Ary Fontoura Entre rios e janeiros Rogério Menezes Imprensa Oficial São Paulo, 2006 Governador Cláudio Lembo Secretário Chefe da Casa Civil Rubens Lara Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira Coleção Aplauso Perfil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne Assistência Operacional Andressa Veronesi Editoração Aline Navarro Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Revisor Amâncio do Vale Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõe seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O caso dos irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo A Ary Fontoura, pelo eterno movimento dos barcos. Aos sobrinhosnetos Pietro, Dimitri e Augusto. Rogério Menezes Introdução Ary Fontoura pareceu-me, à primeira vista, ou melhor, ao primeiro telefonema, a mais completa tradução humana do “tempo” de Cazuza. O que significava que pertencia àquela categoria de pessoas que não param nunca. Logo nos primeiros contatos telefônicos, percebi: teria que pegar o personagem-tema deste livro, um dos mais profícuos atores brasileiros, a unha. No laço. Entre o ator e mim parecia haver, além dos 1160 quilômetros que separam Brasília e Rio de Janeiro, empecilhos aparentemente intransponíveis. Coisas assim: 1) Viagem de três semanas a Portugal, para gravações de O sítio do picapau amarelo. 2) Dificuldades de agendamento ocasionadas por horário incerto dos dias de gravação na Globo – aos 73 anos, trabalha desde os oito, Ary Fontoura está em plena atividade, a milhares de léguas de distância de eventual aposentadoria. 3) Tinha a impressão, não se sei totalmente descabida, de que havia por parte do ator certa dúvida sobre valer ou não a pena reservar alguns dias para as conversas que resultariam neste livro. 4) Outra impressão: a de que pergunta o perseguia: as conversas com este jornalista/escritor não seriam tremenda perda de tempo? Mas perseverei e fui recompensado. Coisas assim caídas por terra, pura paranóia, admito, agendei as entrevistas para a terceira semana de julho e voei para o Rio de Janeiro. Mais paranóia (achei que o ator cancelaria o encontro na última hora): liguei na véspera da viagem, ainda em Brasília; liguei no dia da primeira entrevista, já no Rio. Checava se estava tudo ok. Estava tudo ok (“Minha casa é em frente à Praia da Macumba. Vai ser fácil achar!”, garantiu-me o ator). Então às três da tarde de segunda-feira em que tempestade bíblica se abatia sobre a zona sul carioca, adentrei táxi que me levaria até o final do Recreio dos Bandeirantes, onde, bucolicamente, mora Ary Fontoura (com a empregada Nilza, o papagaio Beethoven e os poodles João, Júnior e Rita). Uma hora depois (atrasaram a viagem o trânsito confuso e o motorista idem, que achava a Praia da Macumba, mas nunca encontrava o condomínio fechado onde se localiza a casa do ator), sento-me à frente de homem simpático, mas desconfiado (numa prova cabal de que paranaenses, não só mineiros, são seres basicamente desconfiados). A conversa demora a pegar: o entrevistador não acha as perguntas certas; o entrevistado parece acuado, responde tudo com certa displicência. Mesmo assim, vou em frente. Com certa experiência no jornalismo, sei que entrevistas inicialmente empacadas podem, de repente, se transformar, com perseverança e determinação, em belos depoimentos. Aos poucos, melhoro minha performance inquisitória, pergunto coisas menos óbvias, cerco o entrevistado com perguntas mais pertinentes. Reflexo dessa virada: o ator se abre aos poucos, não tanto quanto gostaria. Continua a parecer que não gosta do assunto sobre o qual estava falando (o começo de tudo em Curitiba, sua cidade natal), a parecer querer se livrar daquele assunto o mais rapidamente possível. Essa entrevistaquedemoravaapegar é interrompida exatamente às seis da tarde: Nilza, simpaticíssima baiana de Belmonte que trabalha com Ary Fontoura há mais de trinta anos, nos convida para lauto café. À base de bolo de laranja, queijo branco e presunto, ovos cozidos, manteiga e diversos tipos de pães. No melhor estilo conquistavisita que as famílias de minha infância no interior da Bahia (e certamente também da infância de Nilza) tão bem cultuavam. A farta refeição ajuda a quebrar o gelo entre entrevistado e entrevistador. Fala-se então de amenidades. O ator revela: está doido para encontrar texto teatral que o apaixone e que o leve de volta ao teatro; fala em monólogo, o que teme muito, ainda mais que pensa em monólogo dramático, pesado, consistente, que teme ainda mais porque poderá assustar o público que estaria sempre à procura de algo mais leve hoje em dia. O jornalista-escritor dá palpite: acha que monólogo com essas características mais dramáticas e densas é boa idéia: chamaria a atenção da mídia, na medida em que o ator, fortemente vinculado ao gênero comédia, enveredaria por caminho nunca dantes navegado, ou, melhor, não tão navegado assim. Na segunda rodada de conversas, pós-lauto café, entrevistador e entrevistado parecem menos bloqueados e a entrevista flui melhor. Não tão melhor assim: volto para casa com a sensação de que não havia encontrado o tom certo da prosa. Essa incerteza tem um reforço: o ator sugere que as entrevistas se encerrem no dia seguinte, numa sessão de conversas mais longa. O que reforçou a minha (àquela altura) tese de que o depoimento não estava sendo muito prazeroso para o depoente e de que estaria considerando tremenda perda de tempo aquelas conversas. Verdade que a atitude gentilíssima do ator de (na tormenta bíblica que se abatia sobre o Rio de Janeiro naquela noite de julho) oferecer-me carona até o ponto de táxi mais próximo já que o serviço que, gentilmente de novo, havia chamado pelo telefone prometia só chegar em 40 minutos, acalenta-me bastante. Acalenta-me mais ainda, quando, táxi à porta da casa, abriga-me sobre guarda-chuva, leva-me até o carro e, com jeito de velho amigo, sorri e despede-se com simpático “até amanhã”! Dia seguinte pela manhã, em telefonema para confirmar o horário exato das entrevistas desse dia, ouço comentário que não me anima: “Achei meu depoimento de ontem melodramático demais. Você não achou, não?” Talvez não concordasse com o “melodramático”, mas certamente esperava que a segunda longa rodada de conversas fosse mais, digamos, emocionante. Mas nada lhe digo a respeito. Fui firme (embora sem muita convicção), mas talvez meio vago: “Achei o depoimento ótimo. Aquelas coisas que você disse precisavam ser ditas”. É no meio das conversas desse dia, quando se fala das aventuras e desventuras do ator depois de se mudar para o Rio de Janeiro, que decifro o enigma. O xis da questão parece-me então ululante: o pouco entusiasmo dos depoimentos do dia anterior, quando basicamente se evocaram as vivências do ator na cidade de Curitiba, onde morou até os 31 anos, é então substituído por entusiasmo e alegria nada flagrantes na conversa da véspera. Ou seja: para Ary Fontoura, falar sobre o Rio de Janeiro era muito bom; falar sobre Curitiba, nem tanto. Resultado: nesse segundo dia a conversa flui tão generosamente e tão prodigamente que nem percebemos que ficamos sete horas conversando, quase ininterruptamente. O “quase” ficou por conta da segunda rodada do lauto café servido pela baiana Nilza, britanicamente, às seis da tarde (a ascendência inglesa do ator parece ter modificado a certa falta de rigidez de horários que caracteriza a, digamos, baianidade). Histórias, memórias e sentimentos notáveis vão sendo resgatados e, mais bem, interpretados, como se o ator Ary Fontoura estivesse no palco, no pleno domínio do seu tempo de comédia, e eu fosse um único, e privilegiado, espectador. Dono de memória acuradíssima, Ary Fontoura relembra momentos dramáticos e cômicos sem pudor. Detalhe curioso: o ator não se recusa a falar sobre nenhum tema. Mas o gravador não age da mesma maneira. Especificamente quando o ator fala, com certa eloqüência, sobre o jeito nada místico de ser que lhe é peculiar. Tecia considerações algo céticas, até mesmo desdenhosas, sobre a máxima shakespeariana “há mais mistérios entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia”, quando a fita do gravador empaca. Nada fez com que se movimentasse de novo, embora outras fitas e pilhas fossem testadas. Só alguns minutos depois, quando a prosa toma outro rumo, o gravador volta a gravar normalmente. Eu, nem tão cético assim, prefiro repetir fala de personagem de novela: “Mistérios...” Ary Fontoura, nem tão esotérico assim, não vê nisso nada demais, apenas franze as sobrancelhas. Enfim... Mesmo com gravador empacando e tudo o mais, são horas de prazerosíssima prosa que procuro registrar fielmente nas páginas a seguir. Tão prazerosa que me fez rever (e reavaliar) a primeira rodada de conversas. Ao ouvir de novo, em Brasília, as gravações dessas entrevistas do primeirodia, percebi: as revelações ali feitas podem não ser tão lúdicas e efusivas quanto as que o ator vivenciou a partir do momento em que se mudou para o Rio de Janeiro. Mas ajuda a esclarecer a genealogia do ator, a maneira como o ator foi se edificando a partir do barro moralista e conservador da pacata Curitiba dos anos 40, 50 e 60. Nas palavras de Ary Fontoura, foi ali que aprendeu a“fingir”, tijolo básico, alicerce vital, na gênese de um grande (e mentiroso) ator. Foi só então que percebi também nessas conversas A.R. (antes do Rio), a grandeza do episódio do encontro do menino Ary com o “outro”, com o que não era espelho, na pequeníssima, mas fundamental, Entre Rios. Enfim, se faltou efusividade, sobrou profundidade. Ao juntar-se o depoimento algo sorumbático do primeiro dia com o depoimento algo efusivo do segundo dia, se junta também o Ary Fontoura, lunar e desconfiado, com o Ary Fontoura, solar e confiante. Nessa junção, este livro-depoimento procura desvendar o ator como ele de fato o é: o somatório de duas cidades absolutamente diversas, mas igualmente fundamentais na gênese do ator. Uma Curitiba o esculpiu; a outra, o Rio de Janeiro, o explodiu. Mas não podemos esquecer a pequena Entre Rios, no interior do Paraná: foi ali onde a iluminação se deu, onde o ator se fez carne. Ao final da fase carioca das entrevistas, é um Ary Fontoura totalmente solar que se revela aos olhos deste jornalista-escritor. Após sete horas de entrevistas, ainda tem fôlego para listar de memória todas as quase 40 peças em que atuou no Rio de Janeiro. Ato falho, não se lembra apenas de uma, a que considera ter sido o seu fracasso teatral mais retumbante. Liga então para o ator José Augusto Branco, com quem atuou nesse espetáculo, em Maricá, interior do Estado do Rio, apenas para apurar essa informação. Informação apurada (a peça justissimamente esquecida chamava-se Secretíssimo), Ary Fontoura ainda tem fôlego para: a) Lembrar histórias engraçadas que viveu no teatro (o que me obriga a novamente ligar o gravador, agora funcionando normalmente, para registrá-las). b) Falar com orgulho sobre os quatro mil CDs que tem em casa (“tudo em ordem alfabética!”). c) Botar para tocar o único disco que gravou na vida, e, como o leitor poderá perceber nas páginas a seguir, um dos mais diletos companheiros do ator por toda a vida; nele, duas canções compostas pelo ator, sim, Ary Fontoura também compôs músicas: Viela Iluminada e Nega de Maloca. d) A revelar um bom-humor cabalmente envolvente, que no dia anterior nem desconfiei existir naquele homem. Meia hora depois, quando finalmente chega o táxi que me levaria embora (motivo do atraso: a chuva torrencial que continuava a cair sobre o Rio de Janeiro), Ary Fontoura, a essa altura figura tão familiar que parecia ser um parente próximo que conhecia há décadas, me leva até o carro, sob a proteção de amplo guarda-chuva. Ao me despedir, sugere: “Quando vier ao Rio de Janeiro, não deixe de vir tomar um café conosco aqui em casa!” Nilza, que também me acompanhou, sob uma colorida sombrinha, reforça: “Venha mesmo!” Conclusão: pela prosa e pelo café, o convite é tentador. Rogério Menezes Capítulo I AR (Antes do Rio) Ary, avós, pai, mãe & irmãos Meu nome é Ary, com Y, Beira, com B de Brasil, Fontoura. Nasci em Curitiba em 27 de janeiro de 1933. Meu pai se chamava Antonio Beira Fontoura; minha mãe, Estelita Travisani Fontoura. O pai de meu pai, que também se chamava Antonio Beira Fontoura, era de origem portuguesa. A mãe de meu pai, de origem inglesa, nascida em Londres, chamava-se Fanny Cooper. Minha mãe é de origem italiana, meus avós eram italianos, chamavam-se Saturnino e Pasqualina Travisani. Tenho um irmão e duas irmãs; uma delas, a caçula da família, a Fanny, faleceu. Os outros dois são minha irmã Estela, com 81 anos, e meu irmão Ivan, que é médico e tem 79 anos. Essa minha irmã de 81 anos, que atualmente está aposentada, era professora. Mas faz, para se divertir, pontas em comerciais de televisão em Curitiba, onde mora e onde é sempre convidada para esse tipo de participação. Mas nunca chegou a fazer teatro. Nem o meu irmão. A minha irmã que morreu tinha vocação para o teatro, tinha muito jeito, cantava bem, declamava bem, fez algumas peças de teatro amador comigo, mas não prosseguiu. Casou com um cara muito enjoado, muito chato, muito preconceituoso, e que achava que o teatro era um outro caminho, que não era o caminho dela. Minha irmã, apaixonada, cedeu, e a vida dela a partir de então ficou restrita apenas ao casamento. O avô e o pendor pela arte Na minha genealogia não houve nenhum artista. Mas o meu avô materno, Saturnino Travisani, que veio de Gênova, na Itália, era apaixonado por música, por teatro, por ópera, pelas artes em geral. Embora fosse um sujeito não muito culto, era semi-analfabeto e veio como imigrante para o Brasil, dizem que teria o nome dele inscrito num camarote do Scala, de Milão, por causa de uma assinatura anual do teatro que possuía. Mesmo quando veio para o Brasil, continuou pagando essa taxa, com a esperança de um dia voltar para lá. Isso me pareceu uma grande paixão da parte dele pela arte. Então acho que esse meu pendor pela arte veio dele, que passou isso para minha mãe, mulher extremamente sensível, que transferiu isso pra mim. Meu avô era muito apegado à minha mãe, que era a preferida dele. Não quis que minha mãe, com 14 anos à época, casasse com meu pai. Como tinha muitas posses, possuía quase um quarto de Curitiba, era um sujeito bem-sucedido na vida o meu avô pediu a ela, encarecidamente, que não se casasse com meu pai. Ele não gostava de meu pai. Nunca gostou. Então prometeu a minha mãe uma bolsa de estudos para aprender a tocar violino na Itália, caso não se casasse com meu pai. Queria muito que minha mãe se tornasse uma grande violinista. Mas eu evidentemente tinha que nascer, já estava escrito isso, e minha mãe se rendeu ao chamados do coração, e casou com meu pai, à revelia do meu avô. Sempre aos domingos Com essa atitude de minha mãe, de preferir o amor por um homem ao amor por um violino, meu avô ficou sem ter para quem transferir essa paixão que tinha pela arte, por música, por tudo. Parece então que a coisa acabou sobrando para mim. Sempre o visitava aos domingos, quando ocorriam grandes almoços familiares reunindo a “italianada” toda. Tinha por volta de seis, sete anos nessa época, e ele sempre me pedia para subir em alguma cadeira e cantar um número musical, ou dizer uma poesia, ou qualquer coisa que pudesse significar algum tipo de manifestação artística. Não me fazia de rogado. Na verdade, adorava quando isso acontecia. Cantava, representava, dizia poesias. Algumas coisas tinha ouvido e apenas repetia. Outras inventava na hora, e meu avô ficava encantado comigo. A casa de meu avô em Curitiba, que existe até hoje, tinha um enorme corredor, com sete quartos de um lado e sete do outro, e um salão enorme onde recebia as pessoas, principalmente os comerciantes que iam vender coisas para ele, que era dono de um grande armazém, que vendia comestíveis em geral e erva-mate. Também tinha moinho de erva-mate. Meus tios foram todos se casando, a casa e os quartos foram ficando desocupados, e então a minha grande diversão passou a ser ficar sozinho naquele salão imenso e vazio e, em seguida, me fechar dentro de um quarto onde vovô guardava todos os discos, aqueles acetatos antiqüíssimos que mandava trazer da Europa com a voz dos grandes cantores da época. Meu amigo gramofone Ficava ouvindo aquelas canções num gramofone velho, que tinha uma agulha estragada. O som não era dos melhores. Mas fazia um cone de papel, botava embaixo da agulha, encostava o ouvido nele, rodava a manivela do gramofone, o disco girava e então passava horas ouvindo velhas óperas e cançonetas napolitanas, que eram as músicas que meu avô mais gostava. Eu me divertia com coisas assim. Às vezes perdia a hora e as pessoas demoravam de me encontrar. Mas, aos poucos, com o tempo, todo mundo passou a perceber que, sempre que ia à casa de meu avô e sumia, estava lá ouvindo música. Fazia muita traquinagem, era um garoto muito ladino, mas quando começava a ouvir aquelas músicas naquele gramofone velho esquecia tudo. Então as coisas de que mais gostava eram ouvir música e atender ao pedido de meu avô para subir em alguma cadeira e me exibir para uma platéia de parentes sempre garantida. Passei a aprender em todo caso alguma música nova durante a semana para cantar no domingo seguinte, pois tinha certeza que meu avô gostaria de me ouvir e ele invariavelmente gostava. A descoberta do circo e do cinema Aquelas músicas que escutava no gramofone velho me davam vontade de cantar cada vez mais e me transportavam para um mundo que só existia na minha imaginação. Tinha sete, oito anos de idade, não conhecia nada, nunca tinha ido a um teatro, nunca tinha ido a um cinema, porque a minha família não tinha esse hábito. A primeira vez que fui a um circo devia ter uns onze anos e foi uma noite memorável para mim. Meu irmão me levou e eu assisti ao espetáculo Deus lhe pague, do Joracy Camargo. O espetáculo era encenado por uma companhia chamada Circo Irmãos Queirolo, uma família tradicionalíssima em termos circenses. Sentei lá na arquibancada e, meu irmão depois me contou, não tirava os olhos do palco. Fiquei magnetizado por tudo aquilo que via. Não era para menos, nunca tinha visto uma coisa daquela antes. Ao cinema tinha ido antes disso. Aos dez anos me levaram para ver Romeu e Julieta, com a Norma Shearer e o Leslie Howard, que eu gostei demais. Os cossacos de Entre Rios Meu pai era professor primário, que corresponde hoje ao primeiro grau. De vez em quando, era obrigado a se mudar com a família toda, sair de uma localidade para outra, para fazer estágios. Quando tinha 4 anos mais ou menos nos mudamos por um ano para a cidadezinha chamada Entre Rios, lugarejo que tem perto de Ponta Grossa, no interior do Paraná. Eu me recordo muito bem, morávamos na praça central, uma praça grande, com uma igreja ao fundo e um salão paroquial. Era um lugar que nem luz elétrica tinha ainda, era tudo à base de querosene. Foi nesse lugar ermo e escuro que apareceu certo dia para se apresentar em praça pública um grupo de dançarinos cossacos. Não sabia exatamente o que seria aquilo, mas fui ver. Lembro até hoje: muitos homens dançavam ao som de uma música estranha e ruidosa e tendo como cenário apenas tochas de luz que se acendiam, se apagavam, e mudavam de cor. No final entrava em cena um homem no alto de um cavalo, que fazia acrobacias e dançava ao mesmo tempo, num tipo de apoteose, de grand finale. O teatro são os outros A partir daí não sosseguei mais. Tudo passou a ser para mim uma grande representação. Copiava tudo o que via. Fiquei um perigo. Quando via alguém com uma tesoura na mão cortando o cabelo de alguém, não demorava a querer cortar o cabelo das pessoas, de verdade. Eu “representava” de uma maneira muito realista, pra valer. Pegava as crianças do lugar e cortava o cabelo de todo mundo, cortava mesmo. Estava começando a brincar de fazer teatro. Havia nessa cidade de Entre Rios um homem, um andarilho, que usava barba muito grande e vestia enorme poncho. Era figura estranha, muito estranha. Usava um capuz, barba preta cumprida, e sempre tinha um cajado nas mãos. As pessoas tinham muito medo dele, diziam que era louco. De dia aparecia relativamente pouco na rua e não falava com ninguém. Às vezes pedia um prato de comida em alguma casa. Não era uma pessoa muito “certa”, na visão das pessoas da cidade. À noite ele costumava ter pesadelos terríveis e gritava e berrava em altos brados. Uma fera ferida Em minha casa, que não era perto de onde ele se escondia, a gente conseguia ouvir os berros dele. Urrava como se fosse um animal ferido ou uma pessoa pedindo proteção. Não podia ser de outra forma: ele despertou a minha curiosidade de maneira extraordinária. Quando falava isso pra minha mãe, quando procurava saber alguma coisa sobre aquele estranho personagem, ela ficava de cabelo em pé, assustadíssima. Porque sabia que era capaz de fugir e ir tentar descobrir onde aquele homem se escondia. A minha casa era de frente para a praça e a sala tinha duas janelas grandes que davam para a rua, com vidro do lado de fora e madeira do lado de dentro. Um dia, estava sozinho e comecei a ouvir os urros daquele homem. Ele gritava cada vez mais alto, cada vez mais perto e não tinha ninguém por perto, estava lá na sala sozinho, apenas com um lampiãozinho aceso ao meu lado. Mamãe estava em outro lugar da casa. Papai estava dando aula. Os meus irmãos deviam estar também no colégio. Sei que era minha mãe e eu em casa apenas. A alma humana se revela Quando ouvi aquele barulho cada vez mais próximo, olhei para um lado e para o outro, subi numa cadeira e abri parte da janela. Colado ao vidro estava aquele homem olhando assim para mim com uma cara de pavor terrível. Não senti susto nenhum. Abri mais a luz do lampião, iluminei o vidro da janela e vi exatamente a feição dele. Lembro de ele olhando pra mim, olhando, olhando, olhando. À medida que olhava para mim, comecei a tentar tocá-lo através do vidro, a passar a mão no rosto dele através do vidro. Era o único jeito, a única forma de pegar, de tocar nos olhos, no rosto dele, e ele me olhando. Fiquei fascinado por ele. E ele ficou quieto, no maior silêncio, enquanto isso acontecia. Daí eu vi duas lágrimas caírem dos olhos dele. Mamãe entrou na sala e foi o maior rebuliço. Quase morreu de susto, chegou correndo e me tirou da janela. Depois fechou a janela, a porta e não entendeu o que tinha acontecido. Ela foi mais movida pelo susto, pelo medo de que alguma coisa acontecesse. Ele foi embora em silêncio. Nunca mais voltei a vê-lo. Foi a única vez que o vi de perto. Não sabia o nome dele, ninguém sabia, era um mistério. Isso foi em 1937, por aí, tinha quatro anos. Muito tempo depois disso, entendi que tudo aquilo que acontecera, o fascínio por aquele homem misterioso, teve a ver com a essência do meu trabalho, com o fato de ter me tornado uma pessoa sensível, como ator, à alma humana. Acho que todo o ator que sou hoje começou a surgir ali, naquele momento. Aquele momento foi fundamental na minha descoberta. Descobri ali que era realmente isto, ser ator, que eu queria fazer. A minha família não levou isso, esse meu pendor por apresentações públicas e por imitações de cenas reais muito a sério. Era apenas o “engraçadinho da casa”. Mal sabiam que já fazia aquilo seriamente, fazia aquilo com uma seriedade fora do comum. Mas depois comecei a preocupá-los, a partir do momento que criei um certo discernimento e comecei a fazê-los entender que era aquilo que eu queria fazer pelo resto da minha vida. Levado da breca Apanhava muito, fui uma criança muito levada. Apanhava assim para corrigir alguns comportamentos que meus pais não toleravam. Vez em quando, mamãe me chamava: “Vem cá pra apanhar”. Era assim praticamente todo dia. Eu dizia: “Mas, mamãe!?” Ela insistia: “Vem aqui, se você não vier agora, você vai apanhar dobrado depois”. Saía correndo e pensava que esqueceria, voltava só bem mais tarde. Mas quando voltava pra jantar, me pegava de jeito, me dava três “varadinhas” numa perna e dava mais outras três na outra porque eu não “tinha ido apanhar no horário que ela ordenou”. Era punido porque fazia coisas assim como, por exemplo, cortar o cabelo de filha da vizinha. A menina era uma japonesinha linda, tinha um cabelo que era o xodó da mãe dela, que tinha prazer enorme de dizer para todo mundo o quanto o cabelo da filha era lindo. Então a menina ia lá pra casa e entrava na minha brincadeira de teatro. Perguntava pra ela: “O que é que a senhora veio fazer aqui?” Ela dizia: “Eu vim cortar o meu cabelo.” Cortava o cabelo dela e perguntava: “Agora quer que eu lave?” A japonesinha respondia: “Quero sim!” Tudo como era na vida real, tudo como eu vira na barbearia. Enquanto lavava o cabelo dela, perguntava se queria ouvir uma música, ela dizia que sim, e eu cantava pra ela. Imitação da vida Claro, não tinha noção de que estava fazendo teatro. Estava apenas imitando tudo o que eu via, o barbeiro que eu via, o padre que eu via. Porque minha mãe me levava na igreja para assistir à missa e ficava prestando atenção nas coisas engraçadas que aconteciam lá. Imitava também tudo o que via na rua, como um carroceiro que não conseguia seguir adiante com sua carroça porque o cavalo que a puxava empacou. Ia vendo as cenas do cotidiano e as reproduzindo nas minhas brincadeiras infantis, mas sempre com um olhar meio crítico que tentava colocar certo humor nas coisas. Mais velho, minha mãe me disse, lembrando esse tempo “Você sempre buscava a graça das coisas, você não olhava o lado dramático, o lado triste, tudo na sua mão ficava à sua maneira”. Tem banana na gaveta O meu avô italiano acompanhava isso tudo e adorava. Ele se projetou em mim o tempo inteiro. Acabou virando meu parceiro, meu comparsa, em pequenas traquinagens. Por exemplo: roubava banana, meu Deus, até hoje sinto o cheiro daquelas bananas! Era uma banana que naquela época chamávamos caturra, e que, acho, hoje chamam banana-d’água. Pegava aquela banana, ainda verde, e escondia em alguma gaveta da casa de vovô. Pois bem, pegava a banana verde, escondia, pegava ela de volta quando estava madura uma semana depois, e comia. Um dia, ele me viu fazendo isso e, em vez de me castigar, me ajudou. Toda a semana pegava a banana, escondia, e uma semana depois ia comêla madura. Só que um dia, não havia apenas uma banana, havia duas bananas. E descobri que era meu avô que colocara aquela segunda banana lá. Depois de um tempo, nem precisava pegar a banana verde e guardar. Era meu avô quem fazia isso, só precisava pegar a banana madura depois e comer. Correndo atrás da banda Fiquei apenas um ano em Entre Rios, mas foi um ano fundamental para mim. Porque fui lá que descobri essas coisas todas que se tornariam raiz da minha arte de representar, a origem desse gostar de mexer com a sensibilidade alheia, com os sentimentos alheios. O prazer que sinto pelo ato de representar começou a surgir ali. Tudo começou ali. Gostava de liberdade, não gostava de ficar preso, sempre estava achando um jeito de fugir, e desaparecia. Ia para os lugares mais diversos. Às vezes seguia as pessoas. Se havia alguma banda tocando lá estava eu atrás. Festa era comigo mesmo. A escola é uma festa Já de volta a Curitiba, não gostava da minha escola, o Grupo Escolar Tiradentes. Porque lá não tinha essa parte recreativa, os alunos de lá não tinham festa de final de ano. Logo não tinha que cantar nos feriados, não tinha bandeira para hastear. Entrava na sala de aula, estudava, era até um bom grupo escolar, mas depois a gente ia embora para casa, não tinha nada pra fazer lá. Mas ao lado da minha casa existia o Grupo Escolar Professor Brandão, que tinha um pátio enorme e que em todo o feriado promovia festa em que as crianças iam lá, cantavam, se apresentavam, e diziam poesias. Além disso, os alunos todos ficavam em forma, cantando em homenagem à bandeira nacional. Também tinha uma banda e uma exposição no final do ano, com os trabalhos manuais dos alunos e tudo o mais. Mas meu pai achava que esse era um estabelecimento maldirigido e coisa e tal. O grupo escolar que gostava era esse aí, que tinha festa, que era animado. Então o que é que eu fazia? Quando era feriado, meu grupo escolar estava fechado, não tinha festa, então ia correndo, me sentava no muro do Grupo Escolar Professor Brandão e pedia licença para entrar. Geralmente, me deixavam entrar porque me conheciam, era filho do professor. Aí ficava lá quietinho, vendo as pessoas cantarem, fascinado com aquilo tudo e querendo fazer aquilo tudo também. Um picadeiro no porão Comecei então a fazer circo na minha casa, com as crianças da vizinhança e para as crianças da vizinhança assistirem. Na minha casa, havia um porão e eu fiz lá um circo, com palco, com cortina e me apresentava ali pros meus vizinhos. Para aprender, todo domingo ia ao circo. Nessa época, os circos apresentavam números de trapézio, malabarismo e acrobacia na primeira parte. Na segunda, havia sempre uma peça em série, que continuava no domingo seguinte, que era pra gente voltar para ver o que tinha acontecido depois. Tentava imitar também os malabaristas e equilibristas, mas era muito ruim. Isso as pessoas, os meus amigos, faziam melhor. O elenco do circo era todo requisitado da vizinhança. Na verdade, as pessoas iam lá em casa ver o circo. As crianças da vizinhança adoravam. Todo mundo dizia que queria ir à casa do Ary Fontoura porque lá tinha circo. As crianças iam todas lá pra casa e os pais nem precisavam se preocupar. Depois do circo tinha baile, porque promovia bailes também. Todas as crianças dançavam e os adultos ficavam olhando aquilo tudo, encantados. O pequeno trabalhador Gostava de brincar, de me divertir, mas comecei a trabalhar muito cedo. Aos oito anos, passei a ganhar o meu sustento, trabalhando numa fábrica de graxa de sapato. Meu pai era professor e nessa época, no dia 15 de todo o mês, o dinheiro não existia mais. Um dia, ouvi meu pai dizer que o ordenado dele era muito ruim, não dava pra nada. A mamãe não trabalhava porque papai não queria. As mulheres eram muito subordinadas, o machismo era muito forte. Mamãe queria trabalhar, queria fazer alguma coisa, aprender datilografia. Lembro que falava tanto nisso, em trabalhar num escritório e ajudar o meu pai nas despesas da casa. Mas meu pai não permitia. Então o máximo que fazia, e fazia escondido, era costurar pra fora. Quando ouvi essa conversa entre meu pai e minha mãe, ela dizendo que estava difícil a situação, que de repente na mesa talvez fosse escassear um pouco a comida, que talvez não pudéssemos mais ter aquela variedade de coisas que sempre tínhamos, e que ele precisava dar um jeito, resolvi fazer alguma coisa. Papai era intransigente nos pontos de vista dele, achava que o que ele trabalhava era suficiente, não tinha essa vontade de crescer. Era uma pessoa que o que fazia ele fazia esplendidamente, fazia muito bem, era um professor extraordinário, mas não tinha ambição nenhuma, não queria crescer. Achava que tudo era vergonhoso, queria aparentar uma coisa que realmente não podia ser. Mesmo assim, sempre estava muito bem trajado, só tinha um terno, mas quando o vestia estava sempre nos trinques. Meu avô italiano rico não ajudava em nada. Meu pai não queria ajuda dele. Quando meu pai casou com minha mãe, meu avô disse pra minha mãe: “Então, vão fazer a vida de vocês.” Não deu enxoval, não deu festa, não deu casamento, não fez nada, e nunca ajudou em nada. Até a mim, que gostava muito, só dava uma coisinha ou outra e de vez em quando. Mas quando ele sentia que a falta de dinheiro estava atingindo os netos, chamava mamãe, passava um “sabão” nela e dizia: “Viu no que deu o que você fez. Leve isso aqui...” E dava alguma coisa à minha mãe. Quer dizer, jamais se passou fome em casa, mas meu avô era intransigente com relação à atitude que mamãe tomou. Ele não gostava de papai, achava que papai era uma pessoa sem ambição, como de fato era, só que ele viu isso com antecedência. Então, vendo aquela conversa de que ia faltar comida em casa, pulei a cerca do quintal: ao lado da minha casa tinha uma fábrica de graxa de sapato. Fui procurar trabalho lá, e consegui. Quero contar isso para as pessoas não fantasiarem tanto a respeito da vida da gente, atores, e sentir que não só para ser ator, mas, para ser qualquer coisa na vida, a gente passa por muita coisa. Em qualquer profissão, em qualquer ramo da vida, a gente tem altos e baixos, tem momentos bons e momentos maus. O entregador de marmitas Quando meu pai e minha mãe descobriram que estava trabalhando acharam que era cedo demais. Minha função na fábrica de latas de graxa de sapato era colocar umas latinhas em cima de uma mesa, enchê-las de tinta, esperar que aquilo coagulasse, se solidificasse, tampá-las e colocar-lhes rótulos, e depois então encaixotálas. Ganhava por dúzia trabalhada e trabalhava das sete da manhã ao meio-dia, pois à uma hora tinha de estar no colégio. Então a partir de oito anos de idade, nunca fui um peso pra minha família, sempre tive meu dinheiro. Esse dinheiro me ajudava a comprar sapato, calça, camisa, a pagar pequenas despesas. Lá pelos dez anos, em 1942, na época da Segunda Guerra Mundial, a vida ficou ainda mais difícil. Pra reforçar o meu orçamento passei a também entregar marmita nas casas. Apanhava essas marmitas, eram oito marmitas, na casa de uma mulher que as cozinhava e as levava nas casas na hora do almoço; mais tarde ia buscá-las. Ganhava um dinheirinho para carregá-las. Aí um dia, a mulher me disse que estava cansada, que estava com vontade de parar. Quando ouvi isso lembrei logo de minha mãe, fui correndo pra casa e perguntei pra mamãe: “Por que a senhora não cozinha pra fora? Por que a senhora não começa a cozinhar? A senhora cozinha tão bem! E a senhora vai ganhar um dinheiro pra ajudar nas despesas.” Mamãe me ouviu e começou a cozinhar pra fora. Dali a pouco todas as marmitas que eu carregava eram feitas por minha mãe. Além de entregar as marmitas, ajudava ela na cozinha. Já tinha saído da fábrica de graxa, estava lá trabalhando apenas para ela, entregando marmitas e ajudando-a a cozinhar. E ela, que sabia que muitos meninos me gozavam porque trabalhava na cozinha, me dizia: “Não liga não ao que os outros dizem por aí, que homem não deve estar na cozinha, que isso é coisa de mulher, e que homem que trabalha na cozinha é maricas. Não liga para isso não, porque um dia você vai precisar e você vai saber fazer. Então eu vou te ensinar”. Foi então que aprendi a fazer bolinho, a fazer peixe, a fazer tudo na cozinha. Aprendi direitinho. Quando vim para o Rio de Janeiro, em 1964, percebi como foi importante ter aprendido a cozinhar com minha mãe. A “praga” da madrinha Nesse período, na nossa casa não tinha música, não tinha rádio. Meu pai era avesso a essas coisas e, além do mais, a gente não podia comprar, era tudo muito caro. Só quem tinha muito dinheiro era que podia comprar essas coisas. Televisão ainda não existia. Nessa época, a minha madrinha Iracema vivia falando assim pra mim: “Você canta muito bem, você é muito engraçadinho, você interpreta muito bem, um dia a madrinha vai ter o prazer de ver você famoso! A madrinha vai rogar uma praga em você, e praga de madrinha não se deve desprezar porque sempre pega: quero ver o seu nome em um cartaz bem grande bem em frente a um cinema, você trabalhando num filme, quero ver você se transformar num grande artista.” Minha madrinha me incentivava muito, e um dia, ela me disse: “Leva de presente pra tua casa, é um rádio!” Era um rádio pequenino que a gente chamava de “rabo quente”. Naquela época tinha ondas curtas, médias e longas, e nem todos os rádios pegavam em ondas curtas. Para se ouvir a Rádio Nacional lá em Curitiba só podia ser à noite e o tempo precisava estar muito bom. Se o tempo estivesse ruim não se conseguia ouvir nada. Ainda assim, pude descobrir a Rádio Nacional, que tinha programação espetacular. Os professores do rádio Apresentavam-se na Rádio Nacional todos os grandes artistas do teatro brasileiro, havia radioteatro, todos os grandes cantores eram do elenco da Rádio Nacional, tinha três orquestras, que se apresentavam ao vivo sob a batuta de grandes maestros. O que me fascinou mais foram as radionovelas. Passei a acompanhar os capítulos, mas não como quem acompanhava simplesmente. Ouvia a fala dos atores e repetia. Tinha um caderno no qual anotava os nomes de todos os personagens e de todos os artistas que os interpretava. Havia noites, que não dava pra ouvir O Direito de Nascer porque o tempo não ajudava. Ou porque às vezes papai não permitia. Ele proibia, ele desligava o rádio, achava que aquilo era coisa do demônio, e a gente não podia ouvir e ia dormir, todo mundo muito triste, principalmente eu. Recordo uma vez, quando a Rádio Nacional transmitia apresentações de cantores no Cassino da Urca, no Rio, que estávamos todos reunidos para ouvir a apresentação de Pedro Vargas, cantor mexicano que lançou no Brasil músicas como Besame Mucho, Nosotros e muitos outros boleros. Exatamente na hora que ele ia começar a cantar, papai chegou, desligou o rádio e obrigou todo mundo a ir para a cama. Nunca me rebelei contra meu pai, não tinha como. Ele às vezes era um pouco violento, às vezes batia em mamãe e a gente tentava evitar a ira dele ao máximo. Quando viajava para outras cidades do Paraná e viajava muito porque a partir de certa época deixou de ser professor e virou inspetor de ensino, às vezes ficava dez, quinze dias fora de casa. Era um alívio, podíamos ouvir rádio em paz. Mas quando papai voltava de novo para casa era uma tristeza. Quando papai estava de bom humor Mas, mesmo assim, gostava muito de meu pai, não gostava era do que o meu pai fazia, é diferente, né? Não gostava das atitudes que tomava, mas o amava. Quando estava de bom humor, era maravilhoso. Meu bom humor devo a ele, isso vem dele. Ele era bem-humorado, apesar de tudo. Mas havia épocas que não era. Acho que papai nunca se abriu pra ninguém, acho que nunca falou pra ninguém o que de fato dentro dele se passava. Pareceu-me sempre auto-suficiente, muito senhor dele próprio, mas acho que no fundo foi pessoa muito sofrida. Papai era considerado uma grande esperança no lugar onde morava, um bairro muito pobre de Curitiba. Tinha dois bairros muito próximos, o AHU de Baixo e o AHU de Cima, um rico e outro pobre. No AHU de Baixo era onde meu avô morava, onde os ricos moravam. Já no AHU de Cima, onde a família de meu pai morava, todo mundo era muito pobre. Papai tinha um cavalo e com ele ia pro colégio ensinar, sempre muito bem-arrumado. Era nele que a família de meu pai depositava todas as esperanças de progresso e ascensão social, pois ele era letrado, enquanto os demais familiares, não. Acho que minha avó tentou botar isso na cabeça dele, de ele ser a grande esperança de progresso da família, mas acho que papai não segurou essa história e ficou muito frustrado por não ter conseguido realizar o sonho de minha avó. Lembro que meu pai falava inglês com vovó. Não escrevia uma palavra em inglês, mas falava muito bem, embora nunca tenha passado isso pra gente. Só falava em inglês com ela, em casa era uma língua proibida, tanto que eu e meus irmãos tivemos muitas dificuldades com inglês na escola. Minha avó inglesa era uma mulher agradável, até mesmo engraçada, e falava português corretamente. Mamãe estava sempre de bom humor Mamãe, ao contrário, abria a linguagem para os filhos, nós todos falávamos italiano em casa, a gente conversava muito em italiano. Ela vivia cantando, era muito efusiva, faleceu agora em 2004, com 99 anos, e lúcida, completamente lúcida. Papai faleceu com 64 anos, e era um homem sem vícios, não fumava, não bebia, dormia na hora certa e acordava sempre muito cedo. Minha mãe era muito alegre, mas era tolhida pela paixão que tinha pelo meu pai. Nossa, minha mãe amava o meu pai! Embora dissesse que não era bem assim, ela adorava o meu pai sempre, sempre, sempre, até no final da vida dela. Ele foi o homem da vida dela. Por ele deixou tudo, e nunca se queixou, nunca se arrependeu. Às vezes se queixava pelo fato de ele não querer progredir, mas era só. A mulher era muito submissa, não podia se rebelar, não existia isso de hoje em dia de a mulher ser dona do seu próprio nariz. Sair de casa com 14 anos de idade, deixar o quarto maravilhoso que tinha, abandonar todas as regalias e ir morar numa casa cheia de frestas e com uma cama que desabou na primeira noite em que nela dormiram! Sim, com certeza havia muita paixão de minha mãe pelo meu pai. Ai, que preguiça! (I) Não gosto de uma certa preguiça que tenho e que acho que herdei de meu pai. Eu me acho preguiçoso, trabalho muito, mas me acho preguiçoso. Há certas coisas que deixo passar, me distraio e as coisas vão embora. Isso eu não me perdôo porque acho que não poderia ser assim, acho que deixei passar muita coisa. Mas também não posso ser tão rígido comigo mesmo, porque as condições que tinha, que enfrentei, eram bastante precárias. Não tinha apoio de ninguém, as minhas idéias eram consideradas absurdas nas cabeças deles. Ser ator naquela época era sinônimo de tudo que era ruim. Se fosse mulher era considerada prostituta; se fosse homem era considerado homossexual. Ser ator não era profissão para uma pessoa honesta. Meu querido amigo Arquimedes Era bom aluno nas coisas que gostava, de português, francês, mas química, matemática, odiava. Na primeira infância não, era bom aluno em tudo, ia às aulas, gostava de ir às aulas, achava tudo uma grande descoberta, todo dia tinha uma descoberta, uma novidade. Depois, quando entrei no ginásio, com 11 anos, acabei repetindo o primeiro ano ginasial e vou lhe explicar por quê. Tinha um amigo meu, o Arquimedes Mace-do, que brigava muito com o pai e que, quando tomava conta do armazém dele, aproveitava para enfiar algum dinheiro no sapato. Era da nossa turma. Assistíamos à primeira aula, que era de uma da tarde às quinze para as duas, e nos mandávamos para o cinema que começava a sessão às duas. Íamos para o Cine Palácio, lembro tão bem, era um cinema enorme, ou ao Cine Avenida. O Arquimedes pagava para quem quisesse ir ao cinema e íamos assistir tudo que passava. Fui ao cinema, nesse esquema, durante o ano inteiro. Vi tudo que passou no cinema nesse ano, tudo, tudo, tudo. Tive quinhentas e oitenta faltas. Quando foram ver meu boletim era tarde, não tinha passado de ano. Minha mãe chorou, fiquei triste porque ela chorou. Acabei ficando de castigo, passei as férias todas dentro de casa, sem poder sair. Mas valeu a pena ter perdido o ano. Fiquei completamente encantado com atores como Gary Cooper, James Stewart, Robert Taylor, Tyrone Powell, Linda Darnell, aquelas mulheres todas maravilhosas. Tinha todo tipo de filme – faroeste, filme de amor, filme de guerra, daqueles muitos que os americanos fizeram contra os japoneses. A gente via tudo que aparecia, às vezes vários numa mesma tarde, porque os filmes mudavam muito. Era assim: começava um filme às duas horas, tinha um outro às quatro, e depois, no final, ainda exibiam um seriado. Na rádio a primeira escola de teatro Quando comecei a ouvir rádio e a escutar as novelas e repetir as falas dos atores, estava aprendendo a representar. Esse foi o meu grande aprendizado, aprendi a representar ouvindo novelas de rádio, ouvindo as novelas da Rádio Nacional. Foi a minha primeira escola teatral. Quando tinha 15 anos, fiz teste na Rádio Guairacá, em Curitiba, que abriu o corpo de radioatores, iam fazer o elenco do radioteatro, e passei em primeiro lugar. Problema: a minha voz ainda era muito infantil, o que obrigou, até que minha voz engrossasse, a só fazer papéis infantis. Aprendi a representar ouvindo na Rádio Nacional grandes atores representando, atores como Rodolfo Mayer, Celso Guimarães, Mario Brasini, André Villon, Demício Costa, Floriano e Roberto Faissal. Lembro que um dia, ouvindo uma dessas radionovelas, eu me disse: “Um dia vou trabalhar nesse lugar! Um dia vou fazer isso!” Quando passei no teste na Rádio Guaicará, e em primeiro lugar, fiquei ainda mais ciente de que realmente estava no caminho certo, no meu caminho. Declamando e cantando & seguindo a canção Ia a festas e aniversários e sempre me pediam para declamar versos, poesias, e eu declamava. Para falar a verdade, era uma grande frustração quando não me pediam para cantar uma canção ou declamar algum verso. O que me fascinava era perceber as pessoas me admirarem e de ficarem me fazendo elogios, dizendo que fazia aquilo muito bem. Isso fazia com que sentisse vontade de crescer mais, de aprender mais, pois queria cantar melhor, queria declamar melhor. Então passava horas lendo poesia, separando os versos de que gostava mais, e decidindo quais eu declamaria na próxima festa para a qual me convidassem. Também cantava músicas da época, repertório que incluía Carlos Galhardo, Orlando Silva e Vicente Celestino, de quem cantava O Ébrio e era sempre muito aplaudido. Cantava de ouvido, ouvia, aprendia a música, não cantava às vezes no tom do cantor, cantava no meu, não precisava ser igual. Recitava poesias do Catulo da Paixão Cearense e de muitos outros autores, como Helena Kolody, extraordinária poetisa parananense. Luar do Sertão & Ode a Prestes Acho que a primeira vez que me apresentei para um público maior, o que se poderia dizer que foi minha grande estréia, foi aos 13, 14 anos: cantei Luar do Sertão, de Catulo da Paixão Cearense, numa grande festa no Clube da Aeronáutica de Curitiba. Nessa mesma época, também participei de um comício comunista. Explico: tinha um vizinho comunista, o Seu Oswaldo, que sabia que cantava bem e que gostava de me ouvir cantar. Um dia ele me encontrou e me disse: “Vou te ensinar um hino muito bonito pra você cantar num comício”. Alguns dias depois já tinha decorado a letra, que era assim: “Trabalhadores do Brasil / são vocês os alicerces da nação / queremos que nunca lhes falte / leite, carne e pão / Depois de acabar com o imperialismo / que para nós é a maior das pestes / demos vivas ao nosso companheiro / Luiz Carlos Prestes.” Não tinha, evidentemente, a menor noção do que estava cantando, mas fiz muito sucesso. Sempre aos domingos, ia lá, cantava aquela música, ouvia muitos aplausos e depois ainda tinha refrigerante e churrasquinho, que comia até me fartar. Mas não durou muito essa minha aventura no mundo do comunismo. Um dia cheguei em casa muito alegre, e meu pai me perguntou: “Onde você tem ido sempre aos domingos com seu Oswaldo? Seu Oswaldo está levando você pra que lugar?” Eu: “Ah, é num lugar assim, é uma praça, só quando faz sol, é uma praça, a gente vai e tem uma porção de gente, é piquenique, o pessoal cantando.” Meu pai: “E você?” Eu: “Anunciam o meu nome, vou ao microfone, e canto.” Meu pai: “E o que é que você canta?” Eu: “Canto esse hino.” E cantei o hino para o meu pai. Resultado: nunca mais voltei a cantar naquele comício comunista. Nessa época, por ocasião da visita de Getúlio Vargas a Curitiba, fui escolhido para saudá-lo, entre todos os concorrentes de outros colégios. Ganhei um beijo na testa do “vovô Gegê”, como ele era chamado. Ou seja: um viva ao Prestes e um beijo do Getúlio! Ser ou não ser Engraçado, na minha vida tudo tem a ver com música, que, aliás, surgiu na minha vida primeiro que o teatro, a partir do gramofone do meu avô. Tinha uma época em que eu pensava: “O que será que vou ser? Será que vou ser um ator que canta, ou um cantor que é ator?” Fiquei nessa dúvida muito tempo. Então resolvi, descobri que quanto mais aprendesse a dançar, aprendesse a cantar, aprendesse a representar, tudo estaria no contexto do que queria fazer da vida. Foi quando comecei a me aprimorar. Sabia que ia precisar de recursos vocais para ser ator, logo a forma de aprimorar a minha voz seria colocála bem, aprender uma respiração correta. E isso tinha que ser feito através da música, mesmo porque em Curitiba, então uma cidade muito pequena, com pouco mais de 250 mil habitantes, não havia escola de teatro, não havia teatro, não havia nada. Comédia no sangue Fui autodidata quase o tempo todo, e isso foi fundamental para o meu aprendizado. Por isso digo que graças a Deus repeti o primeiro ano ginasial, porque este ano foi para mim talvez o ano mais fértil da minha vida em termos cinematográficos. Porque sei o quanto o cinema dá possibilidades de ampliar o nosso mundo de interpretação. Sempre foi assim, o cinema sempre foi um modelo muito grande para as pessoas meio esquecidas que moram em cidades pequenas e que não têm outros recursos como uma escola de teatro. Aprendi muito assistindo nesse período a filmes com Laurence Olivier, os Irmãos Marx, Chaplin, os Três Patetas, O Gordo e o Magro, Peter Sellers. Estou com certeza mais associado à comédia, todo mundo acha isso. Quando era criança o que mais chamava a atenção nas pessoas era o fato de que tudo o que via, por mais dramático que fosse, sempre revelasse o lado mais engraçado. Já tinha esse olho clínico para o cômico, esse olhar crítico. Quando cortava o cabelo de alguém, quando imitava um padre rezando uma missa, ou quando reproduzia a cena do carroceiro cujo burro empacava no meio da rua, acrescentava a minha crítica, imprimia um tom de comédia a tudo isso. Fanny e eu; eu e Fanny Meus irmãos eram muito preocupados assim com as coisas que eles se destinaram a fazer. Éramos muito unidos, mas também muito separados, cada um com seu mundinho particular. Apenas com essa minha irmã Fanny, que morreu, houve aproximação maior porque parecíamos gostar das mesmas coisas. Ela gostava de cantar e comecei a botar na cabeça dela que devia ir cantar na rádio. Tentei fazer a cabeça dela para ela fazer as coisas de que gostava. Era mais jovem que eu seis anos e era eu que a ensaiava e a levava para cantar em programas de rádio infantis de Curitiba. Também a levei para o teatro. Ela adorava teatro. Teria sido uma grande atriz se de repente tivesse seguido um outro tipo de vida. Nasce um ator Papai e mamãe eram contra, não gostavam da idéia de me dedicar ao teatro. Quando a coisa era na brincadeira, tudo bem. Mas foi ficando ruim quando comecei a levar aquelas brincadeiras a sério. Começaram a perceber que não estava brincando quando fiz o primeiro teste na rádio, com 15 anos, e passei em primeiro lugar. Depois, quando fui cursar o Clássico no Colégio Estadual do Paraná, nos anos 50, entrei para o corpo cênico do colégio e fiz a primeira peça. Intitulava-se Rosas de Nossa Senhora, uma opereta. Como nosso ensaiador era o professor Norberto Teixeira, de origem portuguesa, todos nós entrávamos em cena com forte sotaque, falávamos como se fôssemos portugueses. Essa foi a minha estréia oficial no teatro, tinha 17 anos, era 1950. Até essa época a minha vida corria sem pretensões, não tinha modelos, não tinha projetos de vida claramente definidos. Rádio me agradava muito e pensei que um dia gostaria de fazer. Mas também era movido por um impulso interior que não sabia muito bem justificar, esclarecer, saber exatamente o que era, do que se tratava. Foi a partir dos 15 anos, quando passei em primeiro lugar no concurso para radioatores que comecei a me entender mais. A entender porque ouvia rádio daquela forma, e os outros não. Porque os outros ouviam a mesma novela de rádio e ninguém além de mim repetia a fala dos atores, se preocupava em anotar nomes e guardar aquilo como se fosse um livro sagrado. Acho que foi aí que descobri que queria ser mesmo um ator. Educação sentimental Tive excelente educação por parte de meus pais. Nunca me esqueço, um dia pulei a cerca da casa do vizinho para pegar alguma coisa e um cachorro me mordeu no traseiro. Saí correndo e fui chorar nos braços de minha mãe. Ela perguntou: “Que é que você tem?” Contei: “Pulei a cerca do vizinho, e o cachorro me mordeu.” Ela então disse: “Então vem aqui apanhar.” Reagi: “Mas como?” Ela insistiu: “Vem aqui apanhar”. Pegou a varinha, bateu três vezes na minha perna, e chorei até não poder mais. Ela dizia: “Pode chorar.” Depois ordenou: “Agora tire a calça.” Foi lá na cozinha pegou uma bacia com água e sal, me botou no colo, meio de lado, e começou a limpar a minha bunda, onde o cachorro tinha me mordido. Cuidava do ferimento e aconselhava: “Agora escute: quando uma pessoa põe uma cerca em volta da casa é porque não quer que entrem na casa dela. Se tem portão, tem que apertar a campainha, bater palma, enfim chamar a atenção do dono, e, se o dono liberar, entrar. Se ninguém autoriza a entrada, como é que você vai lá e pula a cerca? O seu direito termina a partir do momento que tem um portão. Você tem que pedir licença para entrar nos lugares e na vida dos outros, em tudo. Tem que pedir licença para se intrometer, para interferir. Seu domínio termina quando começa o do outro”. Fomos criados assim. Ninguém choramingava, ninguém ficava se queixandoda vida. Se não tínhamos o melhor, se nossa vida não era melhor, era porque papai não queria despender um esforço maior para que a família progredisse mais. O que nos intrigava era: por que mamãe tinha que costurar às escondidas? Ou cozinhar às escondidas, se era uma coisa tão honesta? Se aquilo tudo podia resultar em melhoria de vida para a família? Não ficávamos lamentando porque não tínhamos dinheiro e o cara da casa em frente tinha. A gente se perguntava por que a gente não tinha casa igual àquela da frente e concluía: porque lá o pessoal trabalha mais do que aqui. Não sei quais regras mamãe tentava impor ao meu pai. Não me metia na intimidade deles, mas, às vezes brincava com ela e dizia: “A senhora devia chegar pra ele e dizer assim, não dou pra você durante uma semana, fazer a greve do sexo, e ele talvez tomasse alguma providência e se virasse melhor.” Ela ficava brava e ralhava comigo: “Que é que é isso, Ary, vai embora pra lá. Isso é coisa que se diga para sua mãe?” Cabeça vazia: oficina do diabo Quando meu irmão se formou em Medicina, depois de estudar durante seis anos, dormir cinco horas por noite e ser o segundo aluno mais aplicado da turma, um esforço extraordinário, não tinha roupa para receber o diploma. Teve que improvisar um peitilho de renda para participar da formatura e foi todo feliz. Antes de sair, minha mãe aconselhou: “Não tire o paletó em lugar nenhum.” Meu irmão, por baixo do peitilho de renda com papelão, vestia apenas uma camiseta surrada. Isso não nos abatia, víamos a vida com muita alegria, uma roupa passava de um para o outro sem problemas. Naquela época a pobreza não era uma coisa tão feia como é hoje, porque o consumismo não era esse que existe hoje, não tinha essa coisa de grife. As pessoas não se importavam se a calça que compravam tinha escrito Armani. Não tenho nenhum trauma de ter tido infância pobre. Na verdade, isso me ajudou muito, essa pobreza me trouxe uma infinidade de certezas e de decisões. Jamais me intoxiquei com drogas, jamais fui para o noticiário porque puxei fumo ou porque roubei, nada. Sempre soube, aprendi, muito cedo, que cabeça vazia é oficina do diabo, e a minha nunca esteve vazia. Sempre achei que trabalho não mata ninguém. Estou aqui inteiro com 73 anos de idade e continuo trabalhando. Há quantos anos eu trabalho! 73 menos 8 dá 65, logo trabalho há 65 anos. Antes de me encontrar para conversar com você, estava no escritório desenvolvendo projetos, fazendo coisas. Na minha infância difícil é que comecei a dar valor às coisas. Cada sapato que comprava eu sabia o suor que aquilo me representava. Não era uma pobreza envergonhada, a gente era pobre na medida certa e de acordo com o que tinha de ser, de acordo com o merecimento. A gente merecia ser de classe média baixíssima, porque as pessoas não tomavam providências. No caso, o chefe de família, o meu pai. O garoto que calculava Os livros eram uma presença constante na minha casa. Papai tinha livros, basicamente dicionários, adorava ler dicionários. Tinha outro livrinho que lia muito, que se chamava Orador Popular e apresentava sempre um modelo de discurso ideal para cada ocasião. Meu pai adorava discursar, era um bom orador e sempre discursava em aniversários. Meu irmão me trazia muitos livros de Agatha Christie, que adorava ler. Lia também José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Joaquim Manoel de Macedo. De Malba Tahan li O homem que calculava, que era um best-seller na época. Gostava de ficar parado lendo um livro, tinha uma vida interior muito intensa e gostava de me recolher às vezes. Faço isso até hoje. Sempre leio muito e para ler preciso ficar só. Não posso ler em meio a uma bagunça, tenho que ir pro meu cantinho e ler. Era assim no meu tempo de criança. Havia épocas na minha infância em que eu me recusava a aparecer, porque de repente as pessoas não me interessavam. Eu me reservava o direito de não gostar de uma pessoa, era meio seletivo e fui ficando ainda mais seletivo à medida que fui crescendo. O inferno são os outros Com 18, 19 anos, passei a ter uma vida muito solitária, comecei a ficar mais enclausurado, me fechei um pouco. Era um tempo em que precisava analisar as perspectivas para a minha vida. Sabia que tinha de me aprimorar, em todos os sentidos. Via as coisas que fazia em Curitiba, a reação do público, as pessoas que me hostilizavam muito, simplesmente porque eu fazia teatro, porque ouvia radionovela; segundo os mais preconceituosos, radionovela não era coisa para homem não. Homem não ouvia novela, só mulher. Ouvia muita coisa de que não gostava, ouvia muita coisa da parte dos amigos de meu irmão, que diziam: “Tira esse menino daí, não deixa ele ouvir radionovelas, senão ele vai ter problemas.” Ouvia aquilo tudo meio assim desconfiado, não sabia direito o que era. Depois, quando fiquei mais adulto, comecei a observar que aquilo tinha um grau de maldade grande, que muitas pessoas lançavam sobre você o que gostariam de fazer, mas não faziam porque não tinham coragem. Mas nunca deixei de ouvir novela de rádio por causa dessas pessoas, nunca deixei. Ainda bem que minha mãe dizia: “Não ligue não, Ary, não ligue, escute as novelas se você gosta.” Da mesma forma que havia me dito antes: “Aprende a cozinhar, Ary, as pessoas vão te chamar de maricas, de não sei o quê, mas não tem nada a ver. Aprende, isso vai te servir um dia”. Foi minha mãe que começou a me abrir os olhos para aquilo que as pessoas pudessem me dizer e que contrariassem a verdade das coisas, e isso me fortaleceu. Momento de decisão Mas por que eu comecei a ficar mais fechado? É isso que interessa. Não era porque não me comunicava com as pessoas. Ou porque as pessoas me deixassem num canto. Era porque sabia que mais cedo ou mais tarde teria que definir minha profissão, e essa profissão seria a de ator. Como fazer isso em Curitiba? Como fazer isso naquele lugarejo? Como fazer isso naquele lugar onde as pessoas hostilizavam quem fazia teatro daquela maneira? Como fazer isso num lugar que não tinha uma escola de teatro, que não tinha isso, não tinha aquilo, não tinha nada? Eu me perguntava: Quem é que me daria uma mão? Até que ponto conseguiria fazer isso sozinho? Porque eu era sozinho, muito sozinho. Era isso que me ensimesmava, que me deixava cada vez mais dentro de mim mesmo e que criava uma casca de solidão ao meu redor. Porque estava querendo me preparar para detonar alguma coisa na minha vida, para ir embora de lá, para ir para um lugar onde me ensinassem a fazer isso que eu queria. Foi quando aconteceu um encontro de literatura infanto-juvenil em São Paulo. Como escrevia no jornal do colégio, fui escolhido, outros nove alunos também, para ir para São Paulo participar desse evento. Para mim foi o máximo. Sabia tudo que acontecia em São Paulo, sabia do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, sabia da Cacilda Becker, sabia tudo que acontecia no teatro. Porque lia nas revistas, em O Cruzeiro, em A Cigarra. Lia as críticas teatrais, guardava essas críticas todas, especialmente as críticas do Accioly Neto, que era um crítico de teatro carioca muito bom. Abrindo um parêntesis: Aprendi espanhol no curso clássico, entre 17 e 19 anos, e um dia peguei uma revista na biblioteca do Colégio Estadual do Paraná. Lendo essa revista descobri o nome de uma editora Argentina, a Argentores, de Buenos Aires, que editava livros de teatro em espanhol. Como tinha aprendido espanhol, sabia falar, escrever, ler, aprendi em seis meses, eram seis meses de curso no colégio, todo mundo aprendeu espanhol, só não aprendeu quem não quis, comecei a me corresponder com a Argentores, e eles me mandavam livros em espanhol, livros de teatro e de literatura que não havia no Brasil. Fuga impossível Fomos para São Paulo e ficamos hospedados no Estádio do Pacaembu. São Paulo, como imaginava, me encantou e não quis mais voltar para Curitiba. No último dia da viagem, perto da hora de viajar, me escondi num banheiro. Só que dei azar. O professor me flagrou e falou assim: “O que você está fazendo aí? Você não quer ir embora, não é?” Disse: “Não, senhor. Quero ficar aqui”. O professor retrucou: “Mas agora você tem de voltar. Eu trouxe você e tenho de levar você de volta, sou obrigado a levar você de volta. Lá em Curitiba, quando você voltar, se você quiser tomar uma atitude, aí você toma por sua livre e espontânea vontade. Mas agora não. Vamos embora. Pegue a sua roupa, a sua bagagem, que a gente já está atrasado, e vamos embora!” Foi a viagem mais longa da minha vida: 24 horas dentro de um trem, sabendo o que é que me esperaria em Curitiba, aos 19 anos. Mas, mesmo triste por ter voltado a Curitiba, comecei a ter certeza de que o que queria era mesmo fazer teatro. Futebol & Nelson Rodrigues Depois de Rosas de Nossa Senhora, aquela opereta em que fiz o papel de um caipira, aos 17 anos, resolvi fundar uma companhia de teatro amador. Achava que aquela dicção portuguesa que o professor Norberto nos impunha era uma coisa muito antiga. Nessa época também jogava futebol, era goleiro. Até que ia bem, as pessoas gostavam de mim como jogador. Mas aí tive crise de apendicite, tive que fazer operação para tirar o apêndice e fiquei alguns dias internado no hospital. Foi quando uma vizinha, que sabia que gostava de teatro, me levou um livro para eu ler. Eram três peças: A mulher sem pecado, Vestido de noiva e Álbum de família, todas de Nelson Rodrigues. Li, adorei e prometi para mim mesmo: “Quando sair daqui deste hospital, vou largar mão de jogar futebol e vou fazer um grupo de teatro”. Então montei uma dessas três peças que havia lido e gostado: A mulher sem pecado. Dirigi, atuei, armei o elenco. Aprendi sobre teatro assistindo às peças de companhias de fora que iam a Curitiba. Várias noites na ópera Também via muita ópera. Ou melhor, metades de ópera. Hoje há umas dez óperas que conheço muito bem, mas isso de conhecer bem só aconteceu bem mais tarde. Naquela época, não tinha dinheiro para pagar, e tinha que criar esquemas para ver os espetáculos sem pagar. Acabava só vendo parte dos espetáculos. Como Curitiba não tinha espaço para as óperas se apresentarem, elas eram encenadas no Clube Concórdia. Para entrar sem pagar, pulava um muro de quase cinco metros de altura e caía no banheiro do clube. Dali ia, de mansinho, para que não me percebessem, assistir às apresentações da ópera. Mas, claro, só dava para chegar lá depois que o espetáculo já havia começado. Por isso, houve muitas óperas, das quais só conheci o primeiro ato delas, muito tempo depois. Algumas dessas óperas que vi meio pela metade pela primeira vez foram La Traviata, La Boheme, Rigoletto, O Barbeiro de Sevilha, Cavalleria Rusticana e Madame Butterfly. Dona Dulce e o barítono Por isso me entusiasmei por ópera. Porque eu também cantava, não era? Tinha uma professora russa em Curitiba, dona Dulce Oldarari, que me ensinava canto, que gostava muito de minha voz e que queria que participasse da ópera que queria montar, a Cavalleria Rusticana. Queria me transformar em cantor de ópera, mas falei que o que queria mesmo é que a minha garganta não ficasse ruim quando cantasse e colocar melhor a minha voz. Mas ela insistia: “Não, mas já você tem uma voz bonita, bem colocada, vou lhe transformar num cantor de ópera, você vai ver, você vai ser um barítono ótimo”. Comecei a estudar com ela e minha voz começou, de fato, a melhorar. Não fiz a ópera que queria que fizesse. Mas participei, a convite dela, de um recital em que cantei uma cançoneta napolitana chamada Marenariello . Família obriga recuo Depois daquela viagem para São Paulo, quando quase fiquei lá, cheguei em casa em Curitiba e falei com papai, com mamãe, com todo mundo que queria ir embora dali. Mas eles ordenaram: “Não, você tem que ficar aqui, porque a única coisa que a gente reservou pros filhos foi um curso. Você tem que ver o que você quer fazer. Teatro não tem escola aqui, tem que sair para estudar fora, mas você não vai sair daqui sem um diploma.” Eles também tentaram me dissuadir, listando para mim os problemas das cidades grandes. Diziam que uma coisa era viajar, a outra era morar. Aquilo acabou me desestimulando um pouco, enfraquecendo a minha vontade de ir embora. Além disso, sabia que minha mãe era muito apegada a mim, e a família toda também. Comecei a me sentir também protegido e percebi depois, chantageado. As pessoas gostavam de mim, não queriam que eu fosse embora, como é que poderia fazer uma coisa daquelas? Que egoísta que estava sendo! Se o que elas queriam era que eu tirasse um curso, que adquirisse um diploma e que só depois disso eu fosse embora, tudo bem. Então achei razoável aquilo tudo e me aquietei. Fiz vestibular pra Direito, pois achei que Direito era mais próximo do teatro, afinal de contas o tribunal é uma grande representação, não é mesmo? Mas não consegui me formar, cursei até o quarto ano e tranquei a matrícula. O anjo de camisola e o teatro de bolso Além de estudar Direito, era funcionário público e em 1955, com a inauguração do Teatro Guairá, passei a trabalhar lá. Também comecei a lecionar teatro no Colégio Estadual do Paraná. Foi mais ou menos nessa época que resolvi criar um teatro em Curitiba e criei o Teatro de Bolso. Minha idéia era implantar o profissionalismo em Curitiba. Esse teatro ficava num prédio que pertencia à Legião Brasileira de Assistência. Com muito sacrifício consegui o aval da primeira dama do Estado, que era a esposa do Moisés Lupion, então governador do Estado: ela me cedeu o teatro por 15 anos. Para instalar o teatro vendi tudo o que tinha e botei para funcionar. Só que não ia ninguém, o público não gostava. A peça que estreou esse teatro foi A camisola do anjo, do Pedro Bloch e João Evangelista. Antes do Teatro de Bolso fundei a Sociedade Paranaense de Teatro, que funcionava nos fundos do Instituto de Educação. Lá havia um pavilhão de festas e montei peças como Deus lhe pague, de Joracy Camargo; O homem que nasceu duas vezes, de Oduvaldo Vianna; Sinhá Moça chorou, de Ernani Ferari; A importância de ser prudente, de Oscar Wilde, ea A família de Linhares, de Paulo Orlando. A partir da segunda metade dos anos 50, passei a fazer tudo ao mesmo tempo: era um dos diretores do Teatro Experimental do Guaíra, fazia radionovelas, era diretor de radioteatro da Rádio Colombo e era proprietário, com mais alguns colegas, do Teatro de Bolso. Mas como falei antes, o público não aparecia para ver as peças que começamos a montar no Teatro de Bolso. Depois de A camisola do anjo, de Pedro Bloch, que quase ninguém foi assistir, montamos Massacre, de Emanuel Roblés. Era uma peça muito boa que já havia visto em São Paulo, com o Graça Mello no elenco, mas em Curitiba não funcionou, ficou só um mês em cartaz, o público não quis saber. O sucesso por linhas tortas Não tinha mais dinheiro, tinha perdido tudo, tinha posto tudo que tinha naquele teatro e me perguntava: “Meu Deus o que vou fazer agora, o que vou fazer da minha vida?” Minha idéia era fazer o melhor teatro, mas não funcionou. Aí tinha uma peça na minha gaveta que não quis nunca fazer, achava-a uma bobagem completa. Chamava-se Ela é só society e se passava em Curitiba. Eu me perguntava: “O que vou fazer com isto?” Além do mais, não tinha dinheiro para a montagem, não tinha nada, tinha apenas quatro refletores sem lâmpadas, o teatro estava numa pobreza terrível. Os atores não queriam trabalhar lá comigo, porque tinham idéia de fazer uma coisa melhor. Quando resolvi montar aquela peça, bem popular, acharam que era uma apelação muito grande. Mas eu disse: “Tenho que experimentar, porque de repente se dá certo essa, aí posso pensar em fazer uma peça com uma característica intelectual mais aprimorada” . Aí fiz. Reuni uns seis atores, alguns poucos que quiseram trabalhar comigo, e montei Ela é só society. Ficamos um ano em cartaz, um sucesso absoluto. Fez tanto sucesso que o teatro de 250 lugares lotava e o público, que fazia questão de assistir ao espetáculo, tirava o banco traseiro dos volskswagens e se sentava neles para nos assistir. Foi o meu primeiro grande sucesso no teatro. Um cenário em construção O espetáculo era muito aberto, o texto ia mudando com o decorrer das apresentações. A ação da peça se passava em Curitiba, e no espetáculo eu dava telefonemas em cena para as personalidades locais. Isso começou a correr na cidade, que tinha uma peça em cartaz que falava das pessoas de Curitiba. Isso criou boca-a-boca maravilhoso e resultou que para se ver a peça as pessoas tinham de comprar ingresso com 15 dias de antecedência. À medida que o espetáculo foi dando certo e o dinheiro foi entrando, fomos construindo o cenário da peça. No início era apenas um pano preto, umas portas e uns refletores vagabundos. Aí foi entrando dinheiro e fui comprando mais refletores, e comecei a fazer um cenário melhor. Isso fazia com que cada vez que as pessoas fossem assistir encontrassem um espetáculo diferente. Era como um jornal, a gente ia acrescentando “cacos sobre as coisas da cidade, coisas atualizadas”, falávamos sobre os escândalos da cidade. O povo então percebia isso e saía falando para outras pessoas sobre a peça e isso fazia com que cada vez mais pessoas se interessassem em ver a peça. Uma cidade em conserva Ainda em Curitiba, fiz outras peças, inclusive teatro de revista. A primeira foi Não me lote, Brasilino!, uma homenagem a Brasília, à fundação de Brasília, e que também brincava com o nome de Lott, o general Teixeira Lott, candidato à presidência em 1960. Era uma revista com vedetes. O texto era meu e do Maurício Távora. Importamos um bailarino do Rio de Janeiro, que fez o figurino e a coreografia toda do espetáculo. As mulheres – nenhuma atriz da cidade quis dançar no espetáculo – tive que ir buscar na zona do meretrício. Você não sabe como Curitiba era conservadora! Só para se ter uma idéia de como Curitiba era conservadora, vou contar uma história: uma vez uma mulher resolveu sair vestida de maiô, uma peça só, e foi pra rua. Colocou umas plumas no maiô e foi fazer o carnaval dela. Sabe onde ela foi parar? No hospital! As pessoas foram em cima dela, de uma maneira tal, os jovens principalmente, as pessoas que ficavam ali na Rua XV, que a moça acabou no hospital. Quase mataram a mulher. Esse era o carnaval curitibano. Besame, Besame Mucho Não foi difícil encontrar essas mulheres para atuar na revista porque me conheciam bem. Afinal de contas, para ganhar um dinheirinho extra, eu cantava em bordéis. Curitiba tinha um lugar chamado Bar Iririú, e lá o governador Nei Braga resolveu deixar um espaço só para as mulheres, para as prostitutas. Era perto de um hospício, numa região que surgiu a partir de um bar chamado Iririú. O Nei Braga, para ganhar voto, resolveu botar as mulheres todas lá. Então – desculpe a expressão – a putaria toda ficava restrita àquela parte da cidade. Tinha umas duzentas casas de prostituição. A prostituição no Paraná era muito grande. Houve época, em Londrina, em 1952, que três quartos da cidade eram prostíbulos, já pensou? Cantava geralmente boleros num salão grande, com várias mesas, eram mais ou menos 20 mulheres que trabalhavam lá, cada uma tinha o seu quarto. Abria às 9 da noite e, acompanhado de um regional, começava a cantar para o pessoal dançar. Os homens chegavam, se acertavam com alguma mulher, tomavam cerveja, dali já saíam para dançar ou para os quartos trepar, e eu lá cantando. Às vezes todos iam para os quartos ao mesmo tempo, e parava de cantar. Mas dali a pouco mais gente chegava e voltava a cantar boleros, sambas-canções e foxtrotes, geralmente até 3 da manhã, quando se encerrava o expediente. As pessoas não me marginalizavam porque eu cantava em bordel. Quem poderia? Quem me via cantando era porque estava dentro de um bordel, logo também já estava comprometido. No bordel éramos todos iguais, cantor, freqüentador, não importava. Não tinha o que discriminar. Claro, poderiam me dizer, quando passasse na rua: “Cantor de bordel!” Mas poderia reagir e também acusar: “Freqüentador de bordel”! Padre chato em manhã de sol A minha família era católica, mas não fiz primeira comunhão, não quis fazer. Meus pais me botaram na igreja e me disseram: “Tem que fazer primeira comunhão”. Então fui. Cheguei lá na igreja e me obrigaram a aprender o catecismo e coisa e tal. Era uma manhã de domingo, um domingo quente, com o sol brilhando lá fora. A igreja ficava perto do passeio público, um lugar que tinha escorregador, balanço para brincar, a criançada toda lá, e eu lá dentro daquela igreja, às dez horas da manhã, com aquele padre horroroso, um padre chato pra burro, um padre que só reprimia a gente, em todos os sentidos, eu lá rezando. O pior é que rezava decorado, aquela coisa que sai da gente sem nenhum sentimento, sem nada. Acho que foi ali que comecei a criticar demais aquilo tudo, não podia ser assim, não tinha de ser assim, pensava. Quando rezava na minha casa, eu não sabia rezar, mas eu tinha uma reza minha lá, que inventei, quando rezava era com sentimento, pedia o meu bem-estar, o bem-estar das pessoas que eu gosto. Quando queria alguma coisa, eu pedia em comunhão perfeita com Deus. Mas ali naquela igreja não era nada disso, estava lá obrigado e percebi que aquilo não tinha nada a ver comigo. Quando cheguei em casa, perguntaram o que é que eu achei, e eu fui sincero, disse o que tinha achado, que aquilo não tinha nada a ver comigo. Minha mãe ficou meio chateada e disse: “Mas você sempre é do contra. Por que você não se entrega às coisas? Você tem que se entregar também. Você pensa que tudo é como você quer? Não é. A vida não é assim. A gente tem que seguir também de acordo com o que as outras pessoas querem”. Minha mãe insistia, mas continuava achando que aquilo parecia um ensaio de teatro e que aquele jeito de rezar era uma coisa que profanava um pouco. O que importava era rezar bonitinho, para poder engolir uma hóstia e tirar uma fotografia besta. Aí comecei a falhar, não ia para as lições de catecismo na igreja. Dizia que ia e não ia. Minha mãe perguntava: “Tudo bem lá na igreja?” Respondia: “Tudo bem!” Era um estágio preparatório para a primeira comunhão, de dois meses. Aí mamãe ficou doente, ia ter que ser operada, e foi internada. Nasce um agnóstico Fui visitá-la exatamente no domingo, no horário que deveria estar na igreja. Aí ela perguntou: “Ué, que horas são? Isso não é a hora do catecismo, não?” Menti: “É, mas hoje não teve.” Ela insistiu: “Não teve catecismo?” Menti de novo: “Não, não teve!” Então ela me apertou: “Ary, vem cá, fale pra mim, você não está me vendo aqui neste estado, e você ainda vem me trazer problemas! Você não está indo ao catecismo, está?” Então resolvi desabafar, disse que não estava indo, que não ia mais, que não queria ir mais, porque não gostava, porque não estava sabendo para que aquilo podia me servir. Daí ela olhou pra mim, e disse: “Deixe, que a gente vai conversar isso em casa.” Fui embora, e depois ela me disse que ficou pensando, quando fui embora, me vendo sair meio de cabeça baixa, um pouco abatido, porque tinha falado aquilo, mas me sentia meio culpado: “Por que não deixar ele fazer o que quer? Ele já sabe o que quer.” Depois que ficou boa e saiu do hospital, mamãe chegou pra mim e disse: “Se você não quiser ir mais, não vá”. Então não fui mais. Nunca mais entrei numa igreja. Quando entro é por curiosidade, para conhecer. Não gosto dessa noção de Deus que me passavam nessa época, tinha medo, muito medo. Era um Deus que castigava, que não perdoava. Ou só perdoava se a gente se arrependesse muito. Então carregava uma culpa desgraçada por tudo que fazia e achava que Deus podia achar errado. Foi quando comecei a pensar e perceber que essas coisas não tinham nada a ver. Hoje sou sem religião, não pratico religião alguma. Acredito em Deus como formador de todas essas coisas, não como imagem, não como abstração, sei lá o quê. Creio Nele como alguma coisa que administra isso tudo, também não posso ser tão cético assim. Fantasminhas camaradas Nunca fui de me impressionar com histórias de alma penada. Pra você ter uma idéia, brincava no cemitério à noite quando era criança. Minha casa era vizinha ao cemitério e a gente ia brincar de esconde-esconde entre as sepulturas. Não tinha o menor medo, de nada. A gente via as sepulturas a toda hora, abria a janela e via aquilo, o que é eu ia fazer? Eu me acostumei com aquilo, não tinha medo nenhum. Não tinha essa complicação na minha cabeça. Mas a gente brincava no cemitério no maior respeito, não quebrava nada, nenhuma lápide, não desrespeitava, não pisava onde não devia, nos túmulos, nem nada. A TV no meio do caminho Comecei a fazer televisão ainda em Curitiba. Nos anos 60 tinha lá um canal, o Canal Associado da TV Tupi, que era a TV Paraná. Nessa época era diretor de radioteatro da Rádio Colombo, que pertencia à família Stresser, que era dona do Diário do Paraná e que acabou sendo a responsável pelo canal 6, a TV Paraná. Foi quando me mandaram a São Paulo, para fazer um estágio na TV Tupi. A idéia era que eu comandasse o setor de teledramaturgia da emissora. Fiquei um mês em São Paulo, lendo textos, vendo de perto como é que se fazia TV, como é que se ensaiava. Quando voltei para Curitiba já podia dizer que conhecia televisão, que já sabia fazer televisão. Então me chamaram para fazer um programa humorístico, o Teleshow CCI. O CCI era Companhia Comercial de Imóveis. Esse grupo tinha o projeto de lançar o primeiro edifício numa praia do Paraná chamada Caiobá, era um edifício de nove ou dez andares. Eles me procuraram, e apresentei uma proposta de fazer um show semanal, com vários tipos, com vários quadros que criaria, escreveria e interpretaria. Só que houve um problema com a direção da TV Paraná, e eles não quiseram fazer esse programa comigo. Então comprei um horário e fiz. Foi um sucesso. Todas as bobagens do Dr. Pomposo Tinha um tipo que eu fazia, que inventei, chamado Dr. Pomposo Ribeiro. Era um homem ignorante, que adorava política e achava que devia ser senador, ser deputado, vereador, prefeito ou presidente. E ele sabia que tinha chance porque sabia que política estava intrinsecamente ligada ao dinheiro. Como era magnata do óleo, do café, do aço, tinha dinheiro a dar com o pé, porque que não podia fazer uma coisa dessas? Foi assim que surgiu o Dr. Pomposo Ribeiro, que virou o maior sucesso em Curitiba na época. Ele só falava bobagem, só falava o que lhe vinha à cabeça. Não sabia nada de nada, era completamente ignorante, em todos os sentidos. Aí no segundo ano do programa, na época das eleições lancei Dr. Pomposo Ribeiro como candidato a prefeito. Ele teve 20 mil votos, se elegeria até senador naquela época. Mas isso me tornou uma pessoa muito visada. A televisão entrou com força total, passou a ter uma influência danada em tudo. Foi quando comecei a receber avisos pelo telefone, telefonemas estranhos, ameaças. Mas não me intimidei. Continuei a criticar, criticava a igreja, criticava tudo. Os fatos que ocorriam na cidade eu colocava no programa, colocava o Dr. Pomposo Ribeiro para falar sobre esses fatos. Deu tão certo que criei a família dele. O filho mais velho dele quem fazia era o Juarez Machado, que na época era ator e hoje é um grande artista plástico. Todos eram tão ignorantes quanto o pai. Era uma família horrível. Tinha um ponto de crítica que era muito grande, muito acentuado, pegava as pessoas. A audiência, meu Deus do céu, era muito boa. O festival de besteiras que assolava o Paraná Uma semana antes das eleições me pediram que desistisse de disputar, que anunciasse na TV que o Dr. Pomposo Ribeiro não era candidato a nada. Aí cheguei na TV e falei: “Olha, fui convidado para ir ao Palácio Iguaçu. O governador Nei Braga queria falar comigo.” Contei então a conversa toda, que havia me pedido para deixar claro que aquele personagem era apenas uma fantasia, e coisa e tal. Disse ao vivo na TV exatamente o que o governador havia me pedido. Ele não me pediu para fazer isso? Anunciei: “Estou aqui porque o governador me pediu para dizer a vocês que o Dr. Pomposo Ribeiro não é candidato. Mas todo mundo sabe que ele não é candidato, ele é apenas uma opção num regime democrático para as pessoas que não estão satisfeitas. Podem votar numa cabra, num bode, por que então não votar no Dr. Pomposo? Expliquei isso ao governador, mas ele disse que não. O governador pediu que eu dissesse pra vocês que não votassem no Dr. Pomposo porque o Dr. Pomposo não existe, seria um voto nulo. Mas ainda insisto: se as pessoas estiverem realmente insatisfeitas, ele é uma opção, mas que ele não é um candidato verdadeiro, não é!” Nei Braga, claro, ficou puto da vida. Por essas e outras, meu programa era o único censurado da TV paranaense à época, isso bem antes de 1964. Tinha que levar com antecedência o script para os censores analisarem, e os censores só liberavam os textos, com muitos cortes, todos grifados com tinta vermelha, na hora de o programa entrar no ar, ao vivo. Mas como fazia tudo de improviso mesmo, pouco me importava o que eles cortavam ou não cortavam. Só não fui preso porque nessa época se censurava, mas ainda não se prendia. Fugir, fugir, fugir Com programa de TV de sucesso e tudo, continuava obcecado com a idéia de ir embora de Curitiba. Vivia repetindo em todos os lugares para todo mundo que conhecia: “Ah, eu não posso continuar aqui, não posso continuar aqui.” Falava isso tanto que um dia até a coitada da minha mãe, de quem gostava tanto, era muito ligado a ela, era ligado ao meu pai também, mas a ela era mais, ela me entendia mais, que um dia minha mãe chegou pra mim e falou: “Não diz mais isso pra mim. Quando você quiser ir embora avisa um dia antes, mas não me diz isso todo o dia. Você sabe que eu gosto de você, você sabe como é importante sua presença aqui, por que me torturar e dizer todo dia que quer ir embora? Como se eu tivesse culpa! Escute bem, o que a gente falou pra você foi lhe colocar num ponto, dizer que você precisava ter um curso para ir embora, a gente não queria que você ficasse aqui para sempre, a gente queria que você fosse embora bem. E você entendeu isto pelo que eu sinto, e você entendeu também que aqui você está cercado de afeto, que você é uma pessoa que todo mundo gosta. Mas se você quiser mesmo ir embora, se essa é a sua idéia, mantenha essa idéia na cabeça. Mas, por favor, me avisa apenas um dia antes de ir embora, certo?” Foi aí que percebi que estava sendo realmente cruel. Que estava castigando as pessoas, por cada revés que sofria naquela cidade, por cada coisa que não gostava, pela minha maneira de ser dentro dela, pelo meu comportamento meio anti-social, pela obrigatoriedade de ter “ene” personalidades. As mil e uma personalidades do Sr. Fontoura Ter “ene” personalidades, aliás, me ajudaria tremendamente no meu trabalho como ator no futuro, porque lá em Curitiba eu tinha que me modificar, para cada personagem tinha que ser uma pessoa diferente. Cantava em bordéis, mas também me convidavam para declamar em festas de aniversário e, quando isso acontecia, sabia me comportar. As pessoas percebiam que aquele meu trabalho no bordel nada mais era que um desmembramento de mim, uma forma de representar, e de continuar tocando aquilo que queria numa cidade que não tinha muitas possibilidades para me oferecer. Não, não tinha raiva propriamente da cidade de Curitiba. Tinha mais raiva de mim mesmo, de minha aceitação, de minha passividade em continuar morando lá naquelas condições. Ficava chateado comigo mesmo por continuar naquela cidade, porque se eu estava lá era porque eu queria estar lá. Ficava chateado era com a minha impossibilidade de sair de lá. O que é que estou fazendo aqui? Nessa época comecei a ganhar dinheiro na televisão, e a televisão acabou com o meu teatro, tirou o público todo do teatro. Se o povo podia ver de graça em casa por que ir ao teatro? Não podia mais fazer teatro que era uma coisa que eu gostava, mas estava com algum dinheiro, que apliquei na compra de um sítio em Curitiba onde plantei tomates, verduras, dava de tudo lá. Tinha um pomar de 150 m2, uma mesa de quase 50 m de comprimento, onde servia churrascos, e galinhas que punham tantos ovos que não sabia direito que fazer com eles. Não sabia ainda dirigir, então tinha chofer. Então um dia, nesse sítio maravilhoso, me deitei na relva, fiquei lá olhando para o céu e me perguntando o que eu ainda estava fazendo ali. Constatei que era já uma pessoa velha, embora tivesse pouco mais de 30 anos, que tinha uma barriga imensa, que estava pensando em comprar um restaurante em Curitiba, que vivia bebendo bastante, acima da média, que levava uma vida desregrada, que andava me metendo só com gente que não era legal, que estava num caminho ruim, que gastava meu dinheiro descontroladamente. Como tinha certa fama e dinheiro no bolso sempre, todo mundo queria estar comigo e achava que fossem amigos, mas não eram. Quando chegava num restaurante e sentava numa mesa, os amigos e as mulheres vinham todos em cima de mim. Além disso, tinha uma relação problemática que já durava sete anos com uma mulher casada. Era complicado porque o marido dela sabia, era uma coisa muito esquisita que me fazia pensar na possibilidade de naquela cidade pequena receber um tiro na cabeça de uma hora para outra, assim sem mais nem menos. Então, deitado na relva e olhando para o céu, me perguntei: “Por que estou fazendo isso? Que diabos continuo fazendo nesta cidade? Se queria ficar, por que então não me casava, não constituía família e virava um cidadão comum, como outro qualquer?” Mas sabia que essas coisas não tinham nada a ver comigo. Concluí então que tinha de rever isso tudo. Eu lá sozinho olhando o céu, e o cara lá do caminhão buzinando, querendo ir embora porque estava terminando o expediente dele, e então comecei a ruminar aquela coisa toda. Ou eu volto ao que eu era, ou eu prossigo daqui. Era o dia 30 de março de 1964, mais ou menos três horas da tarde. Saí de lá, parei direto diante da agência de uma companhia aérea e comprei uma passagem pro Rio pro dia seguinte. Cheguei em casa às cinco horas da tarde e falei pra minha mãe: “Amanhã estou indo embora para o Rio.” Mamãe disse: “Então vou preparar sua mala.” O dia que eu vim embora No dia seguinte, acordei muito cedo, minha mãe me acordou às sete horas da manhã. Sempre com o sonho de ser cantor na cabeça, pus a carteira da Ordem dos Músicos em cima da mesa, peguei o meu disco de boleros que tinha gravado e a minha mala que já tinha arrumado na noite anterior, me despedi de mamãe e fui embora. Na saída, minha mãe me uma chave de casa e disse, muito firme e muito forte: “Não é uma despedida, é a chave da casa que é sua, volte a hora que você quiser. Se as coisas não forem bem, e irão bem, mas, se por acaso houver algum revés, essa é a sua casa. Aqui está a chave, e é a da porta da frente. Volte a hora que você quiser”. Peguei um táxi e fui embora. Quando estava quase chegando no aeroporto, ai, meu Deus, descobri que tinha esquecido a minha carteira da Ordem dos Músicos em cima da mesa e sem ela não poderia me tornar cantor, que então ainda era o meu sonho. Voltei para casa, abri a chave da porta, passei rapidamente pela porta do quarto de mamãe, e falei: “Vim apanhar a carteira da Ordem dos Músicos.” Fui lá pegar e quando olhei assim do corredor, estava sentada num banquinho, chorando. Olhei para ela, que falou: “Meu Deus, você voltou?” Falei que tinha esquecido a carteira, disse tchau, e fui embora. Entrei de novo no táxi e pensei: “Meu Deus do céu, como as coisas são! Quer dizer, precisava ter voltado pra ver aquilo? Por que voltei? Se ela se mostrou tão forte, por que tinha que presenciar essa outra cena, exatamente oposta, que me feria e me colocava enorme sentimento de culpa?” Mas não pensei em recuar, e me disse: “Agora vou embora de qualquer jeito!” E fui. Santo de casa não fazia milagre O crédito de quem fazia teatro em Curitiba na minha época era nenhum. Santo de casa não fazia milagre. Jamais trocariam um ator de fora por um ator do lugar, não acreditavam. As dificuldades eram tão grandes. Às vezes a gente chegava e oferecia para as pessoas ingressos para assistir ao trabalho gratuitamente e, mesmo assim, as pessoas se negavam a ir. Nem de graça! Imagine a dificuldade, fazer teatro, não tendo público, e com essa obrigatoriedade de fazer com que o público acreditasse no trabalho. Mídia? Bem, o que existia de imprensa na época não dava a menor pelota para o que fazíamos. Mesmo assim, com essas dificuldades todas, consegui ser um pioneiro no teatro paranaense. Eu e alguns outros que faziam teatro comigo, o Maurício Távora, a Jane Távora, a Odelair Rodrigues, o Sinval Martins... A voz, o garfo, a faca e o bife Fiquei um ano, talvez dois, como cantor de bordel em Curitiba. Tinha semana que cantava mais, tinha semana que cantava menos. Dependia das minhas aulas na universidade. Também cantava em restaurante. Era terrível cantar enquanto as pessoas estavam comendo, nem ligavam muito pra mim. Eu me sentia muito mal. Era muito menos importante do que um garfo e uma faca, do que um pedaço de bife. Mas achava que aquilo fazia parte do meu aprendizado, e seguia em frente. Sabia que a minha cruz era aquela, e tinha que carregá-la, percebia que era por ali que tinha de ser o meu caminho. Ganhava algum dinheiro, um mínimo de dinheiro, e achava bom ganhar aquele mínimo de dinheiro porque significava que estava vivendo daquilo que queria fazer. Vivia mal, mas vivia das coisas que gostava de fazer. Trilha sonora para carícias fugazes Nos bordéis até que havia um pouco mais de empatia com o público. Porque punha boleros românticos na trilha sonora daqueles homens e mulheres que começavam relacionamentos, relacionamentos que poderiam durar por meia hora, um dia, ou quem sabe?, até por muito tempo. Mexia muito com esse lado sentimental das pessoas e servia como pano de fundo para todos aqueles encontros e carícias fugazes, porque algum tempo depois eles iam para o quarto. Naquela época até os puteiros eram mais românticos. Os caras não iam chegando assim e já puxavam a mulher para os quartos, para fazerem sexo. Tinha uma tapeaçãozinha, um certo clima de envolvimento que as músicas que cantava ajudava a criar. Às vezes recebia pedidos de cantar certas músicas, o bolero tal, o samba tal. Sentia prazer em atender esses pedidos porque sabia que, ao contrário dos restaurantes, prestavam atenção em mim. Os homens e as mulheres dançavam ao som dessas músicas todas. Tinha às vezes um con-junto musical que tocava comigo. Ou cantava acompanhado apenas por um pianista. Eram todos pobres coitados como eu que não tinham aonde ir, que não tinham outros locais para trabalhar. Mas nunca escondia nada, nunca senti vergonha por trabalhar naquele lugar. No fio da navalha Mas não podia deixar de sentir uma certa raiva de Curitiba. Porque a gente tentava tudo, todos os meios, todas as formas, e parecia que não entrava na cabeça das pessoas que o teatro era coisa importante, que a arte era coisa importante. Que era preciso formar um outro tipo de gente dentro dessa sociedade, de um outro tipo de sociedade em que as pessoas tivessem pensamentos menos preconceituosos, fossem um pouco mais avançadas no tempo. Na verdade ainda estava lá porque não tinha tido coragem de ir embora, já sabia como era aquela comunidade, já sabia o que me esperava se continuasse ali, onde todo mundo sabia da vida de todo mundo e se preocupava demais com a vida do outro: típico, aliás, dos centros menores. Isso me fazia andar no fio de uma navalha, sem a possibilidade de errar, me fazia ter que formar conceitos errados a respeito de certas pessoas para poder sobreviver no meio em que vivia. Evidente que Curitiba era mais conservadora que o Rio de Janeiro. Nessas muitas viagens que fiz Brasil afora, descobri o seguinte: em toda capital situada na orla atlântica as pessoas são muito mais abertas. Por causa do clima, porque se vestem menos e porque não se assustam com muitas coisas novas. Mas as capitais onde as pessoas têm frio como uma constância, como uma permanência, e que estão alijadas do processo do mar, essas cidades desenvolvem esse lado mais preconceituoso. O curitibano é uma ilha Um dia cheguei a Curitiba, há coisa de 15 anos. Levei uns amigos meus, uns casais aqui do Rio que queriam conhecer a cidade. Fomos então a um bar que tinha na esquina da rua em que minha irmã morava. Quando cheguei, o dono do bar me cumprimentou: “Olá, Ary Fontoura, voltando à terrinha?” Falei: “É, não estou voltando, estou passeando.” Apresentei meus amigos, disse que eram do Rio de Janeiro e que estavam gostando muito da cidade. Aí, de repente, ele perguntou para os meus amigos: “Mas vocês vieram pra passear? Não vieram para ficar, não é?” Disse que eles só estavam ali a passeio. O dono do bar retrucou: “Graças a Deus! Porque não queremos ninguém mais aqui.” Falei: “Como não querem mais ninguém?” Ele afirmou: “Isso aqui é muito bom, é bom do jeito que está, mas com essas pessoas que vêm de fora, a cidade já vai inchando, inchando, inchando.” Depois fiquei pensando, o pensamento daquele homem refletia o pensamento de muita gente de Curitiba. Quer dizer, a forma de o curitibano viver é essa, como se fosse uma ilha. Então tudo deles querem preservar para aquele grupo. Imagina isso no tempo em que morava lá nos anos 40, 50? Como é que podia continuar numa cidade assim, com a cabeça que eu tinha? Ia ter que ficar corrompido com aquele troço, e virar uma pessoa assim? Homem em transe Só Deus sabe quanto tempo, depois que vim embora para o Rio, isso demorou a sair de dentro de mim. Acho que ainda existe isso dentro de mim, enraizado. Nossa Senhora, às vezes me vejo comentando certos assuntos, e percebo que estou falando igual àquelas pessoas com quem convivi àquela época em Curitiba. Quando percebo isso, reajo: “Porra, mas isso é o que eu não quero ser, é contra tudo aquilo que sempre batalhei. O que é isso? Que é que há? Calma, não é assim.” Ou seja, eu fiquei tempo demais em Curitiba, tempo demais. Só saí de lá aos 31 anos. Isso é a única coisa que lamento em minha vida. Isso me atrapalhou, em todos os sentidos. Por ter ficado tanto tempo lá não fiz Escola de Teatro, e precisava ter cursado uma Escola de Teatro. Acho de importância capital se estudar teatro. Não estudar como estudei, grosseiramente, de uma forma autodidata e tão sofrida. Todo mundo sabe que aprender por si, sem ninguém pra discutir, sem ninguém para conversar, sem ninguém para te orientar, é muito ruim. Sempre quis aprender as coisas, a lidar com o meu corpo, com as minhas emoções, o teatro é uma gama de conhecimentos que sempre quis ter, mas que em Curitiba não conseguia. Tive que aprender ouvindo novela de rádio. Saudades do futuro No plano pessoal demorei demais a ser a pessoa que sou hoje, que eu gosto mais. Gosto mais de ser como sou hoje. Vivia em função dos outros. Hoje vivo em função de mim mesmo, só. Como é que se pode fazer teatro cercado de preconceitos? Como é que você vai trazer da vida, que é onde você colhe o material para você realizar o seu trabalho, com esse material repleto de preconceitos, se você é preconceituoso? Como é que pode ser? Então você tinha que ter o quê? Você tinha que exercitar, eu exercitava, quatro, cinco tipos de personalidade. A ponto de ninguém saber qual era a minha. Até eu mesmo às vezes me perdia, sem saber o que é que eu era. Quando vim embora para o Rio de Janeiro – bendita cidade! – quando fiquei sozinho, fiquei longe de minha família, eu, com honestidade, não senti essa ausência. Sempre mantive uma relação com meus familiares da melhor qualidade. Jamais tive qualquer tipo de rixa com meus irmãos. Jamais tive problemas com minha mãe, com meus familiares, com meu pai. Às vezes sentia falta deles, que eu supria indo visitá-los no Natal, ou em algum aniversário. Quando dava ia revê-los. Mas afora meus familiares, não senti nenhuma falta dos 31 anos em que vivi naquele lugar. Esse moço tá diferente Sei que as pessoas comentavam naquela época que eu era uma pessoa diferente, porque não me inseria no contexto deles. Não era nenhum hippie, não era nada, não adotava nenhuma postura mais radical, era apenas uma pessoa que pensava de modo diferente. Mas, por causa disso, algumas pessoas deixavam até de me cumprimentar, me alijavam de convites para aniversários, para casamentos. Não me convidavam porque diziam “ele faz teatro”. Era uma minoria que me tratava assim, mas acontecia. Isso me entristecia, mas também achava ótimo que essas coisas acontecessem porque me possibilitavam perceber com quem não deveria me relacionar, de quem deveria me afastar. Mas se as pessoas me maltratavam, eu sabia me defender muito bem. Tinha de estar preparado pra isso. Quando as pessoas vinham com uma pedra na mão, eu contra-atacava com três, quatro. Quando cantava no bordel não queria agredir ninguém, não havia essa intenção. Cantei lá porque não tinha onde cantar. Além disso, achava que essa experiência de cantar em público poderia me ser útil no futuro, era importante para o exercício de minha profissão. Na época pensava mais em ser cantor do que em ser ator. Achava que era importante para ganhar tarimba como cantor, para aprender os ritmos, para poder entrar certinho, para não desafinar, para encontrar o sentimento nas letras que eu cantava, para ter esse contato com o público. Para sentir o que o público recebia bem, o que é que aplaudia mais, o que é que aplaudia menos, qual o tipo de interpretação mais gostava, qual gostava menos. Cara de palhaço, pinta de palhaço Nessa época fui aprendiz de palhaço de circo, aprendi a fazer aquelas coisas todas. Não era uma coisa fixa, mas ia sempre lá. Também queria fazer aquele gênero. Era uma pessoa muito curiosa, um ator precisa ser uma pessoa curiosa, tem que fazer de tudo, tem que aprender as coisas todas da vida. Era engraçado, pois estudava Direito e era palhaço de circo. Lembro que uma vez um professor de Direito Civil chegou na classe, fazia então o terceiro ano na universidade, e disse assim para mim, sem quê nem pra quê, no meio da aula: “Ontem à noite peguei meus filhos e fui a um circo. Ao chegar lá vejo uma pessoa fazendo palhaçadas no meio do picadeiro para divertir as pessoas, e lá pelas tantas essa mesma pessoa voltou já com a cara lavada, ajudando a tirar os tapetes. Notei então que era o senhor. Como pode? Estudando numa universidade e trabalhando num circo?” Foi um “gargalheiro” geral na sala, um burburinho. Então o professor me perguntou: “O que é que o senhor me diz?” Falei: “Digo o seguinte: o que é que o senhor estava fazendo lá?” Ele disse: “Fui levar os meus filhos para se divertirem.” Perguntei: “E eles riram com as minhas palhaçadas?” O professor disse: “Riram”. Retruquei: “Meus parabéns, seus filhos têm humor! O senhor não tem nenhum.” Ele teve de me engolir, mas me ameaçou: “Cuide-se com suas notas no final do ano!” Respondi, na tampa: “Vou me cuidar, pode deixar!” A estréia do cachorro doido Meu primeiro filme foi um episódio de O vigilante rodoviário quando ainda morava em Curitiba, na época da TV Paraná. O Vigilante atuava juntamente com um cachorro policial. Quando atuei nesse seriado, que passou na TV, aquele cachorro já estava meio louco. Filmou tanto que já não queria obedecer mais ninguém. Filmei em Vila Velha, onde tinha umas pedras. Era o bandido e havia cena em que empunhava um revólver e o cachorro pulava lá de cima das pedras e tirava o revólver. O problema é que o cachorro estava filmando demais, estava estressado, e eu perguntei ao treinador: “É esse cachorro que vai pular na minha mão?” Ele disse que sim. Foi então que me recusei a fazer a cena e pedi um dublê. Fiz bem. Na hora da filmagem o cachorro caiu em cima do dublê, e quem disse que conseguiam tirar o cachorro de cima dele? Aprendendo a fingir Mas não quero ficar me queixando da vida não. Todas essas coisas pelas quais passei só me beneficiaram. Porque mexeram comigo o tempo todo e me transformaram. O ser humano está aí para isso, para se transformar. Se tivesse só encontrado facilidades em todos os sentidos, só conhecido o sucesso na minha vida, nunca o fracasso, só aplausos e não vaias, não teria graça. As dificuldades que vivi no Paraná foram, digamos, necessárias. Foram também determinadas por mim, pela minha teimosia em permanecer lá por tanto tempo. Se tivesse de voltar a viver o tipo de vida que vivi, talvez fosse um pouco mais seletivo em certas coisas. Evitaria, por exemplo, aquilo que me angustiasse demasiadamente. Mas, por outro lado, acho que ter quatro ou cinco personalidades diferentes, como eu era obrigado a ter naquela cidade, acho que isso eu manteria. Porque foi um exercício extraordinário para minha carreira como ator. Ali aprendi a fingir magnificamente bem. Nem tão solitário assim Mas tinha quem me apoiasse. Tinha uns colegas lá em Curitiba, gente de minha idade, com as mesmas predileções que eu, que queriam seguir a mesma carreira, que queriam ser atores também. Então a gente conversava muito, trocava muitas idéias, e daí nascia a luz em muita coisa. Lembro que uma vez chegou na mão da gente um livro de Stanislawski. Começamos a dissecar aquilo, com muita curiosidade, achamos o livro extraordinário. Era o líder dessa turma, era eu quem convocava as reuniões e tomava as iniciativas. Eles acabaram se acomodando, se casaram, tiveram filhos. Também pensei nisso, em casar e ter filhos, mas pensei melhor e concluí que não. Não poderia ter mulher e filhos e carregar essa gente toda numa barraca. Foi uma resolução. Mas também achava, como acho ainda hoje, o casamento uma coisa obsoleta. Você já viu na casa de alguém uma certidão de casamento num quadro na sala, ao lado de um quadro da Santa Ceia? Ninguém tem, eu nunca vi isso. Bom de verbo; ruim de briga Na minha infância nunca fui muito de rezar, mas isso não significava que tivesse o diabo no corpo. Você sabe que nunca me recordo de ter brigado? Lembro apenas que recebi uma vez um tapa na cara. Acho que mereci: tinha uns sete anos e chamei a mãe desse vizinho que me deu o tapa de puta. Procurava sempre não fazer mal a alguém, voluntariamente. Sempre tive noção das coisas, do que podia e do que não podia fazer, meus pais me ensinaram isso direitinho. Não era, nem nunca fui, violento. Odeio violência. Nunca briguei com ninguém. Era desaforado, mas não a ponto de chegar ao nível da violência física. Você não precisa ser homem só no tapa, você pode ser homem sem uma demonstração mais viril assim de brigar com outra pessoa e dar socos nessa pessoa. Macho é o reprodutor, o homem está no caráter. Violência não gera nada. Gera apenas violência, mais violência. Claro, quando era criança brincava de faroeste, a gente fingia que atirava uns nos outros, mas aquilo parava ali, não tinha briga pra valer. Nada disso. Nunca fui violento, nunca cheguei às vias de fato com ninguém. Agora, na discussão, no verbo, discutia sempre sim, mas sempre sabendo que tinha um limite, onde tinha de parar. O poder da palavra Apanhava às vezes dos meus pais, mas acho que merecia. Mas nunca recebi um tapa na cara, nunca me bateram na cabeça, nem nada. Me batiam com uma varinha na perna, coisa leve, apenas para chamar a minha atenção sobre coisas que não deveria mais fazer. Na verdade, eu e meus pais conversávamos muito, e era através da palavra, não através de pancadas, que a gente chegava às conclusões. Então me senti devidamente educado por meu pai e por minha mãe. Eles me passaram muitos padrões, sobretudo no sentido do convívio, no que diz respeito ao que é o domínio dos outros. Não posso me queixar deles. Essa retidão de caráter, que sempre pretendi ter, com certeza herdei dos meus pais. Havia uma fiscalização medonha em torno dos filhos. Se a gente aparecesse usando alguma coisa estranha, tinha de ouvir, era o maior interrogatório. “Que é isso aí que você tem na cabeça?” “É um gorro”. “Ganhou de quem?” “Ah, me deram”. “Quem deu? Deram ou você pegou de alguém, como é que é? Quem deu?” “Fulano de tal”. “Vou perguntar para ela, precisa ou não?” “Não, pode perguntar”. “Ela lhe deu por quê?” “Ah, porque eu achei bonito”. “Não foi você que chegou lá e pegou, e ela foi obrigada a lhe dar?” “Não, não, ela me deu só porque eu achei bonito”. “Você chegou e não tentou pegar?” “Não”. “Não forçou ela a lhe dar?” “Não. Ela me deu porque quis dar”. Era assim lá em casa. Não costumava mentir. Quando mentia, ficava carregado de culpa e logo depois eu era descoberto. Nem eu, nem meu irmão, nem minhas irmãs, ninguém mentia direito lá em casa. Meu pai era católico fervoroso. Mamãe também. Eles rezavam muito. Na verdade a gente teve educação cristã, calcada na religião católica. Nunca quis ser padre, mas meu irmão quis. Só quis ser padre de brincadeirinha, nos tempos de criança. Me vestia de padre, transformava um lençol numa batina, mas ali já estava fazendo teatro. Ia às missas e quando chegava em casa ficava imitando os padres. Mas meu irmão quis ser padre pra valer. Eu não. Nunca quis saber disso, achava a vida muito divertida para abandonar tudo e ir para um convento. Fiz bem. Capítulo II DR (Depois do Rio) No calor da hora Cheguei ao Rio de Janeiro exatamente no dia 31 de março de 1964. Minha amiga Odelair Rodrigues veio comigo e nos hospedamos no Hotel Vemar, na Rua Cândido Mendes, na Glória. Deixamos a bagagem e fomos direto para a Rádio Nacional. Mas, ao chegar, soubemos que haviam prendido todo mundo que estava lá dentro. Ao voltar para casa, passamos pela Cinelândia e vimos que centenas de estudantes estavam sendo dispersados à base de gás lacrimogêneo. A polícia começou a tirar todos dali à força. Então disse para Odelair: “Tem alguma coisa estranha acontecendo aqui, não é só feriado!” Até aquele momento pensava que tudo estava fechado por causa do feriado do Dia do Comércio. Percebi que a gente estava na cena e na hora erradas, e gritei para minha amiga: “Não é nada daquilo que a gente estava pensando, minha nega, vamos tratar de tirar o sapato e correr o mais rápido que pudermos!” Fomos embora para a Glória. Quando chegamos lá, pedi um radinho de pilha emprestado do porteiro, e só aí soube de tudo que estava acontecendo: o Rio de Janeiro estava pegando fogo, e nós estávamos no meio dele. Logo no dia seguinte, o nosso hotel ficava perto do prédio da UNE, no Flamengo, vimos a estudantada toda na rua. Vi um estudante botando fogo na bandeira americana, vi cenas de violência terríveis, vi que o pau estava quebrando. Cegos no meio do tiroteio Percebemos rapidamente que havíamos chegado ao Rio de Janeiro numa época extremamente imprópria. O Brasil estava se modificando, havia uma revolução em curso, a gente não sabia direito o que estava acontecendo, estava tudo muito censurado. A gente nem sabia quais televisões continuavam a existir. Aí soubemos que as TVs Tupi, Excelsior e Rio continuavam funcionando. Mas ficaram muito prejudicadas porque estavam todas em dúvida sobre quanto tempo ia durar aquela revolução. Vai ser um dia só, uma semana? Não se sabia o que estava por acontecer. Estávamos tontos sem saber o que fazer da vida. Não éramos conhecidos, o que fazer então? A quem procurar? Não havia muito o que fazer, a não ser procurar os poucos contatos que tínhamos no Rio, atores e atrizes que havíamos conhecido quando foram apresentar algum espetáculo em Curitiba. Mas isso não resultou em absolutamente nada. Não sabíamos mais o que fazer. Até que um dia Odelair foi até a TV Rio e conheceu o sambista e cantor Monsueto. Ele tinha um grupo de mulatas que se apresentavam no programa Noites Cariocas. Foi dançar nesse grupo e ficou algum tempo trabalhando lá. Mas não ficou muito: envolveu-se com um antigo namorado, Pablo Avelar, que a convenceu a voltar para Curitiba, e foi embora. Um português salvador no boteco da esquina Nesse ínterim, três meses depois que cheguei ao Rio e que não arranjava nada para fazer, nenhum lugar para trabalhar, meu dinheiro estava qua-se no fim. Já estava morando em Copacabana, num conjugado alugado, e tinha apenas uma quantia “xis” para ficar no apartamento e mais um pouquinho para segurar as despesas. Como sabia cozinhar e tudo o mais, fazia três meses que cozinhava pra mim, isso fez com que economizasse dinheiro de restaurante. Mas estava cada vez mais só e isolado de todos. Tinha então um bar na esquina da Barata Ribeiro com a Constante Ramos. Era o bar de um português, então cheguei lá e pedi um cafezinho. Eram mais ou menos três horas da tarde, me sentei numa banqueta, e fiquei lentamente tomando aquele café e pensando na minha vida, no que ia fazer. Como não tinha ninguém mais no bar, o português, que se chamava Manuel, me notou, chegou para mim e disse: “O senhor me desculpe interferir, mas nunca vi uma pessoa tomar um cafezinho tão demorado quanto o senhor. O senhor está com algum problema sério? Quem sabe o senhor não contava pra mim?” Falei: “Desculpe, não queria lhe provocar esse tipo de preocupação, pelo amor de Deus.” Ele disse: “Não, não é preocupação, a gente veio pro mundo para esse tipo de coisa, a gente tem que trocar com as pessoas. Quero lhe ouvir. Quem sabe não posso lhe ajudar?” O cozinheiro salva o ator Então lhe contei a minha história, que estava no Rio em busca de uma oportunidade, que a situação política do Brasil era difícil, que estava tendo dificuldades, que não queria voltar para minha terra, que precisava urgentemente arranjar alguma coisa para fazer. Ele me ouviu, e disse: “O que é que o senhor poderia fazer aqui no meu bar?” Respondi: “Nada. É uma coisa tão diferente do que eu estou procurando. A única coisa que talvez pudesse fazer aqui seria servir as pessoas, talvez eu gostasse”. Foi quando lembrei que sabia cozinhar, e parece que adivinhou meu pensamento, pois perguntou: “O senhor cozinha?” Disse que sabia. Então ele falou: “Estava com vontade de emplacar aqui na minha lanchonete um prato único na hora do almoço. O senhor vê, os outros restaurantes já estão fazendo isso, e eu não posso ficar com o bar completamente vazio das dez da manhã até o horário da noite. Vamos tentar? Vamos ver se dá certo?” Topei. No dia seguinte estava lá, às dez, para começar a trabalhar. Fui indo, fui indo, e em dez dias a lanchonete do português já era um sucesso, o pessoal todo lotando o bar na hora do almoço, gostando da comida, elogiando, coisa e tal. Fazia um prato feito que incluía arroz, feijão, batata, bife, tudo muito simples, mas muito bem-feitinho, que eu comia também, e gostava. Foi uma beleza. O português ficou muito feliz, e eu ficava lá trabalhando até umas quatro da tarde, mais ou menos. Um paranaense engraçado de bar em bar Deixava a cozinha em ordem e pegava o meu disco de boleros, saía com aquilo debaixo do braço, e ia circular pelos restaurantes freqüentados pelos artistas do Rio de Janeiro àquela época: La Gôndola, Acapulco, Fiorentina. Chegava nesses lugares e sempre encontrava alguém para bater papo. Por exemplo, o Rubens Correa, o Sérgio Britto, que já conhecia dos tempos de Curitiba. Claro, naqueles ambientes comecei a conhecer pessoas de teatro e ter com eles um relacionamento mais freqüente. Depois de algum tempo, já chegava e as pessoas me conheciam, a maioria se referia a mim como “aquele paranaense engraçado”. Passei a deixar nesses lugares o meu endereço para, caso surgisse alguma chance de trabalho, as pessoas pudessem me avisar. Fazia questão de dizer que topava fazer qualquer coisa, con-tra-regragem, o que fosse. Tinha sido famoso em Curitiba, mas ninguém me conhecia no Rio, e saí de lá com a consciência absoluta de que tinha de desmanchar tudo que eu havia feito, começar do zero. Isso foi um processo um pouco doloroso, porque já tinha conhecido o sucesso lá em Curitiba, bem ou mal. O bilhete de Mister Sexo Pois bem, um dia saí do restaurante do português e fui para casa tomar um banho. Quando olhei assim no chão, perto da porta, tinha um bilhete: “Ary, por favor, compareça urgente no Teatro São Jorge, no Catete”. Fui lá, e o Ivan Albuquerque e o Rubens Correa, que então atuavam no espetáculo Mister Sexo, de João Bittencourt, me disseram que estavam precisando de alguém para substituir um ator, famosíssimo por sinal, o Graça Mello, que tivera que sair do espetáculo – e eles se lembraram de mim. Só que eu tinha que me preparar para o papel em apenas cinco dias. Topei, o João Bittencourt me ensaiou e cinco dias depois entrava em cena e fazia meu primeiro papel nos palcos do Rio de Janeiro. A temporada só durou mais um mês e meio, mas foi uma delícia fazer esse trabalho com gente como Ivan, Rubens, Milton Carneiro, Cléa Simões, Paulo Graça Mello. Tinha 18 pessoas no elenco e logo fiz amizade com todo mundo, pois era considerado muito divertido. Na minha estréia em Mister Sexo, adivinha quem estava lá? Na primeira fila, vestindo um paletó que era um cheiro de naftalina danado? O Manuel, o português do bar. No final do espetáculo, ele me procurou e me disse: “Senhor Ary, o seu lugar não é lá na cozinha, o seu lugar é aqui, no palco”. Um camelô de presente do Sadi Cabral Soube então de um teste que acontecia no Teatro Rival, para participar da comédia Caiu, primeiro de abril. Botei o meu disco debaixo do braço e fui lá falar com o diretor do espetáculo, o Sadi Cabral. Mas não o encontrei, encontrei apenas o ator Mílton Moraes, produtor da peça e que atuaria no espetáculo, e ele me perguntou, meio intimidador: “Quem é você?” Aí eu sempre dizia: “Sou um ator do Sul, mas estou no Rio procurando trabalho”. Então Mílton falou: “Volte daqui a cinco horas para falar com o Sadi Cabral. Quem sabe ele não tem alguma coisa para você?” Voltei depois, falei com o Sadi Cabral e ele me falou: “Você pega esse texto aqui, estude as falas que estão assinaladas, e amanhã venha fazer o teste comigo”. Olhei para o papel, vi qual era o personagem, um camelô, e disse: “Não posso fazer agora não, seu Sadi?” Ele olhou para mim, meio desafiador: “Agora, é?” Fui firme: “Sim, agora, já. O senhor se importa?” Então disse: “Não, não me importo”. Comecei a fazer o papel, na hora: deixei minha bolsa e o meu disco de lado, e já fui incorporando rapidamente o personagem do camelô. Representei por algum tempo e fui interrompido por Sadi Cabral, que dizia: “Pode parar, pode parar, o papel é seu. Já venha amanhã ensaiar, e a gente conversa sobre dinheiro e tudo o mais”. Confesso que chorei Entrei no elenco de Caiu, primeiro de abril, que ficou cinco meses em cartaz, e melhorei um pouquinho as minhas finanças, já dava para sobreviver um pouquinho melhor. Durante a temporada do espetáculo conheci Roberto Faissal, que ouvia lá em Curitiba pela Rádio Nacional e que participava do elenco da peça. Era considerado o grande ator de novelas, e a voz mais linda do radioteatro brasileiro. E, para completar, excelente caráter. Um dia ele me disse: “Você tem uma voz tão bonita!” Afirmei: “Já fiz radioteatro lá em Curitiba”. Ele me convidou: “Então vamos lá que eu vou te apresentar pro meu irmão, o Floriano Faissal, que é diretor-artístico da Rádio Nacional”. Graças aos irmãos Faissal, comecei também a fazer radionovela. No primeiro dia de trabalho na Rádio Nacional confesso que chorei. Porque quando entrei lá, vi, ao meu lado, todos aqueles nomes que anotava no meu caderno em Curitiba (cada novela que terminava eu anotava o elenco todo): dona Elza Gomes, Dayse Lúcidi, Álvaro Aguiar, Roberto Faissal. Aí tive de chorar. Falava isso para eles, dessa minha emoção, e parecia que eles não entendiam. Então muito tempo depois, quando fiz a novela Assim na terra como no céu, contracenei com Elza Gomes e lhe disse: “O que tenho de fazer para vocês entenderem que tudo que eu sei fazer dependeu de vocês, do talento de vocês que faziam radioteatro e que me ensinaram a representar?” O calista da Dulcina: horror, horror, horror Fazia rádio e fazia teatro, mas o dinheiro era sempre muito curto. Perto de acabar a temporada de Caiu, primeiro de abril, comecei a procurar novos trabalhos para fazer. Fui então visitar a Dulcina de Moraes, no Teatro Dulcina. Ela, que já me conhecia de Curitiba, me recebeu amigavelmente: “Querido, como vai você? Está morando aqui no Rio de Janeiro?” Confirmei que sim. Como estava tendo alguma dificuldade no caminhar, tinha um calo terrível entre os dedos, ela perguntou: “O que você tem? Está mancando? Por quê?” Enquanto me fazia pergunta tão pueril, olhava aquela mulher e lembrava de quanto teatro, de quanta peça de teatro tinha assistido com ela, de quanta coisa tinha aprendido com ela. Dulcina insistiu: “O que é que você tem no pé?” Disse: “É um calo que está me incomodando”. Ela aconselhou: “Hoje em dia não se tem mais isso, eu vou lhe indicar o meu calista”. Pois bem, a Dulcina me indicou o calista dela, que arrancou o meu calo com aparelhos que não deviam estar esterilizados, e três dias depois estava com uma tremenda infecção. Aos poucos, o meu pé foi inchando, surgiu uma bolsa ao redor do calo extraído, eu não sabia o que fazer, não tinha dinheiro para ir a um médico e me livrar daquilo logo. Pedia dinheiro emprestado para o Mílton Moraes, mas ele não tinha. Além do mais, não podia deixar de fazer o espetáculo por causa daquele pé. Logo, fui obrigado a fazer a peça com o pé naquele estado, que tentei esconder usando uma bota, o que me fez sentir dores ainda mais terríveis. Como vencer na vida com muita dor Aí tinha febre, suava frio, ia ao pronto-socorro e ninguém resolvia o meu problema. Que fase ruim essa, meu Deus! Tinha de atuar em Caiu, primeiro de abril usando uma bota horrível que me fazia sentir uma dor mais horrível ainda. Então um dia abri o jornal e li que iam fazer os testes para um musical chamado Como vencer na vida sem fazer força. O espetáculo, que ia ser encenado no Teatro Carlos Gomes, seria uma superprodução do Oscar Ornstein e tinha sido traduzido para o português pelo governador Carlos Lacerda. Veio ao Rio de Janeiro um produtor americano apenas com a incumbência de testar os atores, que, segundo diziam, tinham que ser, além de muito bons, fisionomicamente parecidos com os atores da Broadway. Eu me inscrevi, claro, e teria que me submeter a testes de canto, dança e interpretação. A seleção ocorreu no Teatro Municipal e concorreu a papéis no espetáculo a fina flor do teatro e do canto cariocas. Afinal de contas, todo mundo precisava trabalhar, ninguém tinha o que fazer, estava todo mundo desempregado. A cruenta peleja entre o ator desempregado e manco e o diretor americano meio sádico Na hora do meu teste me disseram que tinha de cantar um número musical. Dei a minha partitura ao maestro, da cançoneta italiana Dove Sta Zazá, o maestro começou a tocar e imediatamente o interrompi, dizendo que aquele tom estava muito alto. Resultado: fiquei bem uns dez minutos batendo boca com o maestro sobre tom alto e tom baixo, um vexame. Foi quando o americano que veio selecionar o elenco brasileiro se impacientou e pediu ao diretor brasileiro que codirigiria o espetáculo, que interrompesse a nossa discussão porque “tinha muita gente para fazer o teste e que eu cantasse de qualquer jeito!” Rápido, pedi um sol maior ao maestro e cantei. Depois passei a interpretar um texto que me deram, mas fui interrompido na metade, quando o americano olhou para mim e, traduzido pelo diretor brasileiro, perguntou qual problema que tinha no pé, se eu era aleijado ou não. Falei a verdade, sem entrar em detalhes: “Olha, gente, estou com um problema no pé, mas não é nada grave”. Daí o americano olhou pra mim, como se me desafiasse, deu um pulo do fosso da orquestra para o palco, e caiu no palco bem na minha frente. A impressão que tinha era que estava me dizendo assim: “Está vendo o que eu fiz? Agora quero ver você fazer isso, com o seu pé assim!” Ficava pensando: “Esse americano filho da puta vai me obrigar a dar esse salto, me fazer pular de lá pra cá, e como é que eu vou fazer?” Não fui obrigado a dar um pulo igual ao dele. Disse que daria alguns passos e que eu deveria repetir. Foram uns passos rapidíssimos, uma coreografia estranha. O cara me pediu para repetir, olhei para ele, e pensei: “Meu Deus, e agora?” Segurei a dor, e fiz igual, dei os mesmos passos que ele deu. Então olhou pra mim, como se dissesse: “Que cara valente, hein! Vamos ver o que ele será capaz de fazer!” Aí ouvi o americano falando inglês e o diretor brasileiro traduzindo: “Ele quer que você faça mais dois passos, depois três, depois quatro, de acordo com a música e acompanhando os movimentos dele”. Fiz uma primeira vez, uma segunda vez, mas na terceira não agüentei mais de dor, e berrei: “Ai, ai, ai, não quero mais trabalhar aqui, não quero, não quero!” Enquanto urrava de dor, o americano ria, ria, ria e ria. Disse muito obrigado, dei até logo e fui embora. O maestro ainda correu atrás de mim, entregou a minha partitura, mas fui embora, decidido. A bordo de um táxi com sacola de verduras na mão Fui embora, esqueci o teste. Aí um sábado à tarde, numa feira de Copacabana comprando verduras, enfiei a mão no bolso do calção, vestia apenas calção e uma camisa regata, e peguei o papel que tinha o número do telefone do Teatro Carlos Gomes. Pensei então em dar uma ligada, só por curiosidade. Liguei: Alô, quem fala? É o Sérgio de Oliveira. Quem está falando aí? Seu Sérgio, é o Ary Fontoura, fiz um teste aí com o senhor, lembra? Um que tava com um problema no pé? Mas claro que lembro, você é o único que não veio ainda assinar o contrato aqui no teatro. Tenho que ir embora, cara! Moro em Teresópolis, só vou ficar aqui até as três horas. Se o senhor não vier aqui até três horas, o senhor não vai mais assinar contrato nenhum! Mas que contrato? Contrato, o senhor passou no teste. Mas e agora como é que eu faço? Eu não posso ir aí agora. Três horas da tarde é o limite! Mas eu não tenho dinheiro pra ir, essa é a ver dade, como é que eu vou até aí agora? Pega um táxi, ora bolas! Mas não tenho dinheiro pra pegar táxi. Pega o táxi e venha como estiver, eu pago o táxi aqui pra você! Então entrei num táxi com uma sacola de verdura na mão, e fui embora para o Teatro Carlos Gomes. Cheguei lá, e ele berrou: “Você vai ganhar tanto! Mas vai ter de trabalhar das nove da manhã à meia-noite. Vamos ensaiar durante 30 dias e depois vamos estrear a peça”. Tentei lhe explicar que estava fazendo teatro, ele ordenou: “Então você vai ter que pedir a alguém para te substituir, ora bolas!” Mas nem precisou: a temporada de Caiu, primeiro de abril acabou antes de os ensaios de Como vencer na vida sem fazer força começarem. Como se livrar de um tétano na marca do pênalti Não tive saída: precisava dar um jeito no meu pé. Como fazer espetáculo musical mancando da perna? Resolvi passar numa clínica lá de Copacabana e pedir ao médico de plantão um remédio para dar uma segurada naquilo. Aí o médico disse que o jeito era operar o meu pé. Mas tinha uma mixaria no bolso, e falei pra ele que não tinha dinheiro e que só podia lhe pagar aquela mixaria. Foi então que o médico, um argentino, disse que não precisava lhe dar o dinheiro: “Guarde pra você comprar uma pomada, que você vai precisar”. Detalhe: O médico me disse que já estava com princípio de tétano quando cheguei lá. O secretário de Dr. Ornstein entra em cena Com o espetáculo Como vencer na vida sem fazer força fiquei em cartaz no Teatro Carlos Gomes um ano e meio. Foi um sucesso absoluto, teatro lotado todos os dias, de terça a domingo. Fazia uma ponta, o Mr. Gatch. Entrava até a décima cena e desaparecia. Tinha algumas falas e cantava alguma coisa. Nessa época consegui ganhar um dinheirinho, tinha um salário mensal regular, o que dava para sobreviver legal. Quando o musical estava saindo de cartaz, o Oscar Onstein me convidou para ser secretário dele em outro musical que viria em seguida: A família Trapp, que no cinema se chamou A noviça rebelde e no teatro brasileiro ganhou o nome de Música, divina música. Nesse novo espetáculo também fiz um papel e ensaiava o elenco infantil. Ficou em cartaz no Teatro Carlos Gomes, menos tempo em cartaz do que o previsto. Porque o filme com a Julie Andrews fez tanto sucesso que o público deixou de ir ao teatro e preferiu ver o filme. De novo na rua da amargura Quando terminou a temporada desse espetáculo, fiquei de novo desempregado. Tive de sair do pequeno conjugado de Copacabana e morar num quartinho no apartamento de uma senhora na Rua Bulhões de Carvalho, no mesmo bairro, mas já pertinho de Ipanema. Era horrível: só podia ficar no quarto até as oito horas da manhã porque o marido dela, que trabalhava à noite, ocupava o quarto das oito horas em diante. Chegava à meia-noite para dormir e durante o dia saía para bater perna. Um dia encontrei um amigo meu, Aroldo Murat, que era jornalista e que precisava de alguém pra dividir apartamento na Rua Riachuelo, no centro do Rio. Mudei então, mas lá não tinha nada, não tinha cama, não tinha geladeira. Estendia o lençol num canto e dormia. Eu também não tinha nada, só um radinho velho. Perdi as poucas coisas que tinha na mudança de Copacabana para esse novo lugar. Eram coisas mínimas, mas perdi tudo. Nessa época o pessoal mais pobre usava os serviços do que então se chamava burros-semrabo, que faziam mudanças mais baratas. Eram carrinhos de mão empurrados por homens. Deixei a minha pequena mudança com um desses caras, na confiança de que me entregasse as coisas depois, e ele não entregou nada, sumiu com tudo. Fiquei apenas com uma maletinha e duas calças, um sapato, uma escova de dentes e o radinho. Foi a única coisa, aquela maletinha, que eu mesmo levei na mão. Parece que foi Deus quem me alertou: “Leva pelo menos isso aqui”. Foi um dos meus períodos mais críticos aqui no Rio de Janeiro, completamente sem dinheiro, sem nada. Sapato furado e Rachmaninoff O meu estado de penúria era tão grande que dispunha apenas de duas calças. Para piorar, o único sapato que tinha arrebentou. Dei uma topada no meio-fio e lá se foi o bico do pé direito. Que fazia eu? Toda vez que tinha de sair, chegava num engraxate que ficava ao lado do Diário de Notícias, pedia para amarrar a sola com um barbante e passar uma tinta preta para escondê-lo. E lá ia eu, todo frajola, procurar emprego. Isso quando não estava às voltas com a comida. Não tínhamos panelas. Cozinhava em latas de cera que o faxineiro do prédio me dava. Como o Rio é normalmente quente, e porque não tínhamos geladeira, fazia um bife no almoço e dividia por quatro – dois para mim e dois para meu companheiro de infortúnio. Almoço e jantar. Morava com um repórter bem-sucedido lá em Curitiba que, mais tarde, não agüentou a barra e se foi do Rio de Janeiro. Nesse período de muita dureza, tinha o hábito de ouvir a Rádio Jornal do Brasil, que tinha uma excelente programação. Ficava apoiado na janela, olhando ao longe o bondinho de Santa Tereza passar pelos Arcos da Lapa, ao som de Rachmaninoff, ou Beethoven, ou Tchaikovski. Por aí! Mas creia, achava chique, apesar do resto. Foi, ao que me lembre, o período de ócio maior que tive no Rio, cercado de privações, porém... feliz. Tenho dessa época uma lembrança saudável. Foi quando aprendi a falar comigo mesmo. Era o eu de dentro e o eu de fora. E quantos momentos de reflexão nesse lento trabalho de autoconhecimento! Mas valeu, como se diria hoje! Adquiri novos valores de vida e deixei muitas mesquinharias de lado. Talvez por agir assim, onde chegava era bem recebido. Ninguém se importava se minha camisa era sempre a mesma, se a calça não tinha vinco e o sapato era furado. Ainda assim, vivia sempre alegre. Para variar, cantava o dia inteiro, fazendo coro com o radinho de pilha, sempre ligado. A louca trupe que cantou o sabiá Mas Deus não desampara e descobre o seu endereço! Um dia, meu amigo Nestor de Montemar, colega de elenco de Como vencer na vida sem fazer força, me procurou para substituir o ator Emiliano Queiroz na comédia de Gastão Tojeiro Onde canta o sabiá, com direção de Paulo Afonso Grisolli. Ele simplesmente decupou a comédia e, num ritmo cinematográfico, fez espetáculo absolutamente novo e, por isso, algo distante do público. Não havia salários, ganhávamos por porcentual de bilheteria. Lá fui eu me juntar a esse elenco brancaleônico, em que minha amiga Marilia Pêra já brilhava, fulgurante. Saímos em excursão para Porto Alegre. Eram 18 pessoas no elenco e todos viajaram de Caravelle, numa viagem de ida chiquérrima, até com champanhe a bordo. Ficamos em cartaz no Teatro Leopoldina quase um mês, trabalhando no vermelho. As pessoas – Marilia Pêra, Gracindo Jr., Nestor de Montemar, Normal Suely, Dudu Barreto Leite, Yara Sarmento – seguravam a temporada teatral mais louca que já fiz na vida. Mas foi também a minha mais irresponsável e agradável passagem pelo teatro. Nessa temporada gaúcha fizemos amizades, íamos a festas, conquistamos os gaúchos, tão hospitaleiros. Como se não bastasse o fracasso em Porto Alegre, ainda resolvemos nos apresentar em Pelotas, onde esta alegria toda acabou. Estávamos entrando nos anos 70, vivíamos sob uma dura repressão, mas, para nós, tudo isso era muito distante. Terminada a temporada, que daria um livro à parte, lá veio o elenco todo de ônibus. Era a triste volta em que nos separávamos. Voltei a Curitiba sozinho, com uma passagem pela metade e um frango assado com farofa para agüentar as quinze horas de ônibus. Na rodoviária, lembro dos amigos gaúchos, que nunca mais vi, balançando lenços de adeus. Cheguei de volta em Curitiba e fiquei muito mais tempo do que devia, sempre dentro de casa, até chamar a atenção de minha mãe, que me perguntou: “Você está de férias, meu filho?” Respondi evasivamente, disse que estava num período de folga, esperando que o teatro de Brasília, onde nos apresentaríamos, ficasse vago. Finalmente me rendi à realidade. Realmente a peça estava programada para Brasília, mas tinha de sair de Curitiba outra vez. Recorri ao meu querido irmão Ivan, que, discreto como nunca, me emprestou o dinheiro que pôde, sem me perguntar nada. Então pude voltar para o Rio de Janeiro, para a paisagem da minha janela, para ouvir as músicas de minha estação de rádio favorita, para respirar o ar do Rio de Janeiro, que amava mais que tudo. Uma relação tão engraçada com a Iracema de Alencar Foi nessa época que fui fazer meu primeiro teste na Globo, e quem era o diretor artístico? O Graça Mello, que já conhecia do teatro, foi aquele a quem substituí em Mister Sexo. Ele então me perguntou: “Por que você não me procurou antes, que eu tinha te colocado no elenco fixo?” Respondi: “Porque eu não sabia”. Então participei de uns episódios de Rua da Matriz, série que a TV Globo exibia nessa época. Ganhava mal, mas pude conhecer e trabalhar com a Iracema de Alencar, que era uma atriz maravilhosa. A nossa relação era, literalmente, engraçada! A ponto de que, quando contracenávamos, ela não podia nem olhar para mim, morria de rir. Nos tornamos grandes amigos. Ela adorava a noite. Morava no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Quantas vezes saímos, eu, ela e Glauce Rocha, pegávamos um táxi no meio da noite e íamos jogar bilhar em Petrópolis! Num desses períodos críticos em termos de grana surgiu a possibilidade de fazer a peça Rastro atrás, de Jorge Andrade, direção de Gianni Ratto, com um elenco ótimo. Era a primeira produção do Teatro Nacional de Comédia. O ator principal era o Leonardo Villar, o maravilhoso Leonardo Villar. O elenco também tinha Isabel Ribeiro e Iracema de Alencar, que quando fui fazer o teste me encontrou e perguntou: “Você vai trabalhar nessa peça?” Disse: “Vou!” Ela então disse: “Então não vou fazer. Como é que vou contracenar com você sem morrer de rir?” Insisti: “Iracema, pelo amor de Deus!” Ela insistiu: “Não vou fazer essa peça com você!” Retrucava: “Mas Iracema, estou sem trabalhar há dez meses, preciso desesperadamente de algum dinheiro, qualquer coisa que me derem eu vou aceitar”. Ela, claro, estava brincando. Gostava de mim e queria que estivesse empregado. Mas, por precaução, exigiu que não contracenasse comigo. No final deu tudo certo. Cantando La Bamba para Carlos Machado Quando atuei em Música, divina música, conheci Djenane Machado, filha de Carlos Machado. Ele ia sempre buscá-la no fim dos espetáculos, e um dia me perguntou: “Você nunca fez show na sua vida?” Disse que não. Ele perguntou se eu cantava, eu disse que cantava. E ficou por isso mesmo. Quando já estava atuando em Rastro atrás algum tempo depois, soube que estava realizando testes com alguns atores. Fui procurá-lo na Boate Fred”s. Levei aquele velho disco debaixo do braço e ele falou: “O que é que é isso aí?” Disse: “É um disco que eu gravei”. Ele ficou surpreso: “Você gravou um disco?” Disse que sim. Então ordenou: “Sobe lá no palco e canta uma música, que quero ouvir”. Perguntei: “Que música que o senhor quer que eu cante?” Disparou: “Cante uma música, ora bolas, uma música que você saiba cantar”. Disse então que era difícil lembrar alguma assim de surpresa, e ele me pediu pra cantar La Bamba: “Você conhece essa música?” Então pedi um sol maior ao maestro e comecei a cantar, me entusiasmei, e cantei a música toda. Terminei de cantar, o Carlos Machado falou: “Esse número já entra direto no show, esse vai ser o seu primeiro número no show!” Fiquei surpreso: “Meu!?” Ele reafirmou: “Seu, você vai trabalhar no meu show!” Fiquei com ele oito anos, fazendo um show atrás do outro. São dessa época Machado’s Holliday, Pussy, Pussy Cats, Deu a louca em Hollywood e Festival do Stanislau (Ponte Preta). Um show antes e um cigarro depois Carlos Machado era um homem bem-sucedido, considerado o Rei da Noite do Rio, fazia shows magníficos. Mas chegou a um ponto nos anos 70 que gastou demais, ficou numa penúria danada e quebrou. Nessa época em que quebrou eu já estava na televisão, com carreira bem encaminhada na Globo, e ele tinha parado de fazer os shows dele. Estava mal de grana e morava num lugar muito ruim ao lado de um circo na Barra da Tijuca. Então me chamou e me convidou para fazer um show numa boate chamada Macumba, lá na Barra. Mas avisou que não poderia me pagar. Perguntou se toparia trabalhar e se desse algum dinheiro eu ter um porcentual na bilheteria. Ele disse que estava numa situação ruim e que tinha certeza que eu poderia fazer o show. A idéia era eu fazer um guia turístico que circulava por motéis e fazia comentários sobre o que via dentro dos motéis da Barra da Tijuca. Era um show para antes e depois do ato sexual, para servir de estímulo sexual, um show muito forte que seria exibido à uma hora da manhã. Então disse para ele: “Vou voltar a trabalhar com o senhor, sim, e vamos transformar esse show num sucesso e vou tirar o senhor daqui desse lugar”. Não deu outra. A gente fez o show na boate Macumba por dois anos, o show chamava Motel Business, e muitas pessoas que me conheciam foram assistir. Lembro que o ator Sérgio Cardoso foi e, na saída, me procurou e falou: “Que pena que você está gastando o seu talento pra fazer uma coisa dessas! É muito engraçado o que você faz, mas é demais isso tudo”. Retruquei: “Mas é um show à uma hora da manhã. Quem vem aqui nesse horário? Você viu a freqüência? São alguns casais que vão para os motéis e outros que estão voltando que vêm aqui jantar e se divertir. Eles querem é isso mesmo. Quem é que vai querer outra coisa além disso? E depois o problema não é meu, o texto é de outra pessoa”. Depois achei uma bobagem ficar dando esse tipo de satisfação a alguém. Para mim bastava que ele tivesse ido. E se ele viu e achou ruim por que ficou até o final? Enfim, o falecido Sérgio Cardoso era meio complicado. O censor e o filho da prostituta Foi muito curioso o jeito como conseguimos liberar este show na censura. Fizemos um ensaio geral para o censor. Em cena éramos eu, mais cinco garotas que faziam striptease e dois modelos masculinos que simulavam fazer sexo com elas. Apenas eu era ator, e fazia as ligações entre os motéis e as várias posições sexuais. O ensaio geral para a censura foi à uma hora da manhã e depois o censor veio nos dizer que o show não poderia ser liberado porque tinha muita imoralidade. Ele dizia: “Não pode, vocês ficam dizendo puta que pariu, filho da puta e não sei o que mais a toda hora. Não pode!” Foi então um desespero, porque o show estava todo armado, o Carlos Machado quase teve uma síncope. Então tive uma idéia. Já estava acostumado a negociar com a censura porque já tinha participado do Teatro Opinião, que era um grupo de esquerda que sempre teve que negociar com os censores a liberação das peças que montava. Disse para o Carlos Machado: “Marca um outro ensaio pras quatro horas da manhã!” O Machado perguntou: “E o que é que a gente vai fazer com ele até as quatro da manhã?” Aí disse: “Pega aquela menina bonita ali e bota ela pra conversar com ele, para beber uma coisinha com ele. Diz para ela não deixar ele bêbado, mas beber uma coisinha com ele”. Fui jantar no La Mole e na volta começamos o ensaio. Substituí todos os palavrões. Em vez de dizer filho de uma puta dizia filho de uma prostituta. Em vez de vá tomar no cu dizia vá tomar no ânus. De repente, dizia: “Tire esse pênis da minha frente”. Fui modificando tudo assim, dessa forma. Acabou ficando uma coisa mais imoral do que se dissesse caralho, cu, puta. No final, o censor chegou pra gente e disse: “Olha, não é por nada não, mas vamos fazer o seguinte: vou liberar o show, mas voltem à forma primitiva”. Foi uma comemoração danada, o espetáculo arrebentou, Carlos Machado melhorou de vida de novo e pôde voltar a morar num tríplex na esquina do Copacabana Palace. Sucesso na TV, deboche no ônibus Na TV, o meu primeiro papel marcante foi numa novela do Dias Gomes chamada Assim na terra como no céu. Interpretava um costureiro, o Rodolfo Augusto, na que foi considerada uma das primeiras representações de um homossexual na televisão. O personagem participava do desfile de fantasias do Teatro Municipal e a vida dele era totalmente voltada para isso, passava o ano inteiro pensando no tipo de fantasia que vestiria no carnaval seguinte. Mas no capítulo 121 todos foram pegos de surpresa, porque após perder um concurso ele vai para a praia e tenta se matar. Quando está se aproximando do mar, aparece um garoto que quer lhe vender algo: “Moço, o senhor está tão cheio de brilhantes, o senhor deve ter muito dinheiro, o senhor não podia comprar um amendoim pra me ajudar?” Rodolfo Augusto então olha para o menino e pergunta: “O que você faz? Isso é sua profissão?” O menino diz que sim. Ele pergunta: “Mas onde é que você trabalha? O que você faz com o dinheiro que você ganha?” O menino responde: “Sustento a minha família”. Então tudo começa a se passar na cabeça dele de uma maneira tão forte que desiste de se matar e começa a chorar. Como realização ficou assim um negócio comparável ao que Fellini fazia no cinema. Humanizei o personagem de um jeito tal que a homossexualidade dele não foi nunca questionada pelo público. Esse personagem fez tanto sucesso que não podia mais pegar ônibus no Rio de Janeiro. Já era ator de sucesso, mas continuava andando de ônibus. Ainda não tinha dinheiro para comprar carro. Ia de ônibus todo o dia de minha casa em Copacabana até o Jardim Botânico, onde então ficavam os estúdios da Globo. Quando entrava no ônibus as pessoas começavam a me chamar de Gugu, o apelido do personagem na novela, e a imitar os trejeitos do meu personagem. Começavam a me chamar de bicha e a gritar “ai, ai, ai”. Pior: às vezes passavam a mão na minha bunda. Aquilo tudo, claro, começou a me incomodar muito. Resolvi então ir à direção da Rede Globo, contar o que estava ocorrendo, e dizer para eles que o que ganhava era muito pouco. Que precisava ter um dinheiro extra para ir de táxi para trabalhar e assim ficar livre daquela inconveniência de viajar de ônibus e passar por aqueles vexames. Depois de se reunirem para discutir o meu assunto, disseram não, que não me dariam nenhum dinheiro a mais para que pudesse pegar táxis. Fazer o quê? Não podia fazer nada mesmo! Disse para me animar “tudo bem!”, bolei alguns estratagemas tipo usar óculos escuros para que tivessem dificuldade de me reconhecer e continuei a ir de ônibus para as gravações. Hora de dar um jeito na vida Algum tempo depois, na época em que fazia a novela O cafona, morava num apartamentoconjugado na Rua Barão de Ipanema. Era complicado morar lá. O morador de cima havia feito um terraço onde levava os amigos para tomar sol e beber cerveja. Então sempre acordava com aquela barulhada toda. Quando estava de bom-humor até subia e participava da farra. Mas quando não estava de bom-humor, me perguntava: “Meu Deus, quando é que vou ter alguma coisa na vida e morar um pouco melhor?” Um dia cheguei nas gravações meio cansado dessa dureza toda: “Poxa, trabalho tanto. Bem que a Globo podia reconhecer esse trabalho e me dar um contrato. Sou pago com cachê, estão me judiando demais e o meu aproveitamento está sendo a toda hora, já tinha atuado em tantas novelas de sucesso!”. Então resolvi tomar uma atitude. Encontrei o Moacyr Deriquém, que era assistente de direção da novela, e falei: “Olha, cara, não quero mais fazer essa novela!” Ele ficou puto: “O quê?” Fui ainda mais claro: “Não quero fazer mais essa novela”. Ele, se fazendo de desentendido: “O quê?” Enfatizei: “Não, não estou querendo fazer mais essa novela, quero sair dessa novela. Você fala para o Bráulio Pedroso me tirar? Não quero mais trabalhar na Globo”. Ele, finalmente me entendendo: “Que é isso, Ary? Você deve estar nervoso. Fique Calmo.” Declarei: “Não quero mais trabalhar nessa novela e não vou gravar mais hoje. Porque ou vocês me dão um contrato, para que eu possa ter um posicionamento melhor da minha vida, ou não quero mais trabalhar nesse lugar. Estou fazendo muita coisa!”. Moacyr Deriquém pensou um pouco, depois disse que ia dar um telefonema. Voltou alguns minutos depois e afirmou: “Eles disseram que é pra você dar um pulo lá na direção da emissora amanhã”. Não me deixei enrolar: “Não! Não vou confiar nessa gente. Não esqueço nunca que quando estava fazendo Assim na terra como no céu e fui pedir um dinheiro extra para o táxi, uma mixaria, para não ser alvo de deboche do público e não chegar ao trabalho contrariado, eles não me deram um tostão a mais! Deixei pra lá, mas agora estou fazendo uma novela que é um sucesso danado, fazendo um personagem que é um sucesso danado e ninguém quer me dar um contrato! Se não tiver contrato, não quero mais e vou me embora já!”. Peguei as minhas coisas e fui embora para o Teatro Copacabana fazer a matinê da peça O camarada Miossov, um vaudeville que fazia grande sucesso com todas as sessões lotadas. Quando terminou o espetáculo, o Moacyr Deriquém estava lá me esperando e me disse: “Você está me dando muito trabalho, ouviu? Você não quer ir falar com os homens, não foi gravar. Já lhe disse que eles estão esperando você amanhã para uma reunião”. Reafirmei: “Moacyr, também já lhe disse que não vou nessa reunião porque não confio neles. Quero ir a uma reunião onde possa assinar um contrato imediatamente!” Pediu para eu esperar. Foi até um telefone, falou com alguém, voltou e disse: “Tudo bem. Você pode ir lá às nove horas para assinar o contrato”. Face a face com os chefões Então fui lá na Globo. Estavam todos os diretores reunidos e um deles disse: “Está se vingando, hein?” Falei bem calmamente: “Não, não estou me vingando, estou me colocando, estou apenas aproveitando uma oportunidade, infelizmente, dessa forma. Porque estou pressentindo que somente por pressão é que se cresce aqui dentro”. Alguém disse: “Não, não é verdade”, mas continuei: “Pode não ser verdade pra uns, para mim está sendo. Estou sentindo isso. Então não quero mais trabalhar aqui nesta televisão. Estou muito aborrecido. Ou trabalho e tenho uma vida saudável para que possa morar num apartamento melhor, onde possa pensar na minha vida em termos de futuro, ou então não quero mais trabalhar pra vocês!” Falei mais: “E caprichem no que vocês vão me oferecer. Porque se vocês não me oferecerem um bom ordenado, um bom contrato, eu não fico mais aqui”. Eles me ofereceram um valor e não aceitei. Eles aumentaram, eu aceitei. Mas não era o que que-ria, então pedi um contrato mais longo, e eles me deram um contrato mais longo. Em vez de me darem um ano de contrato, me deram três. Meu salário melhorou, passei a ganhar o dobro do que ganhava antes. Então pude respirar e fui para casa muito feliz. Dia seguinte, sexta-feira, me deitei em casa, liguei a televisão, eram mais ou menos cinco horas da tarde, e escutei anúncio que dizia algo assim: “Amanhã às nove da manhã lançamento do estande do novo edifício da Rua Duvivier em Copacabana”... O texto do anúncio era mais ou menos assim. Então decidi: “Vou comprar um apartamento nesse lugar!”. Rua Duvivier, via Mar e Terra Fui lá à Rua Duvivier no dia seguinte e só tinha um apartamento no primeiro andar que era a preço de promoção. Pedi para reservar e reservaram pra mim. Mas disseram que só podiam reservar até a terça-feira seguinte, eu disse “tudo bem”, e fui para a Globo gravar a cena que não tinha gravado na quinta à tarde. Quando cheguei lá encontrei um homem que estava me esperando e ele me falou: “Senhor Ary Fontoura, estou querendo lhe falar desde quinta-feira, quando estivemos aqui e o senhor não se encontrava. Ontem o senhor não teve gravação, então voltei hoje. É o seguinte: estou trazendo um contrato para o senhor assinar. Sou de uma empresa publicitária que tem a conta dos Supermercados Mar e Terra e estamos querendo contratar o senhor para fazer um anúncio publicitário”. Pedi para ver os papéis que aquele homem trazia, ele pediu que pensasse na idéia e disse que voltaria na quarta-feira seguinte para fecharmos o negócio. Disse “ok” e na terça-feira seguinte fui lá fechar o negócio naquele prédio em construção na Rua Duvivier. Dei um dinheiro de entrada, pouca coisa, não tinha muito, e prometi que daria a parte restante da entrada, algo assim como 3.940 cruzeiros, até a sexta-feira. Quando saí de lá, mais calmo, vendo a loucura que tinha feito, pensei: “Puta que pariu, onde é que vou arranjar esse dinheiro?” Mas pensei também: “Se não der, perco esse dinheiro da entrada que dei, mas pelo menos tentei comprar um apartamento”. No dia seguinte voltei a encontrar o cara da empresa de publicidade dos Supermercados Mar e Terra para acertar o preço do anúncio. Perguntei, nervoso: “Quanto vocês vão me pagar?” O homem falou algo assim tipo 1.500 cruzeiros. Falei, decidido: “Preciso de exatos 3.940 cruzeiros, assim na mão!” Não gostei do que ouvi: “Isso não vamos poder pagar, isso não vamos poder pagar!” Então deixei meu telefone com ele e fui pra casa. Ele não me garantiu nenhum tipo de acréscimo àquele valor, mas prometeu voltar a me ligar entre três e cinco horas da tarde. A eternidade em dez minutos Fui para casa e passei a tarde ao lado do telefone. De repente, o telefone tocava, atendia ansioso e era um amigo qualquer querendo jogar conversa fora. Então implorava: “Pelo amor de Deus, desliga, que estou esperando uma ligação importante!” Todo mundo que ligou para mim naquela tarde eu mandei desligar. Até que, finalmente, o telefone tocou e era o cara do Mar e Terra. Ele falou: “Olha, chegamos a um ponto aqui, vamos pagar 2 mil cruzeiros para você!” Fui firme: “Não, só aceito 3.940!” Ele foi duro: “Não, isso não vai dar.” Então fui mais duro ainda: “Então não vai dar pra fazer, só vai dar para fazer se vocês me derem este valor!” Aí o cara falou, meio desanimado: “Vou tentar aqui, mas não garanto nada!” Perguntei: “Você me liga de volta a que horas?” Ele disse: “Ligo para você de volta em dez minutos!” Foram os dez minutos mais longos de minha vida. Mas dez minutos depois ele me ligou e disse: “Olha, a gente vai te pagar esse dinheiro. Mas só se você me disser o porquê de ter exigido exatamente este valor de 3.940 cruzeiros!”. Expliquei tudo para ele e, dia seguinte, gravei o comercial dos Supermercados Mar e Terra: sentado numa rede, incorporei o personagem Profeta que fazia em O cafona, e disse que “estava tendo uma visão, uma visão do mar, uma visão da terra, uma visão do Mar e Terra”. Foi o maior barato, fiz aquilo na maior felicidade. Acabou a gravação, peguei o meu cheque e dei a primeira entrada do primeiro apartamento que tive na minha vida. A grande mentira Morei nesse apartamento que comecei a comprar dessa forma por 25 anos. Só para pagá-lo completamente levei 15. As pessoas pensam que trabalhar na Globo nos faz milionários. Não é assim. É uma grande ilusão. As revistas divulgam isso e o público acredita. Desculpe dizer, mas tem muito colega de trabalho que sai em revistas e que toma emprestada a casa dos outros para fazer as fotografias. Então o público pensa que todos somos muito ricos. O jovem, por exemplo, que hoje em dia é fissurado em televisão, passa a acreditar que nossa vida é facílima e que no dia seguinte à entrada na televisão já poderá comprar jet-ski, iate, casa na praia. Isso é uma grande mentira! Cinco ou seis ganham muito bem na televisão. O restante... Os camareiros da TV ganham menos que minha empregada! Democracia na veia Fiz parte do Grupo Opinião, que era ligado à esquerda, mas nunca fui engajado, nunca tive pendor para esse tipo de coisa, fiquei mais ou menos alijado desse processo, mesmo durante a ditadura. Claro que não pactuava com a ditadura. A gente trabalhava com um porrete dentro do camarim, não sabia se uma bomba ia estourar ou não no teatro, aqueles homens do Dops ficavam assim nas pontas da arena, de braços cruzados, olhando pra gente pra ver se a gente esquecia o texto, se saía do texto ou se estava fazendo alguma coisa que não estava determinada. Como poderia ser a favor disso tudo? Na verdade, me engajei no Opinião porque precisava trabalhar. Fui lá trabalhar e pronto. Era apenas necessidade de trabalhar mesmo. Mas nunca fui omisso, não concordava com a ditadura. Sempre fui uma pessoa assim muito ligada à democracia. Liberdade para mim sempre foi uma coisa essencial. Sem democracia não se vive. Mas evitei tomar partido. Também nunca aconteceu de ser solicitado para ajudar algum colega que estava sendo perseguido. Mas se tivesse havido essa solicitação claro que teria ajudado, sem pestanejar. Mas quando tinha atos públicos sempre ia. Participei na passeata dos cem mil. Estava naquela passeata de protesto contra a morte daquele menino, o Edson Luiz, aquele estudante que foi assassinado. Quando a classe teatral estava presente, quando havia necessidade de a classe estar presente, sempre estava presente. Procura-se um político decente Mas se tivessem me convidado não sei se teria me engajado em algum partido. Porque política era uma coisa assim que não me agradava, que não me agrada, que nunca me agradou. A forma como se faz política é quase sempre ignóbil, sempre vejo muitas falhas, não é o ideal pra mim. A política, da forma como é feita, é uma coisa suja. Mesmo no tempo em que estava na universidade, as pessoas me assediavam para pertencer ao diretório acadêmico, o que seria o primeiro passo para a militância política, mas nunca quis participar, não me atraía. Achava que o exercício da política não deveria ser remunerado, deveria ser assim por amor à Nação, não deveria ser uma profissão. Mas se fosse assim, quem se candidataria? Tenho 73 anos, voto desde 1920, e ainda estou esperando surgir o homem que seja o grande presidente do Brasil. É muito tempo de espera, não é? Quem foi um grande presidente do Brasil? Quem foi um político notável? Que forma é essa de se angariar dinheiro através dos partidos, para depois fazer uma subdivisão e depois colocar as pessoas que você realmente quer, para usufruir disto? Esses conchavos todos que são feitos me enojam: uma hora um político chama o outro de “filho da puta”; na outra, dois meses depois, chama o outro de “meu querido!” Não tenho receita, não entendo de política, mas acho que para tornar o mundo melhor tem que se fazer uma política melhor, com pessoas melhores, que pensem de outra maneira. Quem sabe não buscando essas facilidades, não buscando o poder. Dentro do que posso ajudar, ajudo. Mas não acho que seja a solução eu todo o mês mandar uma cesta básica pra alguém. A não ser que seja uma pessoa inutilizada, que não possa trabalhar, que esteja privada de seus movimentos. Mas não creio que seja por aí. Definitivamente, política não é um negócio no qual gostaria de me meter. Nunca me interessei em fazer política exatamente por isso, por ver o lado negativo, por não ver assim uma solução. Gostaria que a solução não fosse essa, de formar “panelinhas”. É sempre assim, o partido que ganha é sempre o partido para onde tudo é canalizado. Eles são todos Pitágoras Quando voto, eu voto em alguém que sinta alguma coisa rara, diferente. Votei no Lula porque disse uma frase: “Nós temos uma dívida com a raça negra nesse país”. Votei nele por causa dessa frase. Mas hoje estou achando o governo dele uma decepção. Sempre fui crítico em relação aos políticos todos. Quem duvidar que reveja os muitos políticos que interpretei na TV. O Pitágoras, por exemplo, de A indomada, foi facílimo fazer. Era um deputado federal, um político corrupto. Para interpretá-lo bastou ligar a televisão na TV Senado e observar um pouco de um, um pouco de outro, e mais, claro, o texto que o Aguinaldo Silva escreveu magistralmente. Não tive dificuldade nenhuma para fazer bem o personagem. Não é justo um homem de 73 anos de idade como eu ficar esperando um presidente que preste. Já votei tantas vezes, nunca vi um bom presidente no Brasil. Talvez morra sem ver. Digo que nunca fiz política, mas não é verdade. Não teria feito política se eu tivesse sempre ficado em absoluto silêncio diante das coisas erradas que via, se não comentasse. Pensando bem, talvez eu seja um grande político. Na minha carreira, na competitiva profissão que exerço, talvez tenha precisado da política, a política em si, de uma maneira extraordinária para poder sobreviver dentro do meio artístico. Porque não é fácil. É muito fácil chegar num determinado ponto. Mas é extremamente difícil permanecer nele. Os políticos hábeis vão ao ponto e permanecem. Se você é hábil na vida também, tem um pouco de sorte e não tem preguiça para trabalhar, me parece que você também consegue chegar lá. Mas há pessoas que querem subir rapidamente e permanecer lá, de qualquer maneira. Essa é a má política, essa eu não quero exercer de forma alguma na minha vida. Quero ser uma pessoa honesta, quero ter ao meu redor criaturas honestas também, pessoas que façam um imposto de renda como eu faço, tudo que tenho está lá, tudo que precisava pagar eu paguei. Quando bati o pé na mesa e exigi que me contratassem na Globo foi uma atitude política, sem dúvida alguma. Eles sentiram em mim uma firmeza absoluta na minha convicção. A importância de ser gentil Essa história da gentileza, de elegância no trato, é muito importante. Na ocasião em que recebi o Troféu Imprensa do Silvio Santos não tinha que falar. Era só agradecer e ir embora. Mas quando olhei aquele homem sorridente e rico quis falar um pouco mais. Fazia mais de vinte anos que eu não o via. A última vez que o tinha visto, ainda quando trabalhava pra Globo, ocupava os horários da Rede Globo, não tinha a televisão dele, fazia o programa dele num auditório vagabundo que tinha na Rua das Palmeiras. Fui lá fazer um programa com ele e ele me tratou tão bem! Agora voltava a vê-lo dono do SBT, dono daquele império todo, os estúdios absolutamente impecáveis, aquele tratamento de primeiríssimo mundo, uma cortesia sem igual. Eu me senti tão bem lá que o abracei e disse: “Que prazer que tenho em ver você!” Ele quis logo entregar o prêmio talvez para me expulsar rapidamente dali, porque tinha um horário a cumprir. Mas insisti e falei: “Silvio, você vai me desculpar, antes de mais nada gostaria de felicitar você, porque há vinte anos estive no seu programa na Globo, você ainda não tinha o SBT, e agora você tem todo este mundo aqui. Como você está poderoso, como o SBT é poderoso! Parabéns, isso é uma prova evidente de que quem é tenaz, quem quer trabalhar, acaba crescendo e conseguindo as coisas na vida”. Ele me olhou, não esperava aquilo, queria me homenagear, e fui lá e o homenageei, bateu na telha, aí então ele ficou comigo 15 minutos. Daí as pessoas disseram: “Ah, como você é malandro, você conseguiu ficar muito tempo no ar”. Mas sou assim mesmo. Gosto de ser grato. Acho que o público foi fundamental na minha carreira e sempre quero agradecer a quem me permitiu ser o ator que sou hoje, porque sem esse público não conseguiria ser nada. Se ninguém liga a televisão, se ninguém vai ao teatro ver uma peça minha, meu trabalho não existe. Somos todos iguais nesta noite Agora quando saio do teatro, quando saio da televisão, quero ser considerado um cidadão comum, igual a todos. Trato a minha empregada Nilza, que está comigo há mais de trinta anos, como se fosse alguém da família. Qual a diferença? Quem sabe tenha um pouco mais de cultura que ela, em determinados pontos? Mas, com certeza, ela pode me dar de dez em outros assuntos, ela pode ter vivido aspectos da vida dela que eu desprezei, que não vivi, e que eram importantes. Por que vou desprezar meu próximo, por que vou ser diferente com as pessoas só porque tenho alguma fama? Se são todos iguais a mim? Tenho uma visão das pessoas até grosseira. Acho que todo mundo termina igual. Qualquer um, seja o rico, seja o pobre, seja o culto, seja o inculto. Ninguém agüenta o cheiro de um cadáver em decomposição. É 24 horas o prazo. Para alguns é até menos. E para que essa empáfia? Só porque você tem uma Mercedes e o coitadinho ao seu lado no trânsito tem um fusca que comprou em 1960? Por que essa empáfia se dali a pouco vai lhe dar uma dor de barriga e você vai se sentar da mesma maneira que a outra pessoa senta no banheiro e fazer as mesmas coisas que a outra pessoa faz? Será que ninguém vê isso? Eu vejo. A fã, a mãe da fã, e o vôo perdido Quando as pessoas me abordam na rua, reajo naturalmente. Olha, não tenho segurança, nunca tive, não gosto. A Globo já me impôs numa ocasião, não quis. Vou ao supermercado, vou ao Maracanã. Aqui no Rio de Janeiro, onde moram muitos artistas, as pessoas já nem ligam para a gente, quase não incomodam. Quando alguém vem me pedir um autógrafo aqui no Rio, sei que a pessoa não é daqui. Em aeroportos as crianças me assediam muito. Principalmente agora que estou fazendo O sítio do picapau amarelo. Como é que eu não vou atender uma criança? Tem dia que estou com o saco absolutamente cheio, mas, mesmo assim, não posso perder a paciência. Uma vez estava vindo de São Paulo à noite, acabara de gravar o programa Sai de baixo, e tinha pressa de chegar ao Rio porque teria gravação no dia seguinte, cedo. Aí chegou uma mocinha e me pediu para eu tirar uma fotografia com ela. Estava em cima do laço, cheguei pronto para embarcar, com o cartão de embarque na mão, com o serviço de voz chamando o meu vôo. Aí chega essa menina e, toda meiguinha, pede: “O senhor pode tirar uma fotografia comigo?” Disse meio sem pensar: “Claro que posso tirar, mas tem que ser rápido, pois tenho que ir embora rápido, o meu vôo já vai sair”. Quando olho assim para o lado vejo que a menina está ao lado da mãe e que a mãe está numa cadeira de rodas. Então a mãe da menina sugere: “Quero tirar uma fotografia junto daquela palmeira”. Respirei fun-do, mas fui lá, empurrei a carreira de rodas dela, tirei a foto, mas ela não ficou satisfeita: “Acho que não ficou boa. Posso tirar outra?” Resultado: perdi o avião. Claro que fiquei chateado, mas não foi o fim do mundo. Um autógrafo absolutamente indigesto Nem sempre é assim. Claro, já perdi a compostura. Numa ocasião estava comendo num restaurante e um menino veio me pedir para eu dar um autógrafo. Falei para ele, calmamente: “Você já jantou?” O menino disse: “Não, vou jantar com papai.” Aconselhei gentilmente: “Então faz o seguinte, vai lá, você janta com o teu pai, deixa aqui o teu tio acabar de jantar, terminar de comer, depois você vem. Mas não traz esse papel aí pra eu escrever, pede lá pra moça te dar um cartão do restaurante, que, aí fica um cartão bonito. Tudo bem?” O menino insistiu: “É que eu peguei esse papel, era o guardanapo, para o senhor me dar o autógrafo.” Resisti: “Mas é difícil de escrever nesse guardanapo, você vai escrever, rasga, é chato. Então traz pra mim depois, vai lá, coma, volte aqui, que aí eu te dou o autógrafo, tá bom? Tiro até uma fotografia com você, se você quiser.” O menino então foi pra mesa dele. Continuei o meu jantar, tranqüilamente, quando, de repente, tomei um susto. O pai do garoto chegou assim por trás de mim, bateu com força no meu ombro. Já não gostei daquilo porque achei que aquela não era a maneira mais simpática de se abordar alguém, mas fiquei quieto e falei: “Pois não?” Foi quando o pai do garoto bradou: “O que você está pensando que é? Você tem a coragem de tratar o meu filho dessa maneira?” Pensei comigo mesmo: “Que porra que esse filho da puta desse guri foi dizer pro pai dele?” O pai continuou: “Não querer dar um autógrafo para uma criança, tirando a ilusão do garoto? Se negando a escrever no papel que o menino com muito sacrifício trouxe pra cá! Pedindo pra ele trazer um outro papel!?” Aí tive que falar: “Moço, é o seguinte...” Mas ele me interrompeu: “Não quero ouvir nada, entendeu? Você saiba que na televisão você é um instrumento, você é um mero objeto, se não ligo a porra daquela merda daquela televisão você não existe!” Tentei falar: “Você tem razão!” Ele: “Cala a boca!” Resolvi reagir: “Como é que é?” Levantei e falei alto: “Cala a boca, como? Como, cala a boca?” Quando me levantei, ele ficou menor, e ele não esperava a minha reação. Expliquei para ele o que tinha ocorrido e mandei que chamasse o menino, o menino veio, e falei duro com ele: “O que é que eu falei pra você?” O menino, nervoso: “O senhor falou que era pra eu jantar e o que o senhor ia jantar também, e que depois eu pegava o papel pra trazer”. Então apareceu a mulher do cara dizendo “calma querido, calma”. Falei para o pai: “Não foi isso que ele lhe falou?” O pai: “Falou, mas eu queria era no papel que ele trouxe, tá pensando o quê?” Então explodi: “O senhor tem que ser mais educado! Onde já se viu, me fazer passar esse vexame? Além disso, não vou dar autógrafo nenhum para o seu filho!”. Oh, que delícia de seqüestro! Fui uma vez raptado em Portugal, no aeroporto de Lisboa. Peguei um táxi, pedi ao taxista que me levasse ao hotel onde costumo ficar, na Avenida Restauradores, e dava o quê até lá? Coisa de dez minutos do aeroporto. Então comecei a perceber que o taxista foi fazendo desvios, dizendo que a estrada estava ruim, coisa e tal, que estava em reformas, deu uma volta, e eu vi que estava atravessando a ponte indo embora para Sintra, Cascais. Fiquei meio aflito e afirmei: “Mas este não é o caminho do hotel!” O taxista disse então, calmamente: “Sei que não é, seu Ary, o senhor acaba de ser raptado! O senhor vai lá pra minha casa, já liguei para minha mulher, estão esperando o senhor para lhe servir um bolinho de laranja”. Pensei duas vezes, pensei em me zangar, mas depois pensei melhor e disse: “Tudo bem, vamos lá”. Pensei comigo mesmo: “Estou passeando mesmo, o que é que me custa ir até à casa da família dele? A única coisa que tinha programado era chegar no hotel e dormir um pouco. Então não me custa nada”. Fui, fiquei lá na casa do taxista até cinco da tarde, bebemos vinho, comemos bolo, comemos leitão à pururuca, bacalhau. Depois o taxista ainda me levou de graça para hotel, onde dormi, tranqüilamente, até o dia seguinte. Estudar, estudar e estudar As pessoas me escrevem muitas cartas. Pedem coisas, pedem dinheiro, muitas querem saber como se entra na TV Globo, como é que entrei, como é que as pessoas podem fazer. Isso é o que mais querem saber. Acho que há uma diferença entre ter a arte dentro de você e estar dentro da arte. Então as pessoas precisam ver o que é que acontece. Se você tem o teatro dentro de si, então vai estudar porque é uma carreira muito generosa, em que se é aceito até os 70, 80 anos. Sempre haverá o papel de um avô, de um tio, de um pai para se interpretar. Então aconselho a quem me escreve e pergunta sobre estudar. Estudar muito. Entrar numa escola de teatro, tirar um diploma, estudar, e não pensar que é só beleza que adianta, que interessa. A não pensar que o que importa é ter um belo físico, bem malhado, e achar que isso é o suficiente para um grande ator. Não, a gente, que é ator, não pára de estudar nunca, não pára de ler, não pára de se informar. A vida se renova e nós atores temos a obrigação de acompanhar essa renovação. Quando me pedem conselhos, incito as pessoas a seguir esse caminho. As perplexidades do “Seu” Nonô Quando me pedem dinheiro é mais difícil, e sempre me pedem. Em algumas ocasiões até já dei. Mas tem situações estranhas. Como, por exemplo, essa coisa de dar dinheiro para um guardador de carro, que é uma profissão que até hoje não entendi, apesar de saber da miséria que ainda assola este país. Mas aí você estaciona seu carro em algum lugar e vem um guardador de carro se oferecendo para cuidar dele. O teatro custa 15 reais, mas o estacionamento custa 10. Às vezes no teatro você pode pagar meia-entrada, ou seja, paga sete reais e cinqüenta centavos, mas o estacionamento é sempre 10. Se você não der 10 reais antes, corre-se o perigo de encontrar o seu carro riscado. É uma profissão estranha essa, que não tem penalidade, não tem nada, você fica à mercê deles. Por causa do medo, você fica obrigado a colaborar. Se você não colabora, ou der apenas 2 reais, eles dizem pra você um “Deus-o-acompanhe” de uma maneira como se fosse um “vá-pra-putaque-o-pariu-seu-Nonô”, como costumam me chamar na rua. Seu Nonô por causa da felicidade que tive de fazer o papel daquele avarento na novela Amor com amor se paga, que foi o papel que mais me popularizou na minha carreira. Então é assim: se você dá o que eles consideram pouco, vai ouvir coisas que não gostaria de ouvir; se dá o que eles pedem, eles te desejam o céu. Às vezes há quem acha pouco o que dou e diz: “Um cara que trabalha em novela dando isso!” Eu reajo dependendo da hora. Normalmente faço uma cara meio feia, fecho o vidro e vou embora, puto da vida. Nada como um dia depois do outro Antigamente grandes diretores de teatro chegavam e perguntavam: “Você trabalha na Globo?” Confessava: “Trabalho”. Então diziam: “Poxa, deixa a Globo de lado, aquilo lá é muito alienante. Você não pode deixar o teatro de lado por causa da Globo. Sai dessa!” Hoje esses caras estão todos lá, trabalhando na Globo. Sou memória viva, vivo de memória, lembro de tudo, e de todos, e sei como todos começaram, como eu comecei e tudo o mais. Então hoje em dia quando chego em alguns lugares tem certas pessoas que não gostam de me ver. Porque elas gostariam de negar o passado, porque elas se esquecem de que todo o ser humano tem o direito de mudar. Mas você também tem o direito de não radicalizar e não é desprezando uma opção em determinado momento que você não vai ser no futuro envolvido nela. Ninguém pode desprezar um veículo de comunicação como a televisão. Claro, esse preconceito está menor hoje. À medida que a vida aperta, que as dificuldades são maiores, os preconceitos tendem a desaparecer. Hoje só fala mal da Rede Globo de Televisão, que é um bicho que deixaram crescer demais – até o Silvio Santos se contenta com um honroso segundo lugar de audiência – quem não está nela. Antigamente ouvi sandices tipo: “A televisão é sub-arte, não é nada, nem é arte, a televisão chupa tudo do rádio, do teatro, do cinema, o que interessa é fazer teatro.” Que bobagem! A gente sabe que sem o teatro, que é a primeira manifestação, nada acontece, não acontece cinema, não acontece TV, mas isso não impede ninguém de se dividir entre teatro e TV, que foi o que tentei fazer durante toda a minha vida. Faço muito TV, mas gosto muito mais do teatro, a base é o teatro, é lá que me recomponho, onde eu tenho o estímulo direto do público, presente, corrijo as minhas falhas, e vou me tornando melhor ou pior ator. Quase marido de Dona Flor Fui muito chamado para fazer cinema, mas fiz pouco, porque sempre estava fazendo novela; estava com a cara alugada, não podia mexer no rosto. Precisava de um cavanhaque, não podia deixar crescer. Precisava de um bigode, idem. No teatro não. Punha apliques, cabeleiras. No teatro pode porque é tudo longe. No cinema, ao contrário, tudo é ampliado. O que se imprime aparece totalmente. Deixei de fazer filmes que seriam importantes e que detonariam minha carreira no sentido cinematográfico. Por exemplo, Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto. A idéia inicial do diretor era que eu, Sonia Braga e José Wilker fizéssemos os papéis centrais. Faria o papel de Teodoro, que o Mauro Mendonça acabou fazendo. Não pude aceitar porque estava fazendo TV e teatro ao mesmo tempo e não teria tempo para ir filmar em Salvador. Outro filme que adoraria ter feito, mas não fiz foi Eu tu eles, de Andrucha Waddington. Ele foi me ver no teatro várias vezes, me adorou, me enviou todo o material que havia sobre o filme pra que eu entendesse melhor o trabalho dele. Estava quase tudo certo para eu fazer o papel, mas aí um dia ele me disse que o personagem precisaria ter barba, e aí não pude fazer por causa de uma novela em que aparecia sem barba. O Lima Duarte acabou fazendo o papel que seria meu. Outro filme em que ia fazer também um papel principal, e acabei fazendo uma ponta, porque queria estar no filme, de uma maneira ou de outra, foi Sete gatinhos. Não pude fazer, o Lima Duarte fez, porque eu estava no teatro, fazendo Ópera do malandro, e em alguma novela de TV, não teria tempo. O resultado é que não fiz nada assim de muito notável no cinema. Gosto muito de Mar de rosas, da Ana Carolina, que foi uma belíssima produção. Gostei também de fazer O beijo, do Walter Rogério, um excelente diretor. Também fiz Ed Mort, que achei que não fui bem dirigido, não gostei. Pornochanchada & Jabor Não me envergonho, fiz muitas pornochanchadas. Foram a marca de uma época em que pornografia era bem-recebida, não tinha grandes problemas com a censura. Na verdade, aliviava bem o público do teor político das coisas e divertia. Para nós atores foram importantes porque nos ofereceu muitas possibilidades de trabalho. O cinema novo nem soube que eu existi. Não fiz nada. Muito tempo depois tive um rápido flerte com Arnaldo Jabor, que deu em nada. Durante dez anos, ele me encontrava e me dizia: “Você precisa estar num filme meu, você está sempre no meu pensamento”. Nunca fizemos nenhum filme juntos. Se tivesse dependido dele... Falei, inclusive, isso para ele. Um dia o encontrei, e falei: “Se eu tivesse dependido de você pra comer você estaria falando com um esqueleto agora” – e rimos muito. Acabei priorizando a televisão a partir do momento do meu profissionalismo, porque foi o que pareceu mais viável. Priorizei a TV, mas nunca deixei de fazer teatro. Tirei o meu sustento fazendo as duas coisas, quase sempre ao mesmo tempo. O drama que era comédia (ou o fracasso que era sucesso) No final dos anos 80 montei uma peça que fez enorme sucesso: Moça nunca mais, com a maravilhosa Suely Franco, um vaudeville que eu e um amigo meu, o Julio Dessaune, que já faleceu, escrevemos.Ficamosemcartaz durante doisanos,fomos a Portugal, voltamos ao Brasil, sucesso absoluto, aí aconteceu o Plano Collor. Fomos atingidos. Nossos investimentos bancários foram confiscados e todo o nosso dinheiro ficou retido – então como gostar de política? Tive que acabar com a companhia, e quebrei. Em 1991 fui a São Paulo e resolvi montar uma peça de Flávio de Souza, que eu achava que era uma comédia e ele achava que era um drama. Acabei aceitando a opinião dele e comecei a ensaiar sob a direção de Elias Andreato. O espetáculo Corações desesperados, montado como drama, foi um tremendo fracasso. Mais quebrado do que nunca voltei para o Rio de Janeiro. Ao chegar, fui procurado pelo João Madeira, que trabalhava na Shell e que tinha instituído o Prêmio Shell de Teatro e também esse estilo de ajuda financeira às companhias teatrais. Disse que tinha uma reserva de 20 mil dólares, que queria aplicar em algum espetáculo, de preferência uma obra nacional. Ele sabia que tinha feito Corações desesperados em São Paulo e me perguntou se não gostaria de fazer o mesmo espetáculo no Rio de Janeiro. Disse que não, que era uma peça que havia fracassado. Depois pensei melhor e lhe disse que só toparia montar a peça no Rio como uma comédia e se achasse um diretor que enlouquecesse o espetáculo, que essa era a única forma da peça sobreviver, porque o argumento era muito frágil. Convidei o Jorge Fernando, que leu a peça, mas não gostou, e não quis fazer. Afirmou que não via como fazer um espetáculo em cima daquele texto. Insisti: “Mas eu vejo!” Não adiantou, ele não quis fazer de jeito nenhum: “Não quero, não quero, não quero”. Implorei: “Venha fazer, me ajude. A gente vai enlouquecer esse texto. Eu enlouqueço como ator, você enlouquece como diretor, nós faremos uma comédia muito engraçada. Vamos fazer um espetáculo interativo, vamos transformar isso aí numa conferência de teatro como de fato é, e vamos fazer o povo participar”. Finalmente o convenci, e fizemos o espetáculo. Ele apresentou sugestões maravilhosas, estreamos e foi um sucesso espetacular, ficamos quatro anos em cartaz. O que foi um fracasso em São Paulo virou um sucesso no Rio e no Brasil todo, por onde o espetáculo excursionou. Financeiramente houve uma recuperação notável na minha empresa. Um sucesso retumbante Esse sucesso ajudou tremendamente a arranjar patrocínio para a minha montagem seguinte: Corra que papai vem aí, um original americano do Ron Clark e Sam Bobrick, que eram roteiristas do Mel Brooks. A peça já havia sido montada no Brasil, por João Bittencourt, a partir da tradução francesa, com o título Freud explica? Explica e tendo Jorge Dória à frente do elenco. Então resolvi fazer uma adaptação diretamente do original americano. Convidei a Marisa Murray para fazer a tradução e mudamos o título para Corra que papai vem aí, que é exatamente a primeira frase da peça. Era uma comédia aparentemente inconseqüente, mas com ela ficamos seis anos em cartaz e viajamos duas vezes pelo Brasil inteiro. No final da peça, enquanto os atores agradeciam os patrocínios locais que a gente conseguia, as pessoas que ajudavam, pediam permissão para tirar fotografias da platéia. Então tenho todas as fotografias das platéias de todos os lugares. Foi magnífico, com teatros absolutamente lotados. Um fracasso retumbante Mas também tive fracassos espetaculares. O maior deles foi certamente Secretíssimo, de Marc Camoletti, que ficou apenas 22 dias em cartaz, no final dos anos 60. Nela, fazia o papel de um americano, um espião que se vestia de mulher para pegar a fórmula da bomba H, mais potente que a bomba atômica, que estaria dentro de um pó compacto de uma cantora de ópera. Achei que ia dar certo, que era uma comédia muito engraçada, mas o público não achou. Procurei a professora Lilia Nunes para me ajudar a encontrar a voz feminina para a personagem. Fiquei 22 dias elaborando-a e quando a encontrei, a temporada já estava no final, o espetáculo só ficou um mês em cartaz. Deu tudo errado. Entrou em cartaz no teatro errado, o Brigitte Blair, em Copacabana. Foi dirigida às pressas, pelo Fábio Sabag. Ele se atrapalhou tanto que a produção ficou sem dinheiro e perto da estréia, quando começamos a montar o terceiro ato, não havia mais dinheiro algum em caixa. Quando estreou, chegamos a apresentar a peça para dez gatos pingados na platéia. Da vida nada se leva Sou muito anti-racista. Para mim não tem essa história de amarelo, branco, vermelho, preto, azul. Todo mundo é igual. Não é pela cor das pessoas que se conhece o caráter delas. Eu me dou bem com todo mundo. Não que seja um santo, cometo coisas horríveis às vezes. Mas a questão é que não fui criado dessa maneira. Minha educação foi boa, essa que é a verdade. Meu pai e minha mãe, embora fossem pessoas muito simples, tinham uma visão humanitária do mundo. Fui amamentado por uma negra, minha mãe não tinha leite. Por aí você vê como eram as pessoas da minha casa. Tinha uma senhora japonesa que trabalhava pra gente. Como era bem-tratada essa mulher! Como a gente lamentava que fosse nossa empregada, porque ela tinha tido uma possibilidade de viver melhor e havia perdido. Como a gente batalhava, lutava e passava pensamentos positivos pra cima dela, para ela poder se recuperar e voltar a ser alguma coisa. Essa é a beleza da vida. Você não leva nada. Da vida nada se leva, o que é que você vai levar? Caixão não tem gaveta. Ai, que preguiça! (II) Acho que sou um pouco preguiçoso. Isso é uma coisa que eu não me perdôo, o tempo que eu per-di, que podia ter estudado. Pensando bem, não sou tão preguiçoso assim, mas como sou muito exigente, acho que perdi tempo na minha vida. Deveria ter estudado mais, poderia ter um vocabulário melhor, porque acho que não me expresso devidamente. Apesar de ler muito, hoje em dia já não consigo mais reter tantas coisas. Acho que poderia ter sido mais exigente comigo mesmo. Esse é um grande defeito meu: não me exigir mais. Mas acho que tenho uma grande virtude: sou muito autocrítico e estou sempre tentando descobrir os meus defeitos, e corrigi-los. Sem açúcar e sem afeto Acho que não tenho inimigos. Lembro dos problemas que tive com duas pessoas. Com uma delas infelizmente eu não pude corrigir o desentendimento, porque ela morreu um dia antes de eu chegar a Curitiba, para onde ia exatamente para conversar e esclarecer tudo. Foi uma bobagem. Mas eu sei que a pessoa no fundo entendeu também o que era, o que tinha acontecido. Ela estava disposta a me encontrar, a gente já tinha até marcado um encontro. Mandei um recado por um amigo, dizendo que ia a Curitiba só para resolver aquele assunto. Morreu antes do encontro. Mas morreu sabendo que queria me reconciliar. O outro problema foi mais complicado. Essa pessoa morou um tempo comigo, dividindo um apartamento muito pequeno. Então eu sabia tudo da vida dele e ele sabia tudo da minha. Quando arranjava uma namorada e queria fazer amor com ela, ele me pedia: “Ary, será que hoje você não pode chegar mais tarde um pouco?” ia num cinema, ou andava na praia, esperava. Quando acontecia comigo também, pedia a ele para fazer o mesmo. Ficamos muito próximos, sabíamos tudo um do outro. Mas o tempo passou, melhoramos de vida, e um dia encontrei essa pessoa, na Globo, e soube que também trabalharia na emissora, onde já estava havia algum tempo. Fui então abraçá-lo, com alegria, todo feliz: “Ah, que bom que você está aqui, que bom que você está aqui!” Então ele me cortou, rispidamente, e disse: “Quero conversar com você! Quero conversar com você em particular!” Saímos dali e ouvi: “Agora estou na televisão, agora eu vou começar uma vida nova, provavelmente serei famoso...” Não acreditava que estava ouvindo aquilo!. Ele continuou: “Então agora quero um tratamento diferente”. Perguntei: “Como assim, um tratamento diferente?” Ele foi claro: “Não quero saber de memórias do passado, não quero rememorações, quero começar minha vida toda, nova, a partir de agora!” Disse-lhe: “Então você quer dizer que sou um empecilho para que você sinta todas essas emoções? Você acha que posso atrapalhar a sua trajetória para ser famoso? É isso?” Ele afirmou: “É! A sua memória atrapalha!” Não acreditei: “Você está falando sério?” Ele: “Estou!” Eu: “Seriamente?” Ele: “Seriamente!” Eu: “Quer dizer que você quer começar uma vida nova a partir de agora e tudo que se refere à memória do passado você quer extirpar? É isso que você quer? Desprezar tudo que aconteceu antes?” Ele: “Exatamente!” Eu: “Então, meu querido, fique tranqüilo, porque não só estou riscado do seu passado, como estarei riscado do seu futuro. Estou saindo de sua vida, está legal? Não te conheço mais! Seja feliz, e famoso!” Depois disso trabalhei com ele em inúmeras coisas, contracenei com ele numa boa, mas nunca falei com ele, nunca! Tudo que ele quis eu fiz! Aí, muito tempo depois, estava em São Paulo, ele estava em cartaz na cidade com uma peça, e chegou o secretário dele e falou pra mim: “Eu tenho uma coisa chata pra dizer pra você.” Quis saber o que era, e ele me explicou que tinha um arrependimento muito forte da parte daquele colega. Perguntei: “E isso está afligindo ele?” O secretário respondeu: “Isso está afligindo ele há muito tempo”. Eu: “E o que ele quer?” Ele: “Ah, quer tentar ser seu amigo de novo”. Eu: “Então é facílimo isso, é a coisa mais fácil que tem”. Ele: “Mas como?” Eu: “Assim: vou lá ver a peça dele, depois vou ao camarim, e você me apresenta a ele!” Ele: “Como, apresenta?” Eu: “Pois é, você vai me apresentar a essa pessoa, como se não a conhecesse. Certo?” Então fui lá assistir à peça dele e depois fui no camarim, e falei: “Parabéns, muito prazer, Ary Fontoura!” A fama é uma lama A fama enlouquece as pessoas, a ponto de se perder amigos. Até em mim exerceu efeito muito louco. Houve uma hora que senti que precisava pensar em como lidar com isso, com essa coisa da fama. Estava demais! Comecei a ficar sem naturalidade diante das aproximações, dos cumprimentos. Comecei a ver que me tornei importante para pessoas que eram importantes pra mim antes, e isso foi complicado. Então tive que administrar isso, controlar essa situação. Passei a me ausentar, a ficar mais em casa, quando não me sentia naturalmente confortável em algum lugar, eu não ia. Comecei a ficar um pouquinho avesso às manifestações de parabéns e não deixar que isso me afetasse, me modificasse. A droga não é droga nenhuma Atravessei a minha vida inteira totalmente imune às drogas. A única coisa com a qual tive algum vício mais forte foi o cigarro. Fumei durante 32 anos, e faz 22 que parei. Fumava porque pra mim o cigarro era um complemento até certo ponto elegante. Achava bonito ter um cigarro na mão. Era um grande companheiro, um amigo urso, evidentemente. Mas preenchia as minhas horas mais solitárias. Cheguei a fumar três carteiras de cigarro por dia. Então um dia fui comprar pão numa padaria e, quando voltei, senti uma coisa assim meio esquisita, um mal-estar. Aí me apoiei na parede de um prédio, meio tonto. Daí uma senhora que passava me pegou no braço, e disse: “Ary...” Por que todo mundo me conhecia em Copacabana naquela época. Ela disse: “Ary, você está bem?” Falei: “Estou. Por que?” Ela: “Não parece que você esteja bem. Você teve um leve desequilíbrio, se apoiou na parede, quase caiu”. Me ajudou a atravessar a rua e perguntou o que estava acontecendo. Afirmei: “Devo estar muito cansado. Essa novela que estou fazendo agora está me dando muito trabalho”. Na época eu fazia a novela Paraíso, de Benedito Ruy Barbosa. Interpretava o papel de um padre que não tinha cenário próprio. Almoçava na casa de um, jantava na casa de outro, e jogava sinuca no bar. Resultado: Estresse! Cheguei em casa, fiquei pensando no que tinha acontecido e resolvi marcar uma consulta com uma cardiologista. Fui lá e ouvi o que não queria ter ouvido: que precisava parar de fumar. Então resolvi, decidi parar. Tinha uma casa em Araruama onde a gente jogava muito buraco. Ia para lá com meus amigos todos, e aí numa noite de jogatina, um fumacê desgraçado, todo mundo fumando, comuniquei: “Não vou fumar mais!” Foi um “gargalheiro” geral, fumava mais de sessenta cigarros por dia, ninguém acreditou que estivesse falando sério. Como prova de que estava, entreguei para eles, com a maior dor no coração, um isqueiro de ouro e uma carteira de couro onde punha os maços. Então eles falaram: “Ok, Ary, a gente vai pegar e depois te devolve”. Nunca mais fumei. Beber é uma droga Hoje bebo apenas socialmente, mas teve períodos em que bebi mais, o que quase se tornou um problema. Quando me disseram que estava bebendo demais, pedi que me contassem o que estava fazendo quando bebia, porque não lembrava. Então me contaram, e fiquei meio apavorado. Estava saindo de mim, quando me embriagava, uma pessoa que nunca quis ser, que estava adormecida dentro de mim. Quando bebia, tudo de ruim que tinha dentro de mim vinha para fora. Então constatei o poder que o álcool tinha de trazer isso à tona e dei um basta ao vício. A maconha é uma droga Na época do Tem banana na banda, não fumava maconha, mas todo o mundo ao meu redor fumava. Então o pessoal me chamava de careta, mas não importava, dava gargalhada. Dizia que era careta, graças a Deus, que tinha que ter um careta na história para a palavra poder existir. Não precisava daquilo, não precisava de um cigarro de maconha. Achava que se fizesse teatro bebendo ou fumando maconha antes de entrar em cena, seria uma covardia. Porque demonstrava que não tinha capacidade de interpretar. Acho que quem se estimula pra fazer uma determinada coisa, tem um problema qualquer. Tem pessoas que bebem antes de entrar em cena, que fumam maconha antes de entrar em cena, que cheiram cocaína antes de entrar em cena, mas para mim a lucidez é fundamental. Rir é mais difícil que chorar Dos gêneros todos é a comédia o mais difícil. Porque no drama é fácil fazer chorar. A vida está repleta de ocasiões e de coisinhas que acontecem e que estimulam no público um certo sentimentalismo, uma certa vontade de chorar. Mas a vida não está cheia de motivações engraçadas. Então é fácil fazer chorar, mas é muito difícil fazer rir. Então o comediante tem que ter técnicas que o ator dramático necessariamente não precisa. O que precisa um ator para contar um drama? Ele precisa de silêncio na platéia e a convicção de que o público está acompanhando o drama que ele está contando. Havendo isso dentro de uma caixa, dentro de um teatro, teremos inevitavelmente a lágrima como companhia e até mesmo o aplauso. Já a comédia é naturalmente ruidosa. Quando as pessoas vêm para ver uma comédia já chegam no maior tititi, com aquela sensação de euforia de quem vai ver um espetáculo alegre e que vai se divertir. Quando a apresentação começa cada gargalhada interrompe a ação. Se o ator continuar falando enquanto as pessoas estão rindo ninguém vai entender nada. Isso significa que há um hiato para a interpretação. O ator precisa esperar a gargalhada do público terminar e só então o espetáculo recomeça. O ator nunca pode falar em cima da gargalhada do público. É uma técnica dificílima, porque você precisa sair e entrar no personagem. Você sai, entra, entra, sai, entra, saí. É muito difícil, exige muita técnica. Em Corra que papai vem aí conseguia fazer com que as pessoas rissem de quinze em quinze segundos. Tinha dias que isso fazia com o espetáculo atrasasse meia hora. Sessão única de psicanálise Fiz psicanálise uma vez só, literalmente uma vez só. Foi exatamente naquele momento de indecisão que estava aqui no Rio de Janeiro, sem saber se voltava para Curitiba ou não. Não sabia bem o que fazer da vida. Aí me perguntei: “Quem sabe se procurasse um analista, que me ouvisse e me desse uma orientação, isso não poderia ser uma coisa legal?” Estava numa encruzilhada. Vi no jornal o anúncio de um psicanalista, liguei e marquei uma consulta. Falei durante uma hora e no final o psiquiatra me mandou embora, e disse: “Se todos os meus clientes como você, chegassem assim e me falassem tudo que você falou, eu estaria falido. Ainda bem que nem todas as pessoas são assim!” Falou mais: “Vá em paz, está tudo bem com você. É uma questão de decisão, que você vai tomar, com certeza. Isso, essa indefinição, todos nós temos que enfrentar em algum momento. Mas a definição já existe na sua cabeça, é só ter coragem para assumi-la”. De suicídios, de caras e de cabelos Nunca pensei em me matar. Acho o suicídio uma bobagem. Nunca vivi nenhum momento que dissesse assim “não quero mais viver”. Na verdade, adoro viver. Também nunca fiz cirurgia plástica, nem nada. Acho até que estou ainda com uma cara boa, eu vivo da minha cara. Meu cabelo caiu em três meses, a partir dos 40 anos. Antes tinha um “cabelão” imenso. Aí um dia vi a fotografia do meu pai, que também ficou completamente calvo e percebi, porra, é a genética, não posso fazer nada, sou igual e ele. A cor do meu cabelo não é essa. Meu cabelo é branco. Mas desde que comecei a fazer O sítio do picapau amarelo me pediram pra pintar. Não queria, mas insistiram: “Você tem que pintar, o cabelo não vai ficar legal, queremos um personagem mais ágil, mais jovial, mais ativo.” Se dependesse de mim, continuaria sem pintar, mas atendi aos apelos. Faz dois anos e meio que pinto o cabelo, e aí acabei gostando. Quem tem medo do dramaturgo Ary Fontoura? Eu me dou nota 4 como dramaturgo, mas vivo louco para escrever algo, ave-maria! Escrevi uma peça chamada Quem tem medo de Janete Clair? Escrevi em 1982. É uma comédia, um dramalhão em dois atos e uma apoteose, e se passa em 1920. Já dei para algumas pessoas lerem, para aqueles que minha vergonha permite, entre elas o Sergio Britto. Ele, de uma forma muito carinhosa, me disse: “A tua peça é a mais estranha que eu já vi em toda a minha vida”. Ele acabou comigo. Só disse isso, mas acabou comigo. Mas continuo escrevendo. Se você abrir essas gavetas aqui do lado vai ver como escrevo coisas. Vivo escrevendo cotidianamente. Parece que recebo o espírito de algum dramaturgo e mando bala. Todo dia tenho uma idéia nova, mas não estou conseguindo concluir nada. Mas escrevi sempre. Em Curitiba escrevi duas revistas: Não me lote Brasilino e Fofoca no Paraná. Também escrevi duas comédias: O amante da minha mulher e o Qüiproquó da galinha. Esta última tem uma história interessante. Um dia, o escritor Moacyr Scliar, passando por Curitiba, sem ter o que fazer, passou na frente de um teatro, gostou do nome da peça anunciada e entrou para assistir a comédia O qüiproquó da galinha. Aí, muitos anos depois, em Porto Alegre, lendo o jornal Zero Hora, deparo com crônica escrita por Moacyr Scliar. Naquele texto falava que uma das coisas que mais o tinham divertido em toda a vida foi uma comédia sobre uma galinha, em Curitiba, muitos anos antes. Puta que o pariu: era a minha peça. O Moacyr Scliar falando isso da minha peça: fiquei orgulhosíssimo! Não sou propriamente inédito, como autor no Rio de Janeiro. Escrevi uma comédia nos anos 80 que foi encenada pela Elisângela, A rainha do lar. Em 1969, Marília Pêra fez na boate Night and Day, sob a direção de Mauricio Sherman, A pequena notável, adaptação para show da comédia musicada, que Alexandre Marques e eu escrevemos sobre, é obvio, a vida de Carmem Miranda. Foi uma bela performance de minha amiga Marília e mais um sucesso na carreira dela. Ivon Curi estava certo Claro que já vi alguém dormindo no meu espetáculo. Sem problemas, respeito o sono dele. Também já dormi em vários espetáculos que fui assistir. Quando vou à estréia de colegas, meu grande medo é de repente dar uma baqueada assim, e dar uma cochilada, dormir até. Porque a bem da verdade às vezes o espetáculo é uma monotonia só e você tem que ficar lá hipocritamente assistindo até o fim. Sem poder dormir, porque se dormir alguém sempre comentará depois. Então sempre peço para sentar mais atrás. Ou faço como o Ivon Curi e vou cumprimentar o elenco antes de a peça começar. Essa história do Ivon Curi é ótima. Ele era um gentleman e, sempre muito educadamente, ia cumprimentar o elenco das peças antes de o espetáculo começar. Ele apertava a mão de todos e dizia: “Espero que o seu espetáculo seja cercado do maior sucesso! Felicidades pra você! Merda!” E ia embora. No final da peça ninguém nunca o via. Se não gostava da peça, ia embora. Não era honesto? Agora a gente, goste ou não goste, tem que ficar no teatro até o final e, mesmo se não tiver gostado, tem que elogiar. Quase sempre a gente precisa ser hipócrita. Como é que você vai quebrar o encanto desse momento, daquele momento em que o ator ou diretor vem até você e pergunta: “O que você achou do meu trabalho?” Tem-se que dizer “Achei ótimo, muito bom, parabéns!” mesmo achando uma merda. É, convenhamos, situação muito constrangedora. Ivon Curi fazia o certo. Uma história edificante Quando o Marco Nanini veio do Recife para o Rio de Janeiro com a família, estudava na Escola de Teatro da UniRio. Morava muito longe, acho que na Penha, e a mãe dele ficava muito preocupada porque voltava sempre muito tarde das aulas. Então, um dia no Bar Acapulco, em Copacabana, que todo mundo de teatro freqüentava, fui apresentado a ele pelo Chico Ozanan, um grande amigo. Ele sentou-se à nossa mesa, começou a conversar, e disse pra mim que a dificuldade maior que estava tendo era encontrar alguém pra dividir um apartamento, pagar meio a meio. Aquilo para mim foi como a sopa no mel. Preferi pensar um pouco mais e lhe disse: “Mais tarde te dou uma resposta”. Conversei com algumas pessoas que o conheciam, todo mundo disse que era um cara legal, e ele foi morar lá em casa. Foi quando eu estava fazendo uma novela chamada A ponte dos suspiros. Então um dia o Marco Nanini falou pra mim assim: “Agora na escola estávamos fazendo aula de esgrima”. Então falei pra ele: “Agora lá na Globo tem papéis dessa nova novela que os atores têm que lutar esgrima. Você é bom esgrimista?” Ele disse: “Sou, sou um dos melhores da classe.” Quando cheguei na TV escutei uma conversa do Moacir Deriquém, que era o produtor, dizendo: “Puxa, gente, vamos precisar de uns caras que façam esgrima, e têm de ser jovens, esbeltos, porque afinal é Veneza”. Então falei para o Deriquém: “Tenho uma indicação pra você, vou trazê-lo aqui amanhã”. Foi assim que Marco Nanini estreou na TV: fazendo figuração como lutador de esgrima. Fazia essa novela e um programa de humor, acho que era Faça humor, não faça guerra, em que o Milton Carneiro também trabalhava. Um dia ele, que estava pensando em viajar com um espetáculo que reunia duas peças de Brecht e uma de Sergio Porto, me perguntou: “Você não conhece um jovem galã, um ator jovem que queira começar carreira, que não seja muito caro, que queira viajar comigo?” Olhei então para o Milton Carneiro, que era um mambembeiro fantástico, um sujeito assim que quem trabalhasse com ele só ia aprender, e ia aprender o certo, e o errado, e aprender evidentemente a discernir sobre o que seria melhor pra ele, e indiquei o Marco Nanini outra vez. Porque Nanini era talentoso eu agi assim. Não me perdoaria jamais se tivesse perdido a oportunidade de fazer o que fiz. Hoje, quando vou assisti-lo, a palavra perseverança me toma por inteiro. Era o que ele mais tinha. O hilário embate entre o consulente cético e a cartomante sapatão Acho que existe uma energia negativa e uma energia positiva. Minha religião é essa, o meu deus é o positivo, e o diabo é o negativo. Nunca consulto cartomantes. Não acredito. Mas lembro que uma vez fui. Umas amigas me levaram até uma mulher que fumava um charuto fedorento e tinha a voz muito grossa. À primeira vista me pareceu mais uma sapatão do que uma cartomante. Bobagem minha, podia ser uma cartomante sapatão. Pois bem, chegou então a minha vez de ser atendido, depois de minhas amigas que saíram de lá maravilhadas com a mulher. Entrei, e estava lá aquele sapatão com o charuto na boca e um telefone do lado. Ela ordenou: “Senta aí”. Sentei. Então o telefone tocou, ela murmurou “essa filha da puta!”, me pediu um momento, e atendeu, com aquele vozeirão: “Alô, que é que há minha filha? Já te falei pra não me ligar quando estou trabalhando? Vá pra puta que te pariu!” Olhou então para mim, como se nada tivesse acontecido, e falou: “Diga aí, Fontoura, que é que você quer saber? Não vou falar nada da sua vida, nada da sua arte, senão você vai dizer que eu sou charlatã, eu conheço tudo que você fez na televisão, eu sou sua fã”. Apertou minha mão com força. Então o telefone tocou de novo, e ela atendeu: “Cala a boca, eu tou atendendo um freguês, porra! Não posso falar agora!” Desligou e voltou de novo a atenção para mim: “Vou ver as cartas aqui pra você, saber o que está acontecendo. Você é aquariano!” Pensei: “Ok, sou aquariano, mas isso ela pode ter descoberto em qualquer revista”. Aí ela falou: “Você nasceu às cinco horas da tarde!” Surpreendi-me, mas pensei: “Exato! Nasci às cinco horas da tarde. A quem que eu já disse isso? Não me lembro de ter falado isso pra muita gente”. Ela continuou: “E você não é daqui!” Pensei: “Ah, isso era fácil de ela descobrir”. Prosseguiu: “Agora vamos direto ao assunto, isso não interessa, sua vida eu não quero nem saber, quero saber o que está acontecendo com você!”. Embaralhou outra vez as cartas. Foi quando o telefone tocou de novo. Era a menina outra vez, mandou-a pra aquele lugar, e comentou: “Essa puta me atrapalha toda hora!” Sugeri timidamente: “Será que não há um jeito, por que não desliga o telefone?” Ela cortou: “Não posso desligar porque também quero saber onde essa filha da puta está!” Sugeri de novo: “Você desliga o telefone só no período em que estiver fazendo a consulta comigo”. Não quis saber: “Não, não precisa, essa puta vai parar de ligar. Vamos lá. Vamos ver sua vida, o que está acontecendo agora na sua vida! Você vai ter que evitar as pessoas que estão lhe amarrando, tem uma série de coisas que você quer fazer, e só tem gente contra. Deixa todo mundo de lado e vai em frente porque você está certo!” Fiquei meio tonto: de fato, estava vivendo uma situação em que tudo que eu propunha às pessoas elas diziam “não, isso eu não quero fazer, isso não quero fazer, isso não quero fazer” e não era assim normalmente; normalmente chegava, dizia “quero fazer isso aqui”, e as pessoas faziam. Mas quando resolvi ser mais democrático e abri o jogo, os atores da companhia em que estava passaram a se negar, porque as pessoas começaram a analisar o que tinha que fazer, coisa e tal. Ela insistiu: “Faz você mesmo, o que você costuma fazer!” Foi isso. A namorada dela parou de ligar, e a consulta foi essa basicamente. O dia em que o ator viu um disco voador Acho que foi coincidência ela ter acertado. Mas, por outro lado, acredito em disco voador, aliás, tenho certeza de que vi um disco voador em Curitiba. Não fui o único, graças a Deus, porque senão passaria por mentiroso. Era um objeto não identificado e era exatamente dia 5 de maio de 1956, às duas horas da tarde. O céu estava azul e lá pelas tantas quando resolveram ir embora, foram, deram uma virada assim, num piscar de olhos sumiram no horizonte. Era um disco voador, mesmo. Ai, meu Deus, em 1956, que objeto poderia ser aquele com aquela velocidade supersônica? O nome dele é trabalho Sou muito disciplinado sim. Não tive dificuldade de ser assim. Talvez minha ascendência inglesa tenha ajudado. Papai era assim também. Durante todo esse tempo que estou na Globo só faltei à gravação uma vez, quando mamãe faleceu. Não sei se por causa dessa minha disciplina, hoje não preciso exigir nada porque todos me tratam muito bem na Globo. Nem há razão para eles me tratarem de maneira diferente, seria uma injustiça. Nunca dei um problema pra eles, de espécie alguma, sempre fui um bom profissional. É uma troca. Faço bem o meu trabalho, em troca eles me tratam muito bem, com a dignidade e o respeito que eu mereço. Agradeço ao veículo pela permissão que deu de expandir o meu talento, e o veículo deve agradecer o meu talento pelo que eu fiz lá. A arte imita a vida & a vida imita a arte Eu e Heloísa Mafalda fazíamos um casal em Bandeira 2, um casal que costumava dar expansão às suas fantasias sexuais, e iam inventando coisas. Um dia ele falou o seguinte para ela: “Você vai se vestir de prostituta, vai rodar bolsinha na calçada!” Ela vai, e ele, como se não a conhecesse, tenta assediá-la. Ela resiste falsamente, diz que não fala com qualquer um. Mas ele insiste: “Ó minha filha, deixe de bobagem, quanto você cobra?” A cena era mais ou menos assim, e em seguida passava o camburão da polícia e levava os dois em cana. Começamos a fazer a cena, tudo dando certo, nos conformes, até que passou um camburão e nos levou presos. A gente tinha que entrar no camburão com microfone e tudo e descer logo em seguida. Mas nada de o camburão parar. O camburão não parou, o camburão não parava, e a gente começou a ficar meio em pânico. Perguntava onde eles estavam nos levando, e o motorista dizia: “Peraí que vocês já vão saber para onde a gente vai!” Eu gritava: “Nós estamos gravando aqui a novela”. Os caras respondiam: “Que gravando o quê?” Começamos a ficar desconfiados. Perguntei: “Vocês não são figurantes?” Um deles berrou: “Figurante é o caralho!” Resultado: fomos parar numa delegacia de verdade lá em Ramos. Era um camburão que havia passado ali e nos levou, como se fôssemos marginais mesmo. Não foi uma coincidência incrível? A equipe da Globo já estava vindo atrás de nós, e nos resgatou. Sono a bordo de um caixão de defunto Era uma peça do Oduvaldo Vianna chamada O homem que nasceu duas vezes. Um personagem, exatamente o que eu interpretava, tinha um ataque de catalepsia, era dado como morto, e enterrado. Numa apresentação, estava dentro do caixão, estava tão cansado, que me deitei e dormi dentro do caixão. Foi um vexame terrível. Epílogo Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... A cidade do Rio de Janeiro mudou a minha vida. Hoje sei que essa região, essa paisagem, essa geografia, fazem parte de mim. Amo o Rio de Janeiro de paixão. Se tivesse continuado em Curitiba acho que continuaria vivo, mas muito complexado, muito frustrado, por não ter feito o que eu mais queria, que era sair de lá. Esta cidade mudou minha vida, mudou minha pessoa. Esse povo daqui é o povo que eu visto. A forma de se viver aqui, livre, autêntica, é a forma que eu quero para mim. Amo estar aqui. Cronologia Ficha Técnica O ator Ary Fontoura em dados Nome completo: Ary Beira Fontoura Data de nascimento: 27 de janeiro de 1933 Local: Curitiba, Paraná. TV Novelas e Minisséries 1968 • Passo dos ventos 1969 • Rosa rebelde • A ponte dos suspiros 1970 • Verão vermelho • Assim na terra como no céu 1971 • O cafona • Bandeira 2 1972 • Uma rosa com amor 1973 • O semideus 1974 • O espigão 1975 • Gabriela 1976 • Saramandaia 1977 • À sombra dos laranjais 1977 • Nina 1978 • Dancin’ days 1979 • Memórias de amor • Marron glacê 1980 • Plumas & paetês 1981 • Jogo da vida 1982 • Paraíso 1983 • Guerra dos sexos 1984 • Amor com amor se paga 1985 • Roque santeiro 1986 • Hipertensão 1988 • Bebê a bordo 1989 • Tieta 1990 • Araponga 1992 • Deus nos acuda 1993 • Agosto 1994 • A viagem 1995 • Engraçadinha... Seus amores, seus pecados 1996 • Vira-lata 1997 • A indomada 1998 • Meu bem querer 1999 • Vila Madalena 2000 • Brava gente • Sai de baixo 2001 • O sítio do pica-pau amarelo 2003 • Chocolate com pimenta Teatro 1964 • Mister Sexo De João Bittencourt. Dir. João Bittencourt • Caiu, primeiro de abril De Raul da Matta. Dir. Sadi Cabral • Como vencer na vida sem fazer força Produção de Oscar Onstein. De Frank Loesser e Abe Burrows, a partir do livro homônimo de Shepherd Mead. Tradução de Carlos Lacerda. Dir. Harry Woolever e Sergio de Olveira 1966 • Música, divina música Inspirado em A noviça rebelde, de Robert Wise, baseado no livro de Howard Lindsay e Russel Crouse. Dir. Harry Woolever e Sergio de Oliveira • Onde canta o sabiá? De Gastão Tojeiro. Dir. Paulo Afonso Grisolli 1967 • Rastro atrás – De Jorge Andrade. Dir. Gianni Ratto • A úlcera de ouro De Hélio Bloch. Dir. Leo Jusi 1968 • Secretíssimo De Marc Camoletti. Dir. Fábio Sabag • Dr. Getúlio, sua vida, sua glória De Ferreira Gullar e Dias Gomes. Dir. José Renato • Jornada de um imbecil até o entendimento – De Plinio Marcos. Dir. João das Neves • O inspetor geral De Nicolai Gogol. Dir. Benedito Corsi 1969 • Crime perfeito De Frederick Knott. Dir. Antonio de Cabo • Catarina da Rússia De Alfonso Paso. Dir. Antonio de Cabo • Meu bem, como posso escutar você com a torneira aberta? De Robert Anderson. Dir. Antonio de Cabo 1970 • Tem banana na sanda De vários autores, entre eles Oduvaldo Vianna, Millor Fernandes, José Wilker e Armando Costa. Dir. Kleber Santos 1971 • Alice no país divino, maravilhoso! De Paulo Afonso Grisolli, Tite de Lemos e Sidney Miller. Dir.Paulo Afonso Grisolli 1972 • Os caras de pau De Ary Fontoura. Dir. Ary Fontoura • O peru De George Feydeau. Dir. José Renato 1973 • Querido, agora não De Ray Cooney. Dir. Sergio Viotti 1974 • O camarada Miossov De Valentim Kataiev. Dir. Fábio Sabag • O estranho De Edgar da Rocha Miranda. Dir. João Bitten-court • A mulher de todos nós De Henri Becker. Tradução de Millor Fernandes. Dir. Fernando Torres • O ministro e a vedete Dir. Geraldo Queiroz. 1975 • Mamãe, papai tá ficando roxo De Oduvaldo Vianna. Dir. Walter Avancini 1976 • Divórcio, cupim da sociedade De Max Nunes e Hilton Marques. Dir. Gracindo Junior • Arlequim, servidor de dois amos De Goldoni. Dir. José Renato 1978 • Ópera do malandro De Chico Buarque. Dir. Luiz Antonio Martinez Correa 1979 • Rasga coração De Oduvaldo Vianna Filho. Dir. José Renato 1980 • Mãos ao alto, Rio! De Paulo Goulart. Dir. Aderbal Freire Jr. 1983 • Rei Lear De William Shakespeare. Tradução de Millor Fernandes. Dir. Celso Nunes 1984 • Assim é, se lhe parece De Luigi Pirandelo. Dir. Paulo Betti 1986 • Sábado, domigo e segunda De Edoardo de Fellipo. Dir. José Wilker 1988 • Drácula De Bram Stoker. Dir. e interpr. Ary Fontoura 1989 • Moça, nunca mais De Ary Fontoura e Julio Dessaune. Dir. Ary Fontoura 1990 • Corações desesperados De Flávio de Souza. Dir. Elias Andreato 1991 • Corações desesperados Nova versão da peça de Flávio de Souza. Dir. Jorge Fernando 1995 • Corra, que papai vem aí De Sam Bobrick e Ron Clark. Dir. Ary Fontoura 2001 • A diabólica Moll Flanders De Charles Mueller, a partir de obra homônima de Daniel Defoe. Dir. Charles Mueller Filmes 1969 • Os raptores Dir. Aurélio Teixeira • As sete faces de um cafajeste Dir. Jece Valadão • Os paqueras Dir. Reginaldo Farias • Até Que o Casamento Nos Separe 1970 • Um uísque antes, um cigarro depois Dir. Flavio Tambellini • Os mansos Dir. Braz Chediak 1974 • Banana mecânica Dir. Braz Chediak 1979 • Mar de rosas Dir. Ana Carolina 1980 • Os sete gatinhos Dir. Neville D”Almeida 1990 • O beijo 2348/72 Dir. Walter Rogério 1997 • Ed Mort Dir. Alain Fresnot Prêmios 1984 • Mambembe Melhor Ator, por Rei Lear 1985 • Mambembe Melhor Ator Coadjuvante, por Assim é, se lhe parece. 1986 • Mambembe Melhor Ator do Ano, por Sábado, domingo e segunda. 1997 • Troféu Imprensa Melhor Ator do Ano, por A indomada. Índice Apresentação – Hubert Alquéres 5 Introduçao – Rogério Menezes 13 AR (Antes do Rio) 23 DR (Depois do Rio) 109 Epílogo – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... 197 Cronologia 199 Créditos das fotografias Domingos Foggiatto 44, 45 TV Globo/Jorge Baumann 149 João B. da Silva 152 TV Globo/Nelson Di Rago 198, 205, 209 TV Globo 201, 202, 203, 204, 205, 208, 210, 211 Demais fotografias – acervo Ary Fontoura Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Anselmo Duarte O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Braz Chediak Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis CabraCega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Carlos Coimbra Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Casa de Meninas Inácio Araújo Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero Críticas Edmar Pereira Razão e sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas Jairo Ferreira Críticas de invenção: os anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas L. G. Miranda Leão Org. Aurora Miranda Leão De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Djalma Limongi Batista Livre Pensador Marcel Nadale Dois Córregos Carlos Reichenbach Fernando Meirelles Biografia prematura Maria do Rosario Caetano Fome de Bola Cinema e futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado Um cineasta cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça Jeferson De Dogma feijoada o cinema negro brasileiro Jeferson De João Batista de Andrade Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky O homem com a câmera Carlos Alberto Mattos Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu O Caso dos Irmãos Naves Luis Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah e Newton Cannito Pedro Jorge de Castro O calor da tela Rogério Menezes Rodolfo Nanni Um Realizador Persistente Neusa Barbosa VivaVoz roteiro Márcio Alemão Ugo Giorgetti O Sonho Intacto Rosane Pavam Zuzu Angel roteiro Sergio Rezende e Marcos Bernstein Série Cinema Bastidores Um outro lado do cinema Elaine Guerini Série Teatro Brasil Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira ÓperaJoyce Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso - Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Samir Yazbek O teatro de Samir Yazbek Samir Yazbek Críticas Maria Lucia Candeias Duas tábuas e uma paixão Org. José Simoes de Almeida Júnior Críticas Clóvis Garcia A crítica como oficio Org. Carmelinda Guimarães Teatro de Revista em São Paulo Neyde Veneziano Série Perfil Alcides Nogueira Alma de Cetim Tuna Dwek Aracy Balabanian Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes O Cão e a Rosa Rogério Menezes Cleyde Yaconis Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Etty Fraser Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Ilka Soares A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache Caçadora de Emoções Tania Carvalho John Herbert Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont Do Cordel às Telas Klecius Henrique Luís Alberto de Abreu Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maria Adelaide Amaral A emoção libertária Tuna Dwek Miriam Mehler Sensibilidade e paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart Tudo Em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi Chorar de Rir Wagner de Assis Renata Palottini Cumprimenta e pede passagem Rita Ribeiro Guimarães Renato Consorte Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco A alegria de representar Alfredo Sternheim Walderez de Barros Voz e Silêncios Rogério Menezes Leonardo Villar Garra e paixão Nydia Licia Carla Camurati Luz Natural Carlos Alberto Mattos Zezé Motta Muito prazer Rodrigo Murat Tony Ramos No tempo da delicadeza Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel O samba e o fado Tania Carvalho Vera Holtz O gosto da Vera Analu Ribeiro Série Crônicas Autobiográficas Maria Lucia Dahl O quebracabeças Especial Cinema da Boca Alfredo Sternheim Dina Sfat Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Maria Della Costa Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso Imagens de Sua Arte Nydia Licia Gloria in Excelsior Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 240 Tiragem: 1.500 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2006 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Menezes, Rogério. Ary Fontoura : entre rios e janeiros / por Rogério Menezes. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. 240p. : il. – (Coleção aplauso. Série teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-448-3 (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes de teatro – Brasil 2. Atores e atrizes de teatro - Biografia 3. Atores e atrizes cinematográficos – Brasil I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.092 Índices para catálogo sistemático: 1. Atores brasileiros : Biografia : Representações públicas : Artes 791.092 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP T 00 55 11 6099 9800 F 00 55 11 6099 9674 www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 6099 9725 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual