Quatro textos para um teatro veloz Ivam Cabral Imprensa Oficial São Paulo, 2006 Governador Cláudio Lembo Secretário Chefe da Casa Civil Rubens Lara Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira Coleção Aplauso Teatro Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne Assistência Operacional Andressa Veronesi Editoração Aline Navarro Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Revisor Sárvio Holanda Dante Pascoal Corradini Amâncio do Vale Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de manei ra singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para rea lizar esse trabalho de apro ximação junto a nossos biografados. Em entre vistas e encontros sucessivos foi-se estrei tan do o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram aber tos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõe seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memó ria e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importan te na Coleção, pois os resultados obti dos ultrapassam simples registros biográ ficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instru mentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a forma ção intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracte rizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e conti nuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferen ciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas lingua gens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artis ta, seus princípios, a formação de sua persona lidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envol ve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relaciona mento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instru mentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as biblio tecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espe ra contem plar o público de língua portu guesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e direto res, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criati vidade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Cole ção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excep cionais pesquisas iconográficas, que se origi naram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publi cou o roteiro histórico de O Caçador de Dia mantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O caso dos irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leito res se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Gru po Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa docu mental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entu siasmo, colocar à dispo sição todas essas informações, atraentes e aces síveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câme ras – e, com referência a esses seres especiais que ali transi tam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disse minado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negli genciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Para Rodolfo García Vázquez, Silvanah Santos e Germano Pereira – irmãos de alma e de sina. Para Irineu, Ivani, Irani, Dimi e Cláudio. Para meus pais, José Francisco e Eunice. Ivam Cabral Introdução Ivam Cabral não é um dramaturgo, mas um ator que escreve eventualmente para o teatro. Escreve quando a necessidade o instiga, como foi o caso de De profundis. Escreve quando é desafiado por uma idéia arrebatadora, categoria em que entram Os cantos de Maldoror. Escreve quando busca exorcizar demônios, gaveta em que se encaixa A herança do teatro. Escreve quando reflete sobre o comportamento humano, o nosso comportamento, e o desastroso legado que gerações de homo sapiens (?) estão deixando umas para as outras, registrando sua visão sombriamente esperançosa, ou vice-versa, em Faz de conta que 13 tem sol lá fora. O teatro de Ivam Cabral não é o de alguém preocupado com a eternidade literária, não visa às academias. Quer, isso sim, o palco. Quer a encenação, o diretor, os atores, a produção. Ator de sólida técnica e arrebatadora ousadia, Ivam é hoje um dos intérpretes mais completos e maduros de sua geração. Há 17 anos, no Teatro dos Satyros, que fundou ao lado de Rodolfo García Vázquez, constrói uma sólida biografia, que não esmorece diante de nenhum desafio. Atuar ao lado de Ivam é uma aventura. Em cena, ele nunca pede menos que o absoluto. A absoluta entrega ao personagem, a absoluta possibilidade de incorporar o acaso à representação. É um ator que combate como poucos o tédio da repetição, Ivam não repete. A cada noite recria, reinventa as personagens que vive. Dono de um incrível rigor, de uma seriedade que no trabalho beira o fervor religioso, está sempre pronto a mostrar a verdade do trabalho do ator, com uma rara disponibilidade. Onde outros atores recuam, intimidados pela entrega excessiva ao papel, ao público, à vida, Ivam avança. E estabelece um exemplo de domínio de cena, de conhecimento íntimo do jogo teatral. A dramaturgia de Ivam obedece a essas características. É visceral e pulsante. Mas o trabalho dramatúrgico desse artista requer a encenação, o diálogo com a direção e com seus intérpretes. Qualquer texto teatral demanda isso, sem dúvida. Mas em dramaturgias como a de Ivam Cabral a peça não é redigida com vistas à sua autonomia literária. A escrita está endereçada totalmente à cena. Ainda assim, as peças, quando lidas, revelam uma intensa capacidade de construir desafios. São obras instigantes, que mexem com a imaginação do leitor, que tratam de questões urgentes. A liberdade, o direito à diferença, a natureza do mal e seu exercício, a angústia de viver, o prazer de viver, todas essas questões são abordadas nas peças que integram este volume. São assuntos que o ator/autor disseca com a mesma paixão com que elabora suas personagens. São mergulhos profundos em indagações que estão na cabeça de todos os seres pensantes do planeta neste momento. A diferença é que o artista dá forma a elas. E não nos promete saídas fáceis. O teatro de Ivam Cabral explora abismos. Boa aventura, leitor. Alberto Guzik Prefácio: Lux in Tenebris Ivam Cabral merece a ousadia da Coleção Aplauso em incluí-lo na série, mesmo que ele diga não ser um dramaturgo. Ivam, às vezes, assume um discurso defensivo. Timidez. O fato é que não pára de fazer coisas como ator, diretor e, sim, autor de duas peças prontas e duas adaptações de textos conhecidos: Oscar Wilde e Lautréamont. A percepção dramática na elaboração do enredo, a definição exata dos personagens e a originalidade dos assuntos estão bem delineados em Faz de conta que tem sol lá fora e A herança do teatro. Na primeira, duas pessoas fazem confidências sobre a vontade de chorar em dia de chuva. Na se gunda, um letreiro em néon sinaliza o tempo passando para gente que age em função dos tormentos que se abatem sobre suas vidas miúdas (empregada doméstica, vendedora de flores, empregado de estacionamento, um enigmático, Dramaturgo Fracassado, entre outros). O realismo é sempre perpassado por um sopro de fantasia. O escritor crê na impalpável dimensão noturna metropolitana onde gatos e aparências – incluindo-se a sexual - são pardos. Prefere filtrar esse cotidiano uma condescendência não diretamente ideológica. O protesto social está subentendido. É quase Fellini, mas nem tanto. O universo do cineasta italiano é o dos provincianos um tanto puros e protegidos pela escala humana da cidade. Na Rimini de celulóide, a família do adolescente e a prostituta gorda se conhecem. São Paulo, ao contrário, é pura impiedade anônima, daí a sua face criminal. Com personagens em trânsito, na exis tência e na cidade, Ivam integra a dramaturgia dos anos 90, que sucede à da virada dos anos 60 para a década de 70, que teve em Plínio 18 Marcos a sua figura referencial. O conjunto delas forma um teatro de sobreviventes. Se em Plínio eles são cruéis ao limites do não humano, Ivam prefere os indefesos, fixando-os entre o lirismo e a crônica policial. O teatro é o campo por excelência dos perdedores e nele cada autor se revela na descrição das quedas. Enquanto Jean Genet ritualiza a perversão e Plínio fala de prostitutas massacradas, Ivam Cabral cuida dos desgarrados portadores da loucura mansa que os anestesia dos sofrimentos. Mais um artista com a província na memória afetiva, e que sempre a levará consigo. Observa a solidão de concreto com olhos que viram paisagens amenas ainda que melancólicas (como Leilah Assumpção, José Vicente de Paula, Antonio Bivar, Mário Prata e Timochenco Wehbi, todos da chamada Geração 70). Ivam é paranaense da pequena e bonita Ribeirão Claro, na divisa com o Estado de São Paulo. Sua vida por ele mesmo: “Em Ribeirão eu fazia muito teatrinho com o pessoal da Cruzada Eucarística e também do Lions. Cresci sabendo que iria embora de lá quando fizesse 18 anos com o propósito de me profissionalizar no teatro. Com 19 anos estava morando em Curitiba, fazendo Administração de Empresas e trabalhando no Banestado. Morava próximo do Teatro Guaíra. Era freqüentador mais que asssíduo. Um dia, vi um anúncio do primeiro 19 vestibular do Curso Superior de Artes Cênicas. Me inscrevi, passei e acabei por me formar”. Os personagens e autores de O assalto, de José Vicente, Fala baixo senão eu grito, Leilah, O cordão umbilical, de Prata, A vinda do Messias, de Timochenco contam histórias semelhantes. Todos eles, e Ivam, são interioranos e poderiam cantar o poema Mamãe, coragem do piauiense Torquato Neto musicado por Caetano Veloso: Mamãe, mamãe não chore A vida é assim mesmo eu fui embora Mamãe, mamãe não chore Eu nunca mais vou voltar por aí Mamãe, mamãe não chore A vida é assim mesmo Eu quero mesmo é isto aqui Mamãe, mamãe não chore (...) Mamãe, mamãe não chore Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, Mamãe, seja feliz Mamãe, mamãe não chore (...) Eu por aqui vou indo muito bem, De vez em quando brinco carnaval E vou vivendo assim: felicidade na cidade que eu plantei pra mim 20 E que não tem mais fim, não tem mais fim, não tem mais fim Ivam: “Assim que me formei no curso de teatro arrumei minhas coisas e me mandei para São Paulo. Cheguei sozinho e não conhecia ninguém. Arrumei um quarto numa pensão na Liberdade e saí por aí. Para me sustentar, consegui um trabalho numa distribuidora de livros. Fui à ECA/USP buscar informações sobre o curso de mestrado e vi um anúncio que procurava atores. Era um grupo do Rodolfo García Vázquez. Fiz o teste, passei e comecei a trabalhar com o Rodolfo no início do ano de 1989. Em junho deste mesmo 1989 nós dois criamos Os Satyros”. Enfim, a história acabou bem e a mãe de Ivam não chorou. Assiste aos espetáculos do filho que, se não brinca tanto o carnaval, fundou um teatro. É lá que se abrigam os anjos caídos dos textos de Sade, Lautréamont, Wilde, Plínio, Mário Bortolotto, a alemã Dea Loher de A vida na Praça Roosevelt, e do próprio Ivam. Os dramaturgos dos anos 90 recolocaram em pauta a degradação social das grandes cidades. O que era explicitado quase só por Plínio Marcos ganhou o interesse desses novos autores que se voltam para a violência das periferias e para a transformação dos pequenos delitos em crimes horrendos. Parte deles retoma o fio do isolamento, o mesmo 21 sentimento de desamparo e estranheza característico das peças dos dramaturgos dos anos 70. A figura do jovem sem rumo é recorrente em cena (bastam os exemplos conhecidos de À mar-gem da vida, de Tennessee Williams e A his tória do zoológico, de Edward Albee). O tea tro brasileiro posterior ao engajamento de es querda de Gianfrancesco Guarnieri (Eles não usam black-tie) e Oduvaldo Vianna Filho, entre outros, nos anos 50 e 60, voltou-se, sobretudo em São Paulo para a aglomerada solidão poetizada por Tom Zé. A imagem da selva de pedra foi revista por escritores que vivenciaram dias de anonimato em pensões modestas e empregos de circunstância na cidade “que plantei pra mim / e que não tem mais fim”. Há variações de enfoque com incursões pelas crises existenciais e morais da classe média. É o que faz, por exemplo, Consuelo de Cas tro em À flor da pele e Caminho de volta, e Maria Adelaide do Amaral, a partir de Bodas de papel. Ou seja, de meados de 1968 à atualidade duas gerações forjaram a dramaturgia da migração província para a capital, dos atritos entre tempe ramentos sensíveis e a rudeza nos contatos humanos e das fugas da realidade pelos vícios, fetiches, sexo e, no limite, crime. Há as exceções de Samir Yazbek, Bosco Brasil, Otavio Frias Filho 22 e Alcides Nogueira, mais dedicados às questões ideológicas, históricas e culturais. Contribuições que só enriquecem esse quadro. Mas o peso da entropia social, da guerra de todos contra todos, influi decisivamente nos auto res de agora que descrevem o que se passa na periferia e nos cortiços centrais. Da favela à Cra co lândia (o quadrilátero paulistano da droga) estão arma dos os cenários de Fernando Bonassi, Amir Labaki, Nilton Bicudo, Pedro Vicente, Leonardo Alckmin, Mário Bortolotto, Jarbas Capusso Filho e Ivam Cabral. Cada um ao seu jeito. Entre a surdina das dores particulares e a brutalidade dos estupradores. A pluralidade de estilos – e sem o enquadramento ideológico do passado – permite abordagens psicológicas, fantasias mais ou menos absurdas, mas verossímeis, recortes sociológicos e, até a auto-referência comportamental traduzida no teatro da questão gay. Ivam escolheu o registro da marginalidade, mas não a dos que praticam a violência consciente e assumida. Ao contrário, é a inquietante fragilidade das suas figuras que incomoda. Os repentes erráticos de viúvos, sem teto, solteirões, travestis, gente de programa e suicidas em potencial baixam sobre esses enredos como a luz da rua. É “nos delírios nervosos / dos anúncios luminosos”, do samba canção de Lupiscínio Rodrigues, que transitam pobres diabos risíveis, patéticos e alucinados. Ivam Cabral chora e ri por eles. 23 Pela mulher que carrega os ossos da filha para enterrar no Nordeste, por aquela outra que só tem um gato por companhia. Fora do próprio texto, acolhe no palco de Os Saty ros a sexualidade cambiante e áspera de Filosofia na alcova, Sade, A vida na Praça Roosevelt e Os can tos de Maldoror, de Lautréamont, traduzido pelo poeta Cláudio Willer, que ajustou às suas necessidades de ator, e De profundis, de Oscar Wilde, original em prosa que recriou como uma peça sua. Essas duas co-autorias estão incluídas no presente volume. A característica mais forte do teatro de Ivam Cabral talvez seja mesmo o lirismo em clima de absurdo. Algo do universo infantil e cruel de Fernando Arrabal mesclado pela louca vaidade dos fracassados que se enganam para sobreviver. Como em Bastidores, de Chico Buarque: “Cantei, cantei Nem sei como eu cantava assim Só sei que todo o cabaré Me aplaudiu de pé Quando cheguei ao fim” O devaneio de Ivam não ofusca, porém, sua compaixão quase religiosa pelos desvalidos. Demons24 tra sempre afeto pelos amalucados que arrastam suas esquisitices pelas esquinas. Vê nos prostitutos de todas as tendências o comportamento do hermafrodita de Lautréamont, “aquele de energia viril e dono de graça de uma virgem celeste”. Aqui se reúnem em uma só pessoa, o ator, o autor e o realizador de uma estética teatral – em parceria com Rodolfo García Vázquez – que incorpora sofisticados conhecimentos musicais, literários e de artes plásticas e a simpatia irônica pelo mais deslavado kitsch. Tem-se assim o Cabaré europeu, mordaz e triste e esse outro pobretão e latino, às vezes engraçado. O material posto em cena lembra um pouco tudo: expressionismo alemão, Goya, Fassbinder, Herzog, Fellini, o barroco, o carnaval e a arte popular do Brasil. Na síntese, uma outra linguagem, a dos Satyros. Ivam Cabral é o poeta desse território em luscofusco. Vive mergulhado no ambiente que criou e que depende muito do seu talento em transfigurar em alguma esperança o que é, possivelmente, um fim de mundo. Jefferson Del Rios abril 2006 Faz de conta que tem sol lá fora Faz de conta que tem sol lá fora Peça teatral em ato único, de Ivam Cabral. Faz de conta que tem sol lá fora foi selecionado em 2002 para o projeto Agora metrópolis, promovido pelo Teatro Ágora, em São Paulo/SP. No dia 7 de abril de 2003, aconteceu a estréia do espetáculo, no mesmo espaço. A ficha técnica era a seguinte: Elenco: Beatriz Bolonha e Nilton Bicudo Direção: Aline Meyer Cenário e Figurinos: Aline Meyer, Beatriz Bolo-29 nha, Carlos Baldim e Nilton Bicudo Iluminação: Paulo Barcellos Trilha Sonora: Aline Meyer e Nilton Bicudo Realização: Teatro Ágora Ainda em 2003, houve nova produção do texto. O espetáculo estreou em Curitiba/PR, no Espaço dos Satyros, no dia 12 de setembro, com a seguinte ficha técnica: Elenco: Silvanah Santos e Cristóvão de Oliveira Cenário, Sonoplastia, Iluminação e Direção: Rodolfo García Vázquez Figurinos: Silvanah Santos Produção Executiva: Dimi Cabral e Gisa Gutervil Projeto Gráfico: Juarez Zaleski e Fabio Biscaia Realização: Companhia de Teatro Os Satyros Patrocínio Prefeitura Municipal de Curitiba Fundação Cultural de Curitiba Projeto Residências Culturais. Apoiadores Viação Itapemirim Penha Charlotte Hair Studio Corpo Livre Ouro Verde Hotel Editora Gráfica Dramatis Personae Ele Ela (Uma campainha que toca) ELE Oi. ELA Oi. ELE Incomodo? ELA A porta estava aberta. Entre. ELE Posso? ELA Eu disse pra você entrar. (Pausa) ELA Oi. ELE Te cumprimentei quando cheguei. ELA Como? ELE Disse oi quando cheguei. ELA (Sorrindo) Sim, você disse. ELE Eu posso me sentar? ELA Ah, claro. Você pode ficar à vontade. ELE Eu não estou muito bem. ELA Eu percebi. ELE (Nervoso) O quê? ELA Que você não estava muito bem. ELE É. Sempre quando chove. ELA Eu sei. ELE Sabe mesmo? ELA Fico aqui e vejo tudo. ELE Sei. ELA Isso é a miraculosa potência do tempo. ELE Sei. ELA (Casual) Eu também choro quando chove. ELE Mas hoje eu ainda não chorei. ELA Se quiser, fique à vontade. ELE Posso? Me sentar? ELA Pode. E chorar também. ELE Chorar não posso. (Pausa) ELE Nem falar tô podendo. Mas quis vir aqui. Ouvi música. ELA É, eu tava ouvindo música. ELE Triste, né? ELA Um pouco. É porque hoje eu chorei. Então penso coisas tristes, acabo ouvindo tristezas também. ELE Como eu. ELA É, como você. ELE Por isso a gente se aproximou. ELA Por causa da tua música. Sempre tão triste... ELE Mas hoje era você que ouvia músicas. E eu não podia chorar... ELA Sempre pode. ELE Posso nada. Da última vez chorava enquanto chovia. E enquanto chorei a chuva não passou. ELA Faz de conta que tem sol lá fora. ELE 37 Mas é noite. ELA É só fazer de conta. ELE É, talvez resolva. ELA Então a gente fecha a cortina. Assim. Pronto. Agora tem sol. Não existe mais tristeza. ELE Ficou escuro aqui. ELA (Acendendo o abajur) Eu acendo o abajur. Mas tenho velas também. Nos dias de calor eu deixo as minhas velas durante vinte e quatro horas no refrigerador. Assim, elas não pingam ao se queimarem e duram mais... (Pequena pausa) Você quer? ELE O que? ELA Que eu acenda uma vela? ELE Não é preciso. ELA Aprendi isso com a minha mãe. ELE Aprendeu o quê? ELA A guardar as velas no refrigerador. ELE Ah, sei. ELA Mas aprendi outras coisas práticas também. Sabia que o vinagre é bastante útil para purificar o ar de uma sala viciada pela fumaça do cigarro? ELE Não sabia, não. ELA É sempre bom saber destas coisas. ELE Você fuma? ELA Não. ELE Como eu. ELA Mas eu gosto de inovações, sabe? Principalmente quando elas proporcionam conforto, bem estar e beleza. Gosto de aprender coisas úteis. (Pequena pausa) ELE Você se sentaria perto de mim? ELA Me sentaria se antes você dissesse o seu nome. ELE É verdade. Você não sabe o meu nome. E eu não sei o seu... ELA (Rindo muito) Minha mãe dizia sempre que existem apenas duas maneiras de sermos imparciais e sem preconceitos. A primeira é sermos ignorantes. A segunda, completamente indiferentes. 40 (Os dois riem. Pausa) ELA Minha mãe... Sempre dizendo da importância de termos nos associado à biblioteca do Clube das Moças. Dizia a todo mundo: “Vejam só este volume luxuosamente encadernado”. E quando chegava uma nova amiga, ela era a primeira a insistir que teria o imenso prazer em inscrever a novata no clube de sócias. Tinha tantas amigas, ela, minha mãe... A casa sempre cheia de amigas. Era tanta confusão que eu comecei a ficar com medo de fechar a porta. Tinha sempre medo de ficar sozinha. Por isso a porta, sempre aberta. ELE É verdade. Tua porta está sempre entre aberta. ELA Tenho medo de fechar. A porta. ELE Do quê? ELA O medo? ELE Sim. Medo do quê? ELA De ficar presa aqui. Credo cruz, nem pensar nisso eu gosto. (Pausa) ELA Houve uma vez. Um homem. Eu tinha nove anos. Quando menstruei pela primeira vez. Meu cunhado, marido da minha irmã. Trabalhava na polícia. E cuidava de mim. Mexia comigo, assim, por entre as minhas pernas. E eu morava com ele e minha irmã. Ele me proibiu de fechar a porta. Desde este dia comecei a ficar com medo de ficar presa, trancada. ELE E ele? O cunhado? ELA Me protegia. E eu gostava. Acho que foi meu primeiro amor. Tem uma foto dele. Aqui. Foi tirada dias antes de ele morrer. Assassinado. Um tiro aqui, na nuca. Um só. E acabou tudo. ELE Sempre acaba. ELA Sim, acabou. Então eu tinha quinze anos e tomei 42 uma caixa de Valium inteirinha. Fiquei em coma por quinze dias e quando acordei pensei que tinha morrido. Comecei a viver este sonho. (Pausa) ELA (Sempre olhando para a fotografia) Apren di muitas coisas com ele. E com minha tia também. A irmã mais nova da minha mãe. Linda, ela. A úni ca que sabia de tudo. Era puta, ela. Trabalhava num lugar chique, tinha dinheiro, era rica. Aprendi tantas coisas... (Mudando de tom) Homem só serve pra escarrar dentro da gente. (Severa) De quatro nunca. Isso acaba com uma mulher. (Séria) E tinha um tal que queria ir com nós duas. Minha tia me levava, mas eu ficava num canto lendo a Bíblia, proibida de olhar. E eu lia muito. E rápido. Não olhava pra eles, apenas ouvia. Os gemidos. Os dele eram sempre mais altos. Os da minha tia eram musicais. Gemia como música. Ele não. Ele berrava enquanto eu lia os salmos, que eram os seus preferidos. (Pausa longa) É... Morreu. Um dia tomou pinga misturada a veneno de ratos. Morreu feito uma ratazana. E eu estava ao seu lado. Comecei a rezar pra ela. Do breve missal romano dos domingos e festas, que era o que ela mais gostava: Gloria in excélsis Deo et in terra pax hominibus bonae voluntáris. Laudamus te. Benedicimus te. Adoramus te. Glorificamus te... (Melancólica, olhando mais 43 profundamente a fotografia) E eu fiquei sozinha, perdida nesse mundo. ELE Mas e a sua mãe? ELA Continuou por aí... (Pausa longa) ELA Morreu também. Coitada. Nem bicho merecia o final que ela teve. ELE E o que aconteceu com ela? ELA Ah, vou te contar tudo. Tudinho. Espera aí. (Mexendo em uns papéis de uma gaveta) Tenho aqui tudo guardado. Documentado. Este é o meu tesouro. Meu verdadeiro tesouro. ELE E que tesouro é esse? ELA 44 Os recortes dos jornais. Ela ficou famosa no país inteiro. Foi até capa de revista. Veja aqui. (Entregando-lhe uma pasta com recortes de jornais velhos) Olhe como era linda a minha mãe. ELE Linda mesmo. ELA Foram três que pegaram ela. Você conhece o ferro velho do Latino-América? ELE Aquele da esquina? ELA Este mesmo. Então, foi lá. Tava toda recortada, dentro de uma mala. Não deu tempo de os três fugirem. Foram presos com a mala na mão. ELE E por que fizeram isso? ELA Ninguém conseguiu explicar. Falaram apenas que estas coisas é comum em cidades como a nossa. ELE É sempre comum mesmo. Acontecem muitas coi sas. 45 ELA Sei lá. Nada me tira da cabeça de que foi por causa de uma história que ela leu num dos livros da Biblioteca das Moças. (Confessional) Era proibido, o livro. ELE Entendo. ELA Mas pode ser especulação minha também, não é? Pensam tantas coisas da gente... Você não viu o que andaram dizendo do novo síndico? É... (Professoral) Qual deve ser o verdadeiro dever de um líder? ELE Não sei. ELA (Convicta. Feliz) Manter a sua liderança, não se contentar com as posições conquistadas e com os louros obtidos. ELE E como você sabe isso? ELA Ih, sei de muitas, muitas coisas. (Silêncio) ELA Você ouviu falar na Recoleta? ELE Nunca ouvi, não. ELA É um cemitério de Buenos Aires. Tem cada história linda lá. ELE Que histórias? ELA Tem uma história... (Sonhadora)... De uma noiva que morreu no dia em que completava dezoito anos. Ia se casar na semana seguinte. Morreu enquanto se preparava para ir ao Teatro Colón. Dizem que foi envenenada pela mãe que tinha um caso com seu noivo. Imagina só. Envolver-se com o próprio genro? Então, o pai que gostava muito da filha e que não sabia nada da ligação de sua mulher com o genro, mandou enterrar a filha vestida de noiva. E construiu um palácio pra ela. Um regalo, só. Em plena Recoleta. ELE Você sabe de muitas coisas. ELA Sei, sim. E você sabia o que era regalo? ELE Não sabia, não. ELA (Com muito orgulho, saboreando as pala vras) É uma coisa especial, moderna. Não é uma palavra linda? ELE Especial ou moderna? ELA Não. Regalo. (Soletrando) Re-ga-lo. (Pequena pausa) Foi a última palavra que a minha mãe me disse. Que ia comprar uma coisa pro jantar que era um re-ga-lo. E saiu. Foi encontrada dias depois dentro daquela mala. ELE É... Você sabe muitas coisas. ELA 48 Sei muito, sim. Sempre fui estudiosa. (Pausa) Mas você veio aqui por causa da sua tristeza... ELE Por causa da chuva também. ELA É. Por causa da chuva também. ELE Me lembro dos domingos. Dá tristeza. ELA Também me entristeço aos domingos... Me lembra tanta coisa... (Sonhadora) Domingo... Sempre o principal dia da semana e era o dia em que se celebrava o mistério de Cristo ressuscitado. E tinha também o Domingo de Ramos, o primeiro domingo da Quaresma. A procissão, as velas acesas, as pessoas cantando e entoando seus lamentos. (Pequena pausa) Nossa, dá até arrepio de lembrar. Você sabe rezar em latim? ELE Não, nunca aprendi. ELA Eu rezava. Muito. Só em latim. (Silêncio) ELE (Tirando umas fotografias do bolso do casaco) Tem aqui umas fotografias. Você quer vê-las? ELA Acho que não. Você me desculpe, mas fico triste com fotografias. ELE Entendo. (Pausa) ELA Você aceita um chá? ELE (Tirando de um dos bolsos de seu casado) Eu trouxe umas bolachas. Você quer? ELA Se você aceitar o chá... ELE Aceito. ELA 50 Chá preto ou camomila? ELE É camomila que acalma? ELA Acalma muito. ELE Então quero. ELA Você vê esta chaleira? Tem sempre água esquentando nela. Vê este pretume aqui, nas bordas? De tanto a coitada ficar no fogo. ELE A noite toda? ELA Às vezes, o dia inteiro também. (Ela serve o chá) ELE Bom. ELA Bom demais. Eu adoro chá. ELE 51 Você quer bolachas? ELA Com licença. ELE Fique à vontade. ELA Você acredita mesmo que existe perigo no uso dos raios X? Minha mãe dizia que, apesar de ser uma das armas mais poderosas da medicina, os raios X eram muito perigosos. E que a gente deveria pensar muito antes de permitir qualquer exame radiológico. (Pausa. Pensativa, enquanto come as bolachas) Você quer ouvir música? ELE Aquela? ELA A mesma. ELE Quero. (Ela coloca um disco numa vitrola. Uma música muito triste) ELE Me lembra tanta coisa. ELA O que? ELE A música. ELA Me lembra o Hyde Park. ELE O que é isso? ELA Não conhece o Hyde Park? É o pulmão de Londres. Londres você conhece? ELE Também não. ELA Nunca ouviu falar? ELE Falar, ouvi, sim. ELA Então conhece. Eu também nunca estive em Londres. Mas conheço. Dos livros da minha mãe. Ela sempre me falava da importância de conhecer o mundo. Mesmo que fosse através dos livros ilustrados da Biblioteca das Moças. ELE Sei... ELA Você quer que eu conte? ELE Contar o que? ELA As coisas que eu sei sobre o Hyde Park. ELE O pulmão de Londres? ELA (Rindo) O lugar mais democrático da Inglaterra. (Pequena pausa) Você sabe o que está escrito no alto do altar da nossa igreja? ELE Que igreja? ELA 54 A da praça, aí em baixo. ELE Não sei não. Nunca reparei ELA Consolatrix afflictorvm ora pro nobis. Não é lindo? ELE É lindo, sim. E você sabe o que quer dizer isso? ELA Claro que sei. (Lentamente) Consoladora dos aflitos, rogai por nós. Não é lindo mesmo? Um dizer assim, implorando pra Nossa Senhora da Consolação que ore por nós... (Rápida) Você tem relógio? ELE Tenho, sim. Você tem? ELA Vários. Quantos você tem? ELE Um apenas. ELA À corda ou digital? ELE À corda. ELA (Surpresa) Você ainda dá corda no seu relógio? ELE Por que a surpresa? ELA Isso não se faz mais. (Empostada) É uma necessidade superada. (Casual) Você precisa conhecer o Mido Powerwind. Trabalha automaticamente. Se alimenta com os movimentos naturais do braço. E depois trabalha fora do pulso por horas e horas. Possui a famosa corda inquebrável Permadure. (Rindo. Empostada) Você jamais dará corda a um Mido Powerwind. (Pausa longa) ELE Isso. Você sente saudades? ELA De muita coisa. 56 ELE Me conte uma história. ELA Contar uma história? ELE É, me conte uma história. Uma história linda. ELA Uma história... ELE Uma história tua. De saudade. Coisas que você, às vezes, lembra... ELA Posso mesmo? ELE Eu adoraria. ELA Preferia que você contasse. ELE Eu adoraria, também. ELA Então vai, conta. (Silêncio) ELE Conheço tudo deste lugar. ELA Conhece mesmo? ELE Tudinho. As ruas todas, as pessoas todas. Fico na janela espreitando, olhando sempre. ELA E ouvindo também. ELE Ouvindo sempre. ELA Então conta. ELE À noite, tem sempre um casal que fica parado no cruzamento da Ipiranga com a Consolação. É um senhor de meia idade que fica do lado oposto, olhando para os dois, se masturbando atrás de um guarda-chuva, certo de que não está sendo observado. (Pausa) Eu vejo sempre tudo. ELA Conta mais. ELE Conto. Você aceita mais um biscoito? ELA Aceito. Obrigada. (Pausa) ELE O que você disse? ELA Obrigada. ELE Repete. ELA Obrigada. ELE (Feliz) De nada. (Silêncio) ELE (Indo em direção à janela) Preciso te mostrar uma coisa. ELA (Indo em direção a ele) Mostra. (Os dois na janela, espiando entre a cortina) ELE Tá vendo aquela janela grande ali na frente, na esquina? ELA Do prédio dos travestis? ELE Sim, do prédio redondo. ELA Qual, a da velha gorda? Que tem uma luz acesa? ELE Essa mesma. ELA O que tem ela? ELE Ela é muito gorda. Quase não anda. Foi professora. ELA Tua? ELE Não, professora do colégio de cima. Eu estudei no colégio de baixo. ELA Como eu. ELE É. Como você. ELA E então? ELE Ela fica sentada daquele jeito por horas a fio. E fica olhando sempre em direção à minha janela. Eu apareço nu pra ela. E ela sorri. ELA E você não tem vergonha? ELE Ela me paga. Faço isso profissionalmente. ELA Ela te paga? ELE Sim. Uma vez por semana, vou lá receber o meu 61 dinheiro. ELA E você sobe? ELE Não, ela desce o dinheiro por um envelope cinza pardo, preso numa linha. ELA E ninguém vê? ELE Não, porque eu não sou bobo. Vou sempre de madrugada, antes do padeiro abrir a padaria. ELA Nunca encontra com o jornaleiro? ELE Vou antes dele chegar. ELA E por que você não sobe? ELE Ela nunca me convidou. ELA Mas como vocês combinaram tudo isso? ELE Só pelo olhar. ELA Pelo olhar? ELE Sim. No começo a gente só se olhava. Eu ainda não tirava a roupa. Um dia percebi que ela queria me dizer alguma coisa. Mas não disse. Daí eu a vi descendo o envelope cinza pardo pelo fio de linha. Desci até lá. Abri o envelope e vi dinheiro. Daí eu fiquei pensando o que ela queria com aquilo. Então resolvi ficar pelado pra ela. ELA E como sabe que ela gostou? ELE Me mostrei uma única vez. Daí, na semana seguinte ela colocou mais dinheiro. E então fiquei nu por mais um dia. E depois, passados alguns dias, novamente o envelope. E dinheiro. Então come cei a ficar pelado todo o dia, por quinze minu tos. E ela começou a descer o envelope toda semana. ELA Então ela gosta. ELE Sim, fica sentada, olhando. Só olhando. Nem pisca. Às vezes, eu a vejo com as mãos nos peitos, assim, apertando os peitos. ELA Ela tá olhando agora pra tua janela. ELE Sim, agora era a minha hora de ficar pelado. Mas, hoje, eu decidi vir aqui. Ouvi a música, tava triste, toquei a campainha. (Pausa) ELA Esta era a história? ELE Que história? ELA A bem bonita. A que você ia contar. ELE Não, não é esta. ELA Então me conta, agora, vai. ELE Só se você tirar a roupa. ELA Se você contar, eu tiro. ELE Todinha? Fica nua em pelo? ELA Vou tirando. Se a história for boa eu tiro tudo. ELE Mas eu não sei se a minha história é boa. ELA Então não tiro. ELE Você gosta de histórias tristes? ELA São as minhas prediletas. ELE Posso te contar uma história triste. ELA Essa de ficar nu na janela não é triste. ELE Mas esta não é uma história. ELA Não? ELE Não. Era só uma conversa à-toa. ELA Então vai, começa. ELE Não sei se quero. ELA Quer que eu tire a roupa? ELE Não, obrigado. ELA Quer o quê, então? ELE Tô muito triste, hoje. Tava precisando chorar um pouco. (Silêncio) ELA Entendo. (Silêncio) ELE (Olhando em direção ao fogão) Você nunca apaga este fogo? ELA Só quando vou dormir. ELE Obrigado. ELA Obrigado por quê? ELE Pelo chá. ELA De nada. ELE (Indo em direção à porta) Posso vir sempre? ELA Você pode vir quando quiser. ELE Vou ter que tirar a roupa pra mulher gorda da janela. E eu sempre digo que será a última vez. ELA Diz? ELE Digo. ELA Não quer beber mais um chá? ELE Não, obrigado. ELA De nada. (Pausa) ELA Eu me esqueci de te contar uma coisa. ELE Pode dizer então. ELA Hoje, é 7 de julho, não é? ELE 68 Sim, hoje é 7 de julho. ELA (Rindo) Faço anos hoje. Vinte e nove. ELE (Sem jeito) Então, parabéns! ELA Obrigada. ELE De nada. (Silêncio) ELE Então, até. ELA Não vai mesmo me contar uma história? ELE Agora, não posso. ELA Eu tiraria a roupa pra você. Mesmo que a história não fosse assim tão boa. ELE Não precisa, obrigado. ELA De nada. ELE Eu não teria dinheiro pra te pagar. ELA Não precisa. ELE Mesmo assim, obrigado. ELA De nada. ELE (Indo em direção à porta) Vou embora, então. ELA Aparece quando quiser. ELE Eu apareço. (Silêncio) ELA A música acabou. ELE 70 Eu percebi. ELA Você gosta de cantigas? ELE Não conheço cantigas. ELA Havia uma cantiga... Cantavam pra mim... (Cantando, lentamente) “Dorme, meus meninos, Um sono doce e brando...” ELE (Cantando com ela) Dorme, almas minhas... ELA (Surpresa) Você conhece a cantiga dos meninos? ELE Conheço esta, do sono doce e brando. ELA É a mesma. Sabe cantar inteira? OS DOIS (Cantando) “Dorme, meus meninos, Um sono doce e brando. Dorme, almas minhas, Irmãos um do outro, Filhos afortunados, Repousai, felizes E felizes chegai Até amanhã, de manhã...” (Silêncio) ELA Não é linda? ELE É. Linda. ELA Sabe cantar mais coisas? ELE Não gosto de cantar. ELA Mas você cantou. A cantiga. ELE É. Cantei. Mas não gosto. ELA Me deu até sono. (Silêncio) ELE 72 Vou então. ELA Aparece quando quiser. ELE Apareço quando a tua música me chamar. (Ele sai. Ela abraça uma velha almofada) ELA (Cantando, lentamente) “Dorme, meus meninos, Um sono doce e brando. Dorme, almas minhas, Irmãos um do outro, Filhos afortunados, Repousai, felizes E felizes chegai Até amanhã, de manhã...” (A música triste começa a tocar. Vai subin do, lentamente) Fim Os cantos de Maldoror Os cantos de Maldoror Peça teatral em um ato e quinze quadros, de Ivam Cabral, a partir da tradução de Cláudio Willer para a obra homônima de Lautréamont. Os cantos de Maldoror estrearam em Curitiba (PR), no Espaço do grupo Resistência, no dia 14 de agosto de 1998, com a seguinte ficha técnica: Elenco: Ivam Cabral, Silvanah Santos, Patrícia Vilela, Marcelo Jorge Erven, Mazé Portugal, Marcie Santilli e Adriano Butschardt Participação especial: Natália Costa Cabral, Priscila Costa Cabral e João Pedro Fabrício Meira Albach (vozes off) Cenário e Direção: Rodolfo García Vázquez Trilha sonora original: Steven Severin Iluminação: Ana Fabrício Figurinos e adereços: Iz Assistência de direção: Demian Garcia Preparação dos atores: Raquel Anastásia Likierja Dramaturgista: Maristela Canário Cella Cenotécnico: Jorges Jacques Fotos, cartaz e programa: Marcelo Jorge Erven Modelo do cartaz: Raquel Anastácia Likierja Fotos do espetáculo: Roberto Reitenbach Programação visual: Rafe Consultoria técnica: Paulo Biscaia Filho Desenho de produção: Ivam Cabral Direção de produção: Eddie Moraez Assistente de produção: Dimi Cabral Marketing e promoção: Mônica Placha Realização: Companhia de Teatro Os Satyros Patrocínio Prefeitura Municipal de Curitiba Fundação Cultural de Curitiba Lei de Incentivo à Cultura Apoio Banco do Estado do Paraná Dramatis Personae: Maldoror A Mãe O Pai A Mulher Que Bate à Porta O Pirilampo A Puta O Hermafrodita O Sapo Anjo Branco Anjo Enlamaçado A Soprano Uma Velha Outra Velha O Barqueiro Holzer A Velha Sempre a Correr A Filha Mário O Homem Pendurado Pelos Cabelos Uma Mulher Embriagada Outra Mulher Embriagada Um Lavrador Falmer O Criador Um Homem Que Ia a Passar Uma Mulher Que Ia a Passar Uma Menina Que Ia a Passar Uma Camponesa Outra Camponesa Vozes Coro Eco CENA I – O CHEIRO DA MORTE (Sons de alguém que bate à porta) VOZ (Off) É um homem ou uma pedra ou uma árvore quem vai começar esta peça. Conheço, concebo uma doença mais terrível que os olhos inchados pelas longas meditações sobre o caráter estranho do homem. Mas ainda a procuro e não consigo encontrá-la. Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um reconhece no outro sua própria degradação... já que somos ambos inimigos mortais... Esta guerra terrível espalhará dor a ambos os lados. Dois amigos que buscam 81 obstinadamente destruir-se... Que drama! (Black out. Sons de alguém que bate à porta. Ao fundo, um telão com projeção de nuvens. Música) NO TELÃO (Em letreiro arcaico) “No princípio, quando Deus criou o céu e a terra, a terra era um caos sem forma nem ordem. Era um mar profundo coberto de escuridão; e um vento fortíssimo soprava às superfícies das águas. Então Deus disse: “Que a luz exista!” E a luz começou a existir. Deus achou que a luz era uma coisa boa e separou-a da escuridão. E Deus chamou à luz “dia” e à escuridão “noite”. Passou uma tarde, veio a manhã: era o primeiro dia.” (Gen, 1:1-5) (É madrugada. Maldoror à janela, a mãe a coser e o pai a preparar um cajado) MÃE (Após um interminável silêncio) A minha alma está inquieta. PAI Também a minha 82 (Silêncio) PAI Terminaste o teu trabalho? MÃE Faltam alguns pontos, embora hoje tenhamos prolongado o serão até bem tarde. PAI Aproveitemos o resto da claridade da lâmpada, pois não há quase óleo... MALDOROR (Num suspiro baixo) Se Deus nos deixar viver... PAI Ontem, ao anoitecer, senti o mesmo arrepio dantes... (Pausa) Terá chegado o momento? MÃE (Amedrontada) Não, não. (Pausa) Há muitas coisas para vivermos ainda. E eu ainda não terminei o manto que ele levará consigo. PAI Eu até cheguei a pensar que esse dia nunca chegaria. É como esperar a morte. A gente nunca pensa que um dia isso acaba. (A mãe levanta-se e vai ao encontro de Maldoror. Abraça-o) MÃE Estás quente, meu filho. MALDOROR Sinto doer-me a cabeça, mal consigo respirar. MÃE Vou molhar-te a testa e a fronte com vinagre. (Sai rapidamente) (Trovões) MALDOROR (Continua a olhar para fora) E chegará na madrugada e baterá à porta. E todos arrepiar-se-ão pelo cheiro forte da morte... PAI Não temas, meu filho. Qual futuro glorioso não estará reservado a ti, Maldoror? MALDOROR Eu tenho medo... (Trovões) PAI 84 Também eu... (Silêncio) MALDOROR Eu só pensava em ficar aqui. Dá-me apenas um pequeno canto. Serve este. Mais nada. (Pausa) Por favor, deixa-me ficar... PAI Não podes, Maldoror. Foste enviado a nós com esta condição. Que ficasses até o raiar da tua lucidez. (Silêncio. Trovões. A mãe entra trazendo uma bacia e um pano quente) MALDOROR Tenho medo, minha mãe. MÃE (Colocando o pano úmido na fronte de Maldoror) Diz-me depressa se estás a sofrer. MALDOROR Mãe, não sofro... (Pausa) Mas não estou a dizer a verdade. (Trovões) MÃE Eis que por vezes ouviram-se gritos no silêncio das noites sem estrelas. E nada aconteceu. Nada. Hoje chove e os relâmpagos escapam-se por entre nossas almas. E novos gritos e nada. Não há de ser nada, meu filho. (Batem à porta) MALDOROR (Em desespero) E chegará na madrugada e baterá à porta... (Batem mais violentamente) MÃE (Ajoelhando-se) Tende piedade, Senhor... (Chora) (O pai abre a porta. Entra uma mulher de aspecto medonho) A MULHER QUE BATE À PORTA Afasta-te, Maldoror, deste pacífico lar. O teu lugar não é aqui. (A mãe corre até Maldoror. Abraça-o fortemente. Cobre-o com o manto que estava a coser. Retira de um de seus dedos um anel e entrega-o a Maldoror) MÃE (Ajoelhando-se aos pés de Maldoror) Então vai, meu filho... (Maldoror chora) A MULHER QUE BATE À PORTA Vem, Maldoror. Vamos à procura do teu palácio recoberto de ouro e prata, à margem de límpidos ribeiros. MÃE Toda a nossa vida se esgotou nos cânticos à tua glória, Maldoror. E agora partes e uma parte de nós vai contigo. (Maldoror está estático, rodeado por seus pais. A mulher aproxima-se, agarra nas mãos de Maldoror e começa a sair) A MULHER QUE BATE À PORTA Não temas. Serás maior que tudo e todos e repousarás por entre o céu e a terra, o mar e os rios. E todos louvarão os teus cânticos e cairão sob teu pés. O PAI É chegada a hora de repousar o corpo e o espírito! (A mulher que bate à porta sai acompanhada de Maldoror. Trovões) MÃE Estou morta. Uma parte de mim vai-se e eu só consigo chorar. Mais nada. (O pai abraça a mãe. Choram) CENA II – O CHEIRO DE FLORES SECAS (Maldoror e a mulher caminham em círculos. Estão de mãos dadas. Ainda chove muito. A mulher vai à frente) A MULHER QUE BATE À PORTA Anjo, vem a mim! MALDOROR Vai-te quem quer que sejas. A MULHER QUE BATE À PORTA Não amas o regato do teu palácio? MALDOROR Ainda que este palácio fosse o mais belo do mundo, não te acompanharia. A MULHER QUE BATE À PORTA Cala-te, Maldoror! E já que não vieste por bem, já que te recusas a acompanhar-me, eu te farei chorar e ranger os dentes como um enforcado. MALDOROR (Sentindo-se sufocar) Socorre-me, não consigo res88 pirar... Ainda sinto um tremor pelo meu corpo. A MULHER QUE BATE À PORTA Mas nada. Não podemos esperar mais. MALDOROR Mal posso respirar... A MULHER QUE BATE À PORTA É chegado o tempo de repousar o corpo e o espírito. MALDOROR Deixa-me, quem quer que sejas. (Suplicante) Por favor... A MULHER QUE BATE À PORTA (Baixo) Terás o teu palácio e tocarás a terra. E prostrados a teus pés, na imensidão do teu silêncio, acima do bem e do mal, todos os sentimentos de dores e desesperos. Ficaste adormecido por muito tempo. MALDOROR Não tenho memória. A MULHER QUE BATE À PORTA Viveste durante meio século sob a forma de tubarão nas correntes submarinas. MALDOROR Por que falas tão baixo, com medo de te fazeres ouvir? A MULHER QUE BATE À PORTA Preciso acabar logo com isso. MALDOROR E eu? A MULHER QUE BATE À PORTA Irás passear no prado, desde a manhã até a noite. MALDOROR Diz-me, eu morri? A MULHER QUE BATE À PORTA Tu acabaste de nascer, Maldoror! (Ouve-se um canto) MALDOROR E o que era aquilo que me acontecia naquela casa? A MULHER QUE BATE À PORTA Eram apenas ilusões, Maldoror. Agora respira aliviado e anda. (Pausa) Paraste de tremer? MALDOROR Não pensava mais nisso. A MULHER QUE BATE À PORTA Então vamos! (Caminham em círculos. Chegam agora a um cemitério. A música aumenta) A MULHER QUE BATE À PORTA (Apanha do chão uma pá) Toma-a. Deves cavar um buraco tão fundo, do tamanho da tua tristeza. (Pausa) Agora sigo sozinha. (Sons de alguém que bate à porta) MALDOROR (Olhando a sua volta com espanto) Por que me trouxeste aqui? Dizias-me ainda há pouco que as ilusões haviam acabado... A MULHER QUE BATE À PORTA (Cortante) Cala-te, Maldoror. E vai-te. Quem quer que sejas. MALDOROR Vou-me pra onde? Trouxeste-me aqui e agora queres ir embora. (Silêncio) MALDOROR (Agarrando-a pelos braços) E eu? A MULHER QUE BATE À PORTA Não me agarres pelo braço. (A mulher sobe em uma imensa pedra, embaixo de uma árvore. Com uma corda que prendia o seu vestido, enforca-se aos olhos de Maldoror. Morta, ao alto, seu vestido abre-se e pode-se ver parte do seu corpo nu) CENA III – O CHEIRO DE ÉTER (Um grito. Uma velha cruza a cena em círculos. Deixa cair um de seus sapatos e não dá conta disso. Um pirilampo com salivas de fogo ilumina a cena. Maldoror agarra-se em uma grande cruz de uma das campas. Está sôfrego) O PIRILAMPO Vou alumiar-te. (Silêncio) O PIRILAMPO Não gostarias que eu te alumiasse? MALDOROR Por que trazes a luz se a noite veio e destruiu os meus sonhos? O PIRILAMPO Não existe. MALDOROR Fui arrancado das minhas ilusões. O PIRILAMPO Não, não existe. MALDOROR O quê? O PIRILAMPO Não existe. É sempre tudo o que tu vês. Nada além. Noite e dia e só. Luz e trevas, às vezes trevas e luz. Vidas e mortes e já estamos distantes, muito longe. MALDOROR Diz-me tu: eu morri? O PIRILAMPO (Sem dar atenção, aproxima-se de Maldoror, apoiando-se num dos lados de uma grande cruz) Aqui jaz um adolescente que morreu de mal do peito. (Pausa) Bem sabeis porquê. (Confidente) Não oreis por ele! (Silêncio. Vez por outra, ouve-se um canto distante e o pirilampo cospe um fogo tão intenso que faz tremer maldoror. Aproxima-se a puta. É muito magra e está impregnada de doenças. Vem a catar pequenas pedras que vai encontrando pelo chão. Depois pára. Olha para Maldoror) MALDOROR Tens o corpo todo deformado. A PUTA Eles quiseram assim. E agora não há água que o limpe. O PIRILAMPO Qual nada. És vadia e de fato não gostarias de te ver livre deste corpo horrendo. A PUTA Bem sabes que sim. Juro que sim. Já o deixei por muitas vezes. E quando vejo, estou novamente nele. Já o matei e o deformei. Por vezes que não poderia precisar com exatidão. E ei-lo em mim como se fosse tudo menos eu. MALDOROR E se experimentasses outra vida? O PIRILAMPO Ah, Maldoror, desiste. (A puta ajoelha-se. Então percebe que um de 94 seus seios está a sangrar. Começa a tirar a casca da ferida que sangra ainda mais. Depois cospe esfregando a saliva no seio ferido. O pirilampo aproxima-se de Maldoror) O PIRILAMPO (Baixo) Toma cuidado comigo. Tu és mais fraco. Eu sou mais forte. (Pausa) Pega numa pedra e mata-a! MALDOROR E por que haveria de o fazer? O PIRILAMPO Não perguntes. Vai, pega a pedra. (Maldoror abaixa-se, pega a pedra e levanta-a. O pirilampo cospe uma imensa labareda de fogo. Então, Maldoror o mata, jogando sobre ele a pedra que apanhara. A puta dá um grito. Olha ater rorizada para Maldoror) A PUTA Ai de mim! Ai de mim! O que tu fizeste? MALDOROR Ele queria que eu fizesse isso contigo. Prefiro-te a ele, porque tenho piedade dos infelizes. Não é tua culpa se a justiça eterna te criou. A PUTA Tu és generoso. MALDOROR Esta é a minha vingança. Tu podes causar desordem às famílias. (Silêncio) A PUTA Em que estás tu a pensar? MALDOROR Estou a pensar no céu. A PUTA Não penses no céu. Já basta que penses na terra. Há muitas coisas perdidas por entre todas estas luzes. (Pausa. Olha para o alto) Estás cansado de viver, tu que ainda há pouco acabaste de nascer... MALDOROR Nasci, não estou morto? (Pausa) Por que todos preferem o céu à terra? A PUTA É porque a justiça das leis nada valem. Fizeram justiça aos céus e todos pensaram, imediata 96 mente na infelicidade e infortúnio da terra. (Silêncio. A puta unta saliva à ferida pela última vez) A PUTA Deixa-me partir agora. MALDOROR Para onde vais? A PUTA Virá o dia em que os homens me farão justiça. Não te digo mais. Deixa-me partir para ir esconder no fundo do mar a minha tristeza infinita. MALDOROR Não tens culpa por a justiça eterna ter te criado. A PUTA Só tu e os monstros repelentes que fervilham nesses negros abismos me não desprezam. És generoso. MALDOROR Lembrar-me-ei de ti. (Silêncio) A PUTA Não queria o meu corpo. Pensando bem, era 97 melhor que me tivesses matado. Talvez eu tivesse conseguido. MALDOROR Conseguido o quê? A PUTA Deixá-lo, livrar-me dele. (Pausa longa. Num suspiro) Agora tenho de ir. (Silêncio) MALDOROR Adeus! A PUTA (Baixo) Adeus... (Enquanto a puta vai saindo, uma velha cruza a cena novamente a correr em círculos. Deixa cair um de seus sapatos, mas não se dá conta disso. Escurece. Caem do alto folhas secas. Maldoror começa a caminhar. Lentamente e depois ferozmente. Depois de muito correr, desmaia de cansaço) CENA IV – O CHEIRO DE CHUVA (Em um canto, o hermafrodita dorme, ali, num 98 bosquezinho rodeado de flores. Dorme um sono profundo sobre a relva molhada de suas lágrimas. Maldoror aproxima-se. O hermafrodita acorda assustado) O HERMAFRODITA Eia. Não te podes aproximar mais. MALDOROR Estou cansado. Talvez pudesse repousar-me junto a ti. O HERMAFRODITA Afasta-te. Os meus cabelos são sagrados. Fui eu mesmo que o quis. MALDOROR Quem és tu? O HERMAFRODITA Sou aquele de energia viril e dono da graça de uma virgem celeste. MALDOROR Já não sei o que vejo. Embaralha-me a visão. E eu sei que podes conter-me. Pelo menos por alguns instantes. (Silêncio. Maldoror senta-se no chão. Começa a limpar-se com a sua saliva. Cospe em uma parte do corpo e depois lambe-se todo) O HERMAFRODITA Sabia que virias... (Silêncio) MALDOROR Sinto-me cansado... HERMAFRODITA Como eu... e também envergonho-me por andar no meio de seres que não se parecem comigo. (Confidencial) A minha alma foi conquistada pelo desespero. MALDOROR Tenho andado muito só. O HERMAFRODITA Como eu... mesmo como eu... MALDOROR E quem és tu? O HERMAFRODITA Não te contaram ainda? Por quanto tempo tens te metido por este lugar? MALDOROR 100 Não sei. Anos, talvez séculos. O HERMAFRODITA E como não sabes quem sou? (Risos maliciosos, depois sério. Com alguma inquietude, seus olhos erguem-se ao céu e retêm a custo uma lágrima) Tomam-me geralmente por louco. MALDOROR Como eu... O HERMAFRODITA E quando vejo um homem e uma mulher a passearem numa alameda de plátanos, sinto que meu corpo se parte em dois, de alto a baixo, e que cada uma dessas partes vai abraçar um dos que passeiam. Mas não passa de uma alucinação e minha razão não tarda a impor-se. MALDOROR E este é o motivo por que não te juntas à presença nem de um homem nem de uma mulher? O HERMAFRODITA Um monstro este meu pudor excessivo... MALDOROR Eu tenho pena dos que sofrem. O HERMAFRODITA Nisso tens mesmo toda a razão. Sofro muito. Ainda, agora, antes de dormir, chorava um choro doído, doído... MALDOROR Sei. Vejo a tua alma. O HERMAFRODITA (Envergonhado, virando-se de costas para Maldoror) Fazes-me corar. (Pausa) Está a minha alma muito arruinada? É feia? Muito feia? MALDOROR Está triste. O HERMAFRODITA É. Trataram-me assim desse jeito. Fui deixado de lado porque nunca consegui que me dessem um lugar. MALDOROR Como eu. O HERMAFRODITA É. Tu também. MALDOROR Tomam-me geralmente por louco. O HERMAFRODITA 102 É. Como eu. Mesmo como eu. (Silêncio) O HERMAFRODITA Mas não me importo. Nunca me importei. Sabia desde o início que um dia tudo isso acabaria. Mesmo que fosse preciso agüentar muitos anos. (Pausa) Como tudo, explodindo ou não. MALDOROR Açoitaram-te? O HERMAFRODITA Sim. E mais que isso também. Abandonaramme. O HERMAFRODITA O abandono é o pior dos sofrimentos. MALDOROR E como foi? O HERMAFRODITA Então amarraram-me de modo que só pudesse mexer as minhas pernas. Então disseram-me: cada um no seu lugar. Daí entendi que estaria só. (Pausa. Violento) Não quero que lábios humanos beijem religiosamente os meus cabelos que foram perfumados pela montanha. (Boceja) Ainda tenho sono... MALDOROR Dorme! (O hermafrodita fecha os olhos) MALDOROR Dorme ainda. Não abras os olhos... O HERMAFRODITA (Quase a dormir) E é assim que vem o sonho que sempre acabo por ter... Sonho ser feliz... Que a minha natureza corporal se transforma, ou que pelo menos voou para uma nuvem cor de púrpura, para uma outra esfera, habitada por seres da minha natureza... MALDOROR Dorme, dorme sempre, hermafrodita. Mas não abras teus olhos. Que a tua ilusão se prolongue até o despertar da aurora. Quero deixar-te assim para não assistir ao teu despertar. (Maldoror levanta-se lentamente. Começa a chover) MALDOROR (Para o hermafrodita que agora dorme) Adeus! Que a paz esteja no teu seio! (Pausa) Talvez um dia, com um volumoso livro, eu venha a contar a tua história... (Outra pausa) Adeus, adeus her 104 mafrodita. Que a paz esteja no teu seio! CENA V – O CHEIRO DE CÍRIOS (Maldoror está coberto com seu manto, no centro do palco. A velha novamente cruza a cena e por mais uma vez deixa cair um de seus sapatos. Não se dá conta disso. Música) MALDOROR (Ainda debaixo do manto) Aproximaram-se de mim porque notaram os meus olhos de anjo. Mas não, eu sabia de resto que as rosas felizes da adolescência não iriam florir perpetuamente, entrelaçadas em grinaldas caprichosas, na sua fronte... Talvez não tivesse sido aquilo que eu sonhara de mais grandioso... UMA VOZ Cala-te! MALDOROR (Num grito) Não! UMA VOZ Criei-vos e faço de vós o que quiser. MALDOROR Nasci de um homem e de uma mulher... Esperava que fosse fruto de algo maior. UMA VOZ Dou-vos sofrimento porque me dá prazer. MALDOROR (Libertando-se do manto) O meu sofrimento dá-te prazer? Então fica com esta dor. Só serve a ti. A mais ninguém. De membros paralisados e de olhos cegos. Nenhuma fibra de meu corpo treme por ti. O teu prazer é agora desmascarado porque eu não sinto nada. Nada. Nada na alma. Nada no coração. Nada nos olhos. Nada. Nem dor, nem nada. E falo porque guardo comigo o tronco apodrecido de um homem morto. UMA VOZ Então fica com a tua dor. À noite, serás atormentado por sonhos medonhos e não conseguirás adormecer. De dia, serás renegado pela luz e procurarás as trevas. (Trovões) MALDOROR (Alto) Covarde! ECO Arde, arde, arde... MALDOROR 106 Covarde, covarde! ECO Arde, arde, arde... (Maldoror enrola-se em seu manto) CENA VI – O CHEIRO DE ENXOFRE (Fogo. Coro de anjos. Uns brancos, outros enlamaçados. Surge uma mulher com voz de soprano. Não tem a parte inferior do corpo e vem sendo conduzida pelos anjos numa espécie de carro alegórico. Tem branços enormes e unhas imensas. Um enorme sapo aparece. Coaxa) MALDOROR (Entrando. Ao sapo) Algum lugar por aqui que se possa repousar? O SAPO (Sorrindo) Sempre, sempre. MALDOROR Tenho desaparecido com a velocidade de um louco. O SAPO Então bebe! Vamos, não te deixes adormecer. MALDOROR Diz-me uma única coisa. Sei que és capaz. Che-107 garei a algum lugar? O SAPO Sempre se chega. MALDOROR Há de haver razão para tudo isso. O SAPO Não brinques. Não procures a razão das coisas. Trata de procurar o teu lugar. MALDOROR Gratificaram-me liberalmente para que meu deses pero fosse menos amargo. O SAPO Então não suponhas nada. Absolutamente nada. Daí, talvez, consigas chegar à razão que procuras. O embate final. A ruína dos povos e o extermínio da terra. Já imaginaste o inferno glorioso, supremo? Fogo por todos os lados. E dor, muita dor. MALDOROR Então é isso. Devo mesmo prosseguir? (O sapo coaxa. Os anjos aproximam-se de Maldoror que os olha com espanto) MALDOROR 108 (Ao primeiro anjo branco) Queres dizer-me al-go? ANJO BRANCO Eras menino e brincavas com os elfos. ANJO ENLAMAÇADO Agora vem, segura firme e vamos voar. MALDOROR E voaremos pra onde? ANJO BRANCO Então, antes um conselho: não deves acreditar em tudo o que ouves. MALDOROR Mas eu queria voar... ANJO ENLAMAÇADO Atravessaste séculos e séculos, Maldoror. Vieste do mar por onde estiveste adormecido por muitos e muitos anos. Cegaram-te. (Pausa. Cínico) Não acredites em tudo o que ouves. (O sapo fecha os olhos. Parece estar dormindo) A SOPRANO (Aproximando-se) Eu te esperei por muito tempo, filho amado do oceano. E agora vem! Deixa-me que te proteja. É preciso que pressinta o desejo, mais nada. Deixa-me que te infiltre em teu co-109 ração, como uma onda refrescante. MALDOROR Voltou a tremer o meu corpo... A SOPRANO Aspiraste desde o berço a beber em minha fonte, mais antiga que o Sol. MALDOROR Sou o mais fiel dos vossos iniciados. A SOPRANO Com a ajuda do meu leite fortificante, tua inteligência se desenvolverá rapidamente e tomará proporções imensas, em meio a essa claridade com que te presenteio. Ama-me, sinceramente, peço-te. ANJO ENLAMAÇADO Cresceste, Maldoror. Tu cresceste! ANJO BRANCO Guarda as lembranças. Fica com elas. Talvez consigas... A SOPRANO (Aproximando-se de Maldoror) Invade-me com tuas patas monstruosas. Alimenta-me com teu sangue sagrado. Há muito tempo que sonho contigo e com teus terríveis gritos. Vem... MALDOROR E deverei amar-te? A SOPRANO Para todo o sempre. ANJO ENLAMAÇADO Abandona a virtude! MALDOROR É muito difícil aprender a rir. A SOPRANO Então chora ao mesmo tempo. Se não podes chorar pelos olhos, chora pela boca. E se isso também for impossível, urina! (Música muito alta. O espaço é invadido por um cheiro horrível) MALDOROR Voltarei à minha forma primitiva. ANJO ENLAMAÇADO Abandona a virtude! A SOPRANO (Abraçando-o) Ah, Maldoror, pobre Maldoror. 111 Vieste quando a aurora já não te suportava mais. E por isso foste jogado aos quatro cantos. (Acariciando-o) Por que não tentas? É como um pacto. De agora em diante seremos nós, eu e tu, ameaçando o mundo, apodrecendo os corpos e matando os desprevenidos. MALDOROR A partir de hoje abandono a virtude. (Trovões) A SOPRANO Isso, Maldoror, isso. E quando ouvires o vento do inverno gemer por sobre o mar, junto às praias, pensa em mim e no meu cheiro. Estarei, então, junto a ti. MALDOROR (Extasiado, fechando os olhos) A partir de hoje, abandono a virtude. (Os anjos iniciam um canto. Riem-se e vomitam-se todos. Maldoror e a soprano estão nus e abraçados. Os anjos masturbam-se) CENA VII – O CHEIRO DE NOITE (A velha novamente cruza a cena. Deixa cair um 112 de seus sapatos e não dá conta disso. O seu rosto não mais se assemelha a um rosto humano. Um de seus seios salta-lhe do vestido roto. Maldoror está no centro do palco, nu, coberto por seu manto) MALDOROR Oh, criador do universo, aqui me tens esta manhã, para te oferecer o incenso de minha oração infantil. Às vezes esqueço-me e já notei que nestes dias, sinto-me mais feliz que de costume. Sinto que meu peito se dilata, livre de qualquer constrangimento. Ao passo que, quando cumpro o penoso dever que os meus pais me impuseram de te dirigir cotidianamente um cântico de louvores ... então fico triste e irritado. Gostaria de te amar e de te adorar, mas tu és demasiadamente poderoso, e há medo nos teus hinos. Se apenas por uma manifestação do teu pensamento podes destruir ou criar mundos, as minhas orações não te servirão de nada. Se quando te apraz, envias cólera para assolar as cidades, ou a morte para levar nas suas garras, sem qualquer distinção, não me quero ligar a um amigo tão terrível. Voltar à minha forma primitiva é para mim uma tão grande dor que, de noite, ainda hoje choro por causa disso. Tenho constantemente os lençóis molhados, como se tivessem sido passados por água, e todos os dias os mudo. CENA VIII – O CHEIRO DE PEIXE (Anoitece. Algumas pessoas à beira de um rio. O barqueiro desce de seu barco arrastando um corpo) UMA VELHA Não era eu que me afogava. OUTRA VELHA Muito menos eu. UMA VELHA E sabem por que ele se jogou ao rio? O BARQUEIRO Hoje em dia fazem-no sem nenhum motivo. UMA VELHA Era tão jovem. OUTRA VELHA Sim, sim, jovem ele era. O BARQUEIRO E tem um ar distinto e vestuário rico. OUTRA VELHA Quantos anos terá? Dezessete? UMA VELHA (Num suspiro) É o que se chama morrer novo... OUTRA VELHA É, faz-se noite... O BARQUEIRO Sim, faz-se noite... (As pessoas vão saindo aos poucos. Quando o cadá ver fica só, Maldoror aproxima-se, ergue o jovem e faz-lhe vomitar a água abundantemente) MALDOROR (Com o jovem nos braços) Seria capaz de devolver-lhe a vida? (Ao dizer isso, a possibilidade redo bra-lhe a coragem) Vamos, vamos... (Faz-lhe res piração boca-a-boca) HOLZER (Sorrindo, mas enfraquecido. Quase impossibilitado de fazer movimentos) Obrigado, meu senhor, muito obrigado. MALDOROR Como te chamas? HOLZER Holzer. (Maldoror cobre o jovem com seu manto. Em seguida, agarra-o violentamente e o beija alucinadamente mordendo-lhe os lábios com fúria) MALDOROR Espero que não voltes a causar-me tamanho desgosto, Holzer. HOLZER (Com os lábios a sangrar) Não atentaria contra um desejo teu. MALDOROR Quantos anos tens? HOLZER Catorze. (Black out) VOZ (No escuro) Dizem uns que está atacado de uma espécie de loucura originária desde a infância. Quando o vento balança as folhas das árvores, é quando Maldoror está por perto. OUTRA VOZ (Ainda no escuro) O que faz-me imensa confusão é pensar que no início Maldoror foi bom. CENA IX – O CHEIRO DE POEIRA (A velha vem a correr. Deixa cair um de seus sapatos. Pára para apanhá-lo) A VELHA SEMPRE A CORRER Depois de muitos anos estéreis, a Providência enviou-me uma filha. Durante três dias eu me ajoelhei nas igrejas e agradeci. Alimentei com meu próprio leite e a vi crescer rapidamente. A FILHA Queria uma irmãzinha pra brincar. Pede a Deus que me mande uma. Para o recompensar, far-lhe-ei uma grinalda de violetas, hortelã e gerânios. A VELHA SEMPRE A CORRER Em resposta, agarrava-a contra o seio e beijava-a com amor. Já era capaz de interessar-se pelos animais... A FILHA Por que é que a andorinha se contenta em roçar com a asa as casas dos homens, sem se atrever a entrar? A VELHA SEMPRE A CORRER Mas eu punha um dedo na boca, como que a dizer-lhe que guardasse segredo sobre esta grave questão, cujos elementos ainda não queria fazêla entender, para não magoar com uma sensação excessiva a sua imaginação infantil. E apressava-me a desviar logo a conversa deste assunto, penoso de tratar com qualquer ser pertencente à raça que entendeu um injusto domínio sobre os outros animais da criação. A FILHA E as campas do cemitério? Por que lá se respiram os mais agradáveis aromas dos ciprestes e das perpétuas? A VELHA SEMPRE A CORRER Evitava contradizê-la. (Noutro tom) Ali é a cidade dos pássaros, que ali cantam desde a madrugada até ao crepúsculo da tarde. Os túmulos são os seus ninhos, e à noite deitam ali com as suas famílias. (Noutro tom) Que fazes tu, vagabunda, quando a sopa está há uma hora a tua espera? A FILHA Mamãe, mamãe, nunca mais volto a fazê-lo, nunca mais. A VELHA SEMPRE A CORRER 118 E no dia seguinte voltava a correr através das margaridas e das resedás. (Silêncio) A VELHA SEMPRE A CORRER Mas eu não iria gozar por muito tempo de sua companhia. Chegaria o dia em que ela me deixaria para sempre, de forma inesperada. Havia de despedir-se da vida, abandonando para sempre a companhia das andorinhas. (Outro tom) Con-taram-me o que se passou, porque não estive presente ao acontecimento. Se tivesse estado, teria defendido aquele anjo pelo preço do meu sangue... (A menina deita-se à sombra de um plátano. Maldoror está a passar, vê a menina a dormir, despe-se rapidamente e reproduz a cena que a velha vai contar) A VELHA SEMPRE A CORRER Maldoror que ia a passar, vê a minha menina a dormir à sombra de um plátano... não se pode dizer o que lhe veio primeiro ao espírito. Despese rapidamente como quem sabe o que vai fazer. Nu como uma pedra, atirou-se sobre o corpo da menina e levantou-lhe o vestido para cometer um despudor. À luz do dia! Sim, não se incomoda com isso. A minha menina grita e Maldoror estrangula-a, enquanto viola a virgindade daquela 119 criança inocente. (Apaga-se o foco que iluminava a cena da menina com Maldoror) A VELHA SEMPRE A CORRER Do ventre dilacerado, o sangue corre pelas pernas abaixo, pelo prado fora. Os seus gemidos juntaram-se ao choro de Maldoror. (A menina grita) A VELHA SEMPRE A CORRER A menina mostra-lhe a cruz de ouro, mas aquele monstro ainda espantava-se de que a minha menina tivesse a vida tão dura para não ter morrido ainda. Então Maldoror tira da algibeira um canivete americano e apressa-se para esquadrinhar a vagina da minha pequena criança. Daquele buraco alargado, vai retirando os intes tinos, os pulmões, o fígado, e finalmente o próprio coração... (Longo silêncio) A VELHA SEMPRE A CORRER Que fazes tu, vagabunda, quando a sopa está há uma hora a tua espera? 120 (Silêncio) A VELHA SEMPRE A CORRER Alguém apanhou o canivete abandonado a alguns passos dali. Um pastor, testemunha do crime, só muito tempo depois teve a coragem de dizer o que acontecera naquela tarde... Eu lamentei o insensato que tinha cometido esta malvadez. Lamentei-o porque é provável que não estivesse no uso da razão quando empunhava o punhal de lâmina quatro vezes tripla, dilacerando de alto a baixo as paredes das vísceras. Lamentei-o porque, no caso de não ser louco, o seu comportamento vergonhoso devia acalentar um ódio bem grande contra os seus semelhantes, para assim se obstinar sobre as carnes e artérias de uma inofensiva criança que foi minha filha. Assisti ao enterro daqueles destroços humanos com muda resignação. E venho todos os dias rezar sobre um túmulo... VOZES DE CRIANÇAS (Cantando) As freiras do convento lupanar Já não são capazes de dormir Rondam pelo pátio como autômatos Enlouqueceram de indignação Freiras, voltai para os jazigos A noite ainda não chegou de todo... CENA X – O CHEIRO DE MAR (Sinos. Três freiras atravessam a cena, gesticulando como autômatos. Estão vestidas com mortalhas e caminham sempre de mãos dadas. Os cabelos caem em desordem pelos ombros nus. À beira-mar, Maldoror e Mário. Mário tem um corpo viscoso, tem os dedos das mãos afastados, reunidos com a ajuda de uma prega de pele, em forma de membrana. Seu busto está recoberto de algas) MALDOROR És mais novo do que eu, Mário. MÁRIO A umidade do tempo e a espuma salgada que ressaltam até nós trazem-nos aos lábios o frio. MALDOROR Cuidado. Cerra os lábios um contra o outro. Não vês que podes rasgar-te a pele em feridas penetrantes? MÁRIO Sim, estou vendo surgirem as feridas. Mas não vou contrariar para as repelir. E já que esta é a vontade da Providência, quero conformar-me a ela. MALDOROR 122 Admiro esta nobre vingança, Mário. Arrancarte-ei os cabelos. MÁRIO Não faças isso! (Silêncio) MÁRIO Vou emprestar-te a minha capa para que não sintas mais frio. MALDOROR Não faças isso. Não quero que outro sofra em meu lugar. Muito menos tu. (Silêncio) MALDOROR Queria consolar-te. Mas não consigo. Talvez porque tenha encontrado um igual. És o meu gênio da terra. (Silêncio) MALDOROR Estás a chorar? Não te vejo lágrimas no rosto mas tens as pálpebras secas como o leito da corrente. Distingo no fundo dos teus olhos um caldeirão cheio de sangue onde ferve a tua inocência... Fecha teus olhos! MÁRIO 123 Não te preocupes comigo. É pura imaginação tua. Asseguro-te que não há fogo nos meus olhos. Eu te esperei por muito tempo. (Entreolham-se longamente) MALDOROR Conta-me a tua história. MÁRIO À centopéia não faltam inimigos. A beleza fantástica de suas patas inumeráveis, em lugar de atrair-lhe a simpatia dos animais, talvez seja, para eles, apenas o poderoso estimulante de uma ciumenta irritação. E eu não me espantaria de saber que este inseto é alvo dos mais intensos ódios... Meu pai e minha mãe, após um ano de espera, viram o céu atender os seus rogos. Um par de gêmos, eu e meu irmão, veio à luz. Razão a mais para se amarem. Mas não foi o que aconteceu. Por ser eu o mais belo dos dois, e o mais inteligente também, meu irmão tomou-se de ódio por mim e não se deu ao trabalho de ocultar tais sentimentos. Por isso meu pai e minha mãe derramaram sobre mim a maior parte do seu amor. Então, meu irmão num furor de ciúme, me perdeu nos corações de meus pais, pelas mais 124 inverossímeis calúnias. Vivi, por quinze anos, em um calabouço, tendo larvas e água lamacenta como único alimento. (Entra um carrasco munido de pinças, tenazes e diversos instrumentos de torturas. Dirige-se até Mário) MALDOROR Às vezes, a certa altura do dia, um dos três carrascos que se revezavam, entrava repentinamente. (O carrasco começa a castigar Mário com toda a fúria. Mário grita. Começa a perder sangue. Muito sangue) MÁRIO (Com dor) Oh, meu irmão, eu te perdoei. A ti, causa primeira dos meus males. Como é possível que uma raiva cega impeça a alguém de abrir seus próprios olhos! (O carrasco sai. Mário está caído no chão. Há mui to sangue) MÁRIO O estiolamento progressivo, a solidão do corpo e da alma não me haviam feito perder de todo o meu juízo. Consegui fugir. Enjoado com os habitantes do continente, dirigi-me para os seixos 125 da praia, firmemente decidido a lançar-me nos braços da morte. Mas o mar ofereceu-me uma outra vida. Não me queixo por habitar no fundo do mar. Vivo em paz com os peixes. (Entreolham-se) MALDOROR Queria consolar-te. Mas não consigo. Talvez porque tenha encontrado um igual. És o meu anjo do mar, o gênio da terra. (Black out) CENA XI – O CHEIRO DE SANGUE (Um homem dependurado pelos cabelos, com os braços amarrados às costas. Suas pernas estão em liberdade para aumentar a sua tortura) O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS (Cada palavra é precedida por urros intensos) Quem soltará meus braços? Quem soltará meus cabelos? Há três dias sofro este suplício. Não consigo dormir. A sede e a fome não são as principais causas que não me fazem dormir. Que alguém venha abrir a minha garganta com um pedregulho afiado! 126 (Maldoror aproxima-se e observa ao longe. Chegam dançando duas mulheres embriagadas. Uma delas, a mais nova, segura um saco e dois chicotes com açoites de chumbo. A outra, com cabelos grisalhos, traz um barril cheio de alcatrão e pincéis. Riem. Encostam os ouvidos ao solo, enquanto farejam o ar por alguns instantes) UMA MULHER EMBRIAGADA Será possível que ainda estejas a respirar? Tens a vida dura, meu marido, meu bem-amado. OUTRA MULHER EMBRIAGADA Não queres morrer, gracioso filho? Diz-me então o que fizeste para afugentar os abutres... Tua carcaça se tornou tão magra! (Cada uma pega um pincel e alcatroam o corpo do homem. Após isso, chicoteiam-no enquanto dançam. O homem urra. Depois de algum tempo a chicotearem-no, as duas mulheres saem de cena, sempre a rir freneticamente) O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS (Fraco) Socorro, que alguém me ajude. MALDOROR (Indo ao encontro do homem, libertando-o) Conta-me o que houve. O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS (Com dificuldade) Viste as mulheres que me fizeram isso? MALDOROR Sim, vi-as. O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS A mais velha era a minha mãe. A outra minha esposa. MALDOROR E por que fizeram isso? O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS Certa noite, minha mãe pediu-me que fosse ao seu quarto. (Foco na outra mulher embriagada, ao fundo do palco) O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS Ordenou-me que me despisse. Pretendia passar a noite comigo em sua cama. Como fiquei em silêncio, ela despiu-se à minha frente. (A mulher embriagada despe-se) O HOMEM PENDURADO PELOS CABELOS Como vira que eu não reagia, atraiu a cólera de minha esposa que nutria a esperança de uma recompensa, caso minha mãe me convencesse a praticar tal ato. Então, decidiram pendurar-me neste lugar e deixar-me perecer exposto às desgraças e ao perigo. (Apaga o fogo na outra mulher embriagada, enquanto o homem desmaia. Maldoror levanta-o em seus braços. Caminha por algum tempo. Aproxima-se de um lavrador) MALDOROR Ei, ei amigo. UM LAVRADOR O que deseja? MALDOROR Tenho um problema. Este senhor precisa de cuidados. Foi açoitado pela mãe e esposa. Precisa de sua ajuda. (Maldoror deposita o homem aos pés do lavrador) UM LAVRADOR Não tenho meios, meu senhor. MALDOROR (Entregando-lhe uma bolsa) Fique com isto. É o suficiente para que possa ajudá-lo. UM LAVRADOR (Pegando imediatamente a bolsa, abre-a e conta o dinheiro) Bom, já que é assim... MALDOROR (Dá alguns passos e depois volta-se ao lavrador) Não, não... Não acredite que isso me espante! (Maldoror sai apressadamente enquanto o lavrador levanta o homem em seus braços) CENA XII – O CHEIRO DE PORCOS (Maldoror a caminhar em círculos. Parece ter enve lhecido muitos anos) MALDOROR Estou sujo. Os piolhos me roem. Os porcos, quando me vêem, vomitam. As crostas e as pústulas da lepra escamaram a minha pele, coberta de pus amarelado. Não conheço a água dos rios, nem o orvalho das nuvens. Meu olhar pode provocar a morte, mesmo aos planetas que giram no espaço. Quando queria matar, matava. Isso me acontecia com frequência e ninguém o impedia. As leis humanas ainda me perseguiam com sua vingança e a minha consciência não me recriminava de coisa alguma... Cena XIII – O Cheiro de Carvalho (A velha novamente cruza a cena. Deixa cair um de seus sapatos e não dá conta disso. O seu rosto não mais se assemelha a um rosto humano. Um de seus seios salta-lhe do vestido roto. Maldoror está no centro do palco, nu, coberto por seu manto. Falmer aproxima-se. Está também nu. Os dois se entreolham) FALMER Sei que todas as noites evocas-me em tuas lembranças. Todas as noites. MALDOROR Afastai, afastai esta cabeça sem cabelos. FALMER Tenho catorze anos e tu tinhas um a mais do que eu. MALDOROR Cala-te, cala-te com esta lúgubre voz. Por que tens de me denunciar? FALMER Tenho catorze anos e tu tinhas somente um a mais do que eu. MALDOROR Parece que sou eu mesmo quem fala. FALMER Sirvo-me do teu pensamento. MALDOROR Meus lábios se mexem, e sou eu mesmo quem fala. FALMER E sou eu mesmo narrando uma história da tua juventude, Maldoror. (Pausa) Só tinhas um ano a mais do que eu... MALDOROR Quem é este a quem me aludo? FALMER Sou eu, Maldoror, Falmer. Um amigo que tiveste na tua juventude, há muito, muito tempo. MALDOROR E como te chamas? FALMER Já disse, Maldoror, chamo-me Falmer. (Lento) Falmer! MALDOROR E é inútil que repitas que tinhas um ano a mais. 132 FALMER Eu era mais fraco do que tu. Mesmo então era teu amigo. Um amigo que tivestes em outros tempos. O predomínio da tua força física, lembras-te? Todas as noites. MALDOROR Um amigo que tive em outros tempos. O predomínio da minha força física, todas as noites... Especialmente os da memória de uns cabelos loiros. FALMER Há mais de um ser humano que viu cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor... MALDOROR (Ainda embaixo do manto, levanta um punhal) Seguraste o meu punhal no momento em que erguia a mão para cravá-lo no seio de uma mulher. Neste momento, agarrei-te pelos cabelos com um braço de ferro e o fiz girar pelos ares com tamanha velocidade que sua cabeleira permaneceu em minha mão. FALMER Meu corpo chocou-se contra o tronco de um carvalho. MALDOROR Não ignoro que um dia a tua cabeleira ficou em 133 minhas mãos... E não precisas dizer o teu nome. FALMER Tinha catorze anos. Era um adolescente, tão-somente um adolescente. MALDOROR E eu um a mais que tu. VOZES DE CRIANÇAS Eis a cabeleira de Falmer, a cabeleira de Falmer. MALDOROR Afastai, afastai esta cabeça sem cabelos. FALMER Então fugiste com uma consciência implacável. E chamaste-me um dia de sustentáculo da tua vida... Tinhas quinze anos, e eu, um a menos que tu. VOZES DE CRIANÇAS (Suplicantes) Maldoror! MALDOROR Como tua voz é carinhosa. Perdoaste-me? FALMER Meu corpo chocou-se contra o tronco de um car 134 valho... E há quanto tempo não mais te pareces contigo! VOZES DE CRIANÇAS (Suplicantes) Maldoror! MALDOROR (Extasiado) Deve-se deixar crescer as unhas durante quinze dias. Ah, como é doce deitar-se com uma criança que nada tem ainda sobre o lábio superior, e passar suavemente a mão por seu rosto, inclinando pra trás seus cabelos. VOZES DE CRIANÇAS (Suplicantes) Maldoror, Maldoror! MALDOROR (Mais extasiado) Depois, de repente, quando ele menos espera, cravar as unhas longas em seu peito macio, de tal modo que não morra. Em seguida, bebe-se o sangue, lambendo as feridas. E durante esse tempo, a criança chora. Nada é tão bom como o seu sangue... A não ser as suas lágrimas, amargas como o sal. FALMER Maldoror, ouve-me. Repara em meu rosto, calmo como um espelho. Um dia chamaste-me de sustentáculo da tua vida. Desde então, não desmereci a confiança que me dedicaste. Sou apenas um adolescente. Mas, graças ao contato contigo, 135 tomando de ti apenas o que havia de belo, minha razão cresceu e posso agora falar-te. Vim a ti para te retirar do abismo. Aqueles que são teus amigos te olham, chocados e consternados toda vez que te encontram, pálido e consumido, nos teatros, nas praças públicas, nas igrejas. Abandona esses pensamentos que tornam o teu coração vazio como um deserto. São mais ardentes que o fogo. Teu espírito esta tão doente que nem mesmo reparas mais nisso. Desgraçado! O que disseste desde o dia do teu nascimento? Oh, triste resto de uma inteligência mortal que Deus havia criado com tanto amor... Quanto a mim, preferiria ter as pálpebras coladas, as pernas e os braços faltando a meu corpo, ou ter assassinado um homem a ser tu! Odeio-te! Eu parto para a eternidade a fim de implorar teu perdão. MALDOROR Tinhas apenas catorze anos. Um a mais do que eu... De fato... para que se interessar por uma criança? (Pausa) Que a minha guerra contra o homem se eternize, já que cada um reconhece no outro a sua própria degradação... já que somos ambos inimigos mortais. VOZES DE CRIANÇAS 136 (Suplicantes) Maldoror, Maldoror! (Falmer desaparece enquanto as vozes das crianças vão aumentando num crescendo, num clima desesperante, quase de horror) CENA XIV – O CHEIRO DE MERDA SECA (O criador estendido sobre um caminho, as roupas em farrapos. Entram um homem, uma mulher e uma criança) UM HOMEM QUE IA A PASSAR Tudo trabalha para o seu destino: as árvores, os planetas, os esquadros. Tudo, exceto o Criador! UMA MULHER QUE IA A PASSAR Estendeu-se sobre o caminho com as roupas em farrapos. UM HOMEM QUE IA A PASSAR Que vergonha! A MENINA QUE IA A PASSAR Este é o Criador? Tão feio e tão sujo? UMA MULHER QUE IA A PASSAR (Protegendo a menina para que não veja o Criador) Está entorpecido por um sono profundo. (O Criador tenta erguer-se. Em vão) UM HOMEM QUE IA A PASSAR E além de tudo está bêbado, o porco. Que vergonha! (O homem vai até o Criador e golpeia-o com chutes) UM HOMEM QUE IA A PASSAR Que vergonha. Bêbado como um percevejo que sorveu durante a noite três tonéis de sangue! A MENINA QUE IA A PASSAR Não sabia que o Criador se embebedava. UM HOMEM QUE IA A PASSAR Nem nós, minha filha, nem nós. Piedade para este lábio. UMA MULHER QUE IA A PASSAR Vamos embora daqui. Que vergonha, que vergonha! (Agarra a menina pelos braços e sai de cena) UM HOMEM QUE IA A PASSAR Continuem a caminhar, continuem. Vou-me em seguida. (O homem arreia as calças e caga longamente em 138 cima do Criador. Depois, ajeita as calças e põe-se a caminho. O Criador levanta-se como pode. Está terrivelmente embriagado) O CRIADOR (Levantando-se como pode) O que pensarão os homens de mim? Os homens, que tinham uma opinião tão elevada, quando souberem dos desvios da minha conduta, o que dirão? Vejo que preciso trabalhar muito para a minha reabilitação a fim de reconquistar sua estima. Sou o grande poderoso e, no entanto, permaneço inferior aos homens que criei com um bocado de areia! Minha vergonha é tão grande como a eternidade... MALDOROR (Off) Pretendeis, então, que por ter insultado, como por brincadeira, ao homem, ao Criador, e a mim próprio, que a minha missão estivesse cumprida? Não! A parte mais importante do meu trabalho nem por isso deixa de subsistir, como tarefa a ser feita. Daqui em diante reproduzirei dramáticos episódios de um implacável ódio. Dormirei em seus quartos esta e todas as outras noites das suas vidas... VOZES DE CRIANÇAS (Cantando) As freiras do convento lupanar Já não são capazes de dormir Rondam pelo pátio como autômatos Enlouqueceram de indignação Freiras, voltai para os jazigos A noite ainda não chegou de todo... CENA XV – O CHEIRO DE ALHO (Duas mulheres estão a preparar uma comida. Cheiro forte) UMA CAMPONESA Dizem uns que está atacado de uma espécie de loucura originária desde a infância. (Silêncio) OUTRA CAMPONESA O que me faz imensa confusão é pensar que no início Maldoror foi bom. UMA CAMPONESA Quando o vento balança as folhas das árvores, é quando Maldoror está por perto. OUTRA CAMPONESA Então é o momento de fazermos uma breve oração. UMA CAMPONESA E quem o viu, jura que se apresenta com uma 140 grande grinalda de velhas flores amarelas. OUTRA CAMPONESA Mas se o vêem sempre ao longe, como podem precisar a cor da grinalda de flores? UMA CAMPONESA E dizem ser flores silvestres... Estas sempre-vivas... Mas também aparece de outras formas. Dizem que está à procura de uma alma que se assemelhe à dele. Às vezes ele transforma-se numa águia e, voando, plana em círculos concêntricos entre as camadas concêntricas mais próximas ao Sol e alimenta-se com as mais puras essências da luz. (Silêncio) UMA CAMPONESA É um espírito cruel que se mascara e se alimenta de seres cheios de vida. OUTRA CAMPONESA Isso ainda me causa imensa confusão. Como ele pôde ser bom nos primeiros tempos? (Música. O cheiro forte de alho domina o ambiente. As duas mulheres entreolham-se apavoradas. Enquanto a luz cai em resistência, a velha cruza a cena em círculos. Deixa cair um de seus sapatos e não dá conta disso) NO TELÃO (Em letreiro arcaico) “Aproxima-se o dia abrasador como um forno, em que todos os orgulhosos e os que praticam o mal arderão como uma palha... Mas para vocês, os que me respeitam, a minha justiça brilhará... Caso contrário, virei castigar e condenar a terra à destruição”. (Mal 3, 19-24) VOZES DE CRIANÇAS (Suplicantes) Maldoror, Maldoror! Fim De Profundis De Profundis Peça teatral em ato único, de Ivam Cabral, a partir da obra de Oscar Wilde De Profundis teve cinco montagens. A primeira, apenas com os personagens Oscar e Bosie, estreou em Lisboa, Portugal, no banheiro do Bar-tart, no dia 7 de junho de 1992, com a seguinte ficha técnica: Elenco: Ivam Cabral e Daniel Gaggini Trilha Sonora: Ivam Cabral Iluminação e Direção: Rodolfo García Vázquez A segunda montagem já trazia as personagens 145 da versão definitiva da peça, sem os excertos de A Balada do Cárcere de Reading. A estréia aconteceu no Teatro Ibérico, em Lisboa, Portugal, no dia 15 de outubro de 1992, com a seguinte ficha técnica: Elenco: Ivam Cabral, Daniel Gaggini, Silvanah Santos, Silvia Altieri, Andrea Rodrigues, Marcelo Moreira, Lauro Tramujas e Pedro Laginha Direção, Cenário e Iluminação: Rodolfo García Vázquez Trilha Sonora: Ivam Cabral Apoio Técnico: Dimi Cabral A terceira montagem, já com o texto apresentado neste volume, estreou em São Paulo/SP no dia 12 de abril de 2002. A ficha técnica era a seguinte: Elenco: Ivam Cabral, Germano Pereira, Dulce Muniz, Adriana Capparelli, Andrea Cavinato, Débora Monteiro, Paula Ernandes, Telma Vieira, Paulinho de Jesus e Willians Victorino Direção, Iluminação e Cenário: Rodolfo García Vázquez Assistência de Direção: Cristian Avello Cancino Direção de Arte e Figurinos: Gabriela Previdello Trilha Sonora: Ivam Cabral Recherche Visual: Arkadiusz Zietek Cenotécnica: Jorge Jacques Consultoria Técnica: Fabíola Duva Bergamo Costureira: Benê Calixto Projeto Gráfico: Paulinho de Jesus Realização: Companhia de Teatro Os Satyros A quarta encenação de De profundis aconteceu em Curitiba/PR, no Espaço dos Satyros. Estreou no dia 31 de julho de 2003 e contava com a seguinte ficha técnica: Elenco: George Sada, Elder Gattely, Pagu Leal, Gisa Gutervil, Hélio Barbosa, Mateus Zuccolotto, Karina Renck Morais e a participação especial de Silvanah Santos Direção, Cenário e Iluminação: Rodolfo García Vázquez Trilha Sonora: Ivam Cabral Figurinos: Gabriela Previdello Cenotécnica: Leopoldo Baldessar Assistência de Direção e Operação de Luz: Cris tóvão de Oliveira Operação de Som: Eduardo Amaral Costureira: Isvaldete Matias Direção de Produção: Dimi Cabral Realização: Companhia de Teatro Os Satyros Patrocínio Prefeitura Municipal de Curitiba Fundação Cultural de Curitiba Lei de Incentivo à Cultura Apoio Mastercard A quinta encenação teve a sua estréia no Sesc Santana, em São Paulo/SP. A peça estreou no dia 27 de janeiro de 2006 e contou com a ficha técnica a seguir: Elenco: Marçal Costa, Germano Pereira, Irene Stefania, Robson Moreira, Sergio Gizé, Vanessa Bumagny, Ilana Volcov, Nô Stoppa e Helô Ribeiro Direção, Cenário e Iluminação: Rodolfo García Vázquez Figurinos: Gabriela Previdello Trilha Sonora: Ivam Cabral Realização: Companhia de Teatro Os Satyros Nota: De profundis tem como base a carta-desabafo que Oscar Wilde escreveu para Alfred Douglas, ou Bosie, como era conhecido. Ironicamente, Bosie só veio a conhecer o seu conteúdo integral muitos anos depois. No entanto, a idéia do texto é de que, na solidão da cela, Oscar 148 Wilde acaba por receber visitas imaginárias de personagens seus e, inclusive, do próprio Bosie. Portanto, as personagens que surgem são uma forma de resistência e de sobrevivência na cela, advindas da sua imaginação. As sereias são inspiradas no conto O pescador e sua alma. Neste conto, um pescador acaba se separando de sua sombra (de sua alma) para poder se entregar a uma sereia. A proposta do texto é uma inversão. Do ponto de vista da sereia, ela não sabe o que é uma alma. O escultor e sua obra são inspirados em O Retrato de Dorian Gray. O dilema do criador e da criatura são os focos desta cena. Muitos biógrafos se referem a Dorian Gray como o personagem que antecede a chegada de Bosie. Ou seja, Oscar Wilde refez na vida real (através de Bosie) o que havia criado na arte (Dorian Gray). Este paralelo, tentamos estabelecer em cena. Ao final do texto, fazemos uma outra inversão, através da Balada do Cárcere de Reading. Neste último poema de Wilde, ele descreve a vida de um homem que matou a mulher que amava e que acaba sendo condenado à morte. Morre esquecido e abandonado. Neste texto, as personagens falam trechos da Balada como se referindo a Oscar Wilde. A sociedade o condenou à morte metaforicamente, pois 149 após sair da prisão vai viver na França e nunca pôde rever a família ou voltar à Inglaterra. Morreu pobre e esquecido, por se dedicar a um amor que também o levou à morte. Também valem algumas observações sobre a biografia de Alfred Douglas. Ele nasceu em 1870 e conheceu Oscar Wilde em 1891, portanto, aos 21 anos. O romance entre os dois só teve início um ano depois, em 1892. Segundo vários biógrafos de Wilde, Bosie era sexualmente muito mais experiente do que Wilde, apesar deste ser mais velho. Bosie acabou por levar Wilde a conhecer o universo da prostituição masculina e das orgias. Por outro lado, a família de Bosie era repleta de problemas. Segundo fortes comentários da época, um dos irmãos de Bosie seria amante do ministro dos Negócios Exteriores. Em circunstâncias misteriosas, este irmão acabou se suicidando. Esta relação escandalosa também era conhecida do pai de Bosie. As pressões do pai para a condenação de Wilde também contariam, segundo esta versão, com chantagens contra o governo. A condenação de Wilde não se refere às relações com Bosie, mas às suas atividades com prostitutos que haviam sido corrompidos pelo pai de Bosie. Apesar de ter 24 anos à época do julgamento, Bosie não prestou depoimentos que poderiam 150 proteger Wilde, afastando-se temporariamente do escândalo de Londres. “E agora também sou pecadora. Porém, meu Deus, o que arrastar-me pode Ao mal, era tão doce, tão suave!” (Margarida in Fausto, de Goethe) Dramatis Personae: Oscar Bosie A Alma que Chora O Escultor A Estátua Primeira Sereia Segunda Sereia PRIMEIRO QUADRO – A PRISÃO DO HOMEM (Uma prisão, em um palco não convencional. O público é acomodado numa cela juntamente com o prisioneiro, Oscar Wilde. Enquanto o público entra, Oscar está no centro do palco) OSCAR (Depois de um longo e interminável silêncio) Estava eu parado, na plataforma central de Clapham Junction, vestido como prisioneiro e algemado, exposto aos olhares do mundo, esperando que me conduzissem para a prisão. (Pequena pausa) E eu que dizia sempre da tristeza de Londres... Meu Deus, existirá no mundo lugar mais melancólico? Fiquei exposto na plataforma durante 30 153 minutos, das duas até as duas e meia da tarde. Não tinham me avisado da transferência e estava lá eu, sendo exibido aos olhares do mundo como o comediante da Dor, ou ainda, o que talvez seja pior, como o objeto mais grotesco que se possa imaginar. As pessoas que por ali passavam, riam de mim. Cada trem que ia se aproximando, trazia um número maior de curiosos e, com eles, a minha vergonha. Eles me cercavam e nada podia ser mais patético do que eu naquele momento. Durante aquela meia hora, permaneci ali, quieto, parado, sem me mover, debaixo da chuva cinza de novembro, rodeado por pessoas que riam alto e me desprezavam. Eu, que estava tão acostumado à tranqüilidade e ao elogio. Alguns me reconheceram, o que só fez aumentar ainda mais o burburinho e o desprezo. Meia hora durou. Depois disso, já na prisão, durante um ano, eu chorei todos os dias, à mesma hora e durante o mesmo espaço de tempo. Às duas badaladas do relógio da prisão, as lágrimas começavam a escorrer pelo meu rosto, e se mantinham a escorrer pelo meu rosto durante exatamente meia hora. Pode até parecer trágico e insuportável, mas para quem vive na prisão, a Dor faz parte do coti diano. Um dia de prisão em que não se chora é um dia em que o coração endureceu, não um dia de felicidade para a alma. Mas apesar disso, nunca deixei de pensar quanto Deus havia sido generoso comigo. Estou falando do que aconteceu entre mim e Bosie. Muito se falou sobre essa história. Que eu e Alfred nos amamos aos olhos do mundo, isso não deveria ser novidade para ninguém. Ou pelo menos deixou de ser a partir do estúpido processo em que eu fui o principal prejudicado e que, ironicamente, eu mesmo iniciei. Mas há uma coisa que nada nem ninguém conseguiu arrancar de mim, nem a prisão, nem o silêncio de Bosie, nem a Desgraça que se abateu sobre mim e sobre a minha família, nem o Sofrimento que carrego a cada dia que me levanto. Falo do que sentia todas as vezes em que Bosie mergulhava seu peito nos meus braços. O amor na minha alma, em sua mais infinita significação. Eu tinha dado a minha vida a Bosie, e, para atender aos seus anseios mais mesquinhos, ele havia jogado a minha existência fora... Como eu poderia ignorar os seus ataques, as suas vaidades, o jogo em que eu fui apenas uma marionete nas mãos dele? Como eu poderia esquecer tudo que eu fui obrigado a passar pelos simples caprichos dele? Como eu poderia esquecer que ele simplesmente me ignorou e abandonou nos momentos mais terríveis da minha existência, que estavam sendo vividos por amor a ele? Mas, mesmo assim, eu tentei manter viva a chama do Amor dentro de mim. O veneno que vive dentro de Bosie é a sua perfeição e, nela, encontro a mim mesmo. Entre estas paredes sem fim, eu disse a mim mesmo durante todos estes meses: Tenho que conservar o Amor no meu coração! (Repete a frase, como um mantra, várias vezes) Tenho que conservar o Amor no meu coração! O que seria da minha alma na prisão, sem Amor? E ele sobreviveu dentro de mim, afinal, não há nenhuma prisão no mundo na qual o Amor não possa forçar a sua entrada. O que eu poderia aprender na prisão? Tudo. Tive de aprender. Descobri aqui, neste lugar, o que a minha vaidade nunca tinha me permitido ver: a essência da vida. Onde existe Dor, o chão é sagrado. Ao contrário do prazer, a Dor não tem máscaras. Por isso, não há verdade que se compare ao Sofri mento. 156 Lembro-me, quando estava em Oxford, de dizer a um dos meus amigos enquanto passeávamos pelas estreitas ruas cheias de pássaros, que queria comer os frutos de todas as árvores do mundo, e que ia partir para o mundo com essa paixão na alma. E assim fiz. Não lamento, nem por um momento, ter vivido o prazer. Fiz isso como se devem fazer todas as coisas: de corpo e alma. O meu erro, e hoje vejo, foi só ter passeado pelas árvores do lado iluminado do jardim. O Fracasso, a Desgraça, a Pobreza, a Dor, o Deses pero, tudo isso eram coisas que eu temia. E fugia delas. Só agora, depois destes dois anos, pude entender algumas das lições escondidas no coração da Dor. Alguns estúpidos usam frases sem sabedoria e falam do Sofrimento como de um mistério. Na realidade, a Dor é uma revelação. Percebemos coisas que nunca tínhamos visto. Vemos a realidade de um ponto de vista diferente. Sei agora que a Dor é o teste de toda a grande Arte, pois nela a essência e a forma estão na mais absoluta unidade. E assim a minha vida cumpriu sua profecia, com Pecado e Sofrimento. Mas não são o Pecado e o Sofrimento belos, 157 sagrados e perfeitos? Assim, a minha vida completou-se, atingiu a sua finalidade, foi perfeita. (Oscar procura, em desespero, o olhar do público, enquanto tenta se levantar, meio cambaleante. A alma que chora aproxima-se da cela como que querendo entrar) A ALMA QUE CHORA A moral não me ajuda. A religião não me ajuda. A razão não me ajuda. Nada. Nada me ajuda a não ser a espera... Porque passei anos a fio esperando e, para a minha própria segurança, nada mais podia fazer senão amar-te. A moral não me ajuda. A religião não me ajuda. A razão não me ajuda. Nada. E eu sempre soube que se me tivesses permitido odiar-te, começaria a compreender mais nitidamente o que faz o desamor a um ser. (Pausa longa) Não. A moral não me ajuda. 158 A religião não me ajuda. A razão não me ajuda. Nada. Já sabes o que é o ódio. Começarás a compreender o que é o amor... Não é demasiado tarde para aprenderes, embora eu tenha tido, para te ensinar, que vir parar neste lugar... (Chora) Oh, Seigneur! Donnez-moi la force et le courage De contempler mon corps Et mon coeur sans dégoût. (Pausa) E eu falava-lhe da tristeza de Londres... Meu Deus, existirá no mundo lugar mais melancólico? E lembra quando lhe falei que havia suficiente sofrimento nas ruelas estreitas de Londres para provar que Deus não amava os homens, e que, onde quer que houvesse uma dor, toda a face da criação estaria desfigurada? (Pausa) E agora, desfigurado eu, exposto aos quatro cantos, quase sem forças e pronto a desabar-me... (A música aumenta. Entra Bosie) BOSIE Sonhei contigo esta noite. Vi-te o semblante risonho, sem sombra de sofrimento. E como nos antigos tempos, ouvi-te a voz de ouro e senti a oculta graça que me emprestavas às coisas vulgares e as maravilhas que arrancavas do nada... (Pequena pausa) Mas hoje... Há em tua alma tanta amargura... OSCAR Não há nenhuma linha mestra a separar o mar e o céu. Vejo apenas um único e pequenino barco se afastando, lentamente... BOSIE Então de onde vêm esses apitos cheios de desespero? OSCAR Das noites e dos trens que gemem em seus trilhos. BOSIE Disseste certa vez que aquele que vive mais de uma vida deve também morrer mais de uma morte. Eu tenho morrido a cada dia, Oscar. Por que me chamas? Por que me trazes aqui? 160 OSCAR É o amor que me chama Bosie. Então, como posso evitá-lo? Todos os dias ouço a tua voz a chamar-me... BOSIE (Irônico) Vem, vem aqui, vem para o sol e para o meu lado. Aqui te espero com as minhas boas vindas. Vem. OSCAR Sinto-me tão só. Resisti enquanto pude, não resisto mais. Precisei estar frente a frente com a minha alma. Como posso eu resistir? O amor me chama sempre, sempre, a chamar-me, de braços abertos. Como posso continuar a contemplar a chuva a cair, a névoa cinzenta a amortalhar o mar cinzento, pensando no amor com brilho de sol? BOSIE Sou o terrível tufão que incessante castiga suas vítimas. Atiro-as a uma e outra parte, sem repouso, no terrível lugar onde nulla speranza gli conforta mai. (Bosie sai, Oscar desespera-se) OSCAR Não sou capaz de compreender... (Em desespero) Bosie, Bosie.... SEGUNDO QUADRO – A PRISÃO DA ALMA (Duas sereias em um canto. A luz é de um avermelhado distante) PRIMEIRA SEREIA Então, apaixonado, precisava livrar-se de sua alma. Primeiro foi ao padre e implorou-lhe que ficasse com sua alma. O padre, porém, mandou-o embora dizendo que a alma de um homem é o seu bem mais precioso e que todo o ouro do mundo não seria o suficiente para tão nobre troca. Foi assim que ele foi ao mercado central. Procurou o primeiro negociante que viu e propôs entregar-lhe sua alma. E o negociante riu. Disse-lhe que poderia ficar com o seu corpo. Mas nunca com sua alma. Porque com o corpo transformaria-o em escravo. (Pausa) Mas com a alma... O que ele faria com uma alma? SEGUNDA SEREIA O corpo ou a alma? PRIMEIRA SEREIA Eis o que me intriga. SEGUNDA SEREIA Diz-me tu: trocarias o teu mundo por uma alma? PRIMEIRA SEREIA Não. Seria como perder o meu canto. SEGUNDA SEREIA Mas o que fez o pescador? PRIMEIRA SEREIA Procurou uma feiticeira e ela ensinou-lhe como livrar-se de sua alma. Depois mergulhou no mar. SEGUNDA SEREIA Ganhou o canto? PRIMEIRA SEREIA Ganhou o mar! SEGUNDA SEREIA E ganhou o canto? PRIMEIRA SEREIA Não o canto. Ganhou o mar. (Pausa) SEGUNDA SEREIA E se um dia se apaixonasse por mim um homem... E eu, perdida de amor, lhe propusesse uma troca... PRIMEIRA SEREIA Uma troca? SEGUNDA SEREIA Sim, uma troca... Daria-lhe conhecer os meus segredos... Meus segredos mais íntimos... PRIMEIRA SEREIA E o beijavas? SEGUNDA SEREIA Com todo o meu furor! (Gemem) SEGUNDA SEREIA Seria ele capaz de livrar-se de sua alma? PRIMEIRA SEREIA Acho que deveríamos saber. (Pausa) E se cantássemos? SEGUNDA SEREIA Isso. E se cantássemos? (Cantam) SEGUNDA SEREIA (Aproximando-se do público) Perderias a tua alma pelo meu beijo? (A segunda sereia tenta beijar um espectador) PRIMEIRA SEREIA Daria-lhe conhecer os meus segredos. SEGUNDA SEREIA (Chorando) Meus segredos mais íntimos... PRIMEIRA SEREIA (Chorando) Ouçam o meu canto. SEGUNDA SEREIA Isso. Nós nunca conheceremos a dor. PRIMEIRA SEREIA A dor de perder uma alma. SEGUNDA SEREIA (Baixo) Não temos alma! (Choram e cantam) TERCEIRO QUADRO – NA PRISÃO DO HOMEM (Oscar no chão, entra Bosie) BOSIE Sinto uma ansiedade estranha.... OSCAR Talvez seja por causa do mar. BOSIE Não. Eu acho que ainda não me acostumei verdadeiramente contigo. OSCAR Então abraça-me. Diz que tudo ainda não passou. Que o nosso mar não lavou apenas as nódoas e as feridas do nosso tempo. BOSIE Infelizmente disseste-me que gastaste todo o teu tempo comigo. OSCAR Não entendes. BOSIE Enquanto eu mostrava para o teu espírito apo 166 drecido um sentido possível para a tua vida, tu não cansavas de afirmar que a minha nada valia. OSCAR Falava da dor, Bosie. Apenas isso. BOSIE E não te sobrou mais nada? OSCAR Nada, Bosie. Estou seco. Não me sobra mais nada. Nem uma lágrima das menores que chorei... BOSIE A mim me sobra muito, Oscar. Sobra-me ainda muito amor. Porque eu sou o verdadeiro amor. Encho os corações com uma chama mútua. OSCAR És um amor corroído. BOSIE (Irônico) Sou o amor que não ousa dizer o seu nome. Ah, ele foi perigoso, lábios salientes, voz doce, capaz de arruinar aquilo que mais amou... (Música. Oscar tenta beijar Bosie que o empurra, 167 jogando-o no chão) OSCAR (Baixo) Por um ano inteiro, chorei todos os dias, à mesma hora e pelo mesmo espaço de tempo... (Chora) (Gemidos) A ALMA QUE CHORA Já sabes o que é o ódio. Começarás a compreender agora o que é o amor. (Oscar cai aos pés de Bosie. Soluça. A música aumen ta. Bosie apaga a luz) A ALMA QUE CHORA (Lenta) E agora, desfigurado eu, exposto aos quatro cantos, quase sem forças e pronto a desabar-me. QUARTO QUADRO – A PRISÃO DA BELEZA (Bosie caminha atrás de uma das telas. Tem uma carta nas mãos) BOSIE (Lento) Alfred... Alfred... Meu querido e estimado Alfred... Depois de uma expectativa longa e malograda, eis-me decidido a escrever-te. 168 Para o bem de nós dois, porque não quero imaginar que passei dois anos intermináveis na prisão sem receber de ti nem uma simples linha... Meu querido e estimado Alfred... (Lentamente apanha um isqueiro de um de seus bolsos e queima a carta) ESCULTOR (Depois de um interminável silêncio) Então durante dois dias permaneci-me mudo. Pensava encontrar a inspiração que me trouxesse a luz. Por isso calei-me. E ao anoitecer do segundo dia, cansado e sentindo o peso de minha alma doer-me os ossos, lembrei-me de um infinito desejo que se apoderara em mim já há algum tempo. Era o desejo de realizar a minha obra-prima. Mas como, se ao contrário do prazer a dor não tem máscaras e o prazer é a beleza, invicta e atraente? (Pausa) Não, não pode haver verdade que se compare ao sofrimento. Por trás da alegria e do riso pode haver um temperamento vulgar, duro e insensível. Mas por trás do sofrimento, há sempre sofrimento. (Pausa maior) A idéia na arte não é uma semelhança de forma e sombra ou da forma espelhada no cristal à 169 própria forma. Não é um eco que vem de um campo vazio, tal qual não é o poço de água prateada existente no vale que mostra a lua à lua e Narciso a Narciso. (Música triste) ESCULTOR (Depois de silêncio) Eu chegara ao sofrimento e ele me revelaria a dor da criação. E foi assim que, dia após dia, chegava eu próximo à minha verdade. Não, não eram ilusões de meus olhos. Era a intensa e extraordinária realidade de meu mundo. E eu sofria mais. Mais e mais, dia após dia. Então anos se passaram e então olhei à minha volta e percebi a quantidade de sofrimento que havia dispendido até chegar à minha obra de arte. Afinal pensei: o prazer é para o corpo belo e a dor é para a alma bela. (Apaga a vela) ESCULTOR Não existe beleza sem luz. (A estátua geme) ESCULTOR Mas a dor permanece. (Geme mais) ESCULTOR A beleza é para os corpos sãos e mentes apodrecidas. Somos grandezas expostas à dor. (Acende a vela) ESCULTOR E o tempo corre... Coro e, rejeitando a beleza, optando pela máscara da mentira... QUINTO QUADRO – NA PRISÃO DO HOMEM (Oscar só. Entra Bosie) OSCAR Como se o mumificasse pra mim. Como Dorian que foi fruto de sua própria loucura. Ah, Alfred, por que os artistas se entristecem tanto? Eu o criei à minha semelhança. BOSIE Então beija-me. Lembras-te de quando chegavas todas as manhãs às onze e trinta para pensar e compor tuas obras, absorto em teu silêncio? Ao meio-dia chegava eu e permanecia aos teus pés e fumava alguns cigarros. OSCAR Não me falavas da dor, Bosie. BOSIE Falava da arte, meu caro Oscar. Da arte que imaginava buscar no teu íntimo. (Pausa. Seco) Agora falas-me da dor. Da dor, Oscar? OSCAR Mergulhei, Bosie, dia após dia. BOSIE Não serias capaz de reconhecer nada além da dor. Não te sobrou nada, Oscar. OSCAR Restos de mim sobraram. BOSIE E atrás de ti? Nada mais? OSCAR Por trás de uma dor, há sempre muita dor. Talvez, até, se possa encontrar uma alma... BOSIE O meu veneno é parte da minha perfeição. OSCAR Devo procurar dentro de mim mais coisas do que alguma vez procurei e pedir ao mundo muito menos do que alguma vez pedi. BOSIE E o que tu vês, Oscar? OSCAR Agora vejo um outro mundo, muito diferente deste. BOSIE Falas de mundos perdidos, de dores mal sentidas. Não pensaste que o tempo da dor já passou? OSCAR Não passou, Bosie. Talvez nunca passe. BOSIE O nosso tempo já passou. OSCAR Por favor. Diz que não. BOSIE Que o nosso mar não lavou apenas as nódoas e as feridas do nosso tempo? OSCAR Que nunca secou, Bosie. Que ficou em minha alma, eterno, silencioso, cheio de vida... BOSIE Então vem. OSCAR Como se ainda não me esqueci dos teus olhos? (Bosie fecha os olhos) BOSIE São teus... OSCAR Dá-me o fogo. Só ele talvez consiga compensar a água e o marasmo que invadiram o meu corpo. BOSIE Não, não o tens. OSCAR Em cada um dos teus passos poderias ter usado o teu nome, Bosie. Não precisava dos meus. BOSIE Não. Não será em ti que eu me enterrarei. De ti, fugirei para a tua imagem. Multiplicada. Até o infinito. OSCAR Tu estás a apodrecer, Bosie. BOSIE Por que? Por que não te suporto? (Silêncio) OSCAR Então reconhece-me. E só. Por favor, Bosie! (Silêncio maior) BOSIE Não. Não será em ti. (Oscar cai aos pés de Bosie. Soluça. A música aumen ta. Bosie apaga a luz) A ALMA QUE CHORA (Lenta) E agora, desfigurado eu, exposto aos quatro cantos, quase sem forças e pronto a desabar-me... (Música. Bosie sai de cena. Oscar levanta-se e caminha em direção ao público. Fixa um espectador) OSCAR (Lentamente) O que faz um homem quando seu amor é sua morte? SEXTO QUADRO – TODO HOMEM MATA O AMOR (Os atores alinham-se ao fundo do palco, com exceção dos atores que interpretam os persona-gens Oscar, Bosie e Alma que Chora) ATOR I Ele andava entre os mais e era cinzento o velho traje que vestia. ATOR II Usava um gorro às listas, e o seu passo era ligeiro, porém, eu nunca vi homem que olhasse com tanta ansiedade a luz do dia. ATOR I Jamais, jamais vi homem contemplar com tão profundo sentimento essa breve, essa estreita faixa azul que os presos chamam firmamento. ATOR III E as nuvens brancas, velas cor de prata, vogando no ar, flutuando ao vento. ATOR II Então eu soube. Ele matou aquela que adorava e por causa disso vai morrer! ATOR I Jamais, jamais vi homem contemplar com tão profundo sentimento essa breve, essa estreita faixa azul que os presos chamam firmamento. ATOR III E essas nuvens brancas, velas cor de prata, vogando no ar, flutuando ao vento... ATOR I Então eu ouvi. TODOS Cada um mata o que adora. ATOR II O seu amor, o seu ideal. Alguns com uma palavra de lisonja, outros com um frio olhar brutal. O covarde assassina dando um beijo e tem o bravo que mata com um punhal . ATOR I Os que pecam acordam para a dor uma alma dormente. E fazem-na sangrar, num jorro largo e forte, quase inútil. ATOR III E chegam a pensar que este pecador, quase pobre, não possui coração. ATOR II Mas não cairão as pétalas, nem as rosas brancas ou vermelhas. ATOR III Não cairá nada sobre a lama em que dormimos. ATOR I Não cairá nada sobre nós, os pecadores, que estamos aqui, unidos neste mundo hediondo, pra lembrar que Jesus morreu por todos: por nós e por todos os outros que ainda virão. ATOR III Contudo, embora esta tétrica muralha o envolva, abraçando-o, e a noite não lhe possa reservar nada além de um soluço contido, profundo, seu cansaço o faz perceber que seu tempo já passou. ATOR II Não tem mais sol, nem luar tão pouco... (Entra Bosie. A música aumenta. Oscar e Bosie se encaram. Lentamente caminham em direção ao outro. Sucede um embate corporal) OSCAR (Com fúria) Uns matam o amor velho. Outros o amor jovem, quando este amor termina ou quando este amor começa. BOSIE (Também furioso) Uns matam com as suas próprias mãos e alguns com a mão da carne, com mão possessa. OSCAR (Fúria) E tem os bondosos... Esses apunhalam porque assim a morte vem mais depressa. BOSIE (Mais fúria) Alguns com uma palavra de lisonja, outros com um frio olhar brutal. (Neste momento os dois estão em luta corporal) OSCAR Uns vendem, outros compram. Uns amam pouco e em outros o amor pode durar mais. (Oscar está totalmente dominado por Bosie) BOSIE Tem os que enterram-no aos ais, vertendo pranto. Outros sem prantos e sem ais. Mas todo homem mata o amor. (Bosie joga Oscar com violência ao chão. Música alta. A alma que chora entra lentamente. Fita os olhos de Bosie que sai da cela. A Alma que Chora, ainda lentamente, vai em direção a Oscar e o acolhe em seu colo) A ALMA QUE CHORA Todo homem mata o que adora. ATOR IV Então mataram-no assim, como uma fera. Nenhum sino dobrou na igreja. Despiram-no e em seguida o envolveram numa mortalha. E ninguém ajoelhou sobre o seu corpo, em sua campa. Nem o capelão se atreveu a benzê-lo visto haver ele cometido um pecado sem perdão. Enfim tudo acabou. No cárcere de Reading, junto a um muro, jaz um pobre, numa campa sem nome, por ter matado aquilo que adorava. Por isso teve que morrer. No entanto, eu ouvi. TODOS Cada um mata o que adora. ATOR IV O seu amor, o seu ideal. 180 Alguns com uma palavra de lisonja, outros com um frio olhar brutal. O covarde assassina dando um beijo e tem o bravo que mata com um punhal. (A música aumenta, a luz cai em resistência) Fim A herança do teatro A herança do teatro Peça teatral em um ato e 15 quadros, de Ivam Cabral. A herança do teatro foi concebida como trabalho de conclusão da disciplina Teatro e metalinguagem, do professor José Eduardo Vendramini, no curso de pós-graduação que o autor freqüentou na Escola de Comunicação e Artes, em São Paulo (SP), durante o segundo semestre do ano de 2003. Nota: Todas as citações contidas neste texto pertencem à obra Antígona, de Sófocles, na versão 185 de Rodolfo García Vázquez, a partir da tradução francesa de Leconte de Lysle, excetuando a citação “Não quero o poder fingido (...) e a vida é sonho”, retirada do texto A vida é sonho, de Calderón de la Barca, na tradução de Renata Pallottini. “Não se pode dizer se um homem é bom ou mau, Justo ou cruel, Virtuoso ou insano, Antes do momento final de sua morte“. (Sófocles in Antígona) Dramatis Personae: A Empregada Doméstica O Filho da Empregada Doméstica Um Jovem Senhor A Vendedora de Flores O Funcionário do Estacionamento Subterrâneo A Síndica do Prédio Vizinho O Velho Dramaturgo Fracassado O Operador de Luz A Velha Diarista Senhora Z., Uma Atriz Senhorita D., Outra Atriz I – E SE DEUS DE FATO EXISTIR? A Empregada Doméstica e seu Filho Adolescente. O Jovem Senhor, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “Madrugada alta”. A Empregada Doméstica segura as mãos do filho que, apesar de adolescente, parece precisar da proteção de suas mãos. Estão parados no centro de uma sala de visitas, no escuro, e sussuram o tempo todo) A EMPREGADA DOMÉSTICA Agora falta pouco. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Vamos logo, mãe. Alguém pode aparecer. A EMPREGADA DOMÉSTICA Não sei fazer nada no escuro. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Acende a luz. A EMPREGADA DOMÉSTICA Não é prudente. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Eu tenho medo. A EMPREGADA DOMÉSTICA Sejamos fortes, meu filho. (Silêncio) A EMPREGADA DOMÉSTICA Fique aqui. Não dê nenhum passo. Sei onde tem uma vela. (O filho adolescente fica parado no meio da sala. A mulher vai até um móvel, abre uma gaveta de onde tira uma vela) A EMPREGADA DOMÉSTICA 188 Aqui. (Mais silêncio) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não vai acender? A EMPREGADA DOMÉSTICA Não tenho fogo. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Rápido, mãe. A EMPREGADA DOMÉSTICA Espera, vou até a cozinha. Fique aí, não se mova. (A mulher sai de cena, caminhando nas pontas dos pés) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Rápido. E se aparece alguém? (Outro silêncio. A mulher volta da cozinha. No trajeto, acende a vela) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Num suspiro) E ele foi tão bom pra mim... O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não pense em nada agora. Vamos logo com isso. A EMPREGADA DOMÉSTICA Era o que eu temia, meu filho. Que me arrependesse no último momento. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não temos muito tempo. (Pequena pausa) Então vamos embora. (Silêncio) A EMPREGADA DOMÉSTICA Mas temos que pensar no Natal da sua irmã... (Num súbito) Não. Embora, não vamos. Se viemos até aqui estas horas... Vamos logo com isso. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Então, rápido. A EMPREGADA DOMÉSTICA Se Deus de fato existir... Ele nos perdoará? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não vale a pena pensar em Deus agora... A EMPREGADA DOMÉSTICA Do fundo da minha alma, Deus, me perdoe. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA 190 (Indo em direção à mãe) Onde está o talão de cheques? (Segurando nas mãos da mãe) Vamos acabar logo com isso. (A mulher, trêmula, caminha em direção a uma mesa com muitos porta-retratos, acompanhada pelo filho. A mesa tem uma única gaveta) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Abrindo a pequena gaveta) Ficam sempre aqui. (Remexendo a gaveta) Achei. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Agora vamos embora, rápido. Tenho medo. A EMPREGADA DOMÉSTICA “Poupa agora o teu medo que a mim me basta o meu. Não é por não ter medo que tomo esta atitude”. (Ouve-se um barulho muito alto vindo de fora) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Assustando-se) O que foi isso? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Também assustado) Não sei, veio do apartamento vizinho. (Ouve-se os passos de alguém que caminha em 191 direção a eles) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Em pânico) Meu Deus. Ele estava aqui! O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Trêmulo) E acordou com o barulho. A senhora não disse que ele estaria viajando? A EMPREGADA DOMÉSTICA Foi o que me disseram. (Entra um jovem senhor, com trajes de dormir) UM JOVEM SENHOR (Num espanto, acendendo a luz) Vocês? O que fazem aqui? (Silêncio. A mulher que até agora segurava a mão do filho separa-se dele. Caminha alguns passos. Pára, absorta) UM JOVEM SENHOR O que estão fazendo aqui numa hora dessas? (Silêncio) UM JOVEM SENHOR E o que é isso? (Indo em direção a empregada 192 doméstica) Meus talões de cheque? O que significa isso? (Enquanto o jovem senhor caminha em direção à mulher, o adolescente tira um potente canivete do bolso. Vai para cima do jovem senhor. Black out) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Off, aos prantos) Meu filho, cuida bem de tua vida, que vale, desde já, menos que a minha. II – AFINAL, ERA APENAS UM GATO QUE SUMIU A Vendedora de Flores e o Funcionário do Estacionamento Subterrâneo. A Síndica do Prédio Vizinho, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “O dia começa a amanhecer”) A VENDEDORA DE FLORES Não vendi nada, hoje. Não tenho dinheiro para uma pensão. E as minhas coisas estão todas lá dentro. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Eu disse a você que a mamata estava acabando. Acabou. A VENDEDORA DE FLORES Não faz isso comigo, por favor. Eu estou cansada. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Não sou eu quem está fazendo. Foram os homens. Ordens são ordens. A VENDEDORA DE FLORES Mas o senhor sempre quebrou o meu galho. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Quebrava, isso mesmo. Passado. Agora não quebro mais. Não quero ficar sem o meu emprego. Tenho filhos e mulher pra cuidar. A VENDEDORA DE FLORES Estou exausta. Daqui há uns dias é Natal. Essa época deixa a gente meio triste... Me deixe ficar, pelo menos até o final do mês. Depois arrumo um lugar. Eu juro. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Você tá é ficando esquisita. Depois que começou a fazer o curso de teatro com o pessoal aí da frente não ganha mais dinheiro. Só pensa nos ensaios... Antes pelo menos tinha uns trocados aqui pro velho. A VENDEDORA DE FLORES Nossa turma tem uma apresentação no sábado e estamos ensaiando. Teatro é coisa séria. Precisase trabalhar muito. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Trabalhar muito, o quê. Imagina. Uns vagabundos, isso sim. A VENDEDORA DE FLORES É que antes me sobrava mais tempo. Por isso ganhava mais. Agora as coisas complicaram. (Mexendo nos bolsos) É pouco, mas tenho aqui algum... (Silêncio) O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Quanto? A VENDEDORA DE FLORES (Tirando uns trocados do bolso) É tudo o que tenho. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO (Pegando o dinheiro) Deixa ver. (Surge a Síndica do Prédio Vizinho. Vem esbaforida). A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Vocês viram um gato persa, todo branquinho? Acho que ele entrou aqui, no estacionamento. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Não entrou nada aqui, não, dona. A VENDEDORA DE FLORES Um gato todo peludo? Entrou, sim. Quando eu cheguei, vi o gatinho caminhando por ali. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Deus do céu. Eu preciso encontrar o meu bichano. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Mas se ele entrou aí vai ser difícil, dona. Tem uns buracões que nem sei aonde vão dar. A VENDEDORA DE FLORES Conheço tudo desse subterrâneo. Se a senhora quiser posso ajudá-la a procurar o bichinho. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Mas não tenho ordens pra deixar ninguém entrar. Só depois das oito, quando chega o proprietário. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Pelo amor de Deus, me deixa procurar o meu bichano. A VENDEDORA DE FLORES (Impaciente) E eu posso entrar agora? O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO (Severo) Você espera aí um pouco. (Pequena pausa) Não vai dar, dona. É muito buraco aí dentro. E é perigoso. Ratazanas, baratas, esgoto. Deixa que depois das oito a gente resolve isso. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Mas o senhor não está entendendo. É o meu bichano que entrou aí. Parte da minha vida, entende? E se ele encontrar uma ratazana, um esgoto? Ai, meu Deus, não quero nem pensar. A VENDEDORA DE FLORES Ainda falta uma hora e meia pras oito. Deixa ela dar uma olhada. Eu posso ajudar. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO (Olhando com desconfiança para a Vendedora de Flores) Muito corajosa, a menina. (Pausa) Vai, 197 então. Entrem e encontrem o bichano. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Aliviada) Obrigada, senhor. (A Vendedora de Flores e a Síndica do Prédio Vizinho desaparecem no subterrâneo. O funcionário do estacionamento conta o dinheiro que a vendedora lhe deu) III – CHOVEU MUITO, ONTEM O Velho Dramaturgo Fracassado, a Velha Diarista e o Operador de Luz. (Um luminoso em néon com os dizeres: “Oito horas da manhã”. O Velho Dramaturgo Fracassado escreve em um computador velho enquanto o Operador de Luz dorme em uma cama improvisada. A Velha Diarista entra, apressada) A VELHA DIARISTA Bom dia. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Bom dia. (Pequena pausa. Um pouco irritado) Mas não era ontem o seu dia? A VELHA DIARISTA (Mal humorada) E a chuva que inundou a cidade? Não consegui sair do bairro. Uma lamaceira só. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Mas hoje não era o dia de limpar o teatro? A VELHA DIARISTA Resolvi começar por aqui pra compensar a falta de ontem. (Suspirando) Hoje vai ser um dia daqueles! O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO (Irritadiço) Vou ter que parar de trabalhar, então. A VELHA DIARISTA Isso mesmo. Não gosto de trabalhar com pessoas me incomodando. (Pequena pausa. Olha para o Operador de Luz que dorme) E esse aí? Um vagabundo. Vê lá se são horas pra dormir? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Trabalhou até tarde, ontem. A VELHA DIARISTA Trabalhar o quê. Isso aí é uma diversão. Aposto que foi dormir bêbado. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Deixe o menino em paz, mulher. Tá aprendendo 199 uma nova profissão no teatro. É Operador de Luz. A VELHA DIARISTA Operador do que? (Rindo) De luz? E por acaso luz precisa ser operada? (Com ironia) Não sabia que luzes ficavam doentes. O OPERADOR DE LUZ (Acordando) Me deixem dormir... A VELHA DIARISTA Que dormir, o quê. Vamos, preciso limpar este lugar. Senão depois me ferram. E ninguém vai querer saber que vocês dois estavam me incomodando. O OPERADOR DE LUZ (Levantando-se, mal humorado) É uma ranzinza mesmo. Só não chamo de velha porque fica furiosa. A VELHA DIARISTA (Irritada) É a sua avó... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Parem com isso. A VELHA DIARISTA 200 Só estou querendo trabalhar. O OPERADOR DE LUZ (Indo em direção ao banheiro) E eu só preciso dormir. A VELHA DIARISTA (Pegando uma vassoura) Não respeitam nem os trabalhadores. E olha que nem falei dos mais velhos porque ainda não sou velha. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Eu também tinha que trabalhar. Mas vou deixar você, aí. (Com ironia) E tudo porque ontem choveu. A VELHA DIARISTA Não precisa colocar a chuva no meio. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO A gente te esperava ontem. Saí cedinho pra te deixar trabalhando em paz. Hoje não era o seu dia e eu ficaria trabalhando... A VELHA DIARISTA Êta pessoal enrolado. Reclama de tudo. O OPERADOR DE LUZ (Voltando do banheiro com uma toalha entre as mãos e o rosto ainda molhado) Mas foi uma noite daquelas, ontem. A VELHA DIARISTA (Com ironia) O que aconteceu de tão especial, assim? O OPERADOR DE LUZ Depois de um tempão sem público, o teatro estava cheio, fila na bilheteria e ingressos esgotados. Houve até briga. A VELHA DIARISTA E isso por acaso é bonito? Essa juventude... Achar briga coisa bonita... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO (Sonhador) Vai ser assim também quando eu terminar o meu romance. Filas e brigas para comprarem os últimos exemplares... O OPERADOR DE LUZ (Feliz) É isso aí mesmo. Sucesso pra todo mundo. A VELHA DIARISTA (Absorta com a sua vassoura) Esse mundo tá perdido. Vê a que ponto chegamos. Achar briga coisa boa... 202 (Silêncio) O OPERADOR DE LUZ E o Natal? A VELHA DIARISTA Um dia como outro qualquer... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Pra mim, a verdadeira comemoração é no dia do meu aniversário. O OPERADOR DE LUZ Pra mim, não. Natal é Natal e aniversário, aniversário. Adoro os dois. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Aniversário da gente é onde tudo começa. A VELHA DIARISTA Ou termina. O OPERADOR DE LUZ Que mal humor! (Pequena pausa) Vou ficar por aqui mesmo. Pelo jeito sozinho porque todo mundo viaja. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Também passo por aqui. Mas vou avisando que não gosto de comemorações no Natal. A VELHA DIARISTA Eu fico em casa, vendo televisão. (Suspirando) Um dia como outro qualquer... (Música natalina. Luz cai em resistência) IV – E DEUS, ONDE ANDARÁ NUMA HORA DESSAS? A EMPREGADA DOMÉSTICA. (Um luminoso em néon com os dizeres: “dez horas da manhã”. Uma sala de espera de uma delegacia de polícia. A empregada doméstica está sozinha, sentada numa cadeira) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Muito abatida) Eu não tenho nada. Casa, marido, dinheiro. Nada. Me sobrou um filho. Mas já tive dois. Minha menina, 15 anos, a razão pela qual eu imaginava viver. Se foi. Me deixou aqui, neste mundo perdido de Deus. Não tenho mais nada. Nem fome, nem vontade de viver, nem amor próprio. Agora estou aqui à espera que me dêem um documento dizendo que eu posso retirar os ossos da minha filha que estavam enterrados numa urna de um cemitério público e que seriam incinerados. 204 Credo em cruz, nem pensar nisso. Ficou neste cemitério por três anos. De favor. Preciso levar a minha filha para o cemitério de Barra de Santa Rosa antes que o Natal chegue. Ficar ao lado dos parentes, da tia Fulô, da madrinha Beata. A avó chora todos os dias dizendo que não conseguirá sobreviver a tudo isso, que precisa dos ossos para dormir em paz. Eu não tenho paz. Ainda mais agora. (Pausa) “Ai de mim, como hei de ser infeliz, não pertencendo nem aos vivos, nem aos mortos”. (Outra pausa) Tremo em pensar que a minha vida se acabou com a morte da minha filha. Eu não tinha dinheiro pra vir aqui, hoje. Implorei tanto, meu Deus do céu. Por que tinha de ser assim? Até bilhete eu escrevi. Todo dia, escrevia: preciso de uma cesta básica. Não tenho dinheiro e estou passando fome. Como pedir ainda mais dinheiro para levar os ossos para a Paraíba? Não tinha jeito e agora eu não tenho mais nada. Nem dignidade tenho. Acho que morri. Novamente. A primeira vez foi há três anos, no acidente da minha filha. Agora, morta mais uma vez. Esta madrugada me matou e acho que pra sem-205 pre. Não conseguirei mais dormir. Agora é levar os ossos pra avó dormir em paz. Pra minha filha descansar, neste Natal, em paz. Depois desapareço. Agora eu vou enterrar minha filha. E me parece bela a possibilidade de morrer por isso. V – O JOGO E A TEORIA TEATRAL Senhora Z., Uma atriz e senhorita D., Outra atriz. (Um luminoso em néon com os dizeres: “duas horas da tarde”. Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz ensaiam uma cena de “antígona”, a tragédia que está sendo apresentada no teatro. A Senhorita D., Outra atriz está sentada no chão, fazendo a réplica para a cena da Senhora Z., Uma atriz) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Que gritos são esses?” (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Este silêncio traz o cheiro da morte. Quase não 206 posso suportar a morte de meu filho. Pode então existir dor maior do que a perda de um filho? Teu silêncio me apavora ainda mais. Fala!” SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Contar desgraças não deveria ser uma ação humana, ainda mais quando trata de desgraças que sucedem a seres amados.” SENHORA Z., UMA ATRIZ “Eu te imploro. Não existe maior crueldade do que a omissão da verdade! Conta tudo o que sabes, nem que isso signifique uma dor insuportável.” SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Nenhuma desgraça pode ser considerada insuperável, rainha. Seu filho matou-se, aos pés da noiva morta, diante de seu pai.” (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Abandonando um arranjo que estava em sua cabeça) Cena difícil esta! Ufa!!! SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas a senhora é nossa rainha. Faz sempre lindamente esta cena. (Pausa) Sabe que eu tenho muito orgulho de trabalhar com a senhora? SENHORA Z., UMA ATRIZ Obrigada, querida. (Pequena pausa. Orgulhosa) O teatro é toda a minha vida. Não saberia viver sem ele. (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas é difícil, sabe? SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Eu que o diga! SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas não era assim, sabia? Quando comecei a fazer teatro, há quarenta anos, tudo era mais fácil. Não havia silicone, concurso de bundas, convite pra posar nua. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Essa que era vida... SENHORA Z., UMA ATRIZ Tá tudo muito chato, hoje. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas a senhora acabou de ser indicada ao prêmio dos críticos. Não é maravilhoso? SENHORA Z., UMA ATRIZ (Com desdém) Não ligo pra essas coisas. Preferia que essa indicação fosse em dinheiro. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas é um reconhecimento. Dos mais importantes. SENHORA Z., UMA ATRIZ Esses críticos não sabem o que fazem. Esse prêmio aí é de consolo. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas eles são influentes. SENHORA Z., UMA ATRIZ Influentes qual nada! (Suspirando) Não temos mais os pensadores do teatro de antigamente. Antes sim, faziam crítica a sério. Os suplementos de cultura davam páginas inteiras para as peças. Comentavam tudo, da concepção de direção às atuações, uma a uma. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Suspirando) Que inveja! SENHORA Z., UMA ATRIZ Não havia, naquela época, essa febre da televisão. Hoje não precisa estudar teatro. É fazer um desses cursinhos de atuação pra televisão e pronto. (Pausa) É, o mundo realmente está muito chato. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas hoje é um dia especial. O curador do festival europeu vem nos assistir. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Com algum desdém) Vem? É, soube por cima. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Talvez nos convidem para um circuito de festivais na Europa. SENHORA Z., UMA ATRIZ Seria muito bom se isso acontecesse. (Pausa) Mas também não acredito neles. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas vamos fazer uma corrente positiva. Quem sabe eles nos convidam? (Silêncio) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ E o jantar, amanhã? Vamos ver se animamos o elenco. Tá todo mundo pra baixo. 210 (Silêncio) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Como pode, não é? A peça começou a carreira com público saindo pelo ladrão, críticas ótimas... Não dá pra crer que o público fosse desaparecer, assim... (Outro silêncio) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas ontem tivemos casa cheia... SENHORA Z., UMA ATRIZ É porque é a última semana. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ E qual o cardápio para amanhã? SENHORA Z., UMA ATRIZ Encomendei dois pernis no açougue. Deixei em casa, no tempero. Amanhã, bem cedinho, coloco no forno, em fogo baixo, embalado em papel alumínio. Lá pelas três da tarde estará pronto. Depois, a noite, é só voltar ao forno pra aquecer. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Humm, me deu até água na boca. SENHORA Z., UMA ATRIZ Cozinhar é a minha vida. E é uma arte também, 211 das mais nobres. E esta é uma coisa que eu sei fazer bem. Posso até duvidar que tenha algum talento para o teatro. Mas nenhuma dúvida para a culinária. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ A senhora está sendo modesta. SENHORA Z., UMA ATRIZ Não, é verdade. A cozinha é mesmo a minha vida. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Falam até hoje do seu nhoque. Pena que eu não pude vir. SENHORA Z., UMA ATRIZ Precisamos organizar outro. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Eu fiquei responsável pelas bebidas. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Mal-humorada) Só de pensar me dá calafrios. A gente organiza tudo, prepara os pratos mais sofisticados e esse bando de esfomeados nem percebe... SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Desanima mesmo. SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas deixa pra lá. No que depender de nós eles terão uma bela ceia. E depois, é só uma festa de confraternização mesmo. (Pequena pausa) O vinho argentino é bom. E não esquece de um prosecco também. Não vale qualquer espumante. Temos que brindar o nosso sucesso deste ano. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Feliz) Sim, o sucesso! VI – E O GATO SUMIU... A síndica do prédio vizinho, o Operador de Luz e o Dramaturgo Fracassado. A vendedora de flores, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “três horas da tarde”) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sumiu estacionamento adentro. Ai que dor... O OPERADOR DE LUZ Fica assim, não, dona. A senhora vai encontrar o seu bichano. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Desculpa, mas acho que não aparece mais, não. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Desolada, para o Operador de Luz) Viu só? (Chorando) Vou passar o Natal sozinha... Que triste a vida! O OPERADOR DE LUZ Vai achar, garanto que sim. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Obrigada, meu filho. (Pequena pausa) Era a minha vida, o bichano. Não saberei viver sem ele... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Vou escrever uma peça sobre o seu gatinho. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Exultante) A sério? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Quem sabe desta vez a companhia me leva a sério. Imagina só, trabalhando no teatro há três anos e nunca levaram em cena uma peça minha. Só me chamam pra cuidar da bilheteria, fazer a administração. O OPERADOR DE LUZ Mas não sabia que o senhor escrevia peças... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO 214 Como não? Sou um dramaturgo, meu filho. (Com orgulho) Dramaturgo! A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Tão bonita esta palavra. Como se diz mesmo? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO (Com mais orgulho) Dramaturgo. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Com prazer) Dramaturgo. (Pequena pausa) E que peças o senhor já escreveu? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Muitas. Tenho mais de dez. O OPERADOR DE LUZ Quantas encenadas? (Silêncio constrangedor) O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO (Com mal-humor) Nenhuma encenada. Só fizeram leituras dramáticas. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO O que é isso? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Quando se lêem a peça com público. Depois sempre tem um debate. (Silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (De súbito) Meu bichano... (Volta a chorar) O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Tá aí. Talvez esta história dê mesmo uma boa peça! O OPERADOR DE LUZ A senhora vai achar o bichano. (Entra a vendedora de flores) A VENDEDORA DE FLORES Acho que vi o gatinho da senhora. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Feliz) Não me diga? Aonde? A VENDEDORA DE FLORES Eu tava dormindo no estacionamento e ouvi um miado. Fui olhar e vi o gatinho escondido num buraco. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Então vamos lá, rápido. A VENDEDORA DE FLORES Espera. Não dava nem pra tocar o seu gatinho. O buraco é muito pequeno. Ele deve ter entrado por um outro lugar e não está sabendo sair. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Como? Entrou tem que sair. O OPERADOR DE LUZ A senhora quer ajuda? A VENDEDORA DE FLORES Não vai adiantar. Tô falando que não vai adiantar. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Vai adiantar, sim. Vamos lá, pelo amor de Deus. (A síndica do prédio vizinho, o Operador de Luz e a vendedora de flores saem. Depois de um silêncio) O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO (Feliz) Essa história vai dar uma bela peça. VII – DEUS, E AGORA? A empregada doméstica. O filho adolescente, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “três e meia da tarde”) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Com um documento nas mãos) Falta pouco. Muito pouco. Agora só me resta ir ao cemitério, falar com o coveiro, retirar os ossos. (Olhando fixamente para o documento entre as mãos) Você, minha filha, agora vai descansar em paz. (Pausa) E eu, pecadora. Mas “creio, porém, que aos olhos dos sensatos, eu fiz o bem”. Era pra você, minha filha. Somente por você. Por mais ninguém. (Silêncio. Em pânico) E agora? Meus, Deus, o que eu fiz? Como medir a minha atitude? E quando descobrirem? (Outro silêncio) Deus, e agora? Vou morrer. 218 Me matarei, antes. Não deixarei que me peguem. (Silêncio profundo) “E que ninguém lamente a minha sorte! Que ninguém suspire por mim”. (Outro silêncio) “Oh, túmulo, eterna prisão da subterrânea estância, para onde caminho”. (Entra o filho adolescente) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Mãe... (Silêncio) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Eu esqueci meus documentos no teatro. Não posso viajar sem eles. A EMPREGADA DOMÉSTICA (Seca) O teatro fica no caminho para a rodoviária. Vamos primeiro ao cemitério, pegamos os ossos da tua irmã e depois apanhamos o metrô. Descemos na estação da igreja. (Silêncio) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA E como encarar as pessoas, mãe? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Militar) E o que foi que eu sempre te ensinei? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Submisso) Não baixar os olhos. Olhar sempre em frente. A EMPREGADA DOMÉSTICA E é exatamente isso que você vai fazer. Sempre em frente. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não consigo esquecer aqueles olhos, mãe. A EMPREGADA DOMÉSTICA Se te aliviar, pense que tudo foi idéia minha. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não falei, mas foi difícil trocar os cheques. A mulher da mercearia disse que esta é a última vez. A EMPREGADA DOMÉSTICA Não precisaremos mais dos favores dessa mulher. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Cobrou 30 por cento, desta vez. A EMPREGADA DOMÉSTICA 220 Segurará o cheque por 30 dias? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Sim, um mês. A EMPREGADA DOMÉSTICA É um tempo mais que suficiente. (Pequena pausa. Pensativa) 30 por cento? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Sim, 30 por cento. A EMPREGADA DOMÉSTICA Sempre pensando nela. É assim o mundo, meu filho. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não temos muito tempo. (Pequena pausa) O que fazer agora? A EMPREGADA DOMÉSTICA Cemitério, falar com o coveiro e pegar os ossos da tua irmã. Depois passamos no teatro e seguimos para a rodoviária. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não saberei olhar os olhos deles, mãe. A EMPREGADA DOMÉSTICA Olhe como se fosse a última vez. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Olharei como se fosse a última vez. (Silêncio) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Eu gostava tanto de estar com eles, mãe. Trabalhar com eles. A EMPREGADA DOMÉSTICA Eram meus amigos também. Sempre me olharam com respeito. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA E olhe só o que fizemos. A EMPREGADA DOMÉSTICA Não importa. Não seriam nossos amigos eternamente. As pessoas são assim mesmo. Depois eu sei que “abandonada por meus amigos, caminho viva ainda para o meu fim”. (AUSTERA) Vamos. VIII – THE SHOW MUST GO ON – PARTE I Senhora Z., Uma atriz, senhorita D., Outra atriz e a Velha diarista. (Um luminoso em néon com os dizeres: “cinco horas da tarde”. A Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz ensaiam uma cena de “antígona”, a tragédia que está sendo apresentada no teatro. A Senhorita D., Outra atriz está sentada no chão, fazendo a réplica para a cena da Senhora Z., Uma atriz. Num outro extremo do palco um telefone toca e a velha diarista caminha em direção a ele para atendê-lo) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Que gritos são esses?” (Silêncio) A VELHA DIARISTA Alô. SENHORA Z., UMA ATRIZ “Este silêncio traz o cheiro da morte”. A VELHA DIARISTA Fala mais alto, não estou ouvindo. SENHORA Z., UMA ATRIZ “Quase não posso suportar a morte do meu filho”. A VELHA DIARISTA Quem morreu? Fala mais alto. SENHORA Z., UMA ATRIZ “Pode então existir dor maior do que a perda de 223 um filho? Teu silêncio me apavora ainda mais. Fala!” A VELHA DIARISTA (Gritando) Fala! SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Contar desgraças não deveria ser uma ação humana, ainda mais quando trata de desgraças que sucedem a seres amados”. A VELHA DIARISTA (Gritando ainda) Entendi que morreu. Mas quem? SENHORA Z., UMA ATRIZ “Eu te imploro. Não existe maior crueldade do que a omissão da verdade! Conta tudo o que sabes, nem que isso signifique uma dor insuportável”. A VELHA DIARISTA (Desesperada) Santo Deus, não pode ser. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Nenhuma desgraça pode ser considerada insuperável, rainha. Seu filho matou-se, aos pés da noiva morta, diante de seu pai”. (Silêncio profundo) A VELHA DIARISTA (Desligando o telefone) Mataram o homem. (A Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz deixam a cena e correm em direção à velha diarista) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Abandonando um arranjo que estava em sua cabeça) Quem morreu, mulher de Deus? A VELHA DIARISTA (Aterrorizada) O diretor. Mataram o diretor. (Black out) IX – NEM TUDO SÃO FLORES, AFINAL... A vendedora de flores, o funcionário do estacionamento subterrâneo, o Operador de Luz e a síndica do prédio vizinho. O Dramaturgo Fracassado, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “cinco e meia da tarde”) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Lamentando) Não posso acreditar. A VENDEDORA DE FLORES A senhora precisa se acalmar... O OPERADOR DE LUZ É verdade, dona. Vai passar. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Imagina passar o Natal sozinha? Era a minha única alegria, ele. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Fica calma, fica. Morrer todo mundo morre um dia. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Mas não desse jeito. Envenenado como se fosse um bicho qualquer. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO Mas bicho ele era, dona. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Não era um bicho qualquer. Era o meu bichano. O OPERADOR DE LUZ Era pra que o veneno? O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO O proprietário coloca os venenos pras ratazanas. Um santo veneno. Quando os bichos morrem lá nos buracos, o veneno corrói tudo por dentro. Seca tudo. Nem mau cheiro fica. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Teatralmente aterrorizada) Seca tudo? (Pequena pausa) Por favor meu senhor, não preciso saber disso. O OPERADOR DE LUZ A gente ainda vai tentar tirar o bichano de lá. A VENDEDORA DE FLORES Não tem jeito. Ele entrou por um outro buraco. Por onde a gente via o bichinho não passa nem a minha mão que é menor do que a de vocês. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO O tempo cura isso. E não pode ficar chorando desse jeito. Era apenas um bichinho. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Trágica) Mas era a minha vida. O OPERADOR DE LUZ É verdade, o tempo cura isso, dona. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Ai, por que fui deixar a porta aberta? (Pausa) Foi quando eu deixei cair a caixa com o faqueiro português que eu ia polir... (Pausa. Pensativa) Engraçado, depois eu ouvi um grito... Primeiro um grito. Depois gemidos. Abri a porta pra ver o que era e o meu bichano fugiu... (Silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Os gritos... Mas podia ser impressão minha também. Ultimamente não tenho conseguido dormir direito. Tenho acordado sempre na madrugada e acabo polindo o faqueiro português... (Mais silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Mais trágica) Ai de mim, como sou desgraçada. O FUNCIONÁRIO DO ESTACIONAMENTO SUBTERRÂNEO (À parte) Mulher descontrolada, essa. A VENDEDORA DE FLORES (Arrumando suas flores) Vou ter que trabalhar. 228 (Pensativa) Nem tudo são flores, afinal... (Entra o Dramaturgo Fracassado. Está desolado. Todos o olham. Silêncio) O OPERADOR DE LUZ (Com preocupação) O que aconteceu? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Uma catástrofe em nosso teatro. O OPERADOR DE LUZ Fala, pelo amor de Deus. (Pausa longa) O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Mataram o nosso diretor. (Blecaute) X – THE SHOW MUST GO ON – PARTE II A empregada doméstica e seu filho adolescente, Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz. (Um luminoso em néon com os dizeres: “sete horas da noite”. A empregada doméstica com uma mala entre as mãos e seu filho adolescente chegam ao teatro e caminham, pela platéia, em direção ao palco. Páram enquanto observam 229 a Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz que ensaiam uma cena de “Antígona”, a tragédia que está sendo apresentada no teatro. A Senhorita D., Outra atriz está em pé, agitada. Não lê mais o texto) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Que gritos são esses?” (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Este silêncio traz o cheiro da morte. Quase não posso suportar a morte de meu filho Megareu. Pode então existir dor maior do que a perda de um filho? Teu silêncio me apavora ainda mais. Fala!” SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Contar desgraças não deveria ser uma ação humana, ainda mais quando trata de desgraças que envolvem seres amados”. SENHORA Z., UMA ATRIZ “Eu te imploro. Não existe maior crueldade do que a omissão da verdade! Conta tudo o que sabes, nem que isso signifique uma dor insuportável”. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ “Nenhuma desgraça pode ser considerada insuperável, rainha. Seu filho matou-se, aos pés da noiva morta, diante de seu pai”. (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Abandonando um arranjo que estava em sua cabeça) Meus Deus, que tragédia essa que nos abate agora? (Olhando em direção a empregada doméstica e seu filho adolescente. Severa) O que querem aqui? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Esqueci minha carteira com os documentos no camarim. Vim buscá-la. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Pensar numa carteira com documentos numa hora dessas? A EMPREGADA DOMÉSTICA Não queremos incomodar as senhoras... SENHORA Z., UMA ATRIZ Não incomodam. Estamos desoladas... SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Teatral) E tristes, muito tristes. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Posso entrar? SENHORA Z., UMA ATRIZ Você faça o que tem de fazer. (O filho da empregada doméstica sobe ao palco, atravessa a cena, e desaparece nas coxias) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Olhando em direção ao adolescente) Bom menino este teu filho. A EMPREGADA DOMÉSTICA Muito comportado, ele. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Sussurando para Outra atriz) Muito esquisito, ele. (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Com desconfiança) E por que esta mala, minha senhora? Vai viajar? A EMPREGADA DOMÉSTICA 232 (Assustada) É... Não... Quer dizer, umas coisas que tenho que levar pra casa. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Irônica) Coisas importantes? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Acuada) Sim... Muito importantes. (Silêncio. O filho da empregada doméstica volta com uma carteira entre as mãos. Pára diante da Senhora Z., Uma atriz) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Obrigado. (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ Já souberam o que aconteceu, não é? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Assustado) Aconteceu?... A EMPREGADA DOMÉSTICA (Sussurando, da platéia, para o filho adolescente) Olhe nos olhos. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Assassinaram o nosso diretor. A EMPREGADA DOMÉSTICA (Ainda sussurando para o filho adolescente) Sempre em frente. (Silêncio) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Fiquei sabendo, sim, senhora. Tá uma multidão lá fora. SENHORA Z., UMA ATRIZ Uns vândalos, eles. (Num suspiro) Os vândalos sempre se aglomeram no final. A EMPREGADA DOMÉSTICA (Severa) Vamos embora, meu filho. SENHORA Z., UMA ATRIZ Embora pra onde? A EMPREGADA DOMÉSTICA Temos que ir, senhoras. SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas e o espetáculo? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA 234 (Ainda assustado) Pensei que não houvesse apresentação hoje. SENHORA Z., UMA ATRIZ Nunca ouviu dizer que o show não pode parar, minha criança? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Já ouvi sim, senhora. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Decidimos que haverá espetáculo hoje sim. Às nove horas, em ponto. (Silêncio) A EMPREGADA DOMÉSTICA Vamos rápido, filho. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Ainda no palco, olhando nos olhos da mãe) E o espetáculo? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Com algum desdém) Às nove horas, em ponto, você estará aqui. (A empregada doméstica e seu filho adolescente saem de cena. A Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz permanecem em silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ “Ai, ai... este silêncio traz o cheiro da morte”. (Black out) XI – PODE HAVER SALVAÇÃO, AFINAL... A síndica do prédio vizinho e a vendedora de flores. (Um luminoso em néon com os dizeres: “sete e quinze da noite”) A VENDEDORA DE FLORES Era tão bom esse homem. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Me dá arrepios só em pensar. Será que foram os gritos que ouvi? A VENDEDORA DE FLORES (Olhando para suas flores) Enquanto eu vendia flores... A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Pensativa) E depois o meu bichano... (Chora) Que desgraça, meu Deus! A VENDEDORA DE FLORES A senhora vai ser muito feliz, dona, acredite. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Feliz o que. Nessa solidão que Deus me colocou? A VENDEDORA DE FLORES Vai encontrar outros motivos pra ser feliz. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Meu bichano era tudo pra mim. A VENDEDORA DE FLORES Olhe eu. Sozinha neste mundão. Nem casa tenho, dona. Durmo de favor no subterrâneo do estacionamento. Bem lá onde o seu bichinho morreu envenenado. Imagina só que vida é essa. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sim, existem dores piores. Mas essa minha é tão dolorida... A VENDEDORA DE FLORES Também tenho a minha dor, todos os dias. E pensei que pudesse me tornar uma atriz, um dia. (Pensativa) Veja só o destino. O diretor morre, o teatro fecha daqui a algum tempo... (Com dor) Ele era meu professor, sabia? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO E é verdade? Mas pra fazer teatro precisa de aula? Não sabia disso, não. A VENDEDORA DE FLORES Ele dizia sempre que pra fazer teatro tem de estudar muito. Tem até faculdade de teatro, sabia? O diretor dava aula na faculdade de teatro. Sabia tudo. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO E você sozinha na rua, dormindo de favor? A VENDEDORA DE FLORES Foi esse pessoal aí do teatro que me endireitou, dona. Tava sozinha, sozinha. Daí eles abriram esse curso aí pro pessoal da periferia, de graça. Não pagava nada pra estudar com eles. E amanhã ia ter a apresentação de final de curso. Tava todo mundo empolgado... (Pequena pausa) É... acho que acabou tudo. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Chorando) Acabou mesmo... A VENDEDORA DE FLORES Mas Deus conserta, dona. Vai ver que logo, logo coloca outro gatinho na tua vida. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Era tão obediente. A VENDEDORA DE FLORES Obediente, mas fugiu, né? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Num súbito, parando de chorar. Pensativa) É, fugiu. A VENDEDORA DE FLORES Viu só? Não era tão obediente assim... A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Ainda pensativa) Não era. A VENDEDORA DE FLORES Essas coisas acontecem. (Silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Tava pensando... A VENDEDORA DE FLORES Pensando? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sim... você... tem quantos anos? A VENDEDORA DE FLORES Fiz 18 no início do mês. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Ainda pensativa) Então você é de sagitário? A VENDEDORA DE FLORES Sou, mas não entendo muito dessas coisas, não. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sagitário combina com o meu signo. (Professoral) Sou de Áries. (Silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Eu te conheço há mais de dois anos, não é? A VENDEDORA DE FLORES Sim, desde que eu vim morar no estacionamento. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Pensando mais) Vou ficar sozinha agora... A VENDEDORA DE FLORES Vai ficar. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Mas não queria, sabe? (Silêncio) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Será que a gente se daria bem morando juntas? A VENDEDORA DE FLORES (Com espanto) Morando juntas? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sim, você... eu... entende? Uma fazendo companhia pra outra. E não passaríamos o Natal sozinhas... O que você acha? A VENDEDORA DE FLORES Mas não tenho dinheiro pra pagar, dona. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Sabe quanto me custava o meu bichano por mês? Muito mais do que eu gastaria com você. Só no pet shop ele ia duas vezes por semana. Como eu levava no pet shop do shopping center, gastava mais do que se fosse no daqui da esquina. E sem contar todo o dinheiro que eu gastava com o veterinário, uma vez por mês, e as rações importadas... Pensei e vou dizer antes que eu me arrependa. (Feliz, abrindo os braços teatralmente) Vem morar comigo, vem. A VENDEDORA DE FLORES (Feliz) Meu Deus, dona, eu gostaria muito! (A síndica do prédio vizinho e a vendedora de flores se abraçam) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Feliz) Minha menina... XII – MEU DEUS, O QUE ESTÁ ACONTECENDO NESTE TEATRO? O Operador de Luz, a velha diarista e o Dramaturgo Fracassado. A empregada foméstica e o filho sdolescente, depois. A Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz, no final. (Um luminoso em néon com os dizeres: “sete e meia da noite”. Saguão do teatro. O Operador de Luz, a velha diarista e o Dramaturgo Fracassado estão desolados) A VELHA DIARISTA Meu Deus, o que está acontecendo neste teatro? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Uma fatalidade. O OPERADOR DE LUZ E a polícia, o que disse? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Ainda não têm pistas. E parece que não encontraram nada de anormal no apartamento. O OPERADOR DE LUZ Quem teria feito isso? A VELHA DIARISTA Tanta gente entrava e saia daquela casa. O OPERADOR DE LUZ Muita gente mesmo. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Mas eles vão resolver isso, com certeza. O OPERADOR DE LUZ Tudo muito estranho. A VELHA DIARISTA Que fatalidade, meu Deus... O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Uma história bárbara. (Pensativo) Daria um bom texto de teatro... A VELHA DIARISTA Só pensa nisso, homem de Deus. O OPERADOR DE LUZ E o elenco resolveu fazer a peça hoje. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Mas isso é um absurdo. O OPERADOR DE LUZ Disseram que o show não pode parar. A VELHA DIARISTA Um bando de gente louca, isso sim. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Tem um curador de um festival europeu que disse que viria hoje. O OPERADOR DE LUZ Então será por isso? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Pelo amor ao teatro garanto que não é. A VELHA DIARISTA Mas como podem pensar nisso agora? O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Então por que fariam a peça? (Com ironia) Até semana passada a atriz, indicada ao prêmio dos críticos, estava louca pra encerrar a temporada. (Pequena pausa. Com desdém) Agora vem dizer 244 que o show não pode parar? O OPERADOR DE LUZ Foi o que ela me disse. A VELHA DIARISTA Não respeitam nem a morte do pobre coitado. (Entram a empregada doméstica e o filho adolescente, sempre carregando a mala dos ossos. Silêncio) A VELHA DIARISTA (Para a empregada doméstica) Tudo bem com a senhora? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Seca) E por que não haveria de estar? A VELHA DIARISTA Nossa, quanto amargor! O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Tá todo mundo meio descontrolado, hoje. O OPERADOR DE LUZ E não era pra menos, não é? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Para o filho adolescente) Vamos, meu filho. O OPERADOR DE LUZ Espera. Vamos pra onde? Vai ter espetáculo hoje. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Eu soube. A EMPREGADA DOMÉSTICA Às nove, em ponto, ele estará aqui. O OPERADOR DE LUZ Como nove em ponto? O diretor pedia pra gente estar preparado com duas horas de antecedência. (Para o filho da empregada doméstica) Você não pode sair agora. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Amedrontado, olhando para a mãe) Mas já repassei todas as cenas. Os objetos estão em ordem. (Pequena pausa. Confuso) Só vou ajudar minha mãe com esta mala. A VELHA DIARISTA (Irônica, para a empregada doméstica) Vai viajar para o Natal? A EMPREGADA DOMÉSTICA Preciso levar isso pra minha casa. Ele me acompanha até o ponto de ônibus e volta em seguida. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO A senhora precisa de ajuda? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Rápida) Não senhor, está tudo certo. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Vamos, mãe? (Chegam a Senhora Z., Uma atriz e a Senhorita D., Outra atriz) SENHORA Z., UMA ATRIZ Meu Deus, que tragédia! O OPERADOR DE LUZ A senhora precisa se acalmar. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Mas já disseram alguma coisa? Alguém da família apareceu? A VELHA DIARISTA Moram no Paraná. Devem estar chegando. HORA Z., UMA ATRIZ E com a polícia, alguém falou? (Silêncio. A empregada doméstica está aterrorizada. Olha para o filho adolescente) A EMPREGADA DOMÉSTICA (Tentando controlar o terror) Vamos, meu filho. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Para a Senhora Z., Uma atriz que está parada bem à sua frente) Com licença, senhora? (A Senhora Z., Uma atriz, com desdém, apenas afasta-se um pouco para dar passagem ao filho adolescente da empregada doméstica) O OPERADOR DE LUZ Vocês têm certeza de que não precisam de ajuda? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Ajeitando a mala) Não, obrigada. (A empregada doméstica e seu filho adolescente saem de cena) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Sussurando para Outra atriz) Esses dois... muito esquisitos... (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ 248 “Ai, ai... este silêncio traz o cheiro da morte.” XIII – THE SHOW MUST GO ON – FINAL Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz. O Operador de Luz, depois. (Um luminoso em néon com os dizeres: “nove ho ras da noite”) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Olhando por um pequenino buraco da coxia) O curador do festival veio. Está sentado na segunda fileira, de camisa azul. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Tentando olhar pelo mesmo buraco) Não consigo enxergar sem óculos. (Pequena pausa) Como ele é? SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Parece simpático. Tem uns 50 anos, mais ou me-nos. SENHORA Z., UMA ATRIZ E vir assistir ao nosso espetáculo justamente hoje? (Entra o Operador de Luz. Está afobado) O OPERADOR DE LUZ Não temos contra-regra. Ele não apareceu até agora. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Isso é terrível. SENHORA Z., UMA ATRIZ Não disse? Esse menino nunca me pareceu sério. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Era de total confiança do nosso diretor. SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas não é profissional. Um menino que nem formação tinha. O OPERADOR DE LUZ O diretor também apostou em mim, senhora. SENHORA Z., UMA ATRIZ Mas você soube dar valor. Ele não. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ E o que faremos agora? O OPERADOR DE LUZ Falei com o operador de som e ele disse que pode fazer a contra-regragem. Acho que eu consigo fazer o som e a luz. SENHORA Z., UMA ATRIZ Então resolvemos assim. Mas vai dar problema... SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Que dia, meu Deus. Justamente hoje! SENHORA Z., UMA ATRIZ Nosso diretor está orgulhoso de nós, meus queridos. (Olhando para o alto, fecha os olhos teatralmente) Esteja onde estiver. O OPERADOR DE LUZ Tudo bem então? SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Num suspiro) Fazer o que? O OPERADOR DE LUZ Então, merda! (O Operador de Luz sai. Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Num suspiro. Teatral) Pelo menos vai ser emocionante. (Silêncio) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ A senhora sabe se o público ficou sabendo do ocorrido? SENHORA Z., UMA ATRIZ Pensei em tudo. Pedi ao pessoal da bilheteria que não dissesse nada. Vamos falar no final. Eu farei uma bela homenagem. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Uma homenagem? SENHORA Z., UMA ATRIZ Sim, veja que bela homenagem preparei. (Tirando dos seios um papel amassado. Lê) “Não quero o poder fingido, não quero pompas fantásticas, ilusões inúteis. Já vos conheço, e sei que é o que acontece quando sonham. Mas para mim acabaram as ilusões; estou acordado, sei muito bem que a vida é sonho.” (Pausa. Suspirando) Disseram-me uma vez que este texto traz a idéia de poder e dissimulação do teatro. (Pequena pausa) Da vida, talvez? (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Orgulhosa) Calderón de la Barca. (Pequena pausa) Depois de ler este texto vou dizer algumas belas palavras sobre o nosso diretor. E depois conto ao público que ele foi assassinado. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Feliz) Lindo, lindo! As pessoas vão ficar emocionadas. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Suspirando. Teatral) Ai, que tragédia, meu Deus! (Ouve-se o terceiro sinal) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Respirando fortemente. Decidida) Vamos lá. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Professoral) The show must go on, minha querida. XIV – ENFIM, A SEPULTURA DOS OSSOS A empregada doméstica e o filho adolescente. (Um luminoso em néon com os dizeres: “dez horas da noite”. A empregada doméstica e o filho adolescente numa rodoviária, sempre com a mala dos ossos, à espera de um ônibus) A EMPREGADA DOMÉSTICA Enfim, o final de nosso pesadelo, meu filho. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Estou com medo, mãe. A EMPREGADA DOMÉSTICA Pense no Natal da tua irmã. A felicidade da avó... O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Penso. (Silêncio profundo) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Descobrirão a gente? A EMPREGADA DOMÉSTICA Saberão de tudo, meu filho. Mas já estaremos distantes. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Mas é essa distância que me apavora. A EMPREGADA DOMÉSTICA Você está protegido. Foi por uma causa justa. (Num suspiro) Eu juro que tentei outras formas. 254 Até bilhete desesperado deixei. (Mais um silêncio profundo) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Olhando ao redor) E a cor desta cidade? A EMPREGADA DOMÉSTICA Que tem a cor da cidade? O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Tão cinza. Triste. A EMPREGADA DOMÉSTICA É. Muito triste. (Mais silêncio. Uma voz num alto-falante anuncia o embarque de um ônibus qualquer) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Depois de algum tempo. Sonhador) Voltarei alguma vez ao teatro? A EMPREGADA DOMÉSTICA Era um mundo que não te pertencia. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Eu estava aprendendo. A EMPREGADA DOMÉSTICA Não era para você. Vai aprender outras coisas. 255 O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Não queria voltar ao campo. A EMPREGADA DOMÉSTICA Mas este é o seu mundo. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA O teatro era a minha vida. (Mais silêncio) A EMPREGADA DOMÉSTICA Até aqui tudo foi um sonho. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Então viver é sonhar. A EMPREGADA DOMÉSTICA É verdade. A vida é um sonho. (Mais silêncio) A EMPREGADA DOMÉSTICA Recomeçar, agora. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA Como pensa que vai ser? A EMPREGADA DOMÉSTICA 256 Eles vão descobrir tudo. Virão à nossa procura. O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA (Triste) É. Virão. A EMPREGADA DOMÉSTICA Então não terá mais jeito. “Meu crime foi respeitar os mortos. Mas em breve, o meu destino será cumprido, e saberei se errei eu, ou se erraram os meus juízes. Se o erro é deles, eu não lhes desejo um suplício mais cruel do que o meu.” (Silêncio profundo) O FILHO DA EMPREGADA DOMÉSTICA E então? A EMPREGADA DOMÉSTICA (Pensativa, acariciando a mala com os ossos) É, é. E então? (Silêncio. Uma música triste. A luz vai caindo em resistência) XV – E A RÉCITA DAQUELA NOITE FOI UM SUCESSO, AFINAL Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz, o velho Dramaturgo Fracassado e o Operador de Luz, depois. A síndica do prédio vizinho e a vendedora de flores, no final. (Um luminoso em néon com os dizeres: “onze horas da noite”. No decorrer desta cena a Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz estarão mudando de roupa) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Entrando no camarim e abandonando um arranjo que estava em sua cabeça. Exultante) Lindo, lindo! SENHORA Z., UMA ATRIZ (Entrando e também abandonando um arranjo que estava em sua cabeça. Ainda com lágrimas nos olhos) Não lhe disse que seria um sucesso? (Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz abraçam-se) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ O curador do festival europeu ficou comovido. Estava chorando. SENHORA Z., UMA ATRIZ Claro, era uma noite muito especial. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Meu Deus, que noite! SENHORA Z., UMA ATRIZ Nem que vivesse mil anos me esqueceria deste momento. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Ninguém que assistiu a apresentação de hoje se esquecerá, tenha certeza. SENHORA Z., UMA ATRIZ E o final, eu lendo o texto do Calderón de la Barca. Você acha que eu li bem? SENHORITA D. OUTRA ATRIZ Irretocável! SENHOR Z., UMA ATRIZ (Lamentando-se) Se eu tivesse tido tempo pra decorar! SENHORITA D., OUTRA ATRIZ A senhora foi perfeita. SENHORA Z., UMA ATRIZ Ai, Deus, que noite! (Pequena pausa) E acha que eu falei direitinho, no final? SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Emocionante! (Entram o Operador de Luz e o Dramaturgo 259 Fracassado) O OPERADOR DE LUZ (Feliz) Deu tudo certo. SENHORA Z., UMA ATRIZ A récita foi um sucesso! O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Escreverei sobre a noite de hoje. (Senhora Z., Uma atriz, Senhorita D., Outra atriz, o Operador de Luz e o Dramaturgo Fracassado abraçam-se) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Temos que falar com o resto do elenco. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Seca) Um bando de amadores. Não têm sensibilidade para entender o que se passou aqui, hoje. O OPERADOR DE LUZ (Triste) Tava todo mundo chorando. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Emocionados... SENHORA Z., UMA ATRIZ 260 Levianos, isso sim. (Silêncio constrangedor) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Meu Deus, que noite! Estou arrepiada até agora. (Silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Para o Operador de Luz) Me faz um favor. Vá até a floricultura e peça para providenciarem uma coroa de flores. (Tirando um papel amassado dos seios) Peça pra gravarem estes dizeres. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Uma coroa de flores? SENHORA Z., UMA ATRIZ (Teatral) Ora, precisamos velar o nosso querido diretor. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Meus Deus, a senhora é perfeita! SENHORA Z., UMA ATRIZ Faço o possível, minha querida. O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Ouvi dizer que o curador do festival europeu 261 quer falar com elenco. Deve estar no saguão à espera de vocês. (Senhora Z., Uma atriz e Senhorita D., Outra atriz vão ao espelho do camarim. Retocam as maquia gens) SENHORA Z., UMA ATRIZ Ossos do ofício... O OPERADOR DE LUZ Como faço, senhora? (Em outro extremo do palco surgem a vendedora de flores e a síndica do prédio vizinho) A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Faz o que eu estou te dizendo. SENHORA Z., UMA ATRIZ Fazer o que, minha criança? O OPERADOR DE LUZ Como pagaremos a coroa? A VENDEDORA DE FLORES Mas não custa caro? Não tenho dinheiro. SENHORA Z., UMA ATRIZ Fale com o administrador. Ele te dá o dinheiro. Não vai recusar pagar esta última homenagem para o nosso diretor, não acha? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Eu te darei o dinheiro. (O Operador de Luz sai). O VELHO DRAMATURGO FRACASSADO Espero vocês no saguão. (Exultante) Foi uma grande noite! (O velho Dramaturgo Fracassado sai. Uma atriz e Outra atriz continuam a retocar a maquiagem) A VENDEDORA DE FLORES Um vestido novo... Parece um sonho... SENHORA Z., UMA ATRIZ Estamos acordadas? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO É muito bom quando realizamos um sonho. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Dramática) Não consigo nem chorar. A VENDEDORA DE FLORES Estou com muita vontade de chorar. SENHORA Z., UMA ATRIZ Não chore, querida, não chore. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Chore, chore minha criança... SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Não vou chorar. A VENDEDORA DE FLORES E nós não passaremos o Natal sozinhas. SENHORITA D., OUTRA ATRIZ (Num súbito) E o pernil? A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Faremos uma grande ceia. SENHORA Z., UMA ATRIZ Teremos a nossa grande ceia. A VENDEDORA DE FLORES (Com as flores) É um sonho? (Silêncio. Música) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ Ele gostaria de ter visto tudo isso. A VENDEDORA DE FLORES Queria levar estas flores pro diretor. SENHORA Z., UMA ATRIZ (Com orgulho) Ele ficaria orgulhoso de nós. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO Ele se orgulharia de você... (Mais silêncio) SENHORA Z., UMA ATRIZ (Dramática) A vida imitando o teatro. (Outro silêncio) SENHORITA D., OUTRA ATRIZ A senhora foi mesmo maravilhosa. A SÍNDICA DO PRÉDIO VIZINHO (Sonhadora) E pensar que um faqueiro português caído ao chão pudesse mudar as nossas vidas... SENHORA Z., UMA ATRIZ Não esqueça, minha filha, “velhice ensina prudência”. (A luz vai caindo em resistência. Apenas os bastidores do camarim das atrizes ficam acesos. A Senhorita D., Outra atriz termina sua maquiagem, levanta-se, pega uma bolsa, apaga a luz de seu bastidor, beija a Senhora Z., Uma atriz na testa e sai. A Senhora Z., Uma atriz retoca pela última vez a maquiagem, levanta-se e apaga a luz de seu bastidor) Fim Índice Apresentação - Hubert Alquéres 5 Introdução - Alberto Guzik 13 Prefácio: Lux in Tenebris - Jefferson Del Rios 17 Faz de conta que tem sol lá fora 27 Os cantos de Maldoror 75 De profundis 143 A herança do teatro 183 Crédito das fotografias Guilherme C 28, 31, 32, 74 Roberto Reitenbach 76, 79, 80, 142, 184 Demais fotos: acervo Ivam Cabral Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Bens confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Braz Chediak - Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Carlos Coimbra - Um Homem Rraro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach -O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Casa de Meninas Inácio Araújo Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero Críticas Edmar Pereira - Razão e sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas Jairo Ferreira - Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas L. G. Miranda Leão Org. Aurora Miranda Leão De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Dois Córregos Carlos Reichenbach Fernando Meirelles - Biografia prematura Maria do Rosario Caetano Fome de Bola - Cinema e futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado - Um cineasta cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton - O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça Jeferson De - Dogma feijoada272 - o cinema negro brasileiro Jeferson De João Batista de Andrade -Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky - O homem com a câmera Carlos Alberto Mattos Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu O Caso dos Irmãos Naves Luis Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah e Newton Cannito Pedro Jorge de Castro - O calor da tela Rogério Menezes Rodolfo Nanni -Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Viva-Voz -roteiro Márcio Alemão Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Zuzu Angel - roteiro Sergio Rezende e Marcos Bernstein Série Cinema Bastidores - Um outro lado do cinema Elaine Guerini Série Teatro Brasil Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso -Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Samir Yazbek - O teatro de Samir Yazbek Samir Yazbek Críticas Maria Lucia Candeias - Duas tábuas e uma paixão Org. José Simoes de Almeida Júnior Críticas Clóvis Garcia - A crítica como oficio Org. Carmelinda Guimarães Teatro de Revista em São Paulo Neyde Veneziano Série Perfil Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Ilka Soares - A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont - Do cordel às Telas Klecius Henrique Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maria Adelaide Amaral - A emoção libertária Tuna Dwek Miriam Mehler - Sensibilidade e paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart - Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti - Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renata Palottini - Cumprimenta e pede passagem Rita Ribeiro Guimarães Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco - A alegria de representar Alfredo Sternheim Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Leonardo Villar - Garra e paixão Nydia Licia Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Zezé Motta - Muito prazer Rodrigo Murat Tony Ramos - No tempo da delicadeza Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel - O samba e o fado Tania Carvalho Vera Holtz - O gosto da Vera Analu Ribeiro Série Crônicas Autobiográficas Maria Lucia Dahl - O quebra-cabeças Especial Cinema da Boca Alfredo Sternheim Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Gloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 280 Tiragem: 1.500 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2006 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Cabral, Ivam Quatro textos para um teatro veloz / Ivam Cabral. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 280p. : il. --(Coleção aplauso. Série teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-511-0 (Imprensa Oficial) 1. Crítica teatral 2. Peças de teatro 3. Teatro - História e crítica I. Ewald filho, Rubens. II. Título. III. Série. 06-8685 CDD-809.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Teatro : Literatura : História e crítica 809.2 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP T 00 55 11 6099 9800 F 00 55 11 6099 9674 www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 6099 9725 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual