o desenvolvimento de uma promissora carreira de encenador, surge o dramaturgo. Pouco tempo depois, Soffredini, que já ha-via ganho o prêmio SNT, de 1967, com Mafalda..., faz um enorme sucesso com uma adaptação do clássico Mais Quero Asno Que Me Carregue Que Cavalo Que Me Derrube, de Gil Vicente. Mas Soffredini, como artista inquieto e homem de teatro, ainda iria acrescentar uma outra face ao seu trabalho de diretor e dramaturgo: o de pesquisador. Em 1975, concebe um grande espetáculo ao ar livre: adaptação de Dom Quixote, de José Antonio da Silva, o Judeu, onde estão presentes elementos visuais, temáticos e interpretativos de sua grande pesquisa: a cultura popular brasileira. Talvez mais do que outro qualquer, esse espetáculo de um lado fecha um ciclo de clássicos que começa com os gregos e passa por Gil Vicente. Por outro lado, abre o grande arco de um leque de investigações da estética popular que vai do circo à revista e deságua na pesquisa do melodrama. É nessa época que Soffredini torna-se um dos mais importantes e prolíficos dramaturgos de sua geração. Em 1977, funda, com atores remanescentes da montagem de Dom Quixote, o Grupo de Teatro Mambembe, que estende e aprofunda a pesquisa sobre a estética popular circense e é responsável pela excelente montagem de Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu, texto de Soffredini que é considerado o testamento do circo-teatro brasileiro. Já na década de 1980, investiga a cultura caipira paulista e escreve o já clássico Na Carrêra do Divino, encenado pelo Pessoal do Victor. Incansável, escreve o poético Pássaro do Poente, adaptação de uma lenda oriental, para o grupo Ponkã. No final da década, está envolvido com a pesquisa do melodrama, um dos gêneros mais potentes e vilipendiados da dramaturgia, sobre o qual Soffredini se debruça com admiração e carinho. Foram esses os trabalhos de Soffredini que acompanhei mais de perto e que perfazem mais ou menos 20 anos. O que não é pouco. Nunca tive a felicidade de trabalhar com Soffredini e, talvez por causa disso, nosso conhecimento não se aprofundou em amizade.. No entanto, desde os tempos do teatro amador mantive relações estreitas com inúmeros de seus atores e estava sempre no escuro das plateias durante os ensaios, aprendendo com a encenação de suas peças, ouvindo histórias sobre seu processo de trabalho, lendo suas peças e assistindo aos espetáculos. Para mim, ele foi um mestre involuntário, e seus espetáculos, principalmente o Grupo Mambembe, me guiaram no início de meu caminho como dramaturgo. Minha parceria com Soffredini se deu na televisão e depois de sua morte. E foi especialmente feliz. Aconteceu quando o diretor Luiz Fernando de Carvalho me convidou para adaptar e desenvolver um projeto inicial deles dois: Hoje é Dia de Maria. Também aqui continuei a trilhar os inúmeros caminhos abertos por ele. Ninguém se constrói sozinho, o ‘self-made man’ americano é uma farsa. E como dizia Bertold Brecht, todo mundo precisa da ajuda do outro. Para mim, a ajuda desse grande outro, Carlos Alberto Soffredini, foi inestimável. Luís Alberto de Abreu dramaturgo Capítulo XVIII Mazzaropi A Oficina Cultural Amácio Mazzaropi, que funciona no Brás, realizou, no primeiro trimestre de 2000, o projeto especial Brasil em Cena, como parte das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. Atores e diretores foram convidados a promover oficinas para discutir o espectro da dramaturgia nacional, de Anchieta a Zeno Wilde. Coube a Soffredini, que então festejava seus quase quarenta anos de carreira, devassar a vida e a obra de José de Anchieta, o Apóstolo do Brasil. Quando do estudo de sua montagem, Soffredini apresentou à entidade um relatório em que diz: Chamamos reuniões porque não se trata de uma oficina na forma tradicional em que é conhecida, porque, mais que discutido, temos escrito. E não é oficina porque não estão sendo dadas aulas. A parte teórica acontece na análise do material executado pelos integrantes do grupo. O resultado do trabalho – a peça Zé do Brasil – partiu de uma tarefa denominada Uma Visita a Anchieta, que foi dividida em três temas: A Vida de Anchieta, A Companhia de Jesus e A Obra de Anchieta (os autos representados para os índios com o intuito de catequizá-los). Os três trabalhos resultantes foram fundidos em um único espetáculo. Soffredini explica: – Percebemos logo de saída que a tarefa era árdua: criar um texto a partir de uma pesquisa histórica é muito mais difícil que criá-lo de um tema livre. À angústia da folha em branco se juntam: a imprecisão do caráter do personagem histórico, as lacunas nas informações, as contradições dos estudiosos, onde deve parar a pesquisa e começar o trabalho? Porque, em pesquisa, uma descoberta leva a outra e, se a gente não souber onde parar a tal pesquisa, não termina nunca, e o texto nunca começa. E a isso se junta o que passei a chamar de o vício de oficina: numa oficina tradicional, quem tem obrigação de fazer é o orientador, mas nesta, se o participante não escrever, nada acontece, isto é, não dá pra esperar por ninguém, tem que pôr mãos à obra. Que nem o teatro, esta oficina é ação... Na etapa seguinte da oficina de dramaturgia, entraram os diretores que ajudaram na formação final do texto e na seleção do elenco, integrado por cinquenta atores. Sylvia Malena, uma das integrantes do grupo, conta como se deu o trabalho de pesquisa: Estivemos no Pátio do Colégio, onde Anchieta fundou São Paulo, visitamos exposições, pesquisamos material na internet, vimos o filme Anchieta José do Brasil, trabalhamos com material do Darcy Ribeiro. O Soffredini fazia anotações, criticava os textos. Cada texto, no final, virou praticamente uma peça. Ele então fez algumas colagens e montou com todos os textos. Ele enfatizava a ação dramática, o que chamava de nó dramático. Eram muito práticas as orientações. Para os diretores, ele foi dando os toques, a princípio trabalhando os atores com laboratório, o grupo todo reunido. A cada dia, dois diretores davam exercícios de expressão corporal, voz. O trabalho era todo integrado: o pessoal da dramaturgia com os textos, o pessoal da dança, os atores. A gente começou a fazer as aulas de canto e ele começou a lapidar o trabalho dos diretores. Ele deixava a gente trabalhar livre e depois lapidava. Era um aprendizado muito grande. A peça foi bem interessante, porque teve vários Josés de Anchieta. O que houve não foi nem tanto uma diversidade de atores e sim uma caracterização. Então, em cenas mais pesadas, era um Anchieta mais velho, em cenas em que ele era o filho, era uma mulher que fazia o Anchieta. Sylvia Malena fez o personagem da Mãe Grande: Na hora de selecionar os atores, só tinha o ancião da minha idade, e ele então falou: o ancião será anciã. E aí eu soube que o papel era meu. Começamos com leitura e achei o Soffredini meio reservado, então entrei com receio. Mas conhecia o nome que ele tinha. Além de contar trechos da vida de Anchieta, o texto Zé do Brasil critica e ironiza a invasão cultural europeia em relação à cultura brasileira, tão rica e tão frágil, como lamentava Soffredini. A peça teve seis apresentações no Centro Cultural Amácio Mazzaropi e uma em Sorocaba. Soffredini lamentava que o espetáculo não tivesse ficado mais tempo em cartaz. Terminado esse projeto, que da oficina de dramaturgia às apresentações da peça, durou um ano e meio, Carlos Alberto Soffredini propôs ao Centro Cultural Amácio Mazzaropi um projeto similar, em cima da obra de Gil Vicente. Eles aceitaram uma parte, só a da dramaturgia lembra Silvia Malena – e não a da direção e da interpretação, por causa dos custos. A oficina durou uns três meses e não deu tempo de terminar o texto. Tivemos mais dois encontros no apartamento do Soffredini, mas ficou por isso mesmo. A impossibilidade de dar continuidade a essa proposta trouxe a Carlos Alberto Soffredini uma frustração já conhecida: a dificuldade de agregar, em torno de um ideal, pessoas com as quais pudesse desenvolver um projeto teatral. Soffredini morreria alguns meses depois. Capítulo XIX Um Registro Poético da Vida do Homem Brasileiro A decisão de trabalhar com Soffredini veio de uma impressão que logo se transformou em certeza. Tratava-se de um gênio e, que audácia, em terras brasileiras! Um gênio, com direito a ser mal compreendido e tudo, como a história da arte pode confirmar. Pois Soffredini incorria em um erro grave: sua obra tinha cara de Brasil, no melhor estilo Oswald de Andrade. Soffredini sabia, como ninguém, valorizar a cultura popular brasileira. A solidez de seu trabalho talvez se deva, não somente ao seu talento, mas também ao fato de que Soffredini era, também, um pesquisador. Pesquisava, e muito, antes de escrever seus textos. As pesquisas chegavam a durar meses, como o fez na Bahia, quando convidado para a direção de um balé. Ou quando levou o elenco do Mambembe para o circo, momento que resultou em uma estética e uma linguagem cênica que marcaria, para sempre, cada um dos atores e técnicos que o acompanharam pela periferia de São Paulo. De certo modo, ele talvez produzisse tão bem relatos de nossa brasilidade porque fosse também um pouco antropólogo. Investigava a fundo nossas raízes, seja qual fosse a proposta que recebesse de trabalho. Com um tema em mãos, uma questão qualquer a resolver, ele saía a campo, com o intuito de voltar com material suficiente para textos e montagens. Soffredini falava, com conhecimento de causa, da vida no campo, do circo-teatro, de festas populares ou de literatura de cordel. Mas seu trabalho não tinha como resultado um texto acadêmico intrincado, chato, cheio de dispensáveis referências metodológicas. Ele tinha um objetivo definido. Transformar o resultado de suas pesquisas em uma obra-prima. Obra de arte pura, na forma de textos cheios de lirismo e humor, daquelas capazes de manter fidelidade a preceitos de apurado rigor estético, com direito a aura. E sabia, revelando amadurecimento estético, para quem seu trabalho se dirigia, pois ele tinha consciência de seu público. Tinha ele uma certa amargura, por conta do desdém com que era tratado por setores da imprensa e da intelectualidade. Certa vez observou que a crítica, principalmente nos últimos anos de sua carreira, pouco oferecia de retorno à sua obra. À exceção de Sábato Magaldi. Ao lado dessa frustração, o dramaturgo era de uma generosidade ímpar, ao receber os amigos de teatro. Lembro de uma colega pesquisadora que certa vez disse que ele era como um pai para os artistas que precisassem dele. Do contrário, como explicar a disposição e o carinho com que recebeu esta pesquisadora, que mal sabia dimensionar a importância de sua obra, e acompanhou passo a passo todo o seu trabalho? Desde o início, quando manifestei a vontade de estudar seu trabalho, ele procurou acompanhar toda a minha saga em prol de passar no mestrado em Artes da Universidade de São Paulo. Ele sabia das dificuldades, pois quando uma contemporânea sua, a pesquisadora e diretora Neyde Veneziano manifestou, anos antes, vontade de pesquisar a obra do dramaturgo santista, recebeu uma enfática negativa como resposta. Comigo, a princípio, não foi diferente. Fui recusada, e somente após alguma insistência, o trabalho de Soffredini chegou a ser considerado um possível objeto de estudo. Por essa época, Eliane Lisboa estava concluindo uma tese na Unicamp sobre a dramaturgia soffrediniana. À época de minha prova de admissão, ele acompanhou com simplicidade os testes que versavam sobre a Póetica de Aristóteles. Ao comunicar o resultado da prova, ele observou: Eu gosto da Poética, até que é benfeitinha, reconhecendo assim seu tributo ao teatro aristotélico. Uma das últimas vezes em que vi Soffredini foi quando ele, na Oficina Mazzaropi, ministrava um curso de dramaturgia. Pegamos o metrô e fomos a pé até a oficina, que ficava muito próxima à Estação Bresser. Ele, pacientemente, ensinava, para quem quisesse aprender, a escrever para teatro. Os alunos do curso eram de mais diferentes formações: um jornalista, um dono de jornal, alguns atores iniciantes e amadores, uns aspirantes a diretores e o faxineiro do local, que rondava o curso à espera de um convite para também participar da oficina. Cada uma daquelas pessoas teve a oportunidade de aprender as principais técnicas de dramaturgia. A pensar o texto dramaturgicamente, o que significa pensar em termos de ação e conflito, em cena. A trabalhar com um dos preceitos-chave do texto soffrediniano: a revelação, na fala do persona-gem, de seu perfil, de modo que até mesmo o pior dos atores conseguiria, ao ler o texto, apresentar um desenho das personagens. Mas que todas elas sejam, ao mesmo tempo, personagens sólidas, ricas, rebuscadas, detalhadas. No que toca ao resultado, ainda que reconhecêssemos, nos textos dos dramaturgos em formação, a assinatura de Soffredini, tratava-se de um trabalho de equipe. Talvez seja por esse motivo que uma outra colega tenha confirmado a ideia de que toda uma geração de teatro havia sido formada por ele. Inteirado das mais modernas correntes de pesquisa social, Soffredini firmava que não há um juízo de valor entre culturas. Mas era justamente nesse ponto que residia parte de suas críticas aos problemas enfrentados por quem faz teatro no Brasil. Para ele, o que vinha de fora do Brasil, principalmente dos Estados Unidos ou da Europa, não necessariamente significaria ser algo de melhor qualidade. E atacava uma falha de formação da identidade nacional: cultura sem memória, sem resgate de suas raízes. Soffredini era, portanto, em busca de nossos mitos fundadores, um pensador da realidade brasileira, seguindo um caminho aberto por pensadores como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Roberto da Matta e outros formadores do chamado pensamento nacional. Mas de forma lírica, inspirando-se na obra do espanhol Federico Garcia Lorca, com quem Soffredini se identificava, por ter sido também caçado, se não por patrulhas ideológicas, pela polícia política do Generalíssimo Franco. Mas nem só de sonhos de novas gerações e da formação do homem brasileiro girava a temática dos textos de Soffredini. O dramaturgo também se interessava por retratar o chamado mundo cão das noites paulistanas. Temas como homossexualismo, solidão e prostituição também encontram lugar em sua obra. Nesse universo, destaca-se a busca cotidiana por um pouco de afeto nas grandes metrópoles brasileiras e de companhia contra a solidão cotidiana. Dos deserdados de uma sociedade hipócrita que se divide por não saber conviver às claras com tudo o que ela mesma cria. E que lhes reserva as noites de cidades como São Paulo. Na dramaturgia soffrediniana, a música sempre ocupou lugar de honra. Faz parte da construção dos textos. Pelo fato de as personagens entoarem canções populares, de seus atores era exigido que aprendessem a cantar. Por esse motivo, a lingua-gem de Soffredini exigia atores com formação multidisciplinar e a presença constante de profissionais especializados a assessorar seu trabalho. Uma das primeiras coisas que Soffredini perguntava, quando chegava a uma cidade, era quem era o professor de canto e quem ensinava aos alunos as aulas de expressão corporal. Para Soffredini, o principal instrumento para o ator constituía-se em seu corpo, que deveria estar sempre muito bem afinado. A teatralidade da estética de Soffredini constituía-se, realmente, em um verdadeiro teatro físico. A despeito do fato de ter sido logo reconhecido o valor de sua dramaturgia, como demonstram os prêmios que recebeu ao longo de sua carreira, ele reconhecia que o teatro era a arte do ator. Outra convergência de seu trabalho com os grandes do teatro mundial revela-se no distanciamento dos atores em relação a seus personagens, como no teatro brechtiano. Mas as diferenças com os grandes também eram muito nítidas e abertamente professadas por ele. Soffredini não era chegado a psicologismos na construção de seus personagens. Criticava abertamente o sistema de Constantin Stanislavski. Exceto se, utilizando o sistema, o ator conseguisse um efeito teatral, não realista, pois seu teatro era o do efeito. Que o resultado se apresentasse teatralmente. Nesse ponto, Soffredini poderia ser acusado até mesmo de certo pragmatismo. Mas havia um objetivo nobre em cena: fazer bom teatro. Porque senão, ele reconhecia que de nada valeria obrigar o público a enfrentar a violência de uma cidade como São Paulo, à noite, para assistir a um espetáculo. Ele afirmava que, sempre que malfeito, teatro é muito chato. Outro de seus pensamentos, que poderia chocar alguns de seus interlocutores não iniciados em sua linguagem, referia-se ao fato de que todo ator é, na verdade, alguém que apresenta certa dose de loucura, absolutamente necessária em cena, expondo-se de maneira surpreendente e extracotidiana. Ou seja, de que o ator é, em essência, um sujeito meio kamikaze, dizia. Em sua obra, lírica, cheia de encantamento e reverência ao diferente, Soffredini nos deixa um legado, ainda não publicado, vasto e profundo de seu entendimento do homem brasileiro. Por esse motivo, qualquer referência ao mestre brasileiro somente pode terminar de uma forma: Muito obrigada, Carlos Alberto Soffredini! Vanessa de Carvalho acadêmica e pesquisadora Capítulo XX Descobre-se um Autor No final dos anos 1980, tive a oportunidade de assistir, em Santa Catarina, às montagens de dois textos de Carlos Alberto Soffredini, autor de cuja dramaturgia até então jamais ouvira falar: Mais Quero Asno que Me Carregue que Cavalo que me Derrube e Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu. Nascia ali minha curiosidade pela obra que viria afinal a se constituir em meu objeto de estudo em doutorado defendido no curso de Teoria Literária do IEL/Unicamp. Parti então em busca de identificar o autor e saber que outros textos havia escrito. A professora e diretora Neyde Veneziano, parceira de Soffredini em suas primeiras experiências teatrais, intermediou nosso contato e, em pouco tempo, eu estava de posse da totalidade de seus textos dramáticos. Algumas surpresas me esperavam então: primeira delas, o reconhecimento de que se tratava da mesma pessoa que dirigira, há muitos anos, em Salvador, uma sensível encenação de Yerma, a que eu tivera não só a oportunidade de assistir, como também de acompanhar de perto o processo de montagem. Segunda surpresa, mais importante, foi a descoberta de que meu interesse fora motivado pelo contato com parcela muito pequena de uma extensa e rica dramaturgia, aparentemente uma colcha de retalhos, que me permitiria mergulhar numa experiência singular de criação. A empatia, que motivou meu estudo sobre a dramaturgia de Soffredini, nasceu já nos contatos iniciais com sua obra. No estudo contínuo de seus textos, o prazer da leitura ampliava-se à medida que me aprofundava no trabalho, com sempre renovada satisfação. Isso me faz acreditar que, ainda que a obra de Soffredini se caracterize por forte teatralidade, com acentuado caráter visual e cênico, o seu texto propicia também leitura prazerosa, e das mais instigantes. A força poética de sua criação, o olhar ao mesmo tempo delicado e profundo sobre alguns dos conflitos básicos do ser humano, o reconhecimento da beleza existente na simplicidade e a sua aproximação com a cultura popular são, todos esses, fatores que nos mantêm em sintonia e vibração ao longo de sua leitura. Soffredini escreveu mais de vinte textos dramáticos, dos quais apenas três nunca tinham sido montados até então, e pelo menos cinco deles tendo recebido inúmeros prêmios, além de várias montagens bem-sucedidas sob responsabilidade de diretores brasileiros importantes, e até hoje só tem um texto editado, A Mafalda, como resultado do prêmio do SNT. Sua dramaturgia, de enorme diversidade e complexidade, não permite que se a enquadre no universo restrito de um único gênero ou estilo. O autor apresenta a peculiaridade de ser um dos raros dramaturgos brasileiros dos anos 1980 a romper com a forma naturalista e com o psicologismo em cena, o que creditamos a seu percurso de homem de teatro, conhecedor das manhas e artimanhas dessa arte, como o revelam seus textos. Em sua obra, Soffredini passa por várias formas de expressão artística, assim como vários estilos, numa trajetória eclética que se desenha na própria vida do autor: dos estudos literários à formação autoral, da direção teatral à dramaturgia radiofônica e aos roteiros para cinema e televisão. Nesse percurso, a produção dramatúrgica manteve-se como elemento marcante e fundamental de seu processo criativo, refletindo seu percurso pessoal: partindo do texto do autor das letras na Mafalda, onde a palavra extravasa da cena, até o texto do diretor em Trem de Vida, onde a imagem cênica é o texto, numa escrita didascálica em que o diálogo está quase ausente, em evolução que tem como linha diretriz o impulso para a cena. Mas seu contato com o rádio, o cinema e a televisão reflete-se em sua dramaturgia, no uso da linguagem fragmentada, esquetes, cenas curtas, e na multiplicidade de espaços intercênicos. Isso gera algumas vezes, na proposta de cena criada pelo autor, uma produção de estilo cinematográfico, com vários espaços e tempos. A velocidade com que se passa de uma situação a outra corresponde à passagem de um simples fotograma a outro. A ruptura com a narrativa linear, evidenciada em todas as esferas da arte, encontra-se também expressa na obra soffrediniana. O contraponto temporal, passado/presente, progride até se chegar ao cruzamento de um tempo/espaço indefinido, existindo unicamente o tempo espaço da ficção cênica que a tudo abarca. A temporalidade em Soffredini é assim uma construção que parte do tempo interior do autor e do tempo do personagem, e são essas temporalidades que vão circunscrever e determinar a temporalidade da narrativa. Temporalidade essa que se constrói, no entanto, no presente real do espectador, pois em nenhum instante abandonase a consciência da presença de um observador, que, embora silencioso, é sempre cúmplice, parceiro, confidente, ou afinal a razão de ser de tudo o que se faz, ainda que seja para ludibriá-lo. Não há quarta parede, raros objetos de cena indicado, ou escassa cenografia, o que não quer dizer que ela não possa existir na cena, mas raramente é proposta pelo autor, que trabalha com a ideia de essencialidade. O jogo é sempre teatral. O jogo da ilusão é dado pelo ator, investido de personagem, que é quem cria a cena e, se reconhece a presença do público, é a partir dessa cena, inserindo-o nela, sem romper a ilusão da verdade de seu personagem. Assim, com raríssimas exceções, não vamos ter atores e sim personagens dialogando com o espectador. Mesmo que se rompa a linearidade da narrativa, o contato com o espectador se faz ainda dentro do mundo da ficção. Talvez se esteja mais próximo de um Pirandello nesse jogo tradicional onde o palhaço de circo brinca com o espectador enquanto ao mesmo tempo impõe a ele o papel de partícipe. O que se evidencia é que a narrativa final, construída pelo leitor/espectador, não será mais a de uma simples história apresentada em cena, mas a de um teatro que se discute, que se autoanalisa, que se faz lógico nessa linha aparentemente ilógica. A discussão do personagem ou sua intervenção no curso da história abre o campo dos pontos de vista, como se não houvesse um narrador mas como se a narrativa se construísse a partir do papel de narrador assumido pelos muitos personagens e pelo próprio autor, às vezes explicitamente presente, às vezes de maneira velada, indireta. Fontes À leitura de seus textos, uma vertente de que não podemos fugir é a do reconhecimento dos autores que de algum modo neles se fazem presentes, quer citados explicitamente, quer parafraseados, sendo quase impossível identificar todos os textos em que se baseia o autor para escrever suas peças, ainda que na maioria das vezes haja um texto de base explícito: da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, passando por Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio Cândido, O Guarani, de Alencar e Dom Quixote, de Cervantes ao Saci de Lobato. Esse texto de base funciona como ponto de apoio, como estopim, mola propulsora que permite ao autor então expandir-se, traçar sua própria trajetória, que pode seguir em paralelo à obra original ou contrapor-se, ampliar suas sugestões ou mesmo extrapolá-las, negá-las, numa ruptura. Além dessas fontes primárias múltiplas, em muitos casos sua criação também está vinculada diretamente a um projeto de montagem, determinante das diferentes formas de criação. Poderíamos citar como parâmetros dois únicos textos significativos no conjunto de sua obra, que rompem com esse percurso que identificamos como parafrásico: Mafalda e De Onde Vem o Verão. Dois textos com 23 anos de distância um do outro, que não se encontram vinculados a nenhuma obra anterior, mas, ao que parece, são frutos da experiência de vida do autor. O último deles representa, aliás, de meu ponto de vista, uma sorte de retorno do autor maduro a um universo de certa forma já explorado, na criação de texto que consideramos como o ponto alto de sua dramaturgia. Se essas obras anteriores são múltiplas, serão também múltiplas a linguagem e a construção do autor. Enquanto amplia suas buscas, ele experimenta também novas formas, ainda que se possa identificar o que seriam elementos recorrentes, que nos fazem vislumbrar uma marca autoral. Mas a multiplicidade de aspectos das diferentes obras, que gera uma obra diversificada no seu todo, mais do que diferenciada apenas da obra primeira que parafraseia, é uma resultante também do momento vivido pelo autor em cada nova escrita. Na totalidade da obra é possível identificar algumas características de sua trajetória pessoal como homem de teatro, momentos específicos de seu trabalho como pesquisador e estudioso, assim como de seu impulso, diríamos atávico, para o popular como um estímulo criador; e a passagem pelo circo-teatro vai apenas reforçar essa que já é uma marca do autor. Seu processo experimental, seu percurso criativo, as tendências de sua dramaturgia são também reflexo e produto de uma tendência contemporânea; correspondem a um momento novo. Momento este em que os dramaturgos passam a dialogar com uma nova cena, resultado das experimentações teatrais dos últimos anos, que reintegra a palavra ao palco, dando-lhe o devido lugar, ao lado dos outros recursos poéticos de que a cena pode fazer uso. Influências Cruzamento de muitas dramaturgias, reflexo de uma história teatral que se perde no tempo, o texto dramático de Soffredini deixa entrever alguns elos fundamentais, onde se reconhecem dois autores de maior influência. Entendendo-se aqui influência não como citação explícita, mas como uso de elementos comuns, de estratégias, ou o espelhamento em algumas práticas ou mesmo linhas temáticas, tonalidades e sentimentos, que nos fazem transitar à obra de outros autores. Eles vão marcar algumas das características fundamentais da obra soffrediniana: a permanente consciência teatral e o caráter popular, evidenciados pela obra de Gil Vicente, e a imagética lírica essencial da dramaturgia lorquiana. O primeiro deles, Gil Vicente, tem sua influência intensa e explicitamente reafirmada pelo próprio Soffredini, que o identifica como seu mestre, e vai homenageá-lo com sua adaptação da Farsa de Inês Pereira. O universo popular, do povo miúdo, presente em Gil Vicente, encontra outro referencial, e para nós de enorme ressonância na dramaturgia do autor, junto ao dramaturgo espanhol Garcia Lorca, cuja obra Soffredini já conhecera integralmente ainda como estudante de letras em Santos. Soffredini vai refletir Lorca em muitos aspectos, entre eles a força lírica de seus textos, e na opção por personagens femininos que se desdobram em muitos espelhos no conjunto de seus textos. Se essas experiências primeiras, passando pelo humor vicentino e a poética lorquiana, marcam definitivamente a trajetória do autor, um novo momento se constitui no seu contato com o teatro oriental, fundamental para o amadurecimento e definição de sua dramaturgia, em particular no apurado espírito de síntese que conquista, sem jamais abandonar as formas do teatro popular. Dos dramaturgos brasileiros, além de Artur Azevedo, Nelson Rodrigues sem dúvida influencia o autor, sobretudo no que respeita à essencialidade cênica de sua dramaturgia. Soffredini vai, inclusive, fazer evidente uso de alguns modelos de construção rodriguianos. Teatralidade A partir das heranças fundamentais da obra de Gil Vicente e Lorca, assumidas pelo dramaturgo e reconhecíveis em sua dramaturgia, e dentro de seu percurso também como ator e diretor, Soffredini desvenda os mistérios e mecânicas da prática teatral. Passa a dominar a chave da teatralidade, que depende essencialmente da presença física do ator na relação direta com um espectador, e da consciência que essa relação determina, de que tudo o que acontece em cena vai trabalhar com espaços e tempos duplos, unindo ficção e realidade num permanente jogo de faz de conta. Jogo este que exige e necessita da cumplicidade do espectador. A dramaturgia de Soffredini é evidentemente criação de essência teatral, sendo impossível sequer ler seus textos sem visualizar-se imediatamente a cena. O importante na dramaturgia do autor são os modos como ele apresenta essa característica, os elementos de construção e elaboração formal que identificam nele um percurso particular dentro do conjunto da dramaturgia brasileira. A teatralidade, na obra do autor, encontra-se apoiada em três eixos fundamentais: a lingua-gem oral, como constituidora do personagem e da situação cênica; o entrecruzar de tempo e espaço permitindo a criação de um tempoespaço único presentificado na cena, para o que contribui a figura narrativa, quer como voz autoral, através das rubricas, quer na voz de personagens, quer no reconhecimento da existência do público; e a concisão poética responsável pela densidade dramática. O ponto de partida é sempre o aqui-agora de onde saem e se originam todos os caminhos, determinado pela presença real do corpo do ator e pela linguagem oral que resgata o diálogo com o público a cada uma de suas falas. E que, no entanto, embora seja a nossa linguagem coloquial, cotidiana, vem marcada também pela convenção teatral e pela poesia soffrediniana, na estilização de sua construção, na poética de suas rimas ou versos brancos, na lírica essencial que exige atenção redobrada. Analisada de vários ângulos, quer do ponto de vista do personagem, de sua linguagem ou das categorias de tempo/espaço, tudo em sua obra nos conduz a essa relação essencial com o público, ausente no texto, mas visível através das falas, da ambiguidade e dualidade constituidora de todo o sentido de sua dramaturgia Sua obra assume a função de uma revista, não do ano, mas de um tempo, de uma época, de uma história de que todos fazemos parte, e que tem como protagonistas os heróis anônimos: aqueles de que as manchetes não falam, que não brilham nas telas do cinema e das tevês, não constam dos noticiários; os que nascem no lado torto da vida; aqueles para quem nunca se fez um poema, nosso autor dedica uma obra inteira, vendo e nos fazendo ver poesia em cada um de seus gestos mais banais, resgatando do cotidiano e pintando com cores de magia os seus amanheceres feitos de cantos de galo, latidos e cantigas de roda. Sua dramaturgia nos resgata esse tempo presente, do aqui e agora não restrito ao espaço do teatro, mas o do presente vivo, experimentado por todos os que estão ali no palco e na plateia, vivido também fora dali. Como se toda a obra do autor se constituísse numa única narrativa: a da grande trajetória humana, dos passos miúdos, das pequenas conquistas, das lutas e fracassos dos quais nosso cotidiano essencialmente é feito, onde o herói da cena é o homem comum. Sua dramaturgia trabalha num outro nível de relação com a realidade, onde o particular de nosso cotidiano mais banal serve de parâmetro e modelo para uma análise sensível e profunda da natureza humana universal. E nessa relação de diálogo com o nosso tempo, sobre o nosso tempo, o autor foi encontrando a fala essencial, onde o gesto e a cena vão ganhando o lugar da palavra, onde esta é um elemento que compõe como uma imagem, na sonoridade de sua música e brilho, na forma que se desenha com ela pelas repetições, reiterações. Até chegar a sua experiência maior nessa busca: Trem de Vida, que não chegou a se concretizar numa apresentação, mas que se elaborou como projeto, revelador dos seus passos no rumo da experimentação conclusiva, do projeto que quer nascer do silêncio, quer transpor a passagem da canção para o palco sem a intermediação do texto adaptador. Soffredini é fruto do momento de autoanálise da intelectualidade brasileira, na década de 1980, e vai desenvolver uma experiência de natureza diferenciada do espírito de engajamento instaurado nas duas décadas anteriores. Seus textos são reveladores de uma nova prática, vivida por toda uma corrente de criadores que partem para conhecer a cultura popular e constroem seus trabalhos como resultado dessa vivência, e reconhecendo a força poética de suas produções. A obra de Soffredini ocupa lugar de singular presença no conjunto da dramaturgia brasileira contemporânea, cujos autores, de um modo geral, como bem afirma Sábato Magaldi, observam um estilo semelhante, fruto de um realismo que esbate as tendências expressionistas épicas ou poéticas. De toda uma geração de autores que se consolidou nos anos 1980, Soffredini traça seu próprio rumo, onde encontramos a cena em sua teatralidade exacerbada, aspecto esse que, em nosso entender, vincula-o diretamente ao processo criativo de Nelson Rodrigues. O presente cênico de nosso autor faz-se não só de épocas e lugares distintos, mas constitui-se numa somatória de imagens, de tempo e lugar indeterminados, modos de ilustração do que afinal ele deseja dizer. Ao longo de sua produção dramatúrgica identifica-se ainda, de modo claro, essa perspectiva de aperfeiçoamento do domínio da dramaturgia como instrumento para a cena, a tal ponto que, diríamos, o autor radicaliza em duas experiências: Trem de Vida e A Madrasta, todos os dois textos inéditos. O primeiro deles, constituindo-se mais exatamente num roteiro de montagem ou numa dramaturgia que se escreve na cena, daí justamente seu radicalismo. Em A Madrasta, o percurso é distinto. Além do polêmico tema da relação incestuosa entre pai e filha, a dramaturgia que deriva por muitos caminhos, experiência aperfeiçoada em De Onde Vem o Verão, mas que já se anunciava em Mafalda, atinge aqui um grau máximo, com a personagem perdendo o controle da situação, e a trama tomando rumos inesperados, jogando com a possibilidade de ludíbrio do próprio espectador-leitor. Pode-se reconhecer no conjunto de sua obra a coragem do autor, não se satisfazendo com uma linha de trabalho, experimentando a cada novo texto um percurso inusitado, um ponto de partida diferenciado, constituidor de mais um desafio, uma relação distinta com a dramaturgia e a própria cena que a motiva. Em algumas ocasiões tive a oportunidade de encontrar-me com Soffredini. Ele foi sempre profundamente generoso e disponível a qualquer tipo de solicitação. Nossas conversas permitiramme também conhecer um pouco de seu processo de trabalho e identificar a relação que mantinha com sua criação. Ele não tinha dúvidas quanto à qualidade de seu trabalho. Naquele momento, seu sentimento talvez fosse mais de espanto, de cansaço até, aliado ao temor de ver o que realizara perder-se para sempre da nossa memória teatral, dado o silêncio que se espraiava sobre ele. Mesmo que em muitos cantos do Brasil, de quando em quando, um novo vento soprasse, na solicitação de algum grupo dele desconhecido, para retomar um de seus textos, trazendo-o de volta à vida. A possibilidade de ver sua obra estudada, mais do que lisonjeá-lo, parecia dar-lhe estímulo e a confiança para acreditar que nem tudo fora em vão. E, quem sabe, de que valeria a pena também continuar. A vida não lhe deu tempo, mas fico contente em saber que antes de partir ele pôde ao menos vislumbrar um novo amanhã para tudo o que já conseguira construir. Não se pode deixar de reconhecer a irregularidade de sua produção, onde encontramos textos menos elaborados, às vezes feitos com ligeireza ou funcionalidade, na busca de resultado mais imediato, ainda que mesmo nesses possa-se identificar seu perfeito domínio da carpintaria teatral. Mas pode-se também afirmar, com toda a tranquilidade, que Carlos Alberto Soffredini deixou pelo menos quatro obras-primas eternizadas na dramaturgia e na cena brasileira: Na Carrêra do Divino, Vem Buscar-me Que Ainda Sou Teu, O Pássaro do Poente e De Onde Vem o Verão, e isso não é pouco fazer. Eliane Tejera Lisboa autora da tese de doutorado intitulada: A teatralidade na dramaturgia lírico-épica de Carlos Alberto Soffredini apresentada ao curso de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp – 2001 Trabalhos Dramaturgia 1965 • O Cristo Nu • A Crômica • O Caso Dessa Tal de Mafalda, que Deu Muito 1967 o que Falar e que Acabou como Acabou, num Dia de Carnaval 1969 • Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube 1979 • Na Carrêra do Divino • Vem Buscar me que Ainda sou Teu • Minha Nossa • O Guarani • O Pássaro do Poente 1984 1986 1987 Programa de Minha Nossa 1988 • Alegre Vizinhança • Trem de Vida • De Onde Vem o Verão • A Estrambótica Aventura da Música Caipira • O Saci • Auto de Natal Caipira • Quixote • Vacalhau & Binho • A Madrasta • Vacalhau & Binho 2 – Curso Abançado • Cindy, o Freje • Corasãopaulo 1990 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 • Pagode • Os Rapazes da Sauna 2000 Direção 1962 • Vestido de Noiva – TEFFI • O Cristo Nu e A Crômica – TEFFI • Electra, de Sófocles – TECO • Prometeu Acorrentado, de Ésquilo – TEVEC 1966 1969 1971 1973 • As Troianas, de Eurípedes – SESC/SP 1974 • A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca – EAD • Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, de Soffredini – Teatro Thereza Raquel/RJ 1975 • Farsa de Cangaceiro, Truco e Padre, de Chico de Assis – Teatro de Cordel de São Paulo • Yabu-No-Naka-Rashomon, de Ryonozuke Aku ta gawa – EAD 1976 • A Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, de Antônio da Silva, o Judeu – Teatro Mambembe do SESC 1977 • O Diletante, de Martins Penna – Grupo de Teatro Mambembe • A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente – Grupo de Teatro Mambembe 1978 • Yerma, de Garcia Lorca – Teatro Castro Alves – Bahia • Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, de Soffredini – Teatro Castro Alves – Bahia 1981 • Felisberto do Café, de Gaston Tojeiro – Mil Produções Artísticas 1985 • Minha Nossa, de Soffredini – Núcleo Estep 1986 • Na Carrêra do Divino, de Soffredini – Núcleo Estep 1987 • Mais Quero Asno que me Carregue que Cavalo que me Derrube, de Soffredini – Núcleo Estep • Castro Alves Pede Passagem, de Gianfrancesco Guarnieri – Arsenal das Artes 1989 1991 • De Onde Vem o Verão, de Soffredini – Tatális Produções 1993 • Brincando com Fogo – show da Banda Língua de Trapo • Vacalhau & Binho, de Zé Fidelis e Soffredini – Tatális Produções 1994 • O Guarani, de Soffredini – EAD/ USP • Fim de Século – show da Banda Língua de Trapo 1995 • Delicadas e Perversas, de Nilza Rezende – Veredas Comunicações e Arte 1996 • Vacalhau & Binho II – Curso Abançado, de Soffredini – Tatális Produções • Cindy, o Freje, de Soffredini – Ser Produções Artísticas • Corasãopaulo, de Soffredini – Ser Produções Artísticas 1997 1998 1999 • Pagode, de Soffredini 2000 • Os Rapazes da Sauna, de Soffredini – Blue Space Novela Radiofônica 1982 • Pablo e Joana • Anita – Heroína por Amor • Sal da Terra • Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu 1983 1984 1985 1986 • Bruno Teledramaturgia 1990 • Brasileiras e Brasileiros – SBT – direção de Walter Avancini 1981 • Minha Nossa – TV Globo – inédito 1995/2005 • Hoje é Dia de Maria – TV Globo – direção de Luiz Fernando Carvalho Cinema 1981 • Tessa, a Gata – direção de John Herbert 1984 • A Marvada Carne – direção de André Klotzel 1998 • História em Preto e Branco – inédito Agradecimentos Iva Estácio, Wilma Vicente, Deise Sartório, Eliana Rocha, Neyde Veneziano, Antonia Adorno, Luiz Monforte, Carmelinda Guimarães, Ney Latorraca, Jandira Martini, Gláucia Amaral, Luisa Albuquerque, Celso Batista, Eunice Mendes, Selma Luchesi, Carlos Pinto, Flávio Dias, Wanderley Martins, Mauro de Almeida, Suzana Lakatos, Euri co Sampaio, Noemi Gerbelli, Cristiano Mai tan, Calixto de Inhamuns, Ednaldo Freire, Douglas Salgado, Rubens Britto, Rosi Campos, Maria do Carmo Soares, Teodomiro Queiroz, Eliane Giardini, Paulo Betti, Márcio Aurélio, Chico Cabrera, Isser Korik, Eduardo Coutinho, Rita Ivanof, Valmy Rocha, Castro Negrão, Luis Alberto de Abreu, Eliane Lisboa, Vanessa de Carvalho, Augusto Paiva, Dirce Bernardes Barros Campo, Gaspar Bissolotti Neto, Alessandra Cavagna, Sabina Collutty, Sylvia Malena. Índice No Passado Está a História do Futuro – Alberto Goldman 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Renata Soffredini 11 Rua do Sol 15 TEFFI 47 Mafalda 91 EAD 105 As Tragédias Gregas 123 Diretor na EAD 161 Pavilhão 195 Projeto Mambembe 209 Grupo Mambembe 253 Salvador 283 Dramaturgia de Encomenda 295 Dercy Beaucoup 303 Na Carrêra do Divino 307 Pássaro do Poente 319 Núcleo Estep 333 Tatális 379 Outras Mídias 413 Laura Cardoso 430 Mazzaropi 435 Um Registro Poético da Vida do Homem Brasileiro 441 Descobre-se um Autor 449 Trabalhos 467 Agradecimentos 485 Crédito das Fotografias Todas as fotografias pertencem ao acervo de Carlos Alberto Soffredini A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Débora Duarte – Filha da Televisão Laura Malin Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz Erika Riedel Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa Fernando Peixoto – Em Cena Aberta Marília Balbi Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Isolda Cresta – Zozô Vulcão Luis Sérgio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert Jorge Loredo – O Perigote do Brasil Cláudio Fragata José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra Alberto Guzik Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro e Eu Não Sei Ler Eliana Pace Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silnei Siqueira – A Palavra em Cena Ieda de Abreu Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana? Maria Thereza Vargas Stênio Garcia – Força da Natureza Wagner Assis Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Theresa Amayo – Ficção e Realidade Theresa Amayo Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Walter George Durst – Doce Guerreiro Nilu Lebert Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista © 2010 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Soffredini, Renata Carlos Alberto Soffredini : serragem nas veias / Renata Soffredini; colaboração Eliana Pace – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 512p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-905-2 1. Teatro – Brasil – Produtores e diretores – Biografia 2. Teatro Mambembe 3. Soffredini, Carlos Alberto, 1939-2001 I. Pace, Eliane II. Ewald Filho, Rubens. III. Título. IV. Série. CDD 791.092 Índices para catálogo sistemático: 1. Teatro brasileiro : Biografia : Representações públicas : Artes 791.092 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados. 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