Maurice Capovilla A imagem crítica Carlos Alberto Mattos Imprensa Oficial São Paulo, 2006 Governador Cláudio Lembo Secretário Chefe da Casa Civil Rubens Lara Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira Coleção Aplauso Cinema Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne Assistência Operacional Andressa Veronesi Editoração Aline Navarro Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Revisores Sárvio N. Holanda Dante Pascoal Corradini Amancio do Vale Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõe seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O caso dos irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Meus agradecimentos a Maurice Capovilla, Marília Alvim, Rosane Nicolau, Susana Schild, Carlos Augusto Calil, Marília Franco, Julio Miranda / Polytheama Vídeo, Danielle Almeida Prado e Reynaldo Pires Picozzi. Introdução Histórias de sobrevivência No tempo em que suava a camiseta do infantojuvenil do Valinhense ou do Guarani de Campinas, o lépido e franzino “Capô” jogava no meiode-campo, na clássica posição de center half. Mais tarde, ao trocar a bola pela máquina de escrever e a câmera de filmar, descobriu que era preciso “bater nas onze”. Para sobreviver com arte (nos dois sentidos), era necessário ocupar o campo inteiro, desdobrar-se em várias funções, cobrar o escanteio e correr para cabecear. Nascia, assim, uma carreira das mais peculiares dentro do audiovisual brasileiro. Neste livro, Maurice Capovilla a rememora, passo a passo, da infância – que em nada anunciava o seu destino profissional – até a plena maturidade, que continua a exercer nos vários ramos da sua árvore de criação: o cinema, a televisão e as escolas direcionadas para essas atividades. Num trajeto de mais de 40 anos, realizou documentários, filmes de ficção, programas musicais, telenovelas, telefilmes (área em que foi pioneiro no Brasil), minisséries, institucionais, etc. Colaborou em filmes de amigos, ajudou a criar TVs comunitárias e orientou uma infinidade de jovens nos misteres de uma arte sempre crítica, reflexiva, e focada no povo brasileiro. Como tantos cineastas de sua geração, Capovilla entrou no cinema pela porta do jornalismo e da crítica de cinema. Foi, até certo ponto, uma voz dissonante no coro de elogios da esquerda ao Cinema Novo. Seus célebres artigos dos anos 1960 na revista Brasiliense, embora afinados com as bases ideológicas do movimento, apontavam contradições e faziam um exigente cotejo entre intenções e resultados. Cedo, porém, o ensaísta deslocou suas baterias críticas para o terreno da realização cinematográfica. Não foi uma vocação descoberta na pureza dos cineclubes e cinematecas, mas engendrada no fértil cruzamento de caminhos com cineastas, escritores, músicos, gente de teatro, boêmios, sindicalistas, ativistas políticos, etc. Dos teatros de Arena e Oficina ao Partido Comunista, da Cinemateca Brasileira às boates da Rua da Consolação, das redações de jornal aos piquetes grevistas e aos estádios de futebol, os vários ingredientes da efervescência paulistana da década de 1960 tiveram encontro marcado na primeira fase da obra de Capovilla. São Paulo foi cenário e inspiração dos três longas-metragens autorais que ele dirigiu entre 1967 e 1976. A modelo Bebel (Bebel, garota propaganda), o faquir Ali Khan (O profeta da fome) e os malandros Malagueta, perus e bacanaço (O jogo da vida), em que pese virem alguns de obras literárias de amigos, personificam o antiherói característico da obra de Capovilla. São todos de origem humilde, iludidos por alguma solução mágica de sobrevivência material ou de escalada social – o show business, o ilusionismo, a vigarice. Vivem processos de ascensão (ou tentativa de) e queda, enquanto descortinam um quadro de exploração, ignorância e ambições toscas, fadadas ao insucesso. Se há um tema que unifica boa parte da obra de Maurice Capovilla, assim como a de John Huston, este é o do fracasso: aventuras que não se concretizam, talentos frustrados, golpes malsucedidos. O assunto foi estudado não apenas nesses três filmes. Quando abordou a figura mítica de Lampião, numa experiência inovadora de contágio entre documentário e ficção no âmbito do Globo Repórter dos anos 1970, não foi às façanhas do cangaceiro que ele se dedicou, mas aos derradeiros instantes de sua saga, irremediavelmente cercado pelas volantes. Já no clássico documentário Subterrâneos do futebol, rebento brasileiro na linha do cinema-verdade, examinou, entre outras coisas, a ruína do jogador Zózimo Calazans. Não por acaso, quando foi à Argentina filmar a Copa do Mundo de 1978, com Paulo César Saraceni, a dupla dividiu os trabalhos entre vitoriosos e derrotados. Capovilla, é claro, ficou com os segundos. A dramaturgia do malogro parece-lhe mais rica que a do êxito. Favorece uma tomada de posição crítica diante da realidade e uma abordagem do lado mais profundamente humano de suas personagens. A busca pela sobrevivência tem norteado o trabalho do realizador, seja nos filmes ou fora deles. Nessa lida, tem sido um homem à procura de histórias. Vai buscá-las, preferencialmente, na vida das camadas populares. Foi assim que, em 1963, deu com os costados na escola de documentários de Fernando Birri, no interior da Argentina, em companhia do amigo Vladimir Herzog. Aquele rápido estágio deixou raízes profundas na consciência do diretor principiante. Ligou sua sensibilidade para sempre ao filme documental e a um modelo de ensino de cinema onde a prática prevalecesse sobre a teoria. O seu credo antiintelectualista não é mero biombo para a vulgaridade ou a estagnação estética. O fato de preferir temas populares nunca o dispensou da pesquisa formal, nem de uma encenação que ultrapassasse o mero naturalismo. Se os seus documentários recusam a mera observação e assumem a intervenção autoral no uso da linguagem, a ficção de Capovilla também segue no rumo de uma representação mais elaborada, seja ela brechtiana, surrealista ou tributária das artes sertanejas. Na maioria de seus filmes, vemo-lo praticar uma narratividade múltipla, fabular, incorporando contadores de histórias, jornalistas, narradores, cantadores, performers, etc. Ser popular, para Capô, não equivale a ser simplório, nem comodamente recostar-se nos lugares-comuns. Da mesma forma, o pouco caso que nutre pelo psicologismo, longe de ser um elogio do determinismo social, é uma maneira de situar o homem sempre no fluxo de relações com o outro. A angústia individual só lhe interessa a partir do ponto em que reverbera na vida em comum e diz algo sobre o plano mais amplo da condição humana. Nesse sentido, foi curioso que, após um jejum de mais de vinte anos em trabalhos para cinema, Capovilla retornasse com Harmada, talvez o seu filme mais próximo de uma pauta existencialista. Pela primeira vez, não se falava em dinheiro, privações físicas e necessidades materiais. A reentré do “Ator” vivido por Paulo César Peréio, de certa forma similar ao ressurgimento do ator e do diretor, ocorria basicamente no campo espiritual. Era um reencontro com o teatro, a filha, o corpo – em uma palavra, a identidade. Para Capovilla, na proximidade dos seus 70 anos, dobrar-se sobre a própria história para gerar esse livro foi um momento de visível satisfação. A mim, o seu relato agradou não somente por deixar patente um certo modus operandis do cinema e da TV brasileiros. Gostei da maneira franca, realista e, até diria, modesta com que ele apresentou sua trajetória. Modéstia que, muitas vezes, não condiz com a importância do seu trabalho para uma definição dos temas e preocupações do cinema brasileiro moderno. Exemplo disso é O profeta da fome, que ele considera defasado já à sua época, mas que serve hoje como prova de que, entre o Cinema Novo e o Cinema Marginal, existem tantas pontes quanto rupturas. Da mesma forma, sua passagem pelo Globo Repórter e pela nascente TV Manchete merece crédito na formação de padrões de criatividade e excelência que hoje fazem falta na televisão brasileira. Gravamos 25 horas de conversas para este livro. A partir de certo momento, descobri que suas recordações fluíam melhor com lápis e papel à frente. Desde então, não faltaram blocos de folhas brancas, avidamente preenchidas com nomes, rabiscos, setas, arremedos de geometria, esboços de storyboards. Ao final de cada encontro, eu arquivava aqueles garafunhos de memória, à guisa de backup hieroglífico. Na hora de redigir, achei por bem converter sua prosódia entrecortada em texto mais escorreito. Com relação à estrutura, optei por criar alguns capítulos temáticos, que dessem conta de sua inserção em atividades diversas. Assim, os capítulos Futebol, Televisão e Ensinando a jogar traçam percursos completos, do início da carreira à atualidade. Cabe agora entregar ao leitor esse retrato ainda incompleto de Maurice Capovilla, limitado ao que minhas perguntas foram capazes de retirar dele e ao que ele próprio escolheu para contar. A história de si mesmo, que de certa forma já constava de seus filmes, é mais uma história de sobrevivência desse admirável companheiro. Carlos Alberto Mattos Fevereiro de 2006 Capítulo I Antes do cinema Eu tinha 14 anos quando o cinema caiu na minha cabeça. Não, isso não é uma figura de lingua-gem. Eu assistia à matinê dominical do Rink, em Campinas, quando um estalo ensurdecedor se sobrepôs ao som do filme. O teto do cinema desabou sobre a platéia. Quando recobrei os sentidos, minutos depois, havia escombros de gesso por toda parte. Minha mão ainda segurava a mão de minha namorada. Mas a dela estava estranhamente fria. Saí do cinema atônito e traumatizado. Caminhei sozinho até o pronto-socorro, onde enfaixaram minha cabeça. Ao todo, 13 jovens perderam a vida naquele desastre horrível. Seus corpos foram estendidos na calçada do Rink. Experiência tão trágica não me afastaria, porém, de um destino ligado ao cinema. Destino que, aliás, não se anunciava durante minha infância e adolescência no interior de São Paulo, entre Valinhos, onde nasci, e Campinas. Aquelas matinês de filmes e seriados norte-americanos nada pareciam anunciar a respeito do meu futuro. Os fundos da minha casa davam para os fundos de outro cinema, onde havia um campo de bocha. A italianada jogava até tarde da noite, infernizando os ouvidos de minha mãe. A certa altura, aprendi a saltar o muro alto e penetrar no cinema através dos mictórios, colocando-me no chão, quase embaixo da tela. Ainda assim, os filmes não passavam de uma diversão como outra qualquer. Preferia as peladas. Ou as tardes passadas ao lado do meu pai no seu armazém, ajudando-o em alguma coisa, mas principalmente saboreando o movimento de compra e venda. Além de administrar o vulgo Armazém do Pedrinho, meu pai, Pedro Luís Capovilla, cuidava de um sítio, ambos deixados pelo meu avô. Quando criança, plantei dois pinheiros no local. Ali, no bairro de Santa Escolástica, havia uma parte de mata fechada e um pomar carregado de maçãs, pêras, jabuticabas, abacaxis – e os astros principais, os figos. A cultura do figo, tal como hoje a conhecemos no Brasil, foi trazida pelos imigrantes italianos na última década do século 19. Meu avô paterno, Giuseppe Capovilla, tinha sido um deles. Giuseppe nasceu em Roncai, na região de Trento. Queria “fare l’America” e chegou a Valinhos, distrito de Campinas, atraído pela propaganda do governo brasileiro, juntando-se à grande colonização vêneta daquela região. Os italianos traziam na bagagem mudas clandestinas de figueira, árvore simbólica para eles. Plantaramnas atrás das antigas casas de escravos onde lhes coube morar. Para dissimular o plantio não autorizado, podavam regularmente as árvores, ao contrário do que acontecia na Itália. Com isso, a frutificação multiplicou-se, daí nascendo o figo comercial brasileiro, que é conhecido como “figoroxo de Valinhos”. As famílias de imigrantes da região se capitalizaram por meio de suas figueiras. Meu avô casou-se com minha avó, Ernesta Angeli, também de família italiana. Na época da minha infância, oito em cada dez habitantes de Valinhos eram de origem italiana. É claro que havia muitas festas e jogos, muita pasta, e a lembrança do cheiro dos molhos ainda me dá água na boca. Meu pai criava porcos no sítio. O dia da matança era uma jornada inteira de regozijo familiar: abrir todas aquelas carnes, separá-las. Pequeno, minha predileção era girar a manivela da máquina de ensacar lingüiça. Com o avô materno, Pompeu Napoleone, eu gostava de sair para caçar codornas na savana em torno de Campinas, seguindo o rastro dos cães perdigueiros. Aquilo me parecia um morticínio desleal. Os chumbinhos se espalhavam no espaço aberto, sem qualquer chance para as pobres aves. Na volta, o avô trazia as codornas penduradas em torno da cintura, como um guerreiro triunfal. No fim da vida, treinava os cães de outros caçadores e ensinava o esporte a gentes de mais posses. Na juventude, meu avô Pompeu havia sido um ferroviário anarquista na Itália. No Brasil, ele e os filhos foram funcionários da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Esses meus tios eram politizados. Um deles coordenava, em fins da década de 1930, uma sociedade de socorros mútuos, que recolhia fundos para auxiliar nas questões de saúde e nos funerais dos funcionários. Mas isso era somente a fachada de um núcleo de proteção trabalhista com tinturas anarquistas. Eles produziam textos com análises críticas da sociedade em relação ao trabalho. Funcionavam em regime duplo, como as futuras células do Partido Comunista. Garoto de província Nasci a 16 de janeiro de 1936. O nome Maurice Carlos Capovilla sempre me intrigou pelo prenome francês. A admiração pelo ator Maurice Chevalier talvez explique essa escolha da minha mãe, Elvira, mas nunca cheguei a esclarecer completamente o mistério. Valinhos, nos anos 1930, era uma modesta estância de veraneio, com uma ótima água mineral. Além da cultura do figo, a cidade tinha uma fábrica da Gessy Lever fundada por italianos e, mais tarde, ganhou a indústria de papéis Rigesa. Para mim, no entanto, o maior orgulho era chegar do sítio montado em pêlo na Suzana, égua de corrida que ganhei do meu pai aos seis anos. Adentrava o calçamento urbano a galope, os cascos do animal produzindo faíscas e um ruído delicioso no atrito com as pedras. Dava uma volta completa pela cidade, cheio de garbo. Os moradores se assustavam, ameaçavam-me com alertas terríveis. Mas as sensações de confiança e liberdade eram mais fortes que tudo. Algo semelhante, mas com motor, ocorreu mais tarde, por volta dos meus 13 anos. Meus pais rumavam para Campinas nos finais de semana e deixavam comigo o Ford 38 de capota conversível. Eu reinava ao volante, conduzindo meus amigos pelas estradas de terra rumo aos bailes e namoros de Louveira e Vinhedo, duas cidades próximas. Os carros conversíveis viriam a ser uma das minhas paixões. Outro motivo de orgulho foi ver a chegada de um tio da Segunda Guerra. Como único pracinha de Campinas, e ainda por cima ferido no front, ele foi recepcionado por uma multidão na estação de trens. Eu estava lá, e ganhei dele algumas barras de chocolate americanas. É preciso ressaltar que barras de chocolate eram uma novidade espetacular na região. Em casa, desde muito pequeno, presenciava as intermináveis reuniões de minha mãe com suas muitas amigas e parentas, um verdadeiro clube feminino. Ficava rondando as pernas das mulheres, sem compreender o que tanto falavam sobre a vida e os afazeres. Um dia, decidido a me proporcionar uma formação musical, meu pai levou para casa um piano, ao qual associo os momentos de maior tédio da minha infância. Sem qualquer talento ou vocação musical, eu tinha que ficar ali durante horas preciosas da tarde, embatucado diante do método de P. Bona, arranhando as Sonatas de Chopin, enquanto os amigos me esperavam no campinho de futebol. Muito tempo depois, quando meu filho Matias decidiu-se pela carreira de músico, aos 13 anos de idade, meu pai deu-lhe um presente muito especial. Abriu um cofre da Casa de Campinas e retirou um violino já bem arruinado, que eu mesmo nunca tinha visto. Sabia apenas que meu pai, antes de se casar, havia sido violinista na banda de música de Valinhos. Minhas melhores lembranças dele estão ligadas ao armazém e ao sítio. O velho tinha um caso de amor com as frutas. Era um exímio praticante de enxertos agrícolas, especialmente da uva rosé, obtida da mistura da uva branca com a preta. Já na década de 1950, quando nos mudamos para Campinas, ele criou uma empresa de transportes e foi o primeiro a levar o figo de Valinhos para o Rio de Janeiro. As primeiras imagens que guardo do Rio são as viagens com meu pai e as caixas de figos, no rumo das bancas de frutas do antigo mercado da Praça XV. Meus pais eram católicos de missa aos domingos e pouco mais. Eu cheguei a ser coroinha, mais pelo prestígio que isso trazia do que por alguma vocação religiosa. Ter o privilégio de empunhar a matraca, abrindo as procissões da Semana Santa, era como fazer um gol de placa. Não que eu fosse um exibicionista. Mas aquele destaque no mundo adulto era algo que toda criança interiorana da época ambicionava. Mais tarde, quando vieram as leituras de Filosofia, eu me converteria num agnóstico de verdade. Não fui um adolescente dado a leituras. Só bem mais tarde fui perceber que um dos meus tios ferroviários possuía uma biblioteca bastante curiosa: metade autores políticos, muitos russos, metade literatura rosa-cruz. Ou seja, ele tinha dupla personalidade ideológica. Cursei o ginásio no Colégio Cesário Mota, em Campinas. Como todos os estudantes, tinha um passe de trem para as viagens diárias. Também em Campinas, no Colégio Atheneu Paulista, iniciei o curso clássico, já decidido a seguir carreira ligada às Ciências Humanas. Foi nessa época que vivi alguns ritos de passagem fundamentais. Com os amigos Manuel Joffily e Charles Hoghenbaun, formei uma trinca inseparável. Estudávamos, líamos e passeávamos juntos. Um dia resolvemos pegar a estrada até Santos no Dodge azul que o Manuel havia herdado do pai. Todos menores, sem documentos nem habilitação de motorista, fizemos nossa grande aventura, que terminou nos shows de putas do porto de Santos. Ainda mais decisiva foi a influência de um professor de Filosofia do clássico, Stenio Puppo Nogueira, que nos abriu a perspectiva de um admirável mundo novo, o das idéias. Eu o via como um sábio, alguém que estava alterando minha forma de apreender o mundo. Para ele, nada estava pronto e acabado. “Vocês têm que buscar, investigar por sua conta”, insistia. Parece simples, mas, para minha realidade de menino provinciano, era uma imensa descoberta. Meus primeiros contatos reais com a Literatura vieram através desse estímulo. O professor Stenio não se fechava nos filósofos, mas nos mandava ler Proust e os franceses, Mário de Andrade e os modernistas. De um ano para outro, tornei-me um leitor compulsivo. Devorava livros para tirar o atraso. Aos poucos, larguei a bola em troca de jogar com a cabeça. Em pouco tempo, direcionava meu interesse para a Filosofia. Aos 21 anos, em busca de vida própria e independente, migrei para São Paulo. Capítulo II Aprendendo a jogar Controle de medicamentos no hospital da Santa Casa de Misericórdia – essa foi a minha primeira ocupação na capital paulista. Fatiava o dia entre a farmácia do hospital, o terceiro ano Clássico no Colégio Paes Leme e um cursinho pré-vestibular inacabado. Em 1958, entrava para a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Fora do currículo do curso, era um privilégio poder estudar Teoria Geral da Literatura com Antônio Candido e Estética com a mulher dele, Gilda de Mello e Souza. Com Gilda, durante um semestre inteiro, estudamos a obra de Mário de Andrade, seu tio. Como trabalho prático, coube a mim e a outro colega fazer um inventário das cartas de Mário que ainda se encontravam na casa da Rua Lopes Chaves. Eu respirava com sofreguidão o ar do templo do Mário. Os ares, aliás, começaram a mudar sensivelmente quando, no primeiro ano da faculdade, venci a dura concorrência por uma vaga na famosa pensão do Paulo Cotrim. Nos quartos da grande casa da Rua Sabará, 400, acomodavam-se estudantes de Filosofia e Arquitetura, jovens ligados à música e ao teatro. Pouco depois de mim, chegou José Celso Martinez Corrêa, vindo de Araraquara. Os ensaios do Grupo Oficina ocuparam o porão da casa. A algumas quadras dali ficava o Teatro de Arena, com o Bar Redondo em frente. A pensão do Cotrim, o Arena e o Redondo formavam uma espécie de triângulo dos desgarrados em São Paulo, pontos de referência cultural incontornáveis para quem vinha de fora. Ali fui conhecendo Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Juca de Oliveira e os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso. A Bossa Nova chegou em São Paulo através das primeiras visitas de Vinícius de Moraes, grande amigo do Cotrim, e instalou sua batida no João Sebastião Bar, que ajudei a montar ali perto. Aos poucos, fui formando minha turma com Victor Knoll e Vladimir Herzog, colegas da Filosofia, Guarnieri, Gustavo Dahl. A amizade com o Gustavo vinha, aliás, do terceiro ano clássico, onde éramos colegas de classe. Ele era habitué do Cineclube Dom Vital, cujas sessões, no auditório de uma associação católica, passei também a freqüentar. Por ali passava boa parte da intelectualidade paulista, inclusive Rudá de Andrade e Jean-Claude Bernardet. Na mesma Rua Sete de Abril, na sede dos Diários Associados, funcionava a Cinemateca Brasileira. Nesses dois locais, fiz minha iniciação cinematográfica para valer. O Festival de Cinema Italiano realizado pela Cinemateca, em 1959, foi o marco inicial desse processo. Até então, as exibições eram esparsas, à falta de um grande acervo de cópias que não fossem de “preservação”. Depois vieram os festivais de cinema francês e russo/soviético, e as mostras do cinema polonês, do expressionismo alemão, da comédia americana. E ainda Fritz Lang, Griffith, Murnau, Visconti, Rossellini, Wajda, Eisenstein, Pudovkin, Vertov. Tudo aquilo que formou a geração do Cinema Novo. A partir daí, o vírus estava definitivamente inoculado. Eisenstein para operários Uma firme conexão entre jornalismo, cinema e política se esboçou na minha vida entre os anos de 1960 e 1961. Nesse período, iniciei-me como repórter no jornal O Estado de S. Paulo, fui trabalhar na Cinemateca Brasileira e entrei para o Partido Comunista Brasileiro. Um batismo triplo e de peso. Em 1960, Vladimir Herzog, Luiz Weis e eu fomos admitidos no primeiro concurso para repórter do Estadão. O jornalismo exercia uma forte atração sobre mim. Expressar-me por escrito já não era novidade. Vinha-me exercitando em contos e textos esparsos, nunca publicados. Minha monografia de conclusão do curso do Antônio Cândido, publicada como separata da Revista do livro em 1964, foi uma análise do lúdico como princípio estrutural da novela O recado do morro, de Guimarães Rosa. Aparentemente, minha carreira tomaria algum rumo entre a literatura e o jornalismo. No entanto, o caminho da erudição ou da especialização teórica nunca me atraiu. Com um casamento à vista, o jornal também se afigurava como um emprego adequadamente seguro. Casei-me nessa época com Anna Maria Pareschi, uma legítima italiana que havia conhecido em Campinas e que cursava Letras em São Paulo. Com ela teria meus três primeiros filhos, Lia (1962), Matias (1964) e Adriana (1969). Ao secretário de redação do Estadão, Cláudio Abramo, solicitei um posto na editoria cultural. Mas logo vi que as coisas não eram fáceis assim. No primeiro dia de trabalho, fui mandado para a delegacia de polícia da Praça da Sé. Passei uma semana aquartelado na delegacia, sem que aparecesse nenhuma pauta importante. Até que um dia vi uma movimentação excitada dos repórteres especialistas de jornais mais populares. Uma tal quadrilha, apelidada de bandidos da Winchester, estava encurralada por policiais em algum ponto da periferia. Segui-os até o local, onde dois bandidos já estavam mortos e um terceiro se refugiara num matagal. O tiroteio ainda comia solto. Quando cessou, já noite fechada, entrevistei o delegado, levantei toda a história e voltei para o jornal. Redigi umas cinco laudas. Esperava uma estréia retumbante. Mas na manhã seguinte, qual não foi minha surpresa ao ver o assunto estampado na capa do Última hora, mas resumido a meras cinco linhas num canto de página do Estadão. Natal, o chefe de redação, consolou o foca com uma lição inesquecível: “Rapaz, você não lê o seu jornal? Acha que o Estadão daria destaque a uma matéria policial?” Passei a ler melhor o jornal. Duas semanas depois, fui transferido para a reportagem geral, onde cobri, entre outros assuntos bem mais interessantes, a campanha em São Paulo do Jânio Quadros à presidência da República. Aprendia o ofício, como todos, na base da intuição, da conversa com os mais experientes e da prática diária. Até essa época não havia nada como uma escola de jornalismo. Posso dizer que Cláudio Abramo foi o meu primeiro mestre informal nessa área. Trabalhei um ano e meio no Estadão, até ser convidado por Rudá de Andrade para desenvolver o departamento de difusão cultural da Cinemateca Brasileira. Fui ocupar a vaga de Gustavo Dahl, que partia com uma bolsa de estudos para o Centro Sperimentale della Cinematografia, em Roma. Cheguei em casa e dei à Anna, grávida, a boa notícia: “Olha, vou trabalhar na Cinemateca ganhando metade do salário do jornal”. Meu destino, aliás, seria esse: sempre que tinha um emprego seguro e relativamente bem remunerado, resolvia trocar por algo mais incerto. Assim seria, mais tarde, com a própria Cinemateca, depois com a ECA-USP. O trabalho, para mim, haveria de ser sempre esporádico, irregular e financeiramente pouco compensador. O prazer da atividade não raro falaria mais alto. Na Cinemateca, por exemplo, eu já integrava uma espécie de “tropa de choque” nos debates sobre cinema e realidade. Circulava em torno dos centros aglutinadores que eram a pessoa do Francisco Luiz de Almeida Salles e o barzinho do museu. Admirava as análises de Paulo Emílio Salles Gomes, mesmo que ele não freqüentasse o bar. Via o cinema com olhos de pesquisador. Em outras palavras, sentia-me em casa. Minha função era estimular a formação de cineclubes pelo Brasil afora. Em Brasília, por exemplo, acompanhei algumas vezes Paulo Emílio em suas primeiras conferências na UnB (Universidade de Brasília). Eu praticamente carregava as latas para ele e supervisionava a projeção. O acervo volante da Cinemateca não passava de 30 ou 40 filmes, incluídos dois curtas de Joaquim Pedro de Andrade, um Joris Ivens, um Eisenstein, alguns Chaplin. Enviávamos esse material para universidades e grupos diversos, orientávamos a análise dos filmes e, através deles, formávamos uma rede de discussão da realidade brasileira. Onde houvesse uma faculdade, incentivávamos a criação de um cineclube como ponto de agregação e mobilização relativas à política estudantil. Essa rede depois seria utilizada pelo pessoal de música, assim como pelas células do PCB. Entrei para o partido em 1961, por causa da minha atuação na USP e junto ao Arena. Participei da criação do núcleo paulista do Centro Popular de Cultura, o CPC, ligado à União Estadual dos Estudantes. A sede de fato, porém, ficava no último andar do prédio da Editora Brasiliense, dirigida pelo Caio Graco, filho do Caio Prado Jr. Ali se reunia gente de teatro, música, cinema, artes plásticas e da universidade. O foco do trabalho era fazer a ligação da arte com a população através dos sindicatos. Não buscávamos o camponês, mas o operário, que seria um revolucionário possível, uma síntese do povo brasileiro. Estávamos blindados num conjunto de idéias prontas, que na época nos pareciam muito naturais. Enquanto a turma do Arena se ocupava do sindicato dos metalúrgicos, eu e Rudá nos envolvemos com o sindicato da construção civil, que ficava no bairro da Liberdade. Queríamos chegar àquela camada ainda mais popular e menos qualificada que os metalúrgicos, formada em grande parte de imigrantes nordestinos. Encontramos um anfiteatro amplo o suficiente para fazer exibições, mas não o hábito de ver filmes. Muito menos as obras politizadas de que dispúnhamos. Mesmo assim, levamos um projetor, armamos uma tela e começamos a anunciar as sessões do cineclube. O Encouraçado Potemkin, título de estréia, não despertou o interesse de mais do que 10 gatos pingados. Fomos seguindo de fracasso em fracas-so, solenemente desprezados pela nossa platéia de revolucionários entorpecidos. As coisas só melhoraram depois de exibirmos o documentário Zuiderzee, de Joris Ivens, sobre a construção de uma barragem na Holanda. Pela primeira vez não houve debandada no meio da sessão. Os operários se reconheciam nos colegas holandeses. Aquilo falava diretamente à realidade deles. Rapidamente programamos uma reprise, conclamando a massa a ver “os trabalhadores da construção civil ajudando a combater o nazismo”. Forçávamos um pouco a leitura histórica, mas não era mentira que o dique do Zuiderzee contribuiria, mais tarde, para barrar a invasão da Holanda pelas tropas de Hitler. O boca-a-boca funcionou e a sessão seguinte foi um sucesso. Fizemos um debate fantástico e aumentamos nosso público a partir dali. Nossa participação nem sempre se limitava ao cinema e aos debates. Na greve geral de meados de 1963, Rudá, eu e dois operários subimos, uma noite, a Av. Brigadeiro Luís Antônio, conclamando os trabalhadores a deixar os prédios em construção. Chegamos à sede do sindicato no dia seguinte pela manhã, felizes por havermos arrebanhado cerca de 40 novos grevistas. Parecia a confirmação de uma teoria ideológica: os intelectuais driblavam a polícia e conscientizavam os operários. União e desunião Dessa proximidade com o sindicato da construção civil nasceu a oportunidade de realizar meu primeiro filme. No mesmo ano em que o CPC do Rio produzia Cinco vezes favela, nós paulistas idealizávamos uma série de pequenos filmes políticos. União, contudo, seria o único a entrar em produção. Partiu do presidente do sindicato a proposta de fazer um filme didático para mostrar a impotência dos sindicatos na defesa do emprego, na segurança no trabalho e nos serviços que prestava aos afiliados. Com alguns operários mais próximos do cineclube, criamos um roteiro em que um peão de obra era demitido após sofrer um acidente. Cole-gas seus dirigiam-se ao patrão e advinham outras demissões. Entrava em cena, então, o representante do sindicato para apoiar o acidentado. Era um argumento bem primitivo, baseado em fatos que ocorriam com freqüência. Na filmagem, os operários indicavam as ações, nos moldes de um documentário encenado, e interpretavam os papéis. Para viver o patrão impiedoso, chamei João Marchner, um crítico de teatro que tinha porte “eisensteineano”. Rodamos durante quatro domingos no canteiro de obras do Edifício Quinta Avenida, o primeiro arranha-céu da Avenida Paulista. A locação foi obtida graças à interveniência de um dos arquitetos, Pedro Paulo de Mello Saraiva, ligado ao PCB. Na minha cabeça, o filme se chamava A Luta, em referência à luta operária. Acabou sendo conhecido como União. Mas na verdade nunca teve um título formal. Foi montado, mas nunca sonorizado. Que eu saiba, houve apenas uma exibição para a equipe num laboratório, sendo o filme então depositado no sindicato. Um rompimento político determinou que ele jamais fosse concluído. Não creio que tenha sobrevivido às atribulações pós-1964. União e desunião – eis as duas faces de uma mesma moeda. O CPC, que já era um saco de gatos, entrou em choque com o Partidão em meados de 1963. De um lado, a militância burocrática, à margem de qualquer ação; de outro, os artistas enfiados até os ombros na ação cultural, tentando mudar a cabeça das pessoas com o seu ofício, mas sem se curvar a ordens unidas. A militância criticava nosso trabalho nos sindicatos, acusando-o de não ser político conforme os parâmetros do Partido. Na minha casa, Guarnieri, Juca de Oliveira e eu escrevemos uma defesa de nossas posições. Mas foi impossível evitar o racha durante uma assembléia, encerrada com o afastamento do pessoal de teatro, cinema e artes plásticas. Assim acabava o CPC paulista, junto com a minha filiação ao Partido. Bem-vindos ao Cinema Novo Eu já trabalhava na Cinemateca Brasileira quando se realizou, em novembro de 1960, a I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, organizada por Rudá e Paulo Emílio. Jean-Claude e eu ficávamos numa mesinha recebendo os convidados. Lembro-me bem da manhã em que se apresentou um jovem baixinho, troncudo, com uma lata de filme debaixo do braço. Pediu para exibi-lo, como já fizera para um grupo de pessoas no laboratório Líder, no Rio. Era Linduarte Noronha e seu Aruanda. Vimos o filme em sessão privada no Cine Coral e ficamos estarrecidos. Rudá decidiu apresentálo naquela mesma noite, antes da pré-estréia de A doce vida, de Fellini. Aruanda pegaria de surpresa todos os críticos mais importantes do país e até mesmo Paulo Emílio. A alta burguesia paulista também estava presente à sessão. Ninguém escapou do impacto de um filme que exemplificava à perfeição a idéia de um cinema em mudança. Aruanda seria um dos destaques do I Seminário do Filme Documentário, que a Cinemateca promoveu no Teatro de Arena, em 1961. Roberto Santos, Rudá e Jean-Claude eram os principais expositores. Jorge Bodanzky, um dos alunos, foi outro que se deixou influenciar definitivamente por aquela nova imagem do Brasil. Começavam a chegar a São Paulo as notícias das transformações promovidas pelos cineastas cariocas e baianos. Mas o Cinema Novo só seria lançado oficialmente na cidade em outubro de 1961. Rudá, Jean-Claude e eu organizamos um Dia do Novo Cinema. No pavilhão do Ibirapuera, durante a VI Bienal, exibimos os curtas Aruanda, Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro), Couro de gato, O poeta do castelo e O mestre de Apipucos (Joaquim Pedro), Um dia na rampa (Luiz Paulino dos Santos), Igreja (Sílvio Robatto), Desenho abstrato (Roberto Miller) e Apelo (Trigueirinho Neto). A sessão foi apresentada por Rudá e seguida de um debate acalorado sobre o destino do cinema brasileiro entre a arte e a indústria. O conjunto de filmes (ficção e documentário) provocava um choque diante da paralisia do cinema paulista de então. Desde O grande momento, de Roberto Santos, não surgia em São Paulo um sinal equivalente de renovação. Havia qualidade, é claro, em filmes como Osso, amor e papagaio, de Carlos Alberto de Souza Barros e César Mêmolo Jr., ou Noite vazia, de Walter Hugo Khouri. Mas nós, não sem um certo sectarismo, exigíamos o novo, além da preocupação social e política que transparecia nos filmes do Rio, da Bahia e também da Paraíba. Essas posições tomariam a forma de texto nos artigos que escrevi para a Revista Brasiliense a partir de 1962. Eram análises marcadas por critérios ideológicos mais ou menos rígidos, praticados no âmbito do CPC. Foi o que me levou, por exemplo, a apontar um “amoralismo neutro” em Os cafajestes, criticar O pagador de promessas por cultuar o “herói messiânico” e até denunciar “um certo passadismo sentimental” – portanto não revolucionário – em Arraial do Cabo. Em contrapartida, elogiava o modelo de produção independente de Cinco vezes favela. Não perdoava o que entendia como “um certo populismo regionalista”. Identificava os filmes logrados esteticamente, mas que falhavam na comunicação das idéias que tinham de ser passadas naquele momento. Hoje minha visão não seria diferente, mas dela provavelmente resultaria uma análise menos aguda, mais matizada. Já em meados da década de 60, quando fiz críticas com certa regularidade em diversos jornais, utilizava parâmetros menos dogmáticos. Fui compreendendo que o crítico, sem abrir mão do rigor, precisava encontrar o que o filme propõe, em lugar de avaliá-lo por critérios predeterminados. Ocorre às vezes de o próprio autor não saber muito bem a proposta do seu filme, já que o processo criativo nem sempre é racional e consciente. Cabe, então, ao crítico colaborar nesse desvendamento. De minha parte, o exercício crítico aos poucos se imbuiu da consciência de quem também queria fazer cinema. Meu contato com o meio progredia rapidamente. Paulo Emílio era um ímã que atraía os cineastas cariocas à Cinemateca Brasileira. Na mão oposta, eu também costumava viajar ao Rio para encontrar-me, por exemplo, com David Neves, Joaquim Pedro e Leon Hirszman. Na volta, relatava tudo a Paulo Emílio, que usava esse material como subsídio para sua coluna no Suplemento Literário do Estadão. Entre outras iniciativas, lembro-me de ter participado da organização de uma pequena mostra do novo cinema baiano no cineclube de Santos. O fato é que logo me tornei um entusiasta do Cinema Novo, sem perder, no entanto, o ponto de vista crítico. Meninos de São Paulo e de Santa Fé A oportunidade de fazer Meninos do Tietê, meu segundo curta-metragem, surgiu em conversas com um amigo do Estadão, Victor Cunha Rego, jornalista, diplomata e político português exilado do regime salazarista. Casado com uma mulher muito rica, ele resolveu produzir um filme e colaborou na gestação da idéia. Criei um esboço de roteiro em torno de um grupo de meninos miseráveis que brincam no rio Tietê. Mergulham e se divertem, enquanto na outra margem do rio a polícia montada faz sua ronda de praxe. A mesma tropa de Adhemar de Barros, especializada em dissolver manifestações. Os mesmos cavalos que perseguiam estudantes e grevistas. Em dado momento, um dos meninos cai na água e quase se afoga. Um soldado o salva, o que na minha concepção era também uma forma de prendê-lo. Há um plano simbólico por trás das ações ordinárias de um e outro grupo. Documentário e encenação se interpenetram, como em União. Rodamos em 35 mm, o que era raro em curtas daquela época, mas sem som direto. O resultado foi um filme contemplativo, que não gostei de rever recentemente. O filme foi exibido no Festival dos Povos, em Florença (Itália), enviado pelo Itamaraty. Quanto ao produtor, retornaria depois a Portugal, onde dirigiu jornais, ajudou a fundar o Partido Socialista Português e foi Secretário de Estado do primeiro governo Mário Soares. Já li referências a uma suposta influência de Tire Dié, de Fernando Birri, sobre Meninos do Tietê. Historicamente, porém, isso não é verdade. O filme do Birri, para quem não sabe, é um documentário sobre crianças pobres que pedem moedas à passagem dos trens por Santa Fé. Eu já estava em plena filmagem quando Birri esteve no Brasil, convidado por Rudá, seu ex-colega no Centro Sperimentale de Roma. Ele até fez uma visita à nossa locação. Foi nessa ocasião que assisti pela primeira vez a Tire Dié. Falava-se com admiração da Escola de Documentários de Santa Fé, na Argentina, fundada por Birri em 1956. A idéia das escolas de cinema borbulhava na cabeça de Paulo Emílio, na minha e na de muita gente por aqui. Tire Dié e Los Inundados, exibidos na sala da Cinemateca com a presença de quase toda a equipe (Birri, Edgardo Pallero, Manuel Gimenez), traduzia à perfeição nossos ideais de um cinema realista, crítico e popular. Tínhamos as idéias e aqueles eram os corpos para estruturá-las, completos com cabeça, tronco e membros. Os filmes do Birri nasciam da experiência de Cesare Zavattini com o fotodocumentário, uma espécie de álbum ou exposição de fotografias com legendas resultantes de entrevistas. O fotodocumentário que deu origem a Tire Dié, realizado pelos alunos junto aos habitantes da região, resultara de longa e estreita convivência com os trabalhadores e suas famílias. Los Inundados, por sua vez, era um filme-escola que dava conta de uma relação profundamente dialética entre realidade e ficção. Era representado por pessoas comuns que se transformavam em atores. Em torno do Birri formou-se um grupo composto, além de mim, por Sérgio Muniz, Geraldo Sarno, Vladimir Herzog, Rudá, Paulo Emílio e o fotógrafo Thomaz Farkas. Numa dessas conversas maravilhosas, cheias de esperança e determinação, surgiu o convite para eu e Vlado fazermos um estágio em Santa Fé. Para lá partimos em meados de 1963, durante um inverno rigorosíssimo. Foi uma viagem louca, de ônibus e barco, via Montevidéu. Passamos alguns dias na casa do Birri em Buenos Aires, fazendo uma imersão em curtas latino-americanos. Em Santa Fé, a escola ocupava um galpão no campus da Universidad Nacional del Litoral. Espaço de aulas, oficina e centro de produção se combinavam ali dentro. Eu diria que 80% dos alunos vinham de Buenos Aires, entre eles Ricardo Aronovich e Fernando Solanas. Durante quase três meses, observamos atentamente as atividades da escola. Na maior parte do tempo, acompanhei o jovem Gerardo Vallejo na preparação de um filme com camponeses. Seguia os grupos de alunos no vai-e-vem diário entre o campus e as áreas residenciais pobres, fotografando seguidamente até amadurecer a proposta do filme. Uma experiência fascinante. A originalidade da escola era seu método de ensino, que surgia de maneira empírica, a partir de uma experiência prática. O fotodocumentário, feito com câmera fotográfica e gravador, era mais que uma pesquisa antropológico-jornalística para treinar o olho do futuro realizador. Era o ponto de partida para uma atitude moral e crítica diante da realidade. Tornou-se o princípio histórico e a concepção ideológica do documentário latino-americano que iria desembocar em La Hora de los Hornos, de Solanas. Santa Fé foi a primeira escola de cinema genuinamente latino-americana. Até então, as notícias que tínhamos a esse respeito vinham principalmente dos relatos de Gustavo e Rudá acerca do Centro Sperimentale de Roma. Ali, a ênfase estava no ensino teórico, cabendo aos melhores alunos ganhar uma assistência em filmes de grandes diretores. Em Santa Fé, o que mais chamou nossa atenção foi a maneira como a prática extrapolava o mero currículo e o processo de trabalho prevalecia sobre a teoria. Essa inversão me parecia fundamental, uma maneira inteiramente nova de organizar o pensamento. Não se partia da história do cinema para chegar à análise do filme e daí ao filme propriamente dito, como ocorre na academia. Ao contrário, o ponto de partida era a idéia do filme. Para desenvolvê-la, buscavam-se as informações necessárias. Todo o currículo era montado em função de um projeto de realização. A teoria estava ali para subsidiar a ação prática. Na vida é assim – o conhecimento é um processo teórico resultante de uma necessidade. Precisamos entender o mundo para sobreviver e produzir. Se eu quero sair de casa, preciso aprender os caminhos. A geografia não é senão o resultado da necessidade de nos deslocarmos. De certa forma, aprendi com o Birri que isso vale também para o cinema. A Hora do golpe Na volta de Santa Fé, já sem o emprego na Cinemateca, fui admitido pelo Última hora como repórter especial. Foi um período curto, mas intenso. Fiz algumas séries de matérias, como a do faquir Silk, que mais tarde inspiraria o Ali Khan de O profeta da fome. Em outra ocasião, saí com um fotógrafo a bordo de um DC3 para fazer uma série de reportagens sobre sindicalismo rural em diversos Estados brasileiros. Por fim, Samuel Wainer me nomeou editorialista de cidade do jornal. Cinco dias antes do golpe militar, publiquei uma entrevista com o bispo de Santo André apoiando as reformas de base do Jango. Na tarde do dia 31 de março, ao chegar à redação, recebi a notícia de que estudantes do Mackenzie e manifestantes estavam se encaminhando para empastelar o Última hora, ou seja, apedrejar o prédio e destruir as máquinas. Com o passar das horas, estimulado pela própria polícia do Adhemar, o grupo engrossava ao longo de um trajeto que incluía o Maria Antônia (prédios da USP localizados na rua do mesmo nome) e o Estadão. Na ausência dos diretores do jornal, formamos rapidamente um comitê para encaminhar uma solução. O chefe de reportagem da área policial puxou um revólver e, romanticamente, nos conclamou a enfrentar o inimigo. Mais prudente, o comitê decidiu pedir segurança ao II Exército. Por volta de 4 da tarde, antes mesmo de chegarem os militares, dispensamos o pessoal e fechamos o jornal. Por fim, dois caminhões do exército se postaram entre o prédio e os manifestantes. Entregamos as chaves a um tenente e fomos embora. No prelo, inacabada, ficou uma edição extra sobre a tentativa de Jango de organizar uma resistência em Porto Alegre. No bar da esquina da Av. São João com o Anhangabaú, reunimo-nos eu, Rudá, Juca, Guarnieri, Jean-Claude... No fundo, éramos os remanescentes do antigo CPC que nos ajuntávamos para aplacar o susto e avaliar a situação. Dali, seguimos para a casa de Caio Graco, onde discutimos estratégias de dispersão. Dois dias depois, minha mulher e meus filhos foram para Americana, onde viviam os pais dela, enquanto eu e Vlado nos alojávamos num apartamento do pai dele, no Guarujá. As primeiras semanas em São Paulo foram complicadas. Era ali que se montava o aparato de repressão e a inteligência da primeira fase do regime. Três meses depois, eu seria arrolado como testemunha pela Justiça Militar. Pretendiam que eu revelasse as localizações dos líderes camponeses que havia entrevistado para as matérias do Última hora sobre sindicalismo rural. Quiseram me incriminar também por ter pertencido ao Partido. Tudo isso me levou a ficar semiforagido durante cerca de quatro meses. Ainda em abril de 1964, fiquei hospedado por duas semanas no apartamento de Thomaz Farkas, também no Guarujá. Para não dizer que não falei de flores, foi nesse período que germinou a idéia de se fazer uma série de documentários, que Thomaz produziria e iriam constituir um marco do gênero no Brasil. Capítulo III Futebol Como documentarista, meu interesse pelo futebol foi certamente estimulado pela visão de Garrincha, alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade. Mas isso não basta para explicar minha parceria com Thomaz Farkas em Subterrâneos do futebol. Esse projeto, na verdade, eu já acalentava havia algum tempo. Não sem um certo primitivismo radical, pretendia confrontar a mitologia do futebol com sua realidade social. Os bastidores do esporte nunca haviam sido devassados no cinema. De alguma maneira, eu estava dialogando com a minha própria paixão, brotada na infância em Valinhos. Uma aparente vocação para os gramados nascera nas peladas com os primos. Dois deles eram ótimos jogadores. Waldir chegou a ser profissional por um curto período. Écio foi titular do Vasco, vendido para o Sporting Cristal de Lima, no Peru. Lá fraturou a perna e abandonou o futebol. Voltou para Valinhos e virou dono de bar. Quanto a mim, era habilidoso o suficiente para que o físico franzino não me intimidasse. A partir dos oito anos, não perdia a chance de correr atrás da bola. Um dia soubemos que a equipe do Palmeiras estava concentrada na Fonte Sônia, uma estância hidromineral a três quilômetros do centro de Valinhos. O grupinho da pelada deu um jeito de entrar clandestinamente pelos fundos do parque e se esgueirar entre as árvores até o local onde eles treinavam. Ficamos agachados atrás do gol defendido pelo famoso goleiro Oberdan Catani, um gigante de quase dois metros de altura e mãos que pareciam garras enormes. Na época, os goleiros não usavam luvas. Num dado momento, o vigoroso argentino Luís Villa desferiu uma bomba da grande área e o Oberdan simplesmente estendeu o braço e encaixou o petardo na concha de uma das mãos. Nós, miúdos, ficamos estatelados diante da cena. Ao voltarmos para casa, mais que eufórico, eu estava acabrunhado. Futebol era aquilo – coisa para homens como Luís Villa e Oberdan, e não para pirralhos de várzea como nós. Esse complexo de inferioridade foi parcialmente curado quando, por volta dos 12 anos, fui chamado a integrar o time infanto-juvenil do Valinhense. A cidade tinha dois times: o da fábrica de papel e o do clube oficial, o Valinhense. Este possuía um estádio bem razoável, onde passei a jogar. Só aí me fixei na posição de meio-de-campo, já que não tinha porte para ser atacante nem zagueiro. Confortava-me a existência de Jair da Rosa Pinto, o meia-esquerda do Vasco e depois da Seleção Brasileira. Apesar de pequeno e magro, ele era um craque, dono de um chute temível. Fiz minha passagem da infância para a adolescência dentro das quatro linhas. Compreendi que o jogo tinha uma organização, um técnico, um juiz, determinadas regras. O futebol, aliás, sempre teve uma função agregadora na minha vida. Influenciou minha maneira de ver o mundo através da solidariedade, do espírito de equipe, par a par com a necessária individualidade. O jogo reflete um pouco o funcionamento da sociedade e – por que não? – da criação cinematográfica. Provavelmente em função dessa minha experiência no futebol, quando trabalho com uma equipe de cinema, eu não hierarquizo as funções nem casso a autonomia de ninguém. Marcar um gol é tão importante quanto contribuir para ele ou impedir um gol adversário. No jogo, ninguém pode mandar dentro do campo porque cada um depende do outro. Da mesma forma, acho que não sou um diretor adepto de imposições de qualquer ordem. O futebol, que poderia ser usado nas escolas como um modelo de comportamento social, tornou-se, porém, uma forma de ascensão, um instrumento do culto à celebridade e ao dinheiro. A arte transformou-se em ofício. Em seu estado puro, o futebol seria uma metáfora da sociedade ideal. Basta ver a pureza que havia nos jogadores da década de 1950, ainda não tragados por essa visão profissionalista e mercadológica que viria depois. Nilton Santos e Garrincha, por exemplo, nunca acumularam fortunas. Na minha época de jogador aspirante, eu só aspirava mesmo ao prazer de lidar com a pelota e os companheiros. Durante um campeonato entre as cidades pequenas da região, devo ter me destacado a ponto de receber um convite, junto com meu primo Écio, para jogar no juvenil do Guarani de Campinas, que acabava de ingressar no campeonato paulista. Treinávamos pela manhã e, à tarde, assistíamos ao treino dos profissionais. Nos jogos, fazíamos as preliminares. Disputamos um campeonato em várias cidades do interior do Estado. Havia sempre uma torcida nas arquibancadas, e não nego que aquilo me agradava, embora nunca tenha visualizado um futuro como jogador. Em 1953, eu e Écio fomos descobertos por um olheiro do Fluminense. Passamos entre dois e três meses treinando nas Laranjeiras, até que meu pai me convocou para retornar à casa e aos estudos. A entrada no curso Clássico e a influência do professor Stenio acabaram por fazer do futebol uma experiência a superar. Não voltei a freqüentar os estádios, nem faço o torcedor-padrão que se esgoela por causa do seu time. Em São Paulo, fui Palmeiras na infância, Guarani na juventude e Santos na idade adulta. No Rio, sempre torci pelo Flamengo. De qualquer forma, nunca perdi algum tipo de interesse pelo esporte das multidões. Foi ele que me lançou definitivamente no cinema, mediante uma visão crítica, em Subterrâneos do futebol. Farkas e os Subterrâneos do Brasil Quem poderia prever que aquela reunião na casa de Thomaz Farkas, no Guarujá, logo depois do golpe de 1964, faria história? Para mim, pelo menos, parecia apenas um esforço para levantar nosso moral de cineastas desarvorados em plena implantação de uma ditadura. Lá estávamos Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz, Vladimir Herzog, eu e os argentinos Manuel Horácio Gimenez e Edgardo Pallero, vindos da Escola de Cinema Documental de Santa Fé. Costumo dizer que foi uma terapia ocupacional que rapidamente se transformou em operação profissional. Thomaz também era, de certa forma, um amador. Aliás, ele nunca vestiu o personagem do produtor. Queria compartilhar seus aparelhos com os amigos para fazer documentários sobre a realidade brasileira. Na verdade, queria fotografá-los, sair junto com a equipe. Já havia planejado com Birri um filme sobre a reforma agrária no governo Jango. Agora nos oferecia uma câmera 16 mm que Arne Sucksdorff tinha trazido ao Brasil, um gravador de som Nagra, película e recursos para começar a trabalhar. Na minha cabeça, diante da visão do equipamento, a coisa começava mesmo a funcionar. Geraldo tinha um projeto sobre migração e saiu na frente com Viramundo. Em seguida, toquei o meu sobre futebol. Paulo Gil obteve ajuda fundamental de Farkas no acesso e recuperação do material de Benjamim Abraão para viabilizar seu roteiro de Memória do cangaço. No Rio de Janeiro, Manucho Gimenez dirigiria Nossa escola de samba. Coube a mim fazer o som de Viramundo, após um rápido aprendizado com o Nagra. Esses quatro filmes estiveram entre as primeiras experiências estruturadas de se fazer som direto no documentário brasileiro. O de Garrincha, alegria do povo não era propriamente som direto, já que a entrevista do Garrincha fora gravada em estúdio. O uso do Nagra trazia para a filmagem uma espécie de segundo olho, o olho do microfone, que deveria captar em sincronia e com a mesma qualidade que as imagens da câmera. Como ainda não havia o cristal que tornava o gravador independente, este era ligado à câmera por um cabo. A situação era comparável à de um celibatário por mais de 60 anos, que de repente se casa e tem que coabitar com alguém. A mudança de comportamento era brutal. E acho que ainda não foi completamente resolvida. Naqueles documentários de 1964, nós começamos a trabalhar um relacionamento de equipe que seria vital dali para frente. Em Viramundo, todas as minhas atenções estavam concentradas na operação do Nagra. Já ao realizar Subterrâneos do futebol, na maior parte do tempo, consegui conciliar essa função com a de diretor. Embora esse filme seja freqüentemente filiado à corrente do cinemaverdade, eu ainda não conhecia os trabalhos de Jean Rouch e nem do cinema direto americano, que já faziam a cabeça do documentarismo internacional. Nossa inspiração de origem eram os filmes do Birri, além do Garrincha. Mas, em relação a esse documentário de Joaquim Pedro, minha proposta de abordagem era bem distinta. O título ideal já estava na capa de um livro do jornalista e treinador João Saldanha. Depois de terminadas as filmagens, vim de trem ao Rio especialmente para visitá-lo na redação do Jornal do Brasil e pedir sua autorização. Ele me perguntou se havia filmado o livro. Expliquei que não. “Ainda bem”, disse ele, “porque aquilo não daria filme de jeito nenhum”. Para “dar filme”, eu contava com uma estrutura prévia baseada em três personagens: o iniciante Feijão (Luís Carlos de Freitas), que tinha feito, dois anos antes, o papel do jovem Pelé no filme O rei Pelé, de Carlos Hugo Christensen; o próprio Pelé, ícone máximo em plena glória após o bicampeonato mundial no Chile; e Zózimo Calazans, um craque também bicampeão, mas em decadência por causa de uma certa acusação de suborno. Eram três negros dentro de uma parábola sobre o aspirante, o ídolo e o caído. Até então, o cinema ainda não tinha passado essa visão da trajetória do jogador como coisa efêmera. Eu queria contrapor a ilusão da fama à incompatível condição para sobreviver depois dela. Queria falar da utilização política do craque pelos cartolas, das enormes diferenças no padrão de salários. E ainda havia a intenção de mostrar um lado trágico da torcida perdedora, uma tristeza que nada tinha a ver com a euforia dos Fla-Flus. Retórica de agit prop A equipe de Subterrâneos do futebol é uma súmula das minhas relações naquele início da década de 1960. O próprio Thomaz Farkas assumiu a fotografia do filme, juntamente com Armando Barreto na filmagem de jogos e estádios cheios. Armando trazia sua experiência do Canal 100, onde foi discípulo de Francisco Torturra, o cinegrafista que mais ajudou a cunhar aquele estilo de se filmar futebol. Tive colaborações de João Batista de Andrade, Francisco Ramalho e Clarice Herzog. Edgardo Pallero, na produção executiva, representava a turma do Birri, embora sem uma intervenção mais direta nos trabalhos de campo. Na montagem, contei com uma consultoria de Roberto Santos, com quem vinha estabelecendo uma relação profícua e que se tornaria um dos meus principais mentores. E havia, principalmente, meu assistente de direção, Vladimir Herzog. Amigos desde o primeiro ano da Faculdade de Filosofia, conheci bem a personalidade do Vlado. Os pais dele tinham sofrido muito em função da guerra. A família carregava o peso da cultura judaica. Vlado era uma pessoa muito tímida, contida, dona de uma grande sensibilidade que podia reverter em impressão de fragilidade. Ele se diferenciava da maioria de nós por um certo desânimo, uma descrença no seu potencial para realizar as coisas. Tinha uma capacidade de racionalização e de participação profunda, mas sempre discretíssimo, longe de todo excesso. Às vezes me parecia viver na expectativa de uma tragédia iminente. Vlado sempre quis fazer cinema. Mas, por contingências diversas, foi levado a tomar outros caminhos. Depois de fazer o curso de Arne Sucksdorff, realizou um curta interessante sobre pescadores de Copacabana, chamado Marimbás, que ajudei a finalizar em São Paulo. Ele, por sua vez, teve uma pequena participação no meu Meninos do Tietê. Em 1964, entrou na equipe de Subterrâneos. O nosso eixo principal era a campanha do Santos no campeonato paulista daquele ano, que acompanhamos de julho a novembro. Saíamos no Citroën do Thomaz para filmar os jogos em Vila Belmiro, Campinas, Ribeirão Preto, Guaratinguetá. Quando a partida era no Pacaembu, Thomaz simplesmente saía de casa com seu famoso monopé e caminhava até o estádio. Em finais de semana, procurávamos a garotada nos campinhos de várzea. Com um microfone direcional potentíssimo, fartei-me de captar os sons diretos do campo e da torcida, uma novidade e tanto. Infelizmente, o negativo da entrevista com Pelé dentro do campo se deteriorou e nós tivemos de repeti-la em condições não tão favoráveis. Mas usamos o som da primeira, resultando numa falsa sincronia. De maneira geral, era dura a batalha nesses primeiros tempos do som direto. As entrevistas mais longas costumavam sair de sincronia e tínhamos que recuperá-la mediante um estratagema de laboratório. Pelo que sei, foi o documentarista francês François Reichenbach quem orientou Walter Goulart a fazer loopings de imagem e som para repor manualmente a sincronia. Durante os primeiros quatro meses de filmagem, eu trabalhava virtualmente na clandestinidade. Temia ser convocado para depor como testemunha no processo do sindicalismo rural. A partir de julho, verifiquei que meus conhecimentos já não seriam tão importantes e voltei a dormir na minha casa. Ao fim da captação, tínhamos um material caudaloso de entrevistas, jogos, flagrantes de torcida. Pedi a Roberto Santos que discutisse comigo os caminhos da montagem. Embora partisse de uma estrutura prévia, é claro que muita coisa foi criada na moviola. Na abertura do filme, usamos algumas imagens de euforia futebolística do Canal 100. Em seguida, abríamos nossa vereda crítica em torno da esperança dos jovens atletas, da exploração do jogador, da loucura e da alienação da torcida. Embora estivéssemos presentes, não conseguimos filmar um acidente com a arquibancada do estádio do Santos por excesso de lotação. Usamos, então, arquivos de televisão (que na época filmavam em 16 mm) e criamos um sentido simbólico para as correrias e imagens de pânico. Tratava-se de caracterizar o futebol como espetáculo explorado por uma série de interesses. Eu não tinha provas, mas havia indícios suficientes de jogos corrompidos, juízes comprados, jogo de forças políticas intervindo no destino dos clubes. Tenho que admitir uma retórica às vezes forçada na associação entre as imagens e o texto escrito a posteriori pelo comentarista Celso Brandão. Essa politização do assunto era bastante compreensível nos documentários da época. Subterrâneos também tinha um quê de agit prop, modelo que conheceria seu ápice em 1968. De qualquer forma, eu não pretendia ser taxativo ou bombástico. Tanto que pedi a Antero de Oliveira, ator do Arena, uma narração com voz bem natural, em tom de conversa. Algo bastante diferente do padrão de locução em voga, sobretudo nos cinejornais de futebol. Há quem pense que coloquei a Canção do Exército no treinamento dos jogadores do Palmeiras como uma ironia aos militares. Mas, com um pouco de atenção, verifica-se que os jogadores a princípio estão mesmo cantando a música. Os preparadores físicos em geral vinham do Exército. Eu me limitei a fundir, aos poucos, o som direto com uma gravação de disco, transformando o ambiente sonoro original em trilha musical. Em alguns momentos, optei por congelar brevemente a imagem no instante decisivo de um lance, para logo prosseguir. Queria com isso enfatizar o lado plástico do futebol como arte, frisar aquele momento que exprime a beleza e a força do esporte. Para algumas pessoas, isso evocava a célebre “paradinha” inventada por Pelé na cobrança de pênaltis. Esporte chapa-branca A primeira sessão dos quatro novos documentários produzidos por Thomaz Farkas se deu na sala da Cinemateca, na Rua Sete de Abril, em 1965. A partir daí, o conjunto de filmes obteve excelente repercussão junto à intelectualidade e à crítica. Os temas da migração nordestina, do carnaval, do futebol e do cangaço apareciam com o impacto de um tratamento novo. Um cinema que ia direto aos personagens, dispensando intermediários. É verdade que esses filmes ainda eram híbridos. Não estávamos completamente seguros de que a imagem e o som direto pudessem revelar tudo. Até hoje recorro à narração, se julgo imprescindível. Mas, de qualquer maneira, ali começávamos a descobrir que a realidade falava por si, sem a necessidade, imperiosa até então, de um narrador constante para conduzir o pensamento. O documentário deixava de ser uma brincadeira de jovens e era admitido no meio universitário como instrumento de análise social. Após a exibição no Festival Internacional do Filme, no Rio, esses trabalhos passaram a repercutir em festivais internacionais e no âmbito do Cinema Novo. Três anos depois, chegavam ao grande público em lançamento comercial, enfeixados no longametragem Brasil verdade. Foi imensa a importância de Thomaz Farkas como pioneiro da produção independente de documentários no cinema brasileiro moderno. Até então, contavam-se os exemplos nos dedos: Aruanda, Um dia na rampa, Arraial do Cabo, Maioria absoluta. No mais, a produção dependia de instituições oficiais como o Itamaraty e os institutos do livro, do cacau e do cinema educativo. Do Itamaraty, por sinal, partiu a encomenda que me levaria de volta ao tema dos esportes, ainda em 1965. O ministro Wladimir Murtinho pediu a David Neves que realizasse um panorama das atividades esportivas no país para enviar às embaixadas no exterior. David preferiu fotografar e me chamou para dirigir Esportes no Brasil. Usamos a empresa de Luis Sérgio Person para o repasse da verba e saímos em busca das principais estrelas. Lá estava eu, no espaço de um ano, passando de um ensaio crítico para um filme de propaganda sobre os esportes. Como funcionário de uma idéia, parti no encalço de jovens promissores e estrelas consagradas. Da segunda categoria entrevistamos Garrincha, Pelé, o boxeador Éder Jofre, os atletas Adhemar Ferreira da Silva e José Félix da Conceição, a tenista Maria Esther Bueno, o nadador Manoel dos Santos. Enfocamos ainda o time de basquete do Corínthians. Com película de 35 mm, fizemos muitas imagens em contraplongê (angulação de baixo para cima), visando uma estética de épico. A música de Francisco Mignone completava o serviço do típico filme-exaltação. Glauco Mirko Laurelli, montador do Person, imprimiu um ritmo ágil e atraente às cenas. O texto foi escrito por Hamilton Almeida, jovem-prodígio do jornalismo carioca que estava sendo levado para São Paulo por Mino Carta para ser repórter superespecial do Jornal da tarde. Apesar de chapabranca, Esportes no Brasil não é um mau filme. Tanto que, enviado pelo Itamaraty para o Festival do Filme Esportivo de Cortina D’Ampezzo, na Itália, ganhou o Prêmio Erca. Eu só tomaria conhecimento disso ao receber o troféu em casa. Curiosamente, minha memória apagou o fato de que ele foi exibido comercialmente no cinema Picolino, em São Paulo, em programa duplo – que vergonha! – com Cidadão Kane. Jamais entendi a lógica dos exibidores... Derrota na Argentina O universo dos esportes tem sido recorrente em minha carreira. Acho que nos procuramos mutuamente. Ainda em meados de 1965, eu pretendia estrear no curta de ficção com a adaptação do conto Pega Ele, Silêncio, de Ignacio de Loyola Brandão, meu colega no Última hora. Era a história de Zé Luís, um jovem negro e pobre que treina em campos de futebol para ser boxeador. A expectativa de uma luta decisiva condensa os desejos de ascensão social da família e de reconhecimento do pessoal do morro. Mas Zé Luís perde. Meu projeto também foi a nocaute. Com o Ignacio, porém, eu me juntaria dois anos depois na transposição de Bebel que a cidade comeu. A bola rolaria mais uma vez até meus pés na Copa do Mundo de 1978. O filme oficial daquela Copa tem uma história tortuosa, que começa com o político, advogado, empresário e poeta Milton Reis, deputado cassado pelo AI-5. Não sei se a ligação com João Havelange o ajudou a ganhar uma concorrência da Fifa para produzir o filme da Copa. Sem experiência no ramo, ele levou o projeto ao produtor Jarbas Barbosa, que chamou Paulo César Saraceni e a mim para dirigir. Era a maior produção em que havia me envolvido até aquela época. A equipe principal tinha mais de 50 pessoas, entre cinegrafistas com experiência em futebol, diretores de fotografia, técnicos de som, assistentes e pessoal de produção. Embarcamos para a Argentina três semanas antes do início da Copa. Pouco depois, chegou um contêiner de navio com cerca de 30 câmeras, sendo duas novíssimas Arriflex BL-3 autoblimpadas (protegidas contra o som do motor), as primeiras do gênero a aparecerem no Brasil. Recebemos, ainda, duas lentes de 1.200 milímetros, verdadeiros canhões de quase 1 metro de comprimento que podiam detalhar a expressão de um jogador caído no meio do campo. Além, é claro, de um Rio da Plata de negativo. Mais experimentado na fome que na fartura, eu me sentia afogado em material. Em cada um dos seis estádios – Buenos Aires, Mendoza, Mar del Plata, Córdoba, Rosário e Santa Fé -estudamos previamente a colocação das cinco câmeras e organizamos um esquema de alternância para otimizar os custos. Um sistema de comunicação através de rádio garantia a sinergia da equipe. Planejamos até o uso da câmera lenta, obtida com um dimmer que alterava a velocidade de captação das máquinas. Tudo estava tão bem traçado que a presença de diretores na hora dos jogos seria até mesmo dispensável. Uma vez que o futebol trata, no fundo, de vencedores e derrotados, Paulo César e eu resolvemos dividir assim as tarefas: ele filmaria tudo o que cercasse os vitoriosos – o goleiro que agarra o pênalti, o artilheiro que marca o gol, etc; eu ficaria com os perdedores. Para o meu gosto, o drama dos derrotados é muito mais interessante que a alegria dos vencedores. Já o temperamento entusiasmado do Paulo não combinaria mesmo com os vencidos. Ele ficava tão alucinado, torcendo à beira do campo, que chegou a ser expulso no jogo contra a Espanha. Queria seguir a Seleção Brasileira e, ironicamente, teve que filmar a vitória da Argentina. O grande charme acabou sendo a derrota do Brasil. Mas a nossa idéia de filme oficial ultrapassava o limite dos estádios. Na prática, concebemos dois filmes em paralelo para serem montados como um só. Havia o dos estádios e o das ruas. Enquanto no Brasil vivíamos a abertura política, a Argentina atravessava a pior fase da ditadura do general Jorge Rafael Videla. O clima era de medo. Já nos primeiros dias de nossa estada em Buenos Aires, tivemos que sair do hotel de pijamas, no meio da noite, por causa de um alarme de bomba. O estádio do River Plate ficava a cerca de um quilômetro do local onde se torturavam os presos políticos. Nos intervalos entre os grandes jogos, percorríamos a cidade para tentar entender como o país estava recebendo a Copa. O povo tinha um acesso muito restrito à festa. A televisão, em preto-e-branco para grande parte da população, era privilégio das classes média e alta. No entorno da capital, numa das Villas Miserias (como eram chamadas as favelas argentinas), filmamos um grupo de jovens jogando pelada com as camisas da Holanda e da Argentina. Estavam macaqueando um espetáculo que não podiam ver. Captamos cenas em casas de tango, no bairro da Boca, nas quebradas da cidade. Filmamos as mães da Plaza de Mayo, driblando a polícia com nossas credenciais da Copa. Minha mini-equipe nessas incursões incluía Hélio Silva na câmera e Juarez Dagoberto no som. Em dado momento, os conflitos da produção começaram. O pagamento semanal da equipe técnica atrasou e nós, diretores, tomamos sua defesa, ameaçando interromper os trabalhos. Após a partida final, recusamo-nos a cumprir a ordem de entrevistar o Videla na tribuna de honra do estádio. Para nós, o filme já havia terminado. Depois de voltarmos ao Brasil, soubemos que as 66 horas de negativos estavam sendo negociadas com a Argentina. Vender aos vitoriosos poderia ser mais lucrativo do que exibir aos derrotados. Apelamos a Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, que atuou no sentido de impedir o embarque do material. Em função disso, eu e Paulo fomos demitidos, e logo depois também o Jarbas. Abrimos um processo exigindo o con trole sobre a edição do filme, mas perdemos sob a alegação de que éramos meros trabalhadores contratados. Maurício Sherman e Victor di Mello assumiram o projeto, mas não quiseram ou não puderam utilizar o material de rua que havíamos preparado. Consta que Juarez teria entregado as gravações sonoras sem os boletins de identificação, o que tornaria a sincronização um processo demasiadamente longo e penoso. O fato é que Copa 78 – O poder do futebol, lançado comercialmente no ano seguinte, pouco ou nada tem a ver com o nosso projeto inicial. A entrevista com Videla foi comprada de alguma televisão. E tenho dúvidas quanto à autenticidade da entrevista com o líder montonero, coisa que nunca fizemos. Meu nome e o do Paulo César, se é que constam dos créditos, estão naquele rabicho que corre diante da platéia já vazia. Bola rolando na tv Zico fez tabelinha comigo em duas ocasiões. A primeira, em 1977, num documentário produzido por Jean-Gabriel Albicocco para a TV francesa Antenne 2. Raízes populares do futebol é a reconstituição do processo de construção de um craque, a partir do exemplo do Galinho de Quintino. O documentário abordava desde sua chegada no Flamengo – desnutrido, com doença de vermes e sérios problemas dentários –, os exercícios a que se submeteu, a atuação de médicos e preparadores físicos, até sua condição de ídolo nacional. Usava também o exemplo do Reinaldo, do Atlético Mineiro, e analisava o papel das escolinhas de futebol. Posso dizer que já examinei o esporte sob todos os ângulos. Se Subterrâneos do futebol era um filme crítico e polemizador, e Esportes no Brasil era celebratório, esse Raízes populares do futebol era uma mirada, digamos, científica. Apenas a observação de um processo. Nem posso reivindicar plena autoria, uma vez que o filme saiu daqui pré-editado, mas foi ajustado e finalizado na França. Tabelei com o Zico pela segunda vez na minha passagem pela TV Manchete, nos anos 1980. Criei uma série de interprogramas, de aproximadamente 5 minutos, para o horário infantil. A Escolinha do Zico era uma espécie de curso audiovisual de futebol, um bê-a-bá da bola. Zico era o âncora, mas participava todo o time do Flamengo em 1985, além de um juiz. Cada jogador dava uma ou duas aulas sobre sua posição, gravadas na Gávea, sede do clube. Ao submeter o futebol a um crivo didático, notamos como é complexa sua organização e rico o processo. Pena que não consegui transformar essa série num filme único para ser distribuído nas escolas de primeiro e segundo grau. Um pouco antes dessa experiência, também na TV Manchete, realizei a série de programas Os brasileiros, baseada nas reflexões de Roberto DaMatta. Um dos episódios, claro, versava sobre o futebol. O ponto de vista era antropológico: o lugar do futebol no imaginário do país. Ele contém materiais muito bonitos filmados por mim e por David Neves, em diversas épocas. E concluía entrelaçando cinema e cultura numa pelada do Polytheama, o time do Chico Buarque de Hollanda. Ao longo desses diversos contatos com o futebol brasileiro, acumulei uma série de reflexões que gostaria de desenvolver na televisão. Numa certa época, elas tomaram a forma de um projeto chamado Diálogos com Tostão. O craque mineiro seria o interlocutor principal de uma análise ampla do fenômeno, com a intervenção de outros entrevistados e muito material de arquivo. A partir da traumática derrota na Copa de 1950 – ainda mais humilhante por ter ocorrido num estádio erguido para a festa da vitória – eu pretendia investigar esse processo cultural que liga o povo brasileiro ao futebol. A série estudaria a relação dos ídolos com a torcida, o nascimento da paixão pelo futebol a nível individual e as regras e valores sociais que prevalecem dentro do campo. E ainda as delicadas questões envolvidas na formação de um time nas escolinhas de futebol. Esse projeto, ainda que sem a mesma amplitude, resultou na série de quatro programas que dirigi para o Canal Brasil em 2005, No país do futebol. Foram conversas simples e diretas, pontuadas por algum material de arquivo, que se valiam basicamente do carisma e da lucidez de cada personagem. No primeiro programa, enfoquei Luiz Carlos Barreto como testemunha ocular do trauma nacional que foi a Copa de 50. Ele era um dos fotógrafos colocados atrás do gol de Barbosa. Em outro programa, o comentarista Juca Kfouri analisou os mitos e ídolos do futebol brasileiro sob uma perspectiva sociológica. Bem mais que um simples comentarista, Kfouri é um catedrático em futebol, além de jornalista combativo que perdeu muito espaço na mídia por não abrir mão de sua integridade. O tricampeão Gerson, por sua vez, discorria no terceiro programa sobre a política interna do campo, com destaque para um tema que sempre me interessou muito: a relação (e as diferenças) entre o capitão do time, que exerce uma função formal, e o líder natural, que atua de fato. Por fim, o ex-atacante Sócrates falava da democracia corinthiana, que liderou nos anos 1980, reivindicando a participação dos jogadores nas decisões do clube, inclusive salários e concentração. A democracia corinthiana foi um estopim da campanha das Diretas. Sócrates, por sua vez, foi a expressão acabada do tipo de jogador que transforma o time em comunidade através de uma relação de democracia. No programa, ele fez uma bela análise do caráter coletivo e democrático desse esporte. A microssérie agradou e logo dei o pontapé inicial de mais quatro episódios, com Zico (exemplo de jogador múltiplo, atuante em várias frentes), Tostão (um filósofo do futebol, que valoriza o aspecto lúdico do esporte), Chico Anysio (ex-repórter de campo e cronista de rádio) e Leonardo (ex-craque do Flamengo e da Seleção Brasileira, convertido em assessor da presidência do Milan, na Itália). O futebol, penso eu, é um espelho da sociedade. Assim como estamos perdendo uma maneira brasileira de fazer filmes, estamos deixando para trás uma forma brasileira de jogar. As escolas de futebol estão imprimindo uma ideologia de destruição, em vez de criação. Hoje os meninos aprendem, sobretudo, a impedir o jogo do adversário. Daí não surgirem mais Pelés ou Garrinchas, expressões puras da invenção, capazes de desmontar, eles sim, qualquer defesa. Parece-me uma clara metáfora de que esse país está sendo formado para brecar o desenvolvimento da criatividade. Em lugar do craque, temos a celebridade e o culto ao dinheiro. O futebol é igualmente um núcleo de produção simbólica. As regras estão aí há mais de 100 anos e todos as conhecem. Elas dão origem a um padrão de convivência dentro do campo, com espaço tanto para o individualista, como para o sujeito que trabalha em função do outro. O bom jogo é a harmonização dessas diferenças. Paralelamente à obediência às leis, há também as constantes tentativas de transgressão, coibidas pelo juiz, o único vestido de negro. Nessa tensão, equilibra-se o espetáculo que mais apaixona os brasileiros. Capítulo IV Quatro filmes de São Paulo Logo após realizar Subterrâneos do futebol, minha vida paulistana se dividia entre o jornalismo, o cinema e, um pouco depois, o ensino universitário. Sobrava algum tempo para tocar bateria no trio Muiraquitã de ouro, que dava canja regularmente no Jumbo Bar, numa travessa da Rua da Consolação. Meus cúmplices eram Sérgio Ricardo no piano e Chico de Assis no contrabaixo. Éramos respectivamente cinema, música e teatro. Ganhávamos livre consumação de uísque em troca dos fregueses que o Sérgio, principalmente, atraía. No repertório, um pouco de jazz, sambas-canção etc. Quarenta minutinhos varrendo com as baquetas, e estávamos conversados. Ainda em 1965, Mino Carta ofereceu-me a editoria de cinema do Jornal da tarde, que ele estava começando a montar. Sugeri, então, fazermos um acompanhamento crítico de todos os filmes lançados em São Paulo. Eles podiam passar de 30 numa determinada semana, incluindo os americanos de sempre, os japoneses de praxe, os europeus esporádicos e os brasileiros eventuais. O jornal começou a circular em janeiro de 1966 com uma proposta de vespertino leve, para ser lido depois do almoço. Tinha um certo caráter experimental, com grande destaque nas fotos e maior liberdade para os repórteres. Enfim, era um contraponto do mais vetusto e analítico Estadão. Em nossa página de cinema colaboravam Rogério Sganzerla, um rato de cinemateca que conheci na própria; Antônio Lima, vindo do Jornal de Minas; e Bruna Becherucci, uma tia do Mino que se ocupava dos filmes mais amenos. De acordo com o estilo do jornal, fazíamos resenhas curtas, destacando aspectos que mereciam atenção em cada filme, e selávamos a opinião com uma cotação. Os calhamaços de análise ficavam para o Estadão ou a Folha de S. Paulo. Nós prestávamos um simples serviço de orientação. Não imaginávamos que esse modelo fosse prevalecer, como hoje, em quase todos os jornais diários. No Última hora, Ignacio de Loyola Brandão era repórter da noite e tinha a coluna Cineronda. Ele colhia suas notícias não apenas nas salas de cinema, mas nos pontos de encontro de artistas e jornalistas, como o restaurante Gigetto,a Galeria Metrópole,o João Sebastião Bar (ou Bar do Cotrim) e boates como a Cave. Por ali passavam também malandros, atrizes do rebolado. As amizades cruzavam áreas com desenvoltura. Foi nesse caldeirão que Ignacio ambientou o seu romanceverdade Bebel que a cidade comeu. Tomei conhecimento do original ainda datilografado e sem título. Estava diante de um virtual documentário sobre aquela faixa de São Paulo. Era ainda mais amplo e aberto para a cidade do que o Malagueta, perus e bacanaço, de João Antonio, que eu já então pretendia levar para as telas. As personagens de Ignacio me permitiam lançar um olhar crítico sobre um segmento da indústria de entretenimento que se nutria na ilusão da celebridade e, em certa medida, se confundia com a prostituição. Para fazer essa opção, contei com o estímulo de Roberto Santos. Depois de me ajudar com a estrutura de montagem de Subterrâneos, ele pediu que fizesse uma assistência na dublagem do seu A hora e a vez de Augusto Matraga. Nossa relação evoluiu para uma grande amizade e uma parceria decisiva para a produção do meu primeiro longa-metragem. Roberto era um visionário, alguém que pensava de maneira poética. Tinha insights fantásticos e, como um ímã, atraía os mais moços para a aventura de analisar o mundo e buscar caminhos. Nessa época, lembro-me de tê-lo apresentado ao jovem Sylvio Back, que conhecera em Curitiba, e com quem mais tarde colaboraria na produção do seu primeiro longa, Lance maior. Esse tipo de solidariedade era precioso dentro do quadro de solidão da cultura cinematográfica em São Paulo. É claro que havia a Cinemateca e o Paulo Emílio, igualmente atraente. Mas o respeito, a admiração e a disciplina em torno do Paulo eram tão grandes que, na prática, dificultavam o aces-so. Meus contatos mais descontraídos eram com Rudá de Andrade e Roberto Santos. O próprio Roberto sofreu um bocado por fazer cinema independente em São Paulo naquela época, sem o amparo de um produtor. Não por acaso, o seu melhor filme, Matraga, foi feito em Minas Gerais e produzido por Luiz Carlos Barreto. O único cinema paulista a apresentar unidade e regularidade nesse momento é o de Walter Hugo Khouri. Além dele, contam-se as primeiras experiências de João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., Ozualdo Candeias e pouco mais. Mesmo Luis Sérgio Person, que fez um bom filme como São Paulo S.A., não chegou a constituir uma obra. O verdadeiro cinema paulista, se existiu, nasceu da Boca do Lixo. Minhas relações com a Boca vinham do trabalho no Jornal da tarde, quando fiz muitas matérias com a turma do cinema. Rogério Sganzerla, numa prova de seu caráter temerário, escalou-me numa figuração de O bandido da luz vermelha, como um dos comparsas de Paulo Villaça dentro de um carro no Largo da Consolação. A propósito, meu currículo de ator se completou com uma intervenção como jornalista num programa de televisão dentro do filme Ritual dos sádicos, de José Mojica Marins, mais tarde lançado como O despertar da besta. E ficamos por aí. Todos passamos pela Boca, não como turistas, mas utilizando aquela estrutura de um cinema posto a serviço do distribuidor e do exibidor. Foram eles que estabeleceram a Boca para participar da produção e cumprir as leis de obrigatoriedade. Exibidores se transformaram em produtores, às vezes financiando testasde-ferro como Antonio Pólo Galante e Alfredo Palácios. Nascia, então, um cinema utilitário. A contrapartida era a carência de um movimento cinematográfico culturalmente forte, marcado por cineastas de espírito livre. Nesse aspecto, o Rio era um centro de produção, pensamento e mobilização muito maior. Ao longo dos anos 1970, não seria muito diferente. Ressalvadas as exceções, o que havia em São Paulo era o grande mundo da pornochanchada. E esse era um mercado em grande parte falsificado. Os cinemas podiam estar vazios, mas o exibidor mantinha o filme em cartaz porque era também o produtor. Tal como fizeram com os curtas, produziam porcaria para cumprir a lei. Nesse sentido, parecia-me até natural que os cineastas cariocas dominassem as verbas da Embrafilme. Voltando aos 60: do Cinema Novo carioca e baiano chegou o exemplo de que precisávamos para criticar o modelo da Vera Cruz. Até então, faltava-nos munição para atacar ícones do poder cultural como a Vera Cruz, o Teatro Brasileiro de Comédia e o próprio Museu de Arte Moderna, obras da burguesia paulista, que via nessa trindade o conceito único de Cultura. Não bastava alegar que a Vera Cruz era colonizada por referenciais estrangeiros. Nem fazia sentido dizer que fora destruída pela distribuidora Colúmbia. Era preciso discutir a estética dos filmes e sua relação com a população. Era preciso apontar a Vera Cruz como um fracasso em si. No fundo, existiam realizadores, mas nada que pudesse ser chamado de um cinema paulista. Construindo Bebel O Lamas, o famoso restaurante carioca, ainda ficava no Largo do Machado e tinha um bilhar no fundo quando lá encontrei Grande Otelo e comentei que estava à procura de uma atriz para o papel de Bebel. Precisava de uma cara relativamente nova, bonita e compatível com a personagem da vedete que quer se transformar em estrela. Achava mais fácil encontrá-la no Rio. Já havia entrevistado várias atrizes quando Grande Otelo ofereceu-se para me levar, na noite do dia seguinte, a uma boate em Copacabana onde estava em cartaz um show do Carlos Machado. Ao fim do espetáculo, ele me apontou Rossana Ghessa, uma das integrantes do grupo de vedetes. Rossana era da Sardenha, tinha sido garota-propaganda e feito papéis menores em três filmes, sendo duas comédias carnavalescas produzidas por Jarbas Barbosa. Fisicamente, era perfeita para o papel. A voz italianada, no entanto, destoava da personagem, razão pela qual chamei a Miriam Mehler para dublá-la. Mas funcionou muito bem como ícone e sensibilizou o júri do Festival de Brasília a ponto de ganhar o prêmio de melhor atriz. Para minha primeira experiência de direção de atores, valeu-me ter observado por um bom tempo o trabalho do Augusto Boal no Teatro de Arena. Havia acompanhado um seminário dele sobre dramaturgia e sentia-me apto ao trabalho básico com o elenco. Facilitou também o fato de tanto Paulo José como John Herbert, Fernando Peixoto e Maurício do Valle serem pessoas queridas com quem eu já convivia. O Fernando, por sinal, eu já conhecia desde uma viagem a Porto Alegre, em 1963. Ele e Ítala Nandi hospedaram-se na minha casa ao virem para São Paulo, no ano seguinte. Mais adiante, Fernando escreveria comigo argumento e roteiro de O profeta da fome. Especialmente para ele criei um personagem que não existia no livro do Ignacio: o jornalista que investiga o caso Bebel e impulsiona a reflexão crítica sobre as ações dos personagens. No início, ele está no comando de uma equipe de documentário. Aos poucos, é como se sua câmera fosse absorvida pela câmera do filme. De alguma forma, era através dele que eu inseria na história as minhas próprias questões. Já Bernardo, o jornalista interpretado por Paulo José, era um alter ego do Ignacio, o cara da noite que está escrevendo um livro. Geraldo Del Rey fazia Marcelo, um estereótipo do estudante politizado da época, bem mais próximo da teoria revolucionária que da realidade popular. O produtor vivido por Washington Fernandes era o canalha total, caricatura física inspirada em certos usos do Eisenstein. Em muitos casos, eu tinha modelos de inspiração disponíveis na mídia paulista. Um pouco antes, havia passado pelos bastidores das TVs Record e Tupi, em pequenos trabalhos com Roberto Santos. As peripécias criadas por Ignacio não eram novidade para mim. Diversas figuras do meio artístico e jornalístico fizeram figuração em Bebel. Roberto Santos e Fernando de Barros aparecem dialogando sobre o fato de que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. Apolo Silveira, o mais importante fotógrafo publicitário de São Paulo na época, interpreta o seu próprio papel, assim como o maquiador Gilberto Marques. Mino Carta vive um editor de jornal e Adones de Oliveira, então colunista de TV da Folha, representa o deputado nordestino espancado pelos playboys. Os números musicais trazem desde figuras da Jovem Guarda, como o cantor Marcos Roberto, a bandas como The Bells e a cantora alternativa multiétnica Dennise De Kalafe, que se apresentava em boates e depois se mudaria para o México. Carlos Imperial foi o responsável pela produção musical, enquanto o maestro Rogério Duprat fazia os arranjos, juntamente com Damiano Cozzella. Para viabilizar a produção, fundei com Roberto Santos e Luiz Carlos Pires a empresa CPS Produções Cinematográficas. Obtivemos um empréstimo no Banco Noroeste e iniciamos as filmagens em maio de 1967. Tudo foi rodado em São Paulo, com destaque para terraços de onde se descortinavam vistas panorâmicas da metrópole. Levamos oito semanas para cobrir um sem-número de locações, que iam da bilheteria do Arena à Praça da República, passando pelo Bar do Redondo e os estúdios da Tupi. Perseguíamos uma imagem de cidade cosmopolita, onde o show business era uma faceta do desenvolvimento. Pode ter havido alguma influência dos filmes do Richard Lester ou do Blow Up, de Antonioni, nessa estética de hiper-realismo publicitário. Logo no início do filme, incorporamos um comercial inteiro da Max Factor em película. Não era merchandising, mas apenas a busca desse referencial cosmopolita. A certa altura, Bebel passeia pela filmagem de um comercial, diante de um carro suspenso no ar. Para isso, aproveitamos uma filmagem real da Lynx Film em frente ao Teatro Municipal. Pedi a Carlos Augusto de Oliveira, o Guga, autorização para colocar a Rossana no cenário dele. A partir desse encontro, aliás, surgiu uma amizade que frutificaria em futuras parcerias. Por ser um filme da noite, o preto-e-branco pare-cia-nos fundamental. Combinava com a voga da opart, uma estética urbana identificada com aquela imagem de São Paulo. Não importava se os longas brasileiros feitos nesse segundo momento do Cinema Novo buscassem a cor como passaporte para um mercado mais amplo. Basta ver os contemporâneos Garota de Ipanema e Brasil Ano 2000. Eu não queria trabalhar com um fotógrafo tradicional paulista, formado na escola da Vera Cruz, nem com um carioca que não fosse Dib Lutfi. Preferi trazer o baiano Waldemar Lima, de Deus e o Diabo na terra do sol, que estava trabalhando com publicidade e podia aportar uma maior liberdade no uso da câmera. Person havia optado pelo Ricardo Aronovich, de Os fuzis, para fotografar o seu São Paulo S.A. Mais que brincadeira de salão Entre o livro do Ignácio e o meu filme há algumas diferenças fundamentais, além do título. Escrevi a adaptação em conjunto com Roberto Santos, Afonso Coaracy (também assistente de direção) e o poeta Mário Chamie. Isso foi feito ainda a partir dos originais datilografados, já que o livro só seria editado em 1968. Tivemos que alterar o peso de algumas personagens para enfatizar a trituração de Bebel como um processo contínuo. Ela deveria circular bastante entre jornalistas, publicitários, produtores e empresários de shows noturnos, numa cadeia de ascensão, glória e decadência, para enfim aproximar-se da prostituição. Bebel, como o Zózimo real, de Subterrâneos e futuros personagens de filmes meus, é o tipo da criatura que gosto de flagrar em estado de perplexidade. São personagens um tanto perdidos no mundo, que se desconstroem num processo impossível de deter. Gente que um dia denominei “heróis de pés de barro”. Em Bebel, garota propaganda, criei a seqüência da personagem girando no parque de diversões, o bingo final que assinala sua degradação, assim como todas as ações referentes ao ambiente publicitário. A dinâmica dos outdoors, por exemplo, condensava a idéia de exposição máxima do ser humano e de sua implacável substituição, logo em seguida. Da mesma forma, acrescentei a seqüência em que Marcelo, o estudante de esquerda, é duramente confrontado com a realidade do bairro operário. Ali estava uma semente de autocrítica em relação a um ideal revolucionário construído à deriva, à revelia do povo, paternalista e, nesse sentido, fora da realidade. Idéia esta que avançaria em Terra em transe – filmado quase ao mesmo tempo – para a figura do intelectual estabelecido. Aproximava-se 1968. O filme foi finalizado rapidamente e, em novembro de 1967, concorria aos Candangos do Festival de Brasília. Ganhou o de melhor atriz. Em compensação, ganhou também a hostilidade de alguns parlamentares por conta da cena em que um deputado de sotaque nordestino leva uma surra de Renatão (Maurício do Valle) e seus amigos. O deputado Benedito Ferreira, da Arena de Goiás, pediu a apreensão do filme. Uma grande polêmica estabeleceu-se. O Jornal do Brasil fez um editorial contra a investida da censura, que foi aplaudido pelos participantes do festival. A censura, que havia pedido o corte de uma frase sobre a origem nordestina do deputado, passou a exigir a supressão da cena inteira. Era num momento em que a classe artística media forças com o governo em torno da questão da censura. Ainda durante o Festival de Brasília, participei de um encontro de artistas com o presidente Costa e Silva no Palácio do Planalto, quando foram feitas reivindicações cabais de liberdade. Em janeiro do ano seguinte, eu estaria entre os criadores de certo Comitê Nacional do Cinema Novo que, na verdade, era mais uma instância da luta contra a censura. No fim das negociações, a Difilm conseguiu lançar Bebel somente com o corte da tal frase nas cópias, mas preservando o negativo. O filme estreou em São Paulo em março de 1968, curiosamente, na mesma semana em que chegava aos cinemas O homem nu, de Roberto Santos, com o mesmo Paulo José no elenco. Teve uma carreira razoável, suficiente para pagar o seu custo. Era uma narrativa relativamente simples, linear, centrada num só personagem, e assim se comunicava bem com o público. Para mim, era um meio-termo entre filme comercial e filme sério. Todo o cinema brasileiro estava testando uma maneira de ir além das platéias de intelectuais e estudantes. Contudo, pelo menos para mim, isso não significava abrir mão da atitude crítica. Uma das minhas afirmações, nesse período, era de que “a um diretor do Cinema Novo não interessa se o público gostou do filme, mas se este causou algum pânico ou bemestar”. O cinema parecia-me bem mais que uma brincadeira de salão. Era uma teoria do conhecimento, de profundo alcance social. Quando eu definia o cineasta como “um funcionário da informação”, estava cumprimentando minhas raízes no jornalismo e no documentário. Mas fazia questão de acrescentar, nesse conceito de informação, as angústias, o medo, a alegria e o amor. O tempo era de desconstrução de velhos modelos de influência, como a Vera Cruz e a chanchada. Muitas dessas posições soam-me hoje radicais, pois desprezam a interação dos tempos históricos. Eram inevitáveis, contudo, diante de uma ditadura implantada e de um cinema reestruturado para encarar a realidade social. Nos debates daquele momento, eu tomava certa distância da idéia de um autor como deus exmachina, atuando sobre todas as coisas. Na verdade, acho que essa noção foi importada acriticamente e nunca correspondeu à realidade do Cinema Novo. Glauber, Joaquim, Leon, Roberto Santos, Person, todos trabalhavam em profunda dependência de suas equipes. Na maioria dos casos, os diretores eram mais jovens e menos experientes que os técnicos e, como tal, não podiam posar de donos da verdade. Para mim, o cinema é feito por uma equipe de autores, todos responsáveis por uma parcela de criação. Barra pesada em Pesaro Passados poucos dias das turbulências estudantis de maio de 1968 na França, fui apresentar Bebel, garota propaganda na III Mostra Internazionale del Nuovo Cinema, em Pesaro, na Itália. Tratavase de um festival coordenado por socialistas numa cidade administrada por um prefeito fascista. Atraía a cada ano a nata da esquerda cinematográfica européia e latino-americana. Eu integrava com Leon, Saraceni, Rudá, Alex Viany e outros a delegação brasileira para um grande encontro do cinema latino-americano, antes mesmo da abertura do festival. Discutimos principalmente a criação de uma Cinemateca do Terceiro Mundo sediada no Uruguai. Naquele festival, pelo que sei, travou-se a primeira aproximação formal entre cineastas brasileiros e cubanos. Pesaro estava coalhada de estudantes, cerca de dois mil, vindos de diversas partes da Europa. Eles pediam o apoio do festival ao movimento estudantil. Na manhã do dia da abertura, fizeram uma manifestação e alguns foram presos. À tarde, após a exibição de La Hora de los Hornos, nós, do festival, nos solidarizamos em passeata pelas ruas próximas, gritando “Ho Chi Minh!” e “polizotti fascisti!”. Topamos com uma barreira de soldados e suas bombas de gás lacrimogêneo, e fomos obrigados a recuar para dentro do cinema, que foi cercado. Aos poucos, os carabinieri autorizaram nossa saída em pequenos grupos pela porta lateral. De cada grupo, sorrateiramente, eles detinham um ou dois. Ao sair, fui um dos escolhidos. Conduziram-me a uma delegacia com o cineasta colombiano Carlos Alvarez. Passamos três dias numa cela com cerca de 30 estudantes de várias procedências. Não apanhamos, mas éramos alimentados com pão, água e leite podre, o método tradicional das prisões italianas para provocar disenterias. O pessoal dos estúdios de Cinecittà fez uma paralisação e enviou representantes para exigir nossa libertação. Quando Bebel foi exibido, ironicamente, eu estava na cadeia. Deveria ter ficado na Itália para responder ao processo policial, mas, findo o festival, voei para a Inglaterra e de lá para a terrinha. Em Londres, encontrei com Vlado, que trabalhava em programas de rádio da BBC para o Brasil. Como garantia, evitei voltar à terra de Pasolini por quatro anos. No Brasil, reinava um clima de mobilização. Sentia-se certo relaxamento da ordem instituída, o suficiente para fazer surgir movimentos de defesa da liberdade de expressão, que iriam culminar na Passeata dos Cem Mil, em junho de 1968. A esse estado de espírito, eu e Leon agregávamos as marcas deixadas pela passagem por Pesaro. Lá havíamos assistido a sessões clandestinas de filmes de propaganda e mobilização social. Alguns eram produzidos pelas Brigadas Vermelhas, explicando, por exemplo, como montar uma bomba sem risco de ser apanhado. Outros eram da esquerda americana, ensinando como organizar passeatas, defender-se dos cavalarianos com bolinhas de gude e até mesmo orientando os jovens que não quisessem ir à Guerra do Vietnã – ainda que fosse cortando o próprio dedo indicador, o dedo do gatilho. Voltamos impressionados com aqueles filmetes de dois ou três minutos. Resolvemos fazer algo na mesma linha para colaborar na luta dos estudantes brasileiros. Fizemos um contato com José Dirceu que, na época, presidia a União Estadual dos Estudantes, e passamos a filmar algumas passeatas. Montávamos rapidamente e entregávamos à UEE, sem som nem nada. A intenção era mostrar como a passeata se comportava diante da repressão, além de levantar o moral dos grupos: “Olha, o pessoal foi lá, levou porrada...”. Mas não passamos de duas ou três iniciativas. Tudo era tão romântico, precário, inútil e, pior ainda, perigosíssimo para o movimento. Afinal, aquelas imagens delatavam as pessoas, seriam um prato cheio para a inteligência da repressão. Chegava a hora de tratar não de pratos cheios, mas de pratos vazios. Roncava na minha barriga a necessidade de fazer um filme sobre a fome. O faquir e a lua Depois de Bebel, eu queria me afastar da crônica mundana paulista. A idéia inicial que levaria a O profeta da fome era fazer um documentário com certa influência de La Hora de los Hornos e de Maioria absoluta, o filme de Leon sobre o analfabetismo. No horizonte ideológico havia o texto A estética da fome, recém-publicado pelo Glauber. Comecei a discutir o assunto com Fernando Peixoto, que trouxe a idéia de um filme de ficção. Mas Vidas secas levara o tratamento realista do tema a um ponto insuperável. Nós precisávamos encontrar uma metáfora que exprimisse o absurdo da fome e do subdesenvolvimento no Brasil. Pensávamos no conto O artista da fome, de Franz Kafka, título que chegaria a ser citado numa fala do filme. Foi quando me lembrei do Silk, o faquir do centro de São Paulo que fora objeto de minhas reportagens no Última hora. O faquir era o profissional daquilo que grande parte dos brasileiros exercia de maneira amadora: a fome. Ele transformava a carência em meio de vida. Batizamos o personagem como Ali Khan, em irônica alusão ao príncipe paquistanês que levou vida de playboy e casou-se com Rita Hayworth. Ao argumento fomos acrescentando outras histórias do folclore circense, como a do “sensacional homem que come gente” e do faquir Lochaan, que se fizera crucificar, ambos em Minas Gerais. Assim, chegamos à história do prestidigitador de um circo mambembe, amasiado com sua ajudante, que perde um olho em troca de um pão e se apresenta preso a uma cruz. Acaba na cadeia e, nesse período, descobre o segredo extremo da sobrevivência: viver da fome. Faz sucesso como faquir, vira peça de museu e acaba deposto no lixo, ao mesmo tempo que o homem chega à Lua. De um lado, o máximo em avanço tecnológico, de outro, as misérias sociais. Enquanto o homem tentava conquistar novos mundos, o mundo dos homens ia para o brejo. No contexto brasileiro, a fome contrapunha-se ao discurso do desenvolvimento empunhado pelo regime militar. A concepção e realização do Profeta estão intimamente relacionadas com minha vida de professor universitário. O primeiro tratamento foi feito com Fernando Peixoto em São Paulo, mas escrevi o roteiro final em Brasília, enquanto dava aulas na UnB. Toda a atmosfera de germinação em torno do Instituto Central de Artes reestruturado, no que se considerava uma vitória contra a ditadura, certamente imantou as idéias que eu levava para o papel. Quando finalmente reuni condições mínimas de iniciar as filmagens, eu estava lecionando na Escola de Comunicação da USP. O projeto, então, absorveu alunos e colegas professores. Jorge Bodanzky, um dos professores, assumiu a direção de fotografia. Das equipes técnica e de produção participaram Aloysio Raulino, Roman Stulbach e Plácido de Campos Jr., entre outros alunos especialmente interessados na parte prática do cinema. Bernardet fez uma ponta como funcionário da Cruzada da Fome. Até a câmera era da USP, uma Arriflex com poucas horas de uso. Para fazer os cenários e figurinos, convidei Flávio Império, o melhor cenógrafo de teatro da época. Da Boca do Lixo, chamei Cláudio Portioli, o melhor maquinista da cidade, e Antonio Meliande para ser assistente de câmera. Alguns momentos das filmagens do Profeta aparecem no prólogo de Audácia!, do Carlão Reichenbach. Elas começaram a 10 de julho de 1969, na cidadezinha de São Luís do Paraitinga, a 170 km de São Paulo. O lugar tinha várias credenciais para ser o cenário de boa parte do filme: uma localização serrana interessante, um cruzeiro no topo de uma ladeira e um prefeito que tinha relações familiares com nosso cenógrafo. Fomos alojados de graça num enorme galpão semidestruído e tivemos facilidades para filmar à vontade. Todo apoio era inestimável. Contávamos apenas com um pequeno empréstimo bancário e o pouco que apurei com a venda do meu fusca. Para cumprir as formalidades, abri a produtora Fotograma com o jornalista Hamilton Almeida Filho. Equipe e elenco trabalharam em regime de cooperativa. Não havia dinheiro sequer para comprar os negativos. Por sorte, Oswaldo Kemeny, da Rex Filmes, nos adiantou um lote de negativos preto-e-branco, o primeiro que trazia para o Brasil como representante da Fuji. Ele mesmo cuidou da revelação de cada rolo, num banho especial que deixava o material impecável. Para o papel de Ali Khan, minha primeira escolha foi Joel Barcellos, mas perdi-o para uma pequena participação em O conformista, de Bernardo Bertolucci. Enquanto Joel prolongava sua estada na Itália, voltei-me para José Mojica. A mudança implicava alterar a linha da personagem. Em lugar da representação crítica do Joel, mais típica do Cinema Novo, eu teria uma adesão mais irracional. No fim das contas, acho que Ali Khan ganhou muito com isso. Mojica vinha do impacto de À meianoite levarei sua alma e Esta noite encarnarei no teu cadáver. Estava no limiar do mito, mas topou sem pestanejar. Trouxe para o personagem uma carga de veracidade que eu não poderia imaginar. Nas cenas em que come cacos de vidro (nacos de cola, na verdade) e parafusos enormes, era incrível vê-lo mastigar aquilo tudo, em longos planos sem cortes. O único senão era a voz, que o identificava demais com o Zé do Caixão. Por isso pedi a Paulo César Peréio que o dublasse. Surgiu, assim, um ator único, que só aparece nesse filme, com interpretação oral plenamente adaptada à física. Há quem considere esta a melhor atuação do Mojica... Eu tinha aprendido algumas lições com a dublagem de Bebel. Distante da emoção do set, o ator nem sempre consegue reproduzir a espontaneidade e tende a impostar a voz. Alguns têm dificuldades com a técnica, a exemplo de Maurício do Valle, que era sempre extraordinário no set. Depois de semanas exaustivas de filmagem, nada pior do que entrar num estúdio para filmar tudo de novo, repassar todas as falas lutando contra a artificialidade. Nesse aspecto, acho que o Profeta assinala um salto de qualidade. Ao Peréio, por sinal, estava destinado o papel do delegado. Ele dormiu no trem e passou direto por Paraitinga no dia da filmagem. Perdeu o papel e virou dublador. O soldado ficaria para Heládio Brito, um amigo de Campinas que tinha avalizado meu empréstimo para o filme e trabalhava na equipe de produção. Escrevi o personagem do domador especialmente para Maurício do Valle, ator que admirava pela forte presença e intuição. Ele era perfeito sem se preparar para tal. Jofre Soares fez o padre, Sérgio Hingst viveu o dono do circo e a novata Júlia Miranda, atriz de teatro que dividia um apartamento com Sonia Braga e tinha trabalhado com Person, ficou com o papel de Maria, a companheira de Ali Khan. A fome em capítulos De 15 a 20 vacas são abatidas a cada ano para alimentar os fiéis na Festa do Divino de São Luís do Paraitinga. Na edição de 1969, a câmera de Bodanzky registrou tanto o abate como o cozimento das carnes em panelões enormes e a distribuição da comida aos peregrinos. Toda a atividade dos romeiros foi documentada para o filme, como parte de um dos 10 capítulos em que dividimos o roteiro, a maioria intitulada como parábolas bíblicas. Sem prejuízo de uma narrativa relativamente linear, pretendíamos aguçar a atenção do espectador para os temas colocados ao longo do filme. Para cada capítulo, estava previsto um tratamento diferente em matéria de encenação e fotografia. Essa opção acentuou-se mediante as condições de filmagem que encontramos. Em Paraitinga, por exemplo, o filme se alimentou da realidade louca daquela festa, retratandoa de uma maneira expressionista. Fizemos as cenas do Ali Khan preso ao cruzeiro da cidade, diante de romeiros que se postavam, perplexos, diante daquele estranho crucificado. Alguns reverenciavam-no de verdade. O padre, é claro, queixou-se ao prefeito, o que nós prontamente incorporamos ao roteiro do capítulo A paixão do incrível sofredor. O final das filmagens na cidade foi tumultuado. Os garotos da equipe começaram a namorar as moças do lugar e ganharam a hostilidade dos homens. Isso foi o bastante para que Antônio das Mortes baixasse no Maurício do Valle. Uma noite, talvez estimulado por alguma substância especial, ele vestiu a capa do domador, ingressou na sinuca onde os homens da cidade se reuniam e intimidou-os com seu vozeirão. Felizmente, dois dias depois, estávamos de partida. Nos arredores de Paraitinga, numa área freqüentemente envolta em nevoeiro, rodamos o deslocamento do grupo depois do incêndio no circo. A região fornecia o cenário de um Brasil mítico, não identificado geograficamente, que poderia se passar por São Paulo ou pelo Nordeste. Nesse capítulo, intitulado Olho por olho, a ação é narrada por um cantador negro e cego, papel vivido pelo músico Adauto Santos, que se apresentava em boates de São Paulo. O cordel me viera às mãos em Brasília. Era a síntese da metáfora que me faltava: Ali Khan estava fadado a trocar um olho pelo pão. O mesmo pão que, na prisão mais adiante, vai trazer-lhe a consciência de que “o negócio é a fome”. Durante a peregrinação, nem sempre os personagens se comportam exatamente como diz a narração do cantador. Nesta, o domador arranca também o segundo olho de Ali Khan. O que vemos, no entanto, é Maria intervir, matando o domador e salvando parte da visão do companheiro. Por não existir na narração, Maria pode subvertê-la de fora. Este é o único momento em que deixa a passividade, dado comum da mulher no contexto da fome. Seu destino é engravidar e seguir, comandada e servil. Basta ver as caminhadas em família de Aruanda e Vidas secas, por exemplo. Os três primeiros capítulos do filme – Nem só de pão vive o homem, Crescei e multiplicaivos e Comeivos uns aos outros – foram filmados no distrito de Itaquera. Alugamos por uma semana o pequeno Circo Dora, do palhaço Fuxico, onde fizemos as apresentações do Ali Khan. Para aquela que seria a mais concorrida, quando ele promete comer gente, anunciamos a filmagem como um atrativo para os moradores lotarem a platéia. Como sempre, havia certa expectativa real para a cena de antropofagia explícita. No papel da vítima, Fernando, o filho de Fuxico, tremia de vergonha ao se despir no meio do picadeiro. Gosto do acento brechtiano presente nesse circo. As cenas do faquir em sua urna transparente (A industrialização da nobre arte de passar fome e Devagar com o andor) foram rodadas no Anhangabaú, também aproveitando a curiosidade da multidão. Por fim, acrescentamos todo um capítulo em estilo de cinejornal, chamado Atualidades do velho mundo. Uma reportagem sobre o sucesso de Ali Khan aparece em meio a cenas de peregrinação na Índia, guerras, Pelé comendo a bola, os astronautas pisando na Lua e dinheiro voando no filme francês O cérebro de um milhão de Dólares. Enfim, aquele fenômeno não estava isolado do mundo. Ao mesmo tempo, a mistura ganhava ares de colagem tropicalista, onde bem caberia uma música do Gil. Mas nós tínhamos a trilha originalíssima do maestro Rinaldo Rossi, que também funcionou à perfeição. Ela foi quase inteiramente composta com o roteiro, ainda na UnB. Na época da finalização, ele trouxe as partituras a São Paulo e gravou com um sexteto de percussão da orquestra sinfônica. Rinaldo foi aluno brilhante de Hans Joachim Koellreuter na Bahia, tendo se tornado um expoente da música concreta brasileira. Bodanzky e Flávio Império são responsáveis diretos pela expressão visual do filme. O primeiro, com seus planos-seqüência admiráveis, segurança nos movimentos de câmera e criatividade no uso de pouca luz. Por sua vez, Flávio botou o filme para andar a partir de seus croquis para cada personagem, as idéias inusitadas para os figurinos e as geniais intervenções no espaço das locações. O cruzeiro desnudo de São Luís do Paraitinga, em suas mãos, virou uma fantástica tenda de milagres. Ao montador Silvio Renoldi, O profeta deu menos trabalho que Bebel. Havia bem menos material, e não apenas por razões econômicas, mas também porque eu estava mais seguro do que queria filmar. Renoldi era um montador de comerciais, extremamente ágil e hábil na seleção, corte e estruturação de filmes que às vezes chegavam imontáveis a suas mãos. O curioso é que, ao contrário de outros montadores paulistas, ele trabalhava intuitivamente, sem um background cultural para explicar o que fazia. O profeta da fome passou serenamente pela censura e estreou em São Paulo a 13 de junho de 1970, em plena Copa do Mundo. Não foi mal de bilheteria, mas acredito que chegou defasado em dois anos com relação às mudanças de linguagem no cinema brasileiro. Com alguns filmes da época, porém, compartilha uma visão algo desencan tada da capacidade de reação do povo perante a realidade. Este aparece servil, sem emprego, comprometido pelo misticismo. Em seguida ao AI-5, vivíamos um processo tão destrutivo e sem esperanças que só me restava fazer um filme que jogasse tudo para o ar. Não mais adiantava louvar o revolucionário. A alegoria era uma forma de fugir ao confronto. Retrospectivamente, tendo a concordar com uma leitura crítica recente, segundo a qual o filme reflete sobre o próprio Cinema Novo, que fez da fome uma forma de espetáculo. Uma transição ocorria naquele início da década de 70, a fome deixando de ser o tema central dos filmes. O representante oficial brasileiro no Festival de Berlim de 1970 foi Os deuses e os mortos, de Ruy Guerra. O profeta foi escolhido no Brasil pelo diretor do festival, Alfred Bauer, para concorrer como convidado especial. A cópia viajou clandestinamente, como bagagem. O certame daquele ano foi tumultuado. O Baader-Meinhoff explodiu uma bomba numa garagem e o júri demitiu-se depois de uma tentativa de censura ao filme O.K., de Michael Verhoeven. O festival não se concluiu. Ainda assim, nossa parábola sobre a fome saiu de lá com uma recomendação do Interfilm, o prêmio das igrejas evangélicas. No Brasil, ganhou três prêmios no Festival de Brasília e três Prêmios Air France de Cinema, sendo Maurício do Valle laureado em ambas as competições. Conquistou, ainda, uma Coruja de Ouro pela fotografia e um Prêmio Governador do Estado de São Paulo pela direção. A crítica, em geral, recebeu bem o filme. Um dos textos mais interessantes apareceu no Estadão, assinado pela escritora Ida Laura. Dela seria o conto em que se baseou meu filme seguinte. Iemanjá de encomenda De início, Noites de Iemanjá seria dirigido por Ozualdo Candeias. Ele tinha um roteiro pronto, baseado no conto Aquela que vem das águas, de Ida Laura. Por alguma razão ligada à adaptação, deixou o projeto. A produção, da qual participava a Paramount com parte da sua remessa de lucros, era tocada por Astolfo Araújo e Rubem Biáfora. Esse veterano crítico de cinema do Estadão, distante de todas as posições com as quais me identificava, foi quem me convidou para substituir Candeias. Passado o susto, aceitei, desde que pudesse mudar o roteiro livremente. Na verdade, retornei à base do original. A história girava ao redor de uma mulher linda e misteriosa, que emergia das águas, participava de rituais místico-eróticos e atraía os homens para a morte. Ao mesmo tempo, mantinha um casamento burguês. Biáfora via nisso uma semelhança com A bela da tarde, de Buñuel, mas, na verdade, eram tratamentos muito diferentes. O que passava era uma visão de Iemanjá como mulher destruidora. Nada, porém, se definia objetivamente. As personagens não pareciam ter identidade ou emprego. Tudo era mistério e ambigüidade. A rigor, eu achava o filme deslocado de qual quer realidade. Foi um trabalho de encomenda, bastante comercial, com o qual não tive maior compromisso. Entre as poucas coisas que minha memória reteve desse trabalho, lembro-me de que briguei pela escalação de Joana Fomm para o papel principal. Biáfora tinha lá suas obsessões em matéria de elenco. Sérgio Hingst era uma delas, e ficou com o papel do marido. Marília Franco, minha ex-aluna recém-formada pela ECC/USP, assumiu a função de continuísta. As filmagens ocorreram entre junho e agosto de 1970, no auge da ditadura e em plena Copa do Mundo. Rodamos em São Paulo, no Guarujá e no litoral norte do estado: Caraguatatuba, São Sebastião e Ubatuba. Esse foi o meu primeiro filme colorido. O responsável pelas imagens era Peter Overbeck, fotógrafo muito interessante, ligado à publicidade em São Paulo. Usamos muita contraluz em fim de tarde, tirando partido da natureza bruta e tranqüila das praias. Mas nem toda a fotogenia, nem o apelo de thriller erótico ajudou o filme a ter uma carreira significativa. Quando Noites de Iemanjá foi lançado, em 1971, eu estava novamente mobilizado na direção dos documentários. A Ford queria um institucional sobre o ralli que patrocinava. Fiz a proposta alternativa de seguir um dos corredores durante uma prova entre São Paulo e Minas. Partimos num carro de igual potência, acompanhando o competidor e passando pelas mesmas dificuldades do caminho. Documentamos não só a corrida, como também a convivência daquele bando de loucos no dia-a-dia da prova. O curta-metragem chamou-se simplesmente Rally. Essa opção de centrar o foco em personagens valeria também para Terra dos Brasis, documentário que fiz para a Shell em 1971. O projeto tinha sido inicialmente encomendado a Ruy Guerra, pela agência de publicidade paulista Magaldi, Maia & Prosperi. Ruy pretendia documentar o país através dos seus rios, o que tomaria mais tempo que o conveniente. Convidado a apresentar proposta diferente, sugeri cobrir o território por avião e mostrar o Brasil não por meio das paisagens e lugares, mas de pessoas simples cujo trabalho definisse cada região. Embarquei com Dib Lutfi, Claudio Portioli e um produtor. Começamos por Manaus, onde retratamos um carregador de 75 anos de idade. Diariamente, transportava 80 quilos de bananas, da beira do rio até o mercado, suportando o peso com uma faixa na testa. Em Goiás Velho, ocupamo-nos do último ourives que confeccionava pombinhas de prata tradicionais da Festa do Divino. Em Pernambuco, fizemos um vaqueiro e uma ceramista; no Ceará, um pescador de lagostas. No litoral do Rio, um pintor de navios. No total, 12 personagens – uma espécie de caravana particular, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Era a época da construção da Transamazônica. Perto de Altamira, desembarcamos do helicóptero numa colonização de desmatadores. A cada cinco quilômetros havia uma casinha branca de madeira, equipada com móveis, tudo direitinho, numa pequena clareira no meio da imensa mata. Escolhemos uma família vinda do sul e registramos sua rotina diária. Um dia saímos com o homem para filmar sua labuta. Às nove da manhã, ele começou a bater o machado no tronco de uma árvore enorme. Às três da tarde, a árvore ainda estava de pé. Ou seja, ele levaria uns 80 anos para abrir uma clareira. Ficava patente que aquele processo de colonização era uma calamidade: o homem com um machado no meio da floresta indesbastável. O filme foi montado por Gilberto Santeiro e ganhou uma bela trilha sonora de Sérgio Ricardo. Mas o tom crítico que às vezes imprimimos, além do caráter excelsamente popular, não se prestou ao objetivo do patrocinador, que era presentear o governo Médici. Embora Terra dos Brasis nunca tenha sido exibido, essa primeira investida da Shell no cinema documental não deixou de ser uma semente da série Globo Shell Especial, lançada no ano seguinte. Acompanhei de perto essa transição, a convite da Blimp Filmes. A partir de 1972, me afastaria do cinema por quatro anos, dedicando-me aos documentários para a televisão. Mas em 1976, eu voltaria ao cinema e às ruas de São Paulo para, enfim, dar corpo e voz aos malandros Malagueta, perus e bacanaço. Anti-heróis em sinuca de bico Desde A margem, de Ozualdo Candeias, instalouse no cinema paulista uma espécie de tradição da marginalidade. Era muito convincente, nos anos 1960 e 70, que São Paulo tinha dois eixos simbólicos: o eixo da miséria, que era a marginal do Tietê, berço das primeiras favelas; e o eixo da afluência, representado pela Avenida Paulista, que ligava o mundo da burguesia ao mundo da indústria do ABC. No momento em que me voltei para O jogo da vida, queria retratar outra face da cidade, outro tipo de margem: os meandros do jogo, da prostituição, da vagabundagem e dos pequenos truques, que se insinuavam pelas ruas do centro. Uma fronteira meio difusa entre a cidade formal e o que hoje se chama de exclusão social. Malagueta, perus e bacanaço descortinava um cenário de blefes, disfarces, jogos de enganação. E uma fauna esquisita. Gente que vivia de apostar nos que jogavam, de explorar os patos, ou otários da sinuca. Tipos como Malagueta, um maltrapilho que usava seu figurino como uma maneira de disfarçar que era bom jogador. Na decadência, ele ia encontrando uma forma de enganar os trouxas. Era um personagem análogo ao nosso profeta da fome, pois fazia da desgraça uma forma de sobrevivência. A mesa de bilhar era seu palco e picadeiro. Eu mesmo freqüentei o pano verde em Campinas, mas como mero amador. O conto de João Antônio servia agora de passaporte para um universo que me interessava aprofundar. Havia conhecido o autor em 1961, na Cinemateca Brasileira. Ele escrevia os contos de Malagueta, quando um incêndio na sua casa de periferia consumiu, com o miúdo patrimônio da família, os originais manuscritos. Dois anos depois, ele reescreveu o livro de memória e publicou-o em 1963. Sua amiga, a poeta Ilka Brunhilde Laurito, que trabalhava na Cinemateca, tinha copiado e guardado cerca de 20 páginas da primeira versão. Quando foi comparar com a versão reescrita, teve um choque: as diferenças eram mínimas. João era um fenômeno em matéria de memória literária. Pensei em adaptar o conto-título, antes de me decidir por Bebel. Quando, enfim, chegou a hora, adotei uma variante da expressão jogo de vida, que se refere a um tipo de partida selvagem, um tudo ou nada em que as apostas são mais altas e se ganha ou se perde tudo rapidamente. Para o roteiro de O jogo da vida, contei com a colaboração de Gianfrancesco Guarnieri nos diálogos e uma revisão final do próprio João Antônio. A principal alteração era respeitante à inclusão dos flashbacks que ajudam a montar o perfil das personagens. São flashbacks um tanto aleatórios, porque não são memória nem psicologia, e tendem a criar uma cronologia flutuante. De qualquer maneira, eu precisava dessas cenas para facilitar o entendimento factual por parte de uma platéia mais popular, à qual também me dirigia. Achava que poderia alcançar tanto o intelectual ligado em cinema quanto o próprio marginal. Quanto ao mais, procurei fazer um filme bem fiel ao naturalismo quase documental do livro. O jargão é específico dos sinuqueiros paulistas. O roteiro, muito distante do relativo formalismo de O profeta da fome, tem um quê de perambulação. Os personagens é que conduzem a câmera, em vez de apenas se encaixarem no quadro. O ponto de vista é de quem está no rastro deles. O trio podia entrar numa sinuca com toda naturalidade, sem despertar atenções especiais. Filmei Lima Duarte em meio ao movimento de rotina do mercado municipal e ninguém o identificou. Um dia, dissimulamos a câmera no pé-direito de um salão de bilhar da Av. São João, criamos uma iluminação discreta e botamos o campeão Carne Frita para jogar com João Gaúcho. Dois craques conhecidos. Em pouco tempo, formouse uma figuração espontânea. A certa altura, Maurício do Valle, Lima e Guarnieri se juntaram ao grupo e fizemos três ou quatro versões de uma cena, sem que nenhum dos freqüentadores se desse conta. Carne Frita, o mais antigo e mitológico jogador de sinuca do Brasil, estava cego de um olho e aposentado quando participou do filme. Seu sucessor era Joaquinzinho, intérprete do falso pato que coloca os três malandros em sinuca de bico na partida final. Para rodar essa seqüência, montamos um sistema complexo. Dib ficava sempre no contracampo de Joaquinzinho, girando ao redor da mesa de acordo com os movimentos do jogador. Cinco membros da equipe giravam embolados atrás dele. Havia duas variáveis em jogo: Joaquinzinho acertar as caçapas em seqüência e Dib sincronizar o enquadramento com as tacadas. Tivemos de repetir a partida mais de dez vezes, no decorrer de uma extenuante madrugada. Foi um dos planos-seqüência mais trabalhosos que o Dib fez. A luz básica provinha das luminárias baixas de bilhar, aquelas ilhas de claridade mergulhadas na escuridão ao redor. O filme é quase todo noturno, só com os flashbacks em plena luz do dia. Filmamos durante cinco semanas em salões de bilhar e botecos da São João, Ipiranga, Anhangabaú, Boca do Lixo e Vila Madalena. Eu queria que os atores criassem seus próprios tipos e, em muitos casos, suas próprias falas. Eles combinaram seus movimentos em grupo, dispensando em larga parte os ensaios. Guarnieri, meu sócio na produtora Documenta e co-autor do roteiro, era uma escolha natural para o papel do ex-operário Perus, apesar de ser mais velho do que o personagem do livro, chamado de “garoto”. Era curioso vê-lo no papel de um furagreve depois de ter criado no palco o operário engajado de Eles não usam blacktie. Maurício, por sua vez, não tinha concorrente para ser o corpulento e impositivo Bacanaço. Àquela altura, ele estava aboletado no posto de meu ator preferido. Quanto ao Malagueta, negro no livro, estava destinado a Grande Otelo. Mas ele viajou para fazer shows e pensei no Lima Duarte. Lima admirava o conto e jogava sinuca como gente grande. Aliás, mata ótimas bolas diante da câmera. Por conta própria, ele se metamorfoseou por inteiro: dentadura postiça, aquele capote e o gorro com que coroou a personagem. Lima Duarte contracena bem com qualquer parceiro – seja a grande Myriam Muniz, seja um humilde cachorro vira-latas. Com a Myriam, ele traça uma feijoada num barraco em favela recémevacuada. Os dois se apoderaram da seqüência euforicamente e criaram cacos enormes, que me soaram até exagerados. Mas eu não podia ficar pedindo menos, menos. Eles eram aquilo! Em casos como esse, a intervenção do diretor só faz atrapalhar. Com grandes atores, limito-me a orientar caminhos. Não me meto a impor ritmos e medidas. Por sua participação especial, Myriam ficou com o prêmio de melhor atriz coadjuvante em Gramado. Já o vira-latas, que, em outro momento, vem dividir com Malagueta a sua lingüiça, simplesmente ficou um dia inteiro sem comer, antes de ser trazido para dialogar com o Lima. A vida como ela era – nem mais, nem menos. Em O jogo da vida, estamos no reino dos pés-de-chinelo, dos anti-heróis anônimos. A mídia está ausente, ao contrário de Bebel e do Profeta. Não há divisão de classes, nem conflitos com a lei. A polícia só aparece na forma da corrupção. Tudo se passa na margem. Esse filme ampliou minha estranha galeria de mulheres vilipendiadas. A amante de Bacanaço, interpretada por Maria Alves, apanha e ainda gosta – era o perfeito estereótipo da mulher de malandro. O politicamente incorreto ainda não vigorava naquela época. Valia mais a representação bruta da realidade. Mas nada disso explica a violência da bolacha que Guarnieri desfechou em Martha Overbeck, que vivia a irmã de Perus. Foi um excesso de incorporação do persona-gem. A imersão dos atores na lógica marginal era grande, mas não explica aquele tapa. Para o clima de exacerbação da cena contribuiu, certamente, o simbolismo da volta a Perus, à qual Gianfrancesco se ligava politicamente. Em 1962, os operários da Cimento Perus, pertencente ao Grupo Votorantim, fizeram uma greve histórica por melhores condições de trabalho e contra a poluição que causava sérios problemas pulmonares aos moradores. Nós conseguimos filmar algumas cenas no interior da mesma fábrica, sob a alegação de que fazíamos um documentário. Experimentei fazer uma cena com uma jovem atriz de teatro recém-chegada do Nordeste, travestida de menino de rua. Não deu certo e acabei cortando. Mais tarde, a menina daria muito certo como cantora. Era Elba Ramalho. As duas canções do filme, Tabelas e O Jogador, foram compostas por João Bosco e Aldir Blanc em torno das mesas de sinuca de um salão da Praça Tiradentes, no Rio. Antes mesmo de conhecer as imagens, eles criaram com base nas conversas que tivemos no local, em companhia de João Antônio e de Lincoln, um jogador pro-fissional. Jogamos uma tarde inteira no embalo das cervejas. Eu e João Antônio contra a dupla musical. As músicas chegaram prontas, semanas depois. O maestro Radamés Gnatalli trabalhou os arranjos sobre os temas, naquilo que seria o seu último trabalho para o cinema. O som foi mixado numa tecnologia nova, que dava um salto em matéria de realismo e efeitos sonoros. Nas entrevistas de lançamento, eu me orgulhava de que o espectador podia ouvir “até o ruído do giz na ponta dos tacos”. Não utilizamos som direto, mas o resultado sugere o contrário porque a dublagem foi excelente. Até Lima Duarte conseguiu reproduzir, no estúdio, a incrível espontaneidade de suas improvisações. Debaixo do guarda-chuva Carne Frita e Joaquinzinho foram as estrelas da festa de lançamento de O jogo da vida em São Paulo, em novembro de 1977. As duas gerações se enfrentaram no Tati Snooker, da Consolação, em meio a um coquetel. Joaquinzinho não deixou por menos: venceu o veterano por 3 a 1. Mas nem de longe foi o mais festejado. Carne Frita era um ídolo. Orgulho-me de ter feito algumas parcerias com ele enquanto preparávamos o espaço da filmagem. No Rio, a Embrafilme jogou o seu próprio produto aos leões, lançando-o na mesma semana de A Dama do Lotação, em abril de 1978. O resultado foi uma carreira bem mais modesta do que se poderia esperar. Como se não bastasse, a estatal, nossa sócia na produção, atrasou o pagamento de direitos autorais a João Antônio, ocasionando um desentendimento que repercutiu publicamente e abalou por algum tempo a nossa amizade. A Embrafilme havia entrado com 30% do orçamento do filme. O restante fora coberto por nossa produtora Documenta, mediante empréstimo do Banco Nacional. Aliás, a origem do meu relacionamento com o banco do guarda-chuva está num projeto anterior, de chapa-branquíssima. Em 1975, para levantar a produção de O jogo da vida, Guarnieri, Zeca Zimmerman e eu fundamos a Documenta. Nosso primeiro projeto, contudo, seria a montagem, no ano seguinte, de Ponto de partida, a peça do Guarnieri inspirada na morte de Vladimir Herzog. Nessa mesma época, recebi um surpreendente convite de José Aparecido de Oliveira, então assessor dos Magalhães Pinto. Ele queria que eu fizesse uma cinebiografia do senador mineiro, que estava prestes a completar 50 anos de vida política. O cronista Paulo Mendes Campos foi meu parceiro na pesquisa e organização do roteiro. Enquanto levantávamos a história da família em Minas, nasceu uma grande amizade entre nós. As noites de conversa eram imensas, aveludadas por garrafas e garrafas de uísque. É preciso dizer que devo a Paulo e a Francisco de Almeida Salles, o eterno presidente da Sociedade dos Amigos da Cinemateca, o aprendizado do ofício de bem beber. O média-metragem História de um político começava com a reconstituição de uma fuga noturna, em carroça, quando o protagonista contava com meros dois meses de idade. Era uma alusão às aventuras desregradas do pai do senador, que tangiam a família de cidade em cidade. Depois desse prólogo, vinha uma pletora de depoimentos elogiosos – de Juscelino Kubitschek a figuras do meio financeiro – e um vasto material de arquivo estruturado como um álbum de família. O maior desafio da produção foi reunir o clã inteiro, cerca de 60 pessoas, diante da câmera de David Neves para a tomada de grupo que encerra o filme. Desconheço o paradeiro desse documentário. A família nunca o fez circular publicamente. Sei que, durante anos, negativos e cópias ficaram trancados num cofre do Banco Nacional. Nós também ganhamos certo trânsito naqueles cofres. A partir desse trabalho, a Documenta obteve o empréstimo para viabilizar as apostas de O jogo da vida. Capítulo V Televisão A década de 1970 chegou com reviravoltas de telenovela em minha vida e carreira. Para começar, adquiri uma aparência de profeta com a longa barba negra que deixei crescer a partir da viagem para filmar Terra dos Brasis. Os mateiros da Amazônia aconselharam-me a usar a barba como uma proteção a mais contra os insetos. Nessa área, continuo protegido até hoje. Em compensação, calvo desde a mocidade, meu crânio é puro desamparo. Fumava dois maços por dia, bebia meus uísques sem perder o senso de direção e consumia drogas leves sem desbundar. Estava em processo de separação da Anna, em 1971, quando fui levar O profeta da fome a um festival de cinema latinoamericano em Caracas. Lá conheci representantes de todos os matizes da esquerda revolucionária do continente. Descobri que o festival era uma tribuna do líder guerrilheiro venezuelano Douglas Bravo. Mas o meu coração vadio embandeirou-se mais para o lado de certa Marta, uma das coordenadoras do evento. Um tipo diferente de paixão ligou-me também ao mítico titeriteiro Javier Villafañe, como Marta emigrado da ditadura argentina. Ele havia fugido pelos Andes, ao longo de seis ou sete anos, recolhendo no percurso a tradição cultural das aldeias indígenas, reproduzida com seus bonecos. Depois de 10 dias na capital venezuelana, retornei ao Brasil com dois desejos ardendo no peito: rever Marta e levar a aventura de Javier para o cinema. Durante quatro ou cinco meses, eu e Marta trocamos cartas sobre os dois assuntos. Até que o correio ficou pequeno demais para tanto sentimento. Vendi meu carro, juntei tudo o que tinha e cheguei de surpresa em Caracas. O plano era convencê-la a vir morar comigo no Brasil ou, em último caso, fixar-me eu mesmo na Venezuela. Deu a primeira opção. Embalamos os seus pertences, selecionamos alguma mobília e despachamos tudo num navio para Santos. Fomos juntos à casa de Javier em Mérida, a fim de conceber o projeto do filme. De lá, iniciamos uma viagem de prospecção e lua-de-mel através da Colômbia e Chile. Em Santiago, hospedados na casa do cineasta Miguel Littin, testemunhamos a euforia do governo Allende. Uma visita de Fidel Castro, uma semana antes, havia tingido de vermelho os muros da cidade. No Estádio Nacional, vimos um espetáculo impressionante onde se reconstituía a tomada do Palácio de Inverno, com sósia do Lenin e tudo. Em São Paulo, vivemos oito meses juntos num porão gostoso dos Jardins. Mas a felicidade não durou mais que isso. Marta sentia falta de relações de amizade e não se adaptava a uma vida sem trabalho certo, enquanto eu vivia uma fase de muitas viagens profissionais. Em vão tentamos remediar, até que ela decidiu voltar para sua Argentina natal. Depois disso, perdemos qualquer contato. Bem mais tarde, vim a saber que ela foi uma das desaparecidas políticas da época. De alguma maneira, senti-me co-responsável por aquele destino. Marta era seu codinome. No rastro de Rosa Meu afeto perambulou por algum tempo até pousar na jornalista e atriz Jalusa Barcellos. Conheci-a quando ela foi a São Paulo fazer uma entrevista com Guarnieri. Namoramos na ponte aérea antes que eu, mais uma vez, reunisse a bagagem e me abalasse ao encontro de uma mulher. Mudei-me para o Rio de Janeiro em fins de 1976. Vivemos juntos durante cinco anos numa casa no alto de Santa Teresa. Jalusa integraria o elenco do meu telefilme Crônica à beira do Rio e seria dirigida por mim numa montagem da peça Nadin Nadinha contra o rei de Fuleiró, de Mário Brasini, premiada pelo Serviço Nacional do Teatro. Mas, sem dúvida, a melhor coisa que co-produzimos juntos foi a nossa filha Mayra, nascida em 1978 e também viria a ser atriz. Crônica à beira do Rio, com Vinicius Salvatore e Mario Masetti Quando me carioquei definitivamente, estava enfiado até a cintura no poço luminoso da televisão. Tivera uma experiência precursora em 1967, quando a TV Record resolveu criar um programa musical com o mesmo título da canção de Geraldo Vandré que fizera furor no Festival de MPB de 1966. Disparada era dirigido por Roberto Santos, que me chamou para ser seu assistente. Gravamos quatro programas com o Vandré e convidados diante de um auditório. Logo, no entanto, a atração saiu do ar, em virtude de desentendimentos entre o astro e a emissora. Quatro anos depois, a amizade com Guga de Oliveira, nascida fortuitamente durante as filmagens de Bebel, rendeu-me um convite para fazer documentários na produtora Blimp Film. A TV Globo fazia muitas encomendas à empresa para conquistar o mercado paulista. Entre 1971 e 1972, dirigi três documentários da Blimp para esse núcleo de projetos especiais. De especial, aliás, eles nada tinham. O poder jovem tratava de educação, comportamento, diversão e relacionamento entre os jovens da época. A indústria da moda e Revolução do consumo, como sugeriam os títulos, traziam insights dos bastidores do capitalismo florescente. Não eram filmes críticos do ponto de vista político, mas apenas crônicas atentas à realidade. Os primeiros programas da série Globo Shell Especial também foram feitos em regime de terceirização absoluta. Havia um núcleo no Rio e outro na Blimp, em São Paulo, filmando com película de 16 ou 35 mm. A idéia para o programa Do sertão ao beco da Lapa surgiu ao redor de uma mesa do bar do MAM-SP. Chegou às minhas mãos através de Almeida Salles uma carta de Guimarães Rosa, contendo um suposto mapa das fazendas da região de Cordisburgo (MG), onde ele havia vivido. Aos meus olhos, aquilo merecia, senão um filme, pelo menos um belo programa sobre ângulo inédito da vida de Rosa. Rudá e eu sugerimos, então, realizar um Globo Shell sobre o período de formação de três escritores: Rosa, Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. Parti para Cordisburgo com Hermano Penna (câmera) e Mario Masetti (som). Logo o nosso veterano e confiável guia pôs abaixo qualquer ilusão no sentido de seguir aquele mapa. Os traços do mestre não conferiam com a topografia real. Assim, o mapa virou uma ilustração de como a realidade de Rosa era transfigurada pela imaginação. Seguimos em frente, à procura dos cinco vaqueiros com quem o escritor havia compartilhado sua viagem iniciática pelo sertão mineiro, nos anos 1950, fonte do romance Grande Sertão: Veredas. Localizamos três deles, um dos quais Manuel Nardy, o Manuelzão, de quem muito se falara, mas nunca dera as caras na TV. Deles obtivemos um retrato saboroso de Rosa. Cada um dos seus companheiros de viagem conhecia profundamente um aspecto do sertão. Enquanto tocavam a boiada, conversavam sem parar. O escritor tomava notas num caderninho, no lombo do cavalo. Agora, diante da fala de Manuelzão, nós parecíamos ouvir o texto de Rosa. Vereda, para Manuelzão, era “um lugar mole...” Do Bandeira selecionei poemas como Evocação do Recife, Voume embora pra Pasárgada e Última canção do beco. Com eles, tentei fazer uma reconstrução da memória poética com a ajuda da descrição física de lugares do Recife e do Rio. Na cidade natal de Bandeira, colhemos imagens da Casa Amarela da Rua da União, felizmente preservada; de um quarto de bordel na área do porto (com a sua “dama da noite” devidamente postada, seminua, diante dos espelhos de um toucador); e de uma pequena ilha de coral em frente à cidade, espaço encantador que posou como Pasárgada. No Rio, filmei a Rua Morais e Vale (chamada Beco do Rato), na Lapa, e a casa da Rua do Curvelo, em Santa Teresa, que o poeta habitou e cantou em versos. Renato Neuman cedeu-me imagens inéditas de Bandeira caminhando no Passeio Público. Lima Duarte narrou os dois episódios, mas deu vez à voz do próprio poeta na hora de recitar Pasárgada. Do sertão ao beco da Lapa completava-se com um episódio de Rudá de Andrade, contemplado no subtítulo E o mundo de Oswald. Rudá trabalhou com a iconografia e os versos do pai, mas concluiu com uma imagem violentíssima que me deixou intrigado: a câmera aproximava-se de uma jaula até fechar no close de um cão raivoso que latia ferozmente. Para mim, aquilo era um comentário áspero sobre uma relação pai-filho notoriamente conflitada. Algumas cenas do segmento rosiano ganharam sobrevida interessante ao serem absorvidas pelo curta Veredas de Minas, de Fernando Sabino e David Neves. O ambiente na Blimp Film era dos mais criativos e estimulantes. Roberto Santos e Person eram alguns dos freqüentadores assíduos. Fazíamos muitos trabalhos para a Globo e refletíamos sobre a necessidade de conquistar a atenção e a concentração do público de TV. Além de documentários, pautados com bastante liberdade a partir de sugestões dos realizadores, produzíamos todas as aberturas, campanhas e a identidade visual da Globo, numa era pré-Hans Donner. Com Guga, o grupo de criação da Blimp e o animador Joaquim Três Rios, participei, por exemplo, da criação do famoso plimplim, num momento em que a Globo precisava de uma vinheta que distinguisse mais claramente os programas dos comerciais. Até então, eles usavam apenas um logotipo fixo e silencioso. Consumimos várias noites e garrafas de uísque para chegar ao resultado. O som do plimplim remetia a uma marca sonora de sincronização do material de dublagem. A imagem sugeria o obturador de uma câmera. Por muitos anos, a Blimp viveu dos direitos desse plimplim. E nós, da rentabilidade e da boa atmosfera da Blimp. Entre os frutos desse período está o meu curta O homem que comprou a morte. Era um exercício próximo da ficção científica, uma coisa maluca. Guarnieri, Fernando Peixoto e eu escrevemos a história de um vendedor de ilusões fazer suas ofertas numa feira de utilidades. Um jovem aparece para comprar a morte, melhor dizendo, o desejo de matar. Não me lembro que houvesse um sentido maior além da mera experimentação. Filmamos com negativos coloridos de 35 mm e equipamento da Blimp, sem prever algum destino para o produto final. Outra pausa no trabalho para a TV foi o filme As cidades do sonho, que fiz em 1975 para a agência de publicidade de Roberto Medina. Nada mais que um institucional sobre cidades planejadas, a serviço de um empreendimento imobiliário. O melhor foi filmar, na companhia de Zeca Zimmerman e Mário Masetti, em diferentes conglomerados urbanos dos EUA e da Europa. “Vou me matar no carnaval” Minha estréia no selo Globo Repórter deu-se com uma inusitada adaptação literária. A Globo havia comprado um pacote de títulos de Jorge Amado, imaginando que todos eram romances. Mas eis que Bahia de todos os santos era um “guia de ruas e mistérios” da cidade de Salvador. Foi repassado à Blimp para ver no que dava. Eu li de uma tacada e fiquei fascinado com a apresentação da cidade, de lado a lado com seus personagens históricos e míticos. Pedi as passagens e fui para a Bahia com um diretor de produção e com o fotógrafo Hélio Silva. Faltavam poucas semanas para o carnaval de 1974. Com a ajuda de uma pequena equipe local e sem muita pesquisa prévia, abrimos os trabalhos divulgando uma longa entrevista de Jorge Amado, que poderia servir para vários programas. Em seguida, saímos à cata de nossas persona-gens. Afinal, que personagens? Muitas do livro estavam mortas. Mãe Menininha não podia falar por causa da proximidade do carnaval. Batemos pernas pela Baixa dos Sapateiros, Bonfim, Itapuã. Assim foi por quatro dias. Eu estava num mato sem cachorro. Hélio ameaçava desertar. À noite, jantávamos num restaurante da Praça Castro Alves quando topei com um amigo da UnB, o antropólogo e filólogo Ordep Serra. Ele convidou-nos a visitar no dia seguinte o terreiro do Pai Lolô, onde era babalaô. Fui sozinho. Quem sabe, eles abriam meu caminho. A mãe-de-santo jogou os búzios e me descreveu, certeira: “Meu filho, você tá muito mal. Fica aí, almoça com a gente e vamo fazer um trabalho”. Eu estava em crise matrimonial e em crise de personagens – difícil imaginar pior. Naquela mesma noite, voltei ao restaurante situado ao lado do cinema Guarany (futuro Glauber Rocha). Mais esperançoso, pedi uma moqueca. De repente, um pequeno jornaleiro jogou sobre a mesa um exemplar de A Tarde. A manchete cintilou ante meus olhos: “Vou me matar no carnaval”. Um célebre carnavalesco baiano estava anunciando o próprio suicídio na Rua Carlos Gomes, porque a Bahiatursa, órgão do governo, não tinha custeado o seu carro alegórico, como fazia todos os anos. Saímos à sua procura e o filmamos contando como seria o desenlace. Ele morreria queimado pelo fogo expelido da boca de uma sereia cenográfica. Num acordo surrealista, combinamos filmar ao vivo o evento, previsto para a sexta-feira de carnaval. Antes mesmo de a folia começar, as outras personagens do filme foram aparecendo. Tinha o massagista do time do Bahia, que no carnaval se depilava todo e pulava travestido até a exaustão; tinha um saxofonista da orquestra sinfônica que tocava na noite; um grande mestre da capoeira; uma prostituta que deixava o filho aos cuidados da avó enquanto trabalhava; um casal que construía sua casa nas palafitas. Tinha a cerimônia a Exu na saída para o desfile, depois de muitos anos, do bloco Filhos de Gandhi. Tinha até Gilberto Gil cantando uma música inédita e recordando a infância em Salvador, e uma entrevista de Mestre Pastinha, encontrado doente e abandonado no corredor de um casarão no bairro do Maciel. Quando Jorge Amado viu o programa, disse: “Pronto, você refez meu livro”. Felizmente, o carnavalesco suicida obteve a tempo a renovação do seu patrocínio e assim evitamos a saia justa de um snuff movie. Ainda na Bahia, fiz dois trabalhos para o Fantástico que nunca foram integralmente ao ar. Um deles, chamado O cantoreador do nordeste, era um encontro musical em pleno sertão com o compositor Elomar e seu bode Orelana, inspirador do personagem de Henfil. O outro mostrava um homem que jurava ter assistido, em São Felix, no Recôncavo, a um certo “baile do demônio”. Ele narrava, em detalhes fulgurantes, uma festa no interior em que os casais dançavam suspensos no ar. Assim seguia “o show da vida”. Réquiem para Lampião Uma medida da liberdade que tínhamos no Globo Repórter foi a experiência de mistura de linguagens proposta, em 1975, por O último dia de Lampião. O projeto, que considero um dos meus melhores trabalhos para a TV, partiu de uma vasta, mas dispersiva pesquisa de Amaury Araújo sobre o fenômeno do cangaço. O que mais me interessou foi a indicação de testemunhas ainda vivas dos dias finais de Lampião no esconderijo de Angicos, em Sergipe, onde parte do bando foi dizimado. Não se tratava de ouvir dizer, mas de encontrar remanescentes capazes de falar diretamente para a câmera. Escolhido o episódio da morte do mito, ocorreume a idéia de não apenas fazer um documentário baseado na pesquisa e nos depoimentos, mas usar tudo isso como base para uma dramatização dos conflitos daquele dia fatídico. Ainda em São Paulo, encontrei Zé Sereno e sua mulher, Sila. Zé Sereno era o segundo ou terceiro homem na hierarquia do bando, detentor da inteira confiança de Lampião. Entrevistei-o no leito de um hospital. Sila, que era a costureira do bando e havia convivido intimamente com Maria Bonita, não só deu testemunho como também foi contratada para fazer os figurinos do filme. Sila mandou um bilhete para Dadá, a companheira de Corisco, na Bahia, pedindo que ela nos ajudasse com os chapéus, alpercatas e apetrechos de couro, sua especialidade. A reconstituição deveria ser o mais fiel possível aos acontecimentos. Cruzamos depoimentos para confirmar cada informação. Não apenas entre os cangaceiros, mas até do lado da volante. O único dado assumidamente imaginário é a hesitação do Tenente João Bezerra da Silva, chefe da volante, em matar Lampião. Eu não tinha depoimento direto a respeito disso, apesar de a pesquisa do Amaury apontá-lo como o coiteiromor, vendedor de armas para o próprio Lampião. E ainda havia uma estranha coincidência: ambos teriam nascido no mesmo dia e na mesma hora. Aquela perseguição tinha algo de romanesco – parecia escrita, em vez de acontecida. Com Fernando Peixoto, fui criando o roteiro da reconstituição segundo um cronograma, hora a hora, dos dados reais que apurávamos nas entrevistas. Procuramos nossos personagens em Salvador (BA), Piranhas, Delmiro Gouveia (sudoeste de Alagoas) e finalmente na região de Angicos, onde concentraríamos as filmagens. Encontramos diversos ex-cangaceiros que foram testemunhas oculares, assim como coiteiros que ajudaram Lampião. Falamos com o telegrafista responsável pela mensagem decisiva da caçada final, com o comerciante que desconfiou da emboscada, com os dois barqueiros transportadores da volante até Piranhas, com o soldado que desfechou o primeiro tiro em Angicos e o que atirou em Maria Bonita. Localizamos o vaqueiro Joca Bernardo, responsável pela denúncia do paradeiro do bando. Ele confessou pela primeira vez a traição, diante da câmera de Walter Carvalho. Esse Walter Carvalho não é o mesmo fotógrafo dos filmes de Walter Salles e co-diretor de Cazuza – o tempo não pára, mas Walter Carvalho Corrêa, sócio da Blimp e cria de Chick Fowle, o mago das luzes da Vera Cruz. Walter não fez muitos longas, ficou mais na publicidade e nos documentários, mas é um dos grandes fotógrafos brasileiros. Seu trabalho com a câmera na mão pelo terreno pedregoso de Angicos é de excelente qualidade. Angicos é um pedaço de riacho seco que deságua no São Francisco. Lugar inóspito, situado a três horas de caminhada da margem do rio, por dentro da mata. Levamos para lá alguns personagens reais, com o propósito de que indicassem os locais onde tudo aconteceu. Em seguida, rodamos as cenas com os atores. Os mesmos figurantes faziam cangaceiros e soldados. Para reconstituir o tiroteio, filmávamos o ponto de vista da volante às cinco horas da manhã e o contracampo dos cangaceiros ao cair da tarde. Durante uma semana, dormíamos não mais que três horas por noite, depois de desmontar o equipamento e retornar até nossa base em Piranhas. Para o elenco, privilegiamos a semelhança física. Emanuel Cavalcanti era o ator perfeito para o pa-pel de Zé Sereno. Bezerra foi interpretado com convicção por um capitão da PM que era primo do personagem real. Heládio Brito, meu ator-talismã nessa época, fez o sargento Aniceto. Lampião, o próprio, não recebeu maior destaque por ser um mito difícil de representar. Tive receio de pôr em sua boca palavras que comprometessem a plausibilidade. Preferi mostrá-lo sempre de longe, de costas ou de banda, deixando um distanciamento proposital. Achei que isso ajudava na proposta documental do filme. A reunião de relatos e confissões permitiu-nos compreender e mostrar algumas motivações ocultas da opção pelo cangaço. Havia casos de vingança pessoal, ressentimentos e interesses diversos alimentando tanto o grupo de Lampião, como os macacos. Um dos soldados, por exemplo, era parente de sangue de José de Neném, o primeiro marido de Maria Bonita, e certamente estava na volante não somente por mero profissionalismo, mas até em busca de vendeta. A estrutura de narrativas convergentes (cangaceiros X volante) é aindabem clássica. A narração hoje me parece excessiva, embora então julgássemos necessária para garantir a atenção do telespectador. Mas a combinação de documentário e ficção era bastante nova para a televisão da época. No Globo Repórter, que eu saiba, nenhum programa havia incorporado performance de atores naquela extensão. O tratamento sonoro tampouco era dos mais convencionais. A seqüência do clímax, por exemplo, foi filmada a 40 quadros por segundo, para dar maior dramaticidade, e deixamos o som direto distorcido na mesma medida, criando um efeito perturbador. A reza matinal dos cangaceiros, que acaba atuando como elemento de suspense, não foi invenção nossa, correspondia, no entanto, a um hábito diário do bando de Lampião. Ancorar a reconstituição histórica em dados comprovados não deve ser uma limitação para o cineasta. Muito pelo contrário, é o que lhe garante a liberdade de experimentar sem o risco de trair seu objeto. Reconstituir, por exemplo, o momento da morte solitária de Getúlio Vargas seria um despropósito. Ninguém sabe sequer como ele empunhou o revólver. Nesses casos, é melhor partir para a dramatização livre, sem qualquer apoio documental. Não aconselho ninguém a reconstituir a devoração do Bispo Sardinha pelos índios caetés... Duelo de titãs Eu também tive meu dia de proibição dentro do Globo Repórter. Foi em 1977, quando saí atrás de artistas da noite carioca e paulista. Eles trabalhavam na madrugada, dormiam de dia e raramente tomavam sol. Daí o programa ganhar o título de Os homens verdes da noite. A idéia surgiu quando Dick Farney fez um comercial na Blimp. Começando por ele, entrevistamos diversos músicos, como o contrabaixista Azeitona, sósia de Grande Otelo. Retratamos também um garçom do Gigetto, um bizarro cantor de boate da zona portuária do Rio e – o que era demais para a Globo – um travesti de boate gay da Rua Major Sertório, que vivia tranqüilamente com seu companheiro. Mostrávamos cada personagem no seu dia-a-dia caseiro e na atividade noturna. O programa foi editado e entregue à Globo, mas nunca exibido. Na mesma época, ajudei Plácido de Campos Jr. a levantar a história do circo no Brasil e no mundo para o programa O mundo maravilhoso do circo. Em 1979, abria-se uma nova frente na minha carreira. Guga assumiu a direção de programação da TV Bandeirantes e chamou-me para dividir o desafio de disputar com a Globo o horário das 20 horas. Eu, que havia me transferido para o Rio, voltei a São Paulo e saí com Guga na noite, discutindo como enfrentar o dragão com um lança-chamas. Os jornais da época falavam de um curandeiro a quem se atribuíam milagres em bairros pobres da cidade. Guga, por sua vez, tinha lido um bestseller americano sobre médicos famosos. Por aí chegamos à proposta de uma novela que abordasse medicina e paranormalidade. Era O todopoderoso. Teríamos dois personagens centrais: um médico célebre, cheio de poder, mas de ética profissional também – inspirado na figura do Dr. Adib Jatene – e um curandeiro popular. Eram interpretados, respectivamente, por Jorge Dória e Eduardo Tornaghi. Havia, ainda, uma dupla maluca de médicos de pronto-socorro, vivida por Marco Nanini e Renato Borghi, que bebia no soro da comédia Mash, de Robert Altman. A trama era uma loucura. A cada entrada do curandeiro, aconteciam coisas extraordinárias, indo em busca de efeitos especiais de cenografia até então pouco comuns em televisão. Coisas explodiam, portas tombavam, pessoas caíam da cama em poços misteriosos. E as curas ocorriam das formas mais estapafúrdias. Ainda assim, mantínhamos uma conexão permanente com a realidade dos hospitais públicos e com as situações do momento. Era comum uma personagem abrir o jornal e articular a ação com uma manchete real da época. Cerca de 50% da novela passava-se em exteriores, onde usávamos os primeiros equipamentos U-Matic, mais leves e ágeis. A dinâmica da decupagem era bem semelhante à do cinema. Eu supervisionava as equipes de dramaturgia, produção, técnica, edição e finalização. De certa forma, O todopoderoso atingiu seu objetivo. A audiência subiu a 35 pontos e na terceira semana batia Os gigantes, concorrente da Globo. O duelo de titãs até levou o Boni a visitar o irmão na Bandeirantes, com um pedido de satisfação. Mas foram desentendimentos na própria cúpula da Band que levariam Guga a pedir demissão, quatro meses depois de iniciada a novela. Um pouco mais tarde, eu também pedi meu boné, passei a supervisão da novela para Walter Avancini e voltei para o Rio. Antes, porém, havia plantado a semente de novo projeto dentro da Band. Na verdade, semeei o terreno da Shell. Vendi-lhes a idéia de fazer seis telefilmes retratando a cultura de diferentes partes do país, a partir da obra de escritores locais. Em 1980, o modelo do telefilme ainda era uma novidade entre nós. A Embrafilme acabava de fazer uma tentativa frustrada com pilotos de séries de TV, que a Globo interrompeu não comprando. Num instante, o meu Projeto Brasil Especial nascia com patrocínio e exibição assegurados, mesmo que só quatro dos seis telefilmes viessem a sair do papel. Eu dirigi O boi misterioso e o vaqueiro menino, organizado em tema de cordel nordestino; Crônica à beira do Rio, escrito com Paulo Mendes Campos sobre o universo carioca do cronista Rubem Braga; e O princípio e o fim, adaptado do gaúcho Josué Guimarães. Produzi e ajudei a editar Mulher diaba, dirigido por Xavier de Oliveira e inspirado em Jorge Andrade. Ficaram de fora o opus baiano, apoiado em conto de Jorge Amado, e o do Centro-Oeste, colhido em Bernardo Élis. Os filmes, apesar da metragem, teriam formato de televisão, com quatro blocos bem marcados e pontos de entrada de comerciais. Ainda assim, no entanto, esse espaço novo na TV abria uma esperança de experimentação mais interessante que o cinema na época. Havia também a idéia de levar uma equipe mínima para trabalhar com elenco, técnicos e pessoal de produção da localidade. Assim foi que parti com dois atores e uma pequena equipe para Fazenda Nova, no rastro do Boi misterioso. Cordel materialista Ao longo de dez anos, vinha pesquisando a história do tal Boi Mandingueiro, percorrida na mitologia do sertão e nos folhetos de cordel. Quando passei por Pernambuco, fazendo Terra dos Brasis, conheci o casal Plínio e Diva Pacheco, assim como a cidade cenográfica de Nova Jerusalém, criada por eles. Desde então, sempre que podia, passava por lá e me deliciava com um imenso acervo de cordel, com os poetas e cantadores que sempre havia ao redor. Conversava com a peãozada que lidava com o gado, gravava o áudio de depoimentos, poetas e cantadores. Com isso, fui montando a história do Boi. Ao mote existente – coronel promete a filha em casamento a quem capturar um boi que vadia pelas suas terras – fui acrescentando camadas de referência ao poder no sertão e às produções da imaginação popular. Escrevi o roteiro procurando reproduzir a dicção dos artistas populares, seus ritmos e rimas. Até a última hora, apesar disso, temia que as falas soassem ridículas na boca dos atores pernambucanos. Foi só quando selecionamos o resto do elenco, no Recife, que fiquei aliviado. Eles compreendiam tudo e identificavam-se com o sentimento do texto. Pouca coisa teve que ser ajustada. O coronel Francisco foi interpretado por Luís Mendonça, importante divulgador do teatro popular nordestino no Rio de Janeiro, com seu Grupo Chegança, e lançador das atrizes-cantoras Elba Ramalho e Tânia Alves. A figurinista oficial da Paixão de Cristo, Diva Pacheco, confeccionou as roupas do filme. Manfredo Bahia, ator alagoano radicado em São Paulo – no papel do Vaqueiro menino –, e Jofre Soares, interpretando um misterioso Velho, foram os únicos atores importados. De São Paulo levei também Pedro Farkas, que tinha feito o still de O jogo da vida e realizava aqui sua segunda direção de fotografia de longa-metragem. Seu assistente era José Roberto Eliézer, que viria a ser uma referência na luz do cinema brasileiro dos anos 1980. A fotografia desse filme incorpora com expressividade a onipresença do sol e a beleza meio fantasmagórica do agreste. Filmamos tudo em Fazenda Nova e arredores. Para a trilha sonora, gravamos com a Banda de Pífanos de Caruaru, as cantadeiras da novena da Sexta-feira Santa e entoadores de aboios. O filme tem um tecido musical bastante rico, composto de falas, cantos e música orquestral. Esse material permitia-me dar vazão à influência de Brecht, relevante na minha formação. Eu gostava do teatro brechtiano, embora achasse aquele método mais adequado ao cinema, que favorecia o distanciamento. No meu entender, o cinema materializava necessariamente a realidade e despsicologizava o real. Nessa fase da minha carreira, costumava combater o psicologismo como algo que afastava o artista dos processos sociais. Minha leitura da história do Boi não era estranha ao materialismo crítico. Eu fazia uma negação da utopia. Via no Boi um mecanismo de ocultação do conflito existente na realidade. O Boi, como produto imaginário, escondia a miséria, a impotência. O mito seria a negação da ação. De alguma maneira, a moral da história era essa: se você sai atrás do boi, perde o seu momento, a sua história. Isso ficava claro, a partir da aparição do Velho, que era uma espécie de projeção do futuro do Vaqueiro Menino. É ele quem descortina o mundo real por trás do mito. A partir do seu encontro com o Velho, o vaqueiro pode desmoralizar a versão do soldado orgulhoso que matou o Boi, mostrando que aquele é apenas um boi comum, igual a todos os outros. O Boi não existe, mas sim o rico e o pobre. Cariocas e italianos do sul A mudança de cenário não poderia ser mais radical. Tão logo concluídas as filmagens do nosso cinecordel pernambucano, eu mergulhava na praia de Rubem Braga, ao som da Bossa Nova e em companhia de Paulo Mendes Campos. Costumava encontrar ambos os cronistas no bar Antonio’s, no Leblon. Havia trabalhado com Paulo, mas não tinha maiores laços com Rubem. No entanto, era fã de suas crônicas, uma das quais, sobre um casal de amantes que se isola num quarto, eu quisera ter transportado para a tela. Embora Rubem fosse capixaba, não via fotógrafo mais habilitado para retratar o Rio. Com Paulo, escolhi 19 textos delimitadores dos aspectos característicos: o mar, o interior da cidade, a mulher e a noite. Imaginamos o próprio Rubem como personagem, ou melhor, narrador de si mesmo. E, para completar, usamos o seu dúplex de Ipanema como cenário para as evoluções de Jorge Dória no papel de O cronista. O roteiro final de Crônica à beira do Rio combinava elementos de crônicas diversas e criava simultaneidades interessantes. Linearmente, descrevia um dia na vida da cidade, da manhã à madrugada seguinte. O primeiro bloco tinha o mar como denominador comum, diversos comediantes no elenco e personagens como um pescador, um afogado, uma mãe estressada e um paquerador de areia. Ouvia-se Garota de Ipanema numa festa de apartamento e Ela é Carioca numa cena de praia. No segundo bloco, o cronista mantinha relações diferentes com quatro mulheres, que compartiam tempos distintos dentro do mesmo espaço-tempo do apartamento. Um desempregado e um favelado, ambos em situação crítica, ocupavam o terceiro bloco, feito com uma câmera na mão que encarava os pedestres, marginais e operários. Finalmente, o quarto bloco passavase num bar da zona portuária, entre o discurso etílico-dialético do cronista boêmio e aforismos de um Machado de Assis redivivo na mesa ao lado. Dada a notória freqüência de mulheres na vida de Rubem Braga, é claro que o segundo bloco era uma peça à clef. O público podia não identificar, mas o Paulo sabia direitinho a que figura real cada personagem se relacionava. Analisando-se as crônicas de Braga, percebe-se que o autor deixava pistas suficientes. Minha mulher à época, Jalusa Barcellos, fazia o papel de uma mulher casada que vivia na mira do famoso paquerador. Monique Aragão, como a jovem dos sonhos do cronista, protagonizou, senão a primeira, uma das pioneiras exibições de seios nus no horário nobre da televisão brasileira. Em seguida às crônicas cariocas, abalei-me para o Rio Grande do Sul para rodar O princípio e o fim. Foi outro câmbio violento de ambiente. Organizamos a produção na colônia italiana de Caxias do Sul, na qual se passava o conto original de Josué Guimarães, incluído no livro Os ladrões. Na história, o velho Padre Carapella, chamado para fazer um batismo, retorna à região onde crescera e celebrara sua primeira missa. Vem montado num burrico e acompanhado de um pequeno sacristão, Tininho. Eles representam o princípio e o fim. Mas o título também se refere a essa viagem do padre por um passado que não reconhece mais. O tema de fundo são as transformações sofridas pelas colônias rurais italianas. As famílias cresceram muito, e a terra, não. Daí os jovens migrarem para as cidades, deixando velhos e casas vazias para trás. Fiz uma viagem de preparação em companhia de Josué e Cláudio Pereira, jovem gaúcho que se tornou meu assistente de direção e depois produtor de documentários e musicais da TV em Porto Alegre. Identificamos as locações e contatamos pessoas com vistas à futura filmagem. Percebemos alguma desconfiança inicial por parte dos moradores – houve até quem nos fechasse portas e janelas – mas, ao final, conseguimos extrair ótimas histórias, que foram incorporadas ao roteiro. O roteiro, na verdade, não era mais que um guia para situações que iam surgindo à medida que seguíamos filmando, em bases semidocumentais. Manfredo Colasanti, perfeitamente identificado com o papel, era o único ator de fora de Caxias do Sul. As cenas nasciam de sua interação com os atores do lugar e principalmente das improvisações com os figurantes. Muita gente beijava-lhe a mão, acreditando que de fato fosse um padre. No curso de uma filmagem, as pessoas, com freqüência, acabavam esquecendo a presença da câmera e da equipe, e reproduzindo formas de convivência bastante naturais. A proposta era jogar um elemento ficcional dentro da realidade e deixá-lo ser engolido por essa realidade. Dos três telefilmes que dirigi, esse foi o de realização mais descontraída. As tradições da região apareciam na forma de cantos, jogo de truco, paixão pelo vinho. Fizemos uma bonita abertura com fotos de imigrantes italianos e usamos muita música de Ennio Morricone, além da inevitável Merica, Merica, Merica. Enquanto eu filmava no Sul, Xavier de Oliveira dirigia, em Jaú (interior de São Paulo), o quarto telefilme da série. Com um prazo exíguo para concluir os quatro filmes, convidei-o para dirigir a adaptação de Jorge Andrade. Não me arrependi. Acho Mulher diaba o melhor de todos. Xavier conseguiu uma verdade incrível no meio daquele canavial. Utilizou atores como Lélia Abramo, Ariclê Perez e Geni Prado no meio de cortadores de cana para contar a história de uma inusitada disputa: quem cortasse 20 toneladas de cana num só dia levaria a cobiçada Didieta. O viúvo Gregório e o moço Severino viviam um encarniçado duelo de trabalho braçal somente para, no fim das contas, ver Didieta partir com um motorista de caminhão que não tinha entrado na história. Todos esses telefilmes foram rodados em 16 mm. Os negativos eram telecinados na íntegra e editados em fitas de duas polegadas, a vedete da TV na época. A ilha de edição media entre dois e três metros. Foram exibidos no horário de 22 ou 23 horas, no segundo semestre de 1980. O Boi misterioso Contra o Vaqueiro Menino foi reprisado duas vezes no Nordeste e valeu-me um título de cidadão honorário de Pernambuco – que nunca recebi pessoalmente porque a Assembléia Legislativa não mandou passagem... Daí em diante, cumpriuse o destino comum aos telefilmes brasileiros da TV aberta: o completo ostracismo. Felizmente, essas bobinas ficaram arquivadas na emissora e hoje é possível ter os filmes de volta. Variedades Bandeirantes Em quatro anos de Bandeirantes, tive a chance de exercitar vários formatos. E reforçar minha convicção de que televisão não é uma linguagem, mas um veículo potencialmente aberto a todas as linguagens. Cedo percebi que a TV, na qualidade de produtora, criou certos padrões e limites. Como veículo, no entanto, é um repositório onde tudo cabe: cinema, jornalismo, publicidade, musical, documentário. O veículo tende a absorver cada vez mais. Em 1981, fiz uma pausa para realizar o médiametragem Caso de polícia para a série Cinema Rio, que Nelson Pereira dos Santos coordenava na TVE. Ele convidou diversos cineastas para abordarem diferentes aspectos da cidade em pequenos filmes. O meu reconstituía ficcionalmente um episódio da crônica policial recente, com fotografia de José Guerra. Na Band, impossibilitado de prosseguir com os telefilmes, envolvi-me em 1982 com diversos programas de variedades. Criei, por exemplo, o projeto Boca a boca, em parceria com a gravadora Warner, dirigida por André Midani. A produção era de Roberto Menescal. Transmitíamos shows da Concha Acústica da UERJ com os novos talentos da geração pop-rock. Cazuza, Lenine e Jaques Morelenbaum foram alguns dos nomes apresentados por Xico Chaves naqueles shows de sábado. No 1º de maio de 1983, em plena mobilização pelas eleições diretas, dirigi a gravação do mega-show Canta Brasil, no Palácio de Convenções do Anhembi. Lá estava a nata dos artistas empenhados na luta pela redemocratização: Chico Buarque, Caetano, Gil, Toquinho, Sérgio Ricardo, remanescentes da Bossa Nova. Ainda na seara da música, realizei um especial com Gilberto Gil e outro com Mercedes Sosa. Gravamos o show da cantora argentina no Teatro Casa Grande e uma abertura com ela no camarim. Não tive dificuldade em criar um vínculo, já que Mercedes havia atuado em Los Inundados e era uma grande simpatizante do trabalho de Fernando Birri. Outras palavras era um projeto de Walter Salles e do jornalista Sergio Augusto, programa de entrevistas para o público jovem. Fernando Barbosa Lima, à época diretor de programação da Bandeirantes, pediu-me que desse uma orientação técnica na produção e edição de imagens. Eu não interferia no roteiro. Nesse período, gravando em estúdio, teatros e espaços maiores, aprendi que, do ponto de vista do realizador, a maior diferença entre cinema e televisão está na quantidade de câmeras. O cinema, geralmente, é uma espécie de monovisão, em que o foco narrativo vai migrando de personagem para personagem. Mas quando se entra num espaço onde cabem 10 ou 20 olhos, o raciocínio muda completamente. Um show, como um jogo de futebol, é algo que o diretor não domina, não pode mandar parar e repetir. Um ouvido musical ajuda muito na hora de coordenar as câmeras e os cortes. Trabalhar na suíte de um estúdio de TV requer atenção especial, ao mesmo tempo que aliena o técnico do evento real, ou seja, o palco. Aquele vidro é, na verdade, uma parede cega. O diretor de imagem, postado diante dos monitores, conta apenas com a memorização do espaço, não o espaço em si. É pelos monitores que ele orienta remotamente os cinegrafistas. Essas experiências na Band e a relação com o Fernando Barbosa Lima acabaram por me arras-tar para a TV Manchete, em 1983. Foi o início de uma fase ainda mais fértil na minha carreira de televisão. Viagens com a Manchete Fernando Barbosa Lima, Walter Salles e Roberto d’Ávila acabavam de criar a produtora Intervídeo. Um de seus projetos para as transmissões iniciais da nova TV Manchete era a minissérie Os brasileiros, baseada em temas do antropólogo Roberto DaMatta. Convidado para dirigi-la, Walter Lima Jr. não pôde assumir e eu ocupei o posto. Sérgio Augusto produzira roteiros pesquisadíssimos, verdadeiros desenvolvimentos das teses de Da-Matta. Minha preocupação, mais que segui-los à risca, era viabilizar a produção no prazo exíguo de que dispunha. Propus, então, fazer uma viagem de coleta de imagens e entrevistas para os três primeiros programas ao mesmo tempo, nos moldes que havia praticado em documentários anteriores. Isso significava abrir aqueles roteiros de ferro para o inesperado dos encontros. Passei quase todo o ano de 1983 fazendo os 10 programas da série, que enfocavam temas como raízes, religião, comida, futebol, malandragem e saudade. Para o episódio de abertura, Quem somos nós?, fizemos uma mesma pergunta a todos os nossos entrevistados, fossem eles intelectuais, artistas ou populares: “O que é o brasileiro?”. A partir do segundo, embora os motes populistas continuassem a ser repetidos pela locução (“Retrato falado de um povo”, “A partir de agora você está no ar”...), a palavra pendia menos para a gente comum do que para explicadores do país, como Gilberto Freyre, Antonio Houaiss, Jorge Amado, Pedro Nava, Afonso Arinos, Abdias do Nascimento, Hélio Silva. E o próprio DaMatta, que atuava como âncora e explicador-mor. O texto dele deixou de ser o ponto de partida para ser o ponto de chegada de cada programa. A antropologia do cotidiano praticada por Roberto DaMatta é prato cheio para documentarista. Ela tenta explicar a realidade através do comportamento e das manifestações do povo. O episódio sobre a malandragem é tido como um dos melhores da série. Nele, experimentamos diversos métodos de abordagem documental, lado a lado com procedimentos ficcionais. Numa cena, um autêntico malandro, em off (o bom malandro não aparece na primeira página), identificava quem era esperto e quem era otário entre os passantes da Cinelândia, a julgar pela aparência ou o jeito de andar. Em outra, a câmera flagrava guardas de trânsito em pleno exercício do jeitinho brasileiro, que se tornavam rigorosos e exemplares ao se saberem filmados. O famoso repórter Otávio Ribeiro entrevistava bandidos armados no morro, no intuito de estabelecer uma suposta – e fundamental – diferença entre criminosos e malandros. Diferença que, no meu entender, é só formal, já que um golpe puramente artístico pode destruir tanto quanto um assalto a mão armada. O aumento da consciência ética, nos últimos tempos, trouxe um efeito colateral: o documentário hoje virou um processo predominantemente burocrático. Nos anos 1980, ainda se filmava na rua sem pedir autorização de uso de imagem e bandidos apareciam de cara limpa diante da TV. Em contraposição, as muitas cenas de filmes que incluímos para ilustrar os episódios de Os brasileiros foram negociadas em pacote com a Embrafilme. Em resumo, produzir era então menos complicado do que hoje, desde que se tivesse acesso aos meios. Meios é o que não faltava à Manchete recéminaugurada. O primeiro episódio de Os brasileiros terminava com uma mensagem chapabranca do presidente da empresa patrocinadora, da área de seguros. Tanto a Intervídeo como a Manchete, de Adolpho Bloch, tinham ótimas relações com o meio empresarial. O modelo da nova emissora tinha como alvo o chamado público classe A. Investia nos atributos de modernidade, empregando intelectuais e caprichando nos requintes técnicos. Era preciso diferenciar-se do padrão de mera eficiência da Globo. Isso comportava, felizmente, uma parcela de ousadia. Eu não podia ficar indiferente. Quando terminei Os brasileiros, a direção da Manchete convidou-me para montar o núcleo Manchete Documento. Apesar do nome, ele absorvia também especiais musicais e todo tipo de programa que não coubesse nas áreas tradicionais de jornalismo, dramaturgia e esportes. Danceteria Brasil, por exemplo, foi um especial de fim de ano (1984), em que Lúcia Veríssimo, Osmar Prado e outros atores interagiam no espaço de uma danceteria. No ano seguinte, eu dirigiria especiais com Gal Costa, Elba Ramalho e o cantor italiano Nico Fidenco, todos programas-shows de rotina, apenas com a sofisticação que se esperava da Manchete. Lembro-me de conversar com Guilherme Araújo, diretor artístico do show da Gal, sobre a concepção da filmagem. Eu anunciava: “Vou usar as câmeras lambendo a Gal”. Ela estava sensualíssima dentro de uma saia justa e bustiê, com a barriga de fora. Ninguém podia ficar indiferente. Nesse período, os documentários eram mais estimulantes – ou, quando nada, mais variados – que o resto da programação. A tv por dentro foi um passeio pelos bastidores da própria Manchete, por ocasião do seu segundo aniversário. A nova república recenseava os acontecimentos desde a Campanha das Diretas até o primeiro ano do governo Sarney. Concluía com um longo planoseqüência de natureza simbólica: a câmera subia a rampa do Palácio do Planalto, cruzava salas e ante-salas de três andares até entrar no escritório do Sarney e se postar diante dele. A intenção era, ao mesmo tempo, celebrar a volta da democracia e demonstrar fisicamente como era o acesso ao presidente. Em seguida, mergulhei num tema que me levaria a outra viagem de grande fôlego pelo território brasileiro – mais precisamente – pelo seu litoral. Até então, o mar não tinha sido tratado em profundidade na televisão. A Petrobras assumiu o patrocínio da série em troca de abordarmos a mineralogia marinha em um dos programas. E saímos para percorrer a costa, de Marajó à Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul. O desafio do mar teve 12 episódios sobre diferentes temas: pesca, turismo, transporte marítimo, limites do mar territorial, meteorologia e outros. Como sempre gosto de fazer, abri espaço para as histórias do povo de cada lugar, a visão de mundo dos pescadores, as diferentes maneiras de se construir barcos pelo Brasil afora. O ponto extremo dessa aventura foi, sem dúvida, a viagem à Ilha da Trindade, situada a um terço do caminho entre a costa do Espírito Santo e a África. Ali existe uma estação avançada de pesquisas oceanográficas e meteorológicas. Para chegar à ilha, depois de um dia e uma noite de navio, os 300 metros finais eram percorridos pelo ar, numa balsa suspensa por cabos. Lá viviam 30 ou 40 homens durante três meses, cercados de peixes exóticos e caranguejos gigantes. Era impressionante! Perigo maior enfrentei, quando uma tempestade nos surpreendeu num banco de corais a cerca de 100 quilômetros do porto de Cabrália, na Bahia. Estávamos gravando e nos deliciando com a fauna marinha e a faina de alimentação dos pássaros quando um imenso paredão negro se formou repentinamente, sem que nem o comandante do barco percebesse. A embarcação, encalhada nos corais, não podia se mover antes que a maré enchesse. Mal tivemos tempo de regressar, a todovapor, sobre ondas violentíssimas, seguidos de perto pelo monstro negro da tormenta. Parecia um daqueles antigos filmes do Spielberg. Perto disso, foi peixe pequeno a intoxicação que me derrubou enquanto documentava a pesca da lagosta ao largo da costa do Espírito Santo. Pretendia fazer um Drifters – que é o célebre documentário de John Grierson, de 1929 – sobre o cotidiano dos pescadores de arenque na costa escocesa – mas, durante quatro dias, tomando sopa de cabeça de peixe ao balanço das ondas, só fiz vomitar tudo o que comi. Duvido que os donos daquele barco me convidassem para outro projeto. O mar, pelo menos para mim, era um desafio e tanto... Meu último trabalho para a TV Manchete foi a minissérie Viagens às terras de Portugal, produzida pela emissora brasileira com o apoio do governo português. Esse último forneceu-nos hospedagem, alimentação e toda a infra-estru tura local, incluindo um microônibus com o qual percorremos o país de norte a sul. No meu projeto, cada programa estava estruturado como uma viagem. Mas, na verdade, filmamos tudo numa única estada de 40 dias. Das modernidades de Lisboa às amplas belezas do Algarve e a aldeias paradas no tempo em Trás-os-Montes, eu queria “olhar bem para a cara do povo e esperar ser chamado para entrar em sua casa”, como dizia no texto da narração. A série tem caráter panorâmico. Enfoca aspectos de história, política, economia, cultura e artes portuguesas. Portugal vivia o primeiro ímpeto do atual ciclo de modernização. Entrevistei o então presidente Mário Soares, o líder comunista Álvaro Cunhal, os cineastas Manoel de Oliveira e Paulo Rocha, o arquiteto Tomás Taveira – responsável pelo shopping das Amoreiras – o poeta Manuel Torga, o historiador José Hermano Saraiva, além de jovens músicos, pintores, artesãos, empresários e economistas. E também aquele que seria o provável pivô da posterior rejeição das autoridades à série: um travesti maravilhoso que fazia um show popular em Lisboa. Um mal-estar se instalou no consulado português. Afinal de contas, não estávamos trazendo exatamente o documentário institucional que esperavam. De qualquer forma, reconheço um desnível de qualidade entre o primeiro programa e os demais. O projeto era maior do que a nossa capacidade de realização. A Manchete Vídeo lançaria no mercado de homevideo um compacto de 98 minutos, destituído das partes mais polêmicas. Diante de nossa câmera, lembro que Manoel de Oliveira deu uma bela e lusitaníssima definição de cinema: “É um fantasma que se conserva”. Orgulho comunitário O lado ruim de trabalhar para a TV é que raramente se pode tocar um projeto pessoal, como no cinema. Por outro lado, somos estimulados a inventar uma maneira de ultrapassar a lingua-gem oficial. Para mim, isso sempre foi um exercício simultâneo de humildade e ousadia. Todas as vezes em que entrei num projeto de televisão, procurei colocar alguma coisa pessoal – ainda que às vezes mínima, pouco detectável – que rompesse a mesmice do veículo. Depois da série sobre Portugal, por longos 17 anos mantive a televisão desligada no meu currículo profissional. A TV comercial, bem entendido. Porque bem antes de realizar a série de programas No país do futebol para o Canal Brasil, tive a felicidade de participar, nos anos 1990, de uma experiência memorável em matéria de democratização da telinha. Com a Eco TV, convenci-me de que uma televisão comunitária pode promover mudanças qualitativas, tanto políticas como culturais, dentro de uma cidade. No princípio era a TV Búzios, uma das primeiras emissoras comunitárias a funcionar no Brasil. Em 1989, Uberto Molo, um dos sócios da produtora Skylight, criou uma fundação para adquirir a infra-estrutura da TV Búzios e expandir a rede pela região. Nesse momento, fui chamado a participar do desenvolvimento e instalação do projeto da Eco TV. A primeira providência foi transferir o núcleo central da emissora para Cabo Frio, com vistas a um maior alcance. Com a expansão progressiva, em 1991 chegamos a ter quatro TVs funcionando em link: Cabo Frio, Macaé, Angra dos Reis e Paraty. Obviamente, não nos contentávamos em ser retransmissores autorizados da TV Educativa do Rio e da TV Cultura de São Paulo. Em Paraty fazíamos um telejornal diário de 30 minutos de duração. Cobríamos com independência acontecimentos políticos, esportivos, religiosos, culturais e festivos da região. Tínhamos um programa infantil realizado por crianças. Divulgávamos campanhas para instituições de caridade e ofertas de negócios. Fazíamos campanhas políticas, organizávamos debates. Tirando partido da rede, criamos o programa interativo Comuniquese, no qual as imagens de uma câmera na praça central ou num bairro popular se alternavam com as de outra no estúdio, onde ficava o prefeito, ou um vereador, ou o presidente de uma associação de bairro. O mesmo se passava em Angra, e as duas cidades conversavam ao vivo durante duas horas. Para fazer aquilo, em 1992, a Globo precisaria de não-sei-quantos caminhões e anunciantes. Após o período de instalação, ocupei-me mais diretamente da unidade de Paraty. A cidade, com apenas 25 mil habitantes, tinha sua televisão própria, feita basicamente por pessoal local. Durante a fase experimental, em 1990, tratamos de formar as pessoas. Selecionei Paulo César, um fotógrafo, e Dinho, pescador e dono de bar, sem nenhuma experiência técnica, para um estágio de três meses na Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba. Quando eles voltaram, assumiram as áreas de fotografia e edição da Eco TV. Marília Alvim, minha mulher, deu aulas de produção e edição. Além de mim, o único pro-fissional de fora que se integrou à equipe foi a minha filha Lia Capovilla, formada em cinema e TV pela FAAP. Ao visitar-me, ela ficou encantada com o projeto. E com a cidade. Tanto que lá se instalou definitivamente, casou-se e virou cidadã de Paraty. Ela é mãe de Nina, minha única neta até agora (2006). O trabalho com a população, tanto atrás como diante das câmeras, transformou a Eco TV numa instância social e politicamente importante. Os moradores já não levavam suas questões à prefeitura, mas à emissora. Uma vez por mês, de dentro da Câmara dos Vereadores, transmitíamos os debates ao vivo. A população se convertia em agentes ativos de informação, ao invés de meros receptores passivos. A mobilização era visível – e nosso orgulho também. Depois de algum tempo de idas e vindas semanais, resolvi mudar-me com Marília para uma casa à beira do rio, em Paraty. Lá vivemos pouco mais de dois anos. De volta ao Rio de Janeiro, em 1994, ainda coordenava as quatro unidades. Mas a partir daí, o projeto entrou em colapso. Desliguei-me em 1996. Continuei, porém, afetivamente ligado à cidade. Isso contribuiu para que a ela retornasse, em 2002, a bordo dos delírios de Harmada. Capítulo VI Ensinando a jogar Não era fácil derrotar Paulo Emílio Salles Gomes. Em 1966, sua proposta de incluir o cinema na nova Escola de Comunicações Culturais da Universidade de São Paulo (ECC/USP) não foi bem recebida pelo conselho universitário – para quem o cinema ou era subversivo, se brasileiro, ou mero entretenimento, se estrangeiro. Paulo Emílio formou uma aliança com Antônio Candido, Sábato Magaldi e Décio de Almeida Prado para defender a idéia. Se a USP estava absorvendo a Escola de Arte Dramática do Alfredo Mesquita, por que o cinema haveria de ficar de fora? Paulo Emílio venceu e logo formou com Roberto Santos, Rudá de Andrade, Lucilla Bernardet e Jean-Claude Bernardet um grupo de trabalho para planejar o curso. Já então desligado da Cinemateca Brasileira, fui convidado a entrar nesse time. O modelo da ECC (futura ECA) inspirava-se na experiência de Paulo Emílio e Nelson Pereira dos Santos no Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília (ICA/UnB). A rigor, desse grupo, somente Paulo Emílio e Jean-Claude tinham prática pedagógica. Quando o curso se estabeleceu, em 1967, a primeira turma de alunos incluía Marília Franco, Aloysio Raulino, Plácido de Campos Jr., Ismail Xavier, Walter Rogério, Djalma Limongi Batista, João Cândido Galvão, Jan Koudela, Eduardo Leone, Roman Stulbach e outros. Roberto Santos e eu lecionávamos realização, enquanto Paulo Emílio, Rudá e Jean-Claude ensinavam história do cinema e análise de filmes. A meta de promover um ensino multidisciplinar, com diálogo íntimo entre teoria e prática, não foi atingida nesse primeiro momento. Enquanto o ICA de Brasília unia as pessoas, a ECC de São Paulo parecia separá-las. Os alunos de comunicação não se integravam com os de outras áreas. Nem mesmo os de cinema se encontravam com os de rádio e televisão, todos espalhados num câmpus imenso e cheio de mato. Comunicação era o que menos se via. Não tive tempo de esquentar a cátedra. Em meados de 1968, fui requisitado para participar do trabalho de reestruturação do curso de cinema da UnB. O clima político era dos mais pesados em Brasília. O ICA estava paralisado por uma greve de alunos, que exigiam a demissão dos professores impostos pela ditadura em 1965. A meu ver, essa foi a primeira greve do regime militar. A comissão – bem ampla, com gente de vários Estados e diversas áreas culturais – tinha ouvido as reivindicações dos alunos e as endossado em carta ao reitor. Os professores, de fato inabilitados para a função, foram demitidos e o curso recomeçou do zero. Mas outra tempestade nos esperava na forma de novas perseguições políticas. A UnB foi invadida, alunos e professores foram intimidados militarmente. Pouco depois da decretação do AI-5, eu e outros professores tivemos nossos contratos rompidos. A universidade foi fechada. Meus pertences foram apreendidos no hotel e tive de voltar a São Paulo sem nem mesmo a carteira de identidade. Isso acabou constando da minha ficha no DOI-Codi da época e é objeto de um processo que ainda movo para ser ressarcido pela interrupção da minha atividade regular. No segundo semestre de 1969, eu retomava meu lugar na USP para um período excepcionalmente ativo em matéria de ensino e realizações cinematográficas, que durou até 1973. Mas o curto interregno brasiliense também me trouxe algumas alegrias. Por exemplo, a de levar o grande fotógrafo Fernando Duarte para a UnB, onde ele entraria como professor e viria a dirigir o Departamento de Cinema e Fotografia. Ou a de ver nascer a carreira de Hermano Penna, funcionário da universidade que se engajou no projeto de documentar com os alunos uma momentosa Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI do índio. Os filmes que realizei com os estudantes, em Brasília e em São Paulo, são as melhores e mais duradouras lembranças dessa minha primeira floração como professor de cinema. Digressões no planalto central O Hospital Distrital de Brasília foi de capital importância na retomada do curso de cinema da UnB, em 1968. O ICA era um conjunto de salas vazias, onde não se encontrava sequer uma humilde coladeira. Mas, no hospital, localizamos uma caixa fechada contendo uma Arriflex 16 mm novinha em folha, com um jogo completo de lentes e um sistema de captação de som. Adquirida para filmar cirurgias, nunca havia sido usada. Fizemos um acordo e levamos a câmera para a universidade. Conseguimos também um Nagra de alta qualidade, pertencente a um grupo de pesquisadores norte-americanos que investigava línguas indígenas, embora suspeitássemos que fossem espiões infiltrados na universidade. Para exercitar o uso desse equipamento, resolvemos documentar a CPI do índio, com o título provisório de Rio do Sono. Obtida a autorização, decolamos num DC-3 junto com parlamentares e repórteres de vários jornais, numa expedição rumo ao Norte do país. Houve três viagens, das quais só participei da primeira. Estivemos em Marabá (AM), Tocantins (então Goiás), no Rio Araguaia, Barra do Corda (MA), entre outros lugares. Lembro-me que, em Marabá, soubemos do desaparecimento de um padre italiano durante visita à aldeia dos índios xicrins. Olímpio Serra, antropólogo da Funai que coordenava os deslocamentos da CPI, resolveu sair à procura do padre. Nós o acompanhamos. Enquanto sobrevoávamos uma imensa área verde, avistamos um aviãozinho branco cravado nos galhos de uma árvore. Pousamos perto da aldeia e logo fomos cercados pelos índios nus. Eles preparavam uma festa. As mulheres pintavam os homens. Nós filmávamos o que podíamos. Cerca de quatro horas depois, nos despedíamos. Mas os índios exigiam trocar mais presentes. Queriam a câmera, o Nagra e coisas do gênero. Em lugar disso, oferecemos os únicos itens que podíamos dispensar: as roupas do corpo. Regressamos a Marabá de cuecas, mas cheios de cocares, colares e o diabo a quatro. Anos depois, soubemos que os xicrins viviam em cima da maior mina de ferro do mundo, Carajás. De lá foram deslocados e passaram a reivindicar as terras que lhes foram tomadas. Hermano Penna acompanhou também as outras viagens e, posteriormente, montou o material que sobrou do que foi apreendido durante a invasão da UnB. Por sorte, muitos negativos estavam no laboratório da Rex Filmes. Daí ter sido possível finalizar o documentário CPI do índio. Nessa mesma época, Oscar Niemeyer visitou Brasília pela primeira vez desde o golpe de 1964. Ele concordou em dar um depoimento à turma do ICA. Fernando Duarte fez a câmera, eu fiz o som e o Instituto dos Arquitetos patrocinou. Pedimos a Oscar que redesenhasse seus croquis diante da câmera, o que se tornaria uma forma recorrente de documentar o grande arquiteto. Ele quis registrar uma espécie de aula magna, em inglês, para atender ao pedido de uma universidade estrangeira. Parte do material ficou assim na edição final de Vladimir Carvalho, que deu ao filme o título de Itinerário de Niemeyer. A origem do material principal, incluindo filmagens da cidade, é esse documentário-escola realizado com os alunos. Eu ainda voltaria a Brasília para outros trabalhos. Em 1999 e 2000, participei de reuniões regulares com vistas à aprovação de um edital de produção para o Pólo Audiovisual, que estava paralisado. A freqüência na ponte-aérea acabou me valendo um convite de Maria Helena Pinheiro, filha do engenheiro Israel Pinheiro, para fazer Brasil, Brasília e os brasileiros. O filme era associado à exposição homônima, que ocupou o saguão do Itamaraty em setembro de 2003. A partir de pesquisa do meu amigo Jarbas Marques, historiador que intermediou esse contato, entrevistei pessoas ligadas à construção da cidade. No fim das contas, tínhamos bons depoimentos até sobre a Comissão Cruls (1892) e a Expedição Poli Coelho (1947), pioneiras no estudo do local para a construção de uma suposta nova capital. Mas faltava-nos o material de arquivo, que fomos buscar com Tania Quaresma. Com ele vieram outros depoimentos interessantes. Ozannah Campos Guimarães, por exemplo, conta que o Plano Piloto foi delineado nas terras de sua família. A filha de Lúcio Costa revela que o pai concebeu a cidade durante uma viagem de navio. Oscar Niemeyer quebra o tom elegíaco do filme com seu desencanto sobre a utopia social que Brasília não soube ser. Na verdade, em parte discordo do meu querido companheiro Vladimir Carvalho quando ele, em Conterrâneos velhos de guerra, questiona Niemeyer por omissão diante do massacre de operários na época da construção de Brasília. Oscar não tinha qualquer ingerência nas obras, cuja inteira responsabilidade era de Israel Pinheiro. Eles não contrataram policiais para fazer a suposta segurança, mas um bando de jagunços das redondezas. “Todos vamos ficar loucos” De volta aos anos 1960, eu retornava à USP em 1969. Então coordenei com Rudá de Andrade a realização coletiva de dois documentários curtos dos alunos de cinema. Ensino vocacional, primeiro filme da escola, foi financiado pela Comissão Estadual de Cinema e se voltava para experiências inovadoras da própria USP. Jorge Bodanzky também estava na equipe. Em seguida, fizemos O pão nosso de cada dia, enfocando os bastidores do Centro Estadual de Abastecimento (Ceasa). Vibrávamos com a nova câmera Arriflex 35 mm recém-importada para o curso, dotada de uma lente super-grande-angular. Com ela e ampla participação dos alunos, rodei O profeta da fome, que foi um verdadeiro filme-escola. Se comparar com a barra política cada vez mais pesada em 1971, até que não foi tão extenuante acolher na minha casa, durante dois meses, o Sérgio Bianchi recém-chegado do Paraná. Do lado de fora, tudo era uma crise de desconstrução das relações. O cerco da ditadura apertava e as pessoas se dispersavam numa multiplicidade de caminhos. A meu ver, essa síndrome está bem expressa na colcha de retalhos que seria o longa-metragem coletivo Vozes do medo. A gênese desse filme, hoje meio mítico, se deu na cabeça de Roberto Santos, em 1970. Amigo de César Mêmolo, ele levantou a produção junto à Lynx Filmes. Queria fazer uma radiografia do momento político-cultural com o tema do medo entre os jovens. Chamou alunos e professores da ECA, além de amigos, para dirigirem diferentes episódios. Não houve nenhuma reunião prévia. Nosso único compromisso era com a liberdade de escolha e a sinceridade em expressar o que vivíamos. O tema do medo era mais uma inspiração que uma obrigação. Tanto que o resultado são blocos a tal ponto livres que simplesmente não se integram. Como ficou, Vozes do medo foi uma montagem de pedaços que não conversam, forjados por pessoas desconectadas entre si. Não havia muito em comum entre, por exemplo, o projeto do cenógrafo Cyro del Nero, o meu e o de Hélio Leite de Barros, um crítico católico. O conjunto abrangia, ainda, um desenhista, um diretor de jingles e um animador. Meu episódio chamava-se Loucura e se passava em torno de duas mulheres e uma jaula. Depois de O profeta da fome, esta era mais uma investida kafkiana, na linha de O artista da fome. No início, a mulher 2 está presa e nua. A mulher 1, vestida, é sua carcereira. Esta oferece à outra, sucessivamente, pão, espelho e música. A cada aproximação, a prisioneira consegue arrancar uma peça de roupa da carcereira. Aos poucos, a mulher 2 vai assumindo o controle da situação, até trocar de lugar com a mulher 1, no curso de uma espécie de dança erótica. Por fim, é a mulher 2 que chicoteia a mulher 1. Na concepção expressionista que adotei, despir a carcereira significava retirar-lhe o poder. Mediante esse gesto, a torturada transferia o status de louca para a outra, supostamente sã. Com Hélio Silva na câmera e película preto-ebranco, filmamos a performance das mulheres num único dia, num pátio circular perto da Estação da Luz. O resto foi feito em table top: fotos de torcedores de futebol, manifestações de rua, repressão policial, movimento jovem. Um narrador afirmava: “Nossa prisão parece não ter grades. Nela, o desespero e a loucura se manifestam de todas as formas”. O corolário era que, sendo a loucura fruto do sistema de classes, mais dia, menos dia, todos haveríamos de ficar loucos. Quando o projeto geral começava a tomar forma, Roberto Santos e Hamilton Almeida Filho encontraram uma maneira de conferir-lhe alguma unidade. Vozes do medo seria, então, uma revista cinematográfica. Os episódios teriam funções correlatas às seções de uma revista: um trailer-sumário, um documentário-reportagem, um anúncio publicitário, um ensaio poético, e assim por diante. Mas nem a justificativa jornalística, nem a ausência de qualquer palavra de ordem política impediu que a censura mantivesse o filme engavetado por dois anos. Indicado pelo Instituto Nacional de Cinema para representar o Brasil no Festival de Berlim de 1971, não pôde embarcar e repetir a façanha clandestina de O profeta da fome. Foi liberado em 1973 com o corte integral de dois episódios: Piá não sofre? Sofre, do próprio Roberto, e A santa ceia, de Aloysio Raulino. Segundo Roberto, essas supressões tornaram o filme ainda mais desconjuntado (uma história mais detalhada de Vozes do medo é oferecida por Inimá Simões, no seu livro Roberto Santos – A hora e a vez de um cineasta). Vozes do medo era a representação simbólica de todas as vozes amordaçadas pela repressão naquele duro período que antecedeu a morte de Vladimir Herzog. Pouca gente o viu, quase ninguém o analisou. Mas, para um conhecimento profundo daquele momento político, esse filme talvez seja mais interessante do que a maioria dos seus contemporâneos. Em busca da escola ideal Desde que passei por Santa Fé, nunca me afastei totalmente de Fernando Birri. Ainda hoje (2006) trocamos emails. Em 1986, encontrei-o num momento de glória, durante a inauguração da Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, em Cuba. Três anos mais tarde, eu e Marília Alvim fomos convidados a dar um curso de quatro meses para os jovens que, como sempre, são selecionados em toda a América Latina. Eu dividi o curso de direção com o argentino Gerardo Vallejo, enquanto Marília ministrava o de edição. Antes de as aulas se iniciarem, tomado pelo entusiasmo de estar ali, em plena Escuela, resolvi escrever uma carta de saudação aos alunos em bom portunhol. Eis o que foi afixado no quadro de avisos: Hacer cine Guimarães Rosa, un gran escritor brasileño, ha dicho cierta vez: “Vivir es muy peligroso”. Yo diria hoy que hacer cine si es muy peligroso, no solo para la salud del cuerpo, como para la salud del alma. No se hace cine sin correr ciertos riesgos. Algunas veces se pone la vida em juego, quando no se muere por no se hacer lo que se há soñado. Hacer cine no es uma operacion cientifica, matemática, cirurgica, donde el agente esta imune y el espacio esterilizado de antemano. Por todo que he vivido afirmo que hacer cine no es uma acción prepotente, ostensiva, exibicionista, cargada de vanidad, si no, por lo contrario, es um acto de humildad. Um acto de respecto por la realidad y por la sociedad para la qual todo el cine es hecho, lo que no quiere decir submisión, pasividad, pereza. Hacer cine es buscar permanentemente la renovación, pues nada se fija en el cine, y por mas que se intente aprisionarlo dentro de las formulas de las interpretaciones estéticas, el jamas deja de moverse. Hacer cine en el Tercer Mundo es um acto de coraje. Por esto y por mucho mas que es hacer cine que yo los saludo, jovenes cineastas del Nuevo Mundo, y abro ahora nuestro interminable y fundamental dialogo. Gracias, Maurice Capovilla, S. Antonio de los Baños, 18 de septiembre de 1989. A turma, entre 30 e 35 alunos, já estava no segundo ano da escola e dividia-se claramente entre los adaptados e los irrecuperables. Como que para fazer jus à minha tradição, acabei ficando com esses últimos, cerca de 12 alunos que não se ajustavam à escola por motivos de cultura ou de comportamento. Não era o caso de impor-lhes uma disciplina ou obrigá-los a comparecer às aulas. Ao contrário, tentei adequar-me às suas conveniências. “Em que horários vocês querem trabalhar comigo?” – era assim que eu fazia as propostas. Explorei o fato de serem diferentes para formar uma espécie de comunidade. Depois de alguns dias, eles continuavam a faltar às outras aulas, mas vinham às minhas. Começaram a se organizar. Sugeri, então, fazermos um filme de ficção baseado na novela Enquanto a noite não chega, de Josué Guimarães. Roteiro e direção seriam deles, com supervisão minha e do fotógrafo José Medeiros. Não lhes disse que já havia roteirizado no Brasil a história da cidade abandonada onde o coveiro espera a morte dos dois últimos habitantes, um casal de velhinhos. O roteiro deles resultou, é claro, completamente diverso do meu. Filmamos em 16 mm numa pequena fazendinha, dentro do perímetro da escola. Mas só pude conferir o resultado no ano seguinte, 1990, quando voltei para mais uma pequena temporada e o filme estava pronto. Nessa segunda vez, cheguei a tempo de influir na formatação do programa letivo do primeiro trimestre, de setembro a novembro. Lembro que lá estavam Marília Franco, como diretora docente, e Orlando Senna, ministrando dramaturgia e roteiro, e que se tornaria o novo diretor da escola no ano seguinte. Animado pela experiência da TV comunitária em Paraty, propus criar uma programação de TV, utilizando o caminhão de externas, os dois estúdios e o equipamento de vídeo disponíveis na escola. Paulo José e Walter Lima Jr., em anos anteriores, tinham feito alguns programas, mas nada como um projeto sistematizado de programação que explorasse em profundidade a linguagem do veículo. A aprovação do Birri foi decisiva para colocarmos em prática a chamada TV del Tercer Mundo. A turma agora tinha 83 alunos. Entre eles, Vicente Ferraz, futuro diretor do documentário Soy Cuba: O mamute siberiano, e Guigo Pádua, que mais tarde viria a ser presidente nacional da Associação Brasileira de Documentaristas. Na primeira semana, todos estiveram juntos numa oficina geral sobre a linguagem da TV. A partir daí, foram divididos em seis grupos. Cada conjunto era incumbido de criar um programa de telejornalismo, um documentário, um capítulo de novela, um musical, os breaks comerciais, vinhetas de abertura e por aí afora. Eles se subdividiram em grupos e passaram a ter oficinas de roteiro, direção, produção, fotografia, som e edição. Seis semanas para aprender e seis para botar a mão na massa. À medida que cada trabalho ia sendo concluído, fazíamos a exibição para a escola e toda San Antonio de los Baños, por meio de uma antena de alcance reduzido. Foi uma prática das mais curiosas. Houve, naturalmente, os alunos que se apegaram à tradição de TV que melhor conheciam. Mas, de maneira geral, eles se comportaram com grande criatividade e uma imensa liberdade para criticar o veículo, a escola, e até satirizar a figura muito peculiar do Birri. Certamente compreenderam que a técnica não é algo monolítico, mas sim distribuída em função do objetivo. A luz de um musical, por exemplo, não é a mesma de um telejornal ou de uma cena de ficção. A TV é como um trem que transporta muitos formatos e relações técnicas diferentes. Eu sempre fui contrário à forma burocrática de ensinar, sem vínculos com a prática da realização. Um corpo coerente precisa ter cabeça, tronco e membros. Nem mesmo em Cuba, nesses primeiros anos, vi uma harmonia interna desejável entre teoria e prática. Por outro lado, da experiência infelizmente incompleta do ICA/UnB surgiu a convicção de que uma escola de cinema não pode se desenvolver isolada das outras escolas de arte, sob pena de formar especialistas do já feito e consagrado. A rigor, a questão é ainda mais profunda. Continuo a subscrever o que disse num artigo publica-do no número 19 da revista Cinemais, em 1999: o ato criador não tem regras, nem conteúdo, nem forma. Não pode ser aprisionado em currículos, sistematizado, enfim, não pode ser ensinado. Mas pode ser provocado por alguns métodos a partir dos quais nasce aquele sentimento de potência, de confiança, de independência, que é um rompimento com tudo o que já foi de antemão estabelecido. Não por acaso, é um ato revolucionário, portanto extremamente crítico, libertário e, por isso, muitas vezes combatido. Continuei a perseguir esses objetivos quando fui chamado, junto com Orlando Senna, para imaginar uma escola no novo espaço do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza. Era 1995 e, do projeto, só existia um arrojado plano arquitetônico para a velha área portuária da cidade. Seu principal idealizador, Paulo Linhares, então secretário de cultura do governo Ciro Gomes, via a necessidade de uma escola de formação artística para ocupar aquele espaço. Surgia, assim, o Instituto Dragão do Mar. Eu atuava como diretor-executivo do instituto, enquanto Orlando se dedicava integralmente à escola de dramaturgia para teatro e cinema. O seu curso tornou-se o epicentro do projeto, pois gerou os dramaturgos e os roteiristas que estimulavam a produção das peças de teatro e dos curtas-metragens do Dragão. Meu modelo era o ICA da UnB, mas tive dificuldade para desenvolvê-lo sem ter um espaço de convergência dos alunos. De início, tínhamos núcleos separados em instituições como o Teatro José de Alencar, o Museu da Imagem e do Som e o prédio reformado da antiga televisão estadual, onde se instalaram os cursos de design e audiovisual. O conjunto do Centro, como hoje se conhece, só seria inaugurado em 1999. A grande novidade do instituto foi a concepção de oficinas progressivas, com vistas à realização de um projeto final, com cinco curtas. Tínhamos um belo estúdio e todo o equipamento essencial. Levamos Geraldo Sarno, Ruy Guerra, Sérgio Sanz, Carlos Ebert e muitos outros para dar aulas. Na área de teatro popular, Amir Haddad ficou conosco por cinco semanas. O ideal de interdisciplinaridade começava a se concretizar. A partir do segundo ano, os estudantes de dramaturgia já se encaminhavam para os cursos de teatro ou de audiovisual, como dramaturgos ou roteiristas. O ideal maior do instituto era ser um agente transformador da realidade regional. Havia, então, oficinas básicas para a população de baixa renda, financiadas pelo Fundo de Apoio ao Trabalhador (FAT). Eu viajava muito pelo interior do Estado, coordenando cursos básicos nos municípios, que eram parte do mesmo projeto. Em dois anos, atendemos a cerca de 40 municípios e em torno de 817 mil pessoas. Estimulamos a profissionalização de grupos de teatro amador, transformamos exímias costureiras em estilistas populares, formamos maquinistas e cenotécnicos para cinema a partir da mão-de-obra local. A articulação do instituto com o também nascente pólo de cinema do Ceará fez com que recém-formados cumprissem estágio na produção de filmes como A ostra e o vento, de Walter Lima Jr., e Bela Donna, de Fábio Barreto, além de muitos projetos locais. É verdade que nem sempre eram bem recebidos por profissionais preconceituosos. Responsável pela condução política do instituto, envolvi-me relativamente pouco com as aulas. Mas supervisionei a realização de alguns curtas de fim de ano e tentei levantar a produção de um filme-escola, nos moldes de O profeta da fome. Tratava-se de uma adaptação de Dona Guidinha do Poço, o único romance publicado pelo escritor cearense Manoel de Oliveira Paiva, falecido aos 31 anos. Tragédia sertaneja vazada em linguagem realista, já foi objeto do desejo de vários cineastas além de mim. Eu tinha um roteiro pronto e queria chamar Othon Bastos e Patrícia Pillar para os papéis centrais. A figura do mestreartista, que também cria obras com a assistência dos alunos, fazia parte do processo pedagógico do Dragão do Mar. Mas o advento de um clima conflituoso na política local acabou selando a minha demissão e a do Orlando, em meados de 1999. Ironicamente, isso aconteceu poucos meses depois da inauguração oficial do Centro e da minha mudança, supostamente definitiva, para um bonito apartamento a duas quadras da Praia de Iracema. Em todo esse processo, mais em função dos erros que dos acertos, aprendi de uma vez por todas como montar uma escola. Estou colocando isso em prática uma vez mais na Usina de Arte de Rio Branco, no Acre. Foi durante uma viagem à Amazônia para ministrar uma oficina de roteiros no programa DOC-TV, em 2004, que conheci as obras da Usina. Idealizada pelo vice-governador do Acre, Arnóbio Marques de Almeida Junior (Binho) para ocupar uma antiga fábrica de processamento de castanhas, é uma ambiciosa escola de artes que pretende integrar audiovisual, música, teatro e, num segundo momento, dança e artes plásticas. A inspiração deles era justamente o Dragão do Mar. O projeto é admirável, sobretudo para um Estado que não tem tradição cinematográfica e cuja cultura está tradicionalmente ligada à natureza e aos índios. Aquela visita redundou num convite para assessorar a criação de um curso de cinema e vídeo para o Núcleo Audiovisual e de Produção Digital da Usina. Desenvolvi um programa de ensino adaptado à realidade local, visando a produção para televisão. O currículo será dividido em trimestres: no primeiro, um banho geral de iniciação cinematográfica; no segundo, teoria e prática do documentário; em seguida, a criação de uma programação de televisão, a TV Usina; no quarto e quinto trimestres, já no segundo ano, o cinema de ficção. Ao final de cada período letivo, uma oficina de imagem e som vai reunir os alunos de música, teatro e cinema em torno de trabalhos comuns e livres, sem ascendência de professor. No início de 2006, a escola estava pronta, com abertura prevista para o mês de maio. Para o restante do ano, programamos uma série de oficinas básicas integradas. Além dos alunos selecionados, faremos oficinas especiais para reciclagem e desenvolvimento técnico de realizadores locais. Pretendemos trabalhar, em paralelo, com os alunos formais e com a turma do audiovisual na comunidade. Sempre no espírito de um ensino descentrado e democrático. Capítulo VII Harmada, o retorno Um país paralisado pelo medo e pela indefinição de sua própria identidade. Essa era a minha percepção do Brasil no alvorecer do século 21. Não falo do medo físico, do velho medo da ditadura, nem mesmo do medo da violência. Refiro-me ao estado da arte. Falo do medo do artista diante da impossibilidade de construção e desenvolvimento de um trabalho de risco. A arte está com medo da realidade. Sem coragem de transgredir regras, a arte cinematográfica apenas copia a realidade. O processo de experimentação e a individualidade criadora estão amordaçados. Eu também sinto medo de não conseguir mais trabalhar, de ser superado por uma linguagem hegemônica, diante da qual todos têm que se ajoelhar. Inverter o processo de narrar significa correr o risco de nem mesmo exibir seu trabalho. Por incrível que pareça, para quem vem da década de 1960, era muito mais fácil fazer cinema. De lá para cá, a profissionalização caminhou no sentido da mercadoria. Tudo se tornou impessoal, mecânico, endurecido, determinado pela economia. Já nos anos 70, eu me insurgia contra os debates cinematográficos centrados na economia, no mercado e na sobrevivência, que deixavam de lado a discussão estética, ou o cinema como realização do sonho de cada um. Resultado ou não desse distanciamento, o fato é que estive afastado da direção de cinema por mais de 20 anos. Nunca parei de trabalhar, é claro, nem me angustiei por ficar longe da película. Fiz televisão e vídeos, dei aulas e oficinas, ajudei a montar escolas. Não estava mesmo receptivo ao cinema, tal como era feito. Mas a verdade é que o fantasma do ostracismo começava a se insinuar quando decidi fazer Harmada. Algo semelhante, embora por razões diferentes, aconteceu com o ator Paulo César Peréio. Quando leu o roteiro de Harmada, em 2001, ele se viu espelhado, a par de sua vida atribulada. Retornara havia pouco do Centro-Oeste para o Rio de Janeiro, após um longo período de reclusão e depressão. Ainda não reencontrara os palcos, nem tinha programa de TV. Quando João Gilberto Noll põe na boca do personagem a frase: “Os verdadeiros atores frutificam na ausência”, ela parece se aplicar também ao Peréio – e, de certa forma, a mim. Trânsfugas da realidade Uma história nem sempre passa por nós no momento certo de acolhê-la. Conheci o livro de Noll em 1993, mas não fui tocado por ele. Nem cheguei a terminar a leitura e o releguei à estante. Sete anos mais tarde, me sentia um cineasta sem histórias. Bati o olho na lombada do livro, puxei o e devorei-o numa só arrancada. De repente, na história daquele ex-ator que se apresenta num abrigo de mendigos e cria um monólogo teatral com sua filha adotiva, estava tudo o que eu queria dizer. Ali estava uma história sobre contar histórias. O “ator” de Harmada apareceu, então, como o tipo de personagem que costuma me atrair: perplexo, sem destino certo, perambulando pela vida. Mas enquanto a maioria de meus persona-gens está em processo de desconstrução, este se reconstrói aos poucos. Na fragilidade da sua condição humana, ele encontra o fermento da superação. Havia ali um convite a um momento de reflexão e reencontro com minhas antigas convicções. Além disso, o livro trata metaforicamente do fazer artístico. Em vários aspectos, esse ator tem um percurso parecido com o meu. Como ele, sou uma espécie de trânsfuga da realidade – da minha realidade. Não sou carioca nem paulista. Hoje posso estar em Curitiba, amanhã no Acre, conforme as oportunidades de trabalho. Como essa criatura do Noll, eu estava ensaiando um retorno à cena. Decidido a levar Harmada para as telas, fiz um primeiro tratamento do roteiro e obtive do escritor carta branca para criar minha própria leitura. Prossegui com um enxugamento geral de ações e situações. Dividi a história em quatro blocos, cada um deles representando uma tentativa de ascensão e queda: o palco, o casamento, o asilo e o encontro com a filha. Não senti necessidade de inventar um passado para o personagem, como o fizera em O jogo da vida. Preferi deixar um vazio de informação para instigar o público. Se alguém ficasse no cinema até o fim, seria não tanto por gostar do filme, mas por querer saber onde ia parar aquela história. Seria uma armadilha para manter preso um espectador meio perplexo. Como esses livros de mistério que se lê no ônibus e se pergunta: “Mas que diabo é isso?” Introduzi textos adicionais, já que, no livro, o ator não tinha textos teatrais definidos. Usei fragmentos de Hilda Hilst (nas primeiras cenas das meninas), trechos da Cruzada dos meninos, de Brecht, e de El gallo de oro y otros textos para el cine, de Juan Rulfo (monólogo final sobre a fome). Noll, elegantemente, jamais questionou esses acréscimos alheios. O tom teatral do romance seria integralmente mantido. Os atores, mesmo quando estivessem fora da representação, estariam representando a si mesmos. A câmera apenas captaria uma espécie de auto-exposição dos personagens. Na hora de escolher o ator para o papel desse homem em busca de um reencontro consigo mesmo e da retomada do domínio sobre a sua identidade artística, eu não via outra opção além do Peréio. Desde a dublagem do Mojica no Profeta, eu não tinha voltado a trabalhar com esse especialíssimo intérprete. Convidei-o quando ele ainda estava em Brasília. Depois que se mudou para o Rio de Janeiro, voltei a insistir. Ele continuava envolvido com drogas e tornava difícil qualquer conversa conseqüente. Cheguei a considerar Raul Cortez para substituí-lo. Mas, antes resolvi fazer um último apelo, em encontro marcado num bar: “Esse filme depende totalmente de você, Peréio, não tenho alternativas. Estou inseguro e preciso do seu esforço”. Ele me olhou demoradamente, com sua expressão de sátiro triste, e disse: “Você está me pedindo que fique limpo?” Eu concordei. De imediato, ele despejou o resto do chope no chão e prometeu: “A partir de hoje, vou ficar limpo”. Palavra de Peréio. Um processo de limpeza física e espiritual começou naquele momento. Ele passou a acordar cedo, entrou para a hidroginástica, reatou com uma antiga namorada, fez uma participação numa peça do Teatro Oficina. Na filmagem, acordava antes de mim, mergulhava no mar, esforçava-se para decorar os textos enormes. As pessoas passaram a comentar: “Nossa, o Peréio está uma moça!” Equipe e elenco reunidos para o filme tinham todo o jeito de comunidade. Em sua maioria, éramos amigos de longa data. Marília, minha mulher desde 1982, foi a produtora mais eficiente, além de mantenedora do alto astral. Com um tratamento amoroso e respeitoso, focado nas pessoas e não nas funções, ela conseguiu dar unidade à equipe. Nunca havíamos trabalhado juntos, a não ser por uma montagem alternativa que ela fez para O boi misterioso e o vaqueiro menino, da qual jamais se fez cópia. Jogamos tudo no projeto de Harmada, a ponto de vivermos uma crise financeira. A produção estava orçada em 1 milhão de reais, dos quais só conseguimos captar R$ 600 mil por intermédio do edital do MINC para filmes de baixo orçamento e do apoio da Petrobras na distribuição. Mário Carneiro, velho companheiro com quem nunca tinha trabalhado, foi meu diretor de foto grafia, formando dupla imbatível com a câmera de Dib Lutfi. Marília Carneiro e Karla Monteiro realizaram um trabalho primoroso na busca do figurino adequado à proposta do filme. O cenógrafo Carlos Liuzzi, o diretor de som Juarez Dagoberto, enfim, todos tínhamos ligações afetivas. Nossas remunerações de chefes de equipe eram iguais. Costumávamos dizer que formávamos “uma equipe de grandes amadores”. E o cenário não poderia ser mais familiar que o da minha querida Paraty. Empreendimento de família Nos dias úteis, quando os paulistas ricos estão longe de suas casas de veraneio, o bairro histórico de Paraty fica entregue às brincadeiras das crianças e a uma vida ainda pacata. Filmar ali é uma tranqüilidade. Minhas relações com a cidade eram ótimas desde o trabalho com a TV comunitária nos anos 1990. Minha filha Lia mora lá, os amigos estão em toda parte. Dinho, meu parceiro na Eco-TV, foi o motor da produção local. As cenas do asilo e da cadeia foram rodadas no Solar da Boa Vista, onde nasceu a mãe de Thomas Mann. Em outra construção do centro da cidade, fizemos a casa das moças. Logo após a chegada, começamos a convocar pessoas da terceira idade para formar o grupo de teatro que atua no filme. Havia não só atores amadores, como também donas de casa e moradores de um asilo de verdade. Temilton Tavares, que há muitos anos trabalha com teatro amador em Paraty, fez uma preparação corporal e vocal diária, estimulando-os a contar histórias. Amir Haddad passou dois curtos períodos com eles. O trabalho foi tão prazeroso que, após o filme concluído, eles mantiveram o grupo em atividade. Mário na luz e Dib na câmera eram a harmonia dos deuses. Entendiam-se como por mágica e cobriam-se mutuamente. Dos cinco planos-seqüência no teatro dos velhinhos -talvez nosso maior desafio técnico – quatro foram feitos de primeira, sem necessidade de repetição. Não estávamos interessados em nenhum tipo de naturalismo. Partindo da luz natural, Mário criava uma ambientação e uma palheta cromática mais teatrais, condizentes com o figurino e a cenografia. Os figurinos do Peréio eram uma metáfora do processo do personagem: ele começa nu e termina com um Armani. Também com a Cris, filha adotiva do ator, experimentamos uma interação entre atriz e personagem. Patrícia Libardi era uma talentosa recémformada da Escola de Teatro Martins Penna, sem qualquer experiência profissional. Filmamos com ela na ordem cronológica, a fim de que ela se construísse junto com a personagem, no contato com Peréio, comigo e com as outras atrizes. A operação atingiu o clímax na cena da praia. Cercada por uma intensa movimentação dos técnicos para debelar os efeitos do sol, Patrícia travou assim que a câmera começou a rodar. Mas quando desatou, foi tomada por uma emoção fortíssima, que não estava preparada para segurar. Vieram o choro, os soluços e, em seguida, uma recomposição em torno do texto. Pensei em mandar cortar, mas felizmente deixei rolar. A cena assumiu a expressão do seu relativo despreparo técnico para usar a emoção. As instruções que o ator passa a Cris são puro Brecht. Mas são também puro Peréio. Ao final, todos saem do teatrão para o meio da rua. O teatro de rua abraça a todos. Ao final de cada dia de filmagem, nas três semanas de Paraty, nos reuníamos no hotel em torno de uma garrafa de uísque e algum vinho. Ou seja, a produção se encarregava de suprir nossas necessidades etílicas básicas. Para alguns, era uma estratégia de sedução pelo vício. Marília providenciava o socorro integral, tendo sempre à mão comprimidos de Lexotan, Allegra e spray anti-mosquitos. No Rio de Janeiro, filmamos nos teatros da UERJ e da Escola Martins Penna, na casa de Oscar Niemeyer (as cenas com Cecil Thiré), no Campo de Santana (o encontro do ator com o menino) e nos Arcos da Lapa (o grandfinale). Meus filhos Lia e Matias também participaram desse empreendimento de família. Lia cobriu as filmagens para um website e colaborou no material de divulgação. Matias compôs a trilha sonora. Ele é músico vocacionado desde o início da adolescência. Meu pai lhe deu seu primeiro violino. Do violino ele passou para o banjo e vários instrumentos até fixar-se no trombone. Formou em São Paulo as bandas Sossega Leão e Heartbreakers, e hoje integra o grupo Havana Brasil. Talentoso, tem trabalhos para teatro, TV e cinema (no cinema, Matias assinou a trilha original de A causa secreta, de Sérgio Bianchi e O efeito ilha, de Luís Alberto Pereira, ambos de 1994). Sua trilha para Harmada procurou sonoridades ligadas a uma idéia de latinidade difusa, que busquei para os vários setores do filme. Inspira-se na famosa bandinha de Paraty, patrimônio musical da cidade. Na seqüência em que os velhinhos tocam, regidos pelo maestro Paulo Herculano, ninguém percebe que a música só foi composta e gravada depois, em cima das imagens. A ilusão de sincronia é perfeita. Essas filmagens foram talvez as mais tranqüilas da minha carreira na ficção. Normalmente, sou um ranzinza no set. Quando não vejo as coisas acontecerem de acordo com o meu ritmo, fico nervoso e reclamo muito. Não brigo, mas fico num estado lastimável. O temperamento às vezes me contradiz o método. Porque dirigir, para mim, não é impor, mas ser hábil. É escolher o ator certo, o que significa dirigir antes mesmo de dirigir. Dependendo do ator, gosto de trabalhar em mesa o sentido do texto, mais que sua expressão oral. Para cada ator, existe uma forma diferente de colocá-lo dentro da situação. Os técnicos que gosto de ter mais próximos de mim, numa filmagem, são o diretor de fotografia e a continuísta. Assistente de direção raramente funciona comigo. A maioria quer interferir além da conta na minha criação. Não chego a ser como o Visconti, que usava assistente de direção para buscar café, mas gosto de cada coisa em seu lugar. Creio que o ato de filmar é essencialmente solitário. Todos os colaboradores devem estar a postos com o melhor de si, mas a hora do OK é exclusiva do diretor. Na montagem, ao contrário, dependo do diálogo com o montador para refletir sobre um material que já é intrinsecamente imutável. Preciso compartilhar as idéias e entregar o filme à precisão do profissional, como aconteceu aqui com Marília, dona da intuição para o momento certo de cortar. Marília montou Harmada lado a lado comigo, como um ato de amor. Vejo como inseparáveis as relações de amizade e de trabalho. Meus amigos têm sido aqueles ligados ao cinema. Quando monto minhas equipes, dou preferência a pessoas que não sejam apenas bons profissionais, mas que tenham vínculo afetivo e relação de lealdade. Esse formato está no nascimento do próprio Cinema Novo. Eu jamais admitiria formar uma equipe por email e ser apresentado no set. O cinema se constitui de uma fusão de profissionalismo com amadorismo – este tomado aqui no sentido de se amar o que se faz. O amor pelo trabalho e a solidariedade levam ao encontro de soluções para os impasses e as carências da criação em equipe. Não basta jogar. É preciso jogar com prazer. É preciso ter nervos de aço A carreira de Harmada começou no Festival de Brasília de 2003, a memorável edição dos velhos poetas. O fato de não ter atirado copos de plástico na tela indica que o público brasiliense deve ter gostado do filme. E o júri concedeu a Peréio o prêmio de melhor ator. Resolvi adiar o lançamento porque, mesmo depois de pronto, o filme ainda estava em processo de captação. No fim das contas, a complementação do orçamento não veio e tivemos que arcar com parte dos custos, leia-se, contrair dívidas. Em 2005, com o mercado congestionado, preparamos a estréia para agosto, em três salas de São Paulo, e novembro, em uma única sala do Rio de Janeiro. Belo Horizonte e Brasília também viram o filme em cinemas comerciais. No resto do país, até o início de 2006, Harmada só era conhecido por causa das exibições no Canal Brasil. Do ponto de vista da realização íntima, fiquei satisfeito. Mal ou bem, concluí um projeto que ocupou quatro anos da minha vida. O filme recebeu ótimas críticas, mas não teve uma bilheteria significativa. O lançamento pela Riofilme foi afetado por carência de recursos e por uma certa ineficiência. Como, sozinho, não tenho poder para mudar esse processo, resolvi tocar a bola pra frente. Para fazer cinema brasileiro fora dos padrões dominantes, é preciso ter nervos de aço. E eu tenho. Nervos de aço é um projeto que venho desenvolvendo há mais de dez anos e que pretendo viabilizar o quanto antes. É de um melodrama a partir das canções do Lupiscínio Rodrigues. A maioria de suas letras diz respeito a um triângulo amoroso. Há sempre um homem traído e o responsável pela traição, ambos vítimas da mulher. Escrevi um roteiro com esses elementos, usando as músicas para contar uma história de amor com desenlace possivelmente trágico. E acrescentei uma quarta personagem, outra mulher, para incrementar a diversidade sexual do conjunto. A estrutura do filme será híbrida. Teremos um grupo que prepara um show musical com a obra do Lupiscínio. As discussões em torno do tema das músicas começam a interferir na vida de um quadrilátero amoroso dentro desse grupo. O passado dessas personagens também virá à tona, mesclando-se com uma observação mais documental dos ensaios do show. Vou depender de atores-músicos ou músicos-atores. Penso em trabalhar com artistas que tenham também experiência teatral. Tenho indicações de texto, mas não quero aprisionar ninguém em diálogos preconcebidos. Vamos criar espontaneamente dentro da linha que imaginei. Essa linha questiona a concepção rudimentar que Lupiscínio fazia da relação amorosa, atualizando-a para um momento em que as mulheres não mais aceitam o papel de cobra, eterno mote da traição, que o compositor lhes reservava. No filme, a realidade vai caminhar no sentido contrário do que dizem as músicas. Vai ser um encontro de gerações, classes e culturas diferentes. No início de 2006, eu ainda tentava captar patrocínios para Nervos de aço por meio das leis de incentivo e de editais. Sei que não é fácil encontrar crédito para projetos como esse, que eventualmente não compartilhem a estética e a temática mais em voga. O cinema, como expressão livre do pensamento, é uma arte em extinção. Na história do cinema internacional, sempre houve aqueles momentos nos quais a indústria se sobrepujou à criação individual. Basta ver o Méliès, que foi para o brejo depois que os fabricantes de projetores institucionalizaram o padrão do negativo de quatro perfurações. O advento do som, mais adiante, cassou a mobilidade e a intensa experimentação que vinham marcando o cinema silencioso. Depois veio a cor. E incluo aí mais dois elementos: os gêneros, formatos estabelecidos pela indústria para comercializar os filmes e os efeitos especiais, que criaram a dependência do computador. Mesmo com tudo isso, o cinema soviético pré-stalinista, as vanguardas dos anos 1920 e os cinemas novos dos anos 1960 foram momentos culminantes da livre invenção, porque descompromissados com a indústria. Hoje, ao contrário, o cinema está falando uma língua só. A pesquisa da linguagem audiovisual tornou-se periférica. As cadeias de multiplexes só querem o que se conforma à linguagem dominante. As pessoas, por sua vez, entram nessas salas para comer pipoca, jogar e falar ao celular. Perdemos o sagrado diálogo com o filme. Às vezes tenho a impressão de viver dentro de um estado autoritário anti-cinematográfico. É preciso ter nervos de aço. Documentário, produto nobre Mais que a ficção, os documentários brasileiros têm sido o espaço de renovação de experiências. Especialmente no período entre o fim da década de 1990 e o ano de 2002, deu-se uma abertura inédita do documentário para uma platéia mais ampla. Santo forte, de Eduardo Coutinho, foi um marco no contato com o público, dado fundamental para alimentar a renovação. A partir dali, filmes de Vladimir Carvalho, João Moreira Salles, José Joffily, Ricardo Dias e outros conseguiram chegar às salas comerciais, algo impensável poucos anos antes. Senti esse efeito de boom em 2000, quando, a convite de José Carlos Avellar, então presidente da Riofilme, coordenei uma espécie de cineclube com documentários brasileiros na Casa França-Brasil. Mais recentemente, passada aquela euforia, restou um melhor acesso e maior prestígio para esse tipo de cinema. O programa DOC-TV, do Ministério da Cultura, TV Cultura e Abepec, tem feito um trabalho louvável pela descentralização da produção de documentários. Só lamento que as comissões de seleção sejam muito locais, o que às vezes resulta em escolhas de fundo político e num bloqueio velado a idéias mais transgressoras. Tenho participado de algumas oficinas de concepção de projetos em vários Estados, orientando os candidatos aos benefícios do programa. Nessas ocasiões, apresento documentários de várias épocas e discutimos abordagem do tema, estrutura narrativa, modos de produção, etc. A maior carência tem sido a de explicitar adequadamente a intenção e o foco de cada projeto. Os métodos também parecem limitados. Grande parte dos futuros documentaristas ainda se pautam pelo modelo habitual da televisão. Sou favorável à multiplicidade de caminhos. Só não endosso a estratégia de supostamente não interferir na realidade documentada. O realizador não pode ser um mero ponto de vista estático, abstendo-se de perguntar, narrar ou montar. Se eu tiver de colocar um narrador, coloco até o Cid Moreira. O que me importa é passar a informação, que vou buscar na dialética entre o que sei e o que ainda não sei. Assim como não acredito na não-interferência, também pouco me interessa a interferência excessiva. Não admito, por exemplo, colocar-me dentro do quadro como mais um personagem dos meus documentários. Acho que seria um elemento de dispersão para o espectador. E ainda se confundiria com o telejornalismo, onde o repórter é a vedete. No máximo, deixo minha voz em off para conduzir alguma conversa. Isso é suficiente para criar uma perspectiva pessoal e caracterizar um diálogo. O documentário é o produto mais nobre da informação. Como tal, não pode se amarrar a formatos. Se não for investigativo, compactua com a própria morte. Capítulo VIII Caros amigos Dizem que sou uma pessoa doce. De fato, apesar do sangue italiano, não me apraz o conflito. Se não gosto de alguém, prefiro abster-me de qualquer relacionamento. Talvez por isso, seja ou tenha sido amigo de figuras consideradas “da pávirada”, como o escritor João Antonio, os atores Mauricio do Valle e Paulo César Peréio. Fiz grandes amigos na minha estrada dupla de cinema e jornalismo. De alguns tornei-me sócio, irmão profissional, como Hamilton Almeida Filho, Roberto Santos, Zeca Zimmerman e Gianfrancesco Guarnieri. Outros, como David Neves, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Sérgio e Paulo César Saraceni, Nelson Pereira dos Santos e Rudá de Andrade, dividiram comigo projetos, sonhos e mesas de bar. Os mais recentes Roberto Bonfim e Jards Macalé se devem à cidade do Rio de Janeiro. Outros ainda, como Glauber Rocha, inspiravam-me pela força do trabalho e pelo que suas atitudes provocavam. Glauber me entusiasma ainda hoje, basta ver Harmada. Todos nós temos um traço de Glauber. Minhas influências, porém, são duplas: Glauber pela visão não naturalista das coisas; Nelson Pereira e Roberto Santos, pela linha de um cinema realista, crítico e popular. Algumas amizades resultaram em colaborações especiais, como aconteceu com Sérgio Ricardo e Marcos Farias. Com o primeiro, parceiro de noitadas musicais na São Paulo da década de 1960, ajudei a montar a estrutura narrativa do filme A noite do espantalho. Sérgio me hospedava quando eu visitava o Rio, no início dos anos 70. Ele tinha um conjunto de canções e personagens com os quais desejava fazer uma ópera nordestina para o teatro. Aos poucos, o projeto foi se encaminhando para o cinema. Meu crédito de co-roteirista deve-se à sugestão de uma ordenação de cenas, além da criação de elos dramáticos entre os blocos musicais. Não participei do restante da produção. O filme seria rodado em Nova Jerusalém. Minha ligação com Marcos Farias fortificou-se à época da Cooperativa Brasileira de Cinema, criada em 1978 para tentar manter o cinema brasileiro de pé. Fiz parte da primeira diretoria, junto com Nelson, Leon e o próprio Marcos. Nessa época, ele preparava um roteiro a partir de esquetes de velhas peças de teatro de revista, como resultado de uma grande pesquisa. Ajudei-o a alinhavar aquelas pequenas histórias e dramatizei persona-gens. Bububu no bobobó era uma homenagem indireta ao Teatro Rival, na Cinelândia carioca, onde as peças de rebolado resistiram até os anos 1980. Era um filme sobre a derrocada de um gênero teatral e sua visão de mundo. Temíamos, no fundo, o fim de um certo cinema brasileiro. Só Glauber Rocha viu Pouco depois da morte de Glauber, publiquei um texto que ligava a sua perda à de Paulo Emílio Salles Gomes, ocorrida três anos antes. E dava conta de como eu via o cineasta baiano. O título era Glauber e um enterro. Achei oportuno resgatá-lo aqui: O nome arrepia. Desde o primeiro encontro. É único. Original. Inesquecível. Pelo menos para mim, naquela década de 60, quando ele aparece na Cinemateca Brasileira à procura de Paulo Emílio. Parece deus grego. Eles eram temperamentais, sujeitos a todas as tentações, emoções, odiavam e amavam com força divina e incrível, eram imortais. E tinham nomes esquisitos, tipo Zeus, Agamenon, Mercúrio. Glauber bem pode ter sido um deus grego, quem sabe? Filho de Apolo, deus da luz, das artes... Nunca fomos amigos, desses amigos que se apóiam quando uma tragédia desaba sobre sua cabeça. Mas ele tinha os seus. Muitas vezes, nos encontramos no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Bahia, pelos tortuosos caminhos da vida e sempre no rastro do cinema. Mas o encontro mais definitivo foi num enterro. O enterro de Paulo Emílio Salles Gomes, criador e conservador da Cinemateca Brasileira e com toda a certeza a alma linda e pura do Cinema Novo, que ia embora naquela manhã cinzenta e paulistana. Eles vieram de ponte aérea, assim que souberam. Era dia 9 de setembro de 1977. Desembarcaram às 11 horas no aeroporto de Congonhas. Foram direto para o MIS. Representavam, como reis magos, o cinema brasileiro do Rio de Janeiro. Eram: Paulo César Saraceni, David Neves e Glauber Rocha. O corpo estava exposto no salão nobre do Museu. Em torno dele nos encontramos. Glauber se aproximou de Paulo Emílio, mirou fixamente seu rosto e foi se afastando, olhando para o céu, uma abóbada sem graça. Durante alguns minutos ficamos observando a cena. E olhamos também para o alto, procurando entender o interesse do Glauber. Afinal, não estávamos na Capela Sistina. Saímos dali calados, emocionados, sem nada comentar. E fomos para o Pandoro, um bar da melhor qualidade na cidade. Éramos sete. Comandava o grupo o falecido Francisco Luís de Almeida Salles, crítico de cinema e eterno presidente da Cinemateca, amigo inseparável de Paulo Emílio. Depois Rudá de Andrade, filho de Oswald, diretorexecutivo da Cinemateca, Plácido de Campos Jr., estudante da ECA, eu , Glauber, David e Paulo Cezar. Depois de alguns minutos de silêncio, perguntamos a Glauber: O que você viu? Vi a alma de Paulo Emílio indo embora. O tema foi esse. Bebemos, rememoramos a convivência, contamos histórias, mas sempre se voltava para a alma materializada pelo olhar do Glauber subindo aos céus. A alma do cinema brasileiro. Fomos ao enterro no Cemitério da Consolação, houve um discurso que não ouvimos e saímos, o mesmo grupo, unidos buñuelescamente pela impossibilidade de separação. Viramos o final daquele dia cinzento e triste, penetramos pela noite e amanhecemos naquele mesmo bar, o Pandoro, olhando para o céu. Paulo Emílio tinha ido embora. E só Glauber Rocha viu. Os vivos e os mortos Houve um momento em que pensei em reunir grandes amigos, vivos e mortos, em torno de um projeto chamado, justamente, Caros amigos. A idéia era fazer uma série de TV na qual cada episódio tivesse um companheiro vivo retratando um falecido, em termos bem pessoais. Assim, Nelson faria Roberto; Zelito Viana cuidaria do Leon; Mário Carneiro ficaria com Joaquim Pedro; João Carlos Horta retrataria David Neves. Eu, que gostaria de fazer tantos deles, me dedicaria a Fernando Coni Campos. Glauber foi retirado da lista porque, à época, Silvio Tendler já tocava seu projeto de Glauber: O filme – Labirinto do Brasil. Chegamos a fazer uma reunião animadíssima em torno de uma mesa de chope, mas o projeto nunca saiu do papel e dos nossos corações. Meus primeiros contatos com Fernando Coni Campos se deram nos anos 1960, à época em que ele produziu A morte em três tempos, um filme policial no qual Paulo Emílio fazia o papel de um detetive. Já na década de 80, produzi o belo documentário em vídeo sobre Oscar Niemeyer para a TV Manchete. Trabalhamos juntos no roteiro de uma reconstituição da trágica expedição do Padre Calleri, cujos 11 membros foram mortos pelos índios vaimiris-atroaris, na Amazônia, em 1968. Combinávamos essa história com o mito da montanha Matatu-Araracanga, versão do El Dorado que circula entre os índios do Mato Grosso. Foi mais um projeto que ficou pelo caminho. Estive especialmente próximo do Fernando nos últimos anos de sua vida. Ele me encantava por muitas coisas, entre elas o talento oral de contador de histórias e o apego à liberdade de criar. Por isso ficou tão abalado quando, por necessidade, teve de vender os direitos de refilmagem de Ladrões de cinema para Arnaldo Jabor. Eu testemunhei a forma como aquilo mexeu com a sua alma. Na antevéspera do Natal de 1988, Fernando e Jabor dividiram uma garrafa de uísque na casa do primeiro, celebrando a finalização do roteiro e o pagamento da última parcela. Depois que Jabor partiu e Eloá Jacobina, a mulher de Fernando, foi dormir e ele ficou na sala vendo Esther Williams nadar em Escola de sereias. De manhã cedo, Eloá o encontrou morto diante do aparelho ligado. Justamente aí começaria meu retrato do Fernando para a série Caros amigos: a morte diante de um filme. Fernando Coni Campos: retrato 3 x 4 Abaixo, transcrevo o texto que fiz como base de um futuro roteiro do meu programa sobre o Fernando. Chamava-se Retrato 3x4 e era datado de 5 de maio de 2003: Ele morreu vendo um filme e foi embora com ele como parte das imagens. Ele era uma miragem. Certa vez um saltimbanco parou diante dele e disse: “Pule pra eu ver”, e Fernando respondeu: “Agora não posso, tenho um compromisso: nunca imitar ninguém. Além do mais, não estou precisando de emprego”. Ele era assim. A resposta pronta, o gesto decidido, a aversão a todo tipo de cooptação. Uma vez fui visitálo na prisão do seu subconsciente e ele me disse: “Estou livre!” Não se enquadrava a nada, não se intimidava, não se submetia a lei nenhuma. Trabalhava muito. Escrevia, pensava, andava ensimesmado pelas ruas, carregado de histórias. Era um dos homens mais conscientes da sua época e do seu país. Ouvindo dizer isso, ele diria: e isso vale alguma coisa num país como esse? O maior contador de histórias do cinema brasileiro. É o que dizem dele. Falava por sinais. Nem sempre convencionais, é claro, subreptícios, secretos, alternativos. Freqüentava de vez em quando as salas das cinematecas, os cinemas do submundo, marginais, escusos, profundos. Nunca foi um gregário, nem gostava de grupos versados em estratégias ideológicas, cumplicidades intelectuais, movimentos transformadores. Era apenas um modesto e simples criador, um artista. Dele podemos dizer: o rei dos enjeitados, o profeta do absurdo. E enquanto o mundo passa em sua volta, o que ele vê? Ladrões de cinema, comerciantes da cultura, poetas bissextos, comendas injustas, falcatruas elogiadas, puxasaquismo deferido, enfim, a mixórdia do Brasil. E o que faz? Dá uma banana a tudo isso. Assim era Fernando Coni Campos, o último dos cineastas, o primeiro e único. E sua obra? São poucos filmes, que significam aventuras humanas por dentro de um experimentalismo agudo, calculado, cercado por elementos oníricos de um realismo mágico e popular. Não o vemos se expondo desnecessariamente para revelar o íntimo, a não ser para afirmar sua convicção cristã, acima de dogmas e igrejas. Ele não passeia pelo cenário disfarçado de entregador de pizza como um Hitchcock qualquer, nem tenta enganar o espectador com falsas pistas. Não assusta, não horroriza, não brinca, não causa malestar, não agride, não escandaliza com nu frontal ou efeito especial. Apenas transmite o que tem dentro de si, uma imagem calidoscópica do homem brasileiro, com a competência de quem sabe muito bem a nobre arte de contar histórias. Desde o início, foi uma busca constante para encontrar o meio de expressão. O exercício da poesia burilou o seu gosto pelo uso da palavra, as artes plásticas lhe deram a visão plena do espaço a ser esquadrinhado, moldado, assumido como plena forma e, por fim, surge o cinema como via onde vão desaguar suas inúmeras linguagens. Em sete longasmetragens Fernando Campos traça o mapa detalhado de suas preocupações, onde se decifra o nível da sua angústia na busca do contorno existencial e ideológico do mundo que o cerca. Sua ânsia de penetrar nos dramas sociais e nas tragédias burguesas revela personagens que circulam livremente em meio a sucessos inesperados ou derrotas fragorosas. O que ele busca, em última instância, são os princípios pelos quais vale a pena lutar, a esperança e a busca do sentido da vida, o pensamento e o sentimento do amor dos que vivem e sofrem a sua perda, os elementos, enfim, que compõem o drama humano e que vêm a ser a matériaprima de sua dramaturgia. (Texto reproduzido também no livro póstumo Cinema: sonho e lucidez, de Fernando Coni Campos) A vida com Marília “Mário Carneeeeiroooo!”, gritei quando meu Karmann Ghia conversível cruzou com ele no pontilhão a caminho da Liberdade, numa madrugada paulistana qualquer dos anos 1970. Mário ficou olhando como quem tivesse visto a passagem de um cometa desconhecido. Cerca de cinco anos depois, já no Rio de Janeiro, revelei-lhe a identidade do cometa. Ele ficara orgulhoso de ser tão conhecido em São Paulo. A partir de então, nossos contatos só se estreitaram, culminando com a parceria em Harmada. A amizade com o Mário teve um momento particularmente curioso em 1982, quando compareci à sua festa de aniversário. Ele estava recém-separado de Marília Alvim. E eu, da Jalusa. Já conhecia Marília desde que trabalhamos juntos, tempos atrás, na segunda montagem de O boi misterioso e o vaqueiro menino. Senti por ela aquele tipo de atração fatal que se transforma numa grande paixão. Na alegria daquela noite, pedi ao ex-marido autorização para namorá-la. Mário, cavalheiro como sempre, limitou-se a recomendar: “Cuide muito bem dela, hein?” Curiosamente, nossa decisão de ficar definitivamente juntos foi tomada em outra festa de aniversário, o de Pedro de Moraes, na casa de Joaquim Pedro. Em maio de 1987, resolvemos abrir nossa empresa, a Saturna Produções, e com ela tenho realizado vários trabalhos. Marília vinha de uma longa experiência no cinema, tendo percorrido, desde 1975, todas as etapas como assistente e diretora de produção, continuísta, técnica de som direto, fotógrafa de cena, assistente de direção e finalmente montadora. Observei e incentivei-a a produzir dois vídeos dirigidos por Mário Carneiro: In vitro (1987), sobre uma exposição de Mario Bravo, e o média-metragem Eu vi o mundo... ele começava no Recife (2003), no qual, a partir de um quadro, Cícero Dias passa toda uma visão de sua obra e do país. Marília tem sido minha sócia produtora, montadora, incentivadora do meu trabalho e, mais que isso, minha querida companheira de tantos anos. Nunca me arrependi daquele gesto ousado de pedi-la ao Mário, numa demonstração do fraterno respeito que tinha pela amizade que os unia e que perdura até hoje. Tempos depois, fiz o mesmo com Paulo Alvim, seu pai. Após 16 anos de vida em comum, em 1998 resolvemos nos casar, com aliança e papel passado. Nesse percurso de vida que se traçou até agora, creio que aprendi certas coisas importantes como ter consciência das minhas limitações, adequar minhas idéias aos meios disponíveis, viver sem ressentimentos, sem culpa ou nostalgia do passado, satisfeito com o tempo vivido e o trabalho realizado. Aprendi, principalmente, a considerar cada vez mais a amizade e a solidariedade como bens únicos e insubstituíveis. E também olhar o futuro como se a vida estivesse apenas começando. Filmografia 1962 • União (P&B, 16 mm, 12 min) Direção: Maurice Capovilla -Elenco: João Marchner e operários da construção civil. • Meninos do Tietê (P&B, 35 mm, 15 min) Direção e roteiro: Maurice Capovilla -Produção e argumento: Victor Cunha Rego 1964 • Subterrâneos do futebol (integrante do longa Brasil verdade) (P&B, 16 mm ampliado para 35 mm, 32 min) Realização e som direto: Maurice Capovilla -Produção: Thomaz Farkas -Fotografia: Thomaz Farkas, Armando Barreto -Montagem: Luiz Elias -Assessor de montagem: Roberto Santos -Produção executiva: Edgardo Pallero -Chefe de produção: Vladimir Herzog -Texto: Celso Brandão -Narração: Anthero de Oliveira -Seleção musical: Walter Lourenção -Assessores esportivos: Celso Brandão, Onofre Gimenez 1965 • Esportes no Brasil (P&B, 35 mm, 17 min) Direção: Maurice Capovilla -Fotografia: David • Neves, Armando Barreto -Montagem: Glauco Mirko Laurelli -Texto: Hamilton Almeida -Narração: Fábio Perez -Música: Francisco Mignone (excertos) -Produção: Sócine Produções Cinematográficas para a Divisão de Difusão Cultural do Ministério das Relações Exteriores -Produção executiva: Nelson Mattos Penteado, Luiz Sérgio Person 1967 • Bebel, garota propaganda (P&B, 35 mm, 108 min) Direção: Maurice Capovilla -Adaptação e roteiro (baseado no livro Bebel que a cidade comeu, de Ignacio de Loyola Brandão): Capovilla, Mario Chamie, Afonso Coaracy, Roberto Santos -Fotografia e câmera: Waldemar Lima -Montagem: Sylvio Renoldi -Música: Carlos Imperial -Arranjos: Rogério Duprat, Damiano Cozzella -Números musicais: De Kalafe e A Turma, Marcos Roberto, The Bells -Cenografia: Juarez Magno -Maquiagem: Gilberto Marques -Produção: José Alberto Reis -Produção executiva: Roberto Santos, Luiz Carlos Pires Fernandes -Produtores associados: Jorge Teixeira, George Jonas, Saga Filmes -Direção de produção: Ivan de Souza -Gerentes de produção: João Batista de Andrade, Mauricio Segall -Assistente de direção: Afonso Coaracy -Chefe da equipe técnica: Cláudio Portiolli -Elenco: Rossana Ghessa (Bebel), Paulo José (Bernardo), Geraldo Del Rey (Marcelo), Maurício do Valle (Renatão), John Herbert (Marcos), Washington Fernandes (Walter), Fernando Peixoto (repórter), Joana Fomm (irmã de Bebel), Norah Fontes (mãe de Bebel), Apolo Silveira (fotógrafo), Maria Luiza Fragata, Marta Greis, Raquel Klabin, Maurício Nabuco, Bibi Vogel, Luiz Alberto Meirelles -Participações especiais: Fernando de Barros, Roberto Santos, Mino Carta (editor do jornal), Diogo Pacheco, Renata Souza Dantas, Mauro Pinheiro, Adones de Oliveira (deputado), Álvaro Bittencourt, Osmano Cardoso, Yolanda Cavalcanti, Gilberto Marques (maquiador) 1970 • O profeta da fome (35 mm, P&B, 93 min) Direção: Maurice Capovilla -Argumento e roteiro: Capovilla, Fernando Peixoto - Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky - Cenografia e figurinos: Flávio Império - Montagem: Sylvio Renoldi -Música: Rinaldo Rossi - Canção Olho por olho: Adauto Santos -Assistente de direção: Hermano Penna -Equipe de produção: Aloysio Raulino, Plácido de Campos Jr., Roman Stulbach, Alexandre Solnik, Jan Koudella -Equipe técnica: Claudio Portiolli, Antonio Meliande, Ângelo Mataran, Mário Lima, Ruth Toledo - Direção de produção: Hamilton Almeida Filho -Produtor associado: Odécio Lopes dos Santos -Elenco: José Mojica Marins (João/Ali Khan), Maurício do Valle (Manuel, domador), Julia Miranda (Maria), Sérgio Hingst (Dom José), Jofre Soares (Padre), Adauto Santos (cantador), Heládio Brito (delegado), Flávio Império (soldado), Lenoir Bittencourt (mágico), Palhaço Fuxico, Mário Lima (espectador), Ângelo Mataran (leão), Wilson Evangelista (equilibrista), Luiz Abreu, Jean-Claude Bernardet, Hamilton Almeida e habitantes de São Luiz do Paraitinga. 1971 • Noites de Iemanjá (35 mm, Cor, 86 min) Direção e roteiro: Maurice Capovilla -Argumento: Ida Laura, baseado no seu conto Aquela que vem das águas -Fotografia: Eliseu Fernandes -Montagem: Mauro Alice -Música: Dalmo Ferreira -Som: Julio Perez Caballar -Coreografia: Guimarães do Berimbau -Produção: Astolfo Araújo, Rubem Biáfora -Elenco: Joana Fomm (mulher), Sérgio Hingst (marido), Newton Prado (Paulo), Roberto Maia (rapaz), Assunta Peres (legista), Inês Knaut (recepcionista), Dalmo Ferreira (pescador), Áurea Campos (rezadeira), Rosemary (stripper), Genésio Carvalho (marinheiro), Gilberto Sálvio, Cavagnole Neto, Francisco Cúrcio, Marcelo Picchi, Celso Lucas, Antonio João Amaro, Caetano Bianchi, Stanislaw Gravisluk, Paulo Gaetan, Carlos Mota, Guimarães do Berimbau. 1970 / 73 • Loucura (episódio de Vozes do medo) (35 mm, P&B, 9 min) Coordenação geral: Roberto Santos -Produção executiva: César Mêmolo Jr. -Direção: Maurice Capovilla -Fotografia: Hélio Silva -Elenco: Júlia Miranda -Montagem: Tercio Gabriel da Mota -Direção dos outros episódios: Adilson Bonini, Aloysio Raulino, Augusto Correa, Cyro Del Nero, Gianfrancesco Guarnieri, Helio Leite de Barros, Mamoru Miyao, Plácido de Campos Jr., Roberto Santos, Roman Stulbach, Rui Perotti 1971 • Terra dos Brasis (35 mm, Cor, 45 min) Direção e roteiro: Maurice Capovilla -Fotografia e câmera: Dib Lutfi -Som direto: Claudio Portiolli -Montagem: Gilberto Santeiro • O poder jovem (35 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção: Blimp Film para o Globo Shell Especial • A indústria da moda (35 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção: Blimp Film para o Globo Shell Especial 1972 • Do sertão ao beco da Lapa – E o mundo de Oswald (35 mm, Cor, 55 min) Produção: Blimp Film para o Globo Shell Especial -Episódios: Guimarães Rosa e Manuel Bandeira -Direção e roteiro: Maurice Capovilla -Textos: Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Capovilla -Fotografia: Hermano Penna -Som: Mario Masetti -Narração: Lima Duarte -Episódio Oswald de Andrade -Direção e roteiro: Rudá de Andrade -Narração: Paulo César Peréio 1973 • O homem que comprou a morte (35 mm, Cor, 13 min) Direção: Maurice Capovilla -Fotografia – Walter Carvalho Corrêa -Roteiro: Capovilla, Gianfrancesco Guarnieri, Fernando Peixoto -Elenco: Gianfrancesco Guarnieri, Fernando Peixoto 1974 • Bahia de todos os santos (16 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Roteiro: Capovilla, baseado no livro homônimo de Jorge Amado -Fotografia: Hélio Silva 1975 • As cidades do sonho (16 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Fotografia: Lúcio Kodato – Som direto: Mário Masetti -Produção executiva: José Zimmerman -Produção: Documenta • Cantoreadores do Nordeste (16 mm, Cor, 15 min) Direção e roteiro: Maurice Capovilla -Fotografia – Walter Carvalho Corrêa -Som direto: Mário Masetti -Elenco: Elomar -Produção: Blimp Filmes para o Fantástico/TV Globo • O último dia de Lampião (16 mm, Cor, 48 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção: Blimp Film para o Globo Repórter -Supervisão: Carlos Augusto de Oliveira -Roteiro e texto: Capovilla, Fernando Peixoto -Fotografia: Walter Carvalho Corrêa -Montagem: Laércio Silva -Som: Mario Masetti -Produção executiva: Quindó -Pesquisa: Amaury C. Araújo, C. Alberto R. Salles -Guardaroupa: Sila e Dada -Música: Zé Ferreira, Oliveira Francisco -Narração: Sergio Chapelin -Elenco: Emmanuel Cavalcanti (Sereno), Salma Buzzar (Sila), Eduardo Montagnari (Lampião), Edileuza Conceição (Maria Bonita), Heládio Brito (Aniceto), Luiz Bezerra (Bezerra), Otávio Salles 1976 • História de um político (35 mm, Cor, 40 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção executiva: José Zimmerman -Pesquisa e roteiro: Capovilla, Paulo Mendes Campos -Fotografia: Fernando Duarte, David Neves – Produção: Documenta 1977 • O jogo da vida (35 mm, Cor, 90 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção executiva: José Zimmerman -Roteiro: Capovilla, Gianfrancesco Guarnieri, João Antônio, baseado na novela Malagueta, perus e bacanaço, de João Antônio -Fotografia: Dib Lutfi -Montagem: Maurício Wilke -Música: João Bosco, Aldir Blanc, Radamés Gnatalli -Cenografia: Francisco Petracco -Som guia: Romeu Quinto Júnior -Letreiros de animação: Joaquim 3 Rios -Elenco: Lima Duarte (Malagueta), Gianfrancesco Guarnieri (Perus), Maurício do Valle (Bacanaço), Jofre Soares (Inspetor Lima), Myriam Muniz (mulher de Malagueta), Martha Overbeck (irmã de Perus), Maria Alves (amante de Bacanaço), Walfrido “Carne Frita” dos Santos, Joaquim Pedro “Joaquinzinho” da Silva, João Gaúcho, Antonio Petrin, Oswaldo Campozana, Thaia Peres, Emmanuel Cavalcanti • Os homens verdes da noite (16 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção: Blimp Film para o Globo Repórter -Fotografia: Walter Carvalho Corrêa -Som: Mario Masetti -Produção: Blimp Film para o Globo Repórter • Raízes populares do futebol (16 mm, Cor, 50 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção: Jean-Gabriel Albicocco para a TV Antenne 2 1979 • O todopoderoso (Telenovela da TV Bandeirantes) Supervisão geral: Maurice Capovilla -Direção: J. Marreco, Henrique Martins e David José -Dramaturgia: Clóvis Levy, José Safiotti Filho, Carlos Lombardi, Edi Lima, Ney Marcondes -Elenco: Jorge Dória, Eduardo Tornaghi, Selma Egrei, Lilian Lemmertz, Geraldo Del Rey, Marco Nanini, Renato Borghi, Jofre Soares, Kate Hansen 1980 • O boi misterioso e o vaqueiro menino (16 mm, Cor, Telefilme, 69 min) Direção, argumento e roteiro: Maurice Capo-villa -Produção: Gilberto Mussi -Realização: TV Bandeirantes/Shell -Fotografia: Pedro Farkas -Assistente de fotografia: José Roberto Eliézer - Som: Clodomiro Bacellar -Figurinos: Diva Pacheco -Edição: Fernando Franco -Efeitos especiais: Marino Henrique -Elenco: Jofre Soares (Velho), Luiz Mendonça (Coronel), Manfredo Bahia (Vaqueiro “Menino”), Carol Cavalcanti (Leonor), Leandro Filho (Manuel Casado), Paulo de Castro (Capitão Duda), Marcos Macena (rastejador), Ozita Araújo (alcoviteira), Evandro Campelo (Capitão Zebedeu), Baruque de Oliveira (cantador Ilídio), Suzana Costa, Lúcia Lemos, Celeste Dias, Joacir Castro, José Ramos, José Luiz Oliveira, Cosme da Silva, Diva Pacheco, Robson Pacheco. • Crônica à beira do Rio (16 mm, Cor, Telefilme, 62 min) Direção: Maurice Capovilla -Realização: TV Bandeirantes/Shell -Roteiro: Paulo Mendes Campos, baseado em crônicas de Rubem Braga -Fotografia: Edgar Moura, Renato Neuman, Roberto Werneck (imagens submarinas) -Edição: Juracyr Amaral Jr. -Arte: Nelson A. Andrade, Olga Spina -Som direto: Juarez Dagoberto -Produção executiva: Maurício Albuquerque -Elenco: Jorge Dória (cronista), Joel Barcellos (pescador), Jalusa Barcellos (mulher 1), Isabel Ribeiro (mulher 2), Eliane Narduchi (mulher 3), Antonio Pedro (Bebú), Labanca (Machado), Vinícius Salvatori (desempregado), Paschoal Villaboim (favelado) , Amandio (paquerador), Elza Andrade (mãe na praia), Gugu Olimecha (pai na praia), Monique Aragão (moça do sonho), Helena Werneck (mulher do pescador), José Luiz Rodi (marinheiro), Rômulo Júnior (afogado), Guto, Ana Lúcia, Aira Alves, Maria Clara, Eduardo, Lucas, Vítor. • O princípio e o fim (16 mm, Cor, Telefilme, 45 min) Direção: Maurice Capovilla -Realização: TV Bandeirantes/Shell -Produção: Anselmo Duarte Jr. -Roteiro: Capovilla, baseado no conto de Josué Guimarães -Fotografia: Renato Neuman -Iluminação: Carmelito Mazoni -Arte: Nelson A. Andrade -Som: William Fogtman -Edição: Juracyr Amaral Jr., Paulo Garcia -Produção executiva: Maurício Albuquerque -Produção musical e assistência de direção: Cláudio Pereira -Elenco: Manfredo Colasanti (Padre Carapella), Raul de Sena Muro (Tininho), Rudi Lageman, Tania Tonet, Jucir Tonet, Oswaldo Meirelles, Zaira Comunello, Guerino Comunello 1981 • Caso de polícia (episódio da série Cinema Rio, da TVE) Direção: Maurice Capovilla -Fotografia: José Guerra -Coordenação da série: Nelson Pereira dos Santos 1983 • Os brasileiros – Retrato falado de um povo (Minissérie documental TV Manchete, Vídeo, Cor, 10 x 40 min) Direção: Maurice Capovilla -Roteiro: Sérgio Augusto, Capovilla -Apresentação: Roberto da Matta -Fotografia: Luiz Otávio Faria, José Guerra -Edição: Eduardo Ribeiro -Narração: Jorge Dória -Coordenação de produção: Anita Simkevicius, Vivian Perl -Realização: Intervídeo -Episódios: Quem Somos Nós, Raízes, Religião, Comida, Futebol, Malandragem, Música, Carnaval, Saúde, Saudade / Solidão / Amizade 1985 • A Escola do Zico (Vídeo, Cor, Série de interprogramas de 5 min para TV Manchete) Direção: Maurice Capovilla 1986 / 87 • O desafio do mar (Minissérie documental TV Manchete, Vídeo, Cor, 12 x 50 min) Direção e produção: Maurice Capovilla 1988 • Viagens às terras de Portugal (Minissérie documental TV Manchete, Vídeo, Cor 5 x 50 min -Compacto de 98 min) Direção, roteiro e texto: Maurice Capovilla -Narração: Othon Bastos -Câmera: Jonas Ramatis -Iluminação: Adilson Alves -Edição: Henrique Tartarotti -Trilha original: Manuel Marques -Produção: André Auler 2002 • Brasil, Brasília e os brasileiros (Vídeo, Cor e P&B, 34 min) Direção: Maurice Capovilla e Tania Quaresma - Produção: Elza Ramalho / Fundação Israel Pinheiro -Pesquisa: Jarbas Marques -Edição: Rubens Duarte, Paulo Eduardo -Música: Cláudio Vinícius, Daniel Baker, Laércio Vasconcelos -Locução: Marco Aurélio Bilibio 2003 / 05 • Harmada (35 mm, Cor, 100 min) Direção: Maurice Capovilla -Produção executiva e montagem: Marília Alvim -Direção de produção: Ney Costa Santos -Fotografia: Mário Carneiro -Câmera: Dib Lutfi -Som: Juarez Dagoberto -Cenografia: Carlos Liuzzi -Figurinos: Marília Carneiro, Karla Monteiro -Música: Matias Capo-villa -Edição de som: Carlos Cox -Elenco: Paulo César Peréio (Ator), Malú Galli (Amanda), Joana Medeiros (Sônia), Luciana Domschke (noiva do Ator), Patrícia Libardi (Cris), Antonio Pedro, Cecil Thiré (Bruce), Paulo Herculano (Lucas), João Velho, Rodrigo Prado, Luiz Pinto, Themílton Tavares, Rogério Custódio, Waldir Fernandes, Nelson Speranza, Gabriel Bernardo Duarte, Léo Alberti 2005 / 06 • No país do futebol (Série Canal Brasil, Vídeo, Cor, 8 x 23 min) Direção: Maurice Capovilla -Câmera: Ronaldo Torquilho -Operador de vídeo: Paulo Beltrão -Operador de áudio: Tião Black -Música: Banda Havana Brasil -Sonorização: Luciano Oliveira -Edição: Marcos Monteiro, Flávio Ferreira -Produção: Maristela Pereira -Programas 2005: A tragédia de 50 e outras histórias por Luiz Carlos Barreto; Mitos e lendas por Juca Kfouri; O capitão e o líder por Gerson Nunes; Democracia corinthiana por Sócrates Programas 2006: Zico, Chico Anysio, Tostão e Leonardo Outros trabalhos 1964 • Viramundo Média-metragem produzido por Thomaz Farkas -Direção: Geraldo Sarno -Som direto Maurice Capovilla 1968 / 74 • Itinerário de Niemeyer (Curta 16 mm) Direção: Vladimir Carvalho -Som direto e supervisão das filmagens 1968: Maurice Capovilla 1968 • CPI do índio (Curta – 16 mm) Filme escola do Dep. de Cinema ICA-UnB -Direção:Hermano Penna -Supervisão: Maurice Capovilla 1969 • Ensino vocacional (Curta 35 mm) Filme escola -Realização: alunos -ECA/USP Supervisão: Rudá de Andrade, Maurice Capo-villa • O pão nosso de cada dia (Curta 35 mm) Filme escola -Realização: alunos ECA/USP -Supervisão: Rudá de Andrade, Maurice Capovilla 1974 • A noite do espantalho (Longa 35 mm) Direção: Sérgio Ricardo -Argumento: Sérgio Ricardo, Maurice Capovilla 1975 • Os pampas segundo Érico Veríssimo (Especial TV Globo) Direção: Marcos Matraga -Produção: Blimp Film -Coordenação geral: Maurice Capovilla 1978 • Bububu no bobobó (Longa-metragem) Direção: Marcos Farias -Roteiro: Marcos Farias, Maurice Capovilla 1979 • Copa 78: o poder do futebol (Longa 35 mm) Direção e roteiro: Maurício Sherman -Co-direção: Victor di Mello -Coordenação das equipes de filmagem: Paulo César Saraceni, Maurice Capovilla 1981 • Mulher diaba (Telefilme da TV Bandeirantes, baseado em Jorge Andrade) Direção: Xavier de Oliveira -Supervisão: Maurice Capovilla 1985 • Oscar Niemeyer (Especial da TV Manchete) Direção: Fernando Coni Campos -Produção executiva: Maurice Capovilla Teatro 1979 • Nadin Nadinha contra o rei de Fuleiró Peça teatral de Mário Brasini Direção: Maurice Capovilla -Elenco: Jalusa Barcellos, Carvalhinho, Vinícius Salvatore, Rui Rezende, Fernando Eiras, Expedito Barreira, Elcio Romar, Demétrio Pompeu, Elias Andreato, Alby Ramos, Luiz Carlos Rodi, Álvaro Guimarães, Sergio Maia e Carlos Adiê -Cenário e figurinos: Laerte Thomé -Preparação corporal: Luiz Olimecha -Direção musical: Ivan Lins -Iluminação: Jorginho Carvalho Para ler mais sobre Maurice Capovilla • Maurice Capovilla, entrevista a Alex Viany (1983), in Alex Viany – O processo do Cinema Novo, organizado por José Carlos Avellar, Aeroplano, 1999, páginas 343 a 350 • Maurice Capovilla, entrevista a Jalusa Barcellos in CPC da UNE – Uma história de paixão e consciência, de Jalusa Barcellos, Nova Fronteira, 1994, páginas 341 a 348 • Escolas de cinema. O que fazer com elas?, de Maurice Capovilla, in Revista Cinemais nº 19, setembro/outubro de 1999, páginas 115 a 132 • Em busca do povo brasileiro, de Marcelo Ridenti, Record, 2000, páginas 85 a 90 (análise ideológica das críticas de Capovilla para a Revista Brasiliense) • Maurice Capovilla, entrevista a Raquel Maranhão Sá, in Cineastas de Brasília, de Raquel Maranhão Sá, edição da autora, 2003, páginas 33a 36 • Dossiê Maurice Capovilla, in Contracampo -revista eletrônica de cinema, artigos em www. contracampo.com.br/21/frames.htm Índice Apresentação -Hubert Alquéres 05 Introdução -Carlos Alberto Mattos 13 Antes do cinema 21 Aprendendo a jogar 37 Futebol 63 Quatro filmes de São Paulo 97 Televisão 163 Ensinando a jogar 215 Harmada, o retorno 239 Caros amigos 261 Filmografia 281 Créditos das fotografias Vladimir Herzog 278 Carlos A. Ebert 105, 106, 109 Ruth Toledo 120, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 134, 136 Pedro Farkas 147, 150, 152, 157 Marco Antonio Cavalcanti 167, 168 Julia Equi, Lia Capovilla, Dinho: 245, 247, 248 Demais fotografias -acervo pessoal de Maurice Capovilla Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Anselmo Duarte O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Braz Chediak Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis CabraCega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Carlos Coimbra Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Casa de Meninas Inácio Araújo Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero Críticas Edmar Pereira Razão e sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas Jairo Ferreira Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas L. G. Miranda Leão Org. Aurora Miranda Leão De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Djalma Limongi Batista Livre Pensador Marcel Nadale Dois Córregos Carlos Reichenbach Fernando Meirelles Biografia prematura Maria do Rosario Caetano Fome de Bola Cinema e futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado Um cineasta cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça Jeferson De Dogma feijoada o cinema negro brasileiro Jeferson De João Batista de Andrade Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky O homem com a câmera Carlos Alberto Mattos Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu O Caso dos Irmãos Naves Luis Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah e Newton Cannito Pedro Jorge de Castro O calor da tela Rogério Menezes Rodolfo Nanni Um Realizador Persistente Neusa Barbosa VivaVoz roteiro Márcio Alemão Ugo Giorgetti O Sonho Intacto Rosane Pavam Zuzu Angel roteiro Sergio Rezende e Marcos Bernstein Série Cinema Bastidores Um outro lado do cinema Elaine Guerini Série Teatro Brasil Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira ÓperaJoyce Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Samir Yazbek O teatro de Samir Yazbek Samir Yazbek Críticas Maria Lucia Candeias Duas tábuas e uma paixão Org. 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Maria Thereza Vargas Suely Franco A alegria de representar Alfredo Sternheim Walderez de Barros Voz e Silêncios Rogério Menezes Leonardo Villar Garra e paixão Nydia Licia Carla Camurati Luz Natural Carlos Alberto Mattos Zezé Motta Muito prazer Rodrigo Murat Tony Ramos No tempo da delicadeza Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel O samba e o fado Tania Carvalho Vera Holtz O gosto da Vera Analu Ribeiro Série Crônicas Autobiográficas Maria Lucia Dahl O quebracabeças Especial Cinema da Boca Alfredo Sternheim Dina Sfat Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Maria Della Costa Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso Imagens de Sua Arte Nydia Licia Gloria in Excelsior Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 312 Tiragem: 1.500 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2006 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Mattos, Carlos Alberto Maurice Capovilla : a imagem crítica / Carlos Alberto Mattos. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 312p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-486-6 (Imprensa Oficial) 1, Cineastas – Brasil 2. Cinema – Produtores e diretores 3. Cinema – Roteiros 4. Televisão – Brasil 5. Capovilla, Maurice – Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.430 981 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Produtores e diretores cinematográficos : biografia 791.430 981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP T 00 55 11 6099 9800 F 00 55 11 6099 9674 www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 6099 9725 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual