Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Vladimir Carvalho Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos IMPRENSA OFICIAL São Paulo, 2008 GOVERNO DE SÃO PAULO Governador José Serra Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação Segundo o catalão Gaudí, Não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras. De fato, muitos artistas são imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas. Mas como reconhecer o trabalho de artistas geniais de outrora, que para exercer seu ofício muniram-se simplesmente de suas próprias emoções, de seu próprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram a mais volátil das artes, escrevendo dirigindo e interpretando obras primas, que têm a efêmera duração de um ato? Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou são muitas vezes inacessíveis ao grande público. A Coleção Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memória de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participação na história recente do País, tanto dentro quanto fora de cena. Ao contar suas histórias pessoais, esses artistas dão-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a consciência crítica da sociedade. Suas histórias tratam do contexto social no qual estavam inseridos e seu inevitável reflexo na arte. Falam do seu engajamento político em épocas adversas à livre expressão e as conseqüências disso em suas próprias vidas e no destino da nação. Paralelamente, as histórias de seus familiares se entrelaçam, quase que invariavelmente, à saga dos milhares de imigrantes do começo do século passado no Brasil, vindos das mais variadas origens. Enfim, o mosaico formado pelos depoimentos compõe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo político e cultural pelo qual passou o país nas últimas décadas. Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própria voz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpre um dever de gratidão a esses grandes símbolos da cultura nacional. Publicar suas histórias e personagens, trazendo-os de volta à cena, também cumpre função social, pois garante a preservação de parte de uma memória artística genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem àqueles que merecem ser aplaudidos de pé. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa a resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira, no tempo e espaço da narrativa de cada biografado. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceito seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos extrapolam os simples relatos biográficos, explorando – quando o artista permite – seu universo íntimo e psicológico, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade por ter se tornado artista – como se carregasse desde sempre, seus princípios, sua vocação, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente a nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Desenvolveram-se temas como a construção dos personagens interpretados, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção e a opção por seu formato de bolso, a facilidade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza de suas fontes, a iconografia farta e o registro cronológico de cada biografado. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que nesse universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de to-do o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução O Cabra Quadro a Quadro A certa altura deste livro, Vladimir Carvalho conta que se sentiu muito à vontade enquanto desmembrava caranguejos e tomava uma rara cerveja numa praia de Luanda. É que apenas uma linha reta através do oceano o separava do litoral de João Pessoa, da praia de Cabedelo, do seu querido Cabo Branco. Vladimir é assim. Aonde vai, carrega o Nordeste brasileiro dentro de si. Vivendo em plagas outras desde o fim da década de 1960, nunca, porém, perdeu o sotaque, seja na língua, seja na alma. Procurar sucursais do Nordeste onde quer que esteja é sua maneira de acercar-se e penetrar no miolo de cada destino. Agora mesmo, no período em que desfiou suas histórias diante do meu gravador, dedicava-se também à finalização de seu sexto longa-metragem, O Engenho de Zé Lins, mais um retorno ao cenário e a personagens de sua região natal. Sempre nessa dialética entre origem e circunstância, o cabra aqui retratado construiu uma obra vigorosa e admiravelmente coesa, que o coloca entre os expoentes do documentário brasileiro moderno. Vladimir foi um dos protagonistas de dois momentos importantes do cinema documental no país. Ainda jovem, como co-roteirista e assistente de direção do seminal Aruanda, de Linduarte Noronha, e co-diretor do flahertiano Romeiros da Guia, inscreveu-se no célebre surto do documentário paraibano, uma das seivas que nutriram o Cinema Novo. Seu primeiro longametragem, O País de São Saruê, em que pese a defasagem de seu lançamento devido à longa interdição da censura, pode ser tomado como uma extensão natural daquele ciclo, junto com os curtas A Bolandeira e A Pedra da Riqueza. Mais tarde, ao se estabelecer em Brasília, às vésperas do 10º aniversário da capital federal, Vladimir estimulou decisivamente a primeira grande floração de um legítimo cinema brasiliense – do qual viria a se tornar uma espécie de patrono. Também aí prevaleceu um movimento pendular entre a cidade nova e a ancestralidade nordestina, o concreto armado e a natureza sertaneja. Se Conterrâneos Velhos de Guerra revela, qual tinta num relevo, a nordestinidade de Brasília, filmes como Vila Boa de Goyaz, Quilombo e Paisagem Natural localizam no sertão goiano mais uma encarnação da veia telúrica do realizador. Nas três décadas compreendidas entre Vestibular 70 (1970) e Barra 68 – Sem Perder a Ternura (2000), ele voltou a filmar algumas vezes no Nordeste e documentou incessantemente a vida política do Distrito Federal, sempre em estreita colaboração com os colegas professores e os alunos da Universidade de Brasília. Tudo isso está detalhado no relato autobiográfico das próximas páginas, com o pouco que consegui reproduzir da verve peculiar de Vladimir. Observações de outra natureza cabem a mim, fruto que são do reexame do conjunto da obra com vistas à preparação das entrevistas para o livro. Cabe, por exemplo, lembrar que Vladimir Carvalho é um inaugurador de veredas no documentário brasileiro. Em seu mix de admirações, há lugar para o ficcionalizante Robert Flaherty, o experimental-reflexivo Dziga Vertov, o poéticopolítico Joris Ivens e o lírico Humberto Mauro. Vale dizer: algumas das principais tendências que levaram esse tipo de cinema a se afastar do mero registro da realidade. Muito antes que a metalinguagem se instalasse na sala de visitas do documentário contemporâneo, ou seja, nos idos de 1971, já a equipe de filmagem invadia a cena em O País de São Saruê, mesclando os procedimentos de evidência documental e reconstituição ficcional. Em Mutirão (1976), a presença da equipe era enfatizada como parte de uma crítica do diretor à intervenção da classe média consumidora numa comunidade de artesãos tradicionais. Dispositivo igualmente inovador foi o recurso a comentários de terceiros, capazes de atribuir uma nova camada de sentido a materiais filmados em outra época. Assim, o que vemos em A Pedra da Riqueza (1975) e Brasília Segundo Feldman (1979) é, entre outras coisas, uma antecipação do audiocomentário dos atuais DVDs. A inquietação formal que anima a estrutura narrativa de Saruê, a experimentação tonal de Vestibular 70 ou o tratamento sonoro de A Pedra da Riqueza, apenas para ficar em alguns exemplos, afastam a obra de Vladimir de qualquer semelhança com o cinejornalismo e a projetam para a esfera do ensaio documental. O trabalho do diretor caracteriza-se também por uma criativa reapropriação de materiais de arquivo, com os quais elabora uma complexa, embora cristalina, escrita de imagens. Típica dessa maestria é a maneira como ele reconfigurou as cenas filmadas por Eugene Feldman em Brasília Segundo Feldman; ou como construiu novas camadas de sentido para as imagens da história de Brasília em Conterrâneos Velhos de Guerra. Consciente do princípio básico de que uma imagem cinematográfica só ganha sentido quando articulada com outras imagens e com uma faixa sonora, ele adotou a edição críticodialética como ferramenta principal. Com sua fina capacidade de auto-análise – bem exemplificada no quadro 22 (Pantasmas) –, Vladimir nos conta como aos poucos abandonou o socorro da narrativa etnográfica para enfrentar a realidade de peito aberto. Se bem repararmos em A Bolandeira, lá está o descolamento do discípulo em relação à herança de uma etnografia poética à Humberto Mauro. Onde Mauro era lírico, Vladimir fez-se épico. A documentação dos rituais de trabalho, do ambiente natural ou mesmo a criação de perfis biográficos (José Américo de Almeida, Teotônio Vilela), tudo ganhou matizes de uma poética inconformista, voltada para a exaltação do trabalho e das habilidades populares, e contrária à sua exploração pelos ricos e poderosos. O surgimento dessa consciência crítica, ainda na infância à luz das idéias paternas, é momento crucial de suas memórias. O uso maciço da poesia e da música é outra característica destacada na obra do documentarista, que rejeita o purismo dos não-intervencionistas. Com isso, erigiu-se numa espécie de rapsodo, movido ora pela indignação, ora pela admiração, mas nunca pela curiosidade indiferente. Seus filmes operam no registro da empatia, deixando o autor transparecer em cada decisão de corte, em cada escolha sonora, em cada tijolo da edificação. Ao longo de três meses, mantive contato intensivo com os 5 longas e 15 dos 16 curtas e médias realizados por Vladimir até aqui. Muitos foram revistos ao seu lado, motivo para a rememoração de momentos e métodos, e mesmo algumas reavaliações. Nesse período, enquanto gravava 28 horas de conversações cerradas, testemunhei alguns traços de uma personalidade que não deixa de se transportar para a obra. Um deles é a inclinação para o raciocínio épico. Vladimir tende a ver um mito em tudo aquilo que estima. Tem a imaginação apinhada de santos, guerreiros, centauros, cavaleiros andantes, quixotes – figuras que aproximam seus personagens do mundo dos cordéis e da literatura armorial. A mitificação, porém, não o afasta de uma leitura materialista da História, que ampara uma obstinada defesa do socialismo. A esperança, ele mesmo diz, é uma teimosia de seu caráter. Percebi também uma certa retórica da modéstia, que, sem ser falsa, parece dever-se mais à força do hábito que a uma real desconsideração do seu valor. O fato é que Vladimir gosta de se definir por contraposições aos que têm fama, dinheiro e poder. Trata o rótulo de nordestino com um misto de orgulho e queixa, dependendo do teor de isenção ou preconceito que percebe no interlocutor. Sua recusa do cinema de ficção, por vezes, chega a soar ingênua, porque fruto de uma opção apaixonada pelo documentário, e incongruente, tal é o grau de ficcionalização contido em seus filmes. Esse homem ao mesmo tempo simples e arrebatado, franco no limite da temeridade, apresentou-se a mim e aos leitores com a força de alguém que ama profundamente as palavras. Sabe disso quem já o ouviu falar. No texto deste livro, a necessidade de edição e as limitações do escritor impediram uma maior fidelidade ao estilo e ao colorido do seu discurso. Em compensação, Vladimir estimulou-me a incorporar trechos de textos seus, alguns inéditos, outros publicados restritamente. Neles colhi a fina flor de alguns episódios, que vai mesclada às novas apurações. Vladimir é um escritor de mão cheia, cuja produção crítica, ensaística e de discussão da política cinematográfica está a merecer uma bela coletânea. A estrutura do livro dribla o fluxo estritamente cronológico, organizando-se mais em função de atrações temáticas. Para isso, utilizei uma seqüência de quadros, geralmente a partir de uma fotografia condensadora de sentidos. Quadro a quadro, o cabra Vladimir Carvalho desfia suas lembranças de infância no interior da Paraíba, a descoberta do mundo da política e das artes, o ingresso no meio cinematográfico, as artimanhas para filmar no alto sertão, a retomada da carreira no Centro-Oeste, a obstinada investigação de uma face oculta da construção de Brasília, a dedicação a conservar uma memória do cinema brasiliense. Junto à rememoração dos fatos, transparece o realizador com seu método, suas fixações e seus projetos não mais que sonhados – entre eles, uma grandiosa História do Povo Nordestino. Surge também o perfil de um profissional que sabe a importância de se fazer política, mas não é político no sentido da concessão interesseira ou da troca de favores por silêncio. Vladimir foi todo entusiasmo com o convite da Coleção Aplauso. Esquadrinhou suas reminiscências pessoais e os arquivos da Fundação Cinememória em busca de histórias e imagens que atendessem às demandas da minha pauta. Por fim, contribuiu com a idéia do título, em parte proveniente de um quadro do livro, e que tão bem sintetiza os veios temáticos principais de sua obra: as pedras nordestinas que foram parar na nave dos astronautas e as lutas e tragédias que marcaram a breve história de Brasília. A Vladimir agradeço pela devotada e amistosa parceria. Sou grato também a Walter Carvalho, não só pelo estímulo, como pela cessão de suas maravilhosas fotos, que compõem a maioria das ilustrações deste volume. E ainda a Gioconda Caputo, Sérgio Moriconi, Rosane Nicolau, Lucília Garcez, Susana Schild, Zelito Viana, Christian Jafas, Manfredo Caldas, João Bosco Bezerra Bonfim, Wagner Alves, Geraldo Sarno e Ludmilla Kian, pelas distintas formas de colaboração. Carlos Alberto Mattos Setembro de 2006 P.S. A defasagem entre a finalização do texto e a publicação do livro requereu uma breve atualização no que diz respeito ao lançamento de O Engenho de Zé Lins e aos acontecimentos de 2007 e 2008. Entre Beckett e Brecht, fico com Brecht. O homem tem saída, sim. Vladimir Carvalho Quadro 1 No Espelho de Zé Lins O engenho Itapuá, que pertenceu ao avô de José Lins do Rego e à famosa Tia Maria, era pouco mais que uma ruína quando lá cheguei para fazer algumas cenas de O Engenho de Zé Lins, em fevereiro de 2005. O local que se vê na foto, entrada da antiga senzala, é o mesmo onde Walter Lima Júnior filmou, com requintes de álbum familiar, a chegada e partida do pequeno Carlinhos no clássico Menino de Engenho, de 1965. O homem com quem estou conversando é o próprio Carlinhos daquele filme, ou seja, o ex-ator Sávio Rolim. Com sérios problemas psicológicos e financeiros, Sávio parecia um dado a mais no quadro de decadência que dominava o Itapuá. Toda a região dos engenhos paraibanos é hoje uma paisagem deprimente de taperas infectas e abandonadas, destruídas pelas intempéries, soterradas pela incúria dos homens. O mato cobriu tudo, o espaço é disputado por cobras e morcegos. As caldeiras, os fornos, as moendas mostram suas entranhas solapadas. Quase tudo é desolação. No lugar da antiga fragrância doce e sensual dos pés de cajá, o fedor pútrido de alguma carniça. A própria obra de Zé Lins, no chamado ciclo da cana-de-açúcar, tematiza os efeitos do tempo – destruição, insanidade – sobre aquele mundo. A chegada avassaladora da indústria, na forma das usinas, determinou a primeira decadência dos engenhos e de seus senhores. Eu creio que a incapacidade de substituir o avô como esteio de resistência converteu-se numa espécie de má sina para o escritor. Nesse meu sexto longa-metragem, quis fazer não propriamente uma biografia, mas um inventário de sua vida e obra, um ensaio de seus significados. Para isso, trabalhei na confluência do romance mais autobiográfico, Menino de Engenho, com Meus Verdes Anos, pura memória. Ao mesmo tempo, procurei sublinhar a importância de sua obra para além do simples memorialismo, esfera em que parte da crítica tentou encerrá-lo por muito tempo. A mescla entre memória e invenção, tão fundamental em seus livros, repercute no filme através do diálogo entre ficção e documentário. A encenação da Paixão de Cristo na seqüência inicial, evento traumático na formação da consciência do escritor, assim como a inserção e mesmo intervenção sobre cenas de Menino de Engenho, contribui para tornar tênues essas fronteiras. Zé Lins teve uma infância de rejeitado, sem a presença dos pais. O filme parte em busca dessa marca que o menino deixou no homem. Sempre que precisei fazer alusões à infância, me socorri no filme de Lima Jr., além de cenas construídas com o ator Ravi Ramos Lacerda e outros meninos. O núcleo dramático do filme é a personalidade pendular, ciclotímica de Zé Lins, que oscilava entre momentos de euforia e fases angustiadas, sorumbáticas. De um lado, a depressão e a fixação na idéia da morte, que precisava ser amiúde externada. De outro, o gosto pela flânerie,a vivência intensa do meio literário e paixões como a nutrida pelo Flamengo, que canalizava em apologias quase diárias na sua coluna de jornal. Procurei passar para o filme essa alternância de estados de ânimo como uma solução estética. Sem necessariamente psicanalizar o personagem, eu quis compreender melhor o que fez dele um homem tão dividido. Achei por bem ressaltar a importância, para o seu lado sombrio, do episódio infantil em que ele acidentalmente matou um colega enquanto brincava com uma arma de fogo. Os familiares logo cuidaram de abafar o caso e blindar o garoto contra qualquer sofrimento. Mas acredito que aquilo introjetou-se em sua personalidade como um fermento tóxico, respondendo pela angústia que o acompanhou por toda a vida. As dicotomias se estendem à obra de Zé Lins. A decadência, tal como a vejo nos seus livros, contém uma semente de transformação. Em alguns romances, desponta claramente a tragédia social nordestina. O Moleque Ricardo, por exemplo, segue para Recife, toma parte numa greve operária fracassada, termina preso e enviado para Fernando de Noronha. Em Usina, Ricardo volta ao mundo dos engenhos e emprega-se como segurança dos estoques de víveres da usina. Quando o barracão é atacado pela gente faminta, ele abre as portas para permitir a invasão e é abatido por outros guardas. De certa forma, essa trajetória prenuncia outra, futura e real. Nessa mesma várzea do Paraíba, três décadas mais tarde, floresceriam as ligas camponesas, com João Pedro Teixeira, o cabra marcado para morrer. Mais recentemente, os engenhos vêm sendo paulatinamente ocupados pelo pessoal do Movimento dos Sem-Terra. Quando lá filmei, o Itapuá estava tomado pelo MST, com bandeira hasteada, numa operação que custou a vida de um deles. Isso está no filme, como uma maneira de atualizar a linha evolutiva dos romances de Zé Lins. Não era esta a primeira vez que eu adentrava o Itapuá. Em 1964, acompanhei Walter Lima Júnior e o fotógrafo Fernando Duarte numa visita à região, em busca de locações para Menino de Engenho. Foi inesquecível o momento de penetrar, finalmente, no espaço mítico das histórias de Zé Lins. Dotado de casa-grande (já então destruída), senzala e capela, o Itapuá teve a formação sólida dos engenhos clássicos. Pertencera a André Vidal de Negreiros, um dos artífices da expulsão dos holandeses do Brasil. Era tão importante que, na época da minha infância, justificava uma estação especial da Great Western Railway. Quando o trem ali parava, divisávamos as moças do Itapuá no alto do parapeito do engenho. Talvez tenha visto a Tia Maria sem saber. A presença de Zé Lins é uma das grandes referências dos meus verdes anos. Daí que O Engenho de Zé Lins, mais que qualquer serviço à memória ou ao justo posicionamento do autor fenomenal, vem a ser o resgate de uma dívida para com a minha própria vivência. Depois de 25 anos dedicados a uma paisagem mais citadina – Brasília, ainda que por um viés nordestino –, estou retornando ao cenário rural das minhas origens. Se Brasília representa o mundo em transformação, a Paraíba de Zé Lins é o mundo em desaparecimento. De alguma maneira, este é um filme autobiográfico, onde eu me vejo através do outro. Cheguei a rascunhar uma mescla das duas biografias, onde eu também me fazia personagem. Mas acabou prevalecendo o autoretrato indireto, espelhado, na medida em que visito minha Itabaiana natal e filmo vestígios comuns a mim e ao romancista. Meu encantamento por Zé Lins começou pela boca do meu pai. Era comum ouvi-lo ler trechos dos romances à mesa do jantar. Mestre Lula, como era chamado, estudara no mesmo Internato Nossa Senhora do Carmo, em Itabaiana, imortalizado em Doidinho, e de onde o escritor fugira nos idos de 1910. Meu pai contava essa história com tal riqueza de detalhes que lhe dava ares de testemunha ocular. Eu ouvia fascinado. Ele percebia o meu fascínio e, certamente, caprichava ainda mais no colorido da fantasia. Essa voz familiar decantou em mim pela vida afora. Na adolescência, adotei mesmo um certo mimetismo. Diante do espelho e de um retrato de Zé Lins, penteava-me e ajeitava os óculos de modo a ficar parecido com o meu ídolo. Em 1950, numa espécie de alumbramento, divisei pela primeira vez sua figura ao vivo, caminhando em frente à Biblioteca Pública de João Pessoa. Fiquei colado à parede enquanto ele passava rente a mim. Já tive a pachorra de enumerar certas coincidências curiosas. Zé Lins nasceu em Pilar, a poucas léguas de Itabaiana, seguindo o curso do rio Paraíba. Foi na minha cidade que ele se alfabetizou e conheceu o cinema. Sua professora de catecismo, Dona Marieta Medeiros, foi também professora do meu pai e, mais tarde, diretora de outro colégio onde eu iniciei meu curso primário. Como tal, ela própria incumbiu-se de aplicar-me doze bolos de palmatória por ocasião de uma traquinagem em sala de aula. Minha mãe tinha não só o prenome como o mesmo perfil familiar da Tia Maria, personagem de Zé Lins. Meu tio Francisco Martins tinha por apelido Dedé, o mesmo de Zé Lins em família, e havia sido guarda-livros do engenho Corredor, onde nascera o escritor. Outro tio chamava-se Juca, tal como o tio de Carlinhos que tem pa-pel decisivo em vários romances. Meu tio Juca, por sinal, foi quem me iniciou nos misteres do sexo, mostrando-me o caminho dos lupanares de João Pessoa. Mas a coincidência mais arrebatadora se deu há poucos anos, quando, para melhor tocar a pesquisa e a produção de O Engenho de Zé Lins, resolvi instalar-me por um tempo no Rio de Janeiro. Já no primeiro sábado que passei num apartamento da Praia do Flamengo, fui procurado pelo vizinho de baixo a propósito de uma infiltração no seu andar. Em seguida, muito simpático, ele pediu-me que descesse até o seu apartamento para verificar o estrago. Qual não foi minha surpresa ao ver na sala uma grande foto de José Lins do Rego com uma criança. Meu vizinho, afinal, era o pintor José Veras, o neto da foto, a quem Zé Lins dedicou o romance Meus Verdes Anos. Desde então, tornamo-nos amigos fraternais e ele, personagem paralelo de toda essa história. Quadro 2 Memória de Itabaiana Algumas filmagens de O Engenho de Zé Lins em Itabaiana foram registradas por Dácia Ibiapina para o seu documentário Vladimir Carvalho – Conterrâneo Velho de Guerra. Na ocasião, relembrei in loco como era a cidade nos meus primeiros anos. Beneficiada pela ferrovia e pela localização entre os engenhos e a caatinga litorânea, no que chamo de piemonte paraibano, a velha Itabayanna foi um célebre centro boiadeiro que teve seu apogeu nas décadas de 1910 e 1920. Hoje, ilhada por rodovias, perdeu quase toda a importância econômica. No meu tempo de menino, porém, ainda era uma cidade provedora, onde o boi era personagem central e a atmosfera evocava a dos faroestes. Meu avô materno, Esperidião Figueiredo de Morais, era seleiro – isto é, confeccionava selas, arreios, gibões e todo artigo de couro para vaqueiros. Lembro-me de ver, bestificado, os homens que freqüentavam sua oficina, verdadeiros centauros encourados de alto a baixo, rostos curtidos e suarentos, as esporas tilintando no compasso do caminhar. Eu me lembro do intenso tráfego de boiadas nos dias de feira. As casas eram fechadas, as crianças recolhidas aos quintais. De vez em quando, algum animal mais arisco escapava ao cerco e se enfiava no alpendre da casa do meu avô. Os vaqueiros levavam horas para retirá-lo, às estocadas, muitas vezes deixando as paredes da casa salpicadas de sangue. As mulheres rezavam, numa grande comoção. Eu me lembro dos primeiros cantadores, repentistas e sanfoneiros que se reuniam em torno do meu pai, na sua loja de móveis Lyon, no centro da cidade. O sanfoneiro menino Sivuca, também filho da terra, passava com freqüência diante da nossa janela, acompanhado de sua família de artesãos do couro, a caminho do mercado. Sempre que ouço sua composição Feira de Mangai, é como se andasse de novo entre as barracas de frutas, bois de barro, lataria de flandres, cordas, alpercatas, ferramentas, enfim, todos aqueles mangalhos do velho mercado de Itabaiana. Eu me lembro de sinais de pujança da cidade. O belo coreto de ferro inglês era um deles. O telefone, os bondes puxados a burro, uma revista mensal e um semanário arrematavam o status. Havia até mesmo uma Praça da Indústria, onde pontificava o grande Curtume Santo Antônio. Essa empresa tinha um papel social ambivalente. Se de um lado poluía o Paraíba com seus dejetos, de outro propiciava um curioso benefício à população mais pobre. Na curtição industrial do couro, entrava uma grande quantidade de clara de ovo. As gemas, então, eram distribuídas à pobreza. Da minha janela, eu via as pessoas passarem com potes de barro na cabeça, o creme amarelo ondulando lá dentro. Não me lembro, mas vim a saber mais tarde que em Itabaiana nasceram grandes personagens, como Abelardo Jurema, ministro de Jango, e Ratinho, compositor que formou dupla com Jararaca e, assim como Sivuca, tocou na Banda de Música 1º de Maio, soerguida e presidida por meu pai dentro da União dos Artistas e Operários de Itabaiana. Meu próprio nascimento foi noticiado pelo jornal A Folha, por conta da reputação da família. Num dia distante da década de 1970, num bar da Cinelândia carioca, comprei diretamente das mãos de Madame Satã o seu livro de memórias. Lá estava escrito que ele, pernambucano de origem, foi praticamente descoberto no comércio de cavalos de Itabaiana. Eu me lembro que a Rua da Lama (hoje Rua Dr. Napoleão Laureano), onde nasci a 31 de janeiro de 1935, era assim chamada porque, próxima do rio, ficava intransitável no inverno. Meu pai, um construtor compulsivo, fez a família ciganear por três endereços diferentes na cidade. Moramos também no Alto dos Currais e no Triângulo, sempre em casas erguidas por ele. Eu me lembro que até os tijolos e telhas eram produzidos no próprio terreno da construção. Não duvido que minha vocação para documentar a terra e o trabalho tenha nascido diante da faina dos homens que extraíam e amontoavam o barro vermelho, em seguida molhado com a água do rio trazida penosamente no lombo de animais de carga. Amassado sensualmente com os pés, o barro virava uma liga dócil de moldar e entrava em fôrmas de madeira, transformandose em tijolos e telhas arrumados em pirâmides e depois cozidos nas bocas de fogo de lenha, na festiva noite da queima da caieira. Os homens sujos daquela lama generosa eram quase tãosomente uma extensão da terra, como os outros que ali perto aravam o chão. Aprendi que todos estavam transformando o mundo em cultura. Eu me lembro de ser muito propenso à bronquite, o que me valia uma série de interdições. Minha grande atração era driblar a vigilância permanente dos pais e escapulir, pelo Beco de Zé Rodrigues, para os banhos de rio junto com a molecada. Quando transgredir era de todo impossível, restava-me posar os cotovelos no parapeito das janelas e assistir ora ao espetáculo das enchentes, ora ao movimento das boiadas. Eu me lembro – e essa é uma das minhas primeiras lembranças – do carnaval de 1939, que assisti em plongé, do alto dos ombros do primo Jonjoca. Entre pavor e excitação, vi os primeiros mascarados, palhaços, um famoso folião que se fantasiava de urso, tudo recendendo a lançaperfume. O carnaval de Itabaiana, dizia-se, rivalizava com o do Recife. Do Alto dos Currais, vi o bloco do Zé Pereira saindo na boca da noite, o volumoso séquito de foliões portando balões coloridos e iluminados. No futuro, eu haveria de exteriorizar essa forte impressão através de um guache que pintei e guardo comigo. Eu me lembro do vendedor de folhetins chegando mensalmente com sua sacola, antes que a radionovela ocupasse os corações das mulheres da família. Já meu pai só tinha olhos para livros cujos títulos eu lia ainda sem entender: O Cavaleiro da Esperança, Esquerdismo Doença Infantil do Comunismo. Minha iniciação na leitura se deu, antes de Zé Lins, com as páginas de jornal inteiramente cobertas pelos quadrinhos coloridos de Brick Bradford, seus robôs, dinossauros e vilões intergaláticos. Eu me lembro que, no curso primário do colégio conhecido como a escola das irmãs do Dr. Clóvis, havia recitais de poesia e aulas de dança nos finais de semana. Nas aulas de geografia, espantava-me saber que o globo terrestre se movimentava num mundo infinito, voando nos ares com tudo o que havia em volta – gente, casas, florestas, rios e mares, trens, automóveis, a vida enfim. Mensalmente, saíamos em aula-piquenique para uma praia de rio na localidade de Maracaípe. Em maquetes de areia, reproduzíamos lições de geografia. Mas aquelas excursões ao rio, ao menos para mim, cumpriam mais de uma pedagogia. Representavam um mergulho em certa intimidade, onde a visão da professora fora do ambiente da escola ganhava um sabor erótico. Nunca esqueci o dia em que ela, sentada num montículo de areia e distraída do vento que agitava sua saia, permitiu-me vislumbrar pela primeira vez o sublime acidente geográfico do encontro das coxas de uma mulher. Eu me lembro de jogar bolinhas de papel no chão da classe para ter o pretexto de abaixarme e ver as pernas da professora. Flagrado um dia, ouvi pela primeira vez o adjetivo saliente. Numa cisterna do Alto dos Currais, lá estávamos um punhado de garotos tentando fazer porcaria com as meninas da nossa idade. Em Mamanguape, onde morava o tio-avô Zuza Anselmo, ainda muito pequeno passei umas férias de descobertas, vendo o banho das moças num trecho de rio chamado sertãozinho. Não sabia se olhava ou se fingia não ver os púbis escuros no meio das coxas brancas. Era uma visão poderosa demais, quase asfixiante, para meus tênues instintos em formação. Eu me lembro que o eixo central da licenciosidade em Itabaiana era a Rua do Carretel, freqüentada pelos homens que lidavam com o gado durante o dia e ali farreavam à noite. Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, quando traça paralelos entre civilização e sifilização sertanejas, atribui a disseminação da sífilis naquela área, em boa parte, aos bordéis de Itabaiana e de Campina Grande. Freqüentemente, aquilo virava uma festa. Os pastoris eram uma espécie de teatro de revista ao ar livre, protagonizado pelas raparigas e comandado por um palhaço. No meio da zona, encenava-se também o bumba-meu-boi, localmente chamado de cavalo-marinho. Do outro lado da ferrovia, meu pai costumava organizar um grande cavalo-marinho para atrair freqüência noturna ao seu armazém. A mim, as figuras grotescas do folguedo não divertiam, mas causavam um misto de medo e atração. Em meio a essas e outras matérias de recordação, transportando novidades e ditando o ritmo da cidade, corria Sua Excelência, o Trem. Quadro 3 Dragões e Maxambombas Machine pump, diziam os ingleses. Maxambomba, repetiam os matutos, referindo-se aos pequenos trens de ferro que carregavam a cana cortada para as usinas. Quando estas de-ram cabo da lenha da chamada Zona da Mata, as maxambombas foram extintas e substituídas pelos caminhões. Em princípios dos anos 1970, vi algumas dessas marias-fumaça ainda ativas nas usinas do meu amigo Marcus Odilon Ribeiro Coutinho, empresário, político e sociólogo que já havia colaborado na produção de filmes como Menino de Engenho e os meus A Bolandeira e O País de São Saruê. Aquela visão redespertou todo um repertório de memória ferroviária que eu trazia da infância e me inspirou um novo curta-metragem. Incelência para um Trem de Ferro (1972) documentou, assim, mais um traço de cultura em vias de extinção. Às velhas maxambombas, cabia entoar um réquiem ou, no linguajar nordestino, uma incelência. Na cena final, um desses trens chegava praticamente sem forças a seu destino, como uma carcaça se arrastando rumo à estação terminal. O debate sobre essa transformação se instalou no âmago do filme. No meu texto narrado por Paulo Pontes, o trem de ferro era citado como parte de uma velha ordem que também tinha seus dias contados. Mais que qualquer nota de nostalgia, o documentário denunciava, bem antes da voga ecológica, a voracidade das caldeiras que consumiram toda a densa mata, de cuja existência falavam os antigos. Da chamada Zona da Mata, já então pouco restava. Passamos duas semanas filmando as maxambombas paraibanas. A escala relativamente pequena das máquinas facilitou o manejo da produção e ainda possibilitou travellings interessantes a bordo das locomotivas. Incelência marcou a estréia do meu irmão Walter na direção de fotografia, depois de ter sido meu assistente em A Bolandeira e O País de São Saruê. Ao concluir as filmagens, percebi a necessidade de adicionar algumas entrevistas. Já sem película virgem, limitei-me, então, a cobrir o áudio com fotos fixas dessas conversas. Montamos o curta na moviola da Cinemateca do MAM-RJ, acolhidos com a generosidade de sempre por Cosme Alves Neto. O filme transpira um certo deleite estético em torno daqueles cavalos de ferro que atravessam os canaviais. Havia pouco eu tinha assistido a O Cavalo de Ferro, de John Ford, e a presença do trem na tradição cinematográfica não era estranha a nossos intentos. David Neves sonhava em montar o Incelência com a chegada do trem dos Lumière. O trem sempre foi elemento marcante na paisa-gem da minha memória. Não exatamente esses trenzinhos quase de brinquedo, mas os dragões metálicos e baforentos que faziam o transporte de gado e gente na ferrovia então arrendada à Great Western Railway do Brasil. Itabaiana ficava a meio caminho entre Campina Grande, João Pessoa e Recife. Na minha época de garoto, a cidade era margeada, de um lado, pelo rio Paraíba, e de outro pela grande ferrovia. As boiadas trazidas das regiões próximas e do alto sertão embarcavam nesse trem rumo aos matadouros. À margem da estação ficava o curral para facilitar o embarque. Nosso bairro era chamado Triângulo, em virtude de uma importante bifurcação ferroviária. As casas da família, separadas por quintais, formavam uma espécie de vila à margem da estrada de ferro. O trem pontuava o cotidiano da cidade. Havia a hora de passar o Bacurau ou o Subúrbio, conforme os apelidos de cada comboio. Maquinistas silvavam apitos característicos ao cruzar seus bairros, notificando os familiares e amigos de sua passagem. Quem precisasse acordar muito cedo guiava-se pelo resfolegar do trem da madrugada, em sua lenta subida de um aclive à saída de Itabaiana. Os trilhos cortavam a cidade e assumiam relevo na sociologia local. Em certo ponto, a ferrovia separava os bairros familiares da chamada Mandchúria, a zona do meretrício. Assim, quando um jovem era iniciado nas aventuras da Rua do Carretel, dizia-se que o sujeito atravessou a linha do trem. A estação era local de passeio, namoricos, uma espécie de matinê dos jovens itabaianenses. À chegada e partida de visitantes ilustres, a banda de música perfilava-se na plataforma e tocava os dobrados convenientes. Em 1944 e 1945, assisti à comovente despedida dos soldados que embarcavam para a triagem da guerra em Pernambuco. Pelos trilhos chegavam os filmes para ser exibidos no Cinema Ideal. Mas a estação era também o lugar onde meu pai recebia misteriosas figuras portando livros, que ele lia vorazmente à luz de candeeiros e devolvia ao visitante de partida já na manhã seguinte. Mais tarde vim a saber que eram membros do Partido Comunista Brasileiro, então na clandestinidade, em missão de contatos e divulgação de literatura proibida. No depósito da minha memória infantil, estão muito nítidos os rolos de fumaça negra, o apito do trem, a atividade da oficina de reparo de locomotivas. E ainda os nomes dos maquinistas, foguistas e sinaleiros, as figuras dos empilhadores de lenha cobertos de fuligem, homens tisnados que me deram uma primeira idéia do respeito pelo trabalho humano. Eles se orgulhavam de ser organizados politicamente, conscientes de sua importância dentro do ciclo econômico. O mundo dos trens, portanto, está no centro não só das minhas primeiras experiências, como das minhas futuras opções políticas. Quadro 4 Mitos Familiares Diante da entrada do prédio dos correios de João Pessoa, um pé calçado e outro machucado, na mão direita um pequeno revólver de madeira feito por meu pai, lá estou eu na velha fotografia, aos bons cuidados de Mazé. Minha mãe, Maria José Carvalho da Silva, era uma mulher doce, de formação católica e profundamente solidária com os pobres. Foi professora de grupos escolares e descendia de índios cariri por parte de pai, e de artesãos portugueses por parte da mãe Idalina. Líder inconteste dos rituais familiares, esteio do cotidiano, sua dedicação se estendia a primos, sobrinhos e agregados. Mazé formava um dueto harmonioso com meu pai, visto acima na fatiota com que realizava suas visitas comerciais a Recife e João Pessoa. Luís Martins de Carvalho nada tinha de religioso. Em análise retrospectiva, o vejo como uma personalidade dividida. Era um homem de negócios e ao mesmo tempo um crente fervoroso do socialismo. Amava a cultura internacionalista difundida pelos soviéticos. Citava romances proletários como O Volga Desemboca no Mar Cáspio, de Boris Pliniak, e também obras-primas do naipe de Como Era Verde o Meu Vale, tanto o livro de Richard Llewellyn como o filme de John Ford. Vem de sua admiração por Vladimir Ilyich Ulyanov Lenin o meu prenome, circunstância que pelo menos uma vez achei por bem esconder. Foi na época de prestar serviço militar, quando um capitão interrogou-me a respeito e eu inventei, de chofre, uma história sobre um certo príncipe da literatura russa clássica. Minha irmã também foi brindada com o russófilo nome de Vilma. Já na hora de batizar meu irmão, a preferência recaiu sobre o culto ao escritor escocês Walter Scott. Meu pai foi muito precoce e vigoroso fisicamente. Nos anos 20, vivendo um sonho da classe média da época, ingressou na Marinha. Veio parar numa ilha do Rio de Janeiro e contava que fugira nadando, tendo sido abocanhado por um peixe, razão da baita cicatriz que marcava suas costas. O misto de notórias evidências e doces mentiras respondia pelo imenso fascínio que ele exercia sobre mim. Mestre Lula era de fato um homem dos sete instrumentos, com aptidões que abrangiam do jornalismo à engenharia, passando pela arquitetura, a movelaria, o entalhe de madeiras, o desenho. Numa prancheta improvisada, ele desenhava suas próprias máquinas, projetava casas, fachadas e até móveis para palácios da capital. Como doação, entalhou todo um altar lateral, um troneto do altar principal e as sólidas portas de madeira da igreja matriz de Itabaiana. Ao chegar do atelier da fábrica, no fim do dia, trazia na roupa e no corpo o aroma do cedro, que sempre associei à figura paterna. A isso somavam-se a produção e o consumo cultural, assim como a atividade política. Andava com poetas e prefeitos. Recitava poemas de Augusto dos Anjos que até hoje sei de cor. Patrocinava uma banda de música. Foi vereador, e sua opinião costumava ser acatada por políticos, comerciantes e mesmo religiosos. Era colunista freqüente de A Folha e, por ocasião das festas juninas, editava ele próprio o pasquim matuto O Balão, impresso em folhas coloridas. Era quando eu me arvorava em revisor mirim e ficava apontando erros nas caixetas da tipografia. Meu pai, todo orgulhoso, acreditava que eu tivesse alguma inclinação para a escrita. Ele praticamente exigiu que eu, aos 12 anos, redigisse uma dissertação sobre repentistas e cantadores, que certamente retocou um bocado antes de publicar em O Balão com o título de Literatura Nativa. Foi minha estréia literária. O coruja não coube em si depois que eu, moleque presunçoso, enviei uma carta a Péricles Leal com críticas acerbas aos contos que ele publicava no jornal A União. Péricles respondeu-me, pacientemente explicando seu processo criativo. Mestre Lula saiu de casa em casa ostentando a carta do escritor ao meu Vladimir. Como se não bastasse tanto ecletismo, meu pai ainda aceitou um convite para entrar para a Maçonaria. Na seqüência, com cerca de 12 anos, fui iniciado como lowton numa cerimônia belíssima, em que desfilei sob o túnel de espadas erguidas e tomei ritualisticamente o vinho, o pão, o mel e o sal. Apesar do tino empreendedor do meu pai, não faltavam os períodos de crise orçamentária. Percebi isso muito claramente no dia em que atacaram meu mealheiro para cobrir necessidades urgentes. Quando se mudou com a família para João Pessoa, já depois da II Guerra, ele montou uma serraria e habilitou-se a explorar a primeira febre das esquadrias de madeira na Paraíba. Mas não teve tempo de colher os frutos. Morreu do coração em 1949, aos 39 anos. Só depois disso eu faria a primeira comunhão, trajando o preto do luto. Operosa, minha mãe assumiu o sustento da família e lutou para resgatar a casa de uma hipoteca. Eu mesmo saí em busca dos meus primeiros empregos. Cerca de dez anos depois, já funcionário do Ipase – Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, talvez por influência remota do meu pai, resolvi patrocinar uma reforma da casa, em João Pessoa. Acabei reformando a família. Contratei os serviços de Severino Fausto da Costa, mestre-de-obras conhecido como Biró. A longa duração da obra favoreceu um namoro entre ele e minha mãe, o que eu, a princípio, enciumado, desaprovei. Mas eles vieram a se casar, e a mesa de jantar ficou quilométrica para acomodar também os sete filhos do viúvo Biró. Dona Mazé faleceu em 1989, aos 78 anos de idade. A família tinha seus mitos históricos. Entre eles, uma célebre festa no Ingá do Bacamarte, em que, certa feita, a avó Idalina teria dançado com o cangaceiro Antonio Silvino, personagem real de Menino de Engenho. Meu avô paterno, Martim Caco, que não cheguei a conhecer, tinha famosos olhos azuis de ascendência portuguesa e, diziam, era chegado a bravatas patrioteiras. Além de uma movelaria, tinha um restaurante denominado Café Matuto Rancho, que servia aos cavaleiros vindos para a feira de gado e também a seus cavalos. Contava-se que minha avó Maria, apesar do casamento perfeito, não perdoou a única farra que Martim se permitiu na vida. A vingança veio terrível, na manhã seguinte: depositada numa terrina sobre a mesa do café da manhã, ele encontrou a bela cabeleira da mulher, objeto de sua adoração. Quadro 5 Irmãos Até os oito anos, gozei as delícias e as interdições de filho único. Quando nasceu Vilma, inevitavelmente, fui colocado de canto. Nem as declarações de afeto do meu pai conseguiam minorar a sensação de enjeitado, agravada pouco depois ao ser enviado para uma temporada em Recife. Dona de um temperamento suave e um espírito dedicado, em muito semelhantes aos da minha mãe, Vilma é hoje bibliotecária em Brasília. Walter, por sua vez, sempre foi inquieto, ouvindo constantemente da mãe uma espécie de admoestação premonitória: Menino, deixe de fazer arte! Quando meu pai morreu, Walter tinha pouco mais de um ano. Aos 14, coube a mim assumir uma certa responsabilidade paternal para com ele. Arquei com suas despesas de instrução e com as conseqüências de suas travessuras escolares. Em nossa casa, todo esforço era pequeno para dar-lhe o melhor possível. Muito cedo, Walter teve suas aptidões técnicas e sua vaidade com a aparência pessoal notadas no âmbito da família. Na época de sua adolescência, coloquei-o para estudar com o pintor e artista gráfico Raul Córdula. Mais adiante, estimulei-o a cursar a Escola Superior de Desenho Industrial, ponto de partida de sua carreira no Rio de Janeiro. Lá ele conheceria seu grande mestre Roberto Maia e se iniciaria na fotografia. No manejo habilidoso de equipamentos e ferramentas de desenho, suas mãos lembram as de Mestre Lula. Ele herdou também a inquietação paterna por redimensionar o ambiente, que se reflete no gosto por reformas de casas. A cabeleira loura valeu-lhe o apelido de galego. Desde pequeno, preocupava-se com a maneira de vestir, fazia questão de ter um estilo. Foi a primeira pessoa no meu círculo que eu vi aparecer com uma bermuda estampada. Muito diferente de mim, participou de concursos de rock em fins dos anos 1950. O cinema acabou absorvendo-o em virtude de uma provocação minha. Numa das últimas etapas de filmagem de O País de São Saruê, em 1970, chamei-o para ser meu assistente no alto sertão da Paraíba. Já envolvido com o design gráfico e a fotografia fixa, ele a princípio hesitou, mas acabou embarcando na aventura. Além de me ajudar diretamente, fez belas fotos de cena e ainda o projeto dos letreiros do filme. Dois anos depois, estreava como diretor de fotografia em Incelência para um Trem de Ferro. Desde então, fotografou meus filmes Pankararu de Brejo dos Padres, O Homem de Areia, Quilombo e Paisagem Natural, além de ter feito imagens adicionais para Mutirão, Brasília Segundo Feldman, Conterrâneos Velhos de Guerra, Barra 68 e O Engenho de Zé Lins. Mantenho relacionamento fraternal com todos os meus irmãos de sangue e de consideração. Mas a proximidade profissional e a intensa convivência com Walter Carvalho têm um acento único, ambivalente. Vejo nele, pelo traquejo nos ofícios, uma reencarnação do meu pai e, pelo tanto que precipitei sua formação, o análogo de um filho que não tive. Quadro 6 O Mundo Começava em Recife Sempre que vejo o painel de Cícero Dias, recordo a Recife que vivi aos 10 anos de idade. Ou pelo menos a impressão colorida e feérica que a cidade me provocou, entre as pontes do Capiberibe, os trilhos da Pernambuco Tramway, carnaval e maracatus. De alguma maneira, foi uma redescoberta do mundo, em facetas até então desconhecidas: o progresso, a guerra, a política. Em Itabaiana, eu era aluno displicente e meu pai vivia de cenho franzido por minha causa. Em sua óptica, as escapadas para a beira do rio com as más companhias não contribuíam positivamente para minha formação escolar. Lugar de menino era dentro de casa. Mas, mesmo aí, eu dava um jeito de interagir com meus amiguinhos. No Triângulo, um muro de frágeis tijolos aparentes separava nossa casa de uma vila de moradias mais humildes, numa das quais morava a família do maquinista Chico Félix, a quem minha mãe costumava presentear com cestas de gêneros alimentícios. Eu me aproximei de Erasmo, o filho do maquinista, de maneira literalmente curiosa: dia após dia, cavávamos um buraco no muro, um de cada lado, até que nos encontramos, olho no olho. Por ali incrementamos nossa amizade, trocando e inventando brinquedos juntos. Entre outras coisas, colhíamos mamonas nos nossos quintais, colocávamos para secar, retirávamos as sementes e ajuntávamos num saco para vender a peso a um receptador da indústria. Um dia, aos oito anos, cometi com Erasmo o meu primeiro ato ilícito: botamos um pesado seixo no meio das sementes para aumentar nossa receita. O escândalo estalou nos ouvidos dos meus pais. Mais grave ainda foi chegar à mesa do almoço com uma pequena faca peixeira enfiada no cós da calça. Era apenas uma faquinha com cabo de osso e bainha caprichosamente desenhada, que eu encontrara num baú do meu avô. Com autorização dele, estava portando o instrumento, da forma como via os adultos fazerem. Meu pai largou os talheres, esbravejou e confiscou a faca. Naquela mesma noite, ouvi-o confabular com minha mãe sobre a necessidade de me retirar daquele ambiente. A faquinha foi um dos objetos emblemáticos da minha vida. Símbolo do machismo e da ignorância sertanejos, acabou me conduzindo aos estudos e a um tipo de iluminação. Mal virou o ano e embarquei com meu pai no trem da Great Western, com destino a Recife. Pela primeira vez, eu via as estações de Timbaúba, Aliança, Pau d’Alho, Carpina... Numa delas, voraz na hora da merenda, lembro-me de não suportar a temperatura e cuspir café com cuscuz em todos os que dividiam a mesa conosco. Para vergonha do meu velho. Fui morar com a tia e madrinha Alaíde, no bairro de Água Fria. De imediato, deslumbrei-me com as avenidas largas, o calçamento lustrado pelo uso, o tráfego de bondes, as pontes, o rio, o cais do porto. Quando a saudade dos pais apertava, eu me consolava repetindo que estava em Recife, em meio às maravilhas da metrópole. Tia Alaíde, muito carinhosamente, estimulava minhas iniciativas. Encorajava-me, por exemplo, a tomar o bonde para pagar a conta de luz em outro bairro. Dali a pouco, eu estava apto a ir sozinho para o centro da cidade assuntar o movimento portuário, especialmente animado nos idos de 1945. O vaivém dos navios e dos marinheiros gigantes, entrelaçado com as notícias da guerra, reforçava minha sensação de estar vivendo numa cidade estrangeira. Muitas coisas eu vi naquele ano. Eu vi a ponte giratória abrir espaço para os navios de grande calado. Eu vi os aviões Catalina amerissarem, majestosos. Eu vi a volta do esquadrão da FEB trazendo os pracinhas de volta da Itália, devidamente seguida pelo Carnaval da Vitória. Eu vi (e li) os meus primeiros gibis, com as façanhas do Príncipe Namor, do Tocha Humana e do Super-Homem se misturando na minha cabeça aos relatos de heroísmo dos aliados. Eu vi a presença maciça dos norte-americanos na cidade, como em todo o litoral do Nordeste naquela época. Tidos como farristas, eles fervilhavam ao redor do grande cassino onde brilhava a palavra U.S.A. Naquele lugar festivo, a entrada de homens brasileiros era proibida, mas as moças nativas eram muito bem-vindas. Tema do belo poema Boletim Sentimental da Guerra no Recife, de Mauro Mota, esse flagrante histórico é um dos meus filmes sonhados. Um dia, na Praça da Águia Fria, eu vi uma pequena multidão em volta de um homem de peito forte que discursava com veemência do alto de uma pilha de paralelepípedos. Logo ouvi dizer que se tratava do líder comunista Gregório Bezerra. Muitas coisas ouvia também. Ouvia o noticiário da guerra e o seriado do Sombra no rádio Phi-lips Matador do meu padrinho Fagundes. Ouvia dizer que um dos nossos vizinhos, Wandencock Wanderley, temido delegado de polícia, era um célebre perseguidor de comunistas. As histórias iam se acumulando na minha cabeça e gerando uma identificação ainda embrionária com as coisas do Partido, as coisas do meu pai. Quadro 7 Juventude Ativa De volta à Paraíba, com a família logo mudandose para João Pessoa, continuei a dar aos meus pais alegrias e dores de cabeça, em doses alternadas. Na admissão ao curso ginasial, realizei a façanha de ser aprovado para o Lyceu Paraibano e a Academia do Comércio, assim justificando a cobiçada caneta Park Diamante Azul que meu pai me deu como prova antecipada de sua confiança. Mas já no primeiro ano do ginásio, eu levava bomba por causa das peladas. Custei a me livrar da displicência em situações formais. Enquanto cursava o Clássico, tentei de todas as maneiras escapar ao alistamento no Exército – perdi prazos, recebi carimbo de refratário, apresentei-me sem óculos para ser reprovado no teste de saúde. Ainda assim, fui fisgado no ano seguinte. Como recruta 387, cumpri mal e porcamente os rígidos deveres da caserna e cheguei a pegar algumas detenções. Depois da morte do meu pai, determinado a ajudar no sustento da família, vali-me da solidariedade maçom para conseguir um emprego de vendedor de estampas de santos a domicílio. Foi quando desencantei-me com a Maçonaria, pois o velho não pretendia me ajudar, mas simplesmente ser meu patrão. Ocupação igualmente singular, antes de conseguir a vaga no Ipase, foram as consultas de mercado que fiz para uma certa companhia de seguros, depois revelada como mera falcatrua de um vigarista. Ao mesmo tempo, prosseguia na aquisição de gosto pelas letras e pelas artes. Ainda na época do Lyceu, assumiu o governo da Paraíba o escritor e ex-ministro José Américo de Almeida, mais tarde personagem central do meu filme O Homem de Areia. José Américo promoveu uma primavera cultural em João Pessoa e contribuiu decisivamente para a fundação da Universidade Federal da Paraíba. Surgiram exposições, orquestra sinfônica, cineclubes. O governador em pessoa apresentou, no auditório do Lyceu, um recital do poeta Ascenço Ferreira, para mim inesquecível. No Correio das Artes, importante suplemento do jornal A União, li os primeiros poemas de Bandeira Tribuzzi e Ferreira Gullar. Casa-Grande & Senzala e Os Sertões viraram livros cativos da minha cabeceira, relidos diversas vezes ao longo da vida e matéria obrigatória de leitura dos meus alunos. Embebi minha juventude no caldo de Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Ernest Hemingway e John Steinbeck. A partir dos 20 anos, comecei a participar de atividades artísticas em João Pessoa. Com um grupo de amigos, ajudei a fundar a Escola de Artes Plásticas Tomás Santa Rosa, assim chamada em homenagem ao grande cenógrafo e pintor paraibano que, com Ziembinski, revolucionou o teatro brasileiro. Integrei também o grupo fundador do Teatro Popular de Arte, iniciativa pomposa de teatro socialista de rua, cujo manifesto proclamava Não faremos arte dirigida. Dirigiremos a arte para o povo. Como dirigente do TPA, tive um encontro com o extraordinário Pascoal Carlos Magno, que mobilizava o país inteiro com o seu Teatro do Estudante do Brasil. Meu interesse era levar parte do grupo a Santos, onde haveria o II Festival do TEB. Para garantir a atenção de Pascoal, levei comigo o ator Walderedo Paiva, dono de beleza e porte físico invejáveis. Deu certo. Foi a primeira vez que andei de avião. Entre outras aventuras no TPA, fui ator – melhor dizendo, canastrão – numa montagem da peça metalingüística A Prima Donna, de José Maria Monteiro, no papel de O Autor, contracenando com a ótima Zezita Matos. Mas não fomos muito longe com aquilo. Éramos puro Meyerhold sem condições objetivas. Com a participação de poetas e pintores, formamos ainda o Clube do Silêncio, que, apesar do nome, fazia protestos bastante ruidosos em defesa das artes. Desde essa fase, acostumeime a não setorizar a cultura, nem aplaudir a especialização que embota tantos artistas em relação a outros campos de expressão. Aprazme a mistura, embora me falte uma percepção mais aguda para a música – sou desentoado até para dizer bom-dia. Outras leituras constantes desse período eram A Classe Operária e a Folha do Povo, jornais do PCB, assim como uma variedade de textos marxistas. Por influência de Bento da Gama, entrei para a Juventude do Partido e cheguei a participar do comitê estadual. Em suas visitas a João Pessoa, conheci o heróico Apolônio de Carvalho, o articuladíssimo Mário Alves, o hoje célebre historiador Jacob Gorender e os integrantes da UNE Volante, entre os quais Eduardo Coutinho. Em matéria de ativismo e agit prop, meu grupo teve lá seus momentos. Com as mãos, pichávamos a cidade com slogans nacionalistas. Com os pés, penetrávamos na Festa das Neves para promover o enterro simbólico do secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles, agressivo adversário do socialismo em nível mundial. Com a voz de pretenso locutor, eu saía num carro de som fazendo propaganda intensiva de palestras do Partido. No palco da Rádio Tabajara, dirigi e atuei na peça radiofônica Vas Bien, Fidel, de Oduvaldo Vianna Filho, verdadeira apologia do líder cubano. O prédio do Ipase, onde eu trabalhava, era suficientemente alto para eu subir à cobertura e lá deixar pilhas de panfletos, com o topo levemente umedecido. Dali a pouco, quando os primeiros secavam, eles se espalhavam anonimamente pelo ar, como uma nuvem de mensagens subversivas sobre a praça central. A disposição para pichar paredes eu já demonstrava desde muito cedo. Um dia, nos meus 12 anos, voltava do Mercado Central com meu pai, quando ele comentou a inscrição Liberdade para Prestes no muro do Lyceu. Com orgulho, confessei ser um dos autores, manejando tocos de piche retirados de uma laje, nas brincadeiras do recreio escolar. Surpreendi-me com o sabão que levei. De pretenso herói passei rapidamente a menino imprudente. Após uma manifestação de rua na juventude, sofri a única repressão policial do meu currículo, sendo levado, por menos de 24 horas, para o quartel onde prestara serviço militar. Já então percebi que não estava fadado a ser herói. Na verdade, sou cauteloso. Bateu o pé, eu me escondo. Com o surgimento das ligas camponesas, fazia freqüentes viagens para dar assistência aos lavradores e suas famílias, juntamente com médicos, dentistas, advogados, economistas e agrônomos. Cobria as ligas da Paraíba para o jornal Novos Rumos, que o PCB editava no Rio. Por conta de reuniões do setor estudantil do Partido, fiz várias viagens ao Rio, ainda nos anos 1950. Não posso negar que esse período de estudos e atividades, com o aprofundamento contínuo dos conceitos disseminados pelo Partido, teve uma enorme importância na minha formação. Na minha e na de muita gente neste país. Descontados alguns sectarismos e equívocos, a escola do Partido – como era chamada no jargão próprio – estruturou-me moralmente para a vida. A insistência na esperança é um dos traços que dela herdei. Por isso é que, entre Beckett e Brecht, fico com Brecht. O homem tem saída, sim. Paralelamente a todas essas ações, o cinema, aos poucos, se acercava do meu horizonte e exercia sua poderosa sedução. Quadro 8 Enfim, um Cinema Possível Foi como uma epifania. As imagens de O Homem de Aran cintilaram na tela de um cinema de Recife e, em pouco mais de uma hora, eu passava a ver o cinema de maneira inteiramente nova. Aquela gente filmada por Robert Flaherty tinha o brilho inconfundível do real. A platéia que comparecia às sessões de filmes clássicos trazidos do Rio pelo crítico Jonald (Oswaldo Marques de Oliveira) ficou siderada pelo que havia ali de narratividade e espetáculo. Mas o que me tocava, nos meus 22 ou 23 anos, era a diferença. O despojamento do filme provocava uma estranheza sedutora, um tipo de êxtase que eu não sabia identificar. Nada havia do aparato do filme de ficção: estrelas, glamour, luzes, cenografia, o clássico triângulo amoroso... O que se destacava era a relação forte e lírica do homem com a natureza. Aqueles pescadores enfrentavam o mar bravio atrás de um taludo tubarão, suas famílias arrancavam a sobrevivência da pedra, tudo era cru e árduo como de fato devia ser naquela ponta do mundo. Eu andava mesmo motivado pelas coisas do mar. Admirava os caçadores de baleia da praia do Cabedelo, em João Pessoa. Havia pouco pernoitara com Walter, ainda muito pequeno, e o amigo fotógrafo Natanael Longuinho no Cabo Branco para fotografar o nascer do sol sobre o mar. O fato é que Flaherty me mobilizou instantaneamente. Pensei que gostaria de conhecer melhor aquele tipo de filme. E que se um dia fizesse cinema, seria algo assim – um cinema possível e verdadeiro. Até então, o que conhecia dos documentários eram os shorts eventualmente exibidos como complemento dos longas estrangeiros, ou as naturais dos tempos de meu pai, sobre índios, coisas exóticas, efemérides. Antes de ingressar na Faculdade de Filosofia, eu era um espectador padrão que consumia o cinema norte-americano. Primeiro, as animações, os filmes de caubói e seriados das matinais de domingo no Cine Theatro Ideal de Itabaiana e nos cinemas Plaza e Rex de João Pessoa. Depois, os musicais da Metro, as aventuras de Sabu e Gunga Din. Muito vagamente, fui tomando contato com o cinema francês. Por fim, passei a freqüentar os cinemas de Recife em busca de novidades. Se for escavar os primeiros fascínios com as idéias de narrativa seqüencial e movimento, vou encontrar-me enfeitiçado pelos reflexos dos vitrais coloridos, o som da serafina (uma espécie de cravo) e os altos-relevos da via sacra da matriz de Itabaiana. Na feira da cidade, chamava minha atenção o simulacro em miniatura de uma casa de farinha, que era exibido dentro de uma grande caixa, através de pequenos visores. À medida que o operador girava uma manivela, víamos os bonecos reproduzirem em detalhes a atividade do cevador, o abastecimento do forno etc. Era uma espécie de realejo visual, ou arte cinética matuta. Minha sessão de cinema inaugural deu-se no alpendre de uma casa de Mamanguape, onde algum exibidor ambulante projetou uma Paixão de Cristo muda e divertidamente acelerada. Moleque Tião, de José Carlos Burle, e Como Era Verde o Meu Vale foram algumas atrações da minha cinefilia iniciante. Quando do meu batismo flahertiano, eu já freqüentava o cineclube comandado pelo Padre Antonio Fragoso, muito ligado ao engajamento social da Igreja. Padre Fragoso, por sinal, comungava da tradição romana que muito estimulou o cineclubismo brasileiro dos anos 1950 e 60, por conta de uma visão do cinema como ferramenta de esclarecimento do rebanho católico. Esse dado não é estranho à formação da minha consciência crítica e, por isso mesmo, já fui convidado algumas vezes a integrar o júri do prêmio ecumênico (ex-Ocic) em festivais de cinema. Leituras importantes para essa nova compreensão do cinema foram os artigos da Revista de Cinema, editada em Belo Horizonte, o livro Cine Social, do espanhol José María García Escudero, e o ensaio Significação do Far-west, de Octavio de Faria. Ali estava todo um mundo além do mero divertimento. A partir de então, tornei-me espectador inveterado do neo-realismo italiano, do cinema verista francês, do expressionismo alemão, dos clássicos soviéticos. Esse era o pano de fundo contra o qual Linduarte Noronha convidou a mim e a João Ramiro Mello para colaborar na confecção do roteiro de Aruanda. Aos poucos, fui diversificando minhas atividades. Produzi e apresentei o programa Luzes do Cinema, em colaboração com João Ramiro, e um noticiário especializado nas rádios Tabajara e Arapuã, respectivamente. No início dos anos 1960, colaborei para o Correio da Paraíba e o suplemento dominical de A União, assinei críticas no breve jornal Tribuna do Povo e tomei parte no grupo fundador da Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba, que vim a presidir, sucedendo a Wills Leal. Posso dizer que era um crítico generoso e nacionalista, com olhos atentos também para o cinema social estrangeiro. Ford, Kurosawa, Eisenstein, Chaplin, Clair, Welles, Renoir e Flaherty, certamente, estavam entre os 10 Grandes Diretores enfocados numa palestra que costumava proferir. A admiração pelos filmes e teóricos russos valeu-me o apelido de Vladimir Vorochenko. Mas eu também festejava Chaplin, o Truão Sublime, e o John Huston autêntico de Os Desajustados. Meu artigo O Dragão Kurosawa, escrito sob o impacto da temática social de Os Sete Samurais, foi um dos mais discutidos no âmbito do Clube da Merda. Assim chamávamos o grupo que se reunia à noite, nos bancos da Praça João Pessoa, cercados pelo prédio do jornal e os palácios do Governo e da Justiça, para conversar sobre o cinema, as artes e os Principais Problemas da Cultura Universal e Paraibana. Um cenáculo a céu aberto. Choque considerável nas nossas certezas e preferências foi produzido por uma visita do crítico paulista Caio Scheiby, no apagar das luzes da década de 1950. Apercebendo-se do nosso provincianismo, Caio fez uma palestra de desmonte na sede da associação de críticos. Referiu-se a aventuras homossexuais de Alberto Cavalcanti, colocou em xeque Chaplin e o neo-realismo italiano, chamou Orson Welles de falso gênio e Kurosawa de ocidentalizado. Os petardos, embora didáticos, causaram espanto e dominaram por um bom tempo os debates do Clube da Merda. Abalo final, o mar de Aran, com certeza, ficou infiltrado na minha imaginação até o momento de fazer Romeiros da Guia, meu primeiro filme, co-dirigido por João Ramiro Mello. É possível que tenha ficado também o menino postado à beira do oceano, à espera do retorno dos barcos. Muitos anos depois, a sonoridade do título de Flaherty ecoaria, sem maiores intenções, no meu O Homem de Areia. A verdade é que não me canso de pagar tributo àquele momento mágico em Recife. Quadro 9 No Princípio foi Aruanda Os meninos corriam atrás da viatura do Departamento de Estradas de Rodagem como se seguissem um veículo interplanetário. Era a primeira vez que um carro galgava aquela parte da Serra do Talhado, inaugurando uma picada recémaberta pelo prefeito do município de Santa Luzia do Sabugi. A bordo, Linduarte Noronha, João Ramiro Mello, o diretor de fotografia Rucker Vieira e eu. Estávamos escolhendo as locações e imaginando o roteiro de Aruanda. Naquele tempo, valia a pena seguir Linduarte a qualquer parte da Terra, mesmo que fosse na garupa de sua lambreta e engolindo a fumaça de seu cachimbo. Descobri isso quando ele era meu professor de Geografia no Lyceu Paraibano. Impressionava-me a forma como incluía o fator humano em sua matéria de ensino. Citava muito Gilberto Freyre, Euclides da Cunha, Frans Boas. Era já homem de rádio, dono de bela voz e vasta cultura. Tentou o cinema pela primeira vez com o projeto 30 Graus a Leste, sobre o Cabo Branco. Na época em que vimos O Homem de Aran, ele se fazia respeitar como repórter e crítico diário de A União, com uma pauta agressiva contra a hegemonia do cinema norteamericano. Uma de suas reportagens, com fotos também de sua lavra, foi As Oleiras do Olho d’Água da Serra do Talhado, sobre o trabalho das ceramistas de um antigo quilombo. Decidido a transformar essa reportagem em filme, Linduarte chamou João Ramiro e a mim para fazermos juntos o roteiro de um curtametragem. Por sermos todos autodidatas, nos baseávamos na dieta do cineclube e nas leituras teóricas para escrever a adaptação. O roteiro-deferro, com o título Talhado, Cidadela do Barro, suas linhas e colunas que mais sugeriam um livro-caixa, foi estruturado segundo as regras canônicas de uma tradução para o espanhol do Tratado da Realização Cinematográfica, do russo Lev Kulechov. Era literatura já superada como prática de cinema nos grandes centros, mas ainda uma bíblia na província. Quase tudo estava previsto: a reconstituição livre do trajeto do ex-escravo Zé Bento e sua família até o local onde o quilombo começou; a documentação do ofício das oleiras; a viagem até o mercado; as negociações e a partida de volta para casa. Prevíamos os planos, a luz, os movimentos. É claro que nem tudo seria seguido à risca, já que muito foi absorvido da realidade das filmagens. Mas o roteiro era um monólito. Restava conseguir apoio para a produção, numa Paraíba ainda sem qualquer tradição cinematográfica. Aproveitamos a viagem a Santos com o Teatro do Estudante para tentar em vão contato com um banco de São Paulo. Na passagem pelo Rio, Linduarte convenceu o Instituto Nacional do Cinema Educativo a emprestar-lhe uma câmera Eyemo 35mm da Bell & Howell, e o usineiro Odilon Ribeiro Coutinho a patrocinar negativos Kodak. Quando retornou a João Pessoa, ele ainda teve que fazer ouvidos de mercador para as ironias dos colegas de imprensa, que diziam: Imaginem, Linduarte voltou cineasta e vai fazer a obra-prima do cinema brasileiro. Coube ao poeta Vanildo Brito comparar o argumento do filme com a terra prometida dos negros, Aruanda, corruptela de Luanda. Daí o título que passaria, contra toda chacota, à história do cinema brasileiro moderno. A preparação para o vestibular impediu-me de participar das filmagens na serra. Mas juntei-me a João Ramiro como assistente de direção de Linduarte na fase final, em torno do mercado do Sabugi. Apesar da natural liderança do diretor, nossa atuação era basicamente coletiva, como de praxe em documentários. Linduarte escreveu o texto da narração e Rucker Vieira fez a montagem na moviola do Ince. Eu estava no Rio para uma reunião da UNE quando saiu a primeira cópia de Aruanda. Na pequena cabine da Líder, para meu desconforto, constatei que não era creditado a mim e ao João Ramiro aquilo que julgávamos mais importante, a participação criativa no roteiro. Saí com a sensação de uma irmandade traída. Toquei no assunto ainda no bonde, e Linduarte negou categoricamente o crédito. De volta a João Pessoa, fiz com João Ramiro um bafafá nos jornais e rompemos com nosso ídolo. Passei cerca de 15 anos sem contatos com ele. Hoje, considero o assunto matéria vencida. Nada diminui minha admiração pelo filme, em que se estréia a proposta fotográfica de Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol. A luz bruta, que vem rasgando a imagem, tão semelhante à gravura popular, foi fundada em Aruanda. Mal terminou de assisti-lo, também na Líder, Glauber saiu incontinenti e, ainda no laboratório, escreveu o célebre artigo que ajudou a fazer do filme um marco. Quadro 10 Romeiros na Contraluz No tripé sustentado com firmeza por João Ramiro Mello está a câmera Eyemo usada em nossas primeiras aventuras no chamado ciclo do cinema paraibano. A foto ao lado foi feita enquanto preparávamos a seqüência da dança do coco em Romeiros da Guia. Esta era a banda profana do filme, que se contrapunha à banda sagrada – o pagamento da promessa dos romeiros a Nossa Senhora da Guia. O filme era uma resposta ao desdém de Linduarte quanto à nossa participação no roteiro de Aruanda. Tudo, no fundo, era uma emulação da experiência anterior. Mais uma vez, eu e João Ramiro escrevemos um roteiro rigoroso, baseado agora na minha reportagem Guia, um Templo Barroco Coberto de Ervas, publicada no suplemento de A União de 13.09.59, portanto três anos antes. Junto ao Forte de Cabedelo havia a praia de Ponta de Mato, de onde os pescadores partiam, uma vez por ano, singrando o rio Sanhauá, rumo às ruínas do velho santuário de Nossa Senhora da Guia. Após a visita e a deposição dos ex-votos, eles se entregavam aos folguedos até o amanhecer do dia seguinte. Dos muitos gabinetes que freqüentei na vida, em busca de recursos para filmar, o da reitoria da Universidade Federal da Paraíba foi o primeiro. E também o primeiro a dizer não. Por fim, João Ramiro obteve a permissão do Ince para usar a câmera de Aruanda, com a qual Linduarte acabara de filmar Cajueiro Nordestino. Mas o diálogo, aí, era difícil. Levamos dois meses para conseguir a entrega do equipamento, que só aconteceu por intervenção direta de Hans Bantel, levado do Rio para dirigir a fotografia do nosso filme. Queríamos buscar a naturalidade construída dos documentários de Flaherty. Em nossa insegurança, de certa forma recuamos em relação às conquistas de Aruanda. João Ramiro escorou-se na criação de cenas, sobretudo as seqüências de moldura que envolvem o menino (apelidado de Ponteiro) despedindo-se dos barcos e vendo-os voltar ao fim da romaria. De minha parte, apoiava-me numa pretensa etnografia. Entendia que, flagrando situações da cultura popular, ou seja, coisas que já aconteciam de per si, garantíamos uma narratividade espontânea para compensar nossa inexperiência. Saquei de Euclides da Cunha a epígrafe adequada para dar a chave do sacro e do profano: E as crenças singulares traduzem essa aproximação violenta de tendências distintas (...) Saem das missas consagradas para os ágapes selvagens. O resto seria comunicado pela linguagem do filme. Uma fusão da vela religiosa para o candeeiro do baile ligava os dois mundos. No amanhecer, outra fusão dissolvia a luz do candeeiro no sol nascente. Ecos de Moana e O Homem de Aran, de Flaherty, assim como dos mares do sul dos quadros de Gauguin, ressoavam em nossas tomadas. As seqüências de pesca noturna foram filmadas de dia, com o recurso fotográfico da noite americana. Para acrescentar ritmo e realismo aos percursos aquáticos, fizemos imagens complementares de barco singrando as águas no Rio de Janeiro, próximo ao Clube Guanabara. O crítico Novaes Teixeira foi um dos que apontaram a pretensão formal de Romeiros. De fato, estávamos encantados pela câmera, as contraluzes, os golpes de cinestética. Ramiro, muito atilado, aprendeu a montar em uma semana, na moviola do INC. Mostrávamos periodicamente os cortes a Flávio Tambellini, que dizia esplêndido!, pungente!, para em seguida sugerir que trocássemos alguma seqüência de lugar. Obedientes, voltávamos à sala de montagem. Quando mostrávamos de novo, ele exclamava mais dois ou três adjetivos e propunha nova troca, que bem podia ser o contrário da sugestão anterior. Ficamos nesse transe até que Humberto Mauro nos deu um conselho decisivo: Não mexam em mais nada. Só o chamem para a exibição final. Uma menção honrosa no festival italiano de Sestri Levante afagou o ego dos iniciantes. Éramos, então, parte do ciclo paraibano, que, além dos filmes de Linduarte, se estenderia com A Bolandeira, O País de São Saruê, A Cabra na Região Semi-árida, de Rucker Vieira, A Poética Popular e Os Homens do Caranguejo, ambos de Ipojuca Pontes, entre outros. Por essa época, eu andava apaixonado pelo Paraíba, um dos grandes rios que fecundam as terras dos canaviais. Com o título de Rio do Açúcar, preparei um roteiro longo e bastante formalista sobre o comportamento do rio e as atividades em torno dele. Nunca prossegui no projeto, mas algo acabei incorporando a O Engenho de Zé Lins. Afinal, o Paraíba também passava pelos engenhos do Pilar. Quadro 11 O Chamado da Bahia O rapaz muito sério toma notas em algum ponto da Bahia, em 1963. Na prancheta, detalhes da produção do longa-metragem A Terra do Homem. O argumento de Álvaro Guimarães, o Alvinho, tratava a reforma agrária pelo filtro de uma personagem poética chamada Isabel Crioula, que era assediada pelo dono da terra. Tocávamos o projeto com Álvaro, Caetano Veloso, Fernando Kraichete, Geraldo Portela e o ator Antonio Augusto. A bordo de um jipe, viajamos pela região do cacau, no sul do estado, em busca de locações e inspiração. Caetano compôs uma música durante essa viagem (A clareza da manhã / Chega toda devagar). Levamos meses trabalhando no roteiro. O projeto jamais entraria em produção, mas animou minha estada de um ano na terra de Jorge Amado. Depois de finalizar Romeiros da Guia, eu e Ramiro tínhamos chegado à conclusão de que a Paraíba era muito pequena para nossos planos de fazer cinema, ainda mais rompidos que estávamos com Linduarte Noronha. Ramiro ficou no Rio para seguir carreira de montador. Eu providenciei minha transferência para o Ipase de Salvador. Na verdade, estava atraído pela ruidosa presença de Glauber Rocha, que, junto com Paulo Gil Soares, Roberto Pires, Rex Schindler e Walter da Silveira, havia criado a mítica do cinema baiano. A Bahia nos chamava a todos do Nordeste. O encontro com Glauber foi inevitável, propiciado por Orlando Senna. Via-o também nas raras vezes que descia de Monte Santo, onde rodava Deus e o Diabo na Terra do Sol. Só dois anos mais tarde, no Rio, é que ficamos amigos. Mas esse interlúdio baiano foi um salto para mim. O clima cultural e a visão dos artistas mais abertos para o mundo sacudiram o provincianismo acanhado de quem só pensava em fazer cinema. Orlando Senna foi meu anjo da guarda nas Cidades Alta e Baixa. Na Faculdade de Filosofia, onde concluí meu curso, fiz amizade com Caetano Veloso, Carlos Nelson Coutinho, o colunista social Silvio Lamenha – já convertido em personagem de Jorge Amado – e outros colegas de uma pequena turma. Alguns professores abriram novas avenidas no meu conhecimento, espanando a poeira de clássicos como Aristóteles e introduzindo dialéticos como Heráclito. Padre Pinheiro, fumante inveterado, apreciava a música a ponto de, vez por outra, fechar a porta da sala de aula e pedir ao corpulento Lamenha para cantar com seu falsete que lembrava Dalva de Oliveira. Caetano, caderno de letras de música sempre à mão, era o que mais se deliciava com – e provavelmente assimilava – as paródias do Lamenha. Era o tropicalismo a caminho. Na boemia fajuta de jovem sem dinheiro, eu perambulava pelo Canela, o Campo Grande, a Vitória, a Baixa dos Sapateiros, o Taboão. Conheci Gilberto Gil estudando Administração de Empresas e cantando nos bares da orla. Freqüentei as festinhas na casa da Gracinha (Gal), os shows de Tom Zé e Caetano na boate O’Clock, as atividades do CPC baiano, para o qual fui convocado por Geraldo Sarno para assisti-lo na área de cinema. Numa das ações do CPC, Tom Zé conduziu um bumba-meu-boi alegórico pela Avenida Sete, até a Praça da Sé, contando a história da exploração do povo brasileiro. Paulo Emílio viu Romeiros da Guia, sem maior entusiasmo, numa sessão de curtas organizada por Walter da Silveira e outros críticos baianos. Mas, afora o projeto do Alvinho, não avancei com o cinema nesse período. Com Orlando, fiz algumas visitas a Olney São Paulo em Feira de Santana. Daí a insólita incumbência que recebi de Olney, alguns anos depois, de voltar ao interior da Bahia para cobrar as cotas de produção do seu recém-filmado O Grito da Terra. Então desempregado no Rio, eu biscateava como assistente de montagem do filme. Abalei-me de ônibus para Feira de Santana e, mapa em punho, saí recolhendo o dinheiro empenhado por fazendeiros conhecidos de Olney. Desde aqueles dias, eu estava apto a incluir no meu currículo de serviços prestados ao cinema brasileiro o ofício de cobrador. Quadro 12 Barbudos do Galiléia É longo e curioso o caminho que me levou, numa noite de março de 1964, a empunhar essa claquete de Cabra Marcado para Morrer. Tudo começou alguns anos antes, quando o movimento das ligas camponesas espalhou-se pelo Nordeste como um rastilho de pólvora. As reportagens de Antonio Callado galvanizavam a opinião pública de norte a sul. A imprensa estrangeira aprendia o caminho de Sapé, na várzea do Paraíba. Como correspondente do jornal Novos Rumos, eu cruzava com jornalistas das revistas Time e Life. Cabeleira ao vento, Francisco Julião pedia reforma agrária, na lei ou na marra. Acuados, os latifundiários respondiam com violência, expulsando famílias de suas terras e metralhando líderes camponeses. Numa reunião plenária do Partido, conheci João Pedro Teixeira, fundador e líder da liga de Sapé, e sua mulher, Elisabete. Entrevistei-o para o jornal, ficamos amigos e eu sempre fazia questão de hospedá-los em João Pessoa. Ademais, eu tinha a confiança do Partido para essa tarefa. João Pedro era um companheiro admirável, apesar de uma curiosa divisão: era comunista e evangélico. No princípio de 1962, foi assassinado por policiais vestidos de vaqueiros. Pouco depois, a UNE Volante visitava a Paraíba, ocasião em que apresentei a viúva a Eduardo Coutinho. Esse antecedente, somado à minha experiência no cinema, contribuiu para que Coutinho me convidasse a integrar a equipe do Cabra, em Pernambuco. Terminado o ano letivo na Bahia, arribei para o engenho Galiléia. O modelo de cinema do primeiro Cabra tinha certo parentesco com os autos e encenações promovidos com freqüência por Oduvaldo Vianna Filho na UNE Volante. Havia pouco de documentário e muito de atuação, com Dona Elisabete vivendo o seu próprio papel e lavradores pernambucanos representando os da Paraíba. O pessoal do Galiléia, que já ocupava o engenho desapropriado por Miguel Arraes, não estava disposto a aceitar muitas ordens, nem mesmo a de levantar cedo para filmar. Devagar, minha gente! Isso aqui agora é vida liberta, havia quem dissesse. Como assistente de direção, função que dividia com Cecil Thiré, eu era um factótum. Ajudei na arregimentação e contatos locais, coordenei a participação da família de Dona Elisabete e o guarda-roupa, bati claquete, fiz algum still (fotos de cena). Mas a missão mais difícil, sem dúvida, foi familiarizar o bronco lavrador João Mariano, intérprete de João Pedro, com a lógica fílmica. Eu o levava ao cinema de Vitória de Santo Antão e explicava o que era uma atuação, como funcionava o corte etc. Seu Mariano, vamos fazer uma comparação. Esse cara que deu o tiro, comparando mal, é como se tivesse matado o outro, eu dizia. Na hora da filmagem, embora muito fraquinho, ele pelo menos entendia as comparações todas. Naquela locação, conheci Fernando Duarte, dire-tor de fotografia, que mais tarde seria um grande parceiro e mentor da minha transferência para Brasília. Ferreira Gullar, então dirigente do CPC da UNE, visitou o engenho numa madrugada e tomou cafédamanhãconosco.Nanoitedodia31demarço, rodamos a cena em que João Pedro era detido em sua casa. Seria a última do primeiro Cabra. Na manhã seguinte, fomos acordados no alojamento de Vitória de Santo Antão pela notícia da eclosão de um movimento revolucionário. Ali éramos conhecidos como os cubanos, por conta das barbas crescidas de alguns. Num primeiro momento, pensamos tratar-se de apoio a Jango e, prontamente, corremos para o engenho a fim de decidir sobre nossa participação e mobilizar os camponeses. Mas o noticiário do rádio logo nos convenceu do contrário. Ainda no caminho, retiramos os dormentes de uma ponte para impedir a passagem de eventuais perseguidores. No Galiléia, fomos recebidos com decepcionante frieza. Movimento de tropas havia sido detectado nas redondezas. Nossos camponeses, mais sábios do que julgávamos, nos aconselharam a tirar a Rural Willys dali e desistir da idéia de organizá-los para a resistência. Nossa aparência de estudantes ou intelectuais os aconselhava a livrar-se o mais rapidamente de nós. Bem antes disso, o noticiário plantado pela reação em Pernambuco já nos identificava como um grupo determinado a eliminar todos os delegados de polícia do interior. O equipamento de filmagem era apresentado como um arsenal. Para o bem de todos, batemos em retirada, não sem antes depositar a câmera e alguns acessórios numa gruta coberta com galhos. Escondemo-nos, em grupo de nove pessoas, num capão ermo de mato e ficamos em absoluto silêncio, vendo o sol se pôr. Nossa comunicação era por mímica. Não atendemos nem mesmo à voz de um peão que, lá pelas nove da noite, gritou que o perigo havia passado. Podia ser um ardil. Marcos Faria, encarregado das finanças da produção, portava um pequeno revólver, totalmente inútil para a ocasião. Passamos a noite inteira sobre folhas. Foi a noite mais longa da minha vida. Para meu azar, ainda cochilei sobre um ninho de lagartasde-fogo e acordei com o corpo febril. Na manhã de 2 de abril, voltamos à sede do engenho e todos os barbudos depilaram-se até a raiz. Em meio à tensão, ríamos das caras raspadas. Vestimo-nos com roupas velhas de camponeses, chapéus de palha e, em grupos de dois ou três, saímos em direção a Recife. Coutinho, Dona Elisabete e eu tomamos um ônibus, disfarçados de família interiorana. Deixei para trás, entre outras coisas, uma máquina de escrever, uma câmera fotográfica, um álbum de recortes e um roteiro intitulado Os Camponeses. Quadro 13 Procurados Meus encontros com Dona Elisabete, como este durante as gravações do vídeo de Dácia Ibiapina, são sempre marcados pela emoção. Não foram poucos os momentos graves que vivemos juntos. Em abril de 1964, enquanto os companheiros do Rio regressavam a suas bases, escapando das listas em aeroportos e rodoviárias, Coutinho foi para Olinda e eu fiquei encarregado de dar cobertura a Dona Elisabete em Recife. Uma prima nos hospedou num subúrbio. Nos primeiros dias, acompanhávamos com nervosismo as notícias sobre a caça aos subversivos. Elisabete Teixeira estava no topo da lista. O marido da minha prima, atemorizado, pediu-me que deixássemos sua casa. Resolvemos levar Dona Elisabete para a casa de um ex-colega de trabalho de João Pedro numa pedreira de Recife. Mesmo essa pequena viagem impunha certas medidas de segurança. Vestimos nossa procurada com um vestido de chitão de cores berrantes, oxigenamos seus cabelos, aplicamos-lhe ruge e batom, arranjamos um par de óculos bregas. Ainda hoje sinto remorso por ter submetido aquela mulher tão digna a semelhante ultraje, mas não havia outro jeito. Foi com aparência de dama alegre que Dona Elisabete se transferiu para seu último esconderijo em Recife, antes de ser recolhida pelo filho Abraão para um longo período de clandestinidade e prisão. O golpe militar extinguiu as ligas e salgou o terreno. Houve gente queimada, atirada em caldeira de usina. A mim, felizmente, não tocou qualquer represália física. Mas um antigo chefe do Ipase, sabedor de minha militância, delatoume miseravelmente. Peguei um inquérito na VII Região Militar, acusado de praticar subversão no serviço público. Não respondi, fui julgado à revelia e demitido. Minha mãe, preocupada com o inquérito policial, jogou algumas centenas de livros numa fossa de João Pessoa. Minha biblioteca se dissolveu em papa no lençol freático. Parte dos negativos de Cabra Marcado para Morrer foi extraviado pela repressão. O que se salvou seria retomado por Coutinho, em 1981, para concluir seu consagrado documentário. Eu promovi em Brasília uma exibição do filme, ainda em 16mm, no auditório da Câmara dos Deputados, com a presença de Coutinho e Dona Elisabete. Posteriormente, fiz um acerto com a Embrafilme, pelo qual cedia os direitos de todos os meus filmes em troca da ampliação do Cabra para 35mm. Assim, meu nome passou a constar também como co-produtor. Gostei de ver o filme se reconstruir no tempo, produzir História, provocar sua matéria, ao contrário do que normalmente ocorre no cinema, que trabalha em cima de matéria vencida no tempo, elaborada como espetáculo. Quadro 14 Santeiro Clandestino Venho de uma família bem dotada em matéria de habilidades manuais. Meu avô era seleiro, meu pai escultor em madeira, um tio era exímio ourives. Acho que herdei uma pontinha da destreza deles. Ainda pequeno, gostava de tracejar figuras e esculpir dados em cascas de cajá. Mas só descobri que tinha algum jeito para a coisa depois de fugir de Recife, na esteira do golpe de 64. Passei mais de dois meses escondido numa fazendola, o Sítio do Ligeiro, perto de Campina Grande, de propriedade de um contraparente. Tinha uma falsa identidade, obtida com a ajuda de Tio Gilberto Calixto, que a retirou do arquivo morto da corporação militar onde era funcionário e colocou minha foto no lugar. Foi, portanto, como José Pereira dos Santos que dei as caras no Ligeiro. Em poucos dias, eu era apenas Seu José. Discretamente, saía para caminhar, caçar, e via a quantidade de cajás que havia por ali. Amolei uma faquinha e comecei a trabalhar as cascas do cajá. Reparei que facilmente conseguia dar forma a bichos, bonecos e – o que agradou especialmente à gente religiosa do lugar – pequenas imagens de santos. Daí meu pseudônimo de Zé dos Santos ganhar um inesperado sentido literal. Depois de um tempo dormindo numa rede, em meio a frutas e cereais, atormentado pelas pulgas e depois de uma grave intoxicação por inseticida, achei que era hora de levantar acampamento. Fui para o Rio só com o dinheiro da passagem de ônibus e das refeições do caminho. No futuro, entre meus passatempos preferidos estariam a escultura, a xilogravura e a pintura. Nunca fiz exposição, mas coleciono meus trabalhos, como a imagem de Nossa Senhora da Conceição da foto que abre este quadro. Na parede vê-se parte de um óleo, um navio que polui o céu, mas onde se trai algum resquício da quilha do Potemkin. Desde criança, estou sempre riscando, desenhando. Se não fizesse cinema, acho que seria um gravurista. Arrisco-me com freqüência na representação de trens, marinhas, cenas de pesca e da faina popular, muitas vezes inspirado pelo trabalho paralelo no cinema. Na própria imagem dos meus filmes, há muito de expressão plástica, desvios formalistas que bem poderiam se manifestar em gravuras. Já me ocorreu comparar a urgência do documentário com a pintura de afrescos. Filmar às pressas no sertão, antes que o sol se ponha ou que o ciclo do trabalho de um camponês se complete, equivale a pintar rápido, antes que a camada absorvente seque. Concilio precariamente essas duas formas de expressão quando faço xilogravuras para títulos, créditos, logotipos e cartazes dos filmes. Já incursionei também por capas de livros, como a do meu Cinema Candango e do romance Flauta Rústica, de Clóvis Sena. Faço tudo isso para desafogar. Da mesma forma, costumo escrever um bocado nos longos intervalos da produção de um filme. A tensão se esvai, não vejo o tempo passar. As peças vão se acumulando, pois não consigo me desfazer delas. Não vendo, nem dou. Gosto de vê-las juntas. Exceção foi uma série de jóias de cajá que certa vez, à beira da indigência, deixei em consignação numa butique de Ipanema. Às vezes me perguntam por que gosto de esculpir imagens de santos. Além dos que faço, coleciono santos, aprecio as madonas barrocas. Tenho uma certa inclinação pela imagem de São Miguel Arcanjo, que volta e meia aparece em meus filmes, com a espada numa mão e a balança na outra. Ele está em Vila Boa de Goyaz, O País de São Saruê, O Evangelho Segundo Teotônio, Conterrâneos Velhos de Guerra e estará em O Engenho de Zé Lins. Talvez como um reflexo da dicotomia dos meus pais, sou uma pessoa muito dividida. Estou impregnado das coisas da igreja da minha infância. Guardo a memória de Frei Damião pregando diante do povo siderado. O santo não é só a placidez da bem-aventurança, mas também a paixão. Ele está tomado pela exasperação dos que conseguem alterar o destino. Esse assunto, para mim, é uma pequena catarse. Quadro 15 Choque de Cinema-verdade Semiforagido do Nordeste, em relativo anonimato, reencontrei segurança nos meandros da grande cidade. No Rio, tratei de rearticular-me com os companheiros de cinema e do Partido. Varávamos madrugadas acalentando a esperança de que o golpe refluísse e pudéssemos de novo botar a cabeça para fora. Paulo Pontes, que eu havia levado à militância e agora a dividir um pequeno apartamento no Flamengo, acreditava que o PSD fosse dar a volta por cima. Mas o tempo passava e Castello Branco não apeava do poder. O remédio era seguir trabalhando. Fui à Bahia coletar as apólices de Olney São Paulo. Na volta, Eduardo Coutinho me apresentou a Arnaldo Jabor para ser seu assistente em duas novas produções. Abria-se, assim, mais uma etapa decisiva na minha formação de documentarista. O Rio fervilhava de cinema naquele ano de 1965. Diversas produções estrangeiras estavam sendo rodadas aqui: Pierre Barouh contracenava com grande elenco brasileiro na praia de Itaipu em Arrastão, do francês Antoine d’Ormesson; Em Botafogo, Claudia Cardinale fazia tremer as pernas do galã Milton Rodrigues nas filmagens de Uma Rosa para Todos, de Franco Rossi; Mike Henry, na tanga de Tarzan, era literalmente mordido pela macaca numa cena de Tarzan e o Grande Rio, de Robert Day, filmada numa taba na Floresta da Tijuca. Além disso, a cidade recebia uma pletora de astros internacionais para o I Festival Internacional do Filme. Um coletivo reuniu-se para fazer o filme-reportagem Rio, Capital Mundial do Cinema, sob a supervisão de Jabor. A câmera de Dib Lutfi flagrava as filmagens estrangeiras, o mundanismo do festival no Copacabana Palace, uma grande feijoada na casa de Luiz Carlos Barreto, estrelas caindo no samba. Roçavam os ombros Fritz Lang, Troy Donahue, La Cardinale, Glauber, Leon Hirszman, Nelson Pereira, Joana Fomm, Andrzej Wajda, Roman Polanski, Glenn Ford, Roberto Rossellini, Jean Rouch, Valerio Zurlini. O meninote Bruno Barreto já estava de câmera em punho. Meu smoking alugado para a festa do Copa foi posto a perder pela oxidação da bateria e a produção teve que ressarcir a Casa Rolas. O pequeno acidente não impediu que Jabor me aceitasse novamente como assistente de direção de Opinião Pública. Até então, eu era levado a mitificar a prática e a gramática do cinema. Nada ousava contra o rigor da mise-en-scène. Mesmo o documentário, via-o com uma certa disciplina narrativa e formal, sem falar etnográfica. Jabor, pelo contrário, era sempre jovial, engraçado e descontraído. Aquele comportamento ajudava a abrir as portas das pessoas, sobretudo as da classe média de Copacabana. As adolescentes mostravam-lhe seus diários, gente de todas as idades falava abertamente de seus sonhos e ambições. Buscávamos as situações mais variadas – jovens em fila para alistamento militar, moças especulando sobre o casamento, estudantes especulando sobre o futuro, burocratas nos escritórios da Light, gravação de telenovelas e do Programa do Chacrinha. Eu fazia uma crônica diária da produção, sínteses de entrevistas e anotações diversas. Houve um momento em que fiz até greve. Após um estremecimento entre Jabor e a equipe, decretamos paralisação de um dia e, numa kombi dirigida por Dib Lutfi, fomos tomar banho e beber na Barra. Fiz muito menos pelo filme do que o filme fez por mim. Nesse período, morei de favor na casa do Jabor, na Rua Souza Lima, quase uma república onde costumava se reunir uma espécie de núcleo do Partido, com participações minha, de Alex Viany, Leon, Coutinho, Marcos Farias e do próprio dono da casa. O trabalho me ajudou a descortinar a cidade e adquirir uma nova visão do método, sobretudo no uso do som direto. Tendo perdido o influente curso de documentário de Arne Sucksdorff, em 1962, ganhei em Opinião Pública minha oportunidade de jogar fora as muletas e a poeira livresca. Estilhacei a imagem do grande diretor. Compreendi que o autor não precisava manter distância de seus personagens. Posso dizer que, com Jabor, vivi o choque benfazejo do cinema-verdade. Quadro 16 Cavando Filme no Rio do Peixe Com o dinheiro e o ânimo ganhos em Opinião Pública, voltei para a Paraíba determinado a fazer um filme. Para pagar as contas, assumi as funções de repórter do Correio da Paraíba. Havia tempos, cultivava o germe da idéia de um documentário sobre as contradições das relações de produção na Paraíba, sobre a exploração do homem disfarçada nos informativos do governo e da Sudene ou escamoteada no falso conceito de Novo Nordeste, posto em circulação pela ditadura. Sabia, pelas leituras de Capistrano de Abreu, Celso Furtado, José Américo de Almeida e João Lélis, que a gênese dessa situação estava nos tempos coloniais. Mas a hora não aconselhava movimentos bruscos. Meros dois anos após a experiência das ligas camponesas, o Cabra e o golpe, era ainda temeroso filmar na vigiada zona dos canaviais. Pensei, então, no sertão profundo, área do algodão e da pecuária, onde a imobilidade econômica perpetuava um quadro de miséria e uma prática rural bastante primitiva. Ali filmaria o média-metragem O Sertão do Rio do Peixe, que daria origem ao longa O País de São Saruê. Tentei obter o empréstimo de uma câmera junto ao governador João Agripino Filho, mas já naquele momento percebi que o sistema reprimia e censurava em bloco. Consultando amigos e influências, acabei por chegar a Antonio Mariz, ex-vice-presidente da UNE e então prefeito petebista (varguista) do município de Sousa, no extremo oeste do estado. Ele me contratou para filmar o desfile de Sete de Setembro em Sousa, com uma câmera Bell & Howell pertencente ao Serviço de Cinema Educativo. Exibimos o pequeno registro em praça pública e, satisfeito, Mariz acenou com hospedagem, uma viatura e algum dinheiro para os negativos com que eu começaria a filmar a região. Não havia um roteiro, mas apenas anotações e a intenção de espelhar o passado com o presente. Eu sabia que encontraria fósseis do que aconteceu um ou dois séculos atrás. O Sertão do Rio do Peixe resultou de duas viagens, nos verões de 1966 e 1967. Na primeira, durante o clímax de uma grande seca, a pauta era simplesmente o que – ou quem – encontrasse, levado por informações esparsas e pelo que conhecia dos livros. As próprias filmagens iam gerando pauta para as seguintes. Filmávamos do jeito que fosse possível, ora com negativos de várias marcas e procedências, ora com película sem qualquer indicação. Um lote que comprei, soube depois, era de filmes vencidos do consulado dos EUA em Recife. Isso resultou numa imagem muito precária, que, bem ou mal, assumimos como dado estético. Eu não diferenciava muito o filme de um certo artesanato que no Nordeste é feito do lixo industrial. Certa feita, esquecemos por algumas horas várias latas de filme sobre um lajedo, expostas ao sol, resultando na alteração química do material já filmado. No Rio do Peixe inaugurei o que chamava de som indireto.Comonãodispunhadeequipamentopara gravação de som sincrônico, elegia os personagens mais interessantes e os levava, ao final do dia, à cidade mais próxima, para gravar uma entrevista nos pequenos estúdios das rádios ou difusoras de alto-falantes locais. Na edição, muitas vezes assumi o off dissociado do que a pessoa estava falando na imagem. E isso era tão gritante que ninguém jamais reclamou da falta de sincronia. Os grupos escolares de Sousa também tiveram fundamental importância na produção de São Saruê. Era muito comum filmarmos em lugares sem acesso à luz elétrica. No interior de casebres, por exemplo, de paredes enegrecidas pelo pucumã (fuligem da lenha queimada), só contávamos com as entradas de luz natural, que reforçávamos ora retirando telhas, ora usando rebatedores. Mas, afinal, que rebatedores? Era onde entravam as lousas dos colégios, revestidas de papel metalizado. Carregávamos os quadros-negros pela caatinga como se fôssemos professores ambulantes. Meu diretor de fotografia, embora muito talentoso, era praticamente um estreante no cinema. Repórter fotográfico do jornal A União, Manuel Clemente tinha uma capacidade de síntese tal que suas fotos, mesmo em quantidade inferior à dos colegas, davam sempre primeira página. Ele havia sido assistente de Hans Bantel em Romeiros da Guia e estava credenciado para dividir comigo a aventura do Rio do Peixe. A princípio, tivemos de afinar pontos de vista. Clemente, na sua honestidade e pureza, entendia a imagem do documentário como algo frontal, ao nível do olho, como se todo o resto fosse deformação, domínio da ficção. Mas, com o passar dos dias, convenci-o a ser menos ortodoxo e buscar a melhor expressão para o que estávamos filmando. A partir daí, o trabalho fluía quase sem comentários. Por outro lado, tínhamos que ser muito rápidos. Se custássemosaprepararenquadramentoecondiçõesde luz, literalmente perdíamos a passagem da boiada. Andamos por vilarejos, desertos e lugares ermos. Sem qualquer consciência de que estávamos num sítio arqueológico, filmamos no que hoje é conhecido como o Vale dos Dinossauros. Mais de uma vez, nosso tripé foi confundido com um teodolito por alguém que se aproximava e perguntava: Isso é da Sudene, é? Tá medindo as terras? Estávamos atentos aos vestígios do seco e despojado barroco sertanejo. Um dia paramos fascinados diante das portas dilaceradas da capela da fazenda Acauã, da família Suassuna. Da classe média rural, muito ciosa de seu valor, recolhi fotos de família, que utilizei na edição final. Ao cabo de 15 dias de filmagem, vieram as chuvas e eu tive de esperar um ano para reencontrar a mesma paisagem seca. Na segunda viagem, sem mais fotógrafo nem recursos, e ainda cheio de dívidas, visitei algumas usinas de algodão e ofereci meus préstimos de diretor de cinema, na boa tradição dos cavadores dos primórdios do cinema brasileiro. Mediante um pagamento adiantado, apontava a câmera para as indústrias e rodava. Por vezes, nem havia filme na máquina. Foi, digamos, uma apropriação de mínima parcela da riqueza dos usineiros pelo cineasta popular em apuros. Quadro 17 Vida Provisória Voltei ao Rio em 1968, levando todas as latas que havia filmado na região do Rio do Peixe. Hospedei-me mais uma vez na casa da boa e paciente Tia Alaíde, que agora morava no bairro carioca de Ramos e já abrigava meus irmãos Marcelo (expulso da Marinha na turma do Cabo Anselmo) e Marcone (do movimento estudantil), bem como o célebre ativista José Montenegro. Nem minha tia, nem seu marido, um militar reformado, jamais perceberam que sua residência sediava uma verdadeira base do PCB. Mais tarde, habitando uma casa de cômodos em Santa Teresa e ganhando salário de fome na editoria geral do pré-falimentar Diário de Notícias, ensaiei uma fase de vida normal, embora provisória. Em 1968, minha opção de vida normal incluía cobrir as novidades do Dops e as passeatas, usar a casa como entreposto clandestino do jornal Voz Operária, acompanhar as decisões do Partido sobre abraçar ou não a luta armada e outros que tais. Meu grupo de passeata abrangia Luiz Carlos Lacerda (Bigode), Arduíno Colasanti e Norma Blum, entre outros. Depois das manifestações, nos reuníamos num barzinho para verificar se alguém tinha caído. Nas horas vagas, montava O Sertão do Rio do Peixe e seu subproduto A Bolandeira, além de freqüentar a Cinemateca do MAM. Foi quando Cosme Alves Neto me convocou para visionar e catalogar um lote de materiais documentais do acervo da Cinemateca. No auge da chamada geração Paissandu, Cosme, eu e outros amigos saíamos do cinema para o bar Oklahoma e festejávamos nossa convivência, cantando em coro a canção de Aruanda: Ó mana, deixa eu ir / Ó mana, eu vou só. O Sertão do Rio do Peixe ficou com aproximadamente 50 minutos e foi exibido, para agrado do público e dos entendidos, na Maison de France. Foram muito estimulantes os abraços de gente como Gustavo Dahl e Leon Hirszman. Lembro-me de um close da ocasião: Leon elogiando o material, mas fazendo restrições à longueur do Rio do Peixe. Em 1969, graças às astúcias de Cosme, levei os dois filmes ao Festival de Viña del Mar, no Chile, onde tive o prazer de conhecer Joris Ivens, outro ídolo de todo documentarista. No entanto, já ali, algo me dizia que a empreitada não estava de todo completa. Era como se o sertão ainda estivesse à minha espera. Quadro 18 Utopia Sertaneja Enquanto preparava O Sertão do Rio do Peixe, tive a oportunidade de trabalhar com Geraldo Sarno nos seus curtas Dramática Popular, Jornal do Sertão e Os Imaginários. Ajudei-o na produção e no som, cobrindo as ausências de Paulo Rufino e Juarez Dagoberto, que se acidentaram na viagem de ida para o Nordeste. Em 1970, decidi enfiar-me na caatinga mais uma vez, tendo em mira O País de São Saruê. A essa altura, eu já havia me mudado para Brasília e meu irmão Walter, para o Rio. Com ele na assistência de direção e no still, e de novo com Manuel Clemente na câmera, saí em busca daquilo que José Américo chamara de o país mineral. Fui procurar o garimpo de São Vicente, descrito em livro de João Lélis, e encontrei uma cidade-fantasma, habitada por portadores de hanseníase. Ali havia crateras de onde se dizia terem retirado ouro. Pedro Alma, pioneiro do ouro, delirante no seu sonho infantil em busca de riqueza, dizia ter encontrado o esqueleto de um homem morto pela fome no meio de uma mina. Era a própria símile do país pobre montado na riqueza. Em Catolé do Rocha, alguém me levou a Chateaubriand Suassuna, um visionário que afirmava haver urânio em suas terras. Ele relatava a visita de prospectores da Sudene em busca de evidências. Dispondo de duas câmeras, armei um circo para recriar o acontecimento, enquanto éramos levados até o local. Eu empunhei uma câmera, Walter o cercou por todos os lados com uma máquina fotográfica, Manuel Clemente nos filmou a todos. Creio ter sido essa uma das primeiras ocasiões em que uma equipe de documentário brasileiro expunha a si mesma num filme. Se era ficção ou documentário, pouco me importava. Eu queria narrar o fato com um assumido simulacro do próprio fato. Para Chateaubriand, era documentário – tratava-se de comprovar mais uma vez sua teoria. Esse tipo de delírio era o melhor contraponto para o folheto Viagem a São Saruê, de Manuel Camilo dos Santos, que eu conhecia das feiras desde menino. Naquela eldorado sertaneja, havia rios de leite e mel, mulheres e homens eternamente jovens e belos, árvores cacheadas de dinheiro, montanhas de cuscuz. Enfim, a contrapartida exata do sertão esturricado e espoliado, utopia do imaginário popular para um sertão que poderia ter sido, em função do ouro, do algodão, do gado, não fosse a incúria dos homens. Dali retirei o título do longa-metragem. Nada mais que uma simples menção, mas ainda assim um vereador de Campina Grande quis me processar por supostamente explorar o pobre Manuel Camilo. Salvou-me o poeta e advogado Raimundo Asfora. A montagem definitiva do longa foi realizada, entre 1970 e 1971, na ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, na esteira de uma colaboração que Rudá de Andrade havia iniciado com a UnB. Trabalhei com Eduardo Leone, ex-aluno da ECA, que àquela altura já havia montado o curta Vestibular 70, dirigido a quatro mãos por Fernando Duarte e por mim. A base da edição era O Sertão do Rio do Peixe. Trabalhávamos madrugada adentro e fomos várias vezes interrogados pela segurança da universidade a respeito de nossos horários suspeitos, em vista do clima de terror da época. Leone e a USP, a partir daí, tornaram-se meus parceiros fundamentais. Das muitas fotos recolhidas com as famílias sertanejas, uma em particular capturou minha atenção. Um grupo de homens posava em frente à parede sem reboco de uma casa em preto, no estilo do sertão. Bizarros, de culote e perneiras, chapéus quebrados na testa, os sertanejos ladeiam um topógrafo com seu teodolito demarcador de estradas, no centro. Pistolas, punhais e rifles à mostra; um homem exibindo gloriosamente uma garrafa de bebida e um naipe de baralhos; outro, janota de gravatinha borboleta e chapéu de palhinha, não deixam dúvidas quanto ao tipo de civilização e cultura daquelas plagas. Ao lado, no canto do quadro, como se por ali passasse ao acaso, um espantado homem do povo, maltrapilho, com uma galinha debaixo do braço. Junto à serena imponência com que aqueles varões matutos enfrentam o fotógrafo e a posteridade, ele lembra inapelavelmente o carreiro marginal e estupefato junto aos seus bois no painel Independência ou Morte, de Pedro Américo. A esse quadro devo a intuição da primeira parte do futuro O País de São Saruê, com a civilização chegando às terras desertas do sertão. Só na moviola constatei que o filme falava dos três reinos da Natureza: o animal (o gado sendo levado do litoral, fundando as sesmarias e dando origem aos primeiros povoados e vilarejos); o vegetal (a cultura do algodão, outrora fundamental para a economia do Nordeste); e o mineral (as histórias de ouro e urânio que freqüentavam a memória ou a imaginação dos sertanejos). Escrevi um texto muito simples, que foi narrado por Paulo Pontes. Além disso, precisava de alguma coisa que conferisse dimensão poética e marcasse o ritmo, no sentido homérico do termo. Pensei, então, em Jomar Moraes Souto, o maior poeta paraibano da minha geração, da estirpe de João Cabral e Carlos Pena Filho. Mostrei-lhe o copião e, a seu pedido, redigi uma descrição do filme, indicando onde e como seus versos deveriam agir. Com isso, ele escreveu um poema que reputo entre os mais belos da literatura brasileira. Talvez o cinema até atrapalhe um pouco a excelência de suas estrofes. A estrutura sonora do Saruê começa, portanto, com o poema, que é um monólogo do sertão consigo próprio. Quando o homem entra em cena para levantar paredes e construir cidades, o poema cede lugar à narração mais objetiva. Em seguida, o predomínio passa às vozes das pessoas. Temos, então, as três idades: a terra, o homem e a cultura. Na abertura, a canção de Marcus Vinícius fornece a primeira chave do filme: a metáfora do gavião que sobrevoa e do homem que atira contra ele. Mais adiante, gravações da Jovem Guarda fazem um comentário irônico sobre o calor do sertão e o discurso do usineiro (Quero que Vá Tudo pro Inferno) e a presença dos homens do Peace Corps no Nordeste (Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones). Walter, então estudante de design, fez os letreiros do filme com uma tipografia que lembrava a do interior. O passo seguinte foi ampliar os negativos para 35mm, a fim de colocar o documentário nos cinemas. Com a ampliação, o grão abriu ainda mais e acentuou a luz rascante e torturada com que o filme passou a ferir as telas – ou, pelo menos, a tentar feri-las. Na verdade, a luta de Saruê estava apenas começando. Quadro 19 Na Contramão do Milagre O País de São Saruê, com suas imagens em pre-to e branco, de grãos estourados, enfocando gente pobre e tão mal trajada quanto o próprio filme, destoava profundamente do cenário que se desenhava em 1971. O clima era de euforia em muitos círculos, e não só no governo militar. Éramos tricampeões mundiais, em plena vigência do milagre brasileiro. Vivíamos rodeados de aumentativos, jingles e slogans de Brasil grande. Os filmes brasileiros também ficavam grandes, coloridos e vistosos. O que restava aos censores encarregados de examinar meu documentário? A interdição foi sumária e total. A exibição do filme ficava proibida em todo o território nacional. Mesmo disposto a não ceder qualquer corte, procurei saber quais eram os pontos mais sensíveis. Não havia pontos mais sensíveis. O filme estava censurado na íntegra, sem possibilidade de apelação. O parecer de uma censora, acusando o filme de namorar as armas, deu mostras de que sua autora captara as mensagens subliminares de Saruê. Não sem boa dose de ingenuidade, eu havia introduzido referências às armas no cotidiano dos camponeses. Há a caminhada de um sertanejo com espingarda e foice à mão; homens apontando armas para o alto no mercado; outros empunhando uma foice e um martelo em meio a uma roda de ferramentas. Numa das cenas em que posou como ator, meu irmão conversa com um camponês e casualmente devolve-lhe um facão. Essa pequena tomada eu reparti em três segmentos para atribuir o caráter de metáfora. Minha primeira atitude de resistência foi inscrever o filme no Festival de Brasília de 1971. A comissão de seleção o escolheu, mas, em cima da hora, a Fundação Cultural do Distrito Federal, que promovia o evento, o eliminou, colocando em seu lugar o ufanista Brasil Bom de Bola, de Carlos Niemeyer. A alegação do presidente do Conselho, professor Pereira Lira, ex-chefe de polícia de Vargas, era de que Saruê, apesar de ser uma pesquisa sociológica válida, se trata de um filme ideologicamente negativo e contrário à idéia desenvolvimentista do Governo federal. Para a censura, de nada valeram a excelente repercussão do filme junto a críticos estrangeiros, como Leonard Greenwood, Louis Marcorelles e Pierre Kast, o convite para a Semana da Crítica de Cannes (igualmente vetado) e os elogios de gente como Ariano Suassuna. Já morando em Brasília, passei a freqüentar gabinetes e tomar chás de cadeira à espera de uma entrevista salvadora. Numa dessas ocasiões, tremendo como vara verde, fui ao general Antonio Bandeira, que me premiou com a seguinte dedução: Boa coisa esse seu filme não é... Em outra etapa do périplo, pedi uma audiência com o próprio Rogério Nunes, chefe da Censura. Com seu olhar distanciado e metálico, Nunes ouviu-me, consultou o processo e mandou-me esperar enquanto despachava com o Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, no andar de cima. Algumas horas e muitos cafezinhos depois, vi-o chegar do suposto despacho. Em tom grave, afiançou-me que o ministro estava deveras preocupado com a situação do filme, mas nada podia fazer por considerá-lo polêmico e desaconselhável para o momento. Saí dali transido, mas com uma ponta de vaidade por estar dando preocupação ao Ministério da Justiça. Mais tarde, com a cabeça no travesseiro, foi que refleti como havia sido ingênuo. Hoje entendo perfeitamente como Rogério Nunes atravessou dez anos à frente da Censura, tido sempre como homem habilidoso, insinuando-se acessível e subindo ao andar de cima em busca de soluções. Durante oito anos, desdobrei-me na militância com vistas à liberação de Saruê. Cavei cartasconvite de festivais, levei montanhas de papéis à Censura. Nunca estive sozinho. A causa do filme aparecia nos inúmeros atos públicos da cultura contra a censura, nas charges do Henfil e em memoriais como aquele assinado por dezenas de artistas, jornalistas e personalidades do cinema no Festival de Brasília de 1976, pedindo a revisão do processo. Várias vezes fui instado a contemporizar nessa luta, ora em defesa da integridade do festival, ora em função da situação política. Mas a demanda já não era só minha. Era de todo o meio. A Federação de Cineclubes criara o Troféu São Saruê, como parte da batalha contra a censura. A pequena e incipiente classe cinematográfica de Brasília mantinha-se unida e alerta contra os desmandos da censura e da Fundação Cultural. Tampouco admiti fazer concessões contra a integridade do filme – como a sugerida por um amigo conciliador, no sentido de introduzir um discurso do Presidente Médici em Recife. Recusei-me também a fazer uso das abomináveis sessões privadas para figurões da República, em troca de promessas de cumplicidade para liberar. Ao próprio Glauber Rocha neguei procuração para interceder em meu nome, em 1977, quando ele enchia páginas do Correio Braziliense com sua apologia de Geisel e Golbery. Por fim, a distensão chegou no ano de 1979. No empenho de popularização do governo Figueiredo, passaram pela estreita porta da concessão, uma certa liberdade de imprensa, músicas de Chico Buarque, a peça Rasga Coração, de Vianinha e, de quebra, O País de São Saruê. Na Censura, fui recebido afavelmente, peguei meu certificado e saí feliz. Alegrou-me principalmente a noção de que não era uma vitória pessoal isolada, mas parte de uma onda reprimida, sinal microscópico da volta do país ao estado de direito. Na edição de 1979 do Festival de Brasília, o filme foi recebido como o resgate de uma antiga dívida. O júri oficial optou por criar um prêmio especial para distingui-lo, em vez de macular o renome do cinema brasileiro dando o prêmio máximo a um filme pobre e velho de dez anos. Na noite de exibição, aceitei o encargo de portavoz dos jornalistas, bradando contra a sonegação de informações pela Fundação Cultural. Nada mais legítimo de minha parte, eu que sempre me considerei um jornalista e sinto o sangue latejar mais depressa quando estou no mesmo barco com jornalistas. Ademais, a imprensa e a crítica tiveram um papel fundamental em toda a batalha pela liberação de Saruê. O lançamento se deu em 1980, com distribuição da Embrafilme. Houve uma memorável préestréia promovida pela Federação de Cineclubes no cinema Ricamar, no Rio, à qual convidei Luiz Carlos Prestes e a classe cinematográfica. A crítica ressaltou as imperfeições técnicas como valor de criação. No entanto, essas mesmas deficiências, somadas ao preto-e-branco, num momento em que todo o cinema brasileiro era feito a cores, responderam por uma certa defasagem na chegada aos cinemas. O filme não fez sucesso comercial, mas foi exaustivamente exibido em festivais, eventos e cineclubes. No ano de 2000, integrou a lista dos 10 títulos mais marcantes da história do documentário brasileiro, apurada entre especialistas pelo Festival É Tudo Verdade. Os internegativos de 35mm sofreram a ação do tempo e foram restaurados, em 2004, por iniciativa do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, com patrocínio da Petrobras. Na esteira disso, o CPCB propôs à Videofilmes a edição do DVD, em 2006. Quadro 20 Mini-odisséia do Atraso A Bolandeira é puro fruto do acaso, como ocorre amiúde nos documentários. Eu tinha curiosidade pelos chamados engenhos de pau, que conhecia só de gravuras. Na segunda das três viagens que resultaram em O País de São Saruê, nosso motorista tomou um desvio para me mostrar aquele que aparece no curta. Foi na região de Tenente Ananias, perto da fronteira da Paraíba com o Rio Grande do Norte. O pequeno engenho de rapadura estava em plena atividade, com os partidos de cana sendo transportados a pouca distância do canavial. O processo completo estava ao alcance da nossa câmera. Desisti da pauta do dia e permaneci ali, documentando o trabalho. Diante de mim, a bolandeira (as grandes rodas) e as almanjarras (as hastes presas aos bois) confirmaram seu fascínio. Por um lado, estavam defasadas em relação aos modernos engenhos de motor, representando um recuo à idade da madeira. Por outro, impressionava-me a capacidade do sertanejo de produzir aquela arquitetura complexa e milimétrica de engrenagens, dentes e eixos de madeira e ferro. Para mim, havia ainda um aspecto lúdico na seqüência de trabalhos, que apelava à memória da infância e, ao mesmo tempo, deixava patente a habilidade dos trabalhadores. Excitados, entre goladas de garapa de cana, cobrimos em rápidas tomadas o fluxo das tarefas, da colheita da cana à retirada da rapadura dos caixilhos. O único material rodado em outro lugar foi um minuto de mercado. Utilizei essa exposição didática não numa perspectiva lírica, a exemplo do que Humberto Mauro fazia no Ince, mas como pretexto para falar do atraso tecnológico e das más condições de trabalho, de acordo com o figurino engajado da época. Na hora da filmagem, pensava num segmento do Saruê. Na verdade, estava filmando sem objetivo preciso. Esperava pelo recado que o próprio material iria dar. Quando montava O Sertão do Rio do Peixe, ouvi claramente aqueles dez minutos clamarem: Olha, estou aqui, não me misture! Obediente, editei-o à parte como o curta A Bolandeira. Jomar Moraes Souto também separou um trecho do seu grande poema para Saruê, deixando implícita a operação nos seguintes versos: Filho órfão da fazenda / o engenho veio depois. / Era a roldana, a moenda / puxada em junta de bois. Para o som do carro de bois, que comenta tristemente algumas cenas, recorri a um velho arquivo de áudio já utilizado em Vidas Secas. Finalizei o curta mediante um apoio inédito da filial carioca do Banco Industrial de Campina Grande. Lançado no Festival de Brasília de 1969, o filme ganhou o Prêmio do Clube de Cinema. Em seguida, rodou por festivais em Manaus, Viña del Mar, Havana e Pesaro (Itália). No Rio, ficou em cartaz por várias semanas, acompanhando o longa norte-americano Harold and Maude – Ensina-me a Viver. O programa não podia ser mais desencontrado, mas eu me valia desse tipo de defasagem para falar do filme. Era a época de 2001, uma Odisséia no Espaço, com seus anéis futuristas flutuando na estratosfera, e eu apresentava A Bolandeira, com sua engrenagem rústica, como a mini-odisséia do atraso. Enquanto os engenhos de pau desapareciam inexoravelmente da paisagem nordestina, o filme ganhou uma sobrevida em 2001, por obra da obsessão de Walter Salles e Walter Carvalho. Ao adaptar o romance albanês Abril Despedaçado, Salles procurava alguma coisa que traduzisse para o ambiente do sertão brasileiro o ciclo de morte do qual a família Breves não consegue escapar. Walter, meu irmão, diretor de fotografia do filme, mostrou-lhe A Bolandeira. Generoso, Salles não apenas tornou pública a inspiração do objeto cenográfico, como mandou restaurar os negativos do meu curta, que estavam em franca degeneração. Meu irmão e meu sobrinho Lula Carvalho partiram numa longa viagem de pesquisa de locações para Abril Despedaçado. Reencontrar a bolandeira de Tenente Ananias virou questão de honra. Depois de muito procurar, perguntar e fotografar, acharam-na em ruínas, com os dentes de madeira, vestígios da antiga engrenagem, soterrados no chão seco. Walter recolheu dois dentes, colocou-os numa caixa e me enviou pelo correio, acompanhados dos versos de Jomar Moraes Souto: Os dentes da bolandeira / não têm da boca o céu. / Deles nem a bagaceira / sabe as palavras de mel. Mais adiante, localizaram outra bolandeira intacta, apenas tomada pelo mato e o abandono. Foi onde Walter fez a foto abaixo, com Lula na mesma posição que eu, 30 anos antes. A peça que aparece em Abril Despedaçado, contudo, é outra ainda, encontrada e reconstituída pela produção no interior da Bahia. Pensei em levá-la para uma entrequadra de Brasília, atrelar uns bois e mostrar seu funcionamento às crianças, servindo-lhes caldo de cana. Uma dia, quem sabe, ainda dou esse destino a uma bolandeira. Quadro 21 Pedras na Lua Na terceira viagem para filmar O País de São Saruê, houve um momento em que paramos para tomar água num quiosque de beira de estrada, a meio caminho de Santa Luzia de Sabugi. Ouvi batidas de ferro e soube que provinham de uma mina, do outro lado de um morro. Do alto da elevação, divisei um vale cortado por um rio seco, onde um grupo de pessoas trabalhava nos restos de uma mina de xelita. Tal como acontecera com A Bolandeira, achei que o lugar merecia nossa atenção. Mereceu, de fato, dois dias de filmagem. Documentamos, com preocupação didática, todo o ciclo de extração, que incluía a explosão na mina, o esfarelamento das pedras, o esmagamento sob o enorme quimbalé (na foto ao lado) – o que não virasse pó era a valiosa xelita – e a lavagem. Tirei partido do movimento do quimbalé, replicando-o com a câmera, numa das seqüências de que mais gosto no curta A Pedra da Riqueza. Tanto quanto a ação, interessavame a sensação de vertigem provocada pelo movimento. Como só tínhamos uma câmera, pedi a alguns garimpeiros que reconstituíssem a correria do momento da explosão. Na hora de montar Saruê, não consegui alojar esse material, que conformava um episódio completo em torno da xelita. Deixei em reserva. Tempos depois, quando revia o copião num pequeno auditório da UnB, achegou-se um humilde auxiliar de serviço e reconheceu a mina onde ele um dia trabalhara com o irmão. Era o paraibano José Laurentino, o Barra Limpa, que havia participado da equipe de produção de alguns filmes na universidade. Inadvertidamente, ele se oferecia como o narrador de que eu precisava para dar forma final ao curta. Gravei seu comentário diante das imagens na moviola, inaugurando um procedimento que voltaria a usar em Brasília Segundo Feldman. Aproveitando a semelhança entre a mesa de montagem e o móvel sobre o qual os garimpeiros separam a areia e as pedras do minério, Fernando Duarte fez algumas imagens para servir de ponte entre o garimpeiro e o ex-garimpeiro, vale dizer entre o mundo da mina e o do cinema. Na moviola, afinal, é que selecionávamos o ouro do filme. Ao desejo de romper com a narração convencional somava-se a intenção de aplicar uma trilha sonora produzida no laboratório de música experimental da UnB. O músico e professor Fernando Cerqueira compôs uma partitura concretista para bigornas, marretas, chapas de ferro, pilões rilhando pedrinhas, água escorrendo de torneiras. Nosso mote era água mole em pedra dura, tanto bate até que fura. A execução se deu num depósito de ferro velho. Na mixagem, precisei explicar que as batidas sonoras não deveriam coincidir com as batidas na imagem, uma vez que não lidávamos com ruídos, mas com música. No fim das contas, para proteger a clareza do comentário, tive que sacrificar a nossa ousada concepção sonora, reduzindo-lhe o volume e o número de intervenções. O que poderia ser uma estrutura sonora fornida e envolvente virou uma sombra pálida que só os ouvidos mais atentos percebem e completam. Devo confessar que com freqüência acovardo-me na mixagem do som, querendo que se ouça principalmente o que diz o homem. A Pedra da Riqueza foi montado na Cinemateca do MAM por João Ramiro Mello. Fizemos uma apresentação no estilo do cordel, com uma xilogravura de minha lavra. Por fim, ampliamos para 35mm. O ambiente impregnado de pó chegou a sujar a lente, como se pode ver em algumas cenas, e enfatizou a granulação da imagem. Mesmo assim, ou talvez justamente por essa identificação entre fundo e forma, o curta agradou em cheio. Ficou meses em cartaz como complemento de Dersu Uzala, do meu querido Dragão Kurosawa. Ganhou uma Coruja de Ouro, o Prêmio Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e tem recebido freqüente destaque entre os curtas documentais brasileiros. A consciência dos pobres exploradores da chamada Mina das Cacimbas a respeito do destino de seus produtos não ia além do mercado onde vendiam as pedras, em Campina Grande. Mal sabiam que o minério estratégico era exportado para os Estados Unidos, onde entrava no revestimento de naves espaciais e artefatos bélicos. Ao enfatizar esse aspecto, procurei transcender o mero registro do trabalho e integrar o filme a minhas observações sobre as contradições da condição brasileira e, em particular, nordestina. Daí o subtítulo A peleja do sertanejo para desencantar a pedra que foi parar na lua com a nave dos astronautas. Quadro 22 Pantasmas A estranha palavra não saíra de minha cabeça desde que o preto Manuel a pronunciou na despedida das filmagens de Aruanda, em 1959. Protagonista do filme, ele se afeiçoara à equipe e estava desolado enquanto encaixotávamos o equipamento. Alguém apontou as latas de negativo e disse que ali estava contido todo o nosso duro trabalho. Ao que ele respondeu, lapidar: Vosmecês são uma nação de gente fina, não sei prá quê estão levando a minha pantasma presa aí nessas latas...” Eram farrapos de palavras antigas, talvez restos de um português quinhentista que ainda não tinham sido apagados da oralidade nordestina. Pantasma, para ele, certamente equivaleria a sombra, vulto, alma, retrato, qualquer cópia imperfeita das coisas. Podia ser uma derivação de grafias antigas com ph. Fantasma em inglês é phantom; e tela de cinema em espanhol é pantalla. O fato é que a expressão ficou ecoando em meu espírito, sugerindo uma certa definição de arte. A arte não é a realidade, mas apenas o signo dela, pantasma. Penso que isso tem a ver com um aspecto mágico da realidade nordestina – a possibilidade mutante, os exageros de imaginação que traduzimos como fantasia compensatória, a mania de quem conta um conto aumenta um ponto. Talvez involuntariamente, ao longo da minha carreira nordestina, elaborei um tipo de imagem oscilante, de baixa freqüência, sobretudo nos filmes ampliados de 16 para 35mm. A relativa imprecisão, esse caráter pouco fixo da minha imagem, vira uma espécie de terceira ou quarta via do que seja realidade. Termina por espelhar uma coisa meio fantasmagórica – ou melhor, pantasmagórica – como os fogos fátuos, no limite entre o natural e o sobrenatural. A imagem como algo que se evola. Além disso, muitos desses filmes retratam mundos evanescentes, em vias de desaparecimento. Pantasmas de romeiros, de engenhos e trenzinhos, de tangerinos, de garimpeiros cobertos de pó, de riquezas inatingíveis, de santos e bonecos de vitalinos, de gado morto na terra esturricada. Resolvi aplicar essa palavra-síntese ao conjunto de meus filmes ligados ao Nordeste, para distingui-los dos filmes brasilienses. Já em outubro de 1974, uma mostra em Brasília com o título de Pantasmas reuniu cinco filmes: Romeiros da Guia, A Bolandeira, A Pedra da Riqueza, Incelência para um Trem de Ferro e O Espírito Criador do Povo Brasileiro. Este último, embora realizado em Brasília, trata basicamente de arte popular e barroca nordestina. O retorno ao Nordeste, minha nave-mãe, é para mim uma questão umbilical. Sou um cineasta retirante. Saí do Nordeste, mas o Nordeste nunca saiu de mim. Compulsivamente, estou sempre voltando a esse chão do meu trabalho. Mesmo os filmes citadinos guardam uma ligação com o cenário de fundo das minhas origens. Entre os filmes que fiz depois de estabelecido em Brasília, vários lidam, na verdade, com questões nordestinas. É o que acontece em Incelência, Pankararu e No Galope da Viola (retornos afetivos e efetivos ao cenário do Nordeste), Conterrâneos Velhos de Guerra e nos perfis de políticos nordestinos de O Homem de Areia e O Evangelho Segundo Teotônio. Sem falar, naturalmente, em O Engenho de Zé Lins. Como resultado de tanta pantasmagoria, fui eleito presidente de honra da Associação de Produtores e Cineastas do Norte e Nordeste, criada em 2003. Quando o poeta piauiense Climério Ferreira, professor da UnB, resolveu escrever um livro inspirado em meus filmes, escolheu como título A Gente e a Pantasma da Gente. Mas nada disso é muito simples. Sinto que hoje vivo uma crise de identidade. Mais de quarenta anos depois de sair do Nordeste, quando lá chego não mais conheço as pessoas, nem reconheço o contexto econômico e social de minha época, por mais que a infra-estrutura continue a mesma. Em Brasília, tampouco me sinto um brasiliense. Desenraizado, sobrepairo num certo limbo, entre o céu e a terra. Brasília sempre foi o meu país estrangeiro, o máximo de distância que me permiti tomar em relação à minha nave-mãe. Quadro 23 Um Candango a Mais O convite de Fernando Duarte era irrecusável. Tratava-se de criar um núcleo de produção de documentários dentro da Universidade de Brasília, com vistas a fazer a crônica da cidade nova e do seu entorno, o Centro-Oeste. A capital ainda vivia o drama de instalar a civilização num meio inóspito, com índios, histórias de bandeirantes e resquícios de um passado colonial. Com base na afinidade descoberta à época do Cabra, Fernando aproveitou minha presença no Festival de Brasília de 1969, onde exibi A Bolandeira, para fazer sua proposta. A princípio, eu passaria dois meses formatando o projeto do núcleo. Endividado e mal pago no Rio, não pestanejei. À primeira vista, Brasília me pareceu fria, nova demais com seu urbanismo nada tradicional. Só podia ser um destino provisório. Mas Fernando costuma fazer uso de sua doçura humana para sutilmente envolver os amigos em seus objetivos. Quando recebi o contrato para assinar, lá constavam três meses, em vez de dois. Nesse período, ele cuidou de me enredar com os alunos, levando-me a compartilhar minha ainda pequena experiência. A simpatia foi recíproca, e eu acabei ministrando um curso de verão. Elaborei um projeto com o título de O Homem do Cerrado, que foi adotado como programa do departamento de cinema. A partir do curso de verão, instalou-se em 1970 o curso profissional de cinema do Instituto de Artes e Arquitetura. Dois anos depois, seria extinto pelo reitor José Carlos Azevedo, restando-nos pelo menos o orgulho de ver mais da metade dos alunos que se transferiram para a Universidade Federal Fluminense ser aproveitada como professores. Na UnB, o curso só reapareceria na década de 1990, no âmbito da Faculdade de Comunicação. O tal núcleo de documentários jamais se efetivou, embora sua idéia voltasse à baila na década de 1980, quando se criou o Centro de Produção Cultural e Educativa (CPCE) da UnB. Eu acabei aceitando um contrato definitivo de professor pelos 22 anos seguintes. Já com 36 anos vividos no Distrito Federal, não posso dizer que criei raízes, mas certamente venho fazendo ali parte importante da minha história. Logo que me instalei, comecei a procurar o que havia de afim com o meu contexto original e o meu trabalho anterior. Um dos pontos de contato era a semelhança entre o cerrado e a caatinga nordestina, com a diferença de que o sertão goiano é molhado, irrigado por rios abundantes. Passei a viajar pela região nos finais de semana e explorar o vasto horizonte que divisava desde a cidade. Notei a íntima interação existente entre a área urbana e o campo. Avaliando o imenso contingente de operários que foi deslocado para a construção da nova capital, constatei uma grande maioria de nordestinos, muitos dos quais permaneceram na periferia e nas cidadessatélite. Isso era muito visível nas feiras, com seus costumes e cantadores, ou na presença de artefatos como a bolandeira perdidos no meio do Planalto Central. Cedo concluí que, afinal de contas, Brasília era profundamente nordestina. E eu, um candango a mais. Quadro 24 Brasília e o Documentário O clima do curso de cinema era puro entusiasmo. A passagem de escritores, gente de teatro e sobretudo cineastas por Brasília era motivo para encontros com os estudantes e concorridas palestras. Nessa primeira turma estavam Alberto Roseiro Cavalcanti, Zeca Nobre Porto, Miguel Freire, Nuno César Abreu, Carlos Augusto Ribeiro Jr., Waldir de Pina, Lael Rodrigues e Tizuka Yamasaki, principal catalisadora das energias do grupo. Fernando Duarte e eu elegemos a prática do documentário como ferramenta de ensino, o que dispensava a constituição de caros estúdios e a aquisição da parafernália do filme de ficção. O caráter inaugural de Brasília favorecia essa opção. O acontecimento estava ao alcance de nós. Já no primeiro ano, mobilizamos professores e alunos para filmar dois curtas, Brasília Ano 10 e Vestibular 70. Geraldo Sobral, diretor do primeiro, tinha sido um cineclubista marcante, junto com o carismático palestrante Rogério da Costa Rodrigues, e também acabara de ser contratado como professor. Heinz Förthman, o célebre cineasta-etnógrafo que havia trabalhado com Darcy Ribeiro, foi outro que se juntou a esse pequeno corpo docente. Aos técnicos era mais fácil se improvisarem em professores, uma vez que, ao explicarem a operação do equipamento e supervisionarem os trabalhos produzidos, disso faziam o próprio curso. Já eu tive que queimar as pestanas na biblioteca para montar um currículo baseado em história do cinema, análise de filmes e teorias do documentário. O que me dava legitimidade era, sobretudo, a postura revolucionária herdada pela UnB de seus primeiros anos, que permitia a integração de profissionais sem experiência pedagógica específica. Tudo ali estava ainda nascendo. A mim parecia natural que Brasília, com tanto por registrar e interpretar, se dedicasse ao documentário. Levantei essa bandeira tão alto que provoquei alguma celeuma. Havia quem dissesse que a vocação para o documentário não era de Brasília, mas do Vladimir. A polêmica acabou por fortalecer nossa escolha, até porque havia aí uma razão estratégica. Brasília era – e continua a ser – um centro administrativo, e não financeiro, comercial ou industrial. Bem diferente de outras grandes cidades, a máquina do estado e a universidade eram as poucas instâncias de financiamento à mão dos cineastas. Na minha visão, por certo oportunista, o cinema documental deveria andar a par com os grandes projetos regionais e nacionais, sendo subvencionado pelos órgãos públicos. Desde o início, procuramos fazer com que o aparelho do estado servisse à implantação do curso. Uma das primeiras moviolas instaladas em Brasília, por exemplo, foi enviada, a nosso pedido, de um setor do Ministério da Agricultura no Rio. A primeiríssima, aliás, foi objeto de uma façanha minha e de mais três ou quatro professores, que nos cotizamos e a arrematamos em leilão no consulado americano no Rio. Transportamos nosso tesouro desmontado na mala do carro. Através do curso, pretendíamos afirmar e fomentar a existência de um cinema brasiliense. Queríamos formar mão-de-obra que, entre outras coisas, atendesse às demandas locais, até então encomendadas a empresas de fora. Além disso, eu acreditava que a UnB pudesse se transformar num centro produtor de documentários científicos e didáticos para uso em todas as universidades públicas brasileiras. As ambições estavam, certamente, além das probabilidades, mas forneceram massa crítica para a consolidação de um cinema próprio de Brasília. Quadro 25 Rito de Passagem O Minhocão, como se chamava o prédio do Instituto Central de Ciências, era um monumental esqueleto inacabado, um mar de frestas por onde zunia um vento frio naquele janeiro de 1970. Mais de 5.000 jovens acorriam de várias partes do país para tentar uma vaga na Universidade de Brasília. Fernando propôs documentarmos a quatro mãos o vestibular, auxiliados por alguns universitários. Embora tenhamos planejado a logística do filme juntamente com a comissão do vestibular, não prevíamos nenhum tipo particular de documentário. No dia D, Fernando e Heinz Förthman empunharam a câmera Arriflex 16mm e eu saí à cata de entrevistas com um gravador não sincronizado. À medida que explorávamos assunto e cenário, mais nos entusiasmávamos com o seu teor cinematográfico. Do estacionamento aos guichês de inscrição, tudo guardava o aspecto de canteiro de obras. O local da prova, um subterrâneo com iluminação improvisada, tinha o clima sombrio de um saguão de torturas. Havia mesmo um quê de ficção científica, uma espécie de distopia arquitetônica em torno dos jovens encasacados. Fernando armou um trilho ao longo de uma calçada elevada para filmar os vestibulandos de um plano ligeiramente superior. Circunstância rara nos documentários, beneficiamo-nos do fato de as pessoas estarem entretidas com a prova, aptas a ser meramente observadas. A tensão dos vestibulandos ficava evidente nos seus gestos, olhares e posições. Na montagem, reunimos uma seqüência inteira de fixações orais, com alunos roendo unhas, mordendo pontas de lápis, gargalos de garrafas etc. O filme deixava de ser uma mera reportagem quando ressaltávamos, mais que o fato do vestibular, as condições difíceis em que os alunos enfrentavam aquele rito de passagem. Exploramos o frio, o vento que soprava do lago, os corpos em desconforto. Nas entrevistas, indaguei sobre as expectativas e acompanhei as comemorações dos aprovados. Fernando foi sensível o bastante para captar placas, letreiros e detalhes que adensavam o drama do vestibular. Na noite que antecedeu a divulgação dos resultados, filmamos o processamento de dados no megacomputador Galileu. Nas férias de julho, por obra do acordo com Rudá de Andrade, fui montar o filme na ECA-USP com Eduardo Leone, na primeira de nossas colaborações. Cecil Thiré, à época também professor na UnB, ajudou a organizar o material e Maria Dora Mourão foi a assistente de montagem. Para enfatizar o lado juvenil da experiência e seu aspecto de prova vital, agregamos a canção Os Argonautas, de Caetano Veloso (Navegar é preciso / Viver não é preciso). Mas a trilha ambiental, de inspiração eletrônica, foi composta por Conrado Silva, numa proposta de integração com outros departamentos, no caso o laboratório de música experimental. A trilha pretendia sublinhar a atmosfera de exasperação nervosa. Era, sem dúvida, um atrevimento estimulado pelo desejo de experimentação reinante na universidade. Não posso dizer que a aceitação foi unânime. O reitor José Carlos Azevedo não encontrou no filme o institucional convidativo que imaginava, mas uma visão humana e dramática do evento. A partir daí, entramos para a sua lista de alerta. A fim de desfazer um pouco da má impressão, eu e um grupo de alunos bolamos um projeto de animação sobre a implantação do feto no útero materno. Mais didático e inofensivo, impossível. Os desenhos, minuciosos, eram de Tizuka Yamasaki. Vestibular 70 teve a primazia de conquistar o primeiro prêmio para o cinema brasiliense, no I Festival Brasileiro de Curta-metragem do Jornal do Brasil, em 1971. Quando Fernando chegou do Rio com o troféu, fui esperá-lo no aeroporto e fizemos o devido registro fotográfico da efeméride. Quadro 26 Agosto Fatídico Costumo dizer que a UnB foi fundada diversas vezes, à medida que ia sendo agredida. Fiz Barra 68 para contar essa história. Quando cheguei em Brasília, apenas um ano e meio havia decorrido desde a invasão do campus por tropas do Exército, em agosto de 1968. Naturalmente, os ecos da violência ainda eram bastante palpáveis. Naquele dia fatídico, a ditadura fizera sua segunda investida brutal contra a universidade, repetindo com maior truculência a repressão de 1964. Correra sangue no campus e por pouco não se dera uma tragédia de maiores proporções. Impressionava-me, sobretudo, o relato de que centenas de estudantes foram detidos e encaminhados, com as mãos na nuca, para a quadra de basquete convertida em arremedo de campo de concentração. Logo a quadra de basquete, local da primeira fundação da UnB! Já em 1972, ouvia Miguel Freire falar de um certo material filmado por Hermano Penna durante as escaramuças da invasão. Mas só na década seguinte pude examinar os pequenos rolos de filme, registro tecnicamente precário mas cheio da urgência da ocasião. A idéia de Barra 68 – Sem Perder a Ternura foi se catalisando em torno de materiais que pareciam exercer uma mútua atração. Pesquisando nos armários da Faculdade de Comunicação, topei com cenas do dia-a-dia da universidade em 1968, que ajudavam a cobrir fatos e pessoas. Eu próprio fizera uma grande entrevista com Darcy Ribeiro, em 1993, com vistas a um programa de TV que se chamaria Darcy Ribeiro – Os Passos da Paixão. Na ocasião, Darcy falou extensivamente, entre muitos outros assuntos, sobre o seu sonho de criar uma universidade livre, viva e inovadora, como convinha às idealizações que cercaram a construção de Brasília. A confluência dessas imagens e idéias me permitia reviver todo um momento da UnB, quando ela deixava de ser apenas o sonho de Darcy para constituir o território livre dos estudantes, uma espécie de lugar sagrado. Após o assassinato do estudante Edson Luís, no Rio, em 1968, a UnB reagira com significativo protesto e manifestações de rua. Estando sediada na capital da república, a universidade desempenhava importante papel na luta pelas liberdades democráticas. Os militares escolheram esse momento para calar a resistência. Invadiram o campus e fizeram triagens em busca dos líderes estudantis. Com um pequeno financiamento do Pólo de Cinema do governo do DF, em 1999 comecei a tomar os depoimentos de professores e alunos que guardavam memórias da invasão. Manfredo Caldas, que acabava de abrir sua produtora Folkino, produziu e montou comigo o filme. Já então aposentado como professor, integrei à equipe ex-alunos como André Luís da Cunha, diretor de fotografia da nova geração, e Eduardo Sodré, que voltaria a ser meu assistente em O Engenho de Zé Lins. Tirei partido do encontro anual dos ex-estudantes de Arquitetura para reunir um grupo maior de personagens que, espontaneamente, se puseram a reconstituir, 30 anos depois, as cenas de sua detenção, na própria quadra de basquete. Procurei levar outras pessoas a revisitar os locais de suas lembranças e evocar não apenas o acontecimento, mas seu sentimento em relação à UnB da época. Assim foi com o fotógrafo Luís Humberto, a escritora Ana Miranda, o artista plástico Xico Chaves, o assessor parlamentar Cláudio Almeida, o jornalista Marcus Santilli e o cientista Roberto Salmeron. Em muitos encontrei uma memória orgulhosa daquilo que havia sido uma forma de inserção na vida política, ali por volta dos seus 18 anos. Mesmo para os que se diziam politicamente neutros, como o ex-aluno Waldemar Alves, atingido por uma bala na fronte durante a invasão, o episódio representou algo mais que uma mera tragédia pessoal. Eu trouxe Waldemar à frente da câmera para relembrar o disparo que quase custou sua vida. Flagrantes de um muro e uma mesa manchados com o seu sangue estavam nos preciosos filmetes que encontrei nos armários da universidade. Quadro 27 Herói, Mártir e Vilão Reconheço em Barra 68 uma estrutura clássica baseada em personagens bem definidos. Darcy Ribeiro é o herói, dono da palavra fundadora, aquele que jamais morrerá. As cenas emocionantes de sua aclamação ao receber o título de doutor honoris causa na UnB, poucos meses antes de sua morte, abrem e fecham o filme. O líder estudantil Honestino Guimarães ocupa o lugar do mártir, a grande ausência que se faz presente através de memórias alheias. Ele era o mais procurado à época da invasão, dado o seu poder galvanizador. Foi o último presidente da UNE na clandestinidade e acabou no rol dos desaparecidos políticos. Por fim, para o exalmirante e ex-reitor José Carlos Azevedo, resta o papel de vilão. Nunca me arrependi desse casting, pois sei que conto com a aprovação de todos os que, como eu, viveram na universidade sob o tacão de Azevedo. Os demais personagens formam o coro, que comentam os acontecimentos. Um núcleo central desse coro é formado por Hermano Penna, Miguel Freire e Tancredo Maia, quase burlescamente empenhados na recomposição de seus movimentos para filmar a invasão de 1968. Esse alívio cômico serviu-me para afastar a idéia de martírio, que não deveria prevalecer no filme. No fundo, eu pretendia o tom de uma aventura da juventude, a partir da qual seus participantes se tornaram homens. De minha parte, fazia o filme também para compensar o atraso com que cheguei à UnB em relação àquele episódio. Havia ainda o relato de um momento de desafio lúdico, em que um aluno fizera acrobacias na tabela da quadra de basquete, diante das tropas ocupantes. Ambientei esse depoimento com o grupo de acrobatas Esquadrão da Vida, num dos poucos momentos em que contei com meu irmão Walter na câmera. Essa cena exemplifica minha tendên cia a minimizar o fator entrevista dentro dos filmes, associando-a, sempre que possível, a circunstâncias de humor, performance ou fabulação. Na edição de imagem e som, Manfredo e eu tratamos de explorar o diálogo entre passado e presente que os materiais possibilitavam: as pontes entre filmes da época e imagens atuais; a identificação de pessoas em filmes antigos; e até os estalidos de luz dos velhos negativos, que sugerem tiros no clima de conflito. O título Barra 68 traz à lembrança não apenas o de Vestibular 70, mas toda uma linhagem de filmes que admiro, como Europa 51 e Alemanha Ano Zero, de Rossellini, e Maranhão 66, de Glauber Rocha. Mas fiz questão de agregar o subtítulo Sem Perder a Ternura para aludir a uma noção moral própria daquela época. Havia então uma comunidade que apenas começava a se identificar consigo mesma, mas já disposta – romântica e generosamente – a melhorar o Brasil. Foi a uma Brasília bem distinta, a do ano 2000, que apresentei o filme na sessão de abertura do festival. Aos três prêmios lá recebidos, juntou-se depois o Prêmio Especial do Júri nos festivais de Recife e do Ceará. Mais que qualquer distinção, agrada-me ter avançado um pouco mais na crônica humana, social e política de Brasília. À tarefa de construir uma memória da cidade tenho me dedicado desde que por lá me instalei como modesto caçador de imagens. Quadro 28 Por um Cinema Brasiliense A gênese de um cinema brasiliense é de difícil mapeamento, já que a cidade nasceu esquadrinhada pelas câmeras de cinejornais e de cineastas de outros estados, fascinados com a epopéia juscelinista. Mas o primeiro marco autóctone, já sob os auspícios da UnB, foi o documentário curto Fala, Brasília, rodado por Nelson Pereira dos Santos com seus alunos, em 1965. O filme fazia um resumo dos diversos falares e sotaques lá aportados no fluxo da migração de operários, funcionários e suas famílias. Era o primeiro manifesto cinematográfico da cultura candanga, germe de uma idéia que Fernando Duarte e eu, a duras penas, tentamos levar adiante. A partir de Vestibular 70, surgiu uma segunda leva de produções, patrocinadas pela universidade ou por órgãos públicos. Brasília Ano 10 foi custeado pela Secretaria de Turismo do Governo do DF, a partir dos festejos de 21 de abril de 1970. Polivolume, de Fernando Duarte, feito em torno de uma escultura de Mary Vieira, foi bancado pelo Itamaraty. Isto sem falar numa produção independente como Caminhos de Valderez, de Jorge Bodanzky e Hermano Penna. Tivemos, ainda, Oficina Básica de Música, de Carlos Augusto Ribeiro Jr., e Rito Krahô, que Heinz Förthman deixou inacabado. Paralelamente, uma série de registros foi tomando corpo na colaboração entre professores e alunos. Formamos, por exemplo, várias equipes para documentar a chegada dos jogadores tricampeões a Brasília, ápice da euforia do período Médici. Durante muitos anos, mesmo depois da absorção do currículo de cinema pela Faculdade de Comunicação, lecionei a disciplina Jornalismo Cinematográfico, ajudando a formar uma mentalidade favorável ao cinema dentro da universidade. Ainda em 1970, organizamos o I Encontro Nacional de Cursos de Cinema. Em tudo isso havia um sentido de missão, que contribuía para superar a solidão profissional dos que lidavam com o cinema em Brasília. A carência de interlocutores não raro gerava inseguranças e até mesmo fases de depressão. Era preciso criar uma comunidade e inventar opções de trabalho. A partir de 1971, eu já filmava para Conterrâneos Velhos de Guerra, muito embora ainda não soubesse. Aproveitava as folgas de fim de semana para registrar o movimento das feiras, a vida nas cidades-satélite, acontecimentos como a chegada do Papa, a inauguração de um estádio etc. Fazia-o sempre com alunos, entre os quais Jacques Cheuiche, Marcelo Coutinho e Alberto Roseiro Cavalcanti (um dos fotógrafos de O Evangelho Segundo Teotônio). A eles dizia: Não tem mistério em fazer filme. É o que penso, de verdade. Às vezes posso ser meio estabanado, vou errando para acertar depois – ou então jogar fora. Mas não faço pose. Sempre me dei bem com a energia dos jovens, com o vigor e o desejo de quem ainda não teve oportunidade de fazer. Para filmar o espontâneo, nada melhor que profissionais virgens, sem os vícios do ofício. Recentemente, em O Engenho de Zé Lins, estimulei João Carlos Beltrão, jovem professor da Universidade Federal da Paraíba, a fazer sua estréia absoluta, sem que nunca houvesse fotometrado um filme. O empenho de alunos, ex-alunos e professores da UnB levou, naturalmente, à necessidade de formarmos uma associação de classe. Como primeira iniciativa, na célebre Jornada de Cinema da Bahia que serviu de berço à ABD, em 1973, fui encarregado de criar a seção brasiliense da entidade. Organizei um fichário do pessoal de cinema e botei uma placa na porta da minha sala de professor: Associação Brasileira de Documentaristas – Representação em Brasília. Assim ficamos até a criação de sede própria e eleição da primeira diretoria da ABD-DF, cinco anos depois. Para facilitar o acesso a verbas de produção e equipamentos, fundamos o Ceprocine – Centro de Produção Cinematográfica, semente e núcleo reivindicador do futuro Pólo de Cinema e Vídeo do DF, criado em 1990. Outro sinal de afirmação da cinematografia candanga foi o I Festival do Filme Brasiliense, que organizei em 1982, reunindo quase 40 títulos. No saguão do cinema da Cultura Inglesa, montamos uma exposição de fotos e equipamentos que daria origem ao acervo da Fundação Cinememória. No âmbito do Festival de Brasília, desde cedo, fizemos um trabalho político de valorização do cinema local. Minha militância pelo fortalecimento do cinema brasiliense quase me levou a ser politicamente linchado no Rio, depois que dei uma entrevista ao Correio Braziliense pedindo que a sede da Embrafilme fosse transferida para Brasília. O argumento, talvez um tanto simplório, era de que isso criaria um foro mais isento e eqüidistante das disputas entre Rio e São Paulo, além de melhor integrar a empresa à máquina do governo federal. Dessa vez, não consegui fazer mais que barulho. Quadro 29 Na Arena Política A prática do cinema e a atuação política, embora não se confundam, nunca foram excludentes na minha maneira de pensar. Como faço onde quer que esteja, em Brasília sempre freqüentei debates políticos, especialmente na universidade e no Congresso, pólos da inteligência na cidade. Sempre fui crítico em relação aos poderosos do dia, como fica claro em minhas colaborações para o Correio Braziliense, o Jornal de Brasília e outros veículos. Essas características levaram-me a tomar parte em algumas lutas do período de redemocratização do país. A pedido de um grupo empenhado em arejar as eleições de reitor da UnB, aceitei a tarefa de me candidatar ao cargo, em 1985. Não passou de uma atitude estratégica para forçar uma mudança nos regulamentos, o que acabou permitindo a defenestração de José Carlos Azevedo e a eleição de Cristovam Buarque em seu lugar. Por conta do elo consistente entre a universidade e a vida política de Brasília, Cristovam seria depois eleito governador do DF. Quando da campanha pela Anistia, percebemos a oportunidade de mudar o status político da capital, que até então não tinha representação no Congresso, nem governador eleito. Na ocasião, fui conduzido a uma das vice-presidências do Comitê de Anistia de Brasília. O comitê era presidido por Pompeu de Sousa, um dos fundadores da UnB, paladino das causas democráticas no DF e primeiro senador eleito por Brasília. Sempre ligado ao PCB, em 1990 fui instado pelo partido a entrar para uma lista de potenciais candidatos à Câmara Distrital, como representante da área cultural. Momentaneamente acometido de uma crise de vaidade, criei o slogan Vladimir Carvalho de Olho na Câmara, para explorar o trocadilho com a minha profissão. Antes, porém, de roubar votos de companheiros mais bem aquinhoados eleitoralmente, retirei minha candidatura. Já em 2005, à minha revelia, um jornalista atrevidamente lançou meu nome para concorrer ao Senado pelo PPS (Partido Popular Socialista). Mal tomei conhecimento do fato. Definitivamente, não está nas minhas cogitações concorrer a cargos públicos. Nem mesmo aceitei o convite de Cristovam Buarque para ser Secretário de Cultura do DF. De qualquer forma, adotei Brasília e fui por ela adotado. Hoje sou reconhecido como alguém que ajudou a interpretar a cidade e se posicionou com clareza nas questões políticas. E a cidade correspondeu à minha dedicação, sobretudo cinematográfica, com dois títulos que guardo com carinho: o de cidadão honorário, concedido em 1998, e o de embaixador cultural do DF, em 2004. Quando o governo de Joaquim Roriz ofereceume este segundo título, eu que sempre cobrei muito de sua administração, aceitei com a condição de que pudesse usar a palavra na cerimônia de nomeação. Prevaleci-me, então, do solene momento para fazer minha primeira embaixada: comprometer o governador com o apoio a cerca de dez novos projetos de cinema. Quadro 30 Beleza Filmada A exposição do acervo do colecionador Abelardo Rodrigues no Palácio do Itamaraty foi um dos grandes eventos culturais de Brasília em 1972. Da arte indígena à pintura moderna, O Espírito Criador do Povo Brasileiro apresentava um resumo da nossa produção artística, com destaque para o sacro barroco e as esculturas populares. Com base na exposição, o Itamaraty resolveu produzir um filme para divulgação da arte brasileira no exterior. A novidade é que, dessa vez, eles não precisavam convocar cineastas do Rio ou de São Paulo. Nós estávamos a postos na UnB. No roteiro que escrevi, relacionava o caráter de síntese da exposição com a própria qualidade de Brasília como epítome do nosso empreendimento criador e confluência da cultura brasileira. Daí o filme abrir e fechar com imagens da arquitetura da cidade e seus horizontes. Filmamos durante várias noites, deslocando peças para criar nossa trajetória particular dentro da exposição. Ao amanhecer, recolhíamos o equipamento e cuidadosamente reconduzíamos as obras a seus devidos lugares para a massa de visitantes que estava por vir. O filme, que ganhou o mesmo título da exposição, era bastante simples, centrado na beleza das obras, mas Fernando Duarte e eu buscávamos um certo clima através do foco e dos movimentos de câmera. A forte representação da arte nordestina chamou minha atenção e não deixa de transparecer nesse documentário que começava a expressar a dicotomia do meu trabalho em Brasília. Quadro 31 Fantasmas de Goiás Velho Cora Coralina ainda não era uma celebridade nacional quando tive meus dois encontros com ela, durante as filmagens de Vila Boa de Goyaz. Em ambos, caminhamos juntos por seu pomar e deliciei-me in loco com os doces de frutas, quase tão elogiados quanto seus poemas. No instante em que foi feita a foto abaixo, eu pedia que ela tamborilasse alguma coisa na sua máquina de escrever para um rápido plano do filme. Entre as gratas lembranças que trago dessas visitas, está a vitalidade daquela senhora de 85 anos, que não escondia uma inclinação especial por um rapaz da nossa equipe, típico exemplar de galã mulato brasileiro. Quando ele não estava, ela o procurava. Quando ele aparecia, ela depositava o olhar e um cumprimento do tipo: Você é bonito mesmo, hein, rapaz! No período pós-instalação no Centro-Oeste, por conta do meu apego à terra – que constantemente me remete às origens –, eu procurava no entorno de Brasília alguma coisa que correspondesse ao meu cenário natural. Dessas andanças resultaram quatro filmes, aos quais me refiro como minha tetralogia goiana. São eles Vila Boa de Goyaz, Quilombo, Mutirão e Paisagem Natural. A cidade de Goiás, antiga capital do estado e inestimável patrimônio do passado colonial, foi o primeiro lugar a me encantar. Em 1974, procurei moradores ilustres como a escritora Cora Coralina, a pintora Goiandira do Couto e Wadjo Manuel da Paixão, velho mestre da dança dos tapuias. Com seus depoimentos em off, armei a estrutura de uma reflexão sobre o passado, o presente e o possível futuro da cidade. Havia neles traços de singeleza e inconformismo que me comoveram. Coralina estendeu-se num bonito relato da história das bandeiras no interior de Goiás, terminando por botar em xeque a própria idéia de um documentário. Dizem que a verdade e a mentira são xifópagas, especulou. Goiandira, por sua vez, alegou que seus quadros, pintados com pigmentos colhidos na serra local, tentavam fixar, como num documentário, a imagem de uma cidade ameaçada pela desfiguração e a banalidade do novo. Mais uma vez, como em Saruê, lá estava eu às voltas com resquícios da época da colônia. As pessoas ainda tinham bateias em casa, razão pela qual encenei uma antiga ação de garimpo no rio mais próximo. As idéias de permanência e transformação estavam em jogo, já a partir do título do projeto que inscrevi no Departamento do Filme Educativo do INC, Goiás Velho. Mas eles me chamaram para discutir a opção por um nome tradicional que não deveria mais ser estimulado. Foi quando saí-me com a designação arcaica de Vila Boa de Goyaz. Essa era mais uma co-produção da UnB, da qual participaram diversos alunos e, na direção de fotografia, o grande Heinz Förthman. Seu olhar experiente foi fundamental para o bom resultado de um filme que prestava atenção na paisagem, lidava com uma singular palheta de cores (ocres, laranjas, azuis) e se arriscava em fundir quadros de Goiandira com imagens naturais equivalentes. Mesmo passando por sérios problemas de visão, Förthman era tão preciso que – dizia eu – parecia fazer o foco pelo faro. Em geral tímido e sisudo, mas ocasionalmente de humor ferino, ele tripudiava das minhas preferências de diretor, perguntando-me pela manhã: E então, onde vamos fazer a panorâmica e a zoom de hoje? Ainda que tivesse vida, Goiás Velho, vila-museu, estava repleta de fantasmas, a começar pelos da História e do folclore: os rastros do Anhangüera, a medievalesca Procissão do Fogaréu na Semana Santa, as esculturas barrocas de José Joaquim da Veiga Vale (entre as quais o meu onipresente São Miguel Arcanjo). Depois que vi uma descendente direta de Veiga Vale chorar de verdade no papel de Nossa Senhora, na encenação da Paixão de Cristo, perguntei-lhe como conseguia tal resultado. Ela me respondeu, com surpreendente convicção stanislawskiana: Penso na morte da minha mãe. Entre as muitas coisas e pessoas que estão no filme e hoje já não existem, figura a extensa e belíssima cachoeira do Canal de São Simão, agora submersa por uma usina hidrelétrica. Dentro dessa tetralogia goiana, alguém já percebeu a existência de uma trilogia da extinção. De fato, Vila Boa de Goyaz, Mutirão e Quilombo tratam de modos de vida em processo de desaparecimento, devido à pressão modernizadora exercida por Brasília. Tratam do contraste dialético dos bens e dos males provocados pela súbita presença de uma capital contemporânea e uma indústria cultural em região que mal entrara no século 20. Ao fundo, portanto, está sempre a imagem de Brasília. Quadro 32 Doce de Marmelo A aquisição de sítios e casas de campo pela burguesia de Brasília provocou a valorização das terras próximas. Em meados da década de 1970, a especulação imobiliária ameaçava a área da Fazenda do Mesquita, ou Arraial dos Pretos, herdada por mestiços descendentes de antigos quilombos do século 18. A fazenda vivia então isolada no tempo e no espaço, na região do Rio Saia Velha, a cerca de uma hora de carro de Brasília. Os mais velhos iam morrendo e os traços culturais se apagando. Os mais moços vendiam suas glebas, atraídos por biscates na periferia da capital federal. Ouvi falar do pessoal do Mesquita numa viagem domingueira, em 1972. Um mês depois, procureios com alguns alunos, sondando a possibilidade de um documentário. O resultado da excursão foi surpreendente. Havia ali uma vida social à parte – uma lavoura de subsistência muito rudimentar, plantações de marmelo e em muitas das casas, a pleno vapor, o artesanato do doce de marmelo. Para completar o quadro etnográfico, uma grande roda d’água (foto ao lado) puxava pachorrentamente o mecanismo de serraria, aparelhando grandes troncos de madeira para a confecção das caixinhas para o doce. E ainda – muito importante! – existia ali uma bolandeira. Em resumo, havia interesse e plasticidade de sobra para um filme. Mas três anos se passaram até que eu pudesse reunir condições para fazer Quilombo. Roteiro selecionado num concurso da Diretoria de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, voltei ao Mesquita e tive uma grande decepção. Etelvino Teixeira Guimarães, um líder natural local, e seu irmão Malaquias, carismáticos detentores de memórias coletivas e peças-chave do meu esquema narrativo, haviam falecido. Ironicamente, ambos morreram vitimados pelo progresso – Etelvino, num atropelamento noturno na rodovia principal para Brasília; o irmão, intoxicado pela fumigação de veneno contra pragas da plantação. Não fosse o estímulo de meu irmão Walter e do res-to da equipe, eu teria desistido, acabrunhado. Mas, confortado por eles, retomei minhas notas e refiz o riscado. Experimentei narrar as etapas do cultivo e do beneficiamento do marmelo em regime de simultaneidade. Incluí a Folia do Divino e destaquei o pleno catolicismo daquela comunidade negra. Em tudo isso, vali-me da ajuda incalculável do doceiro e sacristão Dito de Nonata, outro herdeiro da memória do lugar. Deixei no Mesquita amizades que ainda hoje recordo com carinho. Quilombo fala da extinção de uma cultura primitiva e de um comunitarismo solidário no choque com a estrada recém-aberta. No último plano do filme, vemos uma imensa antena parabólica espetada no meio do mato. O curta é também mais um capítulo na minha coleta de imagens e práticas que estavam ali no Planalto Central desde muito antes de Brasília ou mesmo de Goiânia e todas as outras ânias norte-americanófilas que pipocariam na região. Dados que contam, por assim dizer, a pré-história de Brasília. Percebo agora que uma linha costura essa experiência à minha fundação como homem de cinema, em Aruanda. Era mais um retrato da vida atual de um antigo quilombo, por coincidência numa localidade também chamada Santa Luzia (atual Luziânia). O fio dessa história se estende a tempos mais recentes, quando Manfredo Caldas chamou-me para escrever os roteiros de dois documentários sobre quilombos, o curta Negros de Cedro e o longa Kalunga – Um Povo do Cerrado. Quadro 33 Intrusos no Povoado Mutirão é exemplo de que um documentário pode conviver com uma divergência do seu diretor e mesmo expressá-la. Ele nasceu de uma proposta provocante de Laís Aderne, artista plástica e estudante de pós-graduação em Pedagogia da UnB. Em 1974, Laís havia promovido a criação de uma Feira de Trocas para dinamizar a comunidade de artesãos de Santo Antonio de Olhos d’Água, no interior de Goiás. Tão logo inteirei-me da situação, discordei da idéia de Laís. Não me parecia muito digno que os citadinos trocassem peças de roupa ou utensílios usados por produtos artesanais que mereciam maior consideração. Mesmo assim, em deferência a suas boas intenções, toquei a filmagem adiante. A ocasião escolhida foi a de um grande mutirão (ou muchirão, como diziam) de tecelãs locais e das redondezas, que acorriam, com suas rocas no ombro, a tecer uma passadeira para a capela do vilarejo. O fato de que o tapete nunca foi concluído (como informa o letreiro final) apenas demonstra que a realidade do local em muito havia mudado. A produção dos teares matutos tinha sido substituída pelas roupas prontas dos armazéns. O algodão, matéria-prima das tecelãs, não era mais cultivado na região. O pouco que filmei do seu trabalho correspondia mais à nostalgia do povo da cidade do que a uma motivação própria da comunidade. Era impossível trazer de volta a vida artesanal através do consumo saudosista. O filme procurou exprimir essa contradição de um grupo de brasilienses interferindo na rotina de um povoado com boas e equivocadas intenções. Em dado momento, enfocamos a própria equipe de filmagem, com Fernando Duarte pilotando sua câmera entre as tecelãs e uma assistente tomando entrevistas com o meu inseparável gravador Uher. Na edição, incluí uma cena em que passo instruções a uma figurante, assim como uma fotografia em que apareço destelhando uma casa para facilitar a iluminação. Assim assumia que também nós representávamos uma interferência da classe média de Brasília naquele cenário. Minha interferência chegou aos letreiros e cartazes do filme, que realizei em xilogravura. Em compensação, não introduzi qualquer narração. Deixei que os próprios moradores expressassem seus dilemas, da maneira ingênua como emanavam do pensamento. Há, por exemplo, o artesão que reclama dos tubarões do latifúndio e a humilde tecelã que elogia o interesse do pessoal da cidade. Ao largo de qualquer polêmica, existe a beleza dos gestos e das cores da tecelagem primitiva. O tingimento da lã numa espécie de lama me pareceu similar ao processo de fixação das imagens no filme através dos banhos químicos. Existem, sobretudo, as marcas que o tempo deixou no rosto das pessoas. Lugares e práticas como essas não deveriam sobreviver artificialmente, mas ser tombadas e mantidas como amostras do nosso passado. Dediquei Mutirão à memória de Paulo Pontes, que havia narrado quatro filmes meus e, se o mundo fosse justo, também viveria para sempre. Quadro 34 O Abraço da Natureza Essa extraordinária paisagem do Planalto Central, que a tantos lembra o Monument Valley dos faroestes de John Ford, talvez não fosse parar na minha filmografia se não fossem os quero-queros. Mais precisamente, dois desses pássaros que certa feita assombraram minha tranqüila caminhada matinal no Parque da Cidade, em Brasília. Eles arremetiam em ataques alternados, as asas negras roçando sobre minha cabeça. Defendi-me como pude, inclinando o corpo e agitando os braços. Acuado, corri para um abrigo, onde um guarda esclareceu que se tratava de um casal de quero-queros, espécie habituada a fazer seus ninhos no chão. Não faziam outra coisa senão defender seus possíveis filhotes contra minha inadvertida invasão. O episódio não me saiu da lembrança. Logo vim a saber que os quero-queros, desaparecidos à época da construção de Brasília, estavam voltando, como que reconciliados com o burburinho da cidade. Bandos já sobrevoavam a Esplanada dos Ministérios. Simbolizavam, de certa forma, a relação entre Brasília e seu magnífico entorno natural. A oportunidade para tratar desse tema – e concluir minha tetralogia goiana – chegou em 1989, pelas mãos do produtor José Pereira e do governador José Aparecido de Oliveira. Este recomendou à Embrafilme financiar o projeto do longa em episódios Brasília, Patrimônio da Humanidade, posteriormente batizado como Brasília, a Última Utopia. Numa reunião inicial dos seis diretores, para conhecimento das intenções recíprocas, verificamos não haver qualquer superposição. Geraldo Moraes enfocaria o caldeirão cultural de Brasília num documentário (A Capital dos Brasis); Moacir Oliveira planejava um passeio pela arquitetura (Suíte Brasília); Roberto Pires narraria o retorno de um ex-candango (A Volta de Chico Candango); Pedro Anísio abordaria o misticismo de Brasília com linguagem pop (Além do Cinema do Além); e Pedro Jorge de Castro se dedicaria a uma alegoria histórica (O Sinal da Cruz). Eu estava interessado num ensaio audiovisual sobre a região geográfica onde se encontra Brasília. Paisagem Natural ficou sendo um dos raros casos, na minha carreira, de receber uma proposição com alguns recursos e inteira liberdade de escolher, quando nada, o subtema. Com Walter, uma pequena equipe, duas câmeras 35mm e uma carta do governo para facilitar contatos, embrenhei-me pelos parques nacionais das Emas e da Chapada dos Veadeiros. Pernoitávamos nos postos dos parques. Tínhamos menos de 15 dias e muitas dificuldades de comunicação para vasculhar a imensidão do planalto. Por causa dos carros sucateados que colocaram à nossa disposição, consumíamos mais tempo esperando em oficinas de estrada do que propriamente filmando. Enquanto isso, nosso produtor – bem-relacionado e querido, mas um bocado extravagante – exauria a verba em happy hours diários de celebração das filmagens em Brasília. Ao fim e ao cabo, a Embrafilme teve que intervir para gerenciar o término da produção. De qualquer modo, recém-saído da pedreira de Conterrâneos Velhos de Guerra, tomei essa aventura como um recreio, regado a banhos de rio e de cachoeira. Filmando a natureza ao bel-prazer, sentia-me criança de novo, a ponto de brincar de homem das cavernas numa das fantásticas grutas da Terra Ronca (o urro que se ouve nessa cena, entretanto, foi emitido pelo montador Eduardo Leone). Walter também deu asas a seu talento fotográfico na filmagem de imensas quedas-d’água, no hábil manejo do foco, na composição de cores. Com a lente macro, queríamos revelar o espetáculo de luz e cor que se oferecia numa flor, numa lagarta, nos liquens que cobriam as pedras. Um minúsculo besouro poderia assemelhar-se a uma fera jurássica. Trabalhávamos em silêncio para não espantar a caça: insetos, emas, tamanduás, garças, tucanos. Podíamos esperar uma manhã inteira para flagrar a aparição de um veadinho. Nossa busca era pela natureza intacta, como que pela primeira vez revelada. Meu entendimento quase telepático com Walter apurou-se ainda mais nessas filmagens, ecoando os dias em que eu o levava, menino, pela mão para fotografar o sol nascendo sobre o mar na ponta do Cabo Branco, em João Pessoa. Na região de Alto Paraíso, habitat de esotéricos, alternativos e ufologistas desde a década de 1970, descobrimos o artista plástico esquizofrênico Moacir Farias, por quem Walter se encantou a ponto de voltar, 15 anos depois, para fazer o documentário Moacir: Arte Bruta. Mas a única figura humana que dá as caras em Paisagem Natural é o caçador de onças Domingos José Valente, um fabulador que poderia ter saltado com sua garrucha das páginas de Guimarães Rosa. Ele me permitia contrastar a harmonia da natureza com um representante da predação – o que, aliás, faz parte do mesmo ciclo. A estrutura do filme começa com uma espécie de Gênesis da terra, de certa forma semelhante ao nascimento do sertão no início de O País de São Saruê. Evolui, então, para o reino dos animais, chega à presença agressiva do homem e termina com a cidade. Uma mudança de foco sobre um lagarto desvela o espaço urbano ao fundo. Os sinais da natureza pontuam timidamente Brasília. Lembro-me que ficamos de plantão diante das cúpulas do Congresso para espreitar os quero-queros. Mas o seu piado reivindicativo só seria gravado à época da montagem, no campus da USP, onde novamente me deparei com eles. Diante da possibilidade de contratar um músico para fazer uma trilha original, tive um encontro com Egberto Gismonti. Expliquei-lhe o que se-ria o filme e como eu via o papel de sua trilha sonora. Ele me ouviu com expressão entediada, talvez porque me estendesse demais, ou por não identificar ali uma oportunidade real. Quando terminei, ele disse: Você já sabe bem o que quer. Acho que não precisa de mim. Mas sugeriu que eu botasse minha exposição no papel e lhe enviasse. Foi o que fiz, mas só recebi de volta o silêncio. Na hora H, uma divergência de negociação selou o fracasso da parceria. Mais tarde, meu libreto mereceu elogios de músicos tarimbados. Acabamos optando por recorrer à nossa própria cultura musical (sobretudo à de Leone) para editar a trilha adaptada. Aqui devemos confessar nossa culpa de um crime autoral por causa nobre: fundimos trechos de um quarteto de cordas de Villa-Lobos com o Canticum Naturale, de Edino Krieger. Acho que foi um belo crime. Esse é basicamente um filme de edição. Tratava-se de buscar correspondências que fizessem aflorar o sentido musical contido na própria imagem. Em todas as etapas, o trabalho foi movido pela inspiração lúdica. Brasília, a Última Utopia não teve distribuição de amplitude nacional. Com a morte do produtor, aparentemente fui o único autor interessado em promover uma carreira solo do seu respectivo curta. Paisagem Natural ganhou uma enxurrada de prêmios na Jornada da Bahia, além de melhor fotografia e um certo Prêmio Panda (para o longo plano de uma cachoeira) no Riocine de 1990. Mereceu, ainda, insinuações dúbias de que eu havia desbundado e feito um Goianisqatsi, emulando os badalados Koyaanisqatsi e Powaqqatsi, de Godfrey Reggio e Philip Glass. Discordava de ambas as pilhérias. Não via semelhança com os filmes de Reggio além de eventuais coincidências formais, como o binômio imagem-música e a passagem das nuvens acelerada em stop motion. De resto, Reggio meditava sobre o estado do mundo e eu, sobre a presença de uma natureza primal abraçando e interagindo com uma cidade nova. Da mesma forma, não era por me demorar em temas sociais que os assuntos mais leves me estivessem interditados. Mesmo nos filmes tristes, alterno momentos de alegria e celebração do povo humilde, no campo e nas ruas. Os que acharam esse filme irresponsável não souberam ler os outros. Se desbundei, foi já em Saruê. Quadro 35 Ecos de um Massacre Para onde foram os pedreiros na noite em que a Muralha da China ficou pronta?, indagou Brecht no famoso poema Perguntas de um Operário que Lê. Eu tinha isso em mente enquanto filmava sem rumo nos anos 1970, paralelamente à realização de meus curtas. Vivia perguntando onde estariam os homens que construíram Brasília. Ou onde estavam os protagonistas de meus filmes nordestinos. Coletava imagens e entrevistas para um vago projeto chamado provisoriamente Brasil, Brasília. Numa dessas andanças, parei para cortar o cabelo numa barbearia da chamada invasão do Iapi, uma espécie de favela habitada por nordestinos, contígua ao Plano Piloto. Ali ouvi mencionarem pela primeira vez uma matança de operários pela famigerada GEB (Guarda Especial de Brasília) nos alojamentos da Construtora Pacheco Fernandes Dantas, no domingo de carnaval de 1959. A partir de então, comecei a indagar e pesquisar sobre o assunto. Fiz dele o corpo dramático do meu projeto. Formei um arquivo razoável com matérias de jornal, referências e nomes de pessoas que testemunharam o incidente. Segundo os relatos, tudo começara com uma sublevação na cantina por causa de comida estragada – tal como em O Encouraçado Potemkin – e culminara com um massacre noturno cujo número de vítimas variava de 9 a mais de 500, conforme a fonte. Uma cova monumental fora aberta em algum ponto do Planalto, sem sequer uma cruz cristã para marcar a terra macabramente semeada. Contava-se que as malas de couro dos candangos mortos se amontoaram por anos num barracão da obra, sem que ninguém as reclamasse. As pessoas falavam, mas ninguém se atrevia a repetir diante de um microfone. Só depois da Anistia, já na década de 1980, o primeiro voluntário se ofereceu para gravar. Foi Zé Claro, funcionário do laboratório de fotografia da UnB. Seu depoimento está em Conterrâneos Velhos de Guerra, resultado maior de todo esse meu trabalho. Mas eu não resisti à longa espera para concluir esse filme e levei a história às telas ainda antes, pela voz do ex-candango e líder sindical Luiz Perseghini, em Brasília Segundo Feldman. Nesse filme, ouve-se Perseghini perguntar-me se pode tocar no assunto, tal era o mistério que ainda o rondava em 1979. Segundo ele, os cadáveres e mesmo alguns semimortos foram parar numa vala comum aberta no barro vermelho pelos tratores da Novacap. Seu Luís ainda me contou de um velho cabo da GEB, seu vizinho em Taguatinga, que tinha de ser amarrado à cama pelos familiares, acometido por visões terríveis. Ele havia atirado sobre os candangos, não sofrera qualquer punição e enlouquecera de remorso. Acabou-se num hospital de indigentes, chamando pelo nome de suas vítimas. Desde aquele dia na barbearia popular, sinto que não escolhi o tema da chacina, mas fui escolhido por ele. Quadro 36 Do Faroeste à Polêmica As imagens eram precárias. A câmera balançava com freqüência, o foco fugia ao controle do cinegrafista, as tomadas não se concluíam devidamente. Mas, aos meus olhos, aquele material bruto pareceu extremamente precioso. Não estava diante de mais uma filmagem oficialesca, celebratória ou meramente técnica da construção de Brasília. O que aparecia, como nunca vi antes ou depois, era o trabalho puro e simples. Eram as figuras casuais dos candangos, muitos deles andrajosos, trabalhando sem capacetes. Eram grupos de operários comendo suas marmitas ou socados em caminhões que levantavam a poeira vermelha do planalto. O olhar por trás da câmera era de um estrangeiro, o designer gráfico norte-americano Eugene Feldman. Seu parceiro intelectual, o também designer Aloísio Magalhães, integrante da equipe de Niemeyer durante a construção, o recepcionara numa visita ao Brasil, em 1959. Naquela ocasião, Aloísio o levou a conhecer Manaus, Ouro Preto, Rio de Janeiro e por fim Brasília. Feldman entrou filmando na futura capital, fez imagens aéreas, percorreu com calma os imensos canteiros de obras. Tenho para mim que ele viu ali um novo faroeste. Feldman morreu em 1975, depois de publicar dois livros em conjunto com Aloísio Magalhães. Em 1978, sua viúva presenteou Aloísio com as três ou quatro latas contendo o material de Brasília, não mais que uma hora de película reversível 16mm. Aloísio chamou-me na UnB para opinar sobre o destino que poderia ser dado ao material. Foi quando eu me extasiei ante a sua originalidade. Surgia a minha primeira oportunidade de levantar questões que vinha coletando sobre o outro lado da epopéia brasiliense. Brasília Segundo Feldman viria a ser a primeira parte de uma trilogia informal, complementada mais tarde por Perseghini e Conterrâneos Velhos de Guerra. Dividi a autoria do filme com Feldman e assinei os créditos de compilação, estrutura e produção. O projeto foi abraçado pelo Centro Nacional de Referência Cultural, uma criação de Aloísio. A fim de salvaguardar os originais, produziu-se um negativo e daí a cópia que levamos para a moviola. No entanto, não bastava selecionar o material tecnicamente apresentável e montálo. Eu precisava dar-lhe forma e reavivá-lo. Não havia som direto, mas apenas algumas fitas gravadas à parte pelo mesmo Feldman, com cantorias nordestinas, um Olê Mulher Rendeira e um samba-exaltação. Como ele não estava vivo para dar um depoimento, optei por ouvir dois representantes da edificação de Brasília. Do lado dos mentores intelectuais, chamei Athos Bulcão, responsável pelas obras de arte que vieram complementar o trabalho de Niemeyer e já aparecia nas imagens de Feldman. Da parte dos operários, convidei Luiz Perseghini, que meu aluno Sérgio Moriconi havia descoberto em seus exercícios de documentarismo. Num auditório, exibi aos dois um copião prémontado, enquanto gravava suas vozes comentando fatos e situações, identificando pessoas e lugares. O processo se assemelhava ao já usado em A Pedra da Riqueza. Como material adicional, filmei um vernissage de Athos no Rio e uma entrevista com Perseghini em seu sítio na periferia de Brasília. Foi então que ele me perguntou se podia falar da chacina da Pacheco Fernandes. Em alguns momentos, os depoimentos se contradizem, criando uma polêmica interna no filme. Athos, por exemplo, diz que morreu pouca gente em relação ao que era esperado. Já Perseghini afirma que foram muitas as mortes, com os cadáveres sendo rapidamente ocultados para não desacelerar os serviços. O velho Perseghini ainda tinha muito para contar, e eu logo voltaria a ele. Quadro 37 Cicatrizes Voltei a Luiz Perseghini em 1983, num curta dirigido a quatro mãos com Sérgio Moriconi. Diante de nossa câmera, Seu Luiz contou sua história de maneira muito direta. Era a história de um herói popular trágico, de grande coragem política. Uma figura quixotesca tanto na aparência quanto no romantismo com que via as possibilidades de mudar o país. Sublinhamos a apresentação do personagem com os acordes da Marselhesa, sugerindo um sentimento revolucionário antigo. Ao mesmo tempo, Perseghini era dono de uma história de vida muito triste, em certa medida emblemática do povo brasileiro. Ainda jovem, no interior de São Paulo, ele um dia chegou de viagem e encontrou sua irmã violentada por um manda-chuva local. Inconformado, saiu no encalço do homem e desfechou-lhe um tiro fatal. Na cadeia conheceu anarquistas espanhóis que lhe explicaram o mecanismo social por trás daquele tipo de ocorrência. Que em vez de vingança deveria haver esclarecimento e organização política. Depois de cumprida a pena, ele era outro homem. Passou pelos garimpos de Mato Grosso, batalhou contra a extinção dos índios e o assassinato de lavradores, entrou para o Partido Comunista, viveu a ilegalidade e finalmente aportou em Brasília como trabalhador da construção civil. Ali ajudou a criar a primeira associação de classe e terminou expelido para as cercanias da cidade, onde então sobrevivia como lavrador. Em dado momento, o velho guerreiro mostra cicatrizes de bala espalhadas pelo corpo e volta a dar detalhes da matança de operários da Pacheco Fernandes. Perseghini é um filme simples, de fatura artesanal. Até os letreiros foram escritos por mim, a carvão, nas paredes da casa pré-moldada do nosso personagem. E ainda fizemos entrevistas diante desses créditos. Tempos depois desse último encontro, Seu Luiz deu uma prova de que não absorvera plenamente os ensinamentos dos seus colegas de cárcere. Em visita a sua filha, surpreendeu-a sendo espancada pelo marido. Sem pestanejar, atirou no genro. O fato talvez o tenha levado a deixar Brasília, razão pela qual nunca mais o encontrei. Quadro 38 À Procura dos Conterrâneos Numa cena de Brasília Segundo Feldman, Luiz Perseghini contava a história de um candango que, em carta à família no Nordeste, disse estar morando numa casa de 200 sacos de cimento. Os parentes julgaram-no rico a ponto de poder comprar tanto material. Mas na verdade a casa do pobre homem era feita de 200 sacos vazios de cimento. Foi, provavelmente, ao ouvir esse causo que eu tive a idéia inicial de estruturar meu filme de Brasília – o futuro Conterrâneos Velhos de Guerra – com cartas nordestinas sobre o cotidiano dos operários. Divulguei na imprensa um anúncio pedindo cartas do tempo da construção e oferecendo um prêmio à melhor delas. Não persisti na idéia porque a coleta foi insuficiente. Eu pretendia, através da correspondência, ligar os cenários do Nordeste e Brasília. Não me faltavam razões para esse raciocínio. Era grande o contingente de nordestinos que – em período de seca, desemprego e explosão demográfica – rumaram para a imensa frente de trabalho aberta por Juscelino. Para mim, era como se o sertanejo de O País de São Saruê tivesse vindo em busca da Terra Prometida. Só que ela não passava de miragem. O latifúndio foi substituído pelo trabalho provisório para o faraó. Quando as obras terminaram e esse exército de reserva retornou às bases, a tensão voltou a redobrar no Nordeste. Nesse contexto surgiram as ligas camponesas, movimento naturalmente engrossado pelos egressos de Brasília, muitos deles dotados de uma consciência de classe superior à média do campesinato nordestino. Na construção da capital, gente habituada a manejar a enxada aprendeu a trabalhar com fio de prumo, escala e novas técnicas. Junto com a qualificação, veio o esclarecimento político. Na minha leitura, a chacina da Pacheco Fernandes foi um divisor de águas. A partir dali, tomou corpo uma nova consciência entre os trabalhadores, que resultaria no nascimento do primeiro sindicato da construção civil em Brasília. Num jogo dialético, enquanto eles construíam a cidade, esta os construía como cidadãos. O corolário dessa tendência foram as eleições de 1986, que colocaram no Congresso, pela primeira, uma representação brasiliense, composta de oito deputados e três senadores. Eles eram, em sua maioria, nordestinos, a começar pelo pioneiríssimo Pompeu de Sousa. Mais uma prova de que o Nordeste era e continua a ser muito visível no Distrito Federal. Durante 19 anos, auxiliado por dez diferentes fotógrafos, filmei sinais dessa visibilidade em Brasília e nas cidades-satélite. Procurei o rastro dos antigos candangos expulsos do Plano Piloto pela Campanha de Erradicação de Invasões (CEI). A sigla originou o nome Ceilândia, para onde foram expurgadas as famílias pobres, a 30 km do centro e das moradias da classe média. A Administração Regional de Ceilândia, por sinal, me concederia um título de Cidadão Memória Viva Candanga pela inserção da história do bairro no filme. Em 1986, conseguimos captar a dramaticidade de uma operação policial para erradicar a invasão da Super-quadra 110 Norte, no Plano Piloto. Tropas e tratores investiam contra os barracos, ao mesmo tempo que helicópteros voavam baixo para levantar poeira e inviabilizar qualquer forma de resistência. Pedi ao câmera Waldir de Pina que filmasse de qualquer maneira, mesmo sem conseguir botar o olho no visor em meio às nuvens de pó. A cena era revoltante e fazia chorar. Em mim, despertava certas ilações: quem era capaz de perpetrar aquela barbaridade, deixando as famílias ao relento, também seria capaz de fazer vista grossa para um massacre como o de 1959. Durante o longo período em que recolhi imagens para esse projeto, nunca tive minha liberdade restringida, talvez pela discrição com que registrava o cinturão de miséria em torno de Brasília. Nos anos 1970, quando ainda tinha Saruê interditado, toda cautela era pouca. A cidade continuava em processo de construção, daí a presença de canteiros de obras, filas de operários para receber salários, gente comendo e dormindo em condições precárias. Finalmente, chegou o momento em que decidi botar o filme de pé. O clique foi a oferta de Zé Claro para enfim gravar seu depoimento sobre a chacina. Mas só em 1987, com recursos disponibilizados pela Fundação Cultural do governo do DF, foi que passei a colher os relatos de outras testemunhas, com base no fichário compilado ao longo dos anos anteriores. Conversei, então, com Dona Suzana, lavadeira que foi impedida de fazer sua entrega no dia do massacre. Ela levou as roupas de volta para casa e tempos depois as repassou a outros migran tes. Procurei o ex-pedreiro Eufrásio, testemunha direta da matança. Ouvi o deputado federal Geraldo Campos, um dos mentores da pioneira associação de classe dos candangos. Entrevistei Lúcio Costa, que negou a importância do evento, e Oscar Niemeyer, que se esquivou do assunto até o ponto de irritar-se diante da câmera. Recolhi manifestações de ex-candangos que tiveram a razão comprometida pelo espetáculo da edificação de Brasília. Um deles, Ceará, morava com sua família embaixo de um viaduto e cantava uma versalhada exaltando a migração. Outro, Tião Provisório, dizia-se instado pelo povo a construir solitariamente um campo de aviação em Goianorte, a 300 km do Plano Piloto. Entre os personagens populares históricos, procurei Elísio, o primeiro padeiro de Brasília, que ficou cego num acidente de trabalho, e o famoso Teodoro, promotor de bumba-meu-boi que transplantou o folclore maranhense para a capital. Estava consciente de que Conterrâneos não se-ria um simulacro de investigação policial, nem estava dando voz a ninguém. Daria, isto sim, expressão à impunidade que reinou durante a construção e, também, ao descaso – senão rejeição – de uma classe por outra. Quadro 39 Ópera Pobre O diagrama abaixo, traçado numa grande folha de cartolina e estendido sobre uma mesa, era minha ordem do dia na fase decisiva de preparação de Conterrâneos Velhos de Guerra. Sem prejuízo dos muitos cadernos de anotações acumulados, ele representava graficamente o que passava pela minha cabeça. Na hora de extrair o filme de quase 70 horas de material extremamente heterogêneo, eu precisava de um vetor para organizar as idéias. O massacre da Pacheco Fernandes era o estuário para onde demandariam todas as águas. A narrativa teria que evoluir através de saltos laterais com essa dominante. Eu tinha alguns pressupostos para montar esse meu quarto longa-metragem (a essa altura, já havia realizado O Homem de Areia e O Evangelho Segundo Teotônio, além de Saruê). Queria superar um componente culturalista que predominava nos meus filmes brasilienses. Em Conterrâneos,eu tinha ido além do cultural, chegando ao homem e sua condição.Aomesmotempo,queriadespedir-mede uma pretensa etnografia para cair na vida. Sentia que já dominava meu instrumental sem precisar de muletas.Emvez de copiara engrenagem dascoisas, havia colhido uma realidade bruta para descobrir minha própria ordem na mesa de montagem. Eduardo Leone viu comigo o material completo em Brasília e selecionamos cerca de 30 horas para montar em São Paulo. No próprio campus da USP, morei durante um ano enquanto trabalhávamos na ECA, sem custo e tendo à mão a facilidade de um pequeno estúdio de som. O que logo saltou aos olhos foi a volumosa presença de música e poesia: cordelistas, repentistas, aboiadores, e até mesmo um rock inspirado no massacre e composto por meu aluno Mário Salimon. Havíamos filmado a apresentação da música num show de sua banda Fama. Tal abundância de acordes sugeriu uma estrutura assemelhada a uma ópera, uma espécie de ópera pobre, onde entrariam ainda a canção de Zé Ramalho sobre o poema de Jomar Moraes Souto (abertura) e trechos de obras líricas como o Nabucco de Verdi, Pompa e Circunstância, de Elgar, e a Cavalgada das Valquírias, de Wagner. É própria dessa inspiração musical a incidência de estribilhos, reiterações e árias. Numa seqüência como a das doenças e insalubridade na periferia, saturada pelo Coro dos Escravos Hebreus do Nabucco, eu abro mão de pruridos e faço um cinema demagógico, no sentido de exacerbação das paixões com o intuito de emocionar. A realidade gritava tanto que não havia como evitar essa forma veemente de comunicação. Mais uma vez, recorri ao poeta Jomar. Em carta, expliquei-lhe o projeto e pedi um poema inspirado no episódio do massacre. Fazia uma ligação direta comaencomenda de Saruê, vistoque Conterrâneos se me apresentava como um desdobramento daquele filme, mais um capítulo da história do povo do sertão. De certo modo, é um decalque formal de Saruê, com rimas como Tião Provisório e o louco do urânio, menções a afogados em enchentes, entre outras. Trechos do poema são ditos pelo ator B. de Paiva, cearenseentãoradicado emBrasília,enquanto caminha por diversos pontos da cidade. Uma moldura de fogo abre e fecha o filme – primeiro, simbolizando a queima de terreno que precedeu o alvorecer de Brasília; e, por fim, as chamas da aguda insatisfação popular expressa no badernaço de 1986, em imagens de vídeo gravadas por minha equipe e outras, e até por cinegrafistas amadores. São cenas que, de tão ferozes, não foram veiculadas à época na TV. Eu, pessoalmente, contei 73 carros emborcados ou incendiados naquela manifestação contra o Plano Cruzado. Concluída a montagem dos 155 minutos, enfileirei sob o crédito Um filme de os nomes de 26 pessoas que de alguma maneira contribuíram para esse documentário, sob muitos aspectos, coletivo. Terminar Conterrâneos, em 1989, foi como tirar o peso de um navio das minhas costas. Animado por quatro prêmios para a versão 16mm no Festival de Brasília de 1990, vendi meu apartamento para custear a ampliação para 35mm, única forma de colocá-lo nos cinemas. Já na versão ampliada, o filme voltou ao festival em 1992 para uma sessão de encerramento, com a presença do Ministro Antonio Houaiss. A recepção geral foi tão calorosa que me tocou a alma. A carreira nos cinemas foi discreta, apesar dos cuidados da distribuidora Riofilme e dos méritos destacados pela crítica. No Rio de Janeiro, por exemplo, o circuito Estação subdimensionou suas possibilidades e condenou-o à pequenez, numa sala minúscula. O filme foi apreciado e debatido nos festivais de Leipzig, Toulouse e no Cinéma du Réel, de Paris. Desse último, acabou participando por um golpe de sorte. Perdido o prazo de inscrição por atraso na legendagem em francês, surpreendi-me com o interesse da diretora do festival, Suzette Glenadel, durante um contato informal que fiz em visita ao Centro Georges Pompidou. Ela assistira a Conterrâneos numa cópia de vídeo e tentava localizar-me no Brasil. Acabei convidado não só para exibir o filme hors concours, como também para integrar o júri da edição de 1993. Nas reuniões do júri, minha dificuldade com o idioma levava-me a opinar de maneira muito concisa e aparentemente convicta. Vez por outra, as discussões mais alongadas terminavam com alguém solicitando o parecer concludente do jurado brasileiro. Nesse grupo, contei com a companhia prazerosa do grande documentarista Lionel Rogosin e da atriz Françoise Arnoul, musa do sexo solitário para garotos dos anos 1950. Fiz questão de confessar-lhe que, naquele tempo, não perdia nenhum dos seus filmes. No Brasil, entre as poucas reações contrárias a Conterrâneos, esteve a do historiador Ernesto Silva, um dos entrevistados no filme. Ele me acusou num jornal de ter injuriado os pioneiros e não haver procurado gente séria. Com isso, desclassificava-se a si próprio e revelava seu preconceito contra a fala da gente simples. Respondi apenas que, entre o depoimento dele e o de uma lavadeira, no fim das contas, eu ficava com o segundo. Quadro 40 Oscar Niemeyer Na rota da minha curiosidade cinematográfica pela fundação de Brasília, nada mais natural que cruzar com Oscar Niemeyer. Isso aconteceu três vezes, de maneiras bem diferentes. A primeira se deu apenas virtualmente, através do filme Itinerário de Niemeyer, de 1973. O núcleo central desse curta foi uma palestra do arquiteto a estudantes norte-americanos em Brasília, em 1969. Enquanto riscava croquis num quadro-negro, Oscar explicava as motivações de suas famosas estruturas. A filmagem havia sido um exercício coletivo conduzido por Maurice Capovila e Fernando Duarte com seus alunos de então, sob os auspícios do Instituto de Arquitetos do Brasil. Esse material estava encostado num armário da UnB quando resolvi resgatá-lo e complementá-lo. Na edição que preparei com Manfredo Caldas, no Rio de Janeiro, deixei algumas pontas onde a equipe original aparece manejando equipamentos e claquetes. Com isso queria não apenas sublinhar o caráter de filme coletivo, como também caracterizar uma obra em processo de se construir. Assim como os prédios de concreto aparente, onde nenhuma pintura recobre o trabalho da mão do homem, o filme deixa à mostra os traços dos que o fizeram. Sobre o áudio da palestra incorporei diversos outros materiais de arquivo, alguns filmados por Ricardo Moreira, o Pudim. Eram imagens da presença de Oscar, seja inspecionando as obras de Brasília em companhia de Lúcio Costa, seja caminhando em sua residência carioca, na Estrada das Canoas. A trajetória convergia para cenas filmadas já sob minha orientação: a Praça dos Três Poderes ocupada pela massa – fato raro até então – na chegada dos jogadores tricampeões. A utopia de Oscar se realizava com o centro simbólico do país transformado em local de grande confluência coletiva. Meu segundo encontro com Niemeyer – e o primeiro pessoal – foi a polêmica entrevista em Conterrâneos Velhos de Guerra. O fato é que eu alimentava uma enorme expectativa a respeito do seu depoimento sobre o massacre da Pacheco Fernandes, a par de seu notório compromisso com as causas populares. Mas caí das nuvens quando percebi que ele não tinha conhecimento do fato, ou por alguma razão o bloqueava. Como ele afirmava que sequer tinha ouvido falar da chacina, instei-o a se manifestar hipoteticamente: O que o senhor faria se tivesse sabido? Ele se recusou bruscamente a responder e ordenou a interrupção da entrevista. Em seguida, migrou para o espaço histórico presente, criticando o governo Sarney. No entanto, admitiu claramente que a utopia não dera certo. Dizia-se decepcionado por Brasília não ter se transformado na cidade de homens iguais que ele imaginara. Tomo essa entrevista como uma prova de que não me prendo a sectarismos. Diante de uma evidência histórica, não protegi o comunista de quatro costados que tanto admirava. Não aparece no filme, mas o clima pesado se desfez ali mesmo. Ao término da conversa, Oscar, generoso, ainda consultou meu interesse em fazer um documentário sobre o Memorial da América Latina. Posteriormente, ele se aborreceria por causa de intrigas a respeito de minha participação no Programa do Jô, no que fui nobremente defendido por Athos Bulcão. Dez anos depois, eu precisava voltar a Oscar por conta de um depoimento para Barra 68. Fiz o pedido através de um amigo comum e ele se prontificou imediatamente. Convidou-me para um almoço no seu escritório e depois gravamos a fala sobre sua passagem pela UnB. Naquele dia, ele rabiscou um desenho para mim, o qual, desastrado, esqueci num táxi. Que ele nunca venha a saber. Quadro 41 Pequenos Escândalos A batalha final para concluir Conterrâneos Velhos de Guerra fez com que eu me transformasse numa espécie de camelô do cinema. Disposto a atrair fundos para o filme, postei-me na passarela entre a Rodoviária de Brasília e a Esplanada dos Ministérios, local de grande afluxo popular, exibindo cartazes com o chamamento Eles fizeram Brasília. Ajude a fazer o filme. No centro da peça, o célebre caminhão que conduzia os operários para as obras, marca da época da construção. Tão logo foi promulgada a Lei Sarney, em 1986, carimbei sobre o cartaz os dizeres Inaugure a Lei Sarney. Fone 226-1515, e assim o reproduzi em jornais. É claro que a campanha não se endereçava diretamente aos passantes da rua. Minha intenção era transformar o gesto em fato jornalístico e assim sensibilizar algum mecenas. Isso certamente contribuiu para que eu obtivesse o financiamento final. Ademais, tive a oportunidade de chamar atenção para a omissão dos órgãos públicos no apoio às produções artísticas e gritar no ouvido da iniciativa privada que já existiam os incentivos da Lei Sarney. A prática dos pequenos escândalos públicos tinha sido inaugurada quatro anos antes, por ocasião do lançamento brasiliense de O Homem de Areia. Meu modesto perfil de José Américo de Almeida estreou ao mesmo tempo que a megacinebiografia Gandhi, de Richard Attenborough, detentora de oito Oscars. Diante da grande sala do cinema Atlântida, o Mahatma indiano atraía filas imensas. No pequeno Cinema Karim, do Conjunto Nacional, meu filme abriu com público minguado. Resolvi, então, após as aulas na UnB, colocar-me à entrada do shopping com um cartaz de face dupla – de um lado, o pôster do filme, com o slogan O homem que passou a rasteira em Getúlio; do outro, a inscrição Este filme não ganhou o Oscar. Não demorou muito e a segurança expulsou-me do local. Transferi-me para o movimentado calçadão entre o Conjunto e o Conic, dando prosseguimento à panfletagem. Vieram os jornais e as TVs, a performance virou evento, a bilheteria cresceu e o filme resistiu mais duas semanas em cartaz. Quando da estréia de Barra 68, foi a vez de dar um olé cinematográfico no trânsito próximo à Rodoviária. Durante uma semana, toureei os carros em pleno rush, ameaçado pela sanha dos motoristas. Por pouco não fui atropelado enquanto estendia uma faixa alusiva ao filme no sinal vermelho, ao mesmo tempo em que repetia o mantra O cinema brasileiro agoniza mas não morre. Mais uma vez, a atitude gerou matérias jornalísticas. Em tempos de assessorias de imprensa e estratégias de marketing, cada um atua com a ciência e os recursos que lhe tocam. Quadro 42 Cultura Conterrânea Chamei o filme de Conterrâneos Velhos de Guerra porque os candangos eram conterrâneos entre si e também meus conterrâneos. Mas não imaginava que, ao colocar esse termo em circulação mítico-poética, por mais inconscientemente que fosse, iria ensejar o surgimento de uma virtual cultura conterrânea em Brasília. Alguns até me chamam, carinhosamente, de conterrâneo. Incluindo o rock composto por Mário Salimon a propósito do massacre de operários, todo um leque de reverberações do tema se abriu a partir do filme: teses universitárias, canções e até uma banda de rock chamada Pacheco Fernandes, que fez um show intitulado Conterrâneos Velhos de Guerra. Houve canções com esse nome em CDs de Clodo Ferreira e Carlinhos Piauí. O documentário de Dácia Ibiapina sobre o meu trabalho também leva esse título. Minha trilogia candanga inspirou outros filmes e o longo poema-cordel Romance do Vaqueiro Voador, de João Bosco Bezerra Bonfim, assumidamente inspirado em Brasília Segundo Feldman. A publicação foi ilustrada com fotos deste filme e de Conterrâneos. Como fechamento de um ciclo virtuoso, o poema foi transformado em filme documental-ficcional por Manfredo Caldas. Trata-se de uma especulação sobre quem seria um certo indivíduo que despenca do andaime de um prédio durante a construção de Brasília. O Vaqueiro Voador é a representação alegórica e mágica dos migrantes nordestinos que chegaram a Brasília no lombo da utopia. E terminaram assim: Ei-lo caído de bruços Para o campo paramentado Peitoral, perneira, gibão Chapéu passado o barbicacho Voou no rabo da rês Mas só chão havia embaixo. Mais que a insistência num tema, o que chamo de cultura conterrânea é a que identifica a Brasília múltipla e confluente já em sua gênese, quando ali reuniram-se brasileiros dos mais diferentes pontos do país. A Brasília conterrânea e solidária já surgia irremediavelmente ali. Quadro 43 Índios Desde que fiz de Brasília meu pouso de arribação, voltei diversas vezes a filmar no Nordeste. A primeira delas foi em Incelência para um Trem de Ferro. A segunda foi em 1977, quando aceitei a proposta da antropóloga Cláudia Menezes de documentar a aldeia indígena Pankararu de Brejo dos Padres, num ponto do sertão de Pernambuco próximo à divisa com Alagoas. O perfil dos pankararus não era nada parecido com o tipo clássico dos chamados povos da floresta. Em número de 2.500, espalhados por 16 aldeias, eram índios camponeses e proprietários, bastante aculturados, que viviam em terras cultivadas. A relação com os não-índios era intensa e tensa. Os donos de terras vizinhas cobiçavam suas glebas. Os não-índios pobres, por sua vez, procuravam se casar com gente da tribo. Daí a existência de pankararus quase brancos e mesmo mulatos. Vinte anos depois de fazer o média-metragem Pankararu de Brejo dos Padres, soube da existência em São Paulo de uma comunidade favelada inteiramente composta de pankararus migrados. Com recursos da Embrafilme e do Museu do Índio, chegamos a Brejo dos Padres por ocasião da Festa do Umbu, um ritual propiciatório impressionante, onde aflora um primitivismo quase imperceptível no resto do tempo. Para invocar boa safra e fartura, os pankararus dançam ininterruptamente por três dias e duas noites. Sendo esse o foco central do interesse de Cláudia, filmamos extensivamente a cerimônia. Meu irmão Walter fazia a câmera e o som ficava a cargo de Jom Tob Azulay, que havia trocado a carreira diplomática pelo cinema dire-to. Sem o adicional energético-alucinógeno da beberagem de jurema que animava os índios, é claro que, altas horas da noite, parávamos para dormir enquanto eles prosseguiam com suas danças. O clímax da festa eram os açoites que se infligiam no dorso nu com galhos de cansanção, planta recoberta de espinhos e pêlos urticantes. Embora a pele ficasse em calombos, eles não o faziam como autoflagelação, mas como uma modalidade de esporte, um desafio à resistência física. O filme resultou de interesse mais propriamente antropológico, e nesse meio haveria de circular, no Brasil e no exterior. Mas, não contentes com o vetor exclusivamente etnográfico, saímos à cata de entrevistas e das rotinas de trabalho dos pankararus. Novamente encontramos uma bolandeira. E também uma casa de farinha, trabalhos com cerâmica. Acompanhamos um grupo de índios ao mercado de Paulo Afonso, onde eles comercializavam seus produtos de lavoura. Gravamos discussões com populares sobre a convivência com os índios e flagramos denúncias de exploração contra o caminhoneiro que os transportava entre a aldeia e o mercado. Essas seqüências compuseram uma moldura social em torno da Festa do Umbu. A temática indígena marca pouca presença em minha filmografia. Tive o ensejo de visitar o Xingu no início da década de 1970, quando assisti à cerimônia do javari, uma competição simbólica. Como decorrência, participei da finalização de um audiovisual do fotógrafo e antropólogo Milton Guran. Em 1982, à época da primeira candidatura do xavante Mário Juruna à Câmara dos Deputados, gravei em vídeo U-Matic, juntamente com Sérgio Moriconi, detalhes de um encontro nacional de caciques. Esse material nunca foi editado. A melhor oportunidade de fazer um filme sobre índios, infelizmente, deixei fugir. Seria fruto das minhas observações pessoais sobre os índios que chegavam a Brasília, vindos de todas as partes do país, e eram alojados pela Funai em ditas pousadas próximas da sua sede e também da minha casa na W3-Sul, para onde me mudei nos anos 1990. Eles vinham com suas famílias para tratar da saúde ou fazer reivindicações. Às vezes promoviam passeatas que mais pareciam desfiles de guerreiros armados com suas bordunas. Os hábitos de alguns, porém, se deterioravam. Passavam dias inteiros consumindo bebidas no bar. Logo surgiram os choques culturais com a vizinhança. Eles colhiam frutos dos quintais alheios e usavam os jardins – o meu, inclusive – para suas necessidades fisiológicas. Fazer uma fogueira dentro de casa podia lhes parecer bem natural. Os planos para um documentário rondaram minha cabeça por muito tempo. Exortei colegas da ABD para que registrassem o fenômeno, já que me ocupava de outros projetos. Lamento que isso não tenha sido feito. O difícil processo chegaria ao ápice em 1997, ironicamente num Dia do Índio, quando playboys queimaram vivo o pataxó Galdino num ponto de ônibus a cerca de 50 metros da minha casa. Quadro 44 O Cinema Simples O curta No Galope da Viola foi feito para demonstrar que o cinema também pode ser uma coisa muito simples. O alvo da demonstração era um grupo de alunos e funcionários da Universidade Federal da Paraíba que almejava fazer cinema, mas tinha um respeito reverencial pelos procedimentos técnicos a ponto de inibi-los. Eu mesmo havia sido vítima dessa paralisia no início da carreira. Fui para João Pessoa com um grupo de cineastas e produtores, em 1989, para um simpósio visando à criação de uma Fundação para o cinema nordestino. Dele participaram, entre outros, Torquato Joel, Durval Leal Filho, Fernando Trevas e Vinícius Navarro, que viriam a ser, respectivamente, diretor, produtor, jornalista e professor. Nessa ocasião, levei comigo três ou quatro latas de negativos 16mm e o propósito de provar que a realização de um filme não é bicho-de-sete-cabeças. Cuidei de minimizar a empresa o quanto possível. Chamei para fazer a câmera Manuel Clemente, então professor da UFPb, nomeei co-produtor um amigo motorizado e preenchi as demais funções com jovens locais. Nossos personagens eram os famosos repentistas Otacílio Batista e Oliveira de Panelas. Gravamos uma conversa sobre sua trajetória, a situação atual dos cantadores e as diversas modalidades de cantoria – sextilha, galope, martelo, quadrão. Levamos a dupla num passeio ao Cabo Branco para captar imagens de apoio e os filmamos no estúdio da Rádio Tabajara, onde juntos faziam um programa de sucesso. Essa característica era o que mais me interessava. Otacílio e Oliveira não seguiam o figurino do cantador essencialmente ligado ao meio rural, às feiras e ao sistema do latifúndio, como aparecia nos filmes de Geraldo Sarno, por exemplo. Eram citadinos, lidavam com a comunicação de massa e interagiam com os ouvintes, glosando motes e atendendo a pedidos. Mas na hora de se queixar, apenas trocavam o fazendeiro pela televisão, onde, segundo Otacílio, só tem espaço prá quem canta gemendo. Provoquei Otacílio a desmistificar o cultuado Zé Limeira, já sabendo que ele reivindicaria a autoria de muitos versos atribuídos ao Poeta do Absurdo. Por fim, dirigi uma pequena encenação para reconstituir o alcance popular das transmissões da dupla. Em três dias, o filme estava na lata. Simples assim. Quadro 45 Notas Musicais Posso recordar três momentos em que meu ofício de documentarista se conectou com o mundo da música. Eles têm a ver com Angola, o rock de Brasília e o compositor Manduka. Em Luanda fui parar no início dos anos 1980, convidado pelo Sindicato dos Artistas do Rio para acompanhar uma caravana de músicos brasileiros em missão de congraçamento com os angolanos. Entre outros, embarcaram Paulo Moura, Beth Carvalho, Maurício Tapajós, Ana de Hollanda e meu parceiro de trilhas Marcus Vinícius. Levei comigo José Inácio Parente, proprietário de uma câmera de vídeo. Filmamos shows em quadras de basquete e em típicos cinemas angolanos, que tinham apenas a fachada com a bilheteria e, por trás, um anfiteatro ao ar livre. Aproveitamos para documentar alguns aspectos do país em frangalhos, ainda sob espasmos da guerra civil. Vimos gente mutilada pelas minas e ruas entulhadas de enormes latões de lixo, que exalavam um odor insuportável. Filmamos em escolas estruturadas por Paulo Freire e feiras empoeiradas de pequenos vilarejos. Esticamos o passeio até a cidade de Benguela. Como em todo lugar encontro uma sucursal do Nordeste brasileiro, senti-me em casa ao parar numa praia angolana para tomar cerveja e comer caranguejo, imaginando que do outro lado do mar estava o Cabo Branco. As fitas dessa viagem, destinadas a gerar dois documentários, nunca chegaram a ser editadas. Também na década de 80, quando as bandas de rock começaram a ganhar visibilidade na mídia, passei a instigar alunos e colegas da ABD a registrarem o movimento.Nãolograndoresultados,atribuíamim mesmo a tarefa. Com David Pennington e Waldir de Pina, gravei shows e entrevistas com as bandas Plebe Rude, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana e DetritoFederal.Fazíamos registros simples,semumprojetodefinidonemintençãoque não fosse investigar a origem do fenômeno. Percebi que a explosão do rock de Brasília era protagonizada por filhos de diplomatas ou de professores que fizeram pós-graduação ou mestrado no Primeiro Mundo. Ao voltarem para o Brasil, os pós-adolescentes traziam equipamentos e cabeça feita para o rock. Em cada banda, havia pelo menos um integrante ligado a famílias desse segmento social. Tenho registros antológicos, como o luxuoso casamento de Felipe Seabra, da Plebe Rude, que o fez trocar as roupas esfarrapadas dos shows pelo smoking de risca de giz. Ou o tumultuado show do Legião Urbana, em junho de 1988, em que Renato Russo discutiu com a platéia de 50 mil pessoas e foi alvo de objetos atirados ao palco. Quando instalouseo quebra-quebra, corri para filmar os atendimentos na enfermaria do estádio Mané Garrincha. Nunca fui um fã de rock, mas aprendi a admirar as letras fortes e a musicalidade encorpada de Renato Russo. Embora outras prioridades tenham me afastado desse material, ainda pretendo trabalhá-lo para recontar, de dentro, os primórdios do rock-Brasília. A terceira conexão direta com a música foi minha única experiência na seara dos videoclipes. Em 1996, fiz com Manduka um comentário visual da sua composição Com os Pés no Futuro. Na verdade, trata-se de um antivideoclipe rodado em película, com planos relativamente longos e um sentido mais narrativo que a média do gênero. Decupei a canção e criei o personagem de um cavaleiro andante, capa negra sobre os ombros, trotando pelos Pirineus goianos. Por cenários de pedreiras escalavradas, riachos luminosos e picos rochosos, fazíamos alusões à história das riquezas do homem, no rumo de um futuro imaginado. Manduka, ou Alexandre Manuel Thiago de Mello, era filho do poeta Thiago de Mello e da jornalista Pomona Politis, grega radicada no Brasil. Ainda não o conhecia, mas no bar da livraria Presença chamava-me a atenção aquela figura meio sobre o bizarro, tirada a Zorba/Anthony Quinn, óculos escuros e barba hirsuta. Bebericava o seu Martini sempre solitário. Um dia, excedeu-se nos drinks e mostrou-se em todo o seu talento histriônico: assisti então a uma imitação absolutamente mediúnica do seu xará Manuel Bandeira, dizendo o Evocação do Recife com certeira sensibilidade e a mesma voz cavernosa de tuberculoso profissional, tão minha conhecida do antigo disco Festa. Entrei na roda e no papo, e de repente era como se fôssemos amigos há trezentos anos. Por um tempo, freqüentei seus shows. Quando preparava um deles, Zum-Zum, para excursionar pelas universidades do país afora, convidou-me a fazer o clipe, que era exibido num telão. A montagem ficou a cargo de Frederico Schmidt, mas contou com palpites fundamentais de João Ramiro Mello. Parceiro de Geraldo Vandré, Dominguinhos e Alceu Valença, além de artista plástico tardio, Manduka morreu precocemente em 2004. Sua contribuição para a trilha sonora de O Engenho de Zé Lins ficou apenas esboçada. Quadro 46 Figura e Paisagem Centrado numa grande individualidade e sua vinculação com a política e a cultura, meu perfil de José Américo de Almeida em O Homem de Areia é como se fosse um portrait pré-renascentista, daqueles em que se vê a figura no primeiro plano e a paisagem ao fundo. A figura carregava a aura de monstro sagrado, mas a vasta paisa-gem permanecia razoavelmente desconhecida do grande público. Pensei fazê-lo como Roberto Rossellini se propunha fazer “filmes para ignorantes”, considerando-se ele próprio um ignorante. Pouco se sabia do político João Pessoa ou das circunstâncias que levaram e se seguiram à Revolução de 1930. Com inspirações de ordem liberal, visando acomodar insatisfações ideológicas e conceder conquistas democráticas à classe média emergente, o movimento teve em José Américo o paladino do grande ensaio de construção de açudes. Ele esgrimiu individualismo e certa demagogia, mas o resultado foi o fortalecimento da grande propriedade, pois as terras circundantes aos açudes jamais foram desapropriadas e o povo nunca teve acesso a elas. De tudo restou a trajetória frustrada do patriarca. Na imaginação do povo, entretanto, José Américo era tão célebre quanto Padre Cícero, Antonio Conselheiro ou Lampião. Quando menino, acostumei-me a ver meu pai descrever os comícios e repetir os gritos de Zé Américo, como eram chamadas suas frases de efeito cheias de mordacidade. Ficou-me a imagem do grande homem, feroz defensor da democracia burguesa, cheio de moral e carisma, espécie de santo e herói do Nordeste. Ainda o mantinha na redoma do mito quando, jornalista principiante em meados dos anos 1960, bati à sua porta para uma entrevista. Ele já estava na fase de recolhimento da praia de Tambaú, em João Pessoa. Reserva moral da nação, como diziam, mas sem mandato, fazia pensar num navio encalhado no mar sereno do Cabo Branco. Naquele dia, ele desceu ao alpendre num terno de brim sem gravata. Nervoso, fiz-lhe as perguntas cabíveis e anotava as respostas num bloco de laudas. Ao final, antes da despedida, ele ponderou, no seu jeito seco, que algo poderia ter escapado e pediu-me que lesse o que havia escrito. Mais tenso ainda, fiz o possível para traduzir os garranchos, ele ouvindo sisudo. Ao terminar, pediu-me o bloco e rubricou folha por folha. Era assim que o macaco velho lidava com focas desconhecidos. Mais de 15 anos depois, quando voltei a defrontá-lo para a realização do meu segundo longa-metragem, acabei descobrindo um outro Zé Américo. Pouco restava do aguerrido cidadão que fez intrépidas campanhas contra a seca no Ministério da Viação de Vargas; sobreviveu a uma queda de avião nos mares da Bahia, mesmo sendo míope e não sabendo nadar; foi golpeado por Getúlio quando se candidatou à presidência da República em 1937 e o golpeou em histórica entrevista a Carlos Lacerda, em 45; discursou em defesa do mandato de Prestes no Senado, em 46. O venerando senhor que encontrei em 79 era mais do que nunca um homem sereno, beirando o bisonho, já identificado com a tranqüila paisagem em torno. Ao mesmo tempo, era ainda o homem cheio de contradições, as transações do liberalismo cotejadas com o processo histórico e as mudanças de toda ordem. O método que elegi para traçar esse perfil foi o da entrevista, no caso disfarçada como uma visita de amigos jornalistas e intelectuais ao casarão do Tambaú. Disfarçada até certo ponto, já que no final a equipe e a parafernália de filmagem entravam em cena como mais um consulente daquele oráculo. Em dois dias de trabalho, interditamos a rua da praia em frente por causa do ruído dos automóveis. Mas eu enfrentava sério problema: Zé Américo, rijo e formal nos seus 92 anos, furtava-se a um diálogo mais aberto e direto, coloquial mesmo, como se prestaria a um filme desse tipo. Ora com retórica, ora apelando para longas pausas, mas sempre em tom discursivo, escondia o jogo e impunha sua marca. Algumas das perguntas mais incisivas foram feitas pelo jornalista Natanael Alves e por mim, fora do quadro. Em dado momento do filme, o Velho apela até à minha condição política para escapar de uma indagação sobre a ditadura. A gente não pode entrar muito em considerações porque ele é muito visado..., desconversa, enquanto move os olhos em minha direção. Minha reputação de militante de esquerda, aliás, tinha sido maldosamente levada a José Américo, como um alerta de desconfiança, através de um bilhete anônimo antes mesmo das filmagens. Para desfazer a impressão, convidei-o para uma sessão privada de O País de São Saruê num cinema de João Pessoa. Essa não foi a única tentativa de impedir a realização de O Homem de Areia. Roberto Farias, à época diretor-geral da Embrafilme, já descreveu o dia em que foi procurado por um oficial do Dops, em busca do processo de financiamento do filme. Apoiado pelo ministro da Educação e Cultura, Roberto negou-se a fazer a entrega e recomendou que o pedido fosse encaminhado através do ministério. O assunto morreu por aí. Nunca ficou provado, mas atribuo a sindicância a uma ordem do general Reynaldo de Almeida, filho de José Américo, zeloso com a imagem do pai. Na hora da entrevista para o filme, era ele próprio quem se aferrolhava no personalismo e, em vários momentos, deixava transparecer a imagem de salvador da pátria, protegido dos deuses. Em vista disso, parti para a enquete junto a outras fontes. Passei a levantar arquivos e entrevistar até mesmo seus desafetos mais rancorosos, como o coronel Cunha Lima, patriarca decadente, mas ainda duro e empertigado em seu cavalo, longa barba de profeta vingativo. Ouvi o filho de José Pereira, grande chefe da Revolta de Princesa, e Ariano Suassuna, filho de João Suassuna, vítima inocente e fatal de suspeitas pelo assassinato de João Pessoa. Como não me bastassem as vozes notórias, procurei ainda o artesão Joaquim Sileiro, que contou como se deu o rompimento de João Pessoa com José Pereira, e um cabra desse último, Ananias. Minha estada no Tambaú coincidiu com uma visita de Jorge Amado, acompanhado de Zélia Gattai e do pintor e xilogravurista Calazans Neto. Jorge concordou em dar um depoimento sobre sua dívida literária para com o autor de A Bagaceira. Ainda do cotidiano do Velho, filmei-o ditando suas memórias à secretária D. Lourdes, uma espécie de Maria Kodama da sua vida, e fazendo suas longas caminhadas matinais na areia da praia. Nessas horas, eu tinha em mente uma versão nostálgica de O Velho e o Mar. Eu não me daria, porém, por satisfeito se não aproveitasse a oportunidade para matar a saudade do sertão. Nove anos passados das derradeiras filmagens de Saruê, eu andava com sede de terra. Quadro 47 Três Enterros Entre os parcos sinais que ainda pude encontrar da Revolução de 30 na Paraíba estava a performance tradicional dos bacamarteiros de Princesa, com seus desfiles e tiros desfechados contra o nada. Não perdi a chance de incluí-los em O Homem de Areia, descendo os degraus do mercado e alvejando o chão da praça, em atuação que podia lembrar, muito de longe, a seqüência da escadaria de Odessa em O Encouraçado Potemkin. O filme está cheio dessas evocações ficcionais de fatos históricos, que atendem também a uma demanda de diversão do cineasta. Numa sala de museu, a câmera de Walter empreendeu uma coreografia em torno da mesa de mármore sobre a qual tombou João Pessoa, a fim de sugerir o momento do crime. Levei um figurante armado de cartucheira para o alto de um morro, na entrada de Princesa, e lá criei minha fantasia de uma guerrilha sertaneja, nada muito distante do que de fato aconteceu entre revoltosos e legalistas no local. Outros momentos de dramatização ocorreram no alto sertão, onde filmei todo um ensaio documental-ficcional para ambientar o relato da infância e adolescência de José Américo de Almeida. Para esse prólogo, que antecede a entrada do personagem na História, reencontrei o sertão árido e ermo de outros tempos. As imagens da caatinga impressionam, sobretudo pela montagem descontínua e o tratamento sonoro, à base de trote de cavalo e tubos de PVC soprados pessoalmente pelo grande maestro J. Lins. Viajei com o próprio Zé Américo por engenhos e lugares de seus anos verdes, embora nada desse material tenha funcionado na montagem final. Grande parte desse copião permanece depositada na Cinemateca Brasileira. Do pouco que ficou da primeira intenção, vê-se um menino tímido que foge da câmera e é seguido até a porta do casebre onde mora – mais uma das crianças que vou encontrando e incorporando como figuras recorrentes nos meus filmes. Não sem um quê de oportunismo, tomei carona na importância de José Américo para levantar a produção na Embrafilme. Mas isso não significaria me curvar às exigências do mercado da época, que preconizava filmes históricos suntuosos e coloridos. Optei pelo preto-e-branco para dar unidade ao documentário e obter um certo ar de álbum de História. Paulo Melo foi fundamental na conquista de uma participação da Secretaria de Cultura da Paraíba. Esse foi o único filme em que contei com um diretor de produção na plena acepção da palavra. Enquanto eu filmava numa cidade, Carlos Del Pino já estava preparando o terreno na próxima. Um luxo para Vladimir Carvalho. Dávamos as filmagens por encerradas quando o Velho faleceu, em março de 1980. Retomamos os trabalhos no funeral, onde já encontramos José Sarney, de olho nos dividendos políticos e na vaga da Academia Brasileira de Letras. O filme acabou pontuado por três enterros: de Zé Américo, João Pessoa e Getúlio Vargas. De maneira não intencional, eu dava a entender que a morte é a medida de todos nós. E, afinal, tudo é História. Meu mote durante toda a realização do filme foi contrapor ao vulto monolítico de José Américo uma indispensável ambigüidade. Pretendia desconfiar da unanimidade e criar uma discussão em torno de sua figura. Assim se justificava a expressão O Homem de Areia, que veio substituir o título de trabalho Sem me Rir, Sem Chorar, nome da coluna memorialística que ele teve na revista O Cruzeiro. Eu tinha a desculpa de que Zé Américo nasceu na cidade de Areia (PB), mas o sentido apontava para a efemeridade das construções que, como os castelos de areia, estão fadadas a se dissolver. Na montagem, instalou-se um jogo dialético: eu querendo dessacralizar o mito e ele se defendendo e ganhando sempre. O trabalho foi infernal, dados o volume e variedade do material. Contei com a participação de dois montadores, em turnos alternados. Manfredo Caldas passava a moviola para Ricardo Miranda, que chegava estropiado das longas sessões de montagem de A Idade da Terra, de Glauber Rocha. Além de tudo o que filmáramos na Paraíba, tínhamos uma abundância de material de arquivo, incluindo filmes dos acervos do pioneiro Walfredo Rodrigues (Paraíba, anos 1920) e de João Córdula (Serviço do Cinema Educativo do governo da Paraíba, década de 1950), atualidades cedidas por Alfredo Palácios e até cenas documentais filmadas por Lima Barreto. Filmagens de uma explosão numa frente de trabalho mais recente serviram para ilustrar o frenesi da construção dos açudes à época de Zé Américo. Para acompanhar o prólogo rural, editei trechos de livros do autor, entre os quais A Bagaceira, A Paraíba e seus Problemas, Reflexões de uma Cabra e Antes que Eu me Esqueça. A voz alusiva ao personagem ficou a cargo de Mário Lago, enquanto Fernanda Montenegro fazia a voz neutra do meu próprio texto de narração. Minha primeira convidada para essa função foi Tereza Raquel, mas ela não conseguiu dar a voz branca, com intenção apenas discreta, que eu esperava. Tinha útero demais, como pilheriava um técnico do estúdio de som. Na trilha sonora, além da música original de J. Lins, usamos dois hinos, um baião de Luiz Gonzaga e, por uma razão muito especial, a valsa francesa Ramona. Dizia a lenda que Ramona era música aziaga. Houve uma época em que a chegada de José Américo ao poder coincidia com secas ou alguma situação social difícil. Daí que, à boca pequena, o chamassem de Zé Ramona. Não resisti a esse chiste cifrado para poucos. Foi intensa a construção de sentidos na montagem. Passei três prazerosos dias ao lado de Zeca Mauro no table top para animar as fotos que dão vida à batalha de Princesa. Com uma única fotografia de um avião em vôo, mais alguns planos aéreos filmados sobre a Baía de Todos os Santos, reconstituímos o acidente do personagem. Na hora de citar o famoso Discurso da Cadeira Vazia, com que Zé Américo defendeu o mandato de Prestes, repetimos cinco vezes um breve plano do líder comunista chegando ao seu posto no Senado e assinando um documento. Queríamos fixar a idéia da permanência de Prestes através da reiteração daquelas poucas imagens. A quebra do monolitismo em torno de Zé Américo passava pela edição dos depoimentos. Um exemplo: à afirmação de que não mais influenciava o jogo político da Paraíba, eu contrapunha o exgovernador Ivan Bechara confirmando que sua nomeação fora recomendada pelo patriarca. Por essas e outras, os familiares de José Américo saíram sem me cumprimentar de uma pré-estréia especial no Hotel Tambaú. Mais tarde, através de um barbeiro, fiquei sabendo que o filho-general queixara-se, na manhã seguinte, de uma grande enxaqueca, fruto do aborrecimento causado pelo filme na noite anterior. Beneficiado pelo clima pré-eleitoral de 1982, O Homem de Areia seguiu sua carreira com lançamento bem preparado pela Embrafilme, debates, destaques da temporada e participações em festivais, no Brasil e no exterior. Mas não logrou comover a comissão de seleção do Festival de Brasília, que, inexplicavelmente, se reunia no Rio. Na raiz da recusa, bem pode estar minha atuação como divulgador carioca de um manifesto, a pedido da jornalista e minha ex-aluna Maria do Rosário Caetano, cobrando empenho da Fundação Cultural pela realização do festival em 1981. Posso ter sido um tanto agressivo nas minhas colocações, assim oferecendo meu pescoço à guilhotina dos ressentidos. Quadro 48 Saúde Civil Quem é esse peregrino que caminha sem parar?, indagava a canção Menestrel das Alagoas, de Milton Nascimento. Eu também me fazia essa pergunta ao realizar O Evangelho Segundo Teotônio. Mais uma vez, senti que o assunto mais me procurava do que eu a ele. Enquanto assistia às sessões do Congresso, nas horas vagas da UnB, fui capturado pela intensa atividade e forte liderança do senador Teotônio Vilela. Mais adiante, quando a doença começou a agredi-lo e ele anunciou sua cruzada cívica em defesa dos presos políticos remanescentes, resolvi registrá-la como eixo de um filme. Não nos conhecíamos pessoalmente. Ao fazer-lhe a proposta, ouvi-o brincar com um colega: Esses aqui estão querendo me transformar em artista de cinema! A verdade é que fiquei siderado pela figura do invencível cavaleiro andante, de lança em riste, fustigando os desmandos da política, numa militância que sobrepairava partidos e instituições. O argumento estava ali: um homem possuído do fogo da pátria desafia os abismos da morte e quer como um deus salvar o seu país. Minha postura era em tudo diferente da assumida perante José Américo de Almeida. Aqui eu era movido pela adesão à causa do personagem, para junto com ele avaliar a intervenção de suas atitudes no processo político brasileiro. Não que-ria problematizar uma figura que, em si, já era um problema para aquele momento do regime militar. José Américo já se encontrava no retiro de sua casa à beira-mar, enquanto Teotônio estava em pleno combate, apesar dos dias contados. Via-o como um Quixote, um El Cid. O Evangelho Segundo Teotônio tinha a intenção também de colocar em perspectiva a trajetória do personagem. No fim da vida, Teotônio passava por uma metamorfose galopante. Na política, era um ex-udenista que apoiou o golpe de 64 e agora lutava pela plena liberdade. Na vida pessoal, tinha sido um vaqueiro que, através de uma cooperativa familiar na sua Alagoas natal, tornou-se poderoso usineiro. Era patente sua ligação com o povo e a terra: na mocidade, tangendo gado de um estado a outro; mais tarde, a convivência direta com os operários da usina Boa Sorte. Ele próprio leria para o filme trechos de um livreto de memórias ditado a Mino Carta, do qual destaquei, mediante uma encenação, o lírico episódio do menino ouvindo o milho estalar debaixo do chão. Mas nem tudo se passou como eu imaginava. A saúde civil de Teotônio fazia dele um ser quase ubíquo, nas idas e vindas por todo o país. Nossa raquítica produção nem sempre teve recursos para segui-lo. Perdemos muitos lances, o que gerou uma certa economia com relação a sua figura política. Encaminhamos o filme, então, para uma empostação da figura humana, mais fácil de fixar. Tivemos a chance de acompanhá-lo a Viçosa, no interior de Alagoas, filmá-lo no lombo de cavalos como nos velhos tempos, assistindo a uma vaquejada, confraternizando com operários da usina ou trocando idéias com antigos companheiros num bar tradicional da cidade. Deu-me, ainda, uma longa entrevista autobiográfica entre a praça central de Viçosa e a biblioteca de sua casa. Eu temia pela sua integridade física, uma vez que já se encontrava debilitado. Mesmo assim, acatava e até solicitava a presença da câmera para filmar o que havíamos combinado. Depois de muitas latas rodadas, certo dia ele manifestou um estranhamento, dizendo-me: Você, tão magrinho, andando atrás de mim por todo canto com essa tralha, e até agora não me pediu nada! Em sua concepção de um cinema de cavação, os políticos ainda pagariam para ser objetos de um filme. No período (junho a outubro de 1983) em que o segui como pude, Teotônio sofreu várias internações e passou por tratamento quimioterápico. Até um dado momento, ele abria sua agenda como pauta para o filme. Já sem mandato parlamentar, mas ocupando a presidência interina do PMDB, certa feita instigou-me a filmar uma delicada reunião do partido em São Paulo, na qual se posicionaria contra medidas de segurança pública do governador Franco Montoro. Àquela altura, Teotônio já havia rompido os compromissos da conveniência partidária e era apenas tolerado pelos seus pares. Sinal disso é que Fernando Henrique Cardoso, sem perceber a câmera apontada para ele, comentava com gestos e sorrisos de deboche o discurso inflamado de Teotônio. O filme eternizou esse momento. Um dos trechos mais marcantes do filme é uma entrevista feita em vídeo por Henfil, em que Teotônio, em estado praticamente terminal, ad-mite que se fosse jovem pegaria em armas e seria um revolucionário da América do Sul. Para mim, aquela febre que ardia no homem moribundo era uma metáfora do país, que mais uma vez estava à beira de uma importante transformação, mas via escapar de novo a oportunidade. Em novembro de 83, Teotônio entrou em coma. Eu pretendia filmar seus últimos instantes até o desenlace, mas senti alguma resistência por parte dos familiares. Faltavam-me também agilidade e leveza nos equipamentos para esse tipo de cobertura. Igualmente em vão, tentei filmar Fafá de Belém cantando Menestrel das Alagoas no funeral. Acabei ficando com a sua performance no comício que encerra o filme. Fiz entrevistas com Miguel Arraes, Pompeu de Sousa e o cronista Carlos Castello Branco, que ajudam a montar o perfil do personagem. Na edição, usei cenas do copião de ABC da Greve, de Leon Hirszman, numa das quais Teotônio contracena com o Lula sindicalista. Durante a montagem e finalização, em regime de moradia solidária, acampei nas casas de João Ramiro Mello, mais uma vez meu montador, e de Chico Botelho, diretor de fotografia na maior parte do material. A narração de Esther Góes servia para marcar um contraponto com o dó de peito de Teotônio. Depois de editada a versão 16mm, saí à procura de recursos para ampliar. A solução veio através de Henfil, a quem eu tinha pedido para fazer as cartelas de apresentação. Henfil encarregouse de levar o projeto à família do político. Daí resultou o patrocínio da finalização pelas boas ingerências de Teotônio Vilela Filho, por conta da nascente Fundação Teotônio Vilela. Não houve qualquer exigência ou reparo da família ao retrato que apresentei, assim como nenhuma restrição fora feita pelo próprio Teotônio à minha ação. Com a morte do ex-senador, pretendi que o filme servisse como instrumento para repercutir sua cruzada. Antes, porém, era preciso submetê-lo ao crivo da censura. Os cortes foram impiedosos: sete minutos de falas de Teotônio, aí incluídas críticas a Delfim Netto e Carlos Langoni, além da tal menção à luta armada. O detalhe irônico é que, nessa época, eu tinha aceitado o convite para uma suplência no Conselho Superior de Censura, recém-configurado com representantes de diversas entidades para liberar obras, em vez de mutilá-las. O cineasta Jean-Gabriel Albiccoco, então diretor da distribuidora Gaumont, que me havia recebido com festa, depois dos problemas com a censura, passou a me tratar com indiferença. O filme chegou cortado aos cinemas e teve carreira acidentada. Quando obtive a revisão da censura, o fósforo estava queimado. De alguma forma, porém, O Evangelho ficou como um testemunho da pregação de Teotônio, reiteração de uma presença que não pode ser esquecida. Quadro 49 Vídeos Instantâneos Nas poucas vezes em que trabalhei diretamente patrocinado por órgãos públicos, o fiz atraído pelos temas em pauta. Foram três produções em vídeo, todas de preparação instantânea. Em 1997, fiz uma videorreportagem sobre uma das chamadas aulas-espetáculo proferidas por Ariano Suassuna em vários pontos do país. Partiu de mim a proposta à UnB, que financiou o trabalho junto com o Ministério da Cultura. Sou fascinado pela forma bem-humorada, atraente e persuasiva com que Ariano discute a formação da cultura brasileira e, em especial, da cultura popular. Essas concorridíssimas aulas-espetáculo costumavam ser ilustradas com cantos, declamações e a performance de músicos armoriais. Além da aula de Brasília e de uma entrevista com Ariano em sua casa, em Recife, fui com a equipe cobrir alguns aspectos citados pelo mestre. Em sua companhia, visitamos o ateliê do gravurista Gilvan Samico. Em Bezerros, no interior de Pernambuco, enfocamos o ambiente de J. Borges, autor de famosas xilogravuras e entalhes em madeira. Na localidade de Ingá do Bacamarte, filmamos as inscrições rupestres que Ariano mencionava como exemplo da arte primitiva brasileira. Projeto bem distinto foi o vídeo Manejo Florestal, que realizei para a Embrapa em 1998, abordando a reposição de árvores como forma de preservar a floresta. Na verdade, o tema era o descumprimento da lei, em vista de deficiências de fiscalização. Um institucional puro e simples. Em Pátria Amada Brasil, de 2001, prestei serviço a um projeto de campanha do Minc para popularizar os símbolos nacionais. O vídeo pretendia colocar em discussão o formalismo que cercava a execução e o significado do Hino Nacional. A forma era de reportagem-debate, envolvendo a opinião e o conhecimento do hino por pessoas comuns, em entrevistas de rua, e celebridades como Fafá de Belém, Paulo Betti, Sérgio Rezende (durante as filmagens do seu Mauá), Leo Gandelman e Barbosa Lima Sobrinho. O vídeo foi finalizado, mas a campanha não chegou a ser lançada entre os filhos da mãe gentil. Quadro 50 Aquém de Vertov Costumo dizer que sou um simples documentarista, não um diretor de cinema. Logicamente, é uma frase de efeito. Uso-a para distinguir-me dos que fetichizam o cinema, especialmente o de ficção. Reajo muito às declarações bombásticas de amor ao cinema estabelecido. Rejeito a parafernália do filme de ficção, as grandes equipes,as soluções buscadas na técnica, e não na visão de mundo. Se eu pudesse, filmava sozinho. Já me defini também como um lambe-lambe do documentário e um cronista social dos pobres, muito em função de aliar-me ao repertório do povo. Não escolhi os pobres, mas eles estavam aí, desde a minha infância. Talvez esteja equivocado ou soe ingênuo, mas não posso fugir de mim mesmo. Antes de compreender o que é o documentário, fui um arremedo de crítico e cronista de cinema. Em seguida, a prática de repórter de jornal serviu para aprimorar a clareza, deixar a observação mais aguda, escoimar a realidade do que ela tem de adiposo. Vendo documentários alheios e lendo sobre esse tipo de cinema, cheguei à conclusão de que o documentário é justamente o oposto da reportagem pura e simples. É a transcendência, porque dotado de carga ideológica e emocional. É a decantação da realidade, não meramente sua cópia. Documentário é expressão. Nisso fica implícito um trabalho delicado de conciliação. Como qualquer filme, o documentário é uma construção, mas ao mesmo tempo guarda um compromisso com a verdade e com o respeito pelo outro. É preciso estar vigilante com relação à ética. De outra parte, o documentário não é alheio às noções de causa e responsabilidade social. Daí a linha divisória entre causa e compromisso ético ficar às vezes borrada. A causa leva à passagem para uma nova ética, uma nova visão do fato na interação com o seu contexto. Não há como negar a indução e a persuasão. Elas existem em vários níveis, cada vez mais. Não sei se faço um tipo particular de documentário. Se fui despertado pelo modelo dramatizado de Flaherty, logo topei com a revolução promovida por Dziga Vertov, um caminho que, infelizmente, foi interceptado. Vertov representou uma experiência vital e riquíssima, interrompida pelo stalinismo. Basta ver O Homem com a Câmera, que continua moderníssimo, absolutamente contemporâneo. Tinha a ver com a música e a poesia, não com a narração prosaica. Vertov valorizou o que era intrínseco ao cinema, deixando um inesgotável manancial de avanços em matéria de linguagem. Hoje estamos aquém de Vertov. O cinema ficou escravo de contar uma história, na tradição do teatro. Para exprimir minha admiração por Vertov, criei o selo Vertovisão, que antecede vários dos meus filmes. Ao contrário do que normalmente ocorre na obra de ficção, o documentário se gesta à mercê da matéria filmada e gravada. O próprio filme encaminha soluções na sua estrutura, sujeito à atração da realidade. Não tenho o menor preconceito contra a utilização de poesia e música no documentário. Uso a poesia com certa parcimônia, seguindo o conselho de João Cabral para não perfumar a flor. O que está filmado já tem sua poesia própria, uma magia que as pessoas intuem. Quanto à música, ela muitas vezes funciona como indutora de narratividade e de sentidos. Se o cinema é uma música congelada que depende do ritmo para viver, uma trilha sonora pode bem ressaltar essa correlação das duas artes. Música, para mim, é conteúdo. Em muitos casos, narro coisas a partir da inclusão da música. Ela ajuda a compreender não o fato em si, mas o que eu quero dizer do fato. O que mais manieta o documentarista é o som direto. Antes que a entrevista ocupasse o centro de tudo, meus filmes eram mais ficcionais. Criavam dialéticas e ressaltavam o espetáculo do mundo. Creio que o cinema ainda há de encontrar uma forma de superar as limitações da entrevista. Em diversas oportunidades, vi aproximarem meus documentários do campo da ficção. Não me importo. Na verdade, procuro dissolver esse limite através de encenações, da música, da metáfora, do apelo ao imaginário e à emoção. Percebo que em todos os meus filmes acaba se formando essa crosta de significações para além do real. Quadro 51 Abrir Janelas O cinema sempre foi para mim uma coisa visceral. Sobretudo no início da carreira, documentário era uma questão de disposição física, de não medir esforços nem distâncias. Era capaz de ficar um dia inteiro sem comer em função de um trabalho. Hoje, com mais de 70 anos, certamente não faria o mesmo. Como método, sigo a intuição, vendo o mundo nas suas aparências, como uma rica realidade que, se organizada, pode se transformar numa epopéia, num romance – ou numa tragédia. Fujo sempre de qualquer introspecção pretensiosa e jamais quero demonstrar qualidades de criador genial, nem exibir talentos de equilibrista em firulas formais ou preocupações metafísicas. Não tenho essa vocação, e portanto me volto para desvendar as aparências, os mecanismos sociais que levam às injustiças e desigualdades. Trabalho, como todo mundo, a partir de sentimentos em busca da emoção, seiva boa da expressão humana, mas sem privilegiá-la de forma a inibir a razão. Muitas vezes a chamada realidade factual se retrai e se mediocriza quando queremos captá-la com nosso limitado instrumental. Então é preciso correr atrás, espicaçá-la, perguntando, provocando, especulando e refletindo. Algum resultado aparece, combinando-se falas, fatos e atitudes freqüentemente ligados por fios imperceptíveis e laços subterrâneos. Tento também, em alguns casos, recompor o assunto por seus vestígios, pela sua raiz histórica e cultural: imagens antigas, fotos, fragmentos de filmes, músicas de época, jornais e documentos. Pesquiso muito antes de sair em campo com a equipe. Penso sempre numa recomposição, mas reservo grande parte ao improviso. Não tenho idéias preconcebidas e, quando as tenho, tomo o cuidado de descartá-las e deixar as coisas acontecerem. Documentar é abrir janelas para que entre a realidade. Por isso acredito que roteiro de documentário é sempre um ponto de partida, nunca de chegada. Existe para ser estuprado, já que o filme é uma consulta à vida. Mas há também o momento em que o diretor tem que se definir e formar uma opinião. Nem sempre estou pensando no que vai ser exatamente o filme que estou fazendo. Como filmo quase sempre de maneira intermitente, emprego os intervalos na reflexão sobre aquilo que já realizei, com freqüência modificando o roteiro, como uma obra aberta que se refaz a si mesma. Sempre tem uma coisa que está chegando. Preencho muitos cadernos de anotações, juntando elementos que se atraem e atento às contribuições do acaso. Trabalho muito por substituições e equivalências. Analisando bem, meus filmes são um grande faz-de-conta. Nos créditos da equipe, costumam aparecer diversos fotógrafos para um mesmo filme. Eles vão entrando ao sabor das circunstâncias de cada etapa de filmagem. Como resultado, não posso cobrar unidade fotográfica. Faço sempre o filme possível. Dada a ausência de uma rígida estrutura prévia à montagem, acompanho esse processo plano a plano. Editar é dialogar. Levo laudas e laudas escritas para o montador. Embora não me contente em simplesmente aprovar as iniciativas do montador, sou aberto a todas as contribuições relevantes. Assim, considero inesquecíveis as experiências com profissionais como João Ramiro Mello, Eduardo Leone, Manfredo Caldas e Ricardo Miranda. No documentário, roteiriza-se enquanto montase. Geralmente, inicio a montagem pela seqüência de abertura, que funciona como uma semente para a estrutura do filme, condicionando-a. A etapa seguinte é afeiçoar-se à estrutura, até que o filme passe a conversar comigo e a fazer suas exigências. Em certas horas, ele age como um organismo vivo – e é preciso atendê-lo. A edição de som dos meus filmes costuma ser muito simples e requer relativamente pouca intervenção tecnológica. Mas hoje, com os recursos digitais, eu teria condições de melhorar a qualidade do áudio de filmes como Mutirão e Pankararu. Quadro 52 Cadáveres Adiados Sempre tenho um filme envelhecendo feito vinho em algum canto da casa. Há sempre um projeto se armando nas malhas do tempo, como cadáveres adiados que procriam, para citar Pessoa. Uns são engolidos por outros, alguns ficam para trás como bichos que não agüentaram o estirão da caminhada. Um dia sonhei com uma conclusão para a trilogia de Saruê e Conterrâneos, que seria a História do Povo Nordestino. Não cheguei a botar no papel, mas imaginei um documentário-fleuve que tratasse o assunto desde a Recife dos holandeses, a colônia e a saga do açúcar, passando por Euclides da Cunha e Antônio Conselheiro, Gilberto Freyre, A Pedra do Reino, José Américo, Josué de Castro, as guerras camponesas – e culminando com uma epifania, que seria a transposição das águas do Rio São Francisco. Seria um projeto ciclópico, que demandaria as contribuições de vários documentaristas com experiência de Nordeste, como Coutinho, Geraldo Sarno, Ricardo Miranda, Walter Carvalho e outros. Usaríamos trechos de filmes notáveis, além de um grande esforço de produção para tentar entender as contradições que impediram a região de superar as limitações do meio físico e a má distribuição da terra. A intenção tem algo de utópico, mas, se as condições um dia se apresentarem, não me furtarei a tornála realidade. Bem mais modesto é o projeto intitulado A Fortaleza está Cercada, cujo material filmei há mais de 25 anos com meu irmão Walter. Recuperado para um futuro curta, mostra a bela fortaleza de Santa Catarina, em Cabedelo (PB), palco de tantos cercos históricos, sitiada finalmente pelas grandes companhias de petróleo estrangeiras instaladas na região. Da minha paixão pela xilogravura e da admiração pelo artista Hansen Bahia nasceu a idéia de fazer um filme a seu respeito. Pesquisei muito sobre esse gravurista que melhor expressou a Bahia popular, visitei sua casa e museu em Cachoeira de São Félix (BA). No entanto, não fui ágil o suficiente para produzir no tempo certo. Estou satisfeito com o documentário de qualidade que Joel de Almeida fez sobre Hansen em 2003. Ainda na área das artes plásticas, planejo um filme sobre Cícero Dias, não obstante Mário Carneiro tê-lo retratado há pouco tempo. Imponho-me o dever de repor em circulação registros preciosos filmados por Jacques Cheuiche e Walter Carvalho no passado. Em Paris, mais recentemente, gravei imagens de seu ateliê e entrevista com sua viúva. Brasília me inspirou dois projetos que cultivo com agrado. Um deles, a que chamo Esplanada, trata da Esplanada dos Ministérios, concebida como respiração bucólica da cidade, um lugar para o descanso das mentes e das vistas, mas que se converteu em grande arena de reivindicações de todo o país. Em meio à compilação de imagens feitas por mim e por outros cineastas, estará, por exemplo, uma passeata de quase 4.000 tratores, algo semelhante a um desfile de guerra. O outro filme esboçado sobre Brasília é sobre um pavoroso crime ocorrido na burocracia da cultura, em 1972. Pouco depois do afastamento de um certo Comandante Henning da diretoria da Fundação Cultural do DF, e da promessa do novo diretor de apurar as irregularidades da administração anterior, um oficial militar adentrou uma sala de reuniões e desfechou vários tiros a esmo, matando o coordenador do Festival de Brasília e um assessora de imprensa, além de deixar outras pessoas feridas. Já filmei os depoimentos de uma testemunha ocular, do marido de uma das vítimas e do advogado de acusação, Sepúlveda Pertence. Em sua entrevista, este último usou, a propósito do incidente, a palavra estrépito. Não vejo título melhor para esse documentário. Como já mencionado em quadros anteriores, sonhei em levar ao cinema o poema Boletim Sentimental da Guerra no Recife, de Mauro Mota; planejei um documentário de TV sobre Darcy Ribeiro e outro sobre as origens do rock-Brasília. Outros tantos ficaram pelo caminho, perdidos nos cadernos e nas intenções atropeladas pela dança das prioridades. Se pensar que a maioria dos meus 21 filmes foi um dia projeto, embalado na imaginação e reconfigurado no contato com a realidade, animo-me, então, a perseverar em mais alguns intentos. A esperança, em mim, é uma teimosia. Quadro 53 Um Lugar para a Memória Quem atentar para a foto da página seguinte, verá que a placa da Fundação Cinememória nada mais é que um banner móvel. Para não ser multado pelo governo do DF, já que a entidade não é instituída juridicamente, só o instalo em dias de eventos ou para fotos como essa. Na logomarca criada por Rogério Duarte, a palavra percorre, como uma fita de cinema, a engrenagem formada pelas cúpulas da Câmara e do Senado. A Fundação Cinememória foi inaugurada durante o Festival de Brasília de 1994, como parte do trabalho de coringas que na capital federal somos levados a fazer. Em Brasília, a quem faz cinema não basta realizar filmes. Desde o início, tivemos de construir sinais da existência de uma filmografia local, ou seja, dar corpo a um sistema cinematográfico. Além de filmar, cabe-nos também preservar a memória, dar testemunho do processo, editar textos, fomentar debates. Sempre inclinado a guardar registros e materiais, cedo comecei a acumular uma pequena memória do cinema que fazíamos na região. Ainda nos anos 1970, propus transformarem o Cine Brasília numa filmoteca, embrião da futu ra Cinemateca de Brasília. Enquanto isso não acontecia – como até 2006 não aconteceu –, fui reunindo a tralha no meu apartamento. Não os filmes, pois inexistiam condições de conservação, mas tudo o que os circundava: roteiros, fotos, documentos, equipamentos. Vinte anos mais tarde, sitiado pelo crescimento implacável da coleção, mudei-me para uma casa na Avenida W3-Sul, em cujo andar térreo instalei um misto de biblioteca e museu. Fazia-o também como um gesto de desabafo, uma provocação positiva aos poderes públicos. Acho incompreensível que Brasília, capital da República e patrimônio da cultura universal, não disponha de uma estrutura adequada à guarda de filmes e materiais correlatos. No dia em que for criada a nossa sonhada cinemateca, disponibilizarei todo o acervo por mim reunido. Desde sua criação, mesmo sem uma estrutura que lhe permita funcionar plenamente, a Cinememória virou referência para a classe cinematográfica do DF. Ali têm sua sede oficial a Associação Brasiliense de Cinema e Vídeo e a Associação dos Produtores e Realizadores de Filmes de Longa-metragem de Brasília (Aprocine). Em 2003, realizamos as Rodas de Cinema, reuniões para discutir exclusivamente projetos e estética, nas quais era vetado falar da política do setor. Alunos da UnB fazem visitas guiadas e pesquisadores de várias partes do país têm acolhida em suas dependências. A cada dois anos, a entidade concede o Prêmio Conterrâneos ao melhor documentário do Festival de Brasília. Entre os principais tesouros abrigados na Cinememória, figuram quatro moviolas, uma das quais serviu à montagem de Terra em Transe e Macunaíma; o leitor de imagens de Heinz Förthman; duas câmeras Eyemo da época da II Guerra; os primeiros troféus conquistados pelo cinema brasiliense; cartas de Mário Peixoto e Paulo Emílio; livros raros (entre os quase 3.000 títulos da biblioteca) e uma coleção da Revista de Cinema de Belo Horizonte; o pequeno acervo do Clube de Cinema de Brasília; muitas fotos e uma exposição permanente sobre o cinema brasiliense. E ainda toda a memória dos meus trabalhos. Continuo morando no andar de cima, junto a minha coleção de arte popular. Enquanto isso, no térreo a Cinememória se espalhou até pelo que um dia foram a cozinha e a lavanderia. Esta última foi transformada em salão nobre para reuniões, como a de fundação da Sociedade de Amigos do Pólo de Cinema e Vídeo. Mais recentemente, fiz uma reforma e instalei no mezanino um pequeno auditório para exibições, cursos e debates, a que chamei de Visionário Dziga Vertov. Desenhei portas e janelas no formato de tiras de fotogramas. Junto com o prazer de manter esse singelo e modesto memorial, vêm também os contra-tempos. A alergia, por exemplo. Ou o stress da luta insana contra o sumiço dos papéis. Posso passar uma semana à cata de um documento, apenas para perdê-lo em seguida no labirinto dos guardados. Em dias como esses, preciso tomar doses cavalares de Lexotan para dormir. A Cinememória, enfim, vai dando a medida do meu envelhecimento. Estou cada vez pior, e cada vez menos me suporto. Quadro 54 Cinema em Páginas Os três livros que já publiquei foram concebidos no mesmo espírito de formação de massa cultural que engendrou a Cinememória. O primeiro, co-editado pela Embrafilme e a Editora da UnB, em 1986, foi O País de São Saruê. Moveu-me o desejo de documentar as etapas de preparação, interdição e repercussão do filme, com o propósito de auxiliar no seu exame por estudantes e estudiosos. Uma vez que meus roteiros prévios costumam ser anotações não necessariamente correspondentes às cenas efetivas, optei por publicar a transcrição literal e detalhada do documentário pronto. A isso juntei artigos meus e alheios, assim como minha carta de intenções ao poeta Jomar Moraes Souto e um ensaio – A Heresia de São Saruê – em que me retrato ao longo de todo esse percurso. O volume foi ilustrado com fotos de cena e flagrantes de filmagem, reproduzindo na capa o cartaz em xilogravura que eu mesmo criei. Modelo semelhante de publicação foi o de Conterrâneos Velhos de Guerra, editado pela Fundação Cultural do DF em 1997. A UnB não se interessou pelos originais do livro correspondente a Barra 68, apesar de refletir um capítulo da história da instituição. Inaugurei as Edições Cinememória em 2002, com o volume Cinema Candango – Matéria de Jornal. Arquei particularmente com os custos da edição, num esforço pela consolidação de uma história do cinema brasiliense. Não uma memória histórica pura e simples, mas um relato matizado por valores humanos, com um propósito de interpretação e uma atitude política bem delineada. Sempre que estive em Brasília, fui colaborador intermitente dos jornais, com crônicas e artigos, alguns de natureza bastante crítica, sobre a atividade cinematográfica local, o papel da universidade e do festival, a criação das associações de classe etc. Procurei transportar essa ambiência para a coletânea, incluindo artigos de outros jornalistas sobre o meu trabalho enquanto partícipe do processo. Responsabilizei-me também pelo projeto gráfico do livro. Depois dessa iniciativa pioneira, foi bom ver a bibliografia do cinema em Brasília acrescida do livro de entrevistas Cineastas de Brasília, de Raquel Maranhão Sá. De minha parte, acalento o projeto de editar Pantasmas – Cinema e Vida, seleta de minhas críticas de cinema e pequenos ensaios sobre artes e cultura em geral, publicados em jornais e catálogos desde os tempos da Paraíba. E ainda a revista Plano Aberto, publicação intimamente ligada à academia, para refletir sobre o cinema brasiliense e questões diversas do audiovisual no Brasil e no mundo. Quadro 55 De Como o Cabra Chorou As homenagens que tenho recebido nos últimos anos trazem a marca de grandes amizades construídas ao longo do tempo. Em 2005, quando completei 70 anos, meu trabalho foi objeto da retrospectiva Vladimir 70, iniciativa carinhosa do casal Gioconda Caputo e Sérgio Moriconi, dois ex-alunos e ternos amigos, muito ativos na cena cultural brasiliense – ela como jornalista, produtora e divulgadora; ele como professor, cineasta e crítico de cinema. O evento, abraçado pelo Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e do Rio, foi uma inesquecível demonstração de afeto de uma legião de amigos. Na festiva inauguração da mostra em Brasília, fui surpreendido pela apresentação de um superclipe de 8 minutos, preparado por meu irmão Walter, em que memórias de família abrem caminho para imagens do meu trabalho. Embora venha de uma cultura em que homens não choram, naquele dia fui às lágrimas. Já na noite da abertura carioca, as luzes do cinema se apagaram duas vezes – a primeira, para a entrada de um bolo com velinhas. Durante a retrospectiva, tive o prazer de receber, enfim, os cumprimentos de familiares de José Américo de Almeida, que voltaram a ver O Homem de Areia. E de conhecer parentes de gente de Sousa (PB), atraídos ao cinema pelo desejo de ver retratos de seus antepassados em O País de São Saruê. Antes que soe como um velho frouxo, apressome a dizer também que a visão de conjunto serviu a uma reavaliação dos meus filmes. Al-guns me surpreenderam positivamente, outros pareceram frágeis. Percebi melhor como eles se intercomunicam, feito filmes-satélite uns dos outros, constituindo um microssistema. Vendo-me de fora, constatei a evolução desde um caminho que não era propriamente o meu, em Romeiros da Guia, até o enfrentamento sem medo da câmera e das personalidades, em Conterrâneos Velhos de Guerra. Com O Engenho de Zé Lins, sinto que me reorganizei, descobri o meu método sem necessariamente ter um método. No Festival de Gramado de 2006, fui o primeiro documentarista a ser distinguido com o Prêmio Eduardo Abelim, alusão ao pioneiro do cinema gaúcho. Em 2007, fui alvo de algumas simpáticas homenagens em Goiás, Mato Grosso e no meu estado natal, onde me agraciaram com o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal da Paraíba. Recebi, ainda, das mãos do Presidente Lula, a Ordem do Mérito Cultural. Para mim, que trabalho escondido numa esquina deste grande país, manifestações de reconhecimento são sempre um adicional de visibilidade, um voto de confiança para os dias melhores que certamente virão. Filmografia 1962 • Romeiros da Guia 35 mm, P&B, 15 minutos Direção e roteiro: João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho – Fotografia: Hans Bantel – Montagem: João Ramiro Mello – Música: Pedro Santos – Assistente de câmera: Manuel Clemente – Narração: William Mendonça 1968 • A Bolandeira 16-35 mm, P&B, 11 minutos Direção, produção e roteiro: Vladimir Carvalho – Produtor associado: Marcus Odilon Ribeiro Coutinho – Fotografia: Manuel Clemente – Montagem: João Ramiro Mello – Poema: Jomar Moraes Souto – Narração: Paulo Pontes 1968 • O Sertão do Rio do Peixe 16 mm, P&B, 50 minutos (filme posteriormente absorvido por O País de São Saruê) Direção e produção: Vladimir Carvalho – Fotografia: Manuel Clemente – Montagem: Vladimir Carvalho, Raimundo Pereira 1970 • Vestibular 70 35 mm, P&B, 14 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho e Fernando Duarte – Fotografia: Fernando Duarte, Heinz Förthman, Miguel Freire – Montagem: Eduardo Leone, Cecil Thiré – Música: Caetano Veloso, Conrado Silva 1971 • O País de São Saruê 16-35 mm, P&B, 85 minutos Direção, produção e roteiro: Vladimir Carvalho Produtor associado: Marcus Odilon Ribeiro Coutinho – Fotografia: Manuel Clemente -Montagem: Eduardo Leone – Música: José Siqueira, Marcus Vinícius – Poema: Jomar Moraes Souto Vozes: Echio Reis (poema), Paulo Pontes (narração) – Assistente de direção: Walter Carvalho 1972 • Incelência para um Trem de Ferro 35 mm, Cor, 20 minutos Direção, produção e roteiro: Vladimir Carvalho – Produtor associado: José Carlos Avellar – Fotografia: Walter Carvalho – Montagem: Adamastor Câmara, Vladimir Carvalho – Pesquisa: Virginius da Gama e Mello, Paulo Melo – Narração: Paulo Pontes – Música: Armorial, Luiz Gonzaga, cirandeiros 1973 • O Espírito Criador do Povo Brasileiro 35 mm, Cor, 14 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Fernando Duarte – Montagem: João Ramiro Mello – Música: Villa-Lobos, Antônio Carlos Jobim, Antônio Carlos Nóbrega – Narração: Paulo Pontes 1973 • Itinerário de Niemeyer 16 mm, P&B, 19 minutos Um filme de Maurice Capovilla (som), Fernando Duarte (fotografia), Hermano Penna, Vladimir Carvalho, Ricardo Moreira, Cecil Thiré, Manfredo Caldas (montagem) – Estrutura e coordenação: Vladimir Carvalho – Música: Villa-Lobos – Consultoria: Luís Fisberg 1974 • Vila Boa de Goyaz 35 mm, Cor, 14 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Heinz Förthman – Montagem: João Ramiro Mello – Narração: Arnaldo Jabor – Música: Quinteto Violado, Tonico do Padre, anônimos 1975 • A Pedra da Riqueza 35 mm, P&B, 15 minutos Direção, produção e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Manuel Clemente, Fernando Duarte – Montagem: João Ramiro Mello – Música: Fernando Cerqueira – Narrador: José Laurentino 1975 • Quilombo 16 mm, Cor, 23 minutos Direção, pesquisa e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Walter Carvalho – Montagem: João Ramiro Mello – Música: Tonico do Padre, Folia do Divino – Narração: Paulo Pontes 1976 • Mutirão 16 mm, Cor, 19 minutos Direção, produção e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Fernando Duarte – Imagens adicionais: Ronaldo Guerra, Walter Carvalho – Som: Walter Goulart – Montagem: Manfredo Caldas 1977 • Pankararu de Brejo dos Padres 16 mm, Cor, 35 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho – Fotografia: Walter Carvalho – Montagem: Manfredo Caldas – Pesquisa: Cláudia Menezes – Som direto: Jom Tob Azulay 1979 • Brasília Segundo Feldman 35 mm, Cor, 20 minutos Um filme de Vladimir Carvalho e Eugene Feldman – Compilação, estrutura e produção: Vladimir Carvalho – Fotografia: Eugene Feldman Imagens adicionais: Alberto Roseiro Cavalcanti, Walter Carvalho – Montagem: Manfredo Caldas Depoimentos: Athos Bulcão, Luiz Perseghini 1982 • O Homem de Areia 35 mm, P&B, 116 minutos Direção, pesquisa e roteiro: Vladimir Carvalho Direção de produção: Carlos Del Pino – Fotografia: Walter Carvalho – Som direto: Antonio César – Montagem: Ricardo Miranda, Manfredo Caldas – Música: J. Lins, canções e hinos diversos Narração: Fernanda Montenegro, Mário Lago Entrevistadores: Adalberto Barreto, Gonzaga Rodrigues, Natanael Alves, Waldemar Solha 1984 • Perseghini 16 mm, Cor, 21 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho e Sérgio Moriconi – Produção: Vladimir Carvalho – Fotografia: Alberto Roseiro Cavalcanti – Som direto: Francisco Pereira – Montagem: Manfredo Caldas – Pesquisa: Gioconda Caputo 1984 • O Evangelho Segundo Teotônio 35 mm, Cor/P&B, 90 minutos Direçãoeroteiro:VladimirCarvalho–Fotografia:ChicoBotelho,AlbertoRoseiroCavalcanti –Montagem: João Ramiro Mello – Música: Marcus Vinícius – Som direto: Walter Rogério, Chico Bororo – Narração: Ester Góes – Direção de produção: Armando Lacerda 1989 • No Galope da Viola 16 mm, Cor, 15 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho – Produção: Vladimir Carvalho, Normando Santos – Fotografia: Manuel Clemente – Montagem: Eduardo Leone – Música: Otacílio Batista e Oliveira de Panelas 1990 • A Paisagem Natural 35 mm, Cor, 20 minutos (originalmente episódio do longa Brasília, a Última Utopia) Direção, pesquisa e roteiro: Vladimir Carvalho – Produção: José Pereira – Fotografia: Walter Carvalho – Montagem: Eduardo Leone – Música: Villa-Lobos, Edino Krieger, Gustav Holtz 1990 • Conterrâneos Velhos de Guerra 16-35 mm, Cor/P&B, 175 minutos Direção, roteiro e produção: Vladimir Carvalho – Fotografia: Alberto Roseiro Cavalcanti, David Pennington, Fernando Duarte, Jacques Cheuiche, Marcelo Coutinho, Waldir de Pina, Walter Carvalho – Música: Zé Ramalho – Poema: Jomar Moraes Souto – Montagem: Eduardo Leone -Som direto: Chico Bororo – Narração: Othon Bastos 1996 • Com os Pés no Futuro (Zum-Zum) 16 mm/Betacam, Cor, 7 minutos Direção e roteiro: Vladimir Carvalho – Produção: Manduka, Zum-Zum – Música: Manduka – Fotografia: André Luís da Cunha – Montagem: Frederico Schmidt, João Ramiro Mello 1997 • Ariano Suassuna em Aula-Espetáculo Betacam, Cor, 46 minutos Direção: Vladimir Carvalho – Fotografia: Waldir de Pina, André Luís da Cunha 1998 • Manejo Florestal Betacam, Cor, 30 minutos Direção: Vladimir Carvalho 2000 • Barra 68 – sem Perder a Ternura 35 mm, Cor/P&B, 82 minutos Direção, pesquisa e roteiro: Vladimir Carvalho Produção executiva: Manfredo Caldas – Fotografia: André Luís da Cunha – Som direto: Chico Bororo – Montagem: Manfredo Caldas, Vladimir Carvalho – Música: Marcus Vinícius, Luís Marçal Imagens adicionais: Marcelo Coutinho, Jacques Cheuiche – Som direto adicional: Paulo Seabra, Ivan Capeller 2001 • Pátria Amada Brasil Betacam, Cor, 30 minutos Direção: Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas Produção: Mário Lúcio Brandão – Fotografia: Waldir de Pina – Montagem: Manfredo Caldas Som: Ricardo Pinelli 2007 • O Engenho de Zé Lins 35 mm, Cor, 84 minutos Direção, produção, pesquisa e roteiro: Vladimir Carvalho – Produção executiva: Eduardo Albergaria, Leonardo Edde – Fotografia: João Carlos Beltrão, Jacques Cheuiche, Walter Carvalho, Waldir de Pina – Fotografia adicional: Karen Akerman, Cristiana Grumbach, Lula Carvalho – Música: Leo Gandelman, José Siqueira, Luiz Gonzaga, André Moraes – Montagem: Renato Martins, Vladimir Carvalho – Som: Jamal Shreim, Osman Assis – Narração: Othon Bastos – Elenco: Ravi Ramos Lacerda Outros Trabalhos • O Grito da Terra (1964) Direção: Olney São Paulo – Assistente de montagem: Vladimir Carvalho • Opinião Pública (1965) Direção: Arnaldo Jabor – Assistente de direção: Vladimir Carvalho • Rio, Capital Mundial do Cinema (1965) Supervisão: Arnaldo Jabor – Assistente de direção: Vladimir Carvalho • Dramática Popular (1968) Direção: Geraldo Sarno – Produção executiva: Vladimir Carvalho • Os Homens do Caranguejo (1969) Direção: Ipojuca Pontes – Co-roteirista e produtor executivo: Vladimir Carvalho • Os Imaginários (1969) Direção: Geraldo Sarno – Produção executiva: Vladimir Carvalho • Jornal do Sertão (1970) Direção: Geraldo Sarno – Produção executiva: Vladimir Carvalho • Brasília Ano 10 (1970) Direção: Geraldo Sobral Rocha – Coordenação: Vladimir Carvalho • Cabra Marcado para Morrer (1981) Direção: Eduardo Coutinho – Assistente de direção (1964) e produtor associado (1981): Vladimir Carvalho • Uma Questão de Terra (1988) Direção: Manfredo Caldas – Produtor associado: Vladimir Carvalho • Negros de Cedro (1998) Direção: Manfredo Caldas – Roteiro: Vladimir Carvalho e Manfredo Caldas • Kalunga – um Povo do Cerrado (2005) Direção: Manfredo Caldas – Roteiro: Vladimir Carvalho Para ler mais sobre Vladimir Carvalho BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. Companhia das Letras, 2003. Conclusão, Nota 2003 BONFIM, João Bosco Bezerra. Romance do Vaqueiro Voador. Ed. LGE, 2003. CAETANO, Maria do Rosário. Cineastas Latinoamericanos: entrevistas e filmes. Estação Liberdade, 1997, p. 121-127. CARVALHO, Vladimir. Pantasmas: ciclo cinema brasileiro XXIX. Fundação Cultural do Distrito Federal/Centro de Cinema, 1975. CARVALHO, Vladimir. A Caterva não Tolera. Revista de Cultura Vozes, vol. 72, n. 6, 1978, p. 35-42. CARVALHO, Vladimir. O País de São Saruê. Roteiro, textos e fortuna crítica. Embrafilme/UnB, 1986. CARVALHO, Vladimir e outros. Caderno de Crítica nº 3, Embrafilme, 1987. Textos de Paulo Melo, Vladimir Carvalho, José Carlos Avellar e Jean-Claude Bernardet. CARVALHO, Vladimir. Rolando a Pedra, Como se fosse Sísifo. Seminário – Documentário Brasileiro: tendências e perspectivas. Centro Cultural São Paulo, 1994. CARVALHO, Vladimir. Conterrâneos Velhos de Guerra. Roteiro, textos e fortuna crítica. 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Capítulo: Vladimir de Carvalho: interrupção de filmagens e fuga pelo mato. LEAL, Wills. O Discurso Cinematográfico dos Paraibanos, edição do autor, João Pessoa, 1989. Capítulo: O Cinema de Vladimir Carvalho ou a Valorização da Força de Trabalho. LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. UFPb/UFBA, 1982. Capítulo Documentários Interpretam e Denunciam a Miséria. MARINHO, José. Dos Homens e das Pedras – O Ciclo do Cinema Documentário Paraibano (19591979). EdUFF, 1998. MORICONI, Sérgio (org.). Vladimir 70. Catálogo da retrospectiva. CCBB, 2005. Textos de Vladimir Carvalho, Sérgio Moriconi, Amir Labaki, Jean-Claude Bernardet, José Carlos Avellar, Myrna Silveira Brandão, David E. Neves, João Luiz Vieira, Orlando Senna, Carlos Alberto Mattos, Marcos de Souza Mendes, TT Catalão, Eduardo Souza Lima e Walter Carvalho. NEVES, David E. No país de São Saruê. In Telégrafo Visual – Crítica Amável de Cinema, org: Carlos Augusto Calil, Ed. 34, 2004. ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. 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Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Carlos Alberto Mattos 11 No Espelho de Zé Lins 21 Memória de Itabaiana 31 Dragões e Maxambombas 41 Mitos Familiares 47 Irmãos 55 O Mundo Começava em Recife 59 Juventude Ativa 65 Enfim, um Cinema Possível 73 No Princípio foi Aruanda 79 Romeiros na Contraluz 85 O Chamado da Bahia 89 Barbudos do Galiléia 93 Procurados 99 Santeiro Clandestino 103 Choque de Cinema-verdade 109 Cavando Filme no Rio do Peixe 113 Vida Provisória 119 Utopia Sertaneja 125 Na Contramão do Milagre 131 Mini-odisséia do Atraso 139 Pedras na Lua 145 Pantasmas 149 Um Candango a Mais 155 Brasília e o Documentário 159 Rito de Passagem 163 Agosto Fatídico 169 Herói, Mártir e Vilão 173 Por um Cinema Brasiliense 177 Na Arena Política 183 Beleza Filmada 187 Fantasmas de Goiás Velho 189 Doce de Marmelo 195 Intrusos no Povoado 199 O Abraço da Natureza 203 Ecos de um Massacre 211 Do Faroeste à Polêmica 215 Cicatrizes 219 À Procura dos Conterrâneos 221 Ópera Pobre 227 Oscar Niemeyer 233 Pequenos Escândalos 237 Cultura Conterrânea 241 Índios 243 O Cinema Simples 249 Notas Musicais 251 Figura e Paisagem 257 Três Enterros 263 Saúde Civil 271 Vídeos Instantâneos 279 Aquém de Vertov 281 Abrir Janelas 287 Cadáveres Adiados 291 Um Lugar para a Memória 295 Cinema em Páginas 301 De Como o Cabra Chorou 305 Filmografia 309 Outros Trabalhos 317 Para ler mais sobre Vladimir Carvalho 319 Crédito das Fotografias Adriana Andrade 20, 29, 98 Alberto R. Cavalcante 218 André Luís da Cunha 278 Andréia Fiúza 171 Armando Lacerda 189 Arquivo Machete 168 Arthur Omar 234 Benval Fon 272 Carlos Namba 241 César Mendes 222, 233 Evaristo Mamede 57 Fernando José Alves 286 Gilberto Otero 256 Hans Bantel 84 João Facó 210 José Carlos Avellar 122 Juvenal Pereira 240 Kim Ir Sen 225 Leonardo Maluf 202 Luís Carlos Homem da Costa 162, 165 Luís Fisberg 176 Manuel Clemente 114, 140 Mila Petrillo 102, 182, 287, 291, 296, 299 Natanael Longuinho 64 Rucker Vieira 79 Walter Carvalho 40, 117, 122, 123, 124, 131, 143, 144, 151, 152, 194, 198, 263, 265 Zeca Nobre Porto 158 Zuleica de Souza 304 A presente obra conta com diversas fotos, grande parte de autoria identificada e, desta forma, devidamente creditada. Contudo, a despeito dos enormes esforços de pesquisa empreendidos, uma parte das fotografias ora disponibilizadas não é de autoria conhecida de seus organizadores, fazendo parte do acervo pessoal do biografado. Qualquer informação neste sentido será bem-vinda, por meio de contato com a editora desta obra (livros@imprensaoficial.com.br/ Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 / Demais localidades 0800 0123 401), para que a autoria das fotografias porventura identificadas seja devidamente creditada. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto Batismo de Sangue Roteiro de Helvécio Ratton e Dani Patarra Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe Bragança Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Paulo Morelli e Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Claudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboard de Fabio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, o Mistério Luiz Carlos Lisboa Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 344 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Mattos, Carlos Alberto Vladimir Carvalho: pedras na lua e pelejas no planalto / Carlos Alberto Mattos – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. 344p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-650-1 1. Cinema – Diretores e produtores – Brasil - Biografia 2. Cinema – Brasil - História 3. Carvalho, Vladimir , 1935 -Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.437 098 1 Índices para catálogo sistemático: 1. Cineastas brasileiros : Apreciação crítica 791.437 098 1 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria