Helvécio Ratton O Cinema além das Montanhas Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Cinema Brasil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistente Operacional Andressa Veronesi Revisão Ortográfica Heleusa Angélica Teixeira Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Helvécio Ratton O Cinema além das Montanhas por Pablo Villaça Cultura Fundação Padre Anchieta Imprensa Oficial São Paulo – 2005 © 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação elaborado pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Villaça, Pablo Helvécio Ratton : o cinema além das montanhas / Pablo Villaça. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005. 440p.: il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-370-3 (Imprensa Oficial) 1. Cinema – Produtores e diretores 2. Cineastas – Brasil 3. Cinema – Brasil – História 4. Ratton, Helvécio – Biografia I. Ewald Filho, Rubens II. Título. III. Série. CDD 791. 430 981 Índices para catálogo sistemático: 1. Cineastas brasileiros : Biografia 791.430 981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 6910/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõem seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries : Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Para Ioná e Luca, que me fazem acordar todos os dias com um sorriso. Para minha mãe e meus irmãos, exemplos de dignidade e companheirismo irrestritos. Pablo Villaça Introdução Meu primeiro encontro com Helvécio Ratton não foi dos melhores. Era uma manhã fria de setembro de 2002 e o cineasta estava realizando uma sessão fechada para a crítica de Belo Horizonte. No passado, eu havia conversado uma ou duas vezes por telefone com Helvécio, a fim de obter algumas informações sobre Uma Onda no Ar para uma matéria que estava preparando para o site do qual sou editor, Cinema em Cena, mas até então não nos conhecíamos pessoalmente. Cheguei ao Cinema Jardim pouco antes da sessão e percorri o saguão sem prestar muita atenção nas pessoas que ali se encontravam. Eu saíra de casa com pressa e precisava urgentemente comer algo antes do início do filme. Foi quando senti uma batida no ombro e, ao virar-me para ver do que se tratava, dei de cara com um sujeito enorme, de porte ameaçador. Era um cantor e compositor renomado em Minas Gerais, e que fizera uma pequena participação no longa: – Você é o crítico de cinema que apresenta aquele programa na televisão? – Sou – respondi, acreditando egocentricamente que um elogio viria a seguir. – Pois você passou do lado do Helvécio Ratton e nem se dignou a cumprimentá-lo? Você devia saber que sua profissão só existe em função de realizadores como ele. Onde está seu respeito? Você tem que aprender a ser mais humilde, rapaz, caso contrário não irá pra frente. Por que você o ignorou? Olhei confuso para a direção apontada e, de fato, lá estava Helvécio, conversando com algumas outras pessoas. Voltei a encarar meu interlocutor, sentindo o rosto queimar de vergonha e raiva. Por que ele estava agindo de forma tão bruta? Ah, se ele fosse uns 30 centímetros menor... Sem saber o que responder, gaguejei: – É... é que eu sou tímido. Hein? Que diabos de resposta era aquela? Eu sou tímido? Será que eu tinha voltado à adolescência? Por que simplesmente não respondi que não tinha visto Helvécio? Ou, ainda melhor, por que não mandei aquele sujeito catar coquinho? Afastei-me embaraçado – e reconheço que parte de mim culpou o próprio Helvécio Ratton pelo incidente. Corta para 18 meses depois. Estou conversando com Rubens Ewald Filho pelo telefone, ouvindo uma breve explicação sobre a Coleção Aplauso, um projeto que seria lançado pela Imprensa Oficial de São Paulo. Finalmente, quando Rubens perguntou se havia algum diretor em particular sobre o qual eu me interessaria em escrever, fui surpreendido por minha própria resposta: – Helvécio Ratton! Durante os dez minutos seguintes, expliquei por que considerava Helvécio o candidato ideal para uma biografia: sua militância política durante a Ditadura; sua postura ideológica admirável; e, é claro, sua carreira invejável, que incluía uma filmografia heterogênea, abarcando documentários, romances de época e comédias voltadas para o público infantil. Foi somente depois que desliguei o telefone, já com a aprovação de Rubens para procurar o cineasta, que me dei conta de que Helvécio provavelmente se recusaria a conversar comigo – afinal, além do confronto com o tal músico, eu escrevera uma crítica apenas moderadamente favorável a Uma Onda no Ar, recomendando o filme, mas citando alguns elementos que haviam me incomodado durante a projeção (uma opinião que não apenas publiquei no site, como também manifestei em meu programa). Aliás, agora que eu estava pensando calmamente sobre o assunto, eu tinha certeza de que ele riria ao ouvir minha proposta e desligaria o telefone na minha cara. É claro que eu estava enganado. Desde o primeiro momento, Helvécio foi extremamente simpático, concordando imediatamente em participar do projeto. Na realidade, como descobri depois, ele nem ficara sabendo sobre o incidente na sessão de seu último filme. Ainda assim, eu fazia questão de cumprimentá-lo efusivamente todas as vezes que nos encontrávamos. E se seu “guarda-costas” estivesse escondido em algum lugar por ali? A Quimera Filmes, produtora da qual Helvécio é sócio ao lado de sua esposa Simone, fica em uma aconchegante casa situada em uma rua tranqüila do Bairro Serra. Do bem cuidado jardim à cadeira de balanço presente na recepção da empresa, a Quimera é um agradável lugar de trabalho – e é fácil perceber que há um forte clima de camaradagem entre todos os integrantes da equipe. Ao longo dos meses seguintes, Helvécio e eu nos encontramos diversas vezes, o que se traduziu em horas e horas de entrevista. Falamos sobre os mais diversos assuntos. Como cada filme representa um aprendizado para o cineasta, concluí que o mesmo deveria se aplicar a este livro, que, como a própria filmografia de Ratton, procura despertar o interesse do espectador/leitor para temas tão distintos (e fascinantes) como o sistema manicomial brasileiro, a poesia maldita de Bernardo Guimarães, a arquitetura de Gaudí, a história política da América Latina durante os anos 1960 e 70 e, é claro, cinema. Aliás, através das experiências de Helvécio, o leitor conhecerá detalhes fascinantes sobre uma profissão que está sempre buscando um meio-termo entre as ambições artísticas e suas exigências financeiras. Afinal, como diz o próprio biografado, “orçamento é linguagem”. Reconheço que, a princípio, a idéia de escrever o texto na primeira pessoa (um padrão da Coleção) me desanimou: senti que, inevitavelmente, perderia a liberdade de enriquecer o livro com dados e reflexões adicionais que complementariam a história e as argumentações do diretor. Enganei-me novamente. Helvécio é um contador de histórias nato, e suas narrativas raramente precisam de complementos. Sua capacidade de comunicação é tamanha que, à medida que ia redigindo o texto, eu conseguia me colocar em seu lugar como se tivesse testemunhado todos aqueles acontecimentos. De certa forma, é como se Helvécio tivesse se convertido em um personagem para mim. Ou eu é que me tornara um mero personagem em sua narrativa? Em certo momento deste livro, Helvécio explica que, durante muito tempo, rejeitou sua “mineiridade”, lutando contra suas próprias raízes. Porém, basta dar uma rápida olhada em sua sala na Quimera Filmes para perceber que o tradicional conceito de “família”, algo peculiar entre os mineiros, manifesta-se em todos os detalhes do escritório, da janela voltada para o belo jardim (Você precisa ver quando a pitangueira fica carregada!) ao armário recheado de fotos antigas. E é impossível evitar um sorriso ao notar, pregado entre os cronogramas de produção de O Casamento da Iara, um desenho feito por Clara, a filha caçula do cineasta, no qual vemos um homem calvo identificado singelamente em uma escrita infantil: “Papai”. O fato é que até mesmo a equipe de Ratton se comporta como uma grande família. Não há como ele negar suas raízes: seus filmes podem ser universais, mas Helvécio é mineiro com “M” maiúsculo. Pablo Villaça Prólogo O exílio estava chegando ao fim. Depois de quase quatro anos longe do Brasil e de conhecer o terror patrocinado pelas ditaduras militares de dois países, eu estava retornando à minha pátria. Era noite de 27 de dezembro de 1973 e, quando o avião passou a sobrevoar o céu do Rio de Janeiro, a bela composição de Tom Jobim pôde ser ouvida através dos alto-falantes da cabine de passageiros: “Minha alma canta Vejo o Rio de Janeiro Estou morrendo de saudades Rio, seu mar Praia sem fim Rio, você foi feito pra mim...” Olhei pela janela e, emocionado, vi a Baía de Guanabara toda iluminada. Em pouco tempo pousaríamos e eu poderia abraçar meu pai, que me esperava no aeroporto com o documento que comprovava a prescrição de minha pena. Ainda assim, ao lado da emoção que eu sentia, havia uma tensão inequívoca, que nem mesmo o papel oficial conseguido por meu pai ou a inesperada carta que se encontrava em minha mala conseguia apaziguar. Eu procurava afastar o receio da mente, mas ele voltava ainda mais forte. Infelizmente, logo eu teria motivos reais para ficar preocupado. Segundos depois que o avião havia tocado a pista, percebi que havia algo errado: em vez de taxiar em direção ao portão de desembarque, o piloto levou o aparelho para um canto distante da pista, bem distante do prédio do (então) Galeão. Talvez pela tensão ou por estar desacostumado com o calor do Brasil depois de tanto tempo no Chile, comecei a suar profusamente. – Isso é comigo, Márcia – disse para minha esposa, que viajava ao meu lado. – Não, Helvécio, deve ser um problema com o avião – ela tentou me tranqüilizar. Porém, à medida que o tempo ia passando, os demais passageiros começaram a ficar inquietos e a questionar as aeromoças sobre o motivo da demora no desembarque. Mesmo assim, não houve qualquer tipo de explicação por parte do comandante. Finalmente, cerca de 30 minutos depois da aterrissagem, nos preparamos para descer e procurei ficar no meio do bolo de pessoas que saíam do avião, numa tentativa inútil de passar desapercebido de quem quer que fosse. Não adiantou. Eu mal havia caminhado cinco metros quando dois homens se aproximaram de mim rapidamente, sem um segundo qualquer de hesitação. Um deles abriu a capanga que carregava na cintura e, com expressão inconfundível de ameaça, exibiu seu revólver e disse simplesmente: – Não faça besteira nenhuma. Olhei para o grupo de passageiros e percebi que, apesar dos olhares intrigados, todos se afastavam rapidamente, temendo algum tipo de confusão. Imediatamente, percebi por que o avião parara tão longe do terminal: os dois agentes do DOI-CODI não queriam que ninguém percebesse que eu fora preso – principalmente meu pai, que certamente protestaria e criaria uma confusão indesejável. Enquanto íamos, Márcia e eu, sendo conduzidos pelos dois homens em direção a um Opala estacionado a algumas dezenas de metros, comecei a avaliar minhas opções. Senti que precisava, de alguma forma, alertar meu pai sobre minha chegada e, para isso, cheguei a considerar um plano arriscado: correr em direção ao portão de desembarque e saltar em seu imenso painel de vidro com os pés, o que certamente criaria uma bagunça grande o bastante para chamar a atenção da minha família. Comuniquei, aos sussurros, minhas intenções a Márcia, que imediatamente tratou de me dissuadir, dizendo que poderia ser pior, que eles poderiam atirar em mim. Assim que entramos no carro, minha cabeça foi coberta com um capuz negro e fui colocado no chão do veículo. No entanto, a presença de Márcia parecia confundir um pouco meus dois captores, que não haviam previsto que eu poderia estar acompanhado. Depois de uma breve discussão com a base através do rádio-comunicador, eles decidiram levá-la também e, como não tinham outro capuz, usaram minha jaqueta para cobrir sua cabeça. Os agentes deram a partida no carro e senti que nos movimentávamos. Minha mente começou a funcionar freneticamente, já tentando costurar o depoimento que daria durante o interrogatório que certamente viria a seguir. Enquanto eu ensaiava meus diálogos no chão do Opala, meu pai ainda me aguardava no saguão do aeroporto, confiante como sempre de que o instrumento legal que carregava em seu bolso garantiria a liberdade do filho. Parte I As Circunstâncias Capítulo I A Primeira Infância Meu pai sempre acreditou na lei. Não podia ser diferente: como juiz de direito, ele prezava a ordem acima de tudo e, em sua visão, até aquele momento a justiça não apenas jamais o havia desapontado, como ainda lhe dera meios de criar seus filhos em condições melhores do que aquelas nas quais ele próprio crescera ao lado de seus 16 irmãos e irmãs. Aos 16 anos, decidido a se tornar advogado, ele se mudou para Belo Horizonte, onde passou a morar sozinho, enquanto alguns de seus irmãos optaram pelo Rio de Janeiro. Acostumado a se virar da melhor maneira possível, meu pai abriu uma engraxataria, com a qual passou a bancar a faculdade. Foi em Belo Horizonte que ele conheceu minha mãe, que ainda morava com meu avô, um pernambucano que, depois de sofrer perseguições políticas em sua terra durante a década de 30, decidira se mudar para Minas Gerais – uma decisão curiosa, já que ele sempre dizia que quem nascia no mar não podia viver na montanha (o que o levava a fazer diversas viagens ao Rio, para matar as saudades do oceano). Figura fundamental na vida de minha mãe, ele a criara praticamente sozinho, já que muito cedo perdera a esposa. Quando mamãe tinha 12 anos de idade, seu irmão mais velho, na época com 17 anos, contraiu tuberculose. Incapacitado pela doença, ele freqüentemente pedia que o colocassem ao lado da janela, para que pudesse observar os colegas que voltavam da escola, até que finalmente sucumbiu depois de algum tempo. Arrasada pela morte precoce deste meu tio, minha avó morreu de desgosto pouco depois, e, a partir de então, minha mãe passou a se sentir responsável por seu pai e por seus dois irmãos, o que certamente a levou a amadurecer muito rapidamente. Mas jamais deixei de notar uma profunda melancolia que tomava conta de seus olhos quando ela cantava as músicas de sua juventude. Nasci em Divinópolis, em 14 de maio de 1949. A esta altura, meus pais já tinham quatro outros filhos – o mais velho deles com 12 anos de idade. Como meu pai já era juiz de direito, sendo constantemente transferido de um lugar para outro, saímos de Divinópolis quando eu tinha apenas 2 anos, e mais tarde descobri que a maior parte das lembranças que eu julgava ter da cidade eram, na verdade, memórias dos meus irmãos e dos meus pais que eu assimilara através de casos narrados ao longo do tempo. Mesmo assim, guardo duas lembranças que, creio eu, são de fato minhas: uma diz respeito a uma ocasião em que estava andando de velocípede na calçada e, de repente, me vi dentro de um buraco, numa imagem infantil meio louca. Aparentemente, havia caído em um bueiro aberto. (Será que isto é uma fantasia?, me pergunto agora). A outra é ainda mais assustadora: toda cidade do interior tem sua cota de “malucos”, de indivíduos que despertam um medo irracional na garotada. Certo dia, um desses tipos se aproximou de nossa casa e a Dinha, a cozinheira (que também era minha madrinha), brincou: – Ô fulano, leva esse menino aí! E ele imediatamente me agarrou e me colocou nas costas, o que me despertou um pavor imenso. É curioso que as duas principais recordações de minha infância em Divinópolis digam respeito a experiências assustadoras, mas é assim que a mente das crianças funciona. Obviamente, a coisa funcionou de forma diferente em Peçanha, para onde meu pai foi transferido em seguida e onde moramos durante os quatro anos seguintes. É desta época, por exemplo, que vem minha primeira lembrança relativa à Sétima Arte: os cartazes que ficavam expostos ao longo da semana em um cinema local, e que divulgavam o filme que seria exibido na sessão dominical que eu sempre freqüentava. Aliás, Peçanha foi uma cidade muito interessante para se viver a primeira infância, já que possuía vários lugares fascinantes e misteriosos que eram fartamente explorados pelas crianças: lugares como a Mãe D’Água, onde nadávamos e perto da qual residia uma índia com quem sempre mexíamos, Sá Tiburça (e que, ao responder, nos levava a sair em disparada dali). Mas é claro que ela não estava sozinha na reação que provocava na molecada; havia também a Maria Abana-Rabo, uma “doida mansa” que provocávamos apenas para vê-la nos ameaçando com pedras. Eventualmente, ela acabou realmente atirando uma pedra em alguém e foi detida pelo delegado da cidade, o que provocou grande comoção entre nós, garotos – e foi meu pai quem resolveu a situação. Depois de descobrir que ela possivelmente apanhara na cadeia, ele se irritou com o incidente e, alegando que ela não tinha condições de avaliar o que fazia, ordenou que a libertassem. Dessa forma, a prisão e libertação da Maria Abana-Rabo, que era parte do imaginário infantil, ficaram marcadas em minha memória. A participação de meu pai naquele caso não foi algo atípico. Numa cidade do interior, a figura do juiz é muito forte, a pura encarnação da autoridade, e não era raro que as pessoas levassem seus problemas até nossa casa, como se ele fosse uma espécie de Rei Salomão pronto para solucionar todos os conflitos com sua sabedoria milenar. No entanto, é claro que nem todos que buscavam seu auxílio traziam questões simples. Certa vez, um caminhão parou na nossa porta e seus ocupantes desceram desesperados a fim de procurar meu pai. Enquanto eles se encontravam dentro de casa, meus irmãos subiram na boléia e levantaram a lona que a cobria, sem imaginar a terrível surpresa que os esperava: um cadáver sem a cabeça. Ao mesmo tempo em que meus irmãos saíam correndo apavorados dali, meu pai era informado sobre o bizarro suicídio do rapaz que escolhera uma forma absurda de morrer, colocando a cabeça na linha do trem. Era este o cotidiano de papai: tratar de questões que iam do prosaico ao chocante. E ele desempenhava seu trabalho com prazer. Isso não quer dizer que ele não encontrasse tempo para os filhos. Sua relação comigo, em particular, era muito gostosa, considerando-se que ele já era um pouco mais velho quando nasci. Sempre presente em minha vida, ele me pegava no colo assim que chegava do fórum e conversávamos durante um bom tempo. E, apesar de sua postura severa de magistrado, só me bateu uma única vez, em uma ocasião em que saí pendurando nos varais do quintal. Eu pendurava em um, arrebentava; pendurava em outro, arrebentava. Aí ele, finalmente, perdeu a paciência e me deu uns tabefes. Minha mãe, por sua vez, era a típica mulher mineira da época (nascera em Ubá) – incrivelmente amorosa, ela se dedicava integralmente aos filhos e ao marido. Ao mesmo tempo, era uma mãe rígida, daquelas que, numa festa de aniversário, não permitia que os filhos fossem os primeiros a pegar os docinhos que eram servidos (e era terrível quando alguém insistia, já que uma eventual desobediência seria castigada com um rápido beliscão). Para uma criança, poucas coisas são piores do que ver um doce se afastar a salvo. Mas isso fazia parte de sua criação e o fato é que ela sempre foi uma mãe maravilhosa, preocupada com o português que falávamos e escrevíamos, tinha uma paciência imensa para nos ensinar e corrigir, além de incentivar ao máximo a leitura. Não foi à toa que aprendi a ler tão cedo, bem antes de entrar para a escola. Eu adorava conhecer novas histórias. Como tinha irmãos mais velhos, nossa biblioteca possuía uma grande quantidade de livros infantis: Cazuza, de Viriato Correia; Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur; várias edições diferentes dos trabalhos de Monteiro Lobato; e assim por diante. E essa bibliografia sempre esteve à minha disposição, o que me levava a perseguir minha mãe para que ela lesse as histórias para mim. E foi justamente o hábito de ouvir muitas histórias que começou a me preparar para uma leitura rápida e precoce. Durante um tempo, cheguei mesmo a transformar a biblioteca em meu quarto, já que esta era a única opção de dormir sozinho, posto que, em uma casa cheia como a nossa, os irmãos não tinham alternativa a não ser dividir os quartos uns com os outros. Mas é claro que eu não deixava de brincar. Como só comecei a freqüentar a escola aos 7 anos, quando já morávamos em Belo Horizonte, eu não tinha responsabilidade alguma durante meus primeiros anos de vida, e passava o dia fazendo molecagem na rua ou no quintal de casa, que era imenso e estava sempre cheio de crianças. Tudo era muito diferente do que ocorre hoje, quando crianças de dois anos de idade já estudam e têm horários, obrigações. Em contrapartida, éramos bem mais ingênuos. Lembro-me, por exemplo, que só descobri a existência do sexo feminino aos 4 anos, quando minha irmã nasceu. Ao vê-la pelada enquanto minha mãe a banhava, notei que ela não tinha pinto. Que ser era aquele? Acabei concluindo que o pinto nasceria mais tarde. Porém, algum tempo depois acompanhei minha mãe em um batizado e observei que o bebê, muito mais novo que minha irmã, já tinha algo entre as pernas – e só então percebi que definitivamente havia algo de diferente com ela. Em 1956, meu pai finalmente recebeu sua última transferência – Belo Horizonte. Como tínhamos muitos parentes na capital (especialmente de minha mãe), já estávamos acostumados a visitá-la na época do Natal – e eu sempre ficava fascinado com as dimensões de tudo que via, desde a enorme quantidade de brinquedos nas Lojas Americanas até os luminosos espalhados por todos os lados durante o mês de dezembro. Em Peçanha, as crianças namoravam a vitrine da única loja de brinquedos da cidade, e a luzinha vermelha que piscava na porta do estabelecimento era sua grande atração. Assim, toda vez que retornávamos das férias, eu encantava meus amigos com as histórias das maravilhas que vira na capital e, de certa forma, percebia que meus horizontes haviam se expandido com relação aos deles. Além disso, perto da casa na qual costumávamos nos hospedar quando íamos a Belo Horizonte, que ficava na descida da Av. Álvares Cabral, ocorriam sessões do Cine Grátis, o que me encantava imensamente. A mudança não representou, portanto, trauma algum. Embora lamentasse a perda dos amigos que ficavam para trás, eu não podia ignorar um elemento importantíssimo que aumentava minha vontade de morar em BH: eu sabia que nas Lojas Americanas havia milhares de soldadinhos de chumbo. Crescer em Belo Horizonte no final da década de 50 e início da de 60 era algo que ainda permitia grande liberdade. É claro que não tínhamos a mesma tranqüilidade de Peçanha, pois mamãe se preocupava com nossa segurança. Já havia algum grau de violência na capital e, além disso, os carros e ônibus sempre foram um pesadelo para qualquer pai cujos filhos curtiam brincadeiras de rua, como andar de carrinhos-de-rolimã e jogar bente-altas (diversões que, quatro décadas depois, eu retrataria em O Menino Maluquinho). Até mesmo andar de bicicleta era diferente; quando caíamos, em Peçanha, a queda era amenizada pelo chão de terra ou pela grama, enquanto, em BH, éramos recebidos pela aspereza do asfalto e dos paralelepípedos ou pelas perigosas quinas dos passeios. E obviamente havia muito mais gente pelas ruas; no interior, “multidão” é uma referência muito diferente. De modo geral, contudo, não tive problemas de adaptação. Afinal, éramos uma família grande e isto gera a sensação de que todo seu universo foi transportado junto com você, o que representa uma situação aconchegante. Além disso, em Peçanha éramos “de fora”, “a família do juiz” que fora transplantada para lá. E não se pode esquecer que minha mãe passara toda sua infância em Belo Horizonte, e seus dois irmãos, que ainda moravam ali, sempre tiveram um carinho muito grande com ela e conosco. Mas a transferência de meu pai para a capital não representou uma simples mudança nos cenários das brincadeiras. Eu agora teria que entrar para a escola e enfrentar o choque da disciplina acadêmica. Comecei a estudar no Colégio Barão do Rio Branco. Minha mãe sempre contava, orgulhosa, que eu inicialmente tivera minha matrícula rejeitada por não ter 7 anos completos (que eu só faria em maio) e que, por esta razão, seria transferido para o ano seguinte, o que atrasaria minha formação. Determinada a evitar que isto acontecesse, ela procurou a diretora do colégio e a convenceu a permitir que eu fizesse um exame. Apesar de concordar, a diretora preparou minha mãe para a decepção que esta certamente teria, já que eu não tinha preparação alguma, nunca freqüentara a escola, estava vindo do interior, e assim por diante. Passei no exame e, assim, pude entrar no meio daquela meninada danada, com seus horários, uniformes e tudo o mais que representa a escolarização. Capítulo II Mergulhando na Política Em 1961, decidi me matricular no Colégio Militar. Admirador de meu tio (irmão de papai), que era general, eu sentia atração pela farda e, aos 12 anos de idade, decidi que seria um bom momento para começar a vesti-la. O colégio tinha ótimos professores e eu já sabia que a disciplina seria rígida, mas não imaginava que fosse tanto: fui surpreendido pela realidade que encontrei, a mentalidade absurdamente conservadora daqueles militares e a chatice de ser obrigado a raspar a cabeça toda semana. O que já era ruim tornou-se insuportável depois do Golpe de 64. Enquanto o mundo vivia um período fértil de riqueza e liberdade culturais, eu me encontrava encarcerado em uma instituição que procurava controlar nossas idéias e ideais, chegando mesmo a censurar vários artigos que seriam publicados no jornalzinho editado pelos alunos. Nas ruas, os jovens exibiam um comportamento cada vez mais ousado e diferente, cantando músicas dos Beatles e dos Rolling Stones, ao passo que eu e meus colegas nos colocávamos de pé todas as manhãs para ouvir o toque de cornetas, seguido por um sermão que dizia respeito a alguma “questão nacional”. Com o passar do tempo, aconteceu o inevitável – comecei a me sentir sufocado e disse para meu pai que queria sair do colégio. Isto deu origem à nossa primeira briga, que ele venceu ao argumentar que, se eu estudasse ali por mais dois anos, estaria livre do serviço militar. De qualquer maneira, o colégio é ótimo, finalizou com segurança. Havia todo um clima de segredo na escola, com boatos correndo de um lado para o outro – algo que sempre ocorrera, como na ocasião em que se disse que, durante a parada de 7 de Setembro, na qual éramos obrigados a desfilar, levaríamos fuzis carregados com balas de verdade (o que gerou grande empolgação entre os mais jovens). Por outro lado, coisas estranhas certamente ocorriam: generais importantes passavam por lá e vários professores (militares e civis) sumiam de repente, sendo demitidos sem qualquer aviso prévio. Lembro-me particularmente de um professor de Geografia, um major, que sempre colocava questões políticas em suas aulas e que acabou sendo expulso do exército em função de suas “idéias progressistas”. Assim que os dois anos que eu combinara com meu pai ficaram para trás, larguei com alegria meu uniforme e fiz o vestibular para o Colégio Universitário, uma experiência belíssima da UFMG que fora organizada pelo professor Aluísio Pimenta. Ali, os alunos cursavam o último ano do colegial praticamente dentro da universidade (literalmente, já que ficava situado no câmpus) e aquele foi o melhor período acadêmico de minha vida. Tínhamos extrema liberdade; era uma escola muito criativa que nos estimulava constantemente e onde passávamos o dia inteiro. O entrecruzamento das disciplinas era fantástico. De manhã, por exemplo, estudávamos o Romantismo na classe de Português e, à tarde, íamos para um estúdio ouvir o Romantismo na música, conhecê-lo na pintura, e assim por diante. Era um sistema avançadíssimo para a época e que formou uma geração muito inquieta; dali saíram vários artistas. E foi, como não poderia deixar de ser, um núcleo de agitação política entre os estudantes. Tive um amadurecimento político muito precoce, justamente por ser tão mais jovem que meus irmãos, que traziam para casa as experiências que viviam na universidade. E, talvez como um gesto inconsciente de desafio a papai (um juiz) e ao nosso tio (um general), logo passamos a evidenciar uma clara tendência à esquerda – o que dava origem a brigas horrorosas na hora do almoço. Meu pai, sempre um legalista, dizia que devíamos respeitar a “ordem estabelecida”, o presidente em exercício, e não aceitava nossas argumentações de que aquela “ordem” era ilegítima, fruto de um golpe que feria nossos direitos e a Constituição. Estas discussões constantes sempre acabavam com um sinal inconfundível de minha mãe para que calássemos a boca. E, como em nossa casa ela era a “ordem estabelecida”, nos calávamos imediatamente. Ali não havia espaço para golpes. Com o tempo, meu pai ficou politicamente isolado em seu próprio lar, e, para seu desespero, eu e meus irmãos estávamos sempre estudando teorias socialistas. Pouco depois, tornei-me militante de uma organização de esquerda, uma dissidência da POLOP (Política Operária), que era forte em Belo Horizonte. Na época, estas organizações ofereciam formação teórica aos militantes, e estudávamos e discutíamos uma bibliografia marxista clássica, que ia desde O Capital a outros importantes títulos do marxismo-leninismo. Eu lia sistematicamente, buscando dominar a filosofia e a dialética por trás de tudo aquilo. Entrei naquela dissidência não porque apoiava seu afastamento da POLOP (àquela altura, eu sequer tinha condições de julgar o mérito da questão), mas porque pessoas próximas a mim a apoiavam. Logo fiz amizade com um companheiro de célula, Fernando Pimentel, sem sequer imaginar que, mais de 30 anos depois, ele viria a se tornar prefeito de Belo Horizonte pelo Partido dos Trabalhadores. Tínhamos, então, 17 anos e atuávamos todos no movimento estudantil. Pouco depois, passei no vestibular e tornei-me um dos militantes responsáveis pela Organização dentro da Faculdade de Economia da UFMG. À medida que a Ditadura ia se tornando mais violenta em seus métodos de repressão, fomos chegando à conclusão de que a luta armada era a única via para combatê-la e, no processo, nossa organização mudou de nome e passou a ser conhecida como COLINA (Comando de Libertação Nacional), tornando-se bastante presente entre os estudantes, que basicamente se viam divididos entre vários grupos de esquerda. Havia uma divisão entre os grupos católicos (cujo maior representante era a AP, Ação Popular) e os marxistas. Estes últimos incluíam inúmeros subgrupos, que iam desde o Partidão até suas dissidências. Em Belo Horizonte, a maior dessas dissidências era a Corrente Revolucionária de Minas Gerais (ou, simplesmente, Corrente), que também caminhou para a luta armada e posteriormente se ligou aos guerrilheiros da ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos Marighella. Enquanto isso, a COLINA juntou-se a outras facções, formando, mais tarde, a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares), que, por sua vez, se tornaria a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que chegou a ser dirigida por Carlos Lamarca. Todas estas siglas significavam, entre outras coisas, que o movimento estava fragmentado em várias correntes ideológicas, o que, ao mesmo tempo em que nos enfraquecia, dificultava o trabalho de repressão para os militares. No final de 68, início de 69, uma destas organizações realizou uma série de ações armadas em Belo Horizonte e Sabará, chegando a executar um assalto conjunto, simultâneo, em dois bancos, numa ação audaciosa e brilhantemente planejada. Esta organização era a COLINA, o grupo do qual eu fazia parte. Meu setor era o Movimento Estudantil. A organização se dividia claramente entre o componente político, que militava entre os estudantes e operários, e o componente militar, formado pelos companheiros ligados às ações armadas. Estes últimos tinham outros tipos de células, formação e contatos – algo necessário para aumentar sua segurança. No final da década de 60, a COLINA colocou em prática uma série de manobras que atraíram a repressão. Em pouco tempo, os militares chegaram a um aparelho que funcionava no bairro São Geraldo, invadindo-o durante a noite. Encurralados, nossos companheiros reagiram à bala e acabaram matando um policial, sendo presos em seguida. Nos meses seguintes, passariam por um verdadeiro martírio, chegando a serem levados para o Rio e usados em aulas de tortura – algo que Elio Gaspari relata em sua coleção de livros sobre o período da Ditadura. Com a queda deste aparelho, alguns militantes acabaram falando sob tortura e, com isso, meu nome e codinome (Clemente) caíram nas mãos dos militares. À medida que novas prisões iam sendo efetuadas e que pessoas mais próximas a mim começaram a cair, percebi que algo estava sendo revelado e o cerco estava se fechando. Por precaução, saí de casa e passei a morar em um de nossos aparelhos. Naquela época, ainda conseguíamos filtrar muitas informações das prisões – e foi desta maneira que um companheiro pôde me avisar para fugir, pois eu estava prestes a ser capturado. Larguei a faculdade e fugi para o Rio de Janeiro, já na clandestinidade. Sem querer expor meus pais ou aumentar a preocupação que já sentiam, procurei revelar o mínimo possível. Por meio de carta, menti para mamãe, dizendo que estava saindo do Brasil e indo para um lugar seguro, e que manteria contato de tempos em tempos. Por mais que desejasse conversar com minha família, eu não podia me arriscar, pois a repressão estava avançando rapidamente em seus métodos de controle e busca de informações. Um ano e meio se passaria até que eu pudesse finalmente contatar meus pais, ainda em circunstâncias desesperadoras. Capítulo III Clandestino À medida que companheiros espalhados por todo o Brasil eram obrigados a mergulhar na clandestinidade, suas organizações de origem passaram a se preocupar com uma questão logística: o que fazer com tantos militantes perseguidos pela ditadura, e que, em sua maioria, iam se esconder no Rio de Janeiro? Os famosos “deslocados” do Rio formavam um grupo numeroso cuja atividade principal era, acreditem ou não, ir ao cinema ou visitar as bibliotecas. Vivendo em quartos alugados em pensões, éramos forçados a passar todo o dia fora de casa, para evitar desconfianças que poderiam facilmente levar-nos à prisão. Assim, antes que alguém pudesse perguntar: “O que um cara dessa idade fica fazendo o dia inteiro no quarto?”, mentíamos descaradamente, alegando que trabalhávamos ou estudávamos – e, como parte da farsa, saíamos logo pela manhã e retornávamos somente à noite. Ora, o que fazer durante todas aquelas horas? Na maioria das vezes, eu ia ao cinema, algo que adorava. Durante o período em que estudei no Colégio Universitário, ajudei a organizar e a criar as programações de um cineclube, e freqüentemente participava de sessões no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC). Assim, como militante clandestino, simplesmente retomei o hábito e chegava a entrar no cinema ao meio-dia e sair apenas às 8 horas da noite. Desenvolvi uma relação de absoluta paixão com o cinema e assistia a todos os filmes que estavam em cartaz, muitos deles três vezes seguidas. Eu chegava a sair tonto da sala de exibição. Logo fiquei fascinado com as produções do Cinema Novo que, de certa forma, pareciam uma espécie de rascunho dos filmes americanos em função de sua precariedade técnica e suas diferenças narrativas e temáticas, bem mais próximas de mim. Os longas de Hollywood eram perfeitinhos, bem-acabados, e isto me distanciava, eu não percebia a possibilidade de fazer algo como aquilo. Ainda assim, eu sequer tinha como pensar na possibilidade de algum dia vir a me dedicar ao cinema, já que minhas preocupações eram mais imediatas e graves. De todo modo, já sonhava muito com aqueles filmes brasileiros que me impressionavam enquanto linguagem e forma de expressão. Além do tempo gasto em frente à tela grande, eu também realizava uma série de tarefas pela cidade e, em determinado instante, fui enviado para Magé, no interior do Estado, onde funcionava uma base de pescadores ligados à organização. Aquelas semanas foram um verdadeiro suplício para mim, mas não por motivos políticos. O problema é que eles comiam abóbora praticamente o dia inteiro, e eu sempre detestei abóbora. Esta foi, aliás, uma das grandes provas de minha dedicação à causa: comer peixe com abóbora. Minha estada em Magé chegou ao fim quando alguns companheiros foram presos em um local próximo dali e recebi ordens de voltar à capital. Nós vivíamos de altos e baixos, e tínhamos, em nossas mentes, um certo modelo de como as coisas deveriam funcionar. Era fundamental que montássemos um foco guerrilheiro no campo a fim de realizar ações estratégicas nas cidades, como a expropriação de bancos com o objetivo de financiar a organização e preparar novos quadros. Ao contrário do que o Partidão advogava, nós acreditávamos que os combates poderiam levar à conscientização da população, que perceberia a importância da causa revolucionária. E, quando encaixávamos a realidade neste nosso esquema teórico, acabávamos achando que a coisa toda estava avançando, num processo contínuo de auto-ilusão. Creio que sempre tivemos um certo sentimento de onipotência, acreditando que um grupo pequeno, mas formado por pessoas inteligentes, bem preparadas e extremamente corajosas, poderia vencer um exército. Não é à toa que o lema da organização era “Ousar Lutar, Ousar Vencer”. E é claro que realizamos várias ações bem-sucedidas que acabavam por humilhar os militares – que voltavam com força redobrada para nos liquidar. Uma dessas ações foi realmente fantástica. Em 18 de julho de 1969, a VAR-Palmares conseguiu executar um roubo que se tornou famoso ao invadir a residência de uma amante de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo, e levar 2,8 milhões de dólares que se encontravam em um cofre. Dias depois, recebi a incumbência de transportar parte deste dinheiro para Brasília, a fim de distribuí-lo entre aparelhos ligados ao grupo. Como o controle era enorme nas estradas, optei por viajar sempre de ônibus. Ainda assim, volta e meia a polícia nos parava e entrava pedindo os documentos de todos os passageiros, chegando a prender aqueles que considerava suspeitos. Portando documentos falsos, eu levava uma malinha pequena, entupida de dólares, e a colocava no porta-volumes situado sobre um dos bancos na parte dianteira do veículo, bem distante do meu próprio assento. Dessa forma, eu poderia vigiá-la, mas, caso a polícia a localizasse (o que nunca aconteceu), não iria poder associá-la a mim. Depois de algum tempo, a organização me mandou para Goiás, uma região estratégica para nossos propósitos. Sempre acreditamos que qualquer foco guerrilheiro no Brasil, para ser bem-sucedido, deveria ser situado por aquelas bandas, caminhando em direção ao sul do Pará, onde mais tarde houve a guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB. Aquela era uma região perigosa, de conflitos sociais violentos pela posse da terra. Eu deveria montar uma base de apoio em Goiânia e, conseqüentemente, fui obrigado a circular muito por Brasília a fim de estabelecer contatos com os companheiros que lá operavam. Ser militante clandestino em Brasília é uma coisa pavorosa. Numa cidade normal, com esquinas, lojas, bancas de revistas, é fácil circular a pé – o que não ocorre ali. Com isso, à solidão natural do militante somava-se a solidão que a capital do país provocava, o que era terrível. Em Brasília, vivi uma história de amor que me marcou muito: apaixonei-me por uma companheira de organização, que havia se separado há pouco tempo de outro militante. Tentar manter um relacionamento em um contexto maluco como o daquele período era algo difícil e eu me sentia terrivelmente só. Os poucos casos que tinha eram marcados por mentiras, já que eu não podia revelar nem mesmo meu nome para minhas companheiras. Já aquele novo romance era diferente, pois ela sabia um pouco mais sobre mim, sobre minhas ideologias. Logo decidimos viver juntos em um dos aparelhos que a VAR-Palmares mantinha em Brasília – algo que desagradou ao seu ex-marido, que não escondia o desejo de reatar o casamento. E foi então que ele foi preso pelos militares e, sob tortura, acabou entregando o nome de sua ex-mulher. Na ocasião, eu tinha viajado para o Rio por alguns dias e, na volta, deveria me reunir com ele, a fim de lhe entregar uma quantia em dinheiro enviada pela organização. O encontro seria num domingo de manhã, às 11 horas, perto do Hotel Nacional. Como cheguei no sábado à noite, decidi ligar para um padre holandês, um de nossos contatos com a Igreja Católica (e que acabou sendo expulso do Brasil tempos depois). Assim que ouviu minha voz, ele disse, com seu sotaque carregado: – Graças a Deus que você ligou! E me colocou a par da queda do sujeito, acrescentando que ele estava entregando várias pessoas. Apesar do incrível golpe de sorte (um de vários) que evitou minha prisão, minha relação com a ex-esposa deste companheiro se tornou complicada. Sabendo que ele estava sendo torturado, ela passou a se sentir culpada por viver comigo. E o que é pior: a repressão sabia do nosso envolvimento e usava isto para atormentar o prisioneiro: “Sua mulher está com o Clemente!”, diziam, entre risos. Decidimos nos separar, mas aquela perda adicional consumiu o resto das forças que eu tinha para continuar lutando. Depois de ter escapado por pouco em duas ou três ocasiões, eu sabia que, caso fosse capturado, seria terrivelmente torturado e provavelmente morto. Eu a vi pela última vez em um bar, onde nos despedimos. Eu sofria profundamente por causa da separação, mas, racionalmente, sabia que, se continuássemos a nos ver, os riscos seriam imensos. Jamais voltei a encontrá-la e, segundo soube tempos depois, ela acabou reatando com o ex-marido quando este saiu da prisão. Em 1970, resolvi que era hora de deixar a organização e sair do país. Não era uma decisão fácil. Mesmo que as coisas estivessem afundando e as perspectivas se tornando cada vez mais sombrias, era impossível deixar de se sentir como um traidor, como se estivesse abandonando os companheiros que estavam presos e sofrendo nos porões da ditadura. Havia enorme peso moral em largar tudo. Além disso, eu seria obrigado a me virar sozinho, já que a organização não possuía um esquema montado para retirar os militantes perseguidos do país. Tirar as pessoas da luta não era uma prioridade – e eu não sabia por quanto tempo teria que ficar escondido e nem mesmo se conseguiria sair do Brasil. Finalmente, manifestei minhas intenções para o meu contato na VAR-Palmares, o dirigente Carlos Alberto Soares de Freitas. Cerca de dez anos mais velho do que eu, Beto, um sujeito afável e interessante, era muito conhecido em Belo Horizonte, onde era dono de um bar famoso na Av. Getúlio Vargas, quase com a Av. Afonso Pena. Eu e Beto tínhamos uma relação muito afetuosa; eu gostava imensamente dele e admirava a sua inteligência. A essa altura, ele já era um dos caras mais procurados do Brasil. Quando expliquei que pretendia deixar o país, ele aceitou minhas ponderações de forma tranqüila, embora deixasse claro que discordava de minha decisão. Muito correto, me entregou algum dinheiro para que eu pudesse sobreviver por algum tempo e, assim, nos despedimos. Ele foi uma das últimas pessoas da organização com quem estive antes de sair. Menos de um ano depois, em 15 de fevereiro de 71, Beto foi preso ao lado de dois companheiros na pensão em que residia, em Ipanema. Levado para o DOI-CODI, foi torturado durante os 100 dias seguintes, sendo finalmente assassinado com vários tiros à queima-roupa. Seu corpo nunca foi encontrado. Em homenagem à mãe deste companheiro, que passou a manter o quarto do filho exatamente como ele deixara, Chico Buarque compôs Pedaço de Mim, na qual canta: “Ó pedaço de mim Ó metade arrancada de mim Leva o vulto teu, Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu...” Comecei a me preparar para cruzar a fronteira ao lado de outro companheiro, que também iria deixar o país. Certo dia, durante os longos preparativos para a fuga, li uma reportagem na revista Manchete sobre a Universidade do Pará e, para minha surpresa, vi o nome de uma tia (na verdade, uma prima de minha mãe) que era diretora da Faculdade de Educação. Como ainda teríamos que esperar algum tempo até que surgisse o momento mais adequado para a viagem, eu e o outro militante decidimos nos separar temporariamente – enquanto ele iria para Goiás, sua terra natal, decidi estabelecer contato com tia Anunciada, em Belém. Combinamos de nos encontrar no Rio, dentro de poucas semanas, e fomos cada um para um lado. Minha intenção era utilizar estas parentas para avisar minha família sobre o que iria fazer em seguida e, talvez, conseguir algum tipo de apoio logístico ou financeiro. Certo de que os militares jamais poderiam imaginar que eu fosse procurar uma senhora, prima de minha mãe, no Pará, peguei o ônibus e encarei uma viagem que durava dois dias e duas noites. Era uma estrada perigosíssima, repleta de bandidos, e carreguei meu .38 na cintura todo o tempo. Lá chegando, procurei imediatamente minha tia que, como já estava a par da minha situação, quase morreu de susto ao me ver. Ainda assim, me acolheu generosamente e se mostrou mais do que disposta a me ajudar a entrar em contato com meus pais. Mas antes disso acontecer, eu levaria outro grande susto. Naquela época, a repressão costumava fazer um jogo psicológico baixíssimo para: a) convencer a população de que os “terroristas” estavam cada vez mais fragilizados; e, b) abalar a confiança dos militantes clandestinos. A estratégia era simples: levar prisioneiros políticos à televisão para que estes “manifestassem seu arrependimento” publicamente. Era um espetáculo triste e patético, digno de dó. Mas que cumpriu seu objetivo de assustar ao menos um clandestino – eu. Certa noite, assistindo aborrecido a um destes “atos de contrição”, senti o coração disparar ao reconhecer o rosto de ninguém menos do que o companheiro que deveria estar em Goiás e com quem, supostamente, eu me encontraria no Rio, em poucos dias. Foi uma sensação pavorosa, como se o cerco estivesse fechando ainda mais (outro que se prestou a este triste papel foi o ex-marido de minha antiga companheira de Brasília, que foi à televisão poucos dias antes do último encontro que eu e ela tivemos no bar). Como se não bastasse, esta prima descobre, entre meus pertences, o revólver que eu trouxera e ficou petrificada, já que não esperava que eu estivesse armado em sua casa. Assim, tive que acelerar minha saída de Belém, onde me julgava relativamente seguro. Felizmente, neste meio tempo minha família já havia recebido a carta que eu enviara (estrategicamente escondida na correspondência destinada a outra tia) e, dessa forma, marquei um encontro com um de meus irmãos no Rio de Janeiro. Era junho de 1970, época de Copa do Mundo. Hospedei-me, apresentando documentos falsos, em uma pensão no Bairro Peixoto. Eu estava emocionado e ansioso para encontrar meu irmão, já que há 18 meses não via ninguém de minha família. Foi um momento inesquecível, aquele... Depois de nos abraçarmos demoradamente, saímos para conversar nas areias de Copacabana. Era uma tarde de jogo do Brasil, e o Rio estava completamente vazio, não se via ninguém nas ruas. Sentamos em um banco do calçadão, momentaneamente felizes e relaxados, esquecendo, por alguns minutos, que havia uma ditadura assassinando jovens por todo o país, e que, se não fugisse logo, eu poderia me tornar um deles. Conversamos sobre meus pais e nossos irmãos, e contei a ele parte do que vivera nos últimos meses. Ficamos em silêncio por alguns instantes, apenas curtindo a presença um do outro. Subitamente, toda a cidade explodiu em uma cacofonia de gritos e foguetes. Era gol do Brasil. Capítulo IV Fuga para o Chile Sem poder contar com apoio logístico por parte da organização, passei a depender do auxílio de minha família para sair do país e, assim, fui para Belo Horizonte em uma tensa viagem de carro com Arildo de Barros, do Grupo Galpão. Ironicamente, acabei me hospedando na casa de meu irmão, que ficava a apenas dois quarteirões do DOPS. Preso em casa, passava o tempo lendo, vendo os jogos do Brasil e, é claro, matando as saudades de minha mãe, que, sempre tomando todo o cuidado possível para não ser seguida, ia me visitar freqüentemente. Finalmente, meu pai, por intermédio de seus inúmeros contatos, localizou alguém que poderia me ajudar, um contrabandista que era dono de um pequeno avião. Especializado no transporte de cigarros americanos, calças jeans, uísque e perfumes, o sujeito costumava sair de Belo Horizonte e ir até a fronteira do Mato Grosso com o Paraguai, onde ficavam seus fornecedores. Inicialmente hesitante em me levar, ele acabou sendo convencido pelo argumento que compreendia melhor: dinheiro. Não sei exatamente quanto papai ofereceu a ele, mas foi o bastante. De clandestino, passei a contrabando. Ainda assim, havia uma condição. Não poderíamos dizer para o co-piloto quem eu era, por dois motivos: muitos daqueles contrabandistas tinham ligações com a Polícia Federal, e eu poderia acabar sendo denunciado. E, além disso, dividir o avião com um perseguido político, um “terrorista”, era algo temeroso para aquela linha de trabalho, pois poderia atrair a atenção indesejada da repressão. Dessa forma, fui apresentado ao co-piloto como sendo o filho de um contrabandista de maconha que estava viajando para estabelecer novos “contatos comerciais”. Naquela época, era preferível ser traficante do que militante político. Partimos do aeroporto da Pampulha na madrugada fria de 22 de junho de 1970 e fomos direto para o Mato Grosso, onde pousamos num trecho de estrada abandonado. Os motores mal haviam parado quando alguns homens correram em direção ao avião, cobrindo-o com uma lona imensa. Eles não deixavam nada ao acaso. Os depósitos dos contrabandistas ficavam nas proximidades – galpões imensos, repletos de roupas, bebidas e inúmeros outros itens que viriam a ser comercializados em vários pontos do Brasil. Fui apresentado a várias outras pessoas e um sujeito de aparência simpática e alegre, apontando para uma verdadeira montanha de roupas, disse: – Pega uma calça pra você! Aceitei o presente. Cruzamos a divisa de Ponta Porã com Pedro Juan Caballero e, como num passe de mágica, eu estava em outro país. Isso não significa que eu estivesse a salvo: Pedro Juan Caballero era (e continua a ser) um verdadeiro lugar de faroeste, uma cidade barra-pesada na qual circulava de tudo, principalmente uma grande quantidade de drogas. À noite, o piloto me levou a um bar que tinha um ambiente fantástico, quase surreal. Em um pequeno palco improvisado, uma orquestra paraguaia tocava, com harpas, uma música popular no país, Caballo Blanco. Enquanto isso, várias putas circulavam pelas mesas, oferecendo seus corpos e drogas para os fregueses. Para evitar que minha presença gerasse qualquer tipo de desconfiança, meu companheiro resolveu esclarecer que eu era um rapaz acima de qualquer suspeita. Em outras palavras, um traficante. Assim, pediram que o dono do bar fosse chamado para me conhecer. Eu não sei exatamente o que eu esperava ver. Talvez um sujeito grandalhão e ameaçador, cercado por capangas e armado até os dentes (ou qualquer outro clichê do gênero). O que eu certamente não esperava era um cearense baixinho, com sotaque nordestino carregadíssimo. Quando explicaram para ele que eu ia ao Peru para comprar um carregamento, ele ficou indignado: – Porra, tá indo ao Peru pra comprar maconha? E foi rapidamente ao seu “escritório”, de onde voltou carregando um tijolo de maconha, colocando-o em minhas mãos sem a menor cerimônia, no meio de todas aquelas pessoas, como se fosse uma garrafa de cerveja ou um sanduíche de presunto. – Experimenta essa aí e, se aprovar, tenho muito mais. Temos uma tonelada plantada na região. Pra que ir ao Peru, se pode comprar no Paraguai? Como se eu já não tivesse o bastante com que me preocupar, agora eu tinha que arranjar um jeito de esconder maconha no meu quarto de hotel. Como o piloto que me trouxera ao Paraguai ia retornar ao Brasil – e eu tinha que sair urgentemente de Pedro Juan Caballero, que ainda estava muito perto dos militares – preparei-me para viajar para a capital, Assunção. O único avião que fazia aquela rota pertencia, ironicamente, ao transporte aéreo militar do Paraguai. Isso não importava; dei um jeito de comprar a passagem. Até então, ninguém havia pedido para ver minha carteira de identidade, que era falsa e trazia o nome de Marcos dos Santos. Era uma falsificação de boa qualidade, assim como o título de eleitor que a acompanhava. Porém, eu precisava de um passaporte. Em um acordo entre o Brasil e outros países do Cone Sul, era possível viajar apenas com a carteira de identidade para o Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina. No entanto, eu pretendia ir para o Peru – não para comprar maconha, mas porque o país tinha um governo nacionalista, que provavelmente ofereceria melhores condições para exilados políticos como eu. Felizmente, eu estava acompanhado pelas pessoas certas. Quem melhor para conhecer falsificadores de passaportes do que contrabandistas? De posse de um contato em Assunção, embarquei no avião do exército paraguaio. Para variar um pouco, desta vez os militares estavam me ajudando. Assim que cheguei à capital, fui em busca do tal sujeito que poderia me fornecer um passaporte. Ele morava em uma mansão enorme, guardada por vários sujeitos armados, e era claramente algum tipo de gângster local. E, aparentemente, era também um homem ocupado, pois estava viajando e não tinha previsão de retorno. Minhas opções agora tinham se restringido drasticamente. A única possibilidade que me restava era viajar para um dos países que permitiam a entrada de brasileiros portando apenas a carteira de identidade. Fiquei dividido entre a Argentina e o Chile, mas um elemento político pesou em favor deste último: o presidente chileno era Eduardo Frei, da democracia cristã, e parecia bem mais receptivo. Além disso, vários brasileiros já se encontravam lá, incluindo a geração mais velha, que fugira assim que o Golpe acontecera, em 64. Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por exemplo, já eram inclusive professores em universidades do país. Cheguei em Santiago no dia 25 de junho de 1970, três dias depois de deixar o Brasil. Imediatamente, decidi procurar um amigo de Belo Horizonte, João Batista Mares Guia, irmão de Walfrido (que se tornaria Ministro do Turismo no governo Lula, anos depois). João me recebeu com alegria e me convidou para ficar na pensão na qual residia. Mais tarde, alugaríamos juntos um apartamento. Decidi permanecer no Chile, que teria eleições presidenciais em setembro. A esquerda contava com um candidato forte, Salvador Allende, e todos estavam otimistas com relação ao futuro, já que aquela poderia representar uma bela experiência de governo. Quando a vitória de Allende foi confirmada, decidi estabelecer-me de vez no país – e, como já seria de se esperar, uma verdadeira multidão de brasileiros começou a chegar em Santiago. Para sustentar-me, comecei a trabalhar em um órgão das Nações Unidas, fazendo pesquisas socioeconômicas de porta em porta. Basicamente, andava por toda a cidade visitando as casas e perguntando para seus moradores quantas pessoas viviam ali, suas rendas, e por aí afora. Como ganhava por questionário preenchido, conseguia algum dinheiro, que complementava fazendo outros bicos. Acreditando que meu período na clandestinidade havia se encerrado, matriculei-me na Escola de Economia e retomei os estudos. Naquela época, a faculdade de Economia do Chile era uma das mais brilhantes do mundo, contando com professores de vários países. Além dos já citados FHC e Serra, estavam ali Maria da Conceição Tavares (que foi minha professora), Martha Harnecker e Günther Franck, um professor sueco fantástico. O ambiente acadêmico era vigoroso e estimulante e, por isso, insisti no curso por mais um ano, finalmente trocando-o por uma experiência que, além de ligada diretamente ao Cinema, era simplesmente fascinante. Um departamento ligado ao Ministério da Cultura recebeu, do governo inglês, doação de 20 Land Rovers audiovisuais. Eram veículos espetaculares, preparados não apenas para enfrentar qualquer tipo de chão, mas também para serem convertidos em palcos. Além disso, eles possuíam projetor, tela e diversos recursos do tipo. A partir disso, alguns intelectuais chilenos criaram uma série de expedições que foram batizadas como Operação Saltamontes (ou Gafanhoto). Para colocar o projeto em prática, o Ministério montou equipes integradas que contavam com profissionais das áreas de Jornalismo, Artes Plásticas, Música, Teatro e Cinema. Quando a Operação foi anunciada e as equipes passaram a recrutar jovens, inscrevi-me imediatamente para a área de Cinema e fui contratado. Era algo fantástico: viajávamos por todo o interior do país visitando o maior número possível de cidades. Assim que chegávamos nas localidades selecionadas, montávamos o palco e convidávamos a população para assistir a espetáculos teatrais, filmes e shows de música; distribuíamos um jornal; e fazíamos uma agitação danada. Ficávamos cerca de 20 dias em cada cidade, transferindo estes meios para seus habitantes – e, assim, quando íamos embora, eles já sabiam como produzir uma peça, editar um jornalzinho e rodá-lo num mimeógrafo e, é claro, montar um cineclube. Era uma experiência altamente revolucionária que, até hoje, não encontra paralelos no Brasil, por exemplo. Eu falava um espanhol satisfatório, mas meu sotaque levava as pessoas a acreditarem que eu era cubano – o que, apenas dez anos depois da Revolução liderada por Fidel e Guevara, era algo que gerava conflitos inevitáveis com os conservadores de direita das cidades que visitávamos. Como andávamos por áreas de latifúndio no Sul do Chile, onde ocorriam conflitos intensos pela posse da terra, tínhamos que evitar, para nossa própria segurança, qualquer desentendimento. Participei da Operação Saltamontes durante os oito meses de sua curta e gloriosa existência. Infelizmente, pressões de grupos da direita, que alegavam que as equipes do projeto eram formadas por guerrilheiros internacionais que queriam apenas tumultuar o país, acabaram por levar o Ministério a desativar o projeto. Todos saíram perdendo – menos, é claro, os conservadores poderosos, como de hábito. Capítulo V Respirando Cinema Voltei para Santiago desempregado e sem quaisquer perspectivas profissionais – e, mais uma vez, o acaso agiu em meu favor. Andando no centro da cidade, encontrei um conhecido da Faculdade de Economia da UFMG, Jaime Moreira, que me contou que iria começar a trabalhar em um filme, do qual seria produtor executivo. – Você curte cinema, né? Pois eu estou montando minha equipe de produção! Quer entrar? É claro que eu queria. – Então, amanhã bem cedo, vá até a Chile Films para conversarmos. Menos de 24 horas depois, eu já era funcionário contratado da Chile Films, na qual permaneci até ser obrigado a sair do país, mais de dois anos depois. Espécie de Embrafilme chilena, aquela estatal diferia (para melhor) da versão brasileira por não ser apenas um centro burocrático, mas também um núcleo de produção, com estúdios, laboratórios de sonorização, moviolas e cursos de cinema. Quando fui contratado, o cineasta mais famoso do país, Miguel Littin, já tinha rodado O Chacal de Nahueltoro (muito interessante, por sinal) e estava finalizando Terra Prometida através justamente da Chile Films. Além disso, duas outras produções estavam começando, e passei a fazer parte da equipe de uma delas, Balmaceda, como assistente de direção de arte. Foi um aprendizado muito bacana, pois a diretora de arte, uma alemã rigorosa e metódica que viera ao Chile para este trabalho específico, desenhava muitíssimo bem, ilustrando toda a concepção do projeto em lâminas. Da mesma forma, como me envolvi com a cenografia e os figurinos, pude dar alguns palpites sobre as cores do filme, o que era empolgante. O longa iria contar a história do ex-presidente José Manuel Balmaceda, que governou o país entre 1886 e 1891 e foi deposto por um golpe, refugiando-se na embaixada da Argentina – onde cometeu suicídio no dia exato em que seu mandato constitucional terminaria. Curiosamente, a direção do filme seria de Fernando Balmaceda, descendente do ex-presidente, que encarava aquela superprodução caríssima como algo pessoal. Aliás, é curioso que aquela empreitada tenha marcado meu primeiro passo na Chile Films, considerando-se que, em algum tempo, as linhas gerais daquela trágica história seriam ressuscitadas, tendo Salvador Allende no lugar de Balmaceda. Infelizmente, a produção foi interrompida no meio. Estávamos no segundo semestre de 71 e a situação política do Chile ia se tornando cada vez mais complicada, já que havia muita resistência a Allende por parte da direita, incluindo sabotagens, resistência no campo à política agrícola do governo e boicotes às grandes cidades (levando à escassez de alimentos nestes centros). Com isso, o presidente e sua equipe experimentavam dificuldades para implantar suas políticas e o clima tornou-se permanentemente tenso, com a ocorrência de atentados e rumores de uma possível interferência norte-americana no país. Foi então que o Ministério do Interior, ao qual a Chile Films era ligada, botou em prática uma idéia muito sábia: suspendeu a produção de longas-metragens e instruiu que nos dedicássemos à realização de curtas que deveriam ter, como tema, questões sociais e políticas relativas ao que acontecia no país naquele momento, a fim de instruir (e alertar) a população sobre a manipulação feita pela direita e por certos setores do Exército. Visivelmente chateado (o que é compreensível), Fernando Balmaceda reuniu a equipe e anunciou a decisão do Ministério, acrescentando que esperava poder retomar o longa no futuro (algo que jamais conseguiu fazer). Como a realização de nada menos do que 40 curtas já havia sido aprovada, ele concluiu: – Quero saber se alguém tem alguma idéia ou um projeto que se encaixe nestas características e que possa ser apresentado já amanhã. Ergui a mão e disse que tinha. Mentira pura. Acho que estava simplesmente seguindo o slogan da minha antiga organização: “Ousar Lutar, Ousar Vencer”. A única coisa que eu tinha era um poema que havia escrito sobre um acontecimento recente que me intrigara muito. Poucos meses antes, um crime bárbaro fora cometido na periferia de Santiago. Dois rapazes do interior tinham assassinado e estuprado (nesta ordem) duas mulheres da favela, sendo rapidamente presos e condenados à morte. A crueldade do ato era inegável, mas a forma com que a imprensa trabalhava e vendia uma infinidade de jornais graças ao crime começou a chamar minha atenção. No Chile, este tipo de assassino é normalmente chamado de “chacal” (como ilustra o título do filme de Littin, O Chacal de Nahueltoro), e a mídia, que adora criar “celebridades do crime” a fim de estimular a circulação de seus periódicos, batizou os dois rapazes de “chacais de La Pincoya” (a favela na qual o incidente acontecera). Horrorizado com tudo aquilo, escrevi um poema intitulado Os Chacais dos Chacais, no qual retratava a imprensa como uma entidade carniceira que se alimentava de tragédias. Voltei para casa depois da reunião, peguei o poema e decidi apresentá-lo como premissa para um curta. Para isto, bolei uma idéia que já incluía o hibridismo de minha formação de brasileiro: a história seria narrada por um repentista por meio de versos e contaria a trajetória de dois jovens que, chegando à cidade grande, ficavam sem emprego ou perspectivas e acabavam se associando a grupos de drogados e traficantes, vindo a cometer um crime. Para criar a figura do repentista (que lá se chama payador), inspirei-me em um velho cego que cantava na porta de um mercado da cidade, Don Lázaro Cárdenas, um poeta popular muito talentoso. A idéia acabou ficando bem formatada e, no dia seguinte, expus o argumento. Balmaceda aprovou o projeto e decidiu dirigir o filme, que foi o primeiro da série de curtas encomendada pelo Ministério. Além de roteirista, assumi a assistência de direção, participando diretamente de todo o processo criativo do projeto. Intitulado Un Crimen Tan Comentado, o curta foi bastante impregnado pelas idéias da época. A primeira parte foi rodada em preto-e-branco; e a segunda, que já descortinava uma perspectiva mais otimista e era mais alegre, rodamos em cores. O filme terminava com uma imagem que, de certo modo, era muito ligada à minha infância: uma pipa subindo com as cores da UP (Unidade Popular), a frente política de Salvador Allende. Assim, embora fosse pesado (chegamos a recriar os assassinatos das duas mulheres), ele terminava com um sentimento positivo, inspirador. Un Crimen Tan Comentado tornou-se extremamente popular, porque, naquele período, havia a obrigatoriedade de se exibir curtas-metragens chilenos antes dos longas estrangeiros, algo semelhante ao que tivemos no Brasil na década de 80. Jamais voltei a ver este filme, que quase foi destruído pelos militares depois do golpe (eles queimaram dezenas de títulos), sendo salvo pelo próprio Fernando Balmaceda, que o tem em sua posse até hoje. Depois desse projeto, trabalhei em outros. Fiz produção, escrevi roteiros e atuei praticamente em todas as áreas. Foi uma verdadeira escola de cinema, principalmente porque o Chile vivia um momento muito rico – a conjuntura política do país atraía vários profissionais que, curiosos com aquela experiência, resolviam filmar ali: Costa-Gavras, Leon Hirszman, Bruno Barreto e muitos outros. Silvio Tendler, em particular, chegou a ser meu colega na Chile Films. Infelizmente, não cheguei a dirigir, pois, não sendo chileno, enfrentava barreiras para assumir o cargo em uma produção nacional. O Chile do início da década de 70 também oferecia muitos atrativos para os cinéfilos. Como a economia norte-americana rompeu com o governo marxista de Allende, as distribuidoras ianques pararam de enviar seus filmes para o país e, para preencher o vácuo, os cinemas chilenos começaram a exibir longas antigos e toda a produção do Leste Europeu, além da cubana. Isso permitiu que eu assistisse a maior parte da filmografia cubana até aquele momento, incluindo os trabalhos de Santiago Álvarez e Tomás Gutiérrez Alea. Além disso, o Cinema do Leste Europeu era muito interessante, especialmente suas animações, que me fascinavam. Tudo estava à nossa disposição: a obra do húngaro Miklós Jancsó (que jamais passou comercialmente no Brasil), os primeiros filmes de Milos Forman e Roman Polanski (ainda na Checoslováquia e na Polônia, respectivamente), e de outros cineastas. Passei a respirar cinema. Capítulo VI De um Golpe para Outro A partir de 72, a situação política no Chile se complicou enormemente. A sensação era a de que estávamos sempre andando em terreno movediço e a Chile Films, em particular, era um local de muita atividade, de inúmeros encontros importantes. Tínhamos informações sobre o que estava acontecendo e sentíamos, por isso, que vivíamos um momento transitório, que algo logo iria acontecer para alterar radicalmente a realidade com a qual estávamos habituados. A maioria de nós tinha plena consciência de que a repressão viria em breve, mas não podíamos imaginar com qual intensidade. E muitos se preparavam para o enfrentamento inevitável. Aliás, a própria direção da Chile Films promovia reuniões para que discutíssemos exatamente o que poderíamos e deveríamos fazer caso (ou quando) ocorresse o golpe militar: estudávamos estratégias para defender o prédio, rechaçar o exército e por aí afora. Estas eram nossas sombrias expectativas. Enquanto isso, a vida continuava. Já me sentindo praticamente em casa naquele país, eu procurava estabelecer amizades com os companheiros chilenos, pois não queria ficar apenas entre os brasileiros. Eu fazia, inclusive, questão de falar e escrever bem o espanhol – ao contrário de muitos outros exilados, que, por viverem isolados entre seus compatriotas, permaneciam eternamente falando um portunhol horroroso. A essa altura, minha situação no Chile já estava legalizada. Como o consulado do Brasil se negava a me fornecer um passaporte, o próprio governo chileno me deu um documento de viagem, o que foi um procedimento comum durante algum tempo. Porém, na medida em que mais exilados começaram a chegar, a situação começou a ficar difícil em Santiago e várias restrições à imigração foram adotadas. Para complicar, vários brasileiros, num terrível desajuste de visão estratégica, se envolveram com grupos de ultra-esquerda do país e participaram de atentados, além de buscarem uma ação muito aberta contra os militares do Brasil – o que causava certo constrangimento diplomático a Allende. (Isso não quer dizer que não combatêssemos a ditadura; apenas o fazíamos com mais discrição para não inviabilizarmos nossa estada em Santiago.) Em julho de 1973, um incidente espantoso abalou todos que trabalhavam na Chile Films. Certa manhã, descobrimos uma câmera 16 mm no saguão do prédio, com um bilhete anônimo solicitando que o material fosse revelado. Quando o filme voltou do laboratório, ficamos chocados. Ninguém esperava ver algo tão explosivo como o que estava naquele filme. Alguns dias antes, em 29 de junho, acontecera uma tentativa de golpe que se tornou conhecida como Tanquetaço. Liderados pelo tenente-coronel Roberto Souper, 80 soldados de um regimento de Santiago, amparados por 16 tanques, atacaram o Palácio Presidencial de La Moneda. Na realidade, hoje sabemos que aquilo foi um mero ensaio para o golpe que se seguiria, e que o propósito dos militares era testar a capacidade de reação de Allende. Assim, o incidente durou pouco tempo e a rebelião foi logo debelada pelas forças fiéis ao presidente. O material que agora tínhamos em mãos fora produzido durante o Tanquetaço e mostrava nada menos do que a morte do próprio cinegrafista, o argentino Leonardo Henrichsen, que trabalhava sob a orientação do jornalista sueco Jan Sandquist. Com pouco mais de 3 minutos de duração, o filme começava com um plano aberto, mostrando a movimentação dos tanques e dos caminhões que traziam os soldados rebelados para o La Moneda. Momentos depois, vemos um capitão apontando para a câmera, que fecha um zoom no sujeito, mostrando seu rosto. Visivelmente irritado, o militar ordena que os soldados apontem as armas para o cinegrafista, que continua filmando tudo. Eles atiram e a imagem treme, levando o espectador a perceber que Henrichsen foi atingido. Ainda assim, ele volta a enquadrar seus assassinos, que disparam mais uma vez. Finalmente, o argentino cai, vemos o céu momentaneamente e, em seguida, o asfalto. O filme termina aí. Aquelas imagens provavelmente jamais seriam descobertas, caso um dos soldados não tivesse cometido a burrice de atirar a câmera no esgoto, julgando que ela seria destruída. Em vez disso, alguém (jamais descobrimos quem) resgatou o equipamento e, dias depois, depositou-o no saguão da Chile Films, onde o encontramos. Todas as semanas produzíamos um cinejornal que era enviado aos cinemas do país e, assim que vimos aquelas imagens, decidimos realizar uma edição extra. Aquele crime era um indício alarmante de que os militares estavam tão confiantes no sucesso de seus planos que já não se importavam sequer com a opinião pública ou com os protestos internacionais. Matar um correspondente estrangeiro era algo impensável, mas eles não hesitaram um segundo sequer antes de fuzilarem Henrichsen. O cinejornal ficou ótimo – fazíamos uma longa pausa no instante em que o rosto do capitão aparecia em quadro, a fim de identificá-lo. No entanto, o filme não chegou a durar um dia nas salas de exibição – o exército simplesmente invadia os cinemas e recolhia as cópias. Porém, como já havíamos enviado o material para fora do país, as imagens percorreram todo o mundo, tornando-se célebres. Em 1989, a Argentina transformou o 29 de junho no Dia Nacional do Cinegrafista Argentino, em homenagem a Leonardo Henrichsen, que morreu com apenas 33 anos de idade. Inexplicavelmente, a identidade do capitão que deu a ordem para que ele fosse assassinado jamais foi revelada. Conheci Márcia em 1973, numa festa na casa de amigos. Formada em medicina, ela era obstetra em um hospital de Santiago e morava com a irmã em um apartamento no centro da cidade. Logo estávamos namorando e não levou muito tempo para que decidíssemos nos casar – o que aconteceu em 20 de agosto daquele ano. Depois de passar tanto tempo na solidão, eu estava começando a recriar uma estrutura familiar, já que, além de estar casado, recebi uma visita de mamãe neste período, o que me trouxe enorme felicidade. Teria sido terrível ficar sem vê-la por tanto tempo. Em setembro, começamos a nos preparar para as filmagens de Cuento de Medo, longa-metragem que seria dirigido por José “Pepe” Caviedes, um bom cineasta chileno que tinha realizado vários trabalhos para a televisão. Eu faria a assistência de direção. Não deu tempo. Em 11 de setembro de 1973, os militares deram o temido golpe de Estado – e, pela segunda vez em pouco mais de três anos (e com apenas 20 dias de casado), eu voltava à clandestinidade. Em termos de violência inicial, o golpe no Brasil foi bem mais brando do que aquele que ocorreu no Chile. Além de não termos, em 64, uma esquerda tão organizada quanto a chilena, os militares pegaram o governo brasileiro completamente despreparado. Além disso, a repressão no Brasil era feita de forma pontual. Os agentes do DOI-CODI invadiam um aparelho aqui; prendiam alguns militantes ali; e poucas vezes atacavam a população “civil”. Já em Santiago, os militares estavam nas ruas, atirando nas pessoas. Felizmente, o acaso me salvaria mais uma vez, como explicarei mais adiante. Eu e Márcia vivíamos em um bairro de classe média, dividindo o apartamento com um casal de brasileiros que viera do Paraná, Marcos e Marieta, ambos exilados políticos. Na véspera do golpe, às 11 horas da noite, escutamos um forte barulho vindo da sala: alguém havia disparado um tiro que atravessara a janela e se alojara na parede do aposento. – Porra, isso é coisa da direita, que sabe que aqui moram brasileiros! – concluímos. Em 73, “brasileiro” e “militante comunista” eram sinônimos. Já éramos cerca de 10 mil exilados. Decidi que, no dia seguinte, iria conversar com o presidente da Chile Films, o Eduardo “Coco” Paredes, que tinha sido um cara muito importante do Ministério do Interior e Chefe do Departamento de Investigações. No passado, Paredes tornara-se notório por perseguir com violência a direita golpista que, em função disso, jamais deixara de odiá-lo. Minha idéia era pedir que ele mandasse alguns homens ao nosso apartamento, a fim de assustar quem quer que houvesse disparado aquele tiro (eu julgava que era alguém que morava ali perto e que certamente veria os temidos subordinados de Coco Paredes). O que eu não sabia era que, neste momento, ele já havia sido preso pelos golpistas e estava sendo terrivelmente torturado. Agindo de forma estratégica, os militares prenderam e assassinaram, durante a madrugada, a maior parte das pessoas mais importantes ligadas a Salvador Allende e que poderiam oferecer qualquer tipo de resistência. Porém, como inimigo particularmente odiado pela direita, Paredes enfrentaria um destino infinitamente pior que uma morte rápida: depois de ter vários ossos quebrados, ele foi encharcado com gasolina e queimado vivo – e ainda respirava quando foi fuzilado com 17 tiros. Seus restos só seriam descobertos 22 anos depois, enterrados clandestinamente no Cemitério Geral. Às 5 da madrugada, fomos despertados por dois amigos que foram nos avisar que o golpe havia começado em Valparaíso. Duas horas depois, Allende fez o primeiro de uma série de pronunciamentos através do rádio: “Aqui fala o presidente da República, direto do Palácio de La Moneda. Informantes assinalam que um setor da marinha ocupou Valparaíso, o que significa um levante contra o Governo legitimamente constituído e que está amparado pela Lei e pela vontade do povo. Nestas circunstâncias, conclamo todos os trabalhadores a ocuparem seus postos de trabalho, que se dirijam às suas fábricas e que mantenham a calma e a serenidade. Até este momento, em Santiago não ocorreu nenhum movimento inesperado de tropas. (...) Em todo caso, estou aqui, no Palácio do Governo, e aqui ficarei, defendendo o Governo que represento pela vontade do povo. Peço que os trabalhadores fiquem atentos, vigilantes, e que evitem provocações. Num primeiro momento, temos que esperar a resposta, que espero ser positiva, dos soldados da Pátria, que juraram defender o regime estabelecido. (...) O povo e os trabalhadores devem estar atentos, em seus locais de trabalho, para o chamado que poderá fazer e as instruções que lhes dará seu companheiro presidente da República.” Era um chamado para a defesa. Eu ainda tinha meu revólver .38 e o coloquei na cintura antes de sair de casa. Minha esposa foi para a maternidade na qual trabalhava, enquanto o outro casal foi para a universidade em que estudavam. Quando botei os pés fora do prédio, a situação era assustadora – aviões e helicópteros sobrevoavam a cidade, enquanto caminhões carregando dezenas de soldados cruzavam as ruas. Os militares usavam lenços vermelhos no pescoço, um sinal de identificação que adotaram com ironia, já que aquela era conhecida como a cor da esquerda. O transporte público fora interrompido, e as pessoas voltavam a pé do centro da cidade. A Chile Films ficava num dos bairros mais altos (e ricos) de Santiago, ao pé da Cordilheira dos Andes, bem longe de onde eu estava. No entanto, não havia alternativa; eu tinha que ir até lá, já que este tinha sido o plano exaustivamente ensaiado. Comecei a caminhar por uma grande avenida, a arma pesando na cintura, e fiquei assustado ao passar em frente à embaixada de Cuba e perceber que ela já estava cercada por um número enorme de soldados, que apontavam suas metralhadoras para o prédio. A coisa estava bem pior do que eu imaginara, e sons de tiros podiam ser ouvidos por todos os lados. Consegui pegar uma carona e mantive a boca fechada durante todo o trajeto, para não revelar minha nacionalidade – algo que poderia ser fatal naquele momento. Através do rádio do carro, ouvi mais um discurso de Allende, desta vez bem mais sombrio: “A situação é crítica, estamos fazendo frente a um golpe de Estado do qual participou a maior parte das Forças Armadas. Nesta hora, quero recordar algumas das palavras que disse em 1971, e as repito com calma, com absoluta tranqüilidade. Não tenho talento para apóstolo ou messias. Não levo jeito para mártir, sou um lutador social que cumpre uma tarefa recebida do povo. Mas que aqueles que (...) desconhecem a vontade majoritária do Chile entendam uma coisa: sem ter carne de mártir, não darei um passo atrás. (...) Só deixarei o La Moneda quando o mandato que o povo me deu se encerrar. (...) Não tenho outra alternativa. Somente à bala é que poderão me impedir de cumprir o programa do povo. Se me matarem, o povo seguirá seu caminho, mas com a diferença de que as coisas serão muito mais duras, mais violentas, porque esta será uma lição para as massas de que esta gente não se detém por nada. (...) O progresso social não vai desaparecer porque um dirigente desapareceu. Poderá demorar, mas não será detido. (...) O companheiro presidente não abandonará seu povo nem seu local de trabalho. Permanecerei no La Moneda, inclusive à custa de minha própria vida.” Finalmente me aproximei da Chile Films, que ficava no fim de uma ruazinha. Quando virei a esquina que levava ao prédio da estatal, ouvi alguém me chamando baixinho. Olhei para trás e vi um companheiro de trabalho, que disse simplesmente: – Eles já estão lá. Fiquei gelado. Os militares já haviam fuzilado centenas de pessoas naquele dia. Caso eu tivesse entrado no prédio carregando uma arma, teria sido morto antes de poder perceber o que havia acontecido. Meu anjo-da-guarda me salvara mais uma vez. Conversando rapidamente com este amigo (a quem devo a vida), fui informado de que um diretor de fotografia com quem eu costumava trabalhar fora assassinado enquanto filmava o golpe – ele estava em cima de uma árvore, com uma pequena câmera 16 mm, quando foi atingido por uma saraivada de balas. Depois de ouvir este triste relato, nos despedimos com desejos de Boa sorte! e ele se afastou com passos rápidos. Fiquei sozinho, sem saber exatamente o que fazer. Voltar para casa seria estupidez, pois, como o tiro disparado na noite anterior comprovava, o apartamento era um lugar perigoso. Para onde eu poderia ir? Capítulo VII A Queda de Allende Mario Fiorani! Esta era a solução. Lembrei-me de que o cineasta austro-ítalo-brasileiro, que realizara diversos filmes no Rio de Janeiro, agora morava em Santiago com sua esposa e que – o mais importante – sua casa ficava a poucos quarteirões dali. Procurando controlar meus passos, já que meu impulso era correr e sair da rua o mais rápido possível, caminhei até lá e toquei a campainha. Assim que me viu, Fiorani compreendeu a situação e abriu o portão em questão de segundos. Além do cineasta e sua esposa Beatriz, lá também estava Luís Carlos Pires, um produtor de cinema que também era de Belo Horizonte, apesar de morar no Rio. – Estamos aqui buscando asilo – brincou, com um sorriso triste. Neste momento, fortes explosões nos fizeram estremecer. Corremos para a varanda no andar superior da casa e assistimos, como de camarote, à destruição da residência de Salvador Allende, que ficava a apenas algumas centenas de metros. O presidente estava, é claro, no La Moneda (que logo também seria bombardeado), mas o propósito dos golpistas naquele ataque era óbvio: eliminar a maior parte do GAP (Grupo de Amigos do Presidente), escolta pessoal de Allende que tinha preparação militar e estava concentrada em sua residência. Os bombardeios, feitos por aviões ingleses, tinham uma precisão cirúrgica absurda, o que era mais uma evidência de como os militares se prepararam cuidadosamente para aquele momento. Indicava, também, que eles não se importavam em arriscar a vida dos civis – a mansão de Allende ficava no meio de um bairro residencial. Permanecíamos com os ouvidos colados no rádio, à cata de quaisquer informações. Descobrimos que a emissora que havia transmitido os pronunciamentos anteriores do presidente fora destruída pelos aviões e, por alguns instantes, acreditamos que não voltaríamos a ouvir a voz de Allende. Nós o subestimamos. Às 9h03 da manhã, ele fez um novo discurso por telefone através da Rádio Magallanes. Sua voz era nervosa e, apesar do autocontrole que exibia, podíamos perceber que estava sob imensa tensão: “Neste momento, passam os aviões. É possível que nos atinjam. Mas que saibam que aqui estamos, com nosso exemplo, demonstrando que este país tem homens que sabem cumprir suas obrigações. (...) Em nome dos mais sagrados interesses do povo, em nome da Pátria, digo que tenham fé. A História não pode ser detida nem pela repressão nem pelo crime. Esta é uma etapa que será superada. (...) Pagarei com minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta Pátria. O povo deverá estar alerta e vigilante. Não deve deixar-se provocar nem se deixar massacrar, mas também deve defender suas conquistas.” A mensagem era clara. Ao mesmo tempo em que manifestava sua intenção de resistir, Allende pedia que as pessoas não enfrentassem os militares. Foi uma atitude sensata, que impediu um banho de sangue muito maior do que aquele que acabou ocorrendo. Ainda assim, vários franco-atiradores, fiéis ao governo, permaneceram nos telhados das casas e dos prédios, atirando no exército durante os dias seguintes e sendo mortos um a um. Lá fora, barulho de tiros de metralhadora, bombardeios e muita fumaça para todos lados. Dentro da casa de Fiorani, um reflexo deste caos: Mario e a esposa atiravam na lareira todos os documentos e textos relacionados ao PCB. Só então me lembrei que eu estava armado, algo que, numa situação daquelas, só poderia piorar as coisas. Tirei o revólver da cintura e o mostrei aos meus companheiros, que reagiram exatamente como eu esperava – ficaram apavorados. Decidimos esconder o .38 em um vão do pequeno depósito usado para guardar a lenha pra lareira. Às 9h10 da manhã, apenas 7 minutos depois de seu pronunciamento anterior, o presidente voltou a falar na Rádio Magallanes. Seu discurso evidenciava o óbvio: estava tudo perdido. “Esta será certamente a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea está bombardeando as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, apenas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. (...) Só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Pagarei com minha vida a lealdade ao povo. (...) Trabalhadores de minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que foi apenas um intérprete de grandes anseios de justiça, que prometeu respeitar a Constituição e a Lei, e assim o fez. (...) Certamente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranqüilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Vocês continuarão a ouvi-la, pois sempre estarei junto de vocês. Pelo menos serei lembrado como um homem digno que foi leal à Pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar. (...) Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. (...) Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, no mínimo, será uma lição moral que castigará a vilania, a covardia e a traição.” Poucas horas depois, Salvador Allende estaria morto. O que realmente aconteceu no interior do La Moneda permanece um mistério até hoje. Algumas testemunhas garantem que o presidente, ainda carregando o fuzil que Fidel Castro lhe dera de presente em 71, foi para outra sala e, depois de gritar Allende não se rende!, tirou a própria vida com um tiro na cabeça. Já outras pessoas afirmam que ele foi morto pelos militares (versão defendida inclusive pelo escritor Gabriel Garcia Marquez). O que quer que tenha ocorrido, o fato é que foi um espetáculo sangrento que impediu, inclusive, que o rosto desfigurado de Allende pudesse ser visto durante o velório. A bela experiência democrática do Chile chegava ao fim, sendo substituída por 17 anos de terror patrocinado pelo sadismo do general Augusto Pinochet. Por volta das 11 horas da manhã, os militares ordenaram que os chilenos exibissem bandeiras do país nas fachadas e janelas de suas casas. Como o Chile é historicamente muito nacionalista, quando fomos para a varanda, a rua inteira estava embandeirada. Menos, é claro, nossa casa. Foi um sentimento de profunda solidão. Os três dias seguintes ao golpe foram marcados pelo toque de recolher; ninguém podia sair nas ruas. Foi somente depois deste período que consegui ter notícias de Márcia e saber onde ela estava. Quando o toque de recolher chegou ao fim, nos falamos e marcamos um encontro. Era uma oportunidade, além de tudo, para me livrar do objeto mais comprometedor que eu possuía, o revólver. Caminhamos calmamente, como se namorássemos, à beira de um canal no qual corria um rio que emergia da Cordilheira dos Andes. Quando tive certeza de que ninguém nos observava, tirei o .38 da cintura e o atirei rapidamente na água. Posteriormente, centenas de armas foram encontradas neste rio. O toque ia até as 6 horas da tarde, e eu precisava pegar algumas roupas e objetos de uso pessoal que deixara em casa. Quando passamos de ônibus em frente ao prédio, vimos que ele havia sido ocupado pelo exército, e que vários vizinhos e transeuntes apontavam, curiosos, para a janela do nosso apartamento. Marcos e Marieta tinham sido presos. (Tempos depois foram soltos e retornaram ao Brasil.) Só pudemos voltar ao apartamento um mês depois. Como não podíamos correr o risco de que algum vizinho denunciasse minha presença, Márcia entrou no prédio e, mais tarde, descreveu como os militares haviam deixado o lugar: móveis e louças foram destruídos; os livros estavam atirados no chão; o sofá, as poltronas e o colchão tinham sido rasgados; e as roupas se encontravam espalhadas por todos os lados. Meu impulso inicial fora o de sair do Chile rapidamente. A maior parte de meus amigos estava pulando os muros das embaixadas, à procura de asilo. Certo dia, encontrei um amigo, o médico Apolo Lisboa, que me disse: – Você ainda está aqui, Helvécio?! Nós vamos pular para a embaixada da Argélia e você deveria ficar conosco! Várias embaixadas estavam recebendo os fugitivos. Porém, em conversas por telefone, meu pai insistia para que eu esperasse um pouco mais, pois estava viabilizando meu retorno legal ao Brasil. Enquanto durava esta indefinição, concluí que o melhor a fazer seria, no mínimo, sair de Santiago. Os pais de Márcia moravam no interior do país, em uma cidade chamada San Felipe, e se ofereceram para nos hospedar até que as coisas se acalmassem. Foram eles, também, que encontraram uma maneira de me transportar pelas estradas repletas de barreiras policiais: decidiram me buscar. Assim, fizemos os quatro a viagem de carro – e a presença de um casal já mais velho e sem quaisquer ligações passadas com a política foi o bastante para conferir uma aura de inocência aos jovens com quem viajavam. Fiquei na casa de meus sogros por quase dois meses. Em dezembro, meu pai finalmente me avisou que havia conseguido um documento que regularizava minha situação no Brasil, e que, portanto, eu já podia voltar para casa. Ele me explicou que, como eu fora condenado antes dos 21 anos de idade, em 1969, a lei determinava que minha pena prescreveria depois de um período equivalente ao dobro da sentença. Ou seja, como eu fora condenado a um ano e meio de prisão (da qual talvez nem saísse vivo, diga-se de passagem), a condenação perderia o efeito depois de três anos, o que ocorrera em 1972. Desde então, papai vinha batalhando junto à Justiça Militar para obter um documento oficial que comprovasse isso e, conseqüentemente, me libertasse dos problemas com a polícia brasileira. Quando recebi uma cópia do documento, desisti da idéia de procurar asilo em outro país. No entanto, havia mais um problema a ser resolvido. Ao embarcar para o Brasil, eu seria obrigado a me apresentar às autoridades chilenas – e certamente seria preso e levado para o Estádio Nacional, onde os militares estavam concentrando (ou melhor, depositando) seus prisioneiros políticos. Isso já havia acontecido com alguns de meus amigos e não seria diferente comigo. Para piorar, o Exército do Chile estava em contato direto com seus colegas de farda do Brasil, e já se dizia, por exemplo, que o temido delegado Sérgio Paranhos Fleury tinha comandado interrogatórios e até mesmo torturas de exilados brasileiros no próprio Estádio. Eu precisava de um salvo-conduto. Mais uma vez, foi um amigo quem veio em meu auxílio. Juan Forch era fotógrafo de cinema e filho de um general que fora chefe de Estado Maior durante o governo Eduardo Frei. Durante os anos que permaneci no Chile, almocei diversas vezes em sua casa e me dava muito bem tanto com a mãe de Juan quanto com o próprio general, que era uma ótima pessoa e um democrata declarado. Com o golpe, o pai de meu amigo se tornara um dos prefeitos de Santiago, sendo responsável por um dos bairros mais elegantes e abastados da capital. A essa altura, ele já havia ajudado o próprio filho a sair do país em direção ao México e, assim, fui procurá-lo diretamente na municipalidade. Identifiquei-me para sua secretária e fui recebido imediatamente. O general, que também se chamava Juan Forch, fora adido militar do Chile em Washington no mesmo período em que Garrastazu Médici exercera função similar e as duas famílias se tornaram próximas (na sala da casa do meu amigo havia uma foto dos Médici e dos Forch). Expliquei minha situação para o general, que me alertou: – Você vai voltar para o Brasil num contexto muito complicado. Eu sabia disso, é claro, mas contei que meu pai conseguira um documento que provavelmente me livraria da cadeia. E foi então que ele me ofereceu algo bem mais poderoso do que um simples salvo-conduto: – Eu vou escrever uma carta ao presidente do Brasil, recomendando você. O presidente em exercício naquele momento era Médici. Ele escreveu uma carta autenticada com selos oficiais do governo chileno e a colocou em minhas mãos, desejando-me sorte. Além disso, providenciou o salvo-conduto que eu precisaria para embarcar rumo ao Brasil. Infelizmente, este procedimento representava uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que era imprescindível possuir o salvo-conduto para sair do país, os militares chilenos se encarregavam de avisar os colegas brasileiros sobre a iminente chegada de mais um antigo exilado. Mas não havia saída; eu tinha que torcer para que meu nome passasse em branco. Descobri isso da pior maneira possível: sendo recebido por dois agentes do DOI-CODI ao desembarcar no aeroporto do Rio de Janeiro. Capítulo VIII A Geladeira Na época de minha condenação (quando obviamente fui julgado à revelia), a repressão me procurara exaustivamente, já que eu era constantemente citado em interrogatórios. Em algumas ocasiões, estive bastante perto de ser preso, mas a sorte parecia estar sempre ao meu lado e eles falharam todas as vezes. Seria de se imaginar que, depois de quatro anos, minha captura não fizesse mais sentido, já que eu estava afastado da luta por tempo suficiente para não poder mais fornecer qualquer informação relevante. No entanto, além de uma questão de orgulho (eles odiavam fracassar, independentemente da importância do alvo), os militares acreditavam que eu poderia dizer coisas importantes sobre a colônia de exilados no Chile. Quando fui preso, meu pai estava no saguão do aeroporto com o documento original que comprovava a prescrição da minha pena. Como homem da Justiça portando um instrumento jurídico que permitia minha volta ao Brasil, ele ficou naturalmente abalado ao perceber que sua fé no “sistema” era pura ilusão. Naquela noite, ele parecia estar à beira de um colapso nervoso, passando toda a madrugada indo de quartel em quartel, procurando o filho. Como era de praxe, os militares não davam informação alguma sobre meu paradeiro, e papai foi desmontando. Ele simplesmente não podia acreditar que a Ordem havia sido desrespeitada daquela maneira. A presença inesperada de minha esposa causara certa confusão entre os agentes do DOI-CODI. Ainda na pista do aeroporto, eles entraram em contato com a base, através de radiocomunicador, e informaram que eu estava acompanhado por uma “gringa”. A voz do outro lado ordenou que eles a deixassem para trás, mas os dois agentes se recusaram a fazer isso e cobriram a cabeça de Márcia com minha jaqueta, já que só haviam levado um capuz. Durante o trajeto, permaneci deitado no chão do Opala. Depois do que me pareceu uma eternidade, senti que o carro descia uma rampa e confirmei meus temores: eu sabia que a entrada do DOI-CODI era subterrânea. Quando saímos do carro, alguém (eu ainda estava encapuzado) me perguntou aos gritos onde deveriam deixar minha esposa. Respondi com o único endereço no Brasil que ainda sabia de cor: Jardim Botânico, 625, a casa de meu tio. Ainda assim, fiquei inseguro: será que iam mesmo deixá-la partir? Eu não tinha outra opção a não ser esperar que sim. Fui levado para uma sala de interrogatório, onde fui deixado sozinho por alguns minutos. De repente, percebi, pelos sons, que duas pessoas haviam entrado no aposento. Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, joguei minha última carta (num sentido quase literal): – Na minha mala tem uma carta ao presidente da República. Há duas outras cópias desta carta: uma nas mãos de meu pai e outra que já foi encaminhada ao próprio Médici. Era mentira, claro. Não havia cópia alguma. Os dois sujeitos saíram da sala, batendo a porta. Através de um sistema de som, recebi autorização para tirar o capuz e pude ver, pela primeira vez, o ambiente no qual me encontrava. A sala era completamente revestida por placas de Eucatex, que a deixavam à prova de som. Em uma das paredes havia um imenso espelho, que, deduzi, permitia que as pessoas do outro lado vissem o que se passava no interior do cômodo. Não havia móveis; apenas a cadeira na qual eu me encontrava. Mais algum tempo se passou até que, por fim, recebi ordens de recolocar o capuz. (Este procedimento seria utilizado durante todo o tempo em que permaneci preso, o que me impedia de ver o rosto de meus interrogadores.) Assim que entraram, perguntaram quem era o tal general chileno. – Um amigo pessoal do presidente e ex-chefe de Estado Maior do Chile – respondi. Não voltaram a mencionar a carta. A essa altura, final de 73, início de 74, a repressão já havia acrescentado novos métodos ao seu cotidiano nas prisões. Como ocorriam muitas denúncias de tortura, os militares decidiram importar procedimentos utilizados na Inglaterra pelas autoridades britânicas contra os militantes do IRA (Exército Republicano Irlandês), e que não deixavam vestígios. Criaram uma série de celas, chamadas de “geladeiras”, que podiam ser completamente brancas ou negras, e nas quais os prisioneiros podiam ficar sempre sob luz fortíssima ou totalmente na escuridão. Peguei este sistema anti-IRA e, em poucos dias, já perdera a noção do tempo. Além disso, jamais conseguia mergulhar no sono, permanecendo sempre num estado de semitorpor, meio alerta, meio dormindo. Certa noite, comecei a escutar um som distante de foguetes. Aquela imensa quantidade de fogos só podia significar uma coisa: era réveillon. Eu estava preso há quatro dias. Permaneci nu durante todo o período de cativeiro e, muitas vezes, era obrigado a urinar na própria cela, já que os carcereiros não se preocupavam particularmente com higiene e só concordavam em me levar ao banheiro quando estavam de bom humor. Além disso, como também era levado para os interrogatórios sem roupa, apenas de capuz, sentia-me ainda mais vulnerável, sem saber por onde estávamos passando. E eles sabiam como nos sentíamos, pois faziam questão de aumentar nossa insegurança. Certo dia, por exemplo, enquanto era guiado para um interrogatório, ouvi alguém perguntar algo como “Quem é esse Zé Piroca?”, e se aproximar com violência ao mesmo tempo em que simulava um golpe em meu estômago. Pude sentir o deslocamento de ar e a proximidade de seu punho, enquanto seus companheiros gargalhavam com vontade. Eles me ameaçavam o tempo inteiro, dizendo que eu tinha que entregar o que sabia. Meu grande trunfo era que eu não tinha o que entregar, já que fora preso quatro anos depois de ter sido identificado por eles e, assim, qualquer coisa que eu soubesse já teria caído, acabado. Mas eles não desistiam. Primeiro, insistiram em perguntas sobre o Chile e, mais tarde, sobre o período em que atuei na VAR-Palmares, 1968 e 69. Esse tipo de pressão psicológica representa um tipo de negociação permanente entre você e o interrogador. Decidi que deveria tentar descobrir o que eles já sabiam, para só então “revelar” algumas coisas que não seriam novidade para a repressão. Ainda que dificilmente pudesse entregar algo importante, eu não queria correr o risco de fazê-lo. Na época, o uso do computador era muito limitado e, apesar de o DOI-CODI ter a função de centralizar as informações, na prática a coisa não funcionava muito bem, principalmente porque os militares contavam com centros de repressão funcionando separadamente. Além do DOPS e da Operação Bandeirantes (um centro de tortura que o exército mantinha em São Paulo), havia diversos outros locais, muitos secretos, nos quais os presos eram torturados e, em diversos casos, mortos: a Casa da Morte, em Petrópolis; o Cisa (Centro de Informação da Aeronáutica), que ficava na Base Aérea do Galeão; e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), situado na Ilha das Cobras, entre outros. Certo dia (ou noite, não sei), a oportunidade que eu esperava surgiu. Os interrogadores começaram a fazer uma série de perguntas sobre Goiânia e Brasília, e respondi que nunca tinha estado nessas cidades. Como forma de me pressionar, trouxeram vários álbuns que continham fotografias e fichas de militantes políticos para que identificasse as pessoas, alegando que várias delas haviam confirmado minha passagem por aqueles lugares. Fiquei sozinho na sala, com os álbuns, e comecei a estudar as fichas. E percebi que, para minha sorte, eles haviam cometido um erro estratégico grave: esqueceram de tirar as minhas fichas da pasta. Dessa maneira, pude descobrir tudo o que a repressão já sabia sobre mim – e sabiam muita coisa: minhas atividades em Brasília e em Goiás; os transportes de dinheiro; meu envolvimento com a militante de Brasília; e assim por diante. A partir daí, desenvolvi minha estratégia. Deixava que me fizessem quantas perguntas quisessem, enquanto ia negando tudo. Finalmente, quando percebia que eles estavam começando a ficar impacientes e violentos, “revelava” algo que já estava em minha ficha. Este jogo psicológico de gato-e-rato durou um bom tempo, até que eles pareceram se cansar de mim. Talvez como punição, me deixaram uns 20 dias na geladeira escura, sem sair. Permanecer um período tão longo na escuridão total é algo terrível, desorientador. Perde-se não apenas a noção de tempo, mas de espaço. E o cheiro, nem preciso dizer, ficou insuportável na medida em que o tempo passava. Como eu permanecera muito tempo no Chile, nesta época eu costumava até mesmo sonhar em espanhol. Certa manhã, quando o carcereiro me acordou para me entregar um café nojento, comecei a conversar naquela língua, ainda meio grogue pela falta de sono. Ele me olhou surpreso, bateu a porta e saiu pelo corredor, rindo e dizendo em voz alta: – Porra, tem até gringo preso aqui! Despertei com a sensação de cócegas, como se algo estivesse roçando em minha pele levemente. A luz da geladeira estava temporariamente acesa e movi o corpo, tentando afastar aquilo que estava me incomodando. Poucos segundos depois, voltei a sentir que algo me fazia cócegas, desta vez na coxa. Era como se... um inseto estivesse caminhando sobre minha pele! A barata caiu no chão no instante em que virei o corpo, enojado com a constatação, e correu para o canto oposto da cela. Sua presença não era de se estranhar, considerando-se o estado lastimável em que eu e a geladeira nos encontrávamos. Porém, ela representava um problema: eu não podia dormir (ou “semidormir”, que era o que eu fazia na maior parte do tempo) e correr o risco de ela voltar a passear sobre mim, passar na minha boca. No entanto, eu estava nu e a cela se resumia a uma grande caixa vazia. Era uma situação bizarra. Eu, sentado nu em um canto do aposento, olhando fixamente para a barata enquanto tentava decidir qual parte do corpo usar para esmagá-la. Será que eu deveria rolar sobre ela? Ou, quem sabe, tentar matá-la com o joelho? Eu não queria usar as mãos, obviamente, e torcia desesperadamente para que, enquanto eu pensava, ela saísse por onde quer que tivesse entrado. Quando concluí que isto não iria acontecer, levantei-me, decidido, e parti atrás do inseto. Lembro-me até hoje da sensação pegajosa da barata estourando sob o meu calcanhar. Depois de algum tempo, fui transferido para uma cela que ficava em outro setor do prédio, e só então descobri que estava em um quartel do exército. Agora as condições eram sensivelmente melhores, já que ali havia um catre, um vaso sanitário e até mesmo uma janela no alto, perto do teto, por onde a luz exterior podia entrar e através da qual eu conseguia ouvir os sons de marcha e exercícios que vinham do pátio. E o mais importante – agora eu podia usar roupas. Além disso, o movimento no corredor em que as celas ficavam era grande, e logo me acostumei a ver muitos integrantes da PE (Polícia do Exército), que eram altos e loiros em sua maioria. Não pude deixar de pensar na palavra “arianos”, pois claramente havia uma seleção criteriosa, envolvendo aparência física, naquele destacamento. Os interrogatórios começaram a se tornar mais espaçados. Eu finalmente estava convencendo aquelas pessoas de que não sabia nada que eles já não soubessem. A constatação de que eu realmente não passaria muito tempo mais na prisão veio numa manhã, quando, para minha surpresa, dois homens entraram na sala sem os indefectíveis capuzes. Durante a conversa, muito mais amena do que de costume, percebi que o mais velho dos dois só fazia perguntas corriqueiras, sem a menor importância, e compreendi o que estava acontecendo: ele queria que eu ficasse tranqüilo, que soubesse que tinha um contato lá dentro. Era provavelmente um amigo de meu tio general. – Você estava fazendo cinema no Chile, pelo que fiquei sabendo. O que quer fazer aqui no Brasil? Respondi que pretendia continuar fazendo cinema e televisão. Então, ele se virou para o companheiro e disse: – Ih, daqui a pouco nós vamos estar vendo umas porcarias desse cara na televisão! Eu jamais poderia ficar ofendido com a brincadeira, pois a mensagem que a frase incluía era animadora: em pouco tempo eu seria solto. Capítulo IX Redescobrindo Minas Apenas alguns dias depois daquele encontro, fui informado de que seria libertado. Eu passara 40 dias na prisão. Quando vieram entregar meus pertences, percebi que a carta do general Juan Forch havia desaparecido. Tudo bem. Eu queria apenas rever minha família. Com a cabeça novamente coberta por um capuz, fui colocado em um carro e, então, me perguntaram onde eu queria ser deixado. Dei a resposta padrão: – Jardim Botânico, 625. Meia hora depois, eu tocava a campainha da casa de meu tio. Assim que a porta se abriu, vi o rosto de minha tia, que me devolveu um olhar assustado. Certamente não era esta a recepção que eu esperava. Ela me abraçou com força e, então, me encarou com a expressão séria: – Você deveria estar no Ministério do Exército, para se apresentar para o coronel-alguma-coisa. Se não for, poderá ser preso de novo. Peguei um táxi e corri para o Ministério, que ficava ao lado da Central do Brasil. E foi lá que reencontrei Márcia, que estava acompanhada de meu irmão. Nos abraçamos longamente e, então, fui conversar com o tal militar. Depois de confirmar que eu agora ficaria em liberdade, ele acrescentou: – Mas você deve pensar duas vezes antes de se meter em qualquer coisa que tenha conotação política. Se quiser fazer política, há um partido legal para isso, que é o MDB. Não recomendo que venha parar aqui outra vez. Quer dizer, a não ser para sua apresentação mensal, obrigatória a partir de agora. Meu desejo inicial, quando decidi voltar para o Brasil, era permanecer no Rio de Janeiro, que oferecia maior campo de atuação para quem queria se dedicar ao cinema. Eu já havia estabelecido bons contatos com cineastas como Bruno Barreto e Leon Hirszman, e pretendia procurá-los a fim de conseguir trabalho. Porém, concluí que ficar sozinho no Rio, sem apoio familiar e com os militares sabendo exatamente onde me encontrar, seria arriscado. O porão da ditadura estava fora de controle; enquanto alguns haviam adotado novos métodos, outros permaneciam utilizando extrema violência e matando seus prisioneiros – algo que seria comprovado com as mortes de Wladimir Herzog, de líderes operários e do resto da esquerda armada brutalmente liquidada em Recife. Eu estaria completamente exposto a uma retaliação. Decidi voltar para Belo Horizonte e disse isso para o tal coronel. – Muito bem, então você se apresentará lá mesmo, todos os meses. Depois de uma rápida ligação, me informou que eu deveria me apresentar em um quartel que ficava no bairro de Lourdes. Quando pensei que a conversa estava encerrada, ele abriu uma gaveta e, me entregando o envelope com o selo do governo chileno, concluiu: – Por último, eu queria te entregar esta carta. Como é uma carta pessoal para o presidente da República, entregue-a você a ele. Tenho a carta guardada até hoje. Mudei-me, com Márcia, para a casa de meus pais. Depois de passar tanto tempo longe de todos e de viver momentos terríveis que jamais seria capaz de esquecer, eu buscava a segurança familiar e o convívio com aquelas pessoas tão próximas a mim. Além disso, foi uma decisão importante para minha formação cultural. Quando saí de Belo Horizonte, em 68, eu tinha uma certa ojeriza a Minas Gerais, que considerava um Estado chato. A tal da “mineiridade” me incomodava imensamente; eu a julgava atrasada, pesada e opressiva. Como fiquei muito tempo fora, percorrendo vários lugares, acabei perdendo meu sotaque original e, no Chile, ninguém me identificava como mineiro, tomando-me por paulista ou carioca. Eu achava isso ótimo. Convivendo na colônia brasileira em Santiago, eu sempre observava companheiros que eram muito marcados por suas regiões, como os baianos e gaúchos – e gostava de ter um “quê” de cosmopolita. Isso mudou com o tempo. Aos poucos, comecei a sentir curiosidade sobre minhas raízes culturais e, ainda no Chile, passei a me reaproximar de Minas Gerais. Auxiliado por meu irmão, que me mandava muitos livros, dediquei-me a ler os mineiros – Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Rubião, entre outros. A partir disso, desenvolvi uma nova visão sobre meu Estado, entendendo um pouco melhor essa “mineiridade” da qual tanto se falava. Eu sempre me perguntava se esta “alma mineira” tinha alguma coisa de particular, alguma consistência. E meu retorno a Belo Horizonte permitiu que eu continuasse a descobrir isso. Comecei a me apresentar mensalmente no quartel do bairro de Lourdes para assinar uma declaração de domicílio. Sempre que queria sair do Estado, eu era obrigado a avisar os militares com antecedência. Cerca de um ano e meio depois de meu retorno ao Brasil, quando liguei para o oficial responsável por minha ficha, ele me informou casualmente que eu não precisava mais prestar contas de meus movimentos, que eu fosse cuidar da vida. Pensei que aquele seria meu último contato com a repressão, mas, infelizmente, estava equivocado. Poucos anos depois, quando Márcia e eu voltávamos de uma breve viagem ao Chile (onde fôramos visitar seus pais), tive uma desagradável surpresa quando o funcionário do aeroporto no Rio de Janeiro digitou meu nome em seu terminal, durante os procedimentos de desembarque, e, assustado, me informou que meu nome estava listado com o aviso de “Procurado pela polícia”. Tentei esclarecer que aquilo era um equívoco, que minha situação legal estava resolvida, mas não houve como convencê-lo e fui novamente preso. Fui colocado em uma cela na qual já se encontrava Aguinaldo Silva, que fora detido em função de problemas com o jornal O Lampião da Esquina, que, por ser voltado ao público homossexual, era muito malvisto pela Ditadura. Fiquei no DOPS por 24 horas, até que, finalmente, um advogado da família esclareceu o mal-entendido e fui finalmente liberado. Capítulo X Movimento Inverso Com meu amadurecimento, parei de brigar com meu pai a todo momento por questões ideológicas ou políticas – mesmo que ele continuasse a argumentar (embora com menos empenho) que não ganharíamos nada em desafiar a “ordem estabelecida”. Em 1975, fiz vestibular para Psicologia na Universidade Católica e passei. Quando fui fazer a matrícula, eles exigiram, como de praxe, que eu apresentasse um atestado de bons antecedentes. Como eu tinha que viajar para o Rio, pedi que papai buscasse o documento para mim. À noite, ele me ligou de Belo Horizonte e disse que já estava com o atestado e que, na manhã seguinte, faria minha matrícula. No outro dia, porém, ele voltou a telefonar para mim: – Helvécio, o delegado me ligou e disse que seu atestado tinha sido expedido por engano e que isso poderia prejudicá-lo. Mandou que eu o devolvesse. Sempre correto, foi o que meu pai fez e, assim, fiquei impedido de matricular-me. Quando voltei da viagem, conversamos sobre as alternativas possíveis e ele teve a idéia de ligar para o irmão general, que nesta época estava morando em Belo Horizonte. – O Antônio resolveu o problema – comemorou papai. – É pra gente passar amanhã na casa dele, para irmos todos juntos à Secretaria de Segurança Pública para pegarmos o atestado. Fiquei feliz, mas intrigado. Como ele teria conseguido aquilo? Eu sabia que meu tio ocupava cargos importantes para os quais havia sido designado pelo Exército: além de dirigir a Rádio Inconfidência, ele pertencera ao Conselho Estadual de Telecomunicações. Por outro lado, ele jamais participara ativamente da repressão e nunca comandara um quartel (embora certamente tivesse consciência de tudo que acontecia). Assim, eu não entendia que tipo de contatos ele utilizara para fazer um acordo. Quando nos encontramos com meu tio, na manhã seguinte, fiz esta pergunta. – Foi fácil. Você só vai ter que assinar uma declaração. – Declaração? Que declaração vai ser essa? – Uma bobagenzinha. Uma declaração dizendo que você não tem mais nada a ver com aquelas coisas. – Eu não vou assinar nada disso! – protestei. – Mas é uma coisa pro forma! Recusei-me terminantemente. Eu não iria negociar o atestado com os militares, muito menos assinar qualquer tipo de declaração. Entendo que meu pai e meu tio, um juiz e um general, acreditassem que estaria tudo bem, que era mera formalidade, mas eles não compreendiam que aquela era uma formalidade perigosa – a repressão poderia perfeitamente expor a declaração em público e me apresentar como mais um “arrependido”, alegando que eu renegara minha participação na luta contra a ditadura. E isso era algo que eu não podia tolerar. Tentei explicar a questão para os dois, mas logo concluí que era inútil. Para eles, eu estava simplesmente sendo teimoso, orgulhoso. Virei as costas e fui embora, determinado a encontrar um outro meio de superar aquela inconveniente barreira. A solução foi bem mais fácil do que o esperado. Decidi ser objetivo e procurei o reitor da PUC-MG, a fim de explicar o que estava acontecendo. Foi o suficiente. Ele permitiu que eu fizesse a matrícula sem o tal atestado. Mais tarde, em conversas com papai, percebi que ele chegara à conclusão de que eu agira da forma correta e que sentira respeito por meus princípios. Acho que, a essa altura, ele finalmente havia se dado conta do que significava o porão e a forma terrível com que a repressão agia, sem dar satisfações a ninguém. De certa forma, não posso deixar de lamentar que ele tenha descoberto tudo aquilo de uma forma tão traumática. Sua crença na infalibilidade da justiça era simples reflexo de sua própria e enorme ética profissional. Minha decisão de cursar Psicologia foi algo, percebo hoje, perfeitamente natural, quase inevitável. Depois de ficar imerso por tanto tempo em um ideal social, coletivo, era apenas lógico que eu optasse por seguir um movimento inverso, voltando-me para algo individual. O que eu queria, naquele novo momento de minha vida, era fazer uma leitura sobre o ser humano, e não sobre a sociedade. Ao mesmo tempo eu não tinha a menor intenção de abandonar o cinema. Infelizmente, tive que mudar meus planos profissionais, pois, ao chegar em Belo Horizonte, encontrei um grupo de pessoas que tinha uma visão muito reduzida da prática cinematográfica. Muitas eram ligadas à crítica, mas nunca tinham pisado num set – e, ainda assim, sonhavam em fazer cinema. Eu não era um grande profissional, é verdade, mas elas simplesmente não pareciam falar do ofício que eu conhecia. Eu já havia filmado, sabia como formular um projeto de curta ou longa. Enquanto isso, elas falavam o tempo todo de “cinema mineiro”, o que me incomodava muito. Logo nas primeiras reuniões, manifestei minha discordância daquela visão: – Não existe cinema parisiense, mas sim cinema francês. Não existe cinema californiano, mas norte-americano. E eu definitivamente não penso em fazer “cinema mineiro”. Penso em fazer cinema brasileiro a partir de Minas Gerais, o que é bem diferente. Minas sempre teve o hábito de se fechar mais do que já era fechada geograficamente, e eu queria mudar aquilo. De todo modo, percebi que minhas perspectivas de fazer cinema autoral eram nulas naquele momento. Então resolvi procurar uma alternativa que pudesse me levar o mais perto possível do exercício cinematográfico. Algo que me permitisse voltar a trabalhar com câmeras e negativos. Algo que me possibilitasse contar histórias, seja lá de qual forma fosse. Decidi partir para a publicidade. Parte II O Cinema Capítulo XI Criando Criação Para alcançar meu objetivo de realizar filmes publicitários, decidi procurar as produtoras baseadas em Belo Horizonte. Depois de alguns testes, comecei a trabalhar na Exata Produções, onde passei a dirigir e produzir comerciais para clientes como a Caixa Econômica Federal. Posteriormente, entrei para a área de Rádio e TV de uma agência, o que era ainda melhor, já que me permitia não apenas dirigir, mas também roteirizar os filmes. A partir daí, realizei também inúmeros documentários institucionais. Não era um trabalho autoral, claro, mas era um exercício permanente de narrar por meio de imagens. O período de 74 a 77 foi extremamente cansativo, já que, pai de duas filhas, eu não podia me dar ao luxo de ficar parado e, assim, além de trabalhar durante o dia, continuava a estudar Psicologia à noite. E, como na época não havia o metrô e eu não tinha carro, era um longo e demorado trajeto diário de ônibus. Além disso, a publicidade, sempre exigente, esgota qualquer um. Fausto Prats era um colega da agência e ilustrador magnífico. Um de seus personagens, em particular, eu considerava divertidíssimo: uma galinha que protagonizava diversas charges que ele produzia praticamente para consumo próprio, como uma brincadeira. Propus a ele que fizéssemos um curta estrelado por aquela galinha e ele aceitou imediatamente, já que tinha muita vontade de ter experiência em animação. O processo foi, obviamente, muito trabalhoso, mas gratificante, por ser infinito em possibilidades. Chaplin já dizia que o verdadeiro cinema estava na animação, que não podia ser limitada por nada – atores, locações ou estúdios. Em certo sentido, ele foi profético, já que hoje caminhamos em direção a um cinema que não tem limites justamente em função da animação. Através dos efeitos visuais (que são uma extensão digital da técnica), o cineasta coloca o que quiser na tela, de dinossauros a enchentes – algo que, diga-se de passagem, eu mesmo viria a utilizar no curta O Casamento da Iara, quase 30 anos depois. Escrevi o roteiro e co-dirigi o filme, que mostrava a Galinha botando vários ovos, que, como planetas, formavam um sistema girando em torno do sol. De repente, a ave começava a sofrer e, depois de um esforço colossal, botava o “ovo-Terra” e o olhava com atenção. Neste instante, inseríamos uma montagem de fotos tristes da nossa História, como o Holocausto, as guerras e, é claro, o bombardeio do La Moneda. Finalmente, voltávamos para a Galinha que, chocada com o que vira, toma uma decisão prática – esmaga o planeta. Era um roteiro muito político. Mesmo com o conselho do tal coronel, aquilo era algo muito intenso em mim; eu não podia simplesmente virar as costas para tudo o que acreditava. Vivíamos ainda sob a ditadura militar e, por isso, temi que o curta viesse a ser censurado. No entanto, como usamos poucas imagens do Brasil (intencionalmente, para evitar a censura), o filme passou pelo filtro da repressão, embora sua mensagem fosse clara. Em 78, época em que o curta foi lançado, já estávamos empurrando os limites, tentando descobrir o ponto máximo ao qual conseguiríamos levar estes limites antes de sermos reprimidos. A animação foi realizada de forma básica, com traço sobre o acetato. Embora o profissional responsável pela animação (no caso, o Fausto) seja o principal diretor, estive presente durante todo o processo, sugerindo planos, enquadramentos e fazendo a decupagem ao seu lado – e, assim, dividimos os créditos de direção. Além disso, pesquisei em centenas de revistas, nacionais e estrangeiras, até encontrar as imagens mais representativas para ilustrar o que ocorria no “ovo-Terra”. Foram meses de trabalho. Por meio de minhas relações com as produtoras, consegui viabilizar a filmagem, pagando o mínimo possível pelo negativo, laboratório e a cópia final. Intitulado Criação, o curta trouxe-me de volta ao cinema de autor e possibilitou que eu estabelecesse contatos que seriam importantes no futuro, pois foi exibido em festivais e mostras pelo país (lembro-me de encontrar a Tizuka Yamasaki, por exemplo, que me disse ter visto o filme no Salão de Humor de Curitiba e, como membro do júri, ajudado a premiá-lo). Embora fosse um projeto pequeno, eu o inscrevi em diversos eventos, como o Festival de Cinema da Bahia, no qual foi muito bem recebido, chegando a ganhar um prêmio especial. Em Minas Gerais, também recebemos um prêmio em dinheiro da Secretaria da Cultura. Na época, havia a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens nacionais antes dos longas estrangeiros e, como Criação tinha apenas 5 minutos de duração, era um verdadeiro presente para os donos das salas, já que, além de breve, era engraçado (eles detestavam curtas com mais de 10 minutos, que geralmente irritavam o espectador e aumentavam a duração da sessão). Como os curtas recebiam 5% da bilheteria, era algo também interessante financeiramente para os realizadores – até que, tempos depois, os exibidores encontraram uma maneira suja de evitar a “divisão”. Passaram a produzir seus próprios “filmes”, horrorosos em sua maioria – o que levou o público a tomar antipatia pelo formato. Como eu não tinha produtora registrada na época do lançamento de Criação, usei a Filmes Geraes Ltda., do Victor Hugo de Almeida, para viabilizar a realização do curta. Foi somente depois disso que formei uma parceria no Grupo Novo de Cinema com o Tarcísio Vidigal, que se tornaria produtor de meus trabalhos nos 15 anos seguintes – uma parceria que, infelizmente, não acabaria bem. Capítulo XII Filmando o Inferno O primeiro filme que fiz já no Grupo Novo de Cinema foi o documentário em curta-metragem Em Nome da Razão. O projeto nasceu de uma idéia que tive quando ainda fazia Psicologia. Certo dia, tive acesso a umas imagens que um fotógrafo fez clandestinamente em um hospício de Barbacena, no final da década de 70. Fiquei chocado com o que vi e achei que era necessário – mais do que isso, urgente – fazer um documentário sobre o assunto. Participei, então, de uma reunião com a Associação Mineira de Saúde Mental e falei sobre esta idéia, pela qual eles se interessaram imediatamente. A Associação já vinha lutando há um bom tempo para denunciar os absurdos ao lado de Franco Basaglia, que era o principal líder do Movimento Internacional Anti-Manicomial e que, mais tarde, se tornaria fundamental na divulgação do documentário. Assim, fizemos uma parceria com a instituição, que, com sua influência, contribuiu para que conseguíssemos realizar o filme no mesmo hospício no qual as fotos que eu vira anos antes haviam sido tiradas. Porém, meu interesse por aquele “hospital”, em particular, não vinha apenas das fotos: eu queria rodar o projeto na cidade de Barbacena, que, graças justamente às instituições manicomiais que abrigava, havia se transformado num adjetivo para classificar “caras doidões”: – Ô, seu “barbacena”! – Era uma “ofensa” de tom brincalhão entre amigos. Aliás, Barbacena fazia parte não apenas de uma realidade terrível, como também do imaginário sobre loucura em Minas Gerais, a começar por Sorôco, Sua Mãe e Sua Filha, de Guimarães Rosa, e passando pelo famoso “trem da loucura”, que cruzava o interior do Estado em direção àquela cidade. Daí minha vontade de saltar aqueles muros, capturar imagens sobre o que ocorria lá dentro e trazê-las cá para fora, para o mundo. Essa era a intenção do documentário. Obter a autorização para filmar dentro do hospício foi complicadíssimo, e só a conseguimos graças a uma conjunção de fatores. A Associação Mineira de Saúde Mental e o Movimento Anti-Manicomial já vinham fazendo pressão sobre a Secretaria de Saúde há um bom tempo, discutindo especialmente o que ocorria em Barbacena e questionando o fato de que, como todos os hospícios públicos da época, aquela era uma instituição fechada, sem qualquer tipo de fiscalização externa. Encurralado, o Secretário decidiu permitir a entrada no “hospital” (sempre entre aspas) de um grupo de profissionais da área de Saúde Mental, além de jornalistas selecionados. Esta “excursão” ao hospício (da qual fiz parte) aconteceu nos meses finais de 1979 e deu origem a uma série de reportagens assinadas pelo Iran Firmino, do jornal Estado de Minas. Infelizmente, a situação que testemunhei era ainda pior do que aquela que vira nas fotos – aquilo era um caso espantoso, passando a idéia de ser uma instituição medieval, de ter concepção quase pré-Pinel. Voltei de Barbacena com um sentimento de urgência. Eu precisava filmar tudo aquilo rapidamente, antes que as portas voltassem a se fechar. Com a ajuda preciosa da Associação, levamos o projeto do documentário para o Secretário de Saúde, que, alegando não ter nada a esconder, o autorizou. Organizamos a operação em pouquíssimos dias. Muitas pessoas tinham receio de participar do documentário, tanto por motivos políticos como por insegurança: há todo um mito que cerca estes lugares. Convenci o Tarcísio de que era importante fazer o filme e, então, montamos uma equipe pequena, composta por apenas quatro pessoas – o diretor de fotografia (Dileny Campos), sua assistente (Maria Amélia Palhares), o técnico de som (Evandro Lemos) e eu. Tarcísio também esteve lá, mas voltou para Belo Horizonte para cuidar de outros detalhes da produção. Tínhamos que funcionar como uma equipe ágil, rápida, que pudesse circular bem pela instituição. Filmamos no hospício durante uma semana. Chegávamos às 6 da manhã e ficávamos até o momento em que a luz se tornava insuficiente para o trabalho. Era um processo muito difícil. Entrar num pátio daqueles era algo que nos consumia física e mentalmente. Assim que pisávamos lá dentro, éramos cercados por dezenas de pessoas que queriam nos agarrar, apalpar, abraçar. Não de uma forma agressiva, mas por pura carência. Eles estavam constantemente entrando na frente da câmera para pedir cigarros, que é algo sempre desejado em prisões e manicômios. Certo dia, bolamos uma estratégia. Abrimos uma série de maços e enchemos uma caixinha de papelão com cigarros. O Tarcísio, então, saiu numa direção distribuindo-os, sendo seguido pelos mais aflitos, e isto permitia que o equipamento se deslocasse na direção oposta. A situação tornava-se ainda mais complicada no pátio das mulheres, em função da agitação na qual elas se encontravam e da própria questão da sexualidade: éramos três homens em um espaço habitado por 800 mulheres. Já no pátio masculino, era a Maria Amélia quem causava agitação nos pacientes. Ao todo, o hospício abrigava 5 mil internos, um número muitas vezes maior do que sua capacidade ideal. Aquele era um verdadeiro pátio dos horrores. Apesar de Barbacena ser uma cidade muito fria, os pacientes caminhavam por ali quase nus, já que suas roupas iam sendo destruídas pelo uso e pela falta de troca ou lavagem. Nunca mais consegui esquecer aquele cheiro de morte, de excremento humano, de suor e de sofrimento. Eu chegava no hotel, à noite, e tomava longos banhos, certo de que aquele cheiro havia ficado grudado em mim para sempre – e, até hoje, sempre que assisto ao filme (algo que evito fazer), sinto o cheiro voltar, tão forte como na época. O mais assustador é que muitas daquelas pessoas estavam internadas sem a menor justificativa, indo parar ali em função de bebedeiras, brigas familiares ou outros motivos tão absurdos quanto estes. Era como se elas tivessem sido condenadas à prisão sem passar por um julgamento. E se você recebe a alcunha de “louco”, é alienado juridicamente e perde os direitos sobre você mesmo. Suponhamos que você tivesse uma crise e sua família decidisse te internar – a primeira coisa que faziam, no manicômio, era tirar todos os seus pertences e te obrigar a vestir um macacão azul, ou seja, imediatamente você perdia qualquer traço do que poderia ser seu e que iria te separar dos demais. Você estaria igual a todos os outros que estivessem dentro daquele macacão azul podre; não teria um lugar para guardar suas coisas, um armário, nada. Seria “dono” de uma cama velha em um dormitório deprimente. Isso seria mais do que suficiente para que o paciente avançasse em sua loucura – se ela estava apenas começando, iria se aprofundar; se ainda não existia, iria surgir, inevitavelmente. Percebam que estou me referindo apenas às pessoas que viviam sob aquelas condições sem terem cometido crime algum, já que não chegamos a filmar no manicômio judiciário, onde estavam presos os pacientes condenados e que exigia uma autorização especial para permitir nossa entrada. O pavilhão das crianças, em particular, era algo trágico. Havia meninos de apenas 5 anos de idade internados ali – muitos dos quais provavelmente passariam a vida toda naquele lugar, como uma senhora que aparece no filme, reclamando da ausência do médico: ela chegara ali aos 5 anos, e naquele momento já tinha 60. Era aterrador e incorreto do ponto de vista terapêutico. Uma pessoa que teve uma crise ainda tão jovem, que poderia se recuperar, perde quaisquer possibilidades de melhora ao ser enviada para um lugar como aqueles. Além disso, os responsáveis pela instituição insistiam em dizer que, naqueles pacientes, a sexualidade estava “adormecida”. Ora, bastava caminhar um pouco pelo pátio para perceber que isso era ridículo. O homossexualismo, por exemplo, era visível nos pátios masculino e feminino – e quando entramos neste último para filmar, uma mulher parou na nossa frente e começou a se masturbar. Aliás, fiz questão de ilustrar isso no curta, que enfoca um pré-adolescente tentando beijar uma garota. Sexualidade adormecida nada. E não era sequer necessário ser freudiano para perceber isso. Não “armávamos” nada para a câmera. Todos os flagrantes presentes no documentário eram justamente isto: flagrantes, momentos capturados sem que houvesse qualquer interferência de nossa parte, como a seqüência que mostra um dos pacientes enfiando a cabeça em uma fogueira e ateando fogo aos cabelos. É claro que nossa presença ali modificava o cotidiano daquelas pessoas, que vinham conversar conosco e perguntar o que estávamos fazendo. Eu tentava explicar para elas que queria mostrar para todos o que estava acontecendo ali dentro, mas elas pareciam não entender. E isso me incomodava terrivelmente – saber que estava filmando aqueles indivíduos sem que eles tivessem consciência do que isso significava. Era uma questão ética complicada, que resolvi interiormente tentando me convencer de que tinha que fazer aquilo, já que o objetivo do filme era melhorar as condições de vida daquelas pessoas e de outras que estivessem vivendo situações semelhantes. Eu me forçava a pensar assim para aplacar meu conflito interior. Eu me culpava por saber que, de certa forma, estaria me beneficiando com o filme e com a reação que este provocaria lá fora. Isso me constrangia muito, pois sempre me preocupo imensamente com os aspectos éticos do meu trabalho. De todo modo, resolvi que tentaria ao máximo fazer com que o filme se tornasse muito mais forte do que qualquer promoção que eu, em particular, pudesse vir a receber. Enquanto isso, alguns pacientes simplesmente se negavam a aceitar nossas explicações e desenvolviam suas próprias teorias sobre nossa presença no hospício: – Eu sei por que vocês estão fazendo isso! – declarou um homem, certo dia, se aproximando de nossa equipe – É pra quando alguém aqui morrer, vocês saberem quem foi que morreu! Mas nem todas as reações tinham fundo paranóico. Estabelecemos relações muito fortes com certos pacientes ali dentro. Lembro-me, particularmente, de duas senhoras que estavam no pavilhão dos doentes crônicos e que, por isso mesmo, tinham mais liberdade para sair de seu pátio. Andando sempre juntas, elas ficavam impressionadas com o fato de que não almoçávamos. Como queríamos fazer o trabalho render, comíamos apenas sanduíches. Elas foram ficando preocupadas e, um dia, quando terminamos os trabalhos e fomos para o carro, descobrimos duas goiabadazinhas sobre o capô, embrulhadas num papel. No dia seguinte, elas vieram perguntar se tínhamos comido os doces (tínhamos), que eram as sobremesas que haviam guardado para nos dar. O ato de gentileza das duas comoveu toda a equipe. Fizemos o trabalho de captação de som de maneira independente das imagens. O Evandro percorria os pátios e pavilhões colhendo pequenos depoimentos e, principalmente, registrando os intermináveis gritos e a cantoria dos pacientes. Aliás, as músicas que costumávamos ouvir lá dentro eram extremamente significativas e acabaram servindo como forma de pontuarmos o filme. Era comovente ouvir aquelas pessoas cantando versos como: “Jesus Cristo! Jesus Cristo! Jesus Cristo, eu estou aqui!” Ou: “Felicidade foi-se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque sei que a falsidade não vigora. A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à-toa Mas como é que a gente voa quando começa a pensar...” E, mesmo que eles não se dessem conta disso, havia uma imensa carga de trágica ironia em ver aqueles pacientes cantando o Hino Nacional. Por outro lado, talvez eles tivessem consciência da ironia, sim, já que, como também mostramos no filme, não há inocência alguma na canção que eles mesmos compuseram sobre o tratamento que recebiam no “hospital” administrado pelo famoso “Seu Manuel”: “Ô Seu Manuel, tenha compaixão! Tira nós todas dessa prisão! Estamos todas de azulão Lavando o pátio de pé no chão. Lá vem a bóia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar balão. E mais atrás vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa E mais atrás vêm as funcionárias Que são as putas mais ordinárias.” Seu Manuel, aliás, aparece no filme colocando um disco para tocar para os pacientes, mas optei por não mostrar seu rosto em nenhum momento, embora inclua seu depoimento em off. Sua posição era extremamente ambígua, diga-se de passagem. Apesar de fazer diversas críticas à instituição ao longo de Em Nome da Razão, ele a dirigia há muitos anos, convivendo com tudo aquilo, e nunca fizera nada para alterar aquela realidade. O cinismo, portanto, era enorme, já que as pessoas responsáveis pelo tratamento desumano dado aos internos assumiam, quando questionadas, uma postura de distanciamento, como se não fizessem parte daquilo – quando eram, obviamente, uma parte importantíssima. Seu Manuel não era o diretor do hospício, que era comandado por um médico, mas era ele quem lidava com o cotidiano da instituição: alimentação, organização interna, disciplina, e todos os outros detalhes referentes ao funcionamento prático do “hospital”, tendo, logicamente, um poder enorme. Conversamos, também, com o diretor, cuja postura diante de tudo aquilo era de cinismo. Sua responsabilidade moral, aliás, era maior do que a de seu subordinado direto, o Manuel, já que, como médico, ele tinha a obrigação ética de denunciar os crimes que ocorriam lá dentro. Em vez disso, ele se contentava em receber o salário de funcionário do Estado, ao mesmo tempo em que cuidava de pacientes endinheirados em sua clínica particular. Durante as entrevistas, evitei ao máximo provocar qualquer tipo de confronto direto com as pessoas responsáveis pelo manicômio, pois estava me sentindo numa corda bamba: a qualquer momento a autorização para filmar poderia ser cancelada. No entanto, é claro que elas sabiam que o documentário daria origem a sérios questionamentos. Além disso, nossa decisão de jamais citar, por meio de legendas ou locução, o nome de quem estava dando o depoimento tinha um objetivo claro: evitar que o espectador se sentisse direcionado com relação à identidade, à ideologia e aos interesses da pessoa que estava discursando. Queríamos que as conclusões viessem dos fatos apresentados, e não de preconceitos. Capítulo XIII O Horror da Lobotomia Poderíamos ter produzido outro documentário apenas com as denúncias dos pacientes contra os enfermeiros do hospício. Agindo como policiais, os funcionários estavam sempre reprimindo suas vítimas, atuando de forma brutal. Porém, eu não quis colocar isso no filme por uma razão estratégica: evitar que o comportamento dos enfermeiros desviasse a atenção dos espectadores de uma questão que era muito maior e dizia respeito à sociedade como um todo. Incluir casos particulares transformaria os funcionários em vilões saídos de Um Estranho no Ninho. Numa produção típica de Hollywood, era isso que aconteceria, o “conflito” seria reduzido a alguns personagens. De um lado, teríamos um McMurphy (o paciente rebelde que será lobotomizado) e, de outro, uma enfermeira Ratched (que detém o poder e o exerce de forma cruel). Ora, qualquer integrante da equipe do hospício de Barbacena poderia fazer o papel vivido por Louise Fletcher no ótimo filme do Milos Forman. Porém, eu não queria individualizar o conflito. O problema não se resume ao funcionário X ou à “enfermeira malvada”; era a instituição que levava as pessoas a agirem daquela maneira, colocando um ou dois homens para tomarem conta de um pavilhão que contava com mais de 50 pacientes – e ai de quem estivesse entre estes últimos, já que, para mantê-los sob controle, valia tudo: aplicar choques elétricos como punição ou aumentar a dosagem dos remédios para prostrar os rebeldes. Caso aqueles “profissionais” específicos fossem demitidos, seus substitutos acabariam agindo da mesma maneira. Além disso, ao evitarmos denúncias particulares, impedimos que as autoridades pudessem lavar as mãos com declarações do tipo já afastamos aqueles funcionários que estavam abusando de seus poderes. O papel de Em Nome da Razão era evidenciar um absurdo institucional, social, e não individual. Aquele manicômio demonstrava – como colocamos na locução do filme – todo o poder de opressão desenvolvido pelos humanos. Essa capacidade que nós temos de reduzir o mais fraco, o mais frágil, é inesgotável. Aliás, a degradação e a falta de quaisquer direitos básicos daquelas pessoas continuavam a ser visíveis mesmo depois de suas mortes, já que a maior parte acabava tendo seus cadáveres vendidos para faculdades de Medicina de todo o país, para serem utilizados em aulas de anatomia. Isso leva a outra questão, o famoso “Chá da Meia-Noite”, que foi denunciado por pacientes de várias instituições. A questão era simples e perigosa: Barbacena fornecia (ainda fornece) cadáveres para o eixo MG-RJ-SP, abastecendo faculdades destes Estados – o que deu origem a um verdadeiro comércio. Surgiram denúncias, então, de que funcionários de determinados hospícios, ansiosos para fazer negócio com instituições que precisavam de material para aulas de anatomia, davam um certo “Chá da Meia-Noite” para alguns pacientes, matando-os e vendendo seus corpos. Durante as entrevistas que conduzi para Em Nome da Razão, ouvi várias histórias relativas a isso, mas sempre de forma vaga, encoberta. Porém, eu jamais poderia fazer uma exposição baseada em rumores. Para incluir essa questão no documentário, teria que adotar uma linha investigativa, descobrir cadáveres enviados para instituições e averiguar como haviam morrido, o que constava da Certidão de Óbito e outros procedimentos que iriam provocar grande atraso no lançamento do filme e que, além de tudo, fugiam da nossa proposta principal. Para complicar, se aquilo de fato acontecia, seria praticamente impossível provar, já que não havia controle algum sobre as mortes dos pacientes, a começar da própria falta de interesse de seus familiares – se haviam sido abandonados ali, é porque não tinham ninguém que se importasse com eles. Escrito segundo a ótica de Foucault, o texto de Em Nome da Razão, que é ouvido ao longo do documentário com a voz de Roberto Marcondes, foi escrito pelo psiquiatra Antônio Soares Simone e por mim. Procuramos abordar a violência das instituições fechadas e sua relação com o tempo e o ócio. Como a postura de Foucault era a de liquidar com esse tipo de instituição, o roteiro ficou fortíssimo. Em certo momento, por exemplo, nos referimos ao louco como um “dissidente social”, alguém que não se adaptou ao esquema da maioria. Quando isso acontece, o indivíduo é visto como uma ameaça a ser segregada dos demais. Em certo período da história da União Soviética, os dissidentes eram tratados justamente dessa maneira. O escritor Alexander Solzhenitsyn (futuro Nobel de Literatura), por exemplo, foi mandado para um hospício na Sibéria. Os manicômios não abrigavam, portanto, apenas doentes mentais, mas doentes “políticos”. Em outro momento, o filme diz que o objetivo ali não é curar nem recuperar, mas controlar, referindo-se à prática odiosa da lobotomia, como se esta fosse uma cirurgia cosmética que visava apenas a evitar a aparência da loucura. Ora, algumas das teorias mais modernas da Psiquiatria percebem o “louco” como um emergente patológico; alguém em quem a loucura coletiva da sociedade acaba emergindo. Em outras palavras, confinar o paciente mental em uma instituição fechada é acreditar que aquele comportamento “estranho” está ligado estritamente ao outro, não tendo nada a ver com a humanidade ou com a própria sociedade (que, na realidade, produziu aquele doente). É claro que, durante as filmagens, eu não ficava racionalizando tudo o que via. Nosso objetivo era, simplesmente, o de trabalhar em grande velocidade, pois queríamos colher o maior tempo possível de material. Não que filmássemos sem critério algum, pois, como estávamos bancando a produção sozinhos, não tínhamos dinheiro para gastar com o negativo – e, como na época ainda não havia a alternativa do digital, tínhamos quer ser seletivos. Assim, seguíamos nossa intuição à medida que íamos conhecendo os pacientes e, aos poucos, selecionamos aquelas pessoas que aparecem no filme. Uma dessas pessoas foi a Sueli, que era candidata certeira para lobotomia, como Seu Manuel declara no filme. Os funcionários do “hospital” estavam loucos para submetê-la à cirurgia, porque, além de contestar as atitudes da administração, ela vivia fugindo. Aliás, para não tomar choque elétrico, ela desenvolvera uma estratégia grotesca, mas eficaz: passava fezes por todo o corpo, o que fazia com que os enfermeiros desistissem de agarrá-la. A maior parte dos pacientes passava a aceitar passivamente as humilhações sofridas, pois recebiam doses cavalares de antipsicóticos como Haldol, que os mantinha prostrados, sem capacidade de reação. E, ainda assim, havia indivíduos que conseguiam reagir, que não aceitavam, que protestavam. Percebi logo que Sueli era assim e, por esta razão, “dei” a câmera para ela, ouvi parte de sua história e a filmei cantando a ácida música dedicada ao seu Manuel (que, suspeito, ela ajudara a compor). Aliás, senti, na época, que a luz que Em Nome da Razão jogou sobre a Sueli foi fundamental para impedir que ela fosse lobotomizada. Infelizmente, o mesmo não aconteceu com outro paciente que aparece no documentário, o Adão. Durante as filmagens no hospício, o descobri preso numa solitária, com as mãos marcadas pelas algemas (uma imagem que usei no filme) e à espera da lobotomia, exatamente como alguém que estivesse no corredor da morte, à espera da execução. Conversei com ele, rodei aqueles planos que estão no curta, e percebi que era um sujeito extremamente manso, calmo. Mas, no caso dele, não houve tempo suficiente: quando estava montando o filme, recebi a notícia de que ele havia sido lobotomizado e enviado para casa. Decidi, então, que iria visitá-lo, pois tinha que incluir aquela tragédia no documentário. Antes de ser internado, Adão era operário do metrô de São Paulo, trabalhando em sua construção. Em certo momento, ele “surtou” e foi até a rodoviária, querendo comprar uma passagem pra Lua. Os atendentes começaram a rir, a sacaneá-lo; ele quebrou o guichê e agrediu algumas pessoas, sendo preso em flagrante. Em seguida, foi enviado para Barbacena, onde (supostamente) matou outro paciente que teria se sentado no lugar que “pertencia” a ele. (Brigas desse tipo eram comuns no hospício, já que aquelas pessoas, destituídas de todas as suas posses, passavam a supervalorizar o que tinham, como seus “lugares” no pátio.) Não sei se ele realmente matou alguém; o fato é que, antes um homem forte, após a lobotomia não conseguia amassar uma caixa de fósforos com a mão. Isso criou uma situação muito complicada para sua família, pois, além de não poder mais contribuir financeiramente, Adão se tornou uma boca a mais para alimentar, pois não tinha mais condições de morar sozinho. E o mais grave: para que ele fosse lobotomizado, alguém da família teria que assinar uma autorização. O “hospital” alegava que a irmã de Adão assinara o papel, mas ela negava. E ainda que ela houvesse autorizado, o fato é que a família não tinha condições de julgar as repercussões do procedimento. Ora, se o médico, que para eles é uma autoridade absoluta, afirma que vai fazer uma cirurgia que melhorará a condição do paciente, é óbvio que não será contestado. O que a família do Adão e as de tantos outros pacientes não sabiam é que a lobotomia, desenvolvida por um cientista português, sempre foi um procedimento puramente empírico – os cirurgiões não sabiam exatamente o que estavam lesando no cérebro; sabiam apenas que, ferindo determinadas regiões do sistema límbico, certos comportamentos seriam inibidos. É claro que não alertavam os familiares de que tais lesões eram irreversíveis e afetariam outras áreas que nada tinham a ver com o problema. A mesma falta de base científica se aplicava ao eletrochoque, que surgiu na Itália, em matadouros de porcos – que eram abatidos através de descargas elétricas. Um psiquiatra italiano observou que os animais que não morriam tinham seus comportamentos alterados e, a partir disso, resolveu transportar o “tratamento” para os humanos que apresentavam agitação excessiva. Cheguei a considerar a possibilidade de filmar um daqueles procedimentos, já que certamente teria permissão para isto, mas logo descartei a idéia: eu não queria colocar algo tão escatológico, uma tortura com eletrochoque, no documentário. E o fato é que, mesmo sem essas cenas, o filme já é muito forte e até hoje me emociona muitíssimo – não por questões ideológicas, mas sim humanitárias. Aliás, foi desse sentimento que veio o título do curta: ver seres humanos sendo tratados daquela maneira, “em nome de uma razão” que desconhece parte do nosso comportamento, era algo que me indignava. Este filme foi um verdadeiro cruzamento do meu estudo de Psicologia e da minha iniciação cinematográfica; um casamento do meu Cinema e da minha Psicologia. Foi com Em Nome da Razão que tomei a decisão irreversível de seguir fazendo Cinema e não enveredar rumo aos consultórios. Meu caminho estava irremediavelmente traçado. Capítulo XIV Entra Basaglia As filmagens aconteceram sem limitação alguma por parte dos responsáveis pelo hospício. Cheguei até mesmo a gravar uma entrevista com seu diretor, embora não a tenha utilizado na versão final do curta. Os problemas começaram durante a pós-produção. Enquanto montava o filme ao lado de José Tavares de Barros numa moviola do Belas Artes, recebi o comunicado de que a Secretaria de Saúde queria vê-lo antes de ser lançado. Além disso, funcionários do governo começaram a apresentar uma série de questões relativas ao projeto, como se quisessem ter controle sobre o material que eu havia produzido. Estávamos já em 1980, e em algumas semanas ocorreria o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que seria sediado em Belo Horizonte e contaria com a presença de Franco Basaglia, que abriria o Congresso e era a maior estrela mundial do Movimento Anti-Manicomial. Discutindo a questão com alguns membros da Associação Mineira de Saúde Mental, cheguei à conclusão de que o grande momento para estrear o filme seria na abertura do evento. E eles começaram a preparar tudo para que assim fosse. Continuei a trabalhar no documentário na surdina, sem mostrá-lo para ninguém. A estratégia era evitar que a Secretaria assistisse ao curta e tivesse a chance de censurá-lo de alguma forma (afinal, ainda estávamos sob uma ditadura). Depois que o exibíssemos no Congresso, o Secretário não poderia fazer mais nada para impedir sua divulgação. Basaglia amou o filme. Intelectual admirável e um indivíduo de grande amor pelo próximo, ele se comoveu com Em Nome da Razão e passou a falar dele em todos os eventos dos quais participava. Ele dizia que havia três hospícios que representavam a pior situação da humanidade: um ficava no Paraguai, o outro na África e o terceiro estava em Barbacena. A partir dos elogios incansáveis de Franco Basaglia, o filme passou a ser exibido no Rio, o que acabou de vez com a possibilidade de censura. Além disso, o Secretário provavelmente percebeu que sua situação era até favorável, já que fora ele quem permitira a realização do documentário. Aquele manicômio não havia sido criado por ele, representava uma situação crônica, com anos de existência. Mas ele poderia afirmar que “abrira os portões”. E, de certa forma, isso era verdade. O cinema não muda o mundo, mas Em Nome da Razão foi uma ferramenta importante com relação à situação em Barbacena e à luta contra esse tipo de instituição no Brasil. Em 2001 (mais de 20 anos após sua realização, portanto), fui chamado para testemunhar em um tribunal simbólico – formado por médicos, parlamentares e magistrados – que denunciou a rede de hospitais psiquiátricos, e, há alguns anos, o deputado Paulo Delgado, autor da Lei Anti-Manicomial, declarou em Brasília, durante sessão do Congresso, que o movimento antimanicômio divide-se em “antes” e “depois” de Em Nome da Razão, tamanho o choque que o filme provocou nas pessoas, que não acreditavam que aquilo pudesse acontecer. O problema da instituição fechada é este: a partir do momento em que um muro é erguido e um grupo de “párias” é jogado ali dentro, as pessoas que tiveram o privilégio de ficar do lado de fora não querem saber o que está ocorrendo do outro lado. Há um plano no filme que ilustra isso. Em certo momento, coloquei a câmera sobre o muro do “hospital” e mostrei, de um lado, a rua e a vida normal; e, do outro, aquela coisa espantosa que acontecia ali do lado e que a “rua” não via. Lamentavelmente, Barbacena não era um exemplo isolado. No curta, cito ainda o Galba Veloso e o Raul Soares, que também eram pavorosos, ainda que num grau menor. Aliás, eu quis rodar o filme de uma forma seca, bruta, pois julgava que aquela seria a única forma de captar aquelas imagens e apresentá-las da forma mais próxima possível do que eu havia visto, sem muita intermediação. Acho que acertei, pois muitas pessoas não conseguiam terminar de vê-lo e saíam aos prantos das salas de projeção (Isto também acontece comigo: recentemente telecinei o filme, melhorando o som, e tive dificuldades em conter a emoção). Outra coisa de que fiz questão foi encerrar o documentário de uma maneira que deixasse claro, para os espectadores, que os problemas persistiam. O discurso da irmã de Adão, que continuava mesmo depois do fade-out, ilustrava que a sessão podia ter acabado, mas que aquela tragédia seguia, infelizmente. Em Nome da Razão ganhou a Margarida de Prata da CNBB, o prêmio de Melhor Documentário das Jornadas de Salvador e do Festival de Lille, na França. Mas, muito mais importante do que isso, conseguiu levantar uma discussão que, somada a muitas outras, contribuiu para uma mudança real daquele cenário. O hospício de Barbacena ainda existe, mas foi bastante modernizado e não possui mais pavilhões fechados, além de permitir que os pacientes tenham suas roupas e armários para guardar seus objetos pessoais. A instituição possui, inclusive, um memorial do qual o filme faz parte. Além disso, sou freqüentemente chamado para participar de debates sobre o assunto. No caso específico desse curta, permito-me acreditar que o cinema conseguiu, sim, mudar ao menos uma pequena parte do mundo. Capítulo XV Drummond e Manuelzão Enquanto Em Nome da Razão seguia sua carreira, retornei aos filmes publicitários e, em meus poucos momentos de folga, trabalhava em alguns roteiros que poderiam render projetos interessantes no futuro. No início de 1981, a Secretaria de Planejamento do Estado de Minas Gerais me contratou para roteirizar e dirigir um curta-metragem que deveria girar em torno do processo de legalização dos lotes ocupados nas favelas de Belo Horizonte. O resultado foi Cidadão Favelado, que rodei no Aglomerado da Serra – exatamente onde, tempos depois, filmaria Uma Onda no Ar. Além do caráter informativo solicitado pelo governo, incluí no roteiro algumas seqüências de ficção nas quais mostrava as pessoas construindo barracos e fazendo reuniões para decidir questões comunitárias. Porém, embora seja autoral no formato que adotei para abordar o assunto, Cidadão Favelado foi produzido para cumprir uma finalidade específica. Era um filme de encomenda. Naquele mesmo período, o governo do Estado promoveu um concurso de roteiros que premiaria os vencedores com a quantia necessária para a realização de seus curtas. As principais exigências eram as de que os textos deveriam ser escritos sob pseudônimos, para evitar favoritismos, e teriam que homenagear uma de três figuras públicas: o ex-governador Milton Campos, o escritor Guimarães Rosa ou o médico sanitarista Carlos Chagas. Eu tinha particular interesse nos dois primeiros e, assim, apresentei dois roteiros: um, sobre Guimarães Rosa, foi escrito em parceria com Mário Alves Coutinho; e outro, sobre Milton Campos, concebi sozinho. Ambos foram aprovados. Infelizmente, não tive muito tempo para comemorar, pois logo recebi a notícia de que o concurso relativo ao ex-governador de Minas Gerais fora cancelado – e que meu roteiro fora o pivô da confusão. A vida de Milton Campos incluía um incidente que eu julgava bastante representativo de seu grande caráter e de seu amor pela democracia. Na época em que ele era governador, ocorreu uma importante greve de ferroviários em Divinópolis. Como estavam há meses sem receber seus salários, eles haviam bloqueado um entroncamento vital para a circulação de trens pelo interior do Estado, o que obviamente causava graves problemas. Finalmente, um de seus assessores sugeriu a Milton Campos que enviasse um trem militar para a região, para acabar com a greve. A resposta do governador tornou-se parte da história de sua gestão: – Não seria o caso de mandarmos um trem pagador? E foi isso o que fez: enviou um único funcionário com dinheiro suficiente para pagar os grevistas, sem qualquer tipo de escolta militar, e no dia seguinte o entroncamento estava liberado. O roteiro que escrevi abordava esse incidente de uma forma que considerei interessante. Em montagem paralela, eu mostraria imagens de um trem em movimento, como um tema recorrente, enquanto contava partes da vida de Milton Campos. No final, quando a locomotiva chegava a Divinópolis, encerrávamos o filme com o episódio do trem pagador. Dessa forma, frisaria a mensagem de que ele se recusara a usar a força policial contra pessoas que estavam simplesmente reclamando da falta de salário. O projeto foi aprovado quase por unanimidade, segundo fui informado. O problema é que o único membro da comissão que reprovou a idéia era justamente o “representante” da família do ex-governador. Sem compreender o conceito da inventiva cinematográfica, ele julgou que o curta passaria a impressão de que aquele fora o único episódio importante da vida de Milton Campos – e, assim, praticamente vetou o roteiro, obrigando a comissão a reabrir as inscrições. Apresentei um novo texto, sob outro pseudônimo, e voltei a ganhar. Dessa vez, no entanto, não houve obstáculo algum. Exceto, é claro, pelo fato de que eu não estava nada satisfeito com o novo roteiro. Bem mais convencional do que o projeto que eu apresentara inicialmente, Um Homem Público era um documentário que se concentrava principalmente em depoimentos de pessoas que haviam convivido com Milton Campos. A fim de enriquecer o filme, decidi que seria fundamental incluir uma entrevista com um homem que eu admirava imensamente e que poderia ter boas histórias para contar, Carlos Drummond de Andrade. Porém, eu sabia que Drummond detestava conceder entrevistas e, assim, quando consegui o número de seu telefone e liguei para sua casa, foi com imenso nervosismo que reconheci a voz que dissera Alô? do outro lado da linha. – É... hum... eu queria falar com o poeta? Falei, com aquela típica entonação de pergunta que os mineiros costumam empregar em situações semelhantes. – Sou eu. Ainda ansioso, expliquei que estava ligando de Belo Horizonte e que iria dirigir um filme sobre Milton Campos, e que se, talvez, não fosse muito incômodo, e ele tivesse um tempinho livre, poderia dar um depoimento. – Que dia você quer fazer isso? Ele respondeu, simplesmente. Quase caí para trás. Não era possível que pudesse ser tão simples! – Quando o senhor puder. – O dia que você quiser. Era possível. De todo modo, para garantir logo a entrevista, perguntei se poderíamos filmar na semana seguinte. – Tudo bem. Incrível. Eu realmente iria conhecer Carlos Drummond de Andrade. No dia marcado para a entrevista, chegamos ao prédio de Drummond logo pela manhã e tivemos uma grande surpresa. Enquanto descarregávamos o equipamento, um senhor já de certa idade se aproximou e perguntou: – São vocês que vieram gravar? O Drummond me chamou para participar da conversa, porque éramos todos muito amigos e também convivi com o Milton Campos. Reconheci imediatamente aquele homem e mal pude acreditar na minha sorte: era Pedro Nava. Filmamos uma conversa inesquecível entre os dois célebres mineiros. Na realidade, horas de um delicioso bate-papo recheado de anedotas narradas com uma graça que só poderíamos esperar de homens como aqueles. Em certo momento, por exemplo, Drummond nos contou que Milton Campos, ainda um jovem Juiz de Direito, foi enviado para uma cidadezinha que abrigava um “lugar de rendez-vous” (o que não era nada incomum). Porém, quando a ala mais conservadora do município procurou o recém-chegado juiz a fim de requisitar o fechamento da tal “casa de tolerância”, o futuro governador do Estado se negou a fazê-lo, argumentando que ela não interferia, de modo algum, no cotidiano da cidade. Então, com um sorrisinho maroto, Drummond virou-se para Nava e concluiu a história: – E ele bem que usava os serviços delas... Infelizmente, enfrentamos um sério problema durante a conversa. Drummond morava num edifício que ficava na Av. Rainha Elizabeth, onde Copacabana vira Ipanema, e o ruído de trânsito ali se revelou insuportável – a ponto de nosso técnico de som não conseguir filtrá-lo. Além disso, como o som do 16 mm (a bitola que adotamos) já era muito deficiente, o diálogo dos dois tornou-se dificílimo de se ouvir. Há algum tempo, o Ângelo Oswaldo, que foi Secretário de Cultura do Estado, pediu uma cópia da transcrição dos diálogos e a publicou num caderno especial do jornal Estado de Minas, tamanho o interesse existente pela rara conversa. Tenho, aliás, muita vontade de retornar a este material preciosíssimo, histórico, e tentar melhorá-lo de alguma forma através dos recursos disponíveis atualmente. (Atualmente, as imagens estão com o Tarcísio Vidigal, no Grupo Novo de Cinema.) De todo modo, a verdade é que não gosto de exibir Um Homem Público, e não só pela má qualidade do som, mas porque não o considero bem resolvido; a idéia original era bem melhor. É um filme longo, com mais de 20 minutos, e, além desse diamante representado pelo bate-papo de Drummond e Navas, tem imagens históricas do Palácio da Liberdade, onde o corpo de Milton Campos foi velado. Mas não há como escapar do fato de que não gostei desse curta já na época em que o finalizei. E essa constatação representou um enorme aprendizado. Foi importante perceber que o diretor não é um ser onipotente, que há fatores que estão além de seu controle e, portanto, é preciso aprender a ter domínio sobre o maior número possível de elementos, justamente para contrabalançar aqueles que escapam. Foi um erro grave, por exemplo, não ter visitado (ao lado do técnico de som) a casa do Drummond com antecedência para avaliar as condições de se gravar lá dentro. As más condições de trabalho são mortais, e Um Homem Público me ensinou isto: não se pode aceitar menos do que o ideal, mesmo que, no processo, sejamos obrigados a dar as costas para boas oportunidades. É preciso perceber que o que vai ficar registrado é aquele material que foi rodado – e, se este não fizer jus à importância dos fatos ali armazenados, a culpa será sua. É fundamental saber intervir na hora certa, mas esta confiança só vem com a experiência e com o tempo. No caso da entrevista com o Drummond e o Nava, eu era bem mais jovem e estava diante de dois ídolos que já haviam aceitado fazer algo que raramente faziam. E, assim, fiquei intimidado e não tive coragem de convidá-los a rodar a conversa em outro lugar. E paguei um alto preço por minha hesitação. O outro projeto aprovado naquele concurso, como já disse antes, envolvia um roteiro que escrevi em parceria com Mário Alves Coutinho, João Rosa, que, ao contrário de Um Homem Público, saiu exatamente como eu queria. Tinha uma proposta interessante: pegar um personagem clássico de Guimarães Rosa, o Manuelzão, e usá-lo para falar sobre o próprio escritor. Meu encontro com Manuelzão, aliás, foi fabuloso, amizade à primeira vista. Mais do que um grande personagem do Guimarães Rosa, ele era uma figura humana sensacional. Tão sensacional que, na medida em que as filmagens iam acontecendo, fui abandonando o esquema pré-estabelecido pelo roteiro e deixei que Manuelzão tomasse conta do curta com sua exuberância e conduzisse a narrativa. Para mostrarmos o tipo de material no qual Guimarães Rosa se baseara para escrever Grande Sertão: Veredas e Manuelzão e Miguilim, fomos a Andrequicé, onde Manuelzão morou em seus últimos 22 anos de vida, e rodamos alguns planos nos quais ele aparecia contando um “causo” para uma roda de amigos. Em seguida, o levamos a Belo Horizonte para filmarmos outras cenas. Como Guimarães Rosa fizera Medicina, convidamos o Jota D’Ângelo para fazer uma participação na qual apareceria dando uma aula de anatomia quando, de repente, o Manuelzão entraria no quadro, como se fosse chroma-key, mas “ao vivo”. Outra seqüência da qual gosto muito é aquela em que ele aparece andando a cavalo em plena Av. Afonso Pena, enquanto Paulo César Pereio recita um texto lindo que fazia parte de uma entrevista que o Guimarães dera ao Curt Meyer-Clason, que traduzia suas obras para o alemão e por quem ele tinha grande admiração e respeito: “Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão.” Na época, Manuelzão tinha 76 anos de idade e, quando fomos buscar o cavalo que a Polícia Militar aceitara nos emprestar para a cena, o responsável pelos animais ficou preocupado e me chamou num canto: – Esse velho não vai conseguir montar nesse cavalo. Os nossos cavalos são muito ariscos. – Você está falando de um vaqueiro com muitos anos em lombo de cavalo – respondi. Não deu outra: assim que Manuelzão montou no animal, este pareceu entender quem estava sobre a cela e aceitou tranqüilamente os comandos do velho sertanejo. Curto muito João Rosa, que, acredito, dá uma boa idéia sobre quem foi Guimarães Rosa – não apenas o escritor, mas o homem, o embaixador e o médico. E, no processo, também pude homenagear outra lenda inesquecível: Manuel Nardy, o Manuelzão. Capítulo XVI A “Intromissão” de Spielberg Eu ainda estava no Chile quando comecei a ter o desejo de fazer um filme para crianças. A idéia era contar uma história que falasse um pouco sobre a sociedade de consumo e ilustrasse, para o público infantil, que havia muitas coisas melhores do que simplesmente comprar os brinquedos da moda. A premissa inicial girava em torno de um marciano de cabelos vermelhos que caía na Terra e que, para conseguir trocar o motor de sua nave, se juntava a um grupo de meninos. As crianças passavam a desenvolver várias atividades a fim de arrecadarem o dinheiro necessário e o marciano chegava mesmo a trabalhar em uma fábrica que produzia os motores. O filme discutiria, de uma forma leve e bem-humorada, a “mais-valia” do sistema capitalista – como, em uma sociedade voltada para o consumo, alguém pode produzir algo que não tem condições de comprar. Era uma brincadeira, obviamente, mas a idéia partia desse conceito. Já no Brasil, escrevi o roteiro, que tinha o título Martinho Contra o Dr. Kap. Martinho era o marciano e o Dr. Kap era, claro, o vilão (cujo nome era uma alusão a “capital”). Apresentei o projeto para a Embrafilme, que o aprovou. E foi então que Steven Spielberg surgiu para atrapalhar tudo. Certo dia, quando já estava trabalhando nos primeiros detalhes da produção, o então presidente da Embrafilme, Carlos Augusto Calil, me ligou: – Helvécio, acho que você vai ter que trocar seu projeto. – Hein? Como assim? – Eu acabei de voltar da Europa, onde assisti a um filme chamado E.T. Calil me explicou rapidamente qual era a história do longa de Spielberg e, antes que ele chegasse ao fim, eu já sabia que Elliott e seu amigo espacial haviam liquidado Martinho e o Dr. Kap. Por mais diferentes que fossem os conceitos por trás dos filmes, a impressão inevitável seria a de que eu havia tentado parodiar (ou pior, plagiar) a superprodução norte-americana com uma espécie de E.T. no Brasil. Ainda frustrado, concentrei meus esforços na concepção de outra idéia, já que, de um modo ou de outro, obtivera a aprovação da Embrafilme. Convidei uma colega de publicidade, a redatora (que mais tarde se tornaria autora de diversos livros para crianças) Ângela Santoro, com quem escrevi o argumento de A Dança dos Bonecos durante um único fim de semana, numa espécie de jorro criativo. Em seguida, liguei para o Tairone Feitosa, um roteirista que morava no Rio e era fabulista por natureza. Alagoano, ele possuía um talento incrível para a criação de personagens fantásticos e, juntos, fizemos a segunda versão do roteiro. Finalmente, reescrevi o terceiro e último tratamento. Aliás, este é um hábito que tenho até hoje: ainda que o roteiro não seja de minha autoria, sinto sempre necessidade de reescrever a versão final, de me “apossar” da história e vesti-la com meu olhar e minhas impressões particulares. Não consigo trabalhar com um roteiro como se este fosse algo de outra pessoa; tenho que tomá-lo como se fosse meu (o que não quer dizer que os demais colaboradores não sejam devidamente creditados e reconhecidos por sua participação no projeto, claro). Com o último tratamento pronto, apenas troquei o Martinho Contra o Dr. Kap por A Dança dos Bonecos. É óbvio que demos entrada formal no projeto, para solicitar o financiamento, mas ele já havia sido aprovado. Recebemos uma miséria de dinheiro. A Dança dos Bonecos fazia parte de um convênio entre a Embrafilme e o governo de Minas Gerais, que tinha o objetivo de corrigir um problema grave na produção cinematográfica brasileira: como acontece ainda hoje com qualquer lei de incentivo à cultura, os financiamentos voltados para produções artísticas se concentravam basicamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Numa tentativa de reverter este quadro, nós, realizadores de Minas, passamos a fazer pressão sobre o governo mineiro para que este firmasse um convênio com a Embrafilme, comprometendo-se a arcar com a metade dos gastos de cada projeto aprovado, sendo que a estatal se encarregaria da outra metade. Esses projetos eram escolhidos por comissões formadas por pessoas da Embrafilme que viajavam até Belo Horizonte para analisar as propostas. Martinho Contra o Dr. Kap (posteriormente substituído por A Dança dos Bonecos) foi o quinto longa-metragem a ser aprovado pelo convênio, mas foi feito com pouquíssimo dinheiro, exigindo um esforço enorme. Em valores atuais, creio que deve ter custado o equivalente a 200 mil dólares. O segundo filme dessa “leva” foi Idolatrada, do Paulo Augusto Gomes, que produzi. Embora fosse ligado a outras pessoas, Paulo Augusto procurou o Grupo Novo de Cinema (Tarcísio e eu) por acreditar que teríamos mais capacidade de lidar com um projeto maior. Montamos a equipe, armamos a produção e realizamos o filme. O exercício do ofício do cinema tem muitas facetas, é uma atividade na qual a criação está ligada ao orçamento, à viabilização desta verba e à administração eficaz dos recursos. É impossível, num país como o Brasil, Argentina ou México, existir um cineasta que não tenha uma boa noção do quanto um projeto (curta, médio ou longa) significa em termos de dinheiro e planejamento. E, como eu ainda não tinha produzido nenhum longa-metragem, concluí que participar de Idolatrada representaria um aprendizado fundamental para minha carreira, como de fato aconteceu – tanto que repeti a experiência pouco tempo depois, em Um Filme 100% Brasileiro (1985), do José Sette, que o Grupo Novo também produziu. Sempre gostei de escrever certos personagens especificamente para determinados atores ou atrizes. Em A Dança dos Bonecos, criei a dupla formada por Mr. Kapa (sim, o Dr. Kap do roteiro anterior acabou sobrevivendo de alguma forma) e seu assistente Geléia pensando em entregá-los ao Wilson Grey e ao Kimura Schettino. Mr. Kapa e Geléia eram o motor da história e representavam uma mistura de personagens típicos do cinema e de artistas mambembes. Apesar de sua longa e brilhante carreira no cinema (até hoje detém o recorde de ser o ator que participou do maior número de filmes brasileiros), Wilson Grey só havia sido protagonista de um único longa, O Segredo da Múmia (1982), de Ivan Cardoso (mais tarde, no mesmo ano em que lancei A Dança dos Bonecos – 1986 – ele seria co-protagonista de outra produção de Cardoso, As Sete Vampiras). Conheci o Grey quando produzi Um Filme 100% Brasileiro e, observando seu tipo inconfundível, com seu sapatinho bicolor, bigodinho malandro e um jeito extremamente gentil e educadíssimo, logo percebi que gostaria de trabalhar com ele – e o fato é que não haveria ator melhor para viver o Mr. Kapa, que era adorável, carismático, mas um fracassado com ilusões de grandeza. Enquanto Geléia mostrava-se sempre prático, preocupando-se em conseguir comida, seu chefe insistia em levar tudo para o lado da “nobreza do artista”. Aliás, eu brincava muito com o Grey sobre essa característica do personagem e sua semelhança com o sonho do ator brasileiro de fazer um cinema cheio de recursos – um desejo muito distante da realidade. Isto era ilustrado pela própria vida do Wilson Grey, que tinha feito mais de duas centenas de filmes e era um sujeito pobre. Mr. Kapa vivia mergulhado em seus delírios de grandeza, em sua ânsia de ter seu talento apreciado. Há um momento na história, por exemplo, em que, depois de ganhar uma boa quantia graças ao show dos bonecos, ele olha para aquele monte de cédulas com a mais absoluta certeza de que os aplausos foram para ele – uma cena que o Grey faz muitíssimo bem, por sinal. Mr. Kapa sempre se levava a sério, mesmo que os outros não o fizessem. Já sua caracterização envolvia várias citações. Sua maquiagem, por exemplo, envolveu muita pesquisa. Como ele era um saltimbanco e usava recursos teatrais e do cinema mudo, decidimos investir num visual expressionista, carregando na palidez e no próprio desenho do rosto – ao mesmo tempo em que Grey buscou trazer certos maneirismos típicos de Bela Lugosi. Aliás, ele contribuiu imensamente com o filme expondo suas idéias e improvisações. Quando íamos rodar a cena na qual o Jack Domina (vivido por Ezequias Marques) soprava fumaça de charuto no Mr. Kapa, o Grey sugeriu: – Aí eu posso tentar dar uma baforada na cara dele e, como não vou conseguir, jogo a guimba nele! Fizemos assim e o resultado ficou engraçadíssimo. Além de um grande companheiro de trabalho (como contarei mais adiante), Wilson Grey era um ator fabuloso. Kimura Schettino visitava sempre a nossa produtora. Ator rude (no melhor sentido da palavra), era um sujeito muito terno e foi por isso que batizei o personagem de Geléia: como seu intérprete, era duro por fora e mole por dentro. Outro elemento que emprestei do próprio ator para criar o personagem foi sua mineiridade, que não aparecia apenas em seu sotaque, mas também no seu comportamento. Além disso, como é um ator muito físico, Kimura improvisava bastante durante os ensaios, e muitas de suas gags acabaram sendo levadas para o filme, como a brincadeira de enfiar o pé no penico ao invadir a casa da Ritinha para roubar os bonecos. Para permitir que a química entre Mr. Kapa e Geléia se tornasse visível, hospedei os dois atores na mesma casa em Biribiri, onde as filmagens aconteceram. Como Kimura admirava muito o Grey, ele acabou se tornando uma sombra do ídolo, seguindo-o para todo lado – e isso era perfeito, já que se refletia o que deveria acontecer na história. Para escolher a intérprete de Ritinha, a dona dos bonecos que dão título ao longa, realizamos testes com mais de cem crianças no espaço em que hoje funciona o Cine Belas Artes, mas que na época era o DCE da UFMG. Sempre parti do princípio de que os testes deveriam causar algum tipo de constrangimento nas crianças – embaraços que, mais tarde, elas teriam que enfrentar no set: interpretar em frente à câmera, sob fortes luzes e com várias pessoas em volta, olhando. Assim, eu poderia ver até que ponto cada uma conseguiria manter a espontaneidade diante de tais circunstâncias. Mais tarde, durante a seleção do elenco de O Menino Maluquinho, aprendi também a avaliar as relações familiares dos pequenos atores. Reduzi o grupo até chegar a seis finalistas e, então, optei pela Cíntia Vieira, que era filha de uma poetisa, Flausina Márcia (que hoje trabalha na Secretaria de Estado da Cultura). Cíntia era uma menina extremamente independente; foi a primeira garota de 9 anos que conheci que já tinha a chave de casa. Logo percebi que ela teria condições de ficar fora de Belo Horizonte por algum tempo, longe da família. Ela exibia essa segurança, além de ser bastante sensível e inteligente, percebendo as coisas sempre de forma rápida. Já para o papel do avô, minha intenção era escalar o Dionísio Azevedo, de quem eu gostava muito. Porém, ele estava fazendo um trabalho para a televisão e não pôde aceitar o convite – algo que só ficou definido quando já estávamos em Biribiri, rodando o filme. Ficamos numa situação difícil. Biribiri ficava próxima a Diamantina, que é um local muito isolado no qual não chegava avião, e os contatos com Rio e São Paulo tinham que passar por Belo Horizonte, provocando grande demora. Além disso, tínhamos poucas opções para o papel, que exigia um ator mais velho e com disponibilidade para passar dois meses no interior de Minas. Quando tudo começava a ficar desesperador, o Eid Ribeiro, que era meu assistente de direção, descobriu, em Diamantina, um italiano baixinho, meio gordinho e narigudo, que parecia um boneco do Álvaro Apocalypse. Dono de uma casa de máquinas, este senhor havia feito cinema na Itália, nos anos 20, participando de produções do cinema mudo na época do Mussolini. Eid sugeriu que eu o conhecesse e fomos a Diamantina. Assim que bati os olhos no sujeito, que se chamava Ângelo Dettori, percebi que encontrara o avô de Ritinha – isto é, até que ele começou a falar com um português carregado de sotaque, incompreensível. No entanto, além de ter o físico ideal para o papel e de ser bastante simpático, ele morava ao lado de Biribiri, e, num plano de filmagem que estava sendo alterado a cada hora, ter um ator à mão era algo fundamental. Decidi contratá-lo e dublá-lo na pós-produção. Outro que optei por dublar com outra voz foi o Rui Polanah, que faz o papel do Destino. Dono de uma figura impressionante (que já havia sido utilizada por John Boorman em A Floresta de Esmeraldas, de 1985), Rui tinha uma voz que não combinava com seu físico, pois era delicada demais e não dava a dimensão que eu queria para o personagem. E, como o Brasil tem um elenco de dubladores fantásticos, não pensei duas vezes antes de resolver utilizar estes talentos para conferir novas vozes ao Rui e ao Ângelo Dettori. Para tornar o filme ainda mais divertido, escalei a Cláudia Jimenez, que pouco havia feito em cinema, e não me arrependi. Com seu timing cômico impecável, ela trouxe boas risadas para o longa, como ao improvisar, no momento da filmagem, a fala em que diz: “Não cospe, não!” para o Kimura – que realmente havia cuspido acidentalmente nela. Aliás, tudo pode servir de referência na concepção e no desenvolvimento de um personagem: de incidentes ocorridos no set a detalhes tirados de pessoas reais. Eu tinha um vizinho, por exemplo, que falava o tempo todo cobrindo a boca com a mão, envergonhado por um problema que tinha nos dentes. Quando fui ensaiar com o Derly De Lea, que fazia um dos capangas do Jack Domina, notei que ele tinha uma dentadura meio solta e sugeri que ele incorporasse aquele hábito do meu vizinho – algo que ele fez de forma engraçada, conferindo maior realidade a um personagem que poderia ter se tornado insignificante. O filme foi totalmente dublado na pós-produção. Como não tínhamos condições de levar uma câmera blimpada e uma equipe de som direto para Biribiri, optamos por fazer o som-guia e dublar os diálogos posteriormente. O som direto exige uma câmera silenciosa e sincronizada com o gravador, igualmente silencioso (o Nagra), que capta os sons da filmagem que serão trabalhados e levados para a tela – e isso exigiria um investimento muito maior. Embora alguns atores adorem dublar (como a Patrícia Pillar, que diz que isso permite que ela descubra coisas novas para suas personagens), o grande problema desse recurso é que perdemos muito do frescor da interpretação, mesmo com a referência do som-guia através dos fones, orientando os atores com as pausas e inflexões utilizadas originalmente. Para os dubladores profissionais isso é fácil, mas eu temia pelos membros inexperientes do elenco, como a Cíntia e o Kimura. Felizmente, todos se saíram bem. Capítulo XVII A Cidade-Fantasma Biribiri é uma cidade-fantasma. E, assim como escrevi a história para o Wilson Grey e o Kimura Schettino, pensei o tempo todo em Biribiri enquanto finalizava o roteiro. Eu havia visitado a cidade algum tempo antes, quando fora a Diamantina para o carnaval, e ficara absolutamente encantado. Inicialmente, o lugarejo girava em torno de uma companhia de tecidos e, quando esta encerrou suas atividades, a família Mascarenhas, que era dona da fábrica e da cidadezinha, decidiu conservá-la intacta. Quando vi aquilo, pensei: É um cenário maravilhoso de cinema! E isto se tornou realidade quando eles aceitaram nos emprestar a cidade, na qual filmamos e moramos por dois meses. Além de uma única família que ainda morava ali, éramos os únicos habitantes de Biribiri. E, embora estivesse trabalhando com algumas pessoas muito mais experientes do que eu, sentia-me como uma espécie de prefeito do lugar, já que, como diretor do filme, era o responsável por tê-los levado para lá. Com o passar do tempo, a tensão foi ficando enorme. Ao todo, éramos umas 90 pessoas e muita gente pirou, pois era uma situação atípica: como estávamos literalmente morando nos cenários, quando terminávamos de filmar no fim do dia, todos eram obrigados a continuar olhando para as mesmas caras, que eram as únicas disponíveis. A estrada de Biribiri até Diamantina era péssima e tínhamos poucos veículos à disposição (meu carro simplesmente desmontou com o uso constante e, quando voltamos para Belo Horizonte, tive praticamente que jogá-lo fora. Era uma época heróica de se fazer cinema, pois colocávamos o que era nosso na produção.) É claro que o isolamento não afetou a todos. O Grey, por exemplo, levava a situação na maior tranqüilidade e passava boa parte de seu tempo vago jogando sinuca com alguns companheiros. Enquanto isso, eu estava extremamente concentrado na produção e, por ser meu primeiro longa-metragem, insistia em me preocupar com os mínimos detalhes – até mesmo aqueles que já estavam sendo supervisionados por outras pessoas. Certa noite, durante uma reunião de produção, começamos a ouvir uns gemidos. Saímos correndo da casa na qual nos encontrávamos e demos de cara com uma cena surreal: um técnico de som que viera do Rio estava de quatro no chão, uivando enlouquecidamente para a Lua. E não estava sozinho: dois ou três outros integrantes da equipe estavam claramente fora de seus estados normais (algo que percebi quando um deles se aproximou de mim e, apontando para as enormes pedras que cercavam a cidade, gritou: Olha os dinossauros! Olha os dinossauros!). Logo descobrimos a causa do delírio coletivo. Aquele pequeno grupo, com muito tempo nas mãos, havia decidido fazer uma excursão pelos arredores de Biribiri e acabou encontrando uma verdadeira plantação de cogumelos. E um deles decidiu fazer um chá “especial”. O resultado podia ser visto nas ruas antigamente tranqüilas do pequeno distrito de Diamantina – um bando de malucos correndo de dinossauros e outras criaturas invisíveis durante boa parte da noite. Aquele não foi um incidente isolado. O isolamento e a falta de “lei” deixavam as pessoas entregues a si mesmas, e as conseqüências eram imprevisíveis. Em certa ocasião, uma figura conhecida (cujo nome fica em segredo) me procurou, pedindo desesperadamente algum comprimido que a fizesse voltar “ao mundo real”. Sugeri que fosse dormir. Mas nem sempre os problemas eram causados por comportamentos imaturos. Um dos momentos mais dramáticos que vivemos em Biribiri foi provocado por doença. O Paulo Henrique Pessoa (mais conhecido como “Ganso”), que executava a direção de arte do Anísio Medeiros, contraiu pneumonia – algo que já seria grave em um lugar sem assistência médica. Para piorar, ele tinha apenas um pulmão, o que trouxe enorme preocupação a todos. Felizmente, conseguimos levá-lo para Diamantina a tempo e ele se recuperou sem sofrer maiores conseqüências. Tínhamos uma equipe muito solidária e unida, mas o clima começou a ficar pesado por um outro motivo, além do já citado isolamento: os atrasos constantes no pagamento. Os técnicos de cinema brasileiros são escaldados por experiências desse tipo, e poucos podem dizer que nunca levaram o cano de alguma produção. Como o Tarcísio Vidigal ficava em Belo Horizonte durante a maior parte do tempo, eu tinha que enfrentar sozinho o mau humor (justificado) da equipe, explicando sempre que ele estava pressionando a Embrafilme para que esta pagasse o que ainda nos devia – o que de fato estava acontecendo. Esta falta de verba atrapalhava imensamente a produção, pois, muitas vezes, não tínhamos o dinheiro para pagar algo que seria necessário mais à frente, nas filmagens (depois que concluímos os trabalhos em Biribiri, fomos obrigados a suspender a produção durante quatro meses, por absoluta falta de condições financeiras, até que finalmente pudemos rodar as cenas restantes em Belo Horizonte). Uma figura fundamental para acalmar os ânimos de nossa equipe foi Wilson Grey. Ao longo das oito semanas que passamos em Biribiri, ele viajou para o Rio em apenas duas ocasiões e, em ambas, retornou com presentes para todo mundo – para os homens, trouxe desodorantes e barbeadores; para as mulheres, camisolas. Era um galanteador, uma figura sedutora e, quando a situação se tornava crítica, colocava-se sempre ao meu lado durante as reuniões feitas para tranqüilizar o grupo. Enquanto eu explicava que estávamos batalhando pelo pagamento e que jamais ficaríamos com o dinheiro da equipe (algo que, infelizmente, acontecia em outras produções), o Grey salientava que também estava apostando no projeto e que tinha plena confiança em nossa honestidade. E mais: em várias ocasiões, ele chegou a dizer que não precisávamos nos preocupar em pagá-lo imediatamente, pois poderíamos acertar a dívida quando tudo estivesse mais tranqüilo. Devo muito ao Grey por ter conseguido levar A Dança dos Bonecos até o final. Há uma cena, no filme, em que Mr. Kapa e Geléia se apresentam para os moradores da cidadezinha na qual a história se passa. Minha referência, ali, era o cinema neo-realista italiano, com rostos verdadeiros na tela que se tornam bonitos e expressivos apenas por se deixarem filmar. Como Biribiri não tinha habitantes, fomos procurar esses figurantes nas roças da região e reunimos um grupo de rostos impressionantes. Como estávamos lidando com pessoas sem a menor experiência em cinema, tínhamos que produzir alguma coisa que provocasse o riso e o brilho nos olhos, típicos de quem está assistindo a algo encantador, mágico – e acabamos encenando parte do espetáculo do próprio Mr. Kapa, com o Grey e o Kimura se apresentando ao vivo. Foi um sucesso; todos adoraram o pequeno show daqueles personagens tão picaretas. Desenvolvemos uma relação bacana com os figurantes. Nós os buscávamos, os divertíamos, os alimentávamos e ainda pagávamos um pequeno cachê. Em troca, eles trouxeram algo valioso para o filme – o realismo inimitável de uma cidadezinha abandonada, já que aquele abandono era, infelizmente, o contexto no qual eles próprios viviam. Obviamente, eu precisava de alguém que ficasse com a Cíntia o tempo inteiro e que fosse sua referência entre os adultos. Como ela ficaria hospedada na mesma casa e conviveria com essa pessoa durante toda a filmagem em Biribiri, concluímos que teria que ser uma mulher, de preferência alguém que também pudesse ajudá-la a memorizar o texto de forma natural, sem mecanizá-lo. A escolhida foi Ana Donnard, uma atriz muito interessante de teatro que, mais tarde, se afastaria dos palcos e se mudaria para a França, para fazer doutorado em estudos célticos. Com o passar do tempo, Cíntia praticamente a “adotou” como mãe, reservando, para mim, o papel de “pai”. No entanto, isso não significa que ela seguia todas as nossas instruções. Dona de uma forte personalidade, Cíntia sabia ser firme na hora de dizer “não”, como ilustra um curioso episódio. Havia uma cena, em A Dança dos Bonecos, na qual Ritinha, a personagem de Cíntia, deveria nadar pelada em uma cachoeira. Quando o dia da filmagem foi se aproximando, ela começou a ficar nervosa e a dizer que não queria tirar toda a roupa. Tentei argumentar: – Cíntia, pensa bem: uma menina que está sozinha no meio do mato e resolve nadar na cachoeira não iria entrar na água de calcinha, iria? Foi um drama. Ela tinha 9 anos de idade, mas se mostrou irredutível. Um dia antes de rodarmos a seqüência na Cachoeira dos Cristais (um lugar lindo, por sinal), ela protestou com a Ana: – Será que o Helvécio está pensando que eu não tenho nada? Ao perceber que era uma questão importante para ela, resolvi parar de insistir. E ela fez a seqüência de calcinha. Acho que as cachoeiras são lugares mágicos. Além do problema enfrentado com Cíntia, outra importante seqüência situada em uma queda d’água acabou se tornando a mais difícil de ser realizada, embora, no filme, ocupe pouco tempo: a aparição da Iara. Sempre considerei a lenda da Iara interessantíssima em função de sua sensualidade e do perigo que esta representava ao atrair suas vítimas para debaixo d’água. E, quando comecei a pesquisar sobre o assunto para preparar-me para A Dança dos Bonecos, descobri algumas coisas interessantes. Este mito sempre foi vendido como parte da cultura indígena, o que é uma grande mentira. A Iara foi uma adaptação das sereias européias, feita pelos escritores românticos, surgindo principalmente em José de Alencar (em O Tronco do Ipê), que a transportou dos mares do hemisfério norte para as águas doces dos nossos rios, ou seja, ela nunca foi um mito indígena, mas sim literário, combinando, em sua eclética mistura, a vertente negra da lenda de Iemanjá. Ainda assim, a Iara passou a fazer parte do folclore nacional, dando origem a centenas de histórias fantasiosas sobre suas supostas aparições em cidades ribeirinhas – muitas delas registradas por Câmara Cascudo. Além disso, ela se incorporou até mesmo à natureza, sendo usada para batizar um tipo de vegetação do Rio Cipó que, em função de seu aspecto ondulante, passou a se chamar Cabelo de Iara. Para interpretar a personagem, escalei uma atriz lindíssima, de olhos cor de água, que chegou a filmar uns testes que ficaram maravilhosos. Porém, a poucos dias de rodarmos sua participação em uma cachoeira de Biribiri, a garota pirou e foi se trancar em um mosteiro de São Paulo. Para substituí-la, analisei várias fotos de outras atrizes, ainda em Biribiri, mas concluí que não teria calma para tomar a decisão naquele momento. Além disso, como a seqüência protagonizada pela Iara representava um episódio à parte na história, decidi filmar aquelas cenas em uma cachoeira perto de Belo Horizonte, na segunda etapa da produção. Meses depois, já com outra moça escalada para o papel (a modelo Agada Chaves), enfrentamos outro contratempo. Como sempre acontece entre outubro e janeiro, Minas Gerais estava sempre debaixo de fortes temporais. Finalmente, quando a chuva estiou, reuni a equipe e fomos para uma cachoeira de Itabirito, ou, ao menos, tentamos ir. Ao chegarmos na região, a estrada havia desaparecido. Fui obrigado a adiar mais uma vez a seqüência. Semanas depois, quando já havia localizado uma bela cachoeira na descida da Serra de Teresópolis, tive que trocar a atriz mais uma vez e contratei a modelo Divana Brandão – e, pela primeira vez, tivemos sorte com relação à Iara. Divana acabara de fazer um filme com os americanos na Amazônia (Selva Viva, de 1986) e tinha feito um aplique enorme nos cabelos, até a cintura, que herdamos da outra produção. Mas eu gostaria de ter tido a tranqüilidade necessária para elaborar melhor a participação da Iara. Essa frustração sempre me faz lembrar de uma de minhas conversas com Manuelzão sobre Guimarães Rosa. Como já havia respondido a inúmeras perguntas sobre sua relação com o escritor, o sertanejo soltava algumas frases prontas e, assim, um dia me disse: – Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão: Veredas e, com o que sobrou, escreveu Sagarana. É claro que havia uma imprecisão cronológica nessa teoria, já que Sagarana foi escrito bem antes de Grande Sertão: Veredas, mas esta história me veio à mente porque o material que juntei sobre a Iara na época de A Dança dos Bonecos dava para fazer muito mais do que aquilo que foi parar no filme. E, repetindo de certa forma o que o Manuelzão disse, com o que sobrou daquela experiência, acabei fazendo O Casamento da Iara, quase 20 anos depois. Capítulo XVIII A Arte de Apocalypse Para criar os bonecos que davam título ao filme e que seriam, sem dúvida alguma, os elementos mais complicados da produção, decidi procurar um mestre da área: Álvaro Apocalypse, do Grupo Giramundo. Contei a história do longa para o Álvaro e expliquei que a idéia era que os três bonecos teriam sido feitos à mão pelo avô da menina, que, por sua vez, costurara as roupas que eles usavam. Este era um conceito importante, anticonsumista, que viera do roteiro Martinho contra o Dr. Kap. Partindo dessas instruções, Álvaro foi desenhando, com aquele seu traço genial, todas as idéias que tinha para os bonecos, até que chegamos às versões finais dos três personagens (durante as filmagens, percebemos que um deles, o Tiziu, era a cara do Milton Nascimento e, na seqüência em que ele tocava o pianinho, mal conseguíamos conter o riso ao nos lembrarmos do Bituca). Mas definir o visual dos bonecos era apenas o começo. Complicado mesmo seria encontrar uma forma de fazer com que eles se mexessem. Álvaro Apocalypse dominava a manipulação teatral. O problema é que, no teatro, há um acordo tácito com a platéia, que vê os fios que erguem os bonecos, mas os ignora; enxerga os manipuladores vestidos de preto, mas os abstrai. No caso do cinema, não há este acordo. Se a criança vir o fio, vai dizer: Olha lá o fio!, e o filme desmonta. No nível de realismo adotado pelos filmes, a hipótese de que a manipulação possa ser percebida é inaceitável. Expliquei este problema para o Álvaro, que nos convenceu a realizar alguns testes com fios e fundos pretos. Como já era esperado, não funcionou – e o próprio diretor de fotografia, o ótimo Fernando Duarte, disse: – Helvécio, estes fios vão sempre ser vistos por causa da luz. Não há como tirar a luz dos fios. Começamos a discutir soluções e o Álvaro, com toda a sua vasta experiência, passou a me mostrar possíveis formas de manipulação: em cantos de parede; locais nos quais eu poderia esconder o manipulador; mesas vazadas sobre as quais poderíamos colocar os bonecos; e assim por diante. Ao mesmo tempo, assisti a vários filmes para pesquisar o assunto: Os Muppets, O Cristal Encantado (1982) e, de modo geral, qualquer outro trabalho do Jim Henson, que foi nossa principal referência. Construímos 18 bonecos – seis versões de cada um dos três personagens vistos no filme. Cada uma delas era adaptada para circunstâncias e usos diferentes: bonecos de vara; outros que eram manipulados com uma espécie de revólver que o próprio Álvaro havia inventado (e que era ótimo para se trabalhar em quinas do cenário); alguns que só foram feitos da cintura para cima; e, finalmente, aqueles movidos por cordéis. Além, é claro, dos três bonecos inteiros que não se mexiam e eram usados, portanto, nas cenas que não requeriam qualquer tipo de movimento. A partir daí, passamos a criar situações para o filme e o próprio Álvaro sugeriu várias delas. Foi um processo contínuo de descoberta, tanto de minha parte, que não entendia nada de manipulação, quanto da parte dele, que nunca havia feito cinema. Fomos aprendendo na prática, descobrindo as possibilidades que cada versão dos bonecos nos oferecia. Infelizmente, Álvaro não pôde trabalhar diretamente como manipulador, já que o Giramundo tinha uma série de viagens agendadas, mas, antes de partir, formou uma turma formidável de profissionais, entre os quais se encontravam Paulinho Polika (que mais tarde faria comigo o curta Vida de Rua) e Ivana Andrés. Trabalhamos com o princípio de que ninguém ali deveria se comportar como um mero técnico, mas como atores que deveriam passar suas emoções para os bonecos. E sinto que foi esta atitude que ajudou a enriquecer tanto o filme. De todas as seqüências envolvendo os três personagens, a mais complicada foi justamente aquela que deu título ao filme. Para rodarmos a dança, tivemos que dividir os trabalhos em duas etapas. Primeiro, filmamos o quarto real, em Biribiri, e mais tarde o reproduzimos em Belo Horizonte, dentro do estúdio. A diferença é que o quarto cenográfico estava um metro e meio acima do chão, permitindo que os manipuladores ficassem sob as tábuas do assoalho – algo que, para um filme de baixíssimo orçamento, era enlouquecedor. Assim, através das frestas das tábuas, cada ator pôde movimentar seu respectivo boneco. Sempre fui muito econômico em meus trabalhos, buscando filmar o que precisava, e só. Geralmente, jogo pouca coisa fora durante a montagem e a única exceção foi, justamente, A Dança dos Bonecos, talvez por ser meu primeiro longa. Ainda assim, esse “desperdício” aconteceu apenas nas seqüências protagonizadas pelos atores de carne e osso, e não naquelas com os bonecos, já que, sempre que estes se encontravam em cena, buscávamos ser absolutamente precisos, pois a manipulação exigia um esforço tremendo. Mesmo assim, eram necessários muitos takes, uma vez que várias coisas podiam sair erradas: a mão do manipulador poderia aparecer ou um fio arrebentar, por exemplo. Em alguns casos, tudo corria maravilhosamente bem e, quando achávamos que iríamos conseguir encerrar o plano com sucesso, o olho do boneco travava. Era impossível prever o que me obrigaria a dizer: Corta! Apenas um obstáculo tornou-se insuperável durante a feitura dos bonecos: os movimentos da boca. A única opção era aquele corte duro no maxilar, não havia uma forma mais maleável, fluida, de mexermos a boca mecanicamente, embora o Álvaro tenha chegado a construir alguns protótipos cujos queixos se moviam de maneira menos artificial. Finalmente, decidi que os personagens não falariam. No roteiro, os bonecos teriam diálogos, mas não cheguei a escrevê-los porque logo percebi, trabalhando com o Álvaro, que não seria viável mostrá-los conversando. Em vez das falas, resolvi que eles poderiam se comunicar através de uma linguagem particular, e propus ao Anderson, do Tangram, que ele criasse esses sons. Ele trabalhava bastante com crianças e fazia experiências com os mais diversos tipos de ruídos e, a partir daí, a língua dos bonecos foi nascendo, como se da própria vontade que eles tinham de expressar alguma coisa. Além dos barulhinhos emitidos pelos personagens, a história conta com uma série de efeitos sonoros engraçadinhos que sublinhavam a ação e que foram concebidos pelo Nivaldo Ornelas, que fez toda a trilha. Era um trabalho delicado, porque esse tipo de efeito pode arruinar um filme se usado à exaustão (e, de fato, cortamos muitos deles). Depois que o longa ficou pronto, fiquei com os três bonecos (as versões de corpo inteiro, que não mexiam) por muitos anos – e minhas três filhas do primeiro casamento, Juliana, Andréa e Bárbara (às quais o filme é dedicado), brincaram muito com eles. Certo dia, como eles já estavam começando a apresentar sinais de deterioração, minha atual esposa, Simone, levou-os para que fossem restaurados no Giramundo, e a Tereza Veloso (esposa do Álvaro e co-fundadora do Teatro de Bonecos) quis guardá-los no museu do grupo. Como sabíamos que eles ficariam mais protegidos sob os cuidados de seus criadores, não nos opusemos. Capítulo XIX Trabalho em Equipe A relação entre o diretor e o fotógrafo deve ser de total cumplicidade. É fundamental que exista uma confiança absoluta neste profissional, pois o filme passa primeiro por seus olhos – e, embora estejamos acompanhando as imagens pelo monitor, há uma série de detalhes que só o diretor de fotografia irá perceber. Para trabalhar comigo em A Dança dos Bonecos convidei um dos melhores do ramo, Fernando Duarte, que trouxe consigo outro talento que logo se transformaria num dos mais requisitados da área, Walter Carvalho (que operou a câmera). Comentava-se muito que Fernando era um fotógrafo lento. Discordo. Para mim, ele é refinado, capaz de observar as sutilezas mais delicadas. Precisamos de uma sombrazinha aqui, ele dizia, indo recortar pessoalmente o papel que seria colocado na frente da luz para criar o efeito que desejava. Dificilmente A Dança dos Bonecos poderia ter tido alguém melhor naquela função. Quando vou escolher o diretor de fotografia para um projeto, converso com aqueles que pré-selecionei a fim de avaliar a maneira com que eles percebem o filme, a luz, o grão e a textura. A primeira relação do espectador com o filme se dá pelo trabalho do fotógrafo e, por isso, é importantíssimo que este esteja em sintonia com o diretor. O cinema é um ramo no qual estamos sempre aprendendo. Todo profissional que vem trabalhar comigo em uma produção traz consigo tudo o que absorveu de suas experiências anteriores e, desta maneira, me oferece a oportunidade de conhecer novos olhares e métodos. E, ao fim do projeto, também acaba levando algo que aprendeu comigo. Assim, todos saem ganhando. Sempre discuto todas as seqüências com meus companheiros de equipe. Como faço meu dever de casa permanentemente, chego no set com a decupagem já estabelecida e sei o que pretendo fazer. A partir daí, analiso com o fotógrafo a ordem de planos, a luz, o clima a ser criado e por aí afora. As sugestões que recebo e que considero boas, absorvo sem problemas. E não só do diretor de fotografia, mas do eletricista ou da pessoa mais simples da equipe. Ouço sempre – o que não quer dizer que aceite tudo, obviamente. Se não achar que a idéia acrescentará algo ao filme, a descarto. Mas gosto muito de trabalhar com gente competente e não tenho o menor medo do talento alheio. Conheço alguns cineastas que parecem temer constantemente que o brilho de um auxiliar possa ofuscá-los, sem perceber que todo talento a serviço do filme acabará se refletindo de forma positiva sobre seu diretor. No Brasil, nos beneficiamos muito de nossa forma nada rigorosa de encarar as convenções técnicas e estéticas – ao contrário do cinema norte-americano, que é uma indústria com comportamentos muito enraizados e pouco flexíveis. Enquanto nos concedemos a liberdade de criar com relação às posições de câmera, por exemplo, os profissionais de Hollywood muitas vezes são limitados pelas exigências constantes de se apegarem ao consagrado, ao clássico, ao “certo”. Em A Dança dos Bonecos trabalhamos diferentes temperaturas de cor para as seqüências que se passam no interior e na capital do Estado. No interior havia toda uma natureza idílica, romântica e encantadora, com uma luz mais agradável e quente. Já a capital, Belo Horizonte, apresentava uma realidade dura, de concreto, com cores mais frias e acinzentadas. Este é o papel da fotografia: ajudar a contar a história através da luz e das cores. Há um plano neste filme que foi especialmente complicado de realizar e do qual gosto muito. A câmera começa perto de uma pequena queda d’água e passa a subir, mostrando o personagem Destino, que, agachado perto da correnteza, recolhe uma flor que havia sido descartada pela Iara. Continuamos a subir até que, finalmente, enquadramos Ritinha, que está caminhando sobre uma ponte, ao fundo. Além de bonito, este plano funciona como elemento narrativo ao ressaltar a ligação entre aqueles três personagens. Sempre crio planos em função da geografia que encontro nas locações. Há duas formas de se raciocinar em nosso métier: a primeira resume-se a estabelecer inicialmente a posição da câmera e, então, trazer todos os demais elementos para a frente daquele quadro pré-definido, como se a câmera fosse algo totêmico e diante da qual faremos um ritual. Neste caso, você estabelece sua mise-en-scène arbitrariamente, em função do equipamento. A segunda forma é perceber a geografia, a movimentação dos atores durante os ensaios e, a partir daí, definir as posições de câmera – e é assim que prefiro trabalhar. Sempre busquei uma narrativa orgânica, visual. Não é à toa que um dos planos que mais admiro na história do cinema é aquele da festa, em Interlúdio (Notorious, de Hitchcock, 1946), no qual a grua sai do alto de uma escadaria, em um plano geral, e desce até a chave que se encontra na mão de Ingrid Bergman, quase num plano-detalhe. Este tipo de movimentação de câmera, além de provar a genialidade de Alfred Hitchcock, é a mais pura evidência de que o cinema é intraduzível para qualquer outra linguagem, que o nó central da linguagem cinematográfica não pode ser transportado para nenhuma outra arte. Isto é algo que aprendi durante minha formação e que busquei, dentro de minhas limitações, desenvolver ao longo da carreira. Em meus roteiros, jamais indico movimentações de câmera, tamanhos de lente ou outras observações do tipo – informações que só defino depois de visitar as locações. É claro que a opção de criar os planos a partir do cenário (natural ou criado em estúdio) pode originar problemas complicados. No exemplo que citei, em A Dança dos Bonecos, a grua, pesadíssima, teve que ser montada sobre as pedras, o que não foi nada fácil. Outro elemento do qual me orgulho, em A Dança dos Bonecos, é a direção de arte. O caminhãozinho do Mr. Kapa, em particular, demonstra todo o talento que tinha o Anísio Medeiros, um grande cenógrafo que, infelizmente, já faleceu. Ainda hoje guardo as pranchas feitas por ele, durante o planejamento do caminhão – cuja realização coube ao Ganso (Paulo Henrique Pessoa), que também acrescentou vários detalhes. A concepção visual de um filme envolve infinitos elementos – muitos deles, bastante sutis, acabarão passando desapercebidos pela maioria dos espectadores. Poucas pessoas notam, por exemplo, a figura no capô do veículo, uma miniatura do próprio Mr. Kapa. Além disso, a belíssima pintura foi um trabalho em conjunto do Gilberto de Abreu e do Roberto Silva, que se inspiraram na mítica do faroeste americano e seus “vendedores de elixires e fórmulas mágicas” – tudo adaptado, é claro, à verve nordestina do Tairone Feitosa (cujo pai fora artista mambembe). Mas é claro que, como tínhamos um orçamento reduzido, procuramos aproveitar ao máximo o que encontrávamos pronto para ser usado. Para rodar a seqüência do sonho megalomaníaco do Mr. Kapa, por exemplo, utilizamos um bar localizado no bairro São Lucas, em Belo Horizonte, que reproduzia o interior de um castelo. Da mesma forma, o escritório das empresas Domina era, na realidade, o Palácio da Justiça – tanto sua fachada quanto parte do interior. A reunião vista no longa foi filmada na sala em que os desembargadores se reúnem. Já as escadarias e elevadores pertenciam ao Automóvel Clube, que, convenientemente, ficava ao lado do Palácio da Justiça. Saber utilizar o que se tem à mão é fundamental para qualquer cineasta brasileiro, desde que, obviamente, o filme não seja prejudicado por isto. Capítulo XX Vaquinhas de Manga Assim como anos mais tarde seria O Menino Maluquinho, A Dança dos Bonecos é um filme anticonsumo, apresentando o argumento básico de que a fantasia não pode ser reproduzida ou industrializada, e que, por isto, o brinquedo artesanal possui uma mágica que aquele fabricado aos milhares jamais possuirá (aliás, até mesmo a trilha sonora que acompanhava a história era, em sua grande parte, uma releitura de canções populares e de domínio público). Curiosamente, um fabricante de brinquedos paulista, Emerson Kapaz (que mais tarde se tornaria deputado e participaria da campanha de José Serra para a Presidência), foi a uma sessão de lançamento do filme, em São Paulo, interessado na possibilidade de lançar os bonecos no mercado. Quando a projeção chegou ao fim, ele se aproximou de mim e brincou: – Poxa, esse filme foi feito contra mim! É claro que ele se referia também à incrível semelhança entre seu sobrenome e o de Mr. Kapa, mas a mensagem da história não passou desapercebida por ele, que ainda disse: – Antes do início da sessão, eu estava a fim de produzir esses bonecos, mas cheguei à conclusão de que é impossível fazer isso. A própria idéia do filme inviabiliza essa possibilidade. E concluiu: – Além do mais, eu não quero virar o Jack Domina. Coincidência ou não, nessa mesma ocasião a mãe de uma garotinha que chorava desconsoladamente veio me perguntar se os bonecos seriam comercializados, pois a menina queria tê-los em casa. Fui obrigado a dizer que não: uma produção que se propõe a ridicularizar os dollies, que perdem toda a magia na industrialização, não poderia se contradizer daquela maneira. Não é à toa que o grande vilão de A Dança dos Bonecos é, na realidade, um conglomerado, uma corporação, que, com sua busca incessante pelo brinquedo mais “fascinante” e vendável, assassina a fantasia ao nos dizer como devemos brincar com seus produtos, como se estivéssemos meramente reproduzindo uma dança mecanizada e seguindo os mesmos passos de todas as outras pessoas que irão usar aquele mesmo item. O brinquedo eletrônico, automatizado, reduz imensamente a capacidade criativa da criança – e isso é gravíssimo, já que brincar é algo fundamental na descoberta do mundo, na relação das pessoas com as coisas, na invenção e na fantasia que se transfere para um boneco. Lembro-me de brincar com vaquinhas feitas com mangas espetadas em palitos de fósforo. Lembro-me de que construíamos cidadezinhas a partir de lixo e pedrinhas. É claro que ficávamos doidos para ganhar um brinquedo industrializado, mas isso não nos impedia de brincarmos com o que tínhamos à mão. Porém, não podemos ser nostálgicos; a roda da história não gira para trás. Mas perdeu-se muito em todo esse processo. A Dança dos Bonecos incluía, também, uma crítica ao meio publicitário, no qual eu ainda ganhava meu pão – afinal, o orçamento do longa foi tão pequeno que sequer me remunerei. De todo modo, durante o terceiro ato há um comercial apresentado pelo Chico Pinheiro (que na época trabalhava na filial mineira da Rede Bandeirantes) e com locução da Valéria Grillo, e através do qual fiz uma crítica aos filmes-vitrine, que funcionam apenas como um chamariz para a venda de produtos relacionados ao longa e seus astros – um tipo de produção representado nos dias de hoje pelos trabalhos da Xuxa. Nestes projetos, a vitrine supera o próprio espetáculo; o produto é mais importante do que o filme. É claro que fazer merchandising em um longa-metragem não é, por definição, algo reprovável – afinal, o cinema é um arte cara que precisa desse tipo de apoio financeiro para existir. Porém, por que não fazer isso de forma orgânica, sem agredir o espectador com verdadeiras pausas para os comerciais? Capítulo XXI Simone e o Elixir Em um longa-metragem, geralmente é uma péssima idéia apresentar um personagem importante depois da metade da projeção. Por outro lado, na vida real podemos conhecer a qualquer momento pessoas que virão a se tornar fundamentais em nossa existência. Se este livro fosse um roteiro, eu teria apresentado Simone já na página 2, nem que para isso tivesse sido obrigado a usar um flash-forward ou algo no gênero. Como é uma biografia, no entanto, só me resta ficar preso à cronologia correta. Eu a conheci em 1987, em São Gonçalo do Rio das Pedras, uma pequena cidade ao norte de Diamantina. Estávamos ambos passeando: ela com a irmã, e eu com Márcia e nossas três filhas. Era um cenário maravilhoso, com cachoeiras fabulosas. Ficamos todos hospedados na mesma pousada e, com o passar dos dias, ficamos amigos e trocamos endereços de contato. Como ela estudava Comunicação e pretendia fazer estágio em alguma produtora de vídeo dali a algum tempo, sugeri que levasse seu currículo na VT-3, empresa que eu já mantinha ao lado de meu irmão Carlos Alberto (e na qual somos sócios até hoje). A essa altura, meu casamento com Márcia já enfrentava uma forte crise, pois há muito tempo tornara-se impossível ignorar as enormes diferenças entre nossos temperamentos e interesses pessoais. Em retrospecto, percebo claramente que o Golpe de 73, no Chile, foi responsável por conferir uma grande sobrevida à nossa relação, que dificilmente teria se mantido por tanto tempo sob condições normais de existência. Com 20 dias de casados, no entanto, tornamo-nos náufragos em meio a uma situação ameaçadora, e tínhamos, como tábuas de salvação, apenas um ao outro – e, na clandestinidade, uma das últimas coisas que irão te preocupar é seu casamento, já que, ante a possibilidade de prisão e morte, todos os outros problemas se tornam menores. Da mesma forma, quando conseguimos sair do Chile, acabei sendo preso pelos militares brasileiros, o que mais uma vez contribuiu para que mantivéssemos nossa ligação. A partir de minha libertação, porém, passamos a levar uma vida normal e no cotidiano afloraram nossas diferenças culturais, de formação e de objetivos. Ainda assim, tomar a decisão de separar-se não é algo fácil. Interiormente, eu já percebia que nosso casamento estava acabado, mas o fato de termos três filhas me fazia hesitar – a referência básica da criança é ter a mãe e o pai, juntos, amando-a. Quebrar essa estrutura sem provocar o sofrimento dos filhos é quase impossível, por mais que, hoje em dia, seja grande o número de casais divorciados. Mas, depois de certo período, decidi que manter aquela situação seria algo ainda mais desgastante para todos. Saí de casa em 29 de fevereiro de 1988, um ano bissexto – o que, de certo modo, foi uma bênção. Afinal, eu não seria obrigado a me lembrar desta data todos os anos. Alguns meses depois da separação, voltei-me a encontrar com Simone, que passou a estagiar na VT-3, fazendo edição – cargo que desempenhou até começarmos a nos relacionar, quando, então, concordamos que seria melhor que ela deixasse a produtora para evitarmos desgastes em nosso namoro. Nossa relação tem sido sempre muito rica e forte, aprofundando um companheirismo também profissional que não tive em meu primeiro casamento. Dividindo interesses similares, acabamos criando a Quimera Filmes em 1990, e, desde então, Simone vem produzindo todos os meus trabalhos em longa ou curta-metragem (com exceção de O Menino Maluquinho, como explicarei posteriormente). Apesar de todo este envolvimento, nos separamos por um breve período, ainda no início da década de 90, mas logo percebemos que queríamos mesmo ficar juntos – e finalmente nos casamos, em 94 (até então, continuávamos a morar em casas separadas). Nosso primeiro trabalho juntos foi O Elixir do Pagé (lançado em 1989), realizado em meio a todo aquele processo gostoso de descoberta que o início do namoro envolve. Realizado ainda através da VT-3, o projeto foi produzido por Simone, que também atuou no curta. A idéia de realizar O Elixir do Pagé (assim mesmo, com a grafia da época) surgiu em 87, quando meu irmão Carlos Eduardo me presenteou com o livrinho que incluía aquele poema engraçadíssimo e muito bem construído – o mesmo livro visto no filme, diga-se de passagem. Além de seu tom satírico e repleto de invencionismo, o poema era bastante diferente de tudo aquilo que acostumamos a associar a Bernardo Guimarães, que normalmente é lembrado por A Escrava Isaura, O Seminarista e suas obras mais “comportadas”. O que nem todos sabem é que ele, como mineiro típico (nasceu e morreu em Ouro Preto), tinha seu lado oculto, clandestino, ao qual deu vazão através de poemas sacanas como O Elixir do Pagé e A Origem do Mênstruo (que não é tão bom quanto o primeiro). No final de 88, começamos a nos preparar para as gravações e, para isto, Simone e eu fomos a Ouro Preto e descobrimos onde o escritor estava enterrado. Aliás, assim como acontece no curta, pulamos a grade do cemitério situado atrás da Igreja de São José, que já estava meio abandonado, e lá encontramos a tumba, que em breve seria removida e transferida para outro lugar (todo o terreno estava afundando rapidamente). Eu estava ansioso para fazer algo que fosse na contramão de A Dança dos Bonecos, pois, apesar de ter feito um único trabalho voltado para crianças, passara a ser considerado como “diretor de filmes infantis”. Então, ao escrever o roteiro, criei um personagem masculino que conversa com o próprio pênis em um banheiro e, como contraponto, acrescentei três colegiais que liam o poema de Bernardo Guimarães enquanto passeavam pelo cemitério no qual ele fora sepultado – o que criou um contraste entre o obsceno e o puro (embora as meninas não fossem totalmente angelicais; ao lado daquela inocência havia um lado claramente sacana). E, como adoro fazer filmes de época sem época (como A Dança dos Bonecos e O Menino Maluquinho), acrescentamos alguns detalhes da década de 50 à ambientação, mas sem exageros, apenas insinuando um determinado período. Para recitar aquela poesia tão picante, pensei imediatamente no Paulo César Pereio, que já havia feito a locução do meu curta João Rosa. Além de termos uma relação pessoal muito boa e de termos feito vários trabalhos publicitários em parceria, nem preciso dizer que a voz e a dicção de Pereio são incomparáveis. Não haveria outro ator com a capacidade de escandir aqueles “caralhos” com tamanha perfeição: “Que tens, caralho, que pesar te oprime que assim te vejo murcho e cabisbaixo sumido entre essa basta pentelheira, mole, caindo pela perna abaixo? Nessa postura merencória e triste para trás tanto vergas o focinho, que eu cuido vais beijar, lá no traseiro, teu sórdido vizinho!” Além disso, já tínhamos um trabalho em conjunto agendado: ele iria a Belo Horizonte a fim de fazer a locução de uma campanha política que a VT-3 fora contratada para realizar. Porém, havia alguns detalhes que poderiam levá-lo a se recusar a participar do projeto, por mais amigos que fôssemos. Ele teria que aparecer nu o tempo inteiro e recitar um texto longo e complicado. Ah, sim... e teria que trabalhar de graça, pois não tínhamos como pagá-lo. Pereio aceitou na hora. Enquanto isso, as três colegiais deveriam representar as Três Graças, como se formassem um só personagem. Ao mesmo tempo, eu queria que evocassem a feminilidade universal e decidi que cada uma teria uma cor de cabelo. Como Simone já estava bastante envolvida na produção, concordamos que ela faria um dos papéis, enquanto os outros dois ficariam com a loira Mônica Magalhães (que, além de ser sua prima, ainda estava trabalhando na cenografia) e a ruiva Ana Romano (que também cuidou dos figurinos). Havia, também, a vantagem de que as três eram amigas próximas e, portanto, já tinham uma forte cumplicidade. Como nenhuma delas tinha muita experiência como atriz, nos preparamos exaustivamente fazendo ensaios e constantes leituras do texto, que era dificílimo. Ao longo desse processo, fui absorvendo vários detalhes que surgiam espontaneamente e incorporando-os ao roteiro, observando sempre a forma com que elas diziam o texto, incluindo suas facilidades e dificuldades em cada passagem – algo que ajuda muito na naturalidade da interpretação. Trabalhamos, também, o sotaque mineiro marcadíssimo que elas usariam em suas cenas, e que fez grande sucesso junto ao público, que achava aquilo uma delícia. O tema polêmico, no entanto, dificultou nossa tarefa de encontrar patrocinadores para o projeto e, como eu era sócio de uma produtora de vídeo, resolvi fazer o filme com o que tinha em mãos, gastando o mínimo possível – e descartei o uso de película. Do ponto de vista narrativo, o suporte é cada vez menos importante para o cineasta e, como eu estava bancando a produção sozinho, tinha que levar em consideração o custo de se trabalhar em película. Como em Minas Gerais o vídeo é um formato usado principalmente para a videoarte, uma escola à qual não pertenço, poderíamos dizer que eu estava contrabandeando um suporte para outro tipo de narrativa – tanto que, na época do lançamento de O Elixir do Pagé, nomes consagrados da videoarte, como Éder Santos (que adorou o curta), disseram que aquilo não era vídeo, mas sim cinema. Particularmente, não gosto muito dessa atitude de botânico, de classificar as espécies dessa maneira – e, justamente por isso, inscrevi O Elixir do Pagé na sétima edição do Festival Videobrasil, o mais importante do país, e ele foi premiado. Ainda assim, evito chamá-lo de “vídeo”, justamente para evitar generalizações do tipo este suporte serve para isto; aquele, para aquilo. E, atualmente, essas fronteiras tornaram-se ainda menos definidas, já que, com a popularização do digital, podemos captar em DV e transferir o resultado para película – uma opção que não existia na época (se existisse, eu a teria aproveitado). Da mesma maneira, montei uma equipe formada principalmente por profissionais de cinema, como o fotógrafo Gilberto Otero, que tinha feito câmera em A Dança dos Bonecos. Aliás, a fotografia é o aspecto mais complicado ao se trabalhar com o vídeo – e, para dificultar ainda mais, em 88 ainda éramos obrigados a utilizar o formato U-Matic, que apresentava muito mais complicações do que seu sucessor, o Betacam. Mas Gilberto, sempre competente, conseguiu obter um belíssimo resultado ao equilibrar cuidadosamente os tons, a luz e as sombras. De modo geral, há uma diferença básica de formação e prática entre os fotógrafos. Aqueles que se formam em vídeo, têm o hábito de ficar com o monitor ligado, observando através deste as modificações que vão fazendo na luz. Já os profissionais de cinema equilibram a luz através do fotômetro e se preocupam em antecipar, com sua experiência, o resultado que só será visto depois que a película retornar do laboratório. Além disso, são obrigados a possuir um grande conhecimento técnico, incluindo as opções de alteração (de brilho, cores, etc) que cada negativo, com seu range específico, pode oferecer. Por outro lado, embora tenha ignorado diferenças teóricas e práticas entre película e vídeo, na edição decidi realizar algumas brincadeiras que só seriam possíveis neste último formato, como ao inserir letreiros e incluir rewinds ao longo da narrativa. Caso fosse fazer, em filme, letreiros e inserts como aqueles vistos em O Elixir do Pagé, teria sido obrigado a desembolsar uma fortuna, mas numa ilha de edição aqueles eram procedimentos banais – e minha experiência em manejar estes recursos em meus trabalhos publicitários facilitou o processo. Mesmo assim foi uma edição trabalhosa, que exigiu grande refinamento. Embora tivesse um roteiro bem marcado, este não incluía posições específicas de câmera, pois, como disse anteriormente, prefiro defini-las já no set. Além disso, quando parto para a montagem, não quero simplesmente estampar figurinhas ao longo do roteiro de forma inorgânica. É preciso lembrar que o cinema não se resume a ilustrar um texto com imagens; o encadeamento dessas imagens é uma arte em si. A partir do momento em que filmamos um roteiro, ele deixa de ser algo literário e desaparece. É como Truffaut disse: “A filmagem vai contra o roteiro, assim como a montagem vai contra a filmagem.” O Elixir do Pagé envolveu muita criação durante a edição, tornando-se uma narrativa híbrida, que segue o cinema clássico, mas que conta com várias intervenções típicas do vídeo. Filmamos tudo em apenas dois dias: um para as cenas com as garotas e outro para o monólogo do Pereio. Geralmente sou rápido para filmar, pois, como esta é uma etapa muito cara, me preparo bastante para evitar desperdício de tempo. Para montarmos o banheiro no qual o personagem masculino se encontrava, queríamos um lugar cujo piso fosse feito de cerâmica hidráulica e que, ao mesmo tempo, fosse suficientemente espaçoso para permitir a colocação dos equipamentos e um bom recuo de câmera. Finalmente, encontramos o espaço ideal em um colégio de freiras de Ouro Preto. O problema é que as freiras não podiam saber do que se tratava o filme, pois duvido que fossem gostar de ouvir a voz poderosa do Pereio recitando: “Um cabaço! Que era este o único esforço, única empresa digna de teus brios; porque surradas conas e punhetas são ilusões, são petas, só dignas de caralhos doentios. (...) Sus, ó caralho meu, não desanimes, que ainda novos combates e vitórias e mil brilhantes glórias a ti reserva o fornicante Marte, que tudo vencer pode co’engenho e arte.” Como iríamos filmar durante o fim de semana, quando o colégio não estaria funcionando, a tarefa se tornou mais fácil. Mas, por precaução, cercamos cuidadosamente o espaço reservado para o cenário a fim de evitar que elas soubessem o que estávamos fazendo ali (e, embora os créditos incluam agradecimentos especiais às freiras, acho que elas nunca descobriram que um homem pelado caminhou pelo estabelecimento enquanto conversava com o próprio pênis). O cenário, aliás, é repleto de detalhes, pois, para montar aquele banheiro, fizemos o empréstimo de dezenas de objetos que encontrávamos nas casas de amigos e conhecidos de Ouro Preto: móveis, vidros e até mesmo uma banheira imensa. Em certo momento, inclusive, Simone me disse que tinha visto uma garça muito interessante na casa do Ângelo Oswaldo, e que ela ficaria muito legal no banheiro. Como eu conhecia o Ângelo, fui até sua casa pela manhã bem cedo e bati na porta. Ele, que estava em campanha para a Prefeitura da cidade, atendeu com a cara toda amassada, pois tinha ido dormir muito tarde. Expliquei que queria a garça emprestada. – Garça? Que garça? – A garça! – Que garça, meu Deus? Achei que o sono o deixara meio devagar e ele, por sua vez, devia estar me considerando um louco por invadir sua casa à procura de uma “garça”. Finalmente, depois de muita procura (eu insistia em dizer que Simone vira uma garça, talvez de porcelana, em algum lugar da residência), encontramos o objeto: um banquinho fino, de madeira, cujo formato lembrava, de fato, uma garça. Ênfase na palavra “lembrava”. Ele acabou me emprestando o tal banco e voltou para a cama. Quando ainda estávamos em Ouro Preto, rodando o curta, recebemos a notícia de que Joaquim Pedro de Andrade havia falecido. Fiquei muito chateado, pois, de toda a turma do Cinema Novo, era o Joaquim com quem eu mais me identificava pessoalmente, por sermos mineiros e por sua formação e postura. Sempre fui louco por Macunaíma (1969) e acho que ele teria adorado O Elixir do Pagé, que tem muito a ver com Guerra Conjugal (1975) e com a trama da melancia em Contos Eróticos (1977). Ele tinha esse lado mineiro meio sacana e creio que se identificaria muito com o curta. Por isso dediquei o filme a ele. Em 89, fui convidado para o júri do Festival de Gramado e levei o vídeo, já finalizado, em minha bagagem. Durante o evento, convidei algumas pessoas para vê-lo e, antes que me desse conta, ele já estava sendo exibido em sessões durante o próprio Festival – e o Carlão Reichenbach queria até mesmo dar um prêmio para o filme, embora Gramado nem aceitasse a inscrição de vídeos. A partir disso, comecei a receber muitos pedidos de cópias e, nesse sentido, o formato ajudou na divulgação do curta, já que podíamos duplicá-lo facilmente na ilha de edição. Além disso, quando o canal pago Multishow surgiu, o Wilson Cunha, que vira o filme em Gramado, propôs que o exibíssemos em algumas sessões à meia-noite, o que trouxe reconhecimento ainda maior para o trabalho. Ao mesmo tempo, Carlinhos Ávila, filho do Afonso Ávila, enviou uma cópia para o Haroldo de Campos, que era amigo de sua família em função de sua aproximação com a poesia concretista. Com isso, o Haroldo promoveu o lançamento do filme em São Paulo, na Cinemateca, incluindo uma mesa-redonda que contou com a participação do professor Boris Schneiderman. Já em Belo Horizonte fizemos uma festa lindíssima no Museu de Arte Moderna da Pampulha, durante a qual vendíamos cópias do filme, que vinham acompanhadas do livrinho com o poema e as ilustrações feitas pelo Eri Gomes. E, como brinde, as pessoas ganhavam vidrinhos contendo um “elixir” violeta, com rótulo e tudo mais, que a Simone preparou. Foi uma curtição. Até hoje, O Elixir do Pagé é muito procurado e tenho versões dele em inglês, francês e espanhol. Provavelmente o incluiremos como extra no DVD de Amor & Cia., com o qual se parece em tom e clima. Creio que Bernardo Guimarães teria ficado feliz com o vídeo, pois O Elixir do Pagé nunca constou de suas antologias, apesar de ser um trabalho primoroso. No dia em que terminamos de filmar no cemitério, havia uma luzinha impressionante na efígie localizada em seu túmulo – o que, inclusive, nos deu a idéia de fazer a brincadeira que encerra o filme, com o desaparecimento daquela imagem, como se o próprio Bernardo houvesse escapado dali. Fazer O Elixir do Pagé representou um aprendizado enorme, pois foi uma experiência feita com liberdade, sem amarras e com meus próprios recursos. Foi uma provocação. Ou, como dito nos créditos, uma molecagem de todos os envolvidos. Capítulo XXII Filmografia Imaginária O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes desenvolveu, em certo momento de sua brilhante carreira, um conceito muito importante para os cineastas brasileiros: o da “filmografia imaginária”. Como no Brasil é praticamente impossível manter-se sempre em atividade, pois cada novo projeto exige longos períodos de gestação até ser viabilizado financeiramente, Paulo Emílio pregava que a filmografia de cada profissional deveria incluir, também, as idéias e roteiros que não saíram do papel e projetos que, em algum momento, deixaram de existir. Projetos como Era uma Vez em Brasília, que tentei realizar no início da década de 90 e que representou meu primeiro esforço de falar sobre o período da ditadura brasileira e minha militância política. O roteiro abordava a relação de um casal de militantes e foi escrito (a partir de um argumento que concebi) pelo argentino Alfredo Oroz, um ótimo profissional que fora responsável pela adaptação de A Hora da Estrela (1985), ao lado de Suzana Amaral, e que morreria de AIDS poucos anos depois (mas não antes de roteirizar outro longa ambientado naquele período, Lamarca, de 1994). Depois de apresentarmos o projeto na Embrafilme, ainda em 1989, recebemos a primeira parcela da verba aprovada pela estatal, o que foi suficiente para que o Tarcísio Vidigal o colocasse em movimento, produzindo material gráfico, enquanto eu acertava as participações de Felipe Camargo (que encontrava-se no auge do sucesso, graças ao sucesso das novelas Roda de Fogo e Mandala, da Rede Globo) e Ana Beatriz Nogueira, que fora premiada pouco tempo antes com o Urso de Prata, em Berlim, e com o Candango, em Brasília, por seu magnífico desempenho em Vera, de 1987 – justamente o ano em que A Dança dos Bonecos venceu em quatro categorias, incluindo o Prêmio Especial do Júri. Depois de confirmarmos as participações de Felipe e Ana Beatriz em Era uma Vez em Brasília, marcamos uma entrevista coletiva em Belo Horizonte, na qual lançamos o projeto oficialmente. Foi quando Fernando Collor, com uma medida assinada pelo cineasta Ipojuca Pontes, deu fim à Embrafilme, paralisando toda a produção nacional por vários anos. Foi uma época frustrante para todos os profissionais do meio. Durante dois ou três anos, Tarcísio e eu tentamos viabilizar Era uma Vez em Brasília, mas finalmente percebemos que seria impossível, até mesmo em função de seu tema (havíamos saído há pouco da ditadura), e decidimos abandoná-lo. De certa forma, foi melhor, pois agora que estou preparando Batismo de Sangue, meu próximo longa, percebo que não teria o distanciamento crítico necessário para dirigir um filme tão próximo de minhas próprias experiências – ao contrário deste novo projeto, que, por ser narrado a partir da ótica dos dominicanos, me permitirá assumir uma postura menos complacente e mais crítica. E voltamos, dessa maneira, à inteligência do conceito de “filmografia imaginária” criado por Paulo Emílio. Afinal, Era uma Vez em Brasília pode até não ter saído do papel, mas foi fundamental para meu crescimento profissional. Capítulo XXIII Conhecendo Barcelona Nesse mesmo período, entre 1989 e 1990, realizei o documentário Um Olhar sobre Barcelona, que vendi para a TV Cultura de São Paulo. Algum tempo antes, eu havia sido convidado para um festival de cinema em Sofia, na Bulgária, que seria encerrado com uma sessão especial de A Dança dos Bonecos. Lá chegando, fui apresentado ao diretor de um festival português de filmes voltados para a infância e a juventude, que me informou que A Dança... havia vencido um prêmio naquele outro evento – uma surpresa, pois a Embrafilme sequer havia me informado de que o longa seria exibido em Portugal. Muito simpático, o sujeito me convidou para visitar Lisboa depois de deixar a Bulgária, aproveitando a oportunidade para receber o tal prêmio. Nessa época, meu amigo Lício Marcos, que fizera o som de alguns de meus trabalhos, já morava em Barcelona e combinei com ele que o visitaria depois de sair de Portugal. Fiquei dez dias em sua casa e visitei o principal da cidade: os projetos concebidos por Antoni Gaudí (incluindo, obviamente, a Sagrada Família), as ramblas, o museu Picasso, entre outros. Cheguei até mesmo a visitar o apartamento, situado no espantoso edifício La Pedrera, em que Glauber Rocha morou durante certo tempo. Barcelona estava se preparando para as Olimpíadas de 92 e, por essa razão, estava tomada por equipes de cinema e de televisão de todo o mundo. Assim, quando retornei ao Brasil, decidi montar um projeto sobre a cidade para a televisão e o apresentei para a TV Cultura de São Paulo, que o aprovou. A idéia central do documentário era analisar a vida cultural de Barcelona, uma cidade em que Pablo Picasso e Miró viveram e na qual a arte estava nas ruas. A partir daí, consegui uma série de apoios: passagens de avião, ajuda de custo do governo espanhol (que também colocou um carro à nossa disposição) e até mesmo credenciais oficiais para que pudéssemos filmar no interior dos museus – algo dificílimo de se obter. Enquanto isso, Regina Martins, esposa do Lício e figurinista com quem eu também trabalhara em A Dança dos Bonecos, passou a me ajudar com a pesquisa necessária, chegando a descobrir uma série de figuras que renderiam entrevistas interessantes para o documentário. Além disso, contamos bastante com a sorte: o cantor Joan Manuel Serrat, que nascera em Barcelona e era famoso em toda a Espanha, iria cantar na cidade justamente no período em que filmamos – e, graças a essa coincidência, conseguimos agendar uma conversa. Também entrevistei um cineasta que adoro, Bigas Luna, que nos apresentou uma teoria fabulosa sobre o povo da região: – Minha relação pessoal com Barcelona é muito boa, porque gosto muito de comer. Creio que nós, do norte do Mediterrâneo, somos uma gente de cultura bucal. Para nós, a boca é algo importante: gostamos de comer, de falar e de fazer sexo oral. Barcelona tem um astral impressionante. As ramblas, então, são maravilhosas. Ali acontece de tudo, como o próprio filme comprova ao mostrar uma mulher que, ao perceber que éramos do Brasil, começou a tirar a roupa e a cantar Noite dos Mascarados – outro momento espontâneo que deixou o documentário mais interessante; não pela nudez, mas pelo que o ato da moça representava. Hoje a cidade está muito transformada, pois o investimento colossal feito na época das Olimpíadas permitiu a realização de uma série de obras que mudaram o visual de diversos lugares, como La Barceloneta, bairro retratado no curta. O mais impressionante, no entanto, é que a cidade cresce se preservando. Os catalães perceberam que poderiam ganhar dinheiro através da conservação de sua história – e como Barcelona tem 2 mil anos, oferece atrações turísticas imperdíveis, como um bairro gótico espetacular. Aliás, é possível ver a passagem do tempo através de sua própria geografia; há a época gótica e, logo em seguida, o salto com o modernismo de Gaudí e a expansão da cidade para fora das muralhas, terminando com sua condição atual, hipermoderna. Essa inteligência no planejamento de Barcelona serviu para aumentar minha vontade de trazer estas informações para cá, para que as pessoas vissem aquilo. Mas nem tudo era edificante, com o perdão do trocadilho involuntário: Barcelona também é uma cidade, como tantas outras, em que há abundância de drogas, do haxixe à heroína. A decadência física provocada pela heroína, em particular, torna seus usuários fáceis de se identificar e, em vários lugares, víamos grupos de viciados com suas olheiras profundas e rostos que pareciam ser feitos de cera. Certa noite, eu estava em uma das fantásticas bancas de revistas espalhadas pelas ramblas, quando notei que uma garota ao meu lado balançava de forma estranha, pouco natural. Olhei para baixo e vi que sua calça estava cortada na altura da coxa e que havia uma seringa pendurada em sua perna: ela tinha se picado na veia femoral e, quando o “barato” começou, ela nem se preocupou em retirar a seringa. Os heroinômanos são verdadeiros fantasmas, uns mortos-vivos. (Particularmente, tive poucas experiências com drogas: fumei maconha algumas vezes no Brasil e no Chile, quando estava na clandestinidade, e experimentei cocaína uma vez, nos anos 80. É uma droga terrível, artificial, falsa. Fiquei numa falação desenfreada, pois ela te faz sentir inchado, infla seu ego. As pessoas que usam cocaína falam sem parar, sempre com muita ênfase, certas de que dizem verdades inquestionáveis. É chatíssimo. Hoje em dia, fumo apenas charutos.) Outra droga fartamente comercializada nas ramblas é o haxixe, uma pasta escura (que os viciados chamam de chocolate) feita com a flor da cannabis sativa e que é condensada em barrinhas que podem ser fumadas. O tráfico de haxixe envolve a participação de muitos marroquinos que moram em Barcelona – e lembro-me de que, certo dia, estávamos na Plaza Real entrevistando um marroquino quando, de repente, uma senhora espanhola se aproximou aos berros, acusando o sujeito de ser traficante. Porém, ao contrário do que eu faria em Pequenas Estórias, anos depois, minha intenção não era conferir um viés sociológico a Um Olhar sobre Barcelona, abordando seus problemas. Não que eu quisesse apenas fazer um cartão-postal da cidade; queria apenas concentrar-me em seus aspectos culturais. A equipe que saiu do Brasil rumo a Barcelona era reduzidíssima: fomos eu, Simone, Gilberto Otero (diretor de fotografia) e um personagem chamado Ricardo Gesta, que se tornou protagonista de um incidente que nos deixou muito abalados. Ele havia trabalhado como assistente do Gilberto em algumas produções e, quando convidei este último para fazer a fotografia do documentário, Ricardo me procurou e se ofereceu para ser assistente de câmera e fazer o som. E acrescentou: – Eu só quero a passagem de ida. Não quero mais voltar para este país. Expliquei que as passagens haviam sido fornecidas pela VARIG, como apoio ao projeto, e que eu já tinha recebido todas, quatro de ida e quatro de volta. Ricardo insistiu, dizendo que não queria receber salário algum por seu trabalho, apenas a passagem – do que discordei, insistindo em remunerá-lo (até para ter o direito de cobrar um serviço bem feito). As filmagens duraram um mês e, em seguida, voltamos todos ao Brasil, com exceção de Ricardo. Estávamos no início de 90. Em 1992, recebi uma ligação do Gilberto, que, por sua vez, acabara de conversar com o Lício, que lhe telefonara de Barcelona. Ricardo tinha sido encontrado morto na cama de seu pequeno apartamento. Tinha 32 anos de idade. Sempre sinto um frio no estômago quando me lembro de sua determinação em não pegar a passagem de volta ao Brasil. No início, até pensamos que ele poderia ter sofrido uma overdose – algo que, aparentemente, a autópsia descartou. Ele simplesmente morreu. Boa parte de Um Olhar sobre Barcelona é dedicada às obras de Gaudí. Não havia como nem por que evitar isso. Ele era um gênio impressionante. Quando projetava um prédio, como La Pedrera, não se limitava a criar a concepção do edifício, mas se preocupava com os móveis, com as portas e suas maçanetas. E abominava a linha reta: seus projetos não possuíam quinas nem eram realizados com o auxílio de esquadro – o que não quer dizer que ele não fosse refinado e extremamente meticuloso. Mas Gaudí apreciava a individualidade e, por isso, evitava criar moldes rigorosos que seus subordinados pudessem copiar à risca. Quando criava um gradil, por exemplo, ensinava aos seus empregados o básico sobre a peça e, em seguida, os libertava: Agora faça uma como a minha, mas do seu jeito. E pensar que a burguesia catalã bancou suas loucuras, como o Parque Guell (assim batizado em função do grande mecenas de Gaudí, Eusebi Guell), com suas colunas retorcidas e seu visual que parece ter saído de Alice no país das Maravilhas. A arquitetura de Gaudí era poética e surpreendente: a Casa Batlló, situada em frente a La Pedrera, chega a parecer comestível. Por essas razões, fiz questão de incluir o depoimento de um catedrático especializado em Gaudí no documentário – e é ele quem esclarece parte do mistério das obras do artista ao dizer: – Gaudí não reproduzia as formas geométricas, mas sim aquelas que encontrava na natureza. Daí vinha o caráter orgânico de sua arquitetura. Realizar esse filme foi algo que me deu a oportunidade de enriquecer culturalmente, de descobrir o jovem Picasso e as inspirações de Gaudí. Aliás, dirigir documentários é uma maneira sempre interessante de aprender coisas novas, já que implica pesquisar com profundidade o tema a ser abordado. Ganhamos pouquíssimo dinheiro, é verdade. Mas crescemos como indivíduos. Capítulo XXIV Bonecos contra a AIDS No final da década de 80 e início da de 90, a John Hopkins University, uma das instituições de pesquisa sobre a AIDS mais conceituadas do mundo, passou a fazer várias intervenções didáticas sobre a doença na América Latina, com o objetivo de diminuir a expansão da epidemia, ao esclarecer as dúvidas mais comuns das populações carentes. No Brasil, uma das parceiras da John Hopkins foi a Universidade Federal de Minas Gerais, com a qual os americanos decidiram realizar um trabalho voltado para os meninos de rua. Na época, o dr. Dirceu Greco coordenava todas as iniciativas da UFMG com relação à doença e, acreditando que eu poderia contribuir com o novo projeto, decidiu me convidar para uma reunião com as médicas americanas que haviam viajado para Belo Horizonte a fim de discutir a questão. Quando me explicaram a idéia de criar um vídeo didático voltado para as crianças, propus que fizéssemos algo envolvendo ficção, pois sempre acreditei que a melhor forma de educar é através da emoção, e não simplesmente atirando um monte de informações frias sobre o público infantil. Sugeri, então, que criássemos uma história e produzíssemos o vídeo a partir daí – e a idéia não só foi aceita, como recebi total liberdade para criar esta premissa. Meu primeiro passo foi me reunir com grupos de meninos de rua e ouvir as histórias que eles tinham para contar. Percebi, também, que eles teriam certa dificuldade para assimilar as informações que precisávamos passar e confirmei algo de que já desconfiava: produzir um filme convencional, com atores de carne e osso, não seria a melhor opção. Eu precisava de algo que criasse uma ligação com as crianças, que permitisse uma identificação entre elas e os personagens da história. Foi então que me lembrei das reações que observei durante as exibições de A Dança dos Bonecos, anos antes. Ora, a criança é um ser que se sabe frágil e que reconhece a necessidade de ter a proteção de um adulto. Ao mesmo tempo, ela sempre desenvolve um grande carinho por seus bonecos, que são ainda mais frágeis do que ela e os quais ela se encarrega de proteger. Por mais brutalizados que fossem os meninos de rua para os quais eu deveria realizar o vídeo, eles continuavam a ser crianças. Assim, concluí que utilizar bonecos para transmitir as informações seria um meio eficaz. A partir deste conceito, escrevi o roteiro. Como a John Hopkins exigia que o projeto fosse constantemente pré-testado, reuni os meninos mais uma vez e, com a ajuda de atores, encenei a história para eles. À medida que observava suas reações, ia efetuando alterações que facilitassem a compreensão do enredo e dos dados médicos. Além disso, durante as conversas que ocorriam após as leituras, absorvi gírias e outras características do linguajar daquelas crianças, sempre com o propósito de tornar o filme cada vez mais acessível a elas. Apesar de estar confiante na linguagem que escolhera, eu não tinha a menor intenção de fazer algo teatral, artificial. E como era importante levar os personagens para a realidade do público-alvo, tomei a decisão de usar as ruas da cidade como cenário – o que, obviamente, apresentou enormes dificuldades. Na realidade, fui obrigado a rodar o filme duas vezes. Na primeira etapa, gravei apenas as ruas, que serviriam de “fundo”. É claro que já ia decupando tudo; rodava um plano geral, depois um quadro mais fechado, e assim em diante. Tudo sem os bonecos, que só entraram na segunda etapa. Com a base pronta, fomos para o estúdio e filmamos os personagens em chroma-key, acrescentando-os aos planos previamente gravados. Isto enriqueceu o projeto, já que tínhamos um fundo sempre em movimento, com carros e pedestres passando e conferindo realismo à história. Como eu já sabia que o processo levaria um bom tempo (as filmagens demoraram um mês), nem cheguei a cogitar a possibilidade de convidar o Giramundo (Álvaro Apocalypse, em particular) para participar do projeto, pois a agenda sempre cheia do grupo certamente impediria que eles aceitassem o convite. Por outro lado, eu também queria trabalhar com uma equipe mais jovem e, assim, chamei o Paulinho Polika (que trabalhara como manipulador em A Dança dos Bonecos) para criar os personagens e montar uma nova turma de profissionais que pudesse dar vida a eles. Como a AIDS ainda era um tabu, o filme, que recebeu o título de Vida de Rua, começou a ser muito requisitado por colégios de classe média e acabou sendo exibido também na TVE do Rio, ultrapassando, e muito, seus objetivos iniciais. Porém, além da satisfação evidente de criar um média-metragem que desempenharia um importante papel social, a experiência de realizar o Vida de Rua me ensinou bastante sobre o processo de pré-testes, que é fundamental para trazer o cineasta de volta à realidade, mostrando que nem tudo que ele cria é compreendido magicamente por todos. Os americanos são especialistas nesta prática, pois estão acostumados a pré-testar de vídeos publicitários a longas-metragens, passando por trailers e até mesmo embalagens de produtos. Já no Brasil, infelizmente, não temos a mesma facilidade de agir desta maneira e, assim, Vida de Rua representou uma experiência rara e educativa. Capítulo XXV Maluquinho Drummondiano O Menino Maluquinho foi um projeto que caiu em meu colo graças ao meu trabalho em A Dança dos Bonecos. Quando Tarcísio Vidigal me convidou para assumir a direção do filme, eu já havia deixado o Grupo Novo de Cinema, no qual éramos sócios, por razões que explicarei mais adiante. Interessado em levar o personagem para o cinema há um bom tempo, Tarcísio sugeriu meu nome para Ziraldo, que aceitou com entusiasmo. O convite me deixou dividido. Por um lado, sempre gostei muito do Maluquinho e sabia que o filme permitiria que eu falasse um pouco de minha infância em Belo Horizonte e das brincadeiras nas ruas, como andar de carrinho-de-rolimã e jogar bente-altas; por outro, eu temia ficar marcado como diretor de filmes infantis. Minha admiração pelo Maluquinho levou a melhor. Sempre achei que o personagem possuía um espírito meio drummondiano, uma forma bastante particular de enxergar o mundo. Além disso, levá-lo para as telas representava um desafio interessante. Afinal, o fantástico livro de Ziraldo não conta uma história, e sim apresenta um personagem. Teríamos, portanto, que criar um roteiro partindo apenas da personalidade de seu protagonista. Não foi uma tarefa fácil. Inicialmente, convidamos o Alcione Araújo, que no cinema havia se dedicado a trabalhos mais pesados, como Nunca Fomos tão Felizes (1984) e Faca de Dois Gumes (1989). Esta primeira versão do roteiro, cujo argumento também fora criado pelo Alcione, calcava-se principalmente no universo das tirinhas de jornal, que não representavam a visão que eu tinha do filme. Desde o início, acreditei que o longa deveria contar com o espírito poético do livro, embora, é claro, também incluísse a turma do Maluquinho, tão presente nas tiras. Como Ziraldo também não havia gostado do roteiro, fizemos uma série de reuniões no Rio e, depois de algum tempo, Alcione decidiu se afastar do processo. Juntos, Ziraldo e eu criamos outro argumento e, então, convidamos a Maria Gessy (roteirista da TVE do Rio) para escrever um novo tratamento. Depois que ela entregou sua versão, Ziraldo apresentou novas idéias e, finalmente, escrevi o roteiro final, acrescentando alguns temas que eram importantes para mim: a morte do vovô Passarinho, por exemplo, permitiu que eu trabalhasse meus próprios sentimentos com relação à perda de papai, que havia falecido pouco antes. Ao mesmo tempo, como meus avôs já haviam morrido quando nasci, tive a chance de idealizar um vovôzão perfeito – um com o qual eu sonhara na infância. E minhas viagens para São João del Rei durante as férias escolares foram transformadas na viagem que a turma do Maluquinho faz para o sítio do avô. Outro aspecto pessoal que transferi de certa maneira para o filme foi meu divórcio. No livro, a separação dos pais do Maluquinho era insinuada, mas não totalmente desenvolvida. Assim, projetei naquele casal as dificuldades que vivi com relação às minhas três filhas. Como explicar para uma criança de 5 anos (idade da mais nova, na época) que seus pais deixaram de se amar, quando, na realidade, ela ainda nem descobriu o que é o amor entre um homem e uma mulher? Nesta idade, elas enxergam os pais como uma entidade única que zela por sua segurança – e perceber que isto vai se romper pode fragilizá-las imensamente. Enquanto isso, eu mesmo fui obrigado a enfrentar o fato de que perderia o convívio diário com minhas filhas, o que era terrível. Tudo isso serviu, no filme, para conferir maior dimensão ao Maluquinho, que lida muito bem com as perdas, incorporando-as à sua própria vida – e isso é muito bonito, pois são essas provações que nos fazem crescer. O personagem também mostrou para o público infantil que não é preciso esconder os sentimentos: o Maluquinho chora, se tranca no quarto e chega até mesmo a manifestar sua dor através de um poeminha. Outra decisão importante que tomei foi a de ambientar a história nos anos 60, pois isso me permitiria justamente apresentar uma realidade diferente para as crianças de hoje. Em vez dos jogos de computadores, tínhamos a pelada de rua, o pião e as bolinhas de gude. Em função disso, enfrentei alguma resistência por parte do Tarcísio, que achava (corretamente) que teríamos maiores possibilidades de explorar o merchandising caso o filme se passasse na atualidade: poderíamos “vender” videogames, computadores e toda essa parafernália eletrônica que os meninos usam. Mas isso ia radicalmente contra minhas intenções. Não que eu quisesse convencer as crianças modernas a abandonar o Nintendo e a brincar de pau-de-bosta (uma brincadeira vista no filme e que se resumia a levar alguma vítima desavisada a segurar em um pedaço de pau que estivesse sujo de cocô de cachorro). Eu queria apenas mostrar que havia uma outra forma de se divertir e que a interação com outras crianças era mais importante do que interagir apenas com uma máquina. Ainda assim, evitei ao máximo “datar” o filme. Usamos os anos 60 como referência, é verdade, mas trabalhamos de forma a assegurar que o momento em que a história se passa não importasse de fato. Fundamental era o sentimento. Capítulo XXVI Procurando o Maluquinho A seleção do elenco de O Menino Maluquinho foi um processo espantoso. Abrimos testes no Rio de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte e, num único dia, apareceram 1,5 mil crianças em BH e mais de 3 mil na capital paulista. Todos candidatos a personagem-título, já que decidimos escalar o Maluquinho em primeiro lugar (é óbvio que, a partir dos testes, começamos a separar garotos que se encaixariam melhor em outros papéis). Apareciam meninos de todos os jeitos: loiros, orientais, negros, altos, baixos, gordinhos, magrinhos... Todas as famílias acreditavam ter o Maluquinho ideal. Curiosamente, ninguém parecia assumir ter um Bocão, um Herman ou um Junim em casa. Gravamos todos aqueles milhares de testes em vídeo. O teste, que eu mesmo bolei, dividia-se em três partes. Depois de ler um pequeno texto que escrevi e que falava que fazer um filme é, na realidade, uma grande brincadeira, mas uma brincadeira séria (o que o deixava mais à vontade), cada candidato deveria memorizar um pequeno texto retirado do roteiro. O objetivo era avaliar a facilidade com que cada criança decorava o monólogo e como dizia as falas, se com naturalidade ou mecanicamente. Logo em seguida, pedíamos que os garotos improvisassem diante das câmeras, contando um caso, uma piada ou cantando – o que nos permitia estudar a espontaneidade de cada um. Finalmente, levávamos os meninos para um set parecido com o que eles encontrariam durante as filmagens, incluindo luzes e várias pessoas nos bastidores. Queríamos ver como eles reagiriam nestas circunstâncias. Vários candidatos, que pareciam ideais nas duas etapas anteriores, acabavam se encolhendo frente a uma situação que seriam obrigados a enfrentar mais tarde, constrangendo-se diante da equipe e dos equipamentos. Não acompanhei todos os testes, é claro, mas posso dizer que assisti a praticamente todas as fitas, embora recebesse separadamente aquelas que eram supostamente as “melhores”. O Menino Maluquinho apareceu em São Paulo. Certo dia, Simone, que acompanhava os testes, me telefonou dizendo que um garoto muito legal tinha aparecido, e que, apesar de ter feito alguns comerciais, era desconhecido do grande público – exatamente como queríamos (ao contrário de outro jovem ator que, embora tivesse se saído muito bem nos testes, era famoso por fazer o Castelo Rá-Tim-Bum). Quando vi a fita, constatei que Simone tinha razão: o menino era fantástico. Samuel chegara mascando chicletes e, quando pediram que ele o tirasse da boca para dizer o texto, ele simplesmente o enfiou na camisa, passando o restante do teste tentando desgrudá-lo dali, sem perder o rebolado. Selecionei seis finalistas e os levei para Belo Horizonte, onde fizemos uma nova bateria de testes. Nesta fase, pedi que fossem com suas mães ou com a pessoa que iria acompanhá-los durante as filmagens, caso fossem contratados. Minha intenção era avaliar não apenas os garotos, mas também os adultos e a relação que estes manteriam comigo, com a equipe e com os jovens atores. Ziraldo estava na África quando decidimos escalar o Samuel, mas, quando retornou da viagem, ficou empolgadíssimo com a escolha, dizendo que o menino tinha o rosto e a vivacidade do Maluquinho. E o tempo comprovou que estávamos certos. Com o Maluquinho já selecionado, passamos a nos preocupar com o restante da turma e retomamos os testes. João Romeu Filho, que fez o Bocão, surgiu através dos testes no Rio de Janeiro, enquanto a maior parte dos demais foi escolhida entre os candidatos mineiros. Como (para variar) contávamos com um orçamento apertado, queríamos concentrar a produção em Belo Horizonte. Já para os papéis da mãe e do pai do Maluquinho, as coisas foram mais fáceis. Simplesmente convidei Patrícia Pillar e Roberto Bomtempo, dois profissionais de quem gosto muito, e ambos aceitaram rapidamente. Por outro lado, definir quem interpretaria o vovô Passarinho foi algo mais delicado, pois era um personagem muito forte. Depois de algum tempo, chegamos ao nome de Luiz Carlos Arutin, que acabara de fazer uma novela na Globo e se revelou ideal para o papel. Aos poucos, fomos fechando o resto do elenco. Edir Castro, que pertencera ao grupo As Frenéticas, estava ansiosa para fazer cinema e topou fazer um teste, que adorei (mais tarde, ela voltaria a trabalhar comigo em Uma Onda no Ar, no qual viveu a mãe do protagonista). E, embora também tenhamos enfrentado algumas dificuldades para encontrar a atriz ideal para interpretar a avó do Maluquinho, fomos felizes ao escalar Hilda Rebello (mãe do diretor de novelas Jorge Fernando), que se mostrou entusiasmada com o papel. O filme inclui, ainda, uma ponta do Othon Bastos, que aparece como um padre no final da projeção. Sempre admirei o Othon, um autêntico ator de cinema, e quando o encontrei durante o Festival de Gramado, pouco antes do início das filmagens, não pude resistir e perguntei se ele toparia fazer aquela pequena participação. Como aquela era uma época em que a produção cinematográfica era praticamente inexistente no país, ele estava com saudades dos sets e aceitou o convite com grande prazer. Por fim, trouxemos outro grande nome do nosso cinema para fazer a narração: Paulo José. O curioso é que, em retrospecto, creio que esta era desnecessária, já que não complementa em nada a história contada pelo filme (embora a locução do Paulo tenha ficado belíssima). Acho que ela acabou funcionando como um tributo ao livro, e só. Capítulo XXVII Dirigindo Crianças Jamais gostei de repetir takes muitas vezes. Como sempre me concentro bastante no trabalho, creio que isto se faz desnecessário, pois as filmagens acabaram rendendo bastante. Além disso, como gosto de manter o set sempre tranqüilo, isso contribui para a eficiência de todos. Ao contrário de alguns outros diretores, que parecem acreditar que a pressão constante é a melhor forma de manter tudo funcionando, detesto gritar e tampouco aceito que gritem perto de mim durante as filmagens. Não é aos berros que se impõe o respeito; prefiro me fazer entender e respeitar de outra maneira. Por outro lado, julgo inadmissível um set desorganizado, frouxo, no qual nunca se sabe por que todos estão parados. Sempre quero saber por que não estou rodando. Afinal, o que estou esperando? E quem está cuidando do assunto? Algo comum em uma produção pouco concentrada é a espera injustificada. Você começa esperando por uma coisa e, meia hora depois, já não sabe mais o que está provocando a demora. Para isso há o assistente de direção e o platô – e é fundamental que eles desempenhem bem suas funções. Há algum tempo, vi uma entrevista do Clint Eastwood na qual ele dizia que não gostava sequer de gritar Ação!, preferindo dar o comando em um tom de voz suave, pois certa vez vira um grito daqueles assustar até mesmo os cavalos que se encontravam em cena – e se o berro de Ação! é capaz de espantar até os animais, imaginem o estresse que pode provocar nos atores. Concordo com ele. Mas, voltando ao número de takes que costumo rodar, é preciso salientar que, além de minha relutância em repeti-los muitas vezes, havia um elemento adicional a ser considerado durante a produção de O Menino Maluquinho: as crianças detestavam repetir a mesma cena, ficando rapidamente cansadas e impacientes. De todo modo, na maior parte das ocasiões, acredito que você vai sempre conseguir “a boa” já nas três primeiras tentativas. Depois de certo número de repetições, torna-se muito difícil conseguir algo melhor, pois, além de os atores começarem a oferecer uma resposta automática, mecanizada, fica complicado perceber a diferença entre um take e outro. Conheci diretores que chegavam a rodar o mesmo plano 18, 20 vezes (Stanley Kubrick era famoso por rodar 90, 100 vezes). Ora, como definir qual é a diferença entre a tomada 89 e a 93 ou a 75? Além disso, há uma questão importante quando falamos do cinema nacional: o custo. Aqui não temos 11 meses para filmar nem negativo à vontade. Kubrick era um gênio, é claro, mas também vivia numa realidade completamente diferente da dos cineastas brasileiros. Para preparar o elenco infantil, contei com um ótimo profissional de Juiz de Fora, o Alexandre “Xanxão” Alvarenga, que sabia lidar bem com crianças. Além de ajudá-las a memorizar o texto de forma natural, ele estabeleceu uma forte cumplicidade entre os integrantes da “turminha”, o que era fundamental para que o espectador não percebesse que, na realidade, os atores se conheciam há pouco tempo. Ainda assim, alguns problemas foram impossíveis de contornar. O João Romeu, que fazia o Bocão, tinha a mania de mover os lábios enquanto seus companheiros de cena diziam suas falas, o que nos obrigava a interromper as filmagens o tempo todo – isso não evitou que um desses momentos passasse desapercebido e acabasse na versão final do longa. Outra preocupação constante era ensinar as crianças a se comportarem num set, respeitando o fato de que ali era um local de trabalho sem, com isso, deixarem de ser garotos. Conversei com a equipe diversas vezes sobre isso, explicando que ninguém deveria esperar que o elenco infantil tivesse um comportamento adulto – mas, ao mesmo tempo, estabelecendo que deveria haver limites; eles não poderiam, por exemplo, ficar botando a mão em tudo que quisessem. E, se deixássemos, botariam a mão em tudo. Eram todos muito curiosos, viviam fazendo perguntas. O Samuel, em especial, era impressionante. Logo já dominava a forma com que trabalhávamos e era capaz até mesmo de avaliar o tempo necessário para preparar uma cena. Certo dia, por exemplo, depois que ensaiamos um plano, liberei os meninos até que preparássemos tudo para a filmagem e eles foram jogar bola. De repente, o Samuel chegou correndo e perguntou: – Helvécio, quanto tempo vai demorar ainda? – Só o tempo de montar este travelling – respondi. – Ele vai de onde a onde? – Começa aqui e termina ali. – Vai demorar! – comemorou, saindo correndo para voltar ao futebol. Samuel era um garoto adorável – e sua mãe, Rosana, também acompanhou todo o processo de forma absolutamente tranqüila, sempre confiando em meu julgamento. Estabeleci uma ligação afetiva muito forte com o Samuel e tenho muitas saudades dele. Só sei que, depois do sucesso do filme, fez algumas novelas na Globo, ainda garoto, chegando a mudar-se para o Rio. Porém, não faço a menor idéia de onde ele pode estar atualmente. E o mais incrível é que em nenhum momento ele sentiu o peso do personagem; com a câmera ligada ou desligada, era o mesmo menino. Jamais perdia a graça e a espontaneidade. É, eu sinto mesmo saudades dele. Capítulo XXVIII Fazendo Horas a Mais Um dia antes do início das filmagens, perdi o diretor de arte e a cenógrafa em função de um desentendimento banal. Desde o princípio, Ziraldo havia me dado liberdade absoluta com relação ao longa: – O filme é seu, não vou nem aparecer nas filmagens – ele disse repetidas vezes. E fez isso de uma forma extremamente sincera e espontânea. Porém, na véspera de os trabalhos começarem, Ziraldo foi a Belo Horizonte para que pudéssemos lançar o projeto oficialmente, apresentando os atores e a equipe para a imprensa. Decidimos realizar a coletiva na Rua Congonhas, no quarteirão que serviu de cenário para o lar do Maluquinho – e, depois das entrevistas, Ziraldo se aproximou de mim e falou: – Eu combinei com você que não vou interferir em nada e não vou mesmo. Só tem uma coisinha que eu não estou gostando, que é o amarelo da casa do Maluquinho. Estou achando que ficou forte demais, não é um amarelo que eu use em minha paleta de cores. Se possível, eu gostaria que ele fosse rebaixado. Concordei imediatamente. Afinal, estávamos lidando com a paleta de cores dele, e aquela fora sua única sugestão em todo o processo. Assim, julgando que não teríamos problema algum, fui conversar com o Clóvis Bueno, que fizera a direção de arte. – Clóvis, o Ziraldo pediu para pintarmos a casa do Maluquinho em um tom mais claro de amarelo. Para minha surpresa, a reação dele foi veemente: repintar a casa estava fora de questão, não iria aceitar uma interferência daquele tipo. – Clóvis, sinceramente, este é um detalhe menor. O personagem é dele, o Ziraldo é um artista plástico, trabalha com uma certa gama de cores e está sugerindo um outro amarelo, mais coerente com a obra dele. Não vejo problema nenhum. – Se for assim, estou fora. E realmente saiu, sendo acompanhado pela cenógrafa, Vera Hamburger, sua esposa. É claro que ele já havia completado toda a concepção visual do projeto há dois ou três meses, ao lado da Vera. Porém, com sua saída a execução de parte de suas idéias coube a Kika Lopes, que entrara na equipe a convite do próprio Clóvis e que acabou criando elementos novos. Assim, os créditos pela cenografia do filme listam não só a Vera, mas também a Kika. Se ficou algum ressentimento entre Clóvis, Vera e eu? A resposta é simples: Clóvis voltou a assinar a direção de arte em meu projeto seguinte, Amor & Cia., enquanto Vera assumiu o posto no trabalho que veio depois, Uma Onda no Ar. Esse tipo de desentendimento pode acontecer em qualquer produção e o fato é que ambos são profissionais incrivelmente competentes e de quem gosto muito. O resto é bobagem. O Menino Maluquinho é um filme cujas cores seguem um esquema cuidadoso. Observe o vermelho do carro dirigido pelo personagem do Roberto Bomtempo ou o (problemático) amarelo da casa do Maluquinho e perceberá que trabalhamos sempre com cores chapadas, básicas. Fizemos isso pelo mesmo motivo que escolhemos um Gordini como automóvel do Pai: queríamos evocar as histórias em quadrinhos. Aliás, em minha vida tive duas grandes influências formadoras, uma do ponto de vista narrativo, outra do político. A primeira foi Carl Barks, autor das melhores histórias do Pato Donald nos quadrinhos. Barks era um verdadeiro gênio que trabalhava no setor de cinema da Disney e que acabou sendo chamado para ajudar a criar as tiras do personagem, vindo a influenciar, por exemplo, George Lucas durante a criação do Indiana Jones. Morando num rancho no interior da Califórnia, o desenhista produzia uma história de dez páginas por mês e desenvolveu uma narrativa cinematográfica inigualável, que impressiona ainda hoje. Já a segunda grande influência foi Karl Marx, anos depois. Carl Barks e Karl Marx. Curioso, não? Um dos motivos que me levaram a escolher aquelas casinhas da Rua Congonhas como a vizinhança ideal para o Maluquinho foi justamente o fato de que possuíam o mesmo tipo de traços simples dos quadrinhos. Além disso, precisávamos encontrar um quarteirão que tivesse várias casas parecidas lado a lado e que lembrassem o estilo das construções dos anos 60. Foi uma tarefa dificílima. É comum ouvir muitos belo-horizontinos defendendo as tradições da cidade, alegando que ainda contamos com vários imóveis tradicionais conservados da forma que eram há 30, 40, 50 anos. Isso, infelizmente, não é verdade. As casas atualmente são cercadas por muros altos, grades de proteção e cercas eletrificadas; praticamente não existem mais casinhas “abertas” como aquelas do filme – tanto que só encontramos duas ruas que poderiam servir aos nossos propósitos. A escolha inicial do Clóvis foi uma que ficava no bairro Santo Antônio, mas acabei optando pela Rua Congonhas por esta ser plana e facilitar as brincadeiras das crianças. (Quem já tentou jogar bola numa ladeira sabe que é chatíssimo.) Curiosamente, encontramos uma situação que lembrava as condições de filmagem em Biribiri, na época de A Dança dos Bonecos: todas as casinhas pertenciam à mesma dona, e a maioria estava desocupada. Inicialmente, a proprietária se mostrou relutante em nos alugar os imóveis, acreditando que a publicidade que o filme iria gerar poderia terminar acarretando o tombamento das construções, o que a prejudicaria. Finalmente, ela acabou cedendo e combinamos que, quando encerrássemos os trabalhos, pintaríamos as casas com as cores que ela solicitasse. Além disso, refizemos o passeio com cimento de cor, pintamos os postes, recriamos os jardins e realizamos diversas outras intervenções que melhoraram bastante a rua. E tudo isso para usarmos apenas as fachadas, já que os interiores foram construídos em estúdio. Coisas do cinema. Com relação à fotografia, o José Tadeu Ribeiro (um veterano premiadíssimo com quem eu voltaria a trabalhar em meus dois filmes seguintes) seguiu a mesma perspectiva da direção de arte, optando sempre por cores básicas e mostrando os atores recortados muitas vezes contra fundos chapados. Praticamente não mostramos o horizonte da cidade; uma das únicas exceções pode ser vista na seqüência com o pau-de-bosta, que filmamos no Santo Antônio. Aliás, sempre gostei de filmar em cantinhos da cidade que poucas pessoas conhecem (aquele ficava na viradinha da Rua Nunes Vieira, mas hoje foi substituído por um muro feioso que obstruiu a visão da cidade). Para compor a música-tema do filme, convidei dois mineiros de talento indiscutível, Fernando Brant e Milton Nascimento. A idéia principal era que a canção capturasse o espírito lúdico da história e, para isto, entreguei a eles fitas em VHS com algumas seqüências já prontas do longa – e o resultado ficou uma delícia. A outra opção que considerei na época foi o Skank e, coincidentemente, anos depois o Samuel Rosa veio me dizer que, quando criança, tinha sido o próprio Menino Maluquinho, jogando bente-altas na rua e tudo mais. Pena que não havia como incluir composições de todos eles. A trilha instrumental do filme foi feita pelo Antônio Pinto, ninguém menos do que filho do Ziraldo e para quem este escreveu O Menino Maluquinho, o que não deixa de ser uma curiosidade bem interessante. Recentemente, o Antônio compôs a trilha de sucessos como Abril Despedaçado (2001) e Cidade de Deus (2002). Outro detalhe que muitos ignoram é o fato de que os créditos iniciais, que contam com os traços típicos de Ziraldo, não foram produzidos por ele, mas sim pelo Kiko, que sempre foi o responsável pelas animações envolvendo aqueles personagens, como, por exemplo, em comerciais. Um dos temas recorrentes no livro é a idéia de que, para o Maluquinho, o tempo “faz horas a mais”. Para ilustrar isto, tivemos a idéia do sonho com o “balé das horas” e a Vera projetou aquele relógio gigante que acabou sendo feito em aço pela Acesita, que não cobrou nada pelo serviço (atualmente, o relógio está numa praça da empresa, na cidade de Timóteo). Foi também a Acesita que produziu a famosa panela do Menino Maluquinho – feita sob medida para a cabeça do Samuel, ela era idêntica ao desenho do Ziraldo e tinha, em seu interior, todo um sistema com tiras (semelhante a capacetes de operários) para acomodá-la confortavelmente em quem a usasse. Houve muita discussão sobre a forma em que usaríamos a panela no filme. Como nas tirinhas o personagem usa a panela na cabeça o tempo todo, algumas pessoas defendiam que fizéssemos o mesmo no longa-metragem. Para mim, aquilo era inconcebível. Era óbvio que, a partir de um certo momento, o público começaria a ficar incomodado em ver uma criança andando de um lado para outro com uma panela na cabeça. Para contornar o problema, pensei naquela seqüência que se passa na cozinha: afinal, não haveria lugar melhor para que um garoto resolvesse brincar daquela maneira com uma panela – e, ao vesti-lo com o casaco do pai, criamos a assinatura do filme e do personagem. Naquele momento, o Menino Maluquinho que todos conhecem se materializa. A partir dali, poderíamos dar prosseguimento à história sem o casaco ou a panela, que já haviam cumprido sua função de maneira orgânica, verossímil. Capítulo XXIX Os Cachorros e as Árvores Como já disse anteriormente, ao selecionar o elenco infantil de O Menino Maluquinho, procurei também avaliar os adultos que acompanhariam cada criança, pois sabia que seria fundamental estabelecer uma relação de confiança com todos. Felizmente, fiz boas escolhas – como o problema do avião viria a comprovar. Originalmente, o avião pilotado pelo vovô Passarinho seria um Paulistinha, um aparelho compacto e com a cabine fechada. O problema era que suas janelas eram muito pequenas e não permitiriam que víssemos as crianças lá dentro, durante o vôo. Eu estava insatisfeito com a situação, mas não havia muito que pudesse fazer sobre o assunto. Ao se aproximar o dia de filmarmos a seqüência aérea, visitei o aeroporto de Conselheiro Lafaiete, cidade próxima a Tiradentes (onde rodávamos as cenas envolvendo a fazenda do avô), e foi ali que descobri um aviãozinho... digo, um protótipo de aviãozinho que mais parecia uma canoinha com asas. E que era aberto. Surpreso, vi um senhor entrar no aparelho e decolar – aquilo realmente voava! Quando finalmente pousou, fui conversar com o piloto, um mecânico de automóveis que havia construído aquele avião em suas horas vagas, chegando inclusive a instalar dois motores para ter mais segurança: caso um parasse, o outro teoricamente continuaria a funcionar. E se o segundo falhasse, ele ainda conseguiria planar por algum tempo. Conversei durante um bom tempo com o sujeito, que me garantiu que não havia perigo algum em utilizar sua invenção. Achei aquilo genial, parecia mesmo ser algo construído pelo vovô Passarinho! E ainda havia o bônus de poder ver as crianças a partir do helicóptero que acompanharia o vôo! Só existia um problema: eu teria que colocar as crianças naquele avião. E ele teria que realmente voar com elas a bordo. E os pais teriam que dar permissão para que fizéssemos isso. No dia marcado para a filmagem, fomos todos até o aeroporto – e os meninos ficaram instantaneamente alucinados com o aviãozinho. Chamei as mães em um canto e expliquei: – Ó, o negócio é o seguinte: é aquele avião ali que estou querendo filmar. Já conversei com o dono, o aparelho tem dois motores e ainda consegue planar. Eu gostaria de ouvir a opinião das senhoras. Elas fizeram apenas uma pergunta: – Você confia no avião? Eu havia pensando longamente sobre o assunto e, quando respondi, tinha certeza sobre o que estava falando: – Confio. – Então nós também confiamos. Filmamos a cena, que me agradou imensamente. De vez em quando, ainda penso no risco que corremos. Imagina se aquele avião cai? Não tenho o hábito de rodar masters. Em vez disso, pré-decupo cuidadosamente cada seqüência. Sempre achei essa história de master, em que se roda toda a cena para depois cobrir os ângulos, algo extremamente burocrático, típico de Hollywood. Gosto de filmar já montando: aqui introduzo um plano geral; ali corto para perto do personagem; agora faço um close do outro ator; e assim por diante, realizando diretamente os planos que vou precisar. Quando concluí as filmagens de Amor & Cia., por exemplo, o longa já estava praticamente montado; a edição durou apenas quatro semanas. Já O Menino Maluquinho diminuiu a eficiência desse processo, pois envolvia muitas seqüências de ação complicadíssimas. Seqüências como a do cachorro na árvore, a mais complexa da produção. Normalmente, não sinto necessidade de fazer storyboards, mas, num caso como este, que exige extrema precisão, era imprescindível – e foi o próprio Ziraldo quem os desenhou, o que foi um luxo inesperado. No filme, o Maluquinho, o Bocão e o Tonico vão roubar mangas e, de repente, o cão de guarda da propriedade surge e começa a atacá-los, chegando a subir na árvore. As crianças, acuadas, vão escalando os galhos, sempre perseguidas pelo animal, até chegarem ao topo. Quando tudo parece perdido, o vovô Passarinho surge em seu balão e as resgata – bem no momento em que o cão ia alcançá-las. Ora, o primeiro obstáculo era encontrar um cachorro que de fato subisse na árvore – algo quase impossível, já que eles têm medo de altura. Depois de alguma procura, descobrimos uma cadela da Polícia Militar que fazia demonstrações de salvamento e estava habituada a subir numa escada Magirus do Corpo de Bombeiros. Funcionou até certo ponto. No filme, é ela quem inicia o movimento de pular na árvore e aparece nos planos mais afastados em que vemos o animal escalando os galhos. Só havia um detalhe negativo. Ela era extremamente mansa, pois fora treinada para salvamento, não para perseguir bandidos. Era, portanto, extremamente doce: não rosnava, não latia e não fazia cara de feroz. Enquanto buscávamos uma solução para a questão do “temperamento canino”, decidi rodar o final da seqüência, quando o balão chega e salva os garotos. Neste ponto, tivemos que enfrentar outro empecilho. Precisávamos prendê-lo na árvore, para garantir sua estabilidade, mas descobrimos que os balões só podem ser usados em determinadas horas do dia, dependendo dos “ares quentes” ou algo do gênero. Esperamos o tal momento mágico. Para permitir uma maior mobilidade da câmera ao longo da árvore, montamos uma gigantesca estrutura metálica que a circundava, quase como num show de rock. Contando mais uma vez com a cadela “alpinista” da PM, conseguimos o material que precisávamos, e com um bônus: quando apareceu na copa da árvore, o animal estendeu as patas e, num movimento de pinça, “abraçou” a perna (falsa, obviamente) do Bocão, arrancando seu sapato e conferindo maior tensão ao momento. Faltava agora incluir os planos intermediários, nos quais os garotos eram perseguidos enquanto subiam nos galhos. Pedimos outro cão para a Polícia Militar, um que metesse medo. Eles nos emprestaram uma verdadeira fera. Quando o bicho passava perto, era impossível não tirar a perna de seu caminho. Tudo bem, Sr. Cão, estamos prontos para o seu close-up!, pensei. Infelizmente, tivemos uma decepção. Assim que seu treinador o colocou no primeiro andar da árvore, a fera virou um gatinho, tremia de medo. Não houve como rodar um único plano com o animal. E havíamos esgotado nossas opções em Minas Gerais. Parti para a montagem do longa, sabendo que ainda faltava algum material. Na moviola, fui percebendo quais eram os planos de que ainda precisava e, então, marcamos mais um dia de filmagem. Achamos uma mangueira em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, e contratamos uma empresa que preparava animais para aparições em TV e cinema. E foi assim que conseguimos aquele exemplar raro na natureza: um cachorro que continua bravo mesmo em cima de uma árvore. Como queríamos apenas planos mais fechados, apontamos a lente para o cão enquanto uma pessoa ficava ao lado da câmera provocando o bicho, que ficou maluco de raiva. Em pouco tempo, conseguimos o material necessário e encerramos os trabalhos. E, então, no momento em que desmontávamos o equipamento, o cachorro conseguiu escapar e foi direto no pescoço do pobre coitado que passara horas despertando seu ódio. Foi por pouco. Os treinadores conseguiram controlar a fera com dificuldade, mas ao menos evitaram uma tragédia. Balanço da situação: três cachorros e três mangueiras depois, a perseguição na árvore estava pronta. E o resultado ficou tão bom que, na época do lançamento do filme, o Arnaldo Jabor afirmou ter ficado impressionado com a competência com que aquela seqüência fora realizada. Quase tão difícil quanto filmar um cachorro subindo numa árvore é rodar uma boa seqüência envolvendo uma partida de futebol. Na maior parte das vezes, os jogos ficam chatos, perdem justamente aquela que é a maior característica do nosso futebol, o encanto. Além disso, tínhamos um outro fator complicador. No filme, a partida tinha que ser disputadíssima entre a turma da “cidade” e a da “roça”. Só que, com exceção do próprio Samuel, a turma do Maluquinho era ruim de bola, enquanto o time adversário contava com dois gêmeos que davam um show à parte. Se deixássemos o jogo rolar solto, o placar final seria 10 a 0 para a “seleção da roça”. Para piorar, o único craque da equipe da cidade era obrigado a ficar no gol, já que esta era a posição na qual o personagem jogava – algo que deixava o Samuel louco de frustração. A única maneira era armarmos jogada por jogada, filmando-as separadamente. Como adoro futebol (torço pelo Atlético Mineiro), encarreguei-me de criar a “coreografia” da partida ao lado do José Tadeu, o fotógrafo. O truque para evitar que tudo soe falso, “armado” demais, é dar uma certa liberdade para os atores. Assim, separávamos uma determinada faixa do campo e, trabalhando com lentes mais abertas, explicávamos onde a jogada deveria começar e terminar – e a favor de quem. A partir daí, os garotos ficavam à vontade para criar os dribles e passes, conferindo energia ao jogo. Finalmente, chegamos ao ponto em que deveríamos rodar os planos que, numa referência direta ao livro, mostravam o Maluquinho executando diversos saltos para defender os chutes adversários. Para isso, cavamos valas em volta do gol e ali colocamos vários colchões, permitindo que o Samuel saltasse sem receio de se machucar. E então voltei a ser criança e me encarreguei de dar os chutes necessários em direção ao gol. Capítulo XXX Manter-se Criança Sempre que um bebê nasce nas proximidades de um mosteiro, os monges Zen vão observá-lo em silêncio, contemplando sua pureza incomparável. Divido essa admiração com eles; adoro crianças e estou constantemente aprendendo com elas. Essa alegria de viver que elas possuem, e que não é motivada por nada a não ser o simples fato de que estão vivas, é algo com o qual busco impregnar-me. Ziraldo compreende isso muito bem, pois conserva sua infância muito viva dentro de si; é um moleque incrível, admirável. E quando me preparei para dirigir O Menino Maluquinho, uma de minhas principais preocupações era retratar com sensibilidade o que é ser criança, evocando sensações (e idéias) que acabamos esquecendo na medida em que envelhecemos: como o tempo demora a passar; a facilidade com que elas fazem novas amizades; a falta de autocensura; como é gostoso comer até sentir dor de barriga e diversas outras características adoráveis dos pequenos. A cena em que os garotos vêem a mesa de guloseimas, por exemplo, se reflete estritamente na ótica infantil. Fizemos um longo plano, como se a quantidade de doces fosse colossal, e colocamos uma luz sob a mesa a fim de levá-los a brilhar. A idéia da seqüência era a de que talvez os doces não fossem tantos nem tão belos, mas que eram vistos daquela maneira pelos meninos, que pareciam estar entrando em uma câmara do paraíso (não é à toa que o Bocão tira seu chapéu respeitosamente, como alguém que acabou de entrar na igreja). É claro que todos ficaram ansiosos para dar cabo de todas aquelas delícias assim que o plano fosse concluído. Porém, como tínhamos que esperar o material voltar do laboratório para verificarmos se tudo saíra corretamente, a mesa permaneceu intocada por 2 ou 3 dias – e quando finalmente a liberamos, os jovens atores e a equipe simplesmente devoraram tudo. E, assim como acontece no filme, tiveram uma bela dor de barriga. Diversos artistas já disseram isso – a ponto de transformar essa verdade em clichê – mas é essencial manter viva nossa criança interior. É uma pena, portanto, ver como a mídia vem se encarregando de destruir a inocência das crianças. Em O Menino Maluquinho, os garotos cantam Jardineira, o que é inimaginável nos dias de hoje, quando eles são levados a cantar Egüinha Pocotó e dançar Na Boquinha da Garrafa. Esta erotização perversa, representada pela Xuxa e sua invasão do imaginário sexual dos meninos, é algo doentio, trágico. Lembro-me de algo que o Misael, um dos criadores da Rádio Favela, me disse certa vez, ao explicar porque não tocava axé para seus ouvintes: – É uma questão de princípios, Helvécio. Esses caras que fazem essas músicas nunca viram uma menina de 9 anos de idade que foi estuprada. Agora, há uma diferença básica entre erotizar uma criança e retratar o desenvolvimento de sua sexualidade. O curioso é que a mídia, de modo geral, inverte os dois conceitos, em uma lógica maluca liderada pela praga do “politicamente correto”. Assim, ao mesmo tempo em que vemos concursos de “minigarotas do É o Tchan!” em programas dominicais vespertinos, todos se arrepiam quando alguém tenta ilustrar, de forma natural e nada erotizada, todo esse processo de crescimento. Em O Menino Maluquinho, a preocupação era abordar o universo infantil com precisão e, assim, não podíamos excluir a sexualidade, pois isto seria careta e incorreto. Essa curiosidade com relação ao sexo está na infância de todos – daí mostrarmos, no filme, os garotos folheando uma revista masculina. E a breve cena em que o Samuel sai do banho pelado (e que ele fez sem o menor problema, ao contrário do que acontecera em A Dança dos Bonecos) gerou alguns problemas absurdos na carreira internacional do filme. No festival de Halifax, no Canadá, a programação impressa trazia o título Nutty Nutty Boy e, ao lado, acompanhado de asterisco, o aviso: Contém cenas de nudez. Já na época em que o longa foi selecionado para o festival de Chicago, o diretor do evento me enviou um e-mail dizendo que tinha gostado muito do filme e propôs que o exibíssemos nas escolas da cidade. Aceitei a idéia e ele me convidou, inclusive, para acompanhar uma exibição que aconteceria no maior colégio do Estado. Algumas semanas depois, quando eu já estava em Chicago para o festival, ele me chamou para avisar que as sessões nas escolas haviam sido canceladas. O motivo? Ele passara o filme para os diretores das instituições e estes se recusaram a exibi-lo para os alunos, alegando que algum pai poderia processá-los em função da “cena de nudez”. Leia-se: porque tinha um menino de 9 anos pelado em uma cena curtíssima. Não foi à toa que a psicanálise enfrentou tantas dificuldades para entrar nos Estados Unidos e os ensaios de Freud permaneceram proibidos por tanto tempo. A forma com que eles enxergam as crianças remonta ao início do século: elas são seres assexuados que, magicamente, aos 18 anos, descobrem o que é o sexo. Como cineasta, não posso me deixar levar por este conservadorismo babaca. Se estivesse rodando O Menino Maluquinho hoje, faria a cena novamente, sem constrangimentos. Eu jamais me imporia limites criados pela caretice e pela mentalidade reacionária e puritana do “politicamente correto”. Paradoxalmente, embora a sexualidade seja tabu, os norte-americanos têm uma facilidade imensa de aceitar a violência no cinema. Li um artigo da escritora Susan Sontag no qual ela diz que a sociedade norte-americana vai ser lembrada como a sociedade que transformou a violência em entretenimento. Vá entender. O Menino Maluquinho teve sessões impressionantes. Lembro-me de uma exibição em Campos, no Rio de Janeiro, que aconteceu em um cinema gigantesco no qual havia 2 mil crianças. Quando cheguei, elas estavam gritando, alucinadas, numa alegria típica dos brasileiros – algo que perdurou durante toda a projeção. No dia seguinte, fui para a Alemanha, onde acompanhei uma sessão do filme em Frankfurt. A diferença era brutal: as crianças entraram praticamente marchando no cinema, conduzidas em silêncio por professoras com aparência militar. Todos se sentaram calmamente e, por alguns minutos, pensei que a experiência seria um fracasso. Felizmente, estava enganado; elas riram muito o tempo todo. Quando o filme chegou ao fim, fui apresentado ao público e me prontifiquei a responder quaisquer perguntas que quisessem fazer (intermediado pelas professoras, obviamente). Vários braços se ergueram e, quando um aluno recebeu permissão para falar, indagou com curiosidade genuína: – Aquele concurso de pum era de verdade? Criança é um ser universal, com os mesmos sentimentos e sonhos. Por mais excessivamente disciplinados que aqueles pequenos alemães parecessem, ainda eram tão meninos quanto os bagunceiros brasileiros. Não há como reprimir a infância. Capítulo XXXI Narrando com Imagens Quando estou me preparando para rodar um novo projeto, costumo assistir a alguns filmes com o objetivo de estabelecer um certo clima ao lado do fotógrafo e buscar referências de certos tipos de luz. Aliás, estou constantemente vendo longas e curtas-metragens nos cinemas e em DVD, embora diminua o ritmo durante as filmagens de minhas próprias produções – não para evitar qualquer tipo de influência, mas sim por pura falta de tempo e para poder relaxar nas horas de folga, esquecendo um pouco aquele mundo de enquadramentos e movimentos de câmera. Por outro lado, não gosto de “pesquisar” filmes que giram em torno do mesmo assunto que estou abordando. Agora que estou dando início a Batismo de Sangue, não estou certo se quero rever obras que se passam na mesma época, como Pra Frente, Brasil (1982) e O Que É Isso, Companheiro? (1997). E, embora ocasionalmente busque certos tipos de solução para seqüências de ação, não costumo “citar” quadros ou movimentações específicas de câmera. A homenagem que presto a Sergio Leone em O Menino Maluquinho, por exemplo, diz mais respeito ao clima do confronto entre os garotos da cidade (os forasteiros) e os da roça (os locais, que desprezam os “estranhos”) do que exatamente ao local em que posicionei a câmera. (E por falar em referências, os espectadores mais atentos certamente notaram que o vovô Passarinho guarda, em seu armário de remédios, um vidrinho com o bálsamo de Minerva – aquele mesmo que era vendido pelo Mr. Kapa em A Dança dos Bonecos. Normalmente, não curto muito este tipo de brincadeira, mas quando o Tarcísio sugeriu a idéia, não conseguimos resistir à tentação). Imagens e sentimentos caminham de mãos dadas. Gosto muito de narrar por meio de imagens, desde que estas não apresentem metáforas primárias, banais. Há uma cena, em O Menino Maluquinho, na qual o pai do protagonista o leva para o meio de um lago e ali conta que vai se divorciar da esposa. Era importante que as crianças compreendessem a sensação de isolamento que ambos deveriam estar sentindo naquele momento, como se apenas os dois existissem – e acho que conseguimos transmitir este sentimento apenas com o que era visto no plano, sem a necessidade de diálogos que poderiam arruinar todo o clima. Por outro lado, também é possível usar as imagens para desfazer sentimentos, cortar a ligação entre o público e o filme – algo que quase nunca é desejado pelo cineasta, que, ao contrário, quer que o espectador mergulhe o máximo possível na história. Neste sentido, O Menino Maluquinho representa um exemplo raro: a montagem das “melhores cenas” que encerra a projeção, surgindo com os créditos, tinha o propósito de ajudar as crianças a se dissociarem da experiência, como se disséssemos: “Você riu, chorou, se emocionou, torceu, mas tudo era apenas um filme.” Por que fizemos isso? Para que elas saíssem felizes do cinema, afinal, durante o terceiro ato alguns momentos bastante realistas são introduzidos na narrativa, como a morte do vovô Passarinho – e eu queria justamente resgatar a imagem do avô naquela despedida (enquanto isso, o público adulto poderia interpretar aquela montagem como representando as lembranças alegres que o avô deixou para trás). Há algum tempo, assisti com minha filha de 8 anos de idade, Clara, ao terceiro capítulo da ótima trilogia O Senhor dos Anéis, que apresenta seqüências pesadas, fortes – aqueles orcs são terríveis. Em certo instante, percebi que Clara estava muito tensa e comecei a fazer brincadeiras com o filme, para provocar o distanciamento necessário e impedir que os “demônios” marcassem tanto em sua cabeça, apavorando-a. Às vezes, isso é fundamental. Principalmente quando estamos lidando com crianças. Originalmente, eu havia criado um outro final para O Menino Maluquinho, que chegou a ser filmado. A seqüência se passava nos dias de hoje e mostrava quatro garotos jogando bola na rua, exatamente como a turma do Maluquinho fazia no passado. De repente, a bola escapa e um sujeito que está caminhando por ali a intercepta e faz várias embaixadinhas – sem que jamais vejamos seu rosto. Então, ele dá um chute na direção do goleiro, que faz uma bela defesa. Em seguida, na medida em que o homem se afasta da câmera, com as costas para o espectador, as crianças comentam: “Pôxa, que cara legal!”, deixando subentendido que aquele era o Maluquinho já adulto. Infelizmente, a seqüência não ficou como eu esperava. Como toda a equipe já estava muito cansada, não conseguimos capturar a essência do que deveria ser transmitido pela cena, o que foi lamentável. O Menino Maluquinho não participou de nenhum festival de Cinema no Brasil; o filme ficou pronto em março e o lançamos em julho. Para a maior parte das produções, o circuito de mostras e festivais é interessante ao despertar o interesse do público e da mídia, mas, neste caso específico, já contávamos com uma marca forte que atraía naturalmente a atenção de todos. Ainda assim, vencemos alguns prêmios bacanas no exterior, em eventos realizados na Alemanha, no Egito, na Suíça e no Uruguai. O sucesso do filme nas bilheterias brasileiras foi muito importante ao ajudar a alavancar o cinema nacional naquele momento, embora muitas pessoas lembrem-se apenas de Carlota Joaquina – Princesa do Brasil (1995), esquecendo-se de que O Menino Maluquinho conseguiu atrair o número impressionante de 600 mil pessoas em uma época na qual nosso cinema estava praticamente morto. E o que é mais incrível: realizamos o projeto sem a Embrafilme e num período em que a Lei Rouanet estava apenas engatinhando. Aquele foi um projeto muito feliz, que me ajudou a adquirir a experiência de rodar seqüências complexas com pouco dinheiro e de vencer diversos desafios logísticos complicados. Nem preciso dizer que a comunicação estabelecida com o público nos cinemas foi um bônus inesquecível. Como o próprio Maluquinho, senti naquele momento que era capaz de abraçar o mundo com as pernas. É uma pena, portanto, que os acontecimentos que se seguiram acabaram por tirar um pouco a satisfação pelo sucesso do filme – além de colocarem um fim definitivo em uma longa amizade. Tarcísio Vidigal e eu tivemos uma forte relação de trabalho durante todo o período de nossa sociedade no Grupo Novo de Cinema, que estabeleceu presença em âmbito nacional graças aos filmes que realizamos juntos. Na segunda metade da década de 80, porém, comecei a ficar inquieto com a forma com que o Tarcísio administrava nossas produções, especialmente com sua desorganização, e, por esta razão, decidi romper a sociedade e sair do Grupo Novo de Cinema. No entanto, foi uma separação amigável e quando o Tarcísio me convidou para dirigir O Menino Maluquinho, poucos anos depois, não vi problema algum em aceitar e assinei o contrato sem maiores preocupações. Infelizmente, ele não cumpriu sua parte do acordo, o que me obrigou a recorrer à Justiça. Venci em todas as instâncias de um processo lento e doloroso que vem se arrastando desde 1996, destruindo não apenas uma relação profissional que havia entre nós, mas também uma amizade que durou mais de uma década. Capítulo XXXII Quimera e as Estórias Sempre gostei da definição de “quimera” como sonho, desejo, utopia. E adoro os versos de Augusto dos Anjos lidos no enterro de Glauber Rocha: “Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera Somente a Ingratidão – esta pantera - Foi tua companheira inseparável!” Além disso, “quimera” é, também, uma luz de cinema. Assim, quando Simone e eu fundamos nossa produtora, em 1990, o nome surgiu quase que de imediato: Quimera Filmes. Eu já era sócio da VT-3, pela qual realizara O Elixir do Pagé e Um Olhar sobre Barcelona, mas sempre achei que a atividade cultural, por envolver um maior risco financeiro, deveria ser desenvolvida separadamente, deixando a VT-3 desimpedida para assumir projetos mais comerciais, como filmes publicitários e documentários institucionais (aliás, continuo a trabalhar nesta empresa ao lado do meu irmão, Carlos Alberto, e de duas outras sócias, Regina e Mônica). Assim, quando tive a idéia de dirigir uma série de quatro curtas-metragens sobre o centenário de Belo Horizonte, que foi comemorado em 1997, o projeto foi inscrito na Lei Municipal de Incentivo à Cultura por intermédio da Quimera, o que era mais natural. Minha proposta era retratar a capital como eu a enxergava no dia-a-dia, em minhas andanças por suas ruas. Coisas pequenas, sem nenhuma grandiloqüência, mas que permitiam que lançássemos um olhar carinhoso e crítico sobre Belo Horizonte, sem resvalarmos na homenagem formal. Inicialmente, roteirizei e dirigi quatro episódios, que foram patrocinados pela BMS (Belgo Mineira Sistemas) e exibidos antes dos longas-metragens em cartaz nos cinemas Belas Artes, do Pedro Olivotto (um cinéfilo inveterado e um exibidor moderno e aberto do cinema em Minas Gerais). A cada mês entrava uma nova estória, que invariavelmente era bem recebida pelos espectadores, gerando grande repercussão. Além disso, o prefeito em exercício, Patrus Ananias, adorou o projeto e fez uma tiragem grande de cópias para presentear todos os que faziam visitas oficiais à capital. Com isso, a BMS se ofereceu para patrocinar mais quatro episódios, o que foi ótimo. Como os curtas não faziam oficialmente parte das comemorações do centenário, tive imensa liberdade na criação dos roteiros, podendo, inclusive, fazer comentários sobre o que considerava alguns aspectos negativos de Belo Horizonte. E, ao gravá-los em vídeo (em Betacam, diferente do difícil U-Matic de O Elixir do Pagé), pude brincar mais facilmente com os estilos de cada um dos episódios, que, em conjunto, foram batizados de Pequenas Estórias. O primeiro deles, intitulado E os Próximos Cem?, fazia uma síntese da capital, com imagens diferentes, e perguntando o que o futuro lhe reservava. Belo Horizonte, infelizmente, cresce se devorando, não demonstrando preocupação alguma em se preservar (ao contrário de Barcelona, por exemplo). É curioso: a maior parte das cidades cresce para “fora”, preservando um núcleo, um centro histórico no qual as construções mais significativas vão permanecendo. Já em BH, estamos sempre testemunhando a demolição de estruturas interessantes, que dão lugar a shoppings, igrejas evangélicas ou prédios gigantescos. Isto é, obviamente, um atestado imenso de burrice por parte de nossos administradores ao longo das últimas décadas. Por que destruir o Cine Metrópoles para construir um banco no lugar? Não havia outro espaço para que aquele banco pudesse se instalar? Por que não fazer um planejamento mínimo que permita que o novo e o antigo convivam de forma harmônica? A cidade não pode permanecer com os 400 mil habitantes para os quais foi planejada originalmente, é claro, mas será que não pode se expandir para outras áreas e preservar sua história? Este é um tema que me preocupa bastante e que, graças ao Pequenas Estórias, pude explorar no cinema. Já a idéia para o segundo filme, Contratempo, surgiu a partir de um curta-metragem que assisti na Espanha, durante a produção de Um Olhar sobre Barcelona, e que fora produzido no Leste Europeu. A história era contada por intermédio de ações simultâneas que transcorriam em quadros espalhados pela tela (um conceito que mais tarde, três anos depois que rodei este episódio, seria reutilizado por Mike Figgis no longa Timecode, de 2000). Quando vi aquilo, fiquei encantando com a forma narrativa encontrada pelo diretor (cujo nome infelizmente não me lembro) e percebi que ela daria margem a diversas possibilidades e, ao escrever o roteiro, creio que acabei aprimorando-a um pouco, já que “trapaceei” um pouco mais ao esconder pessoas de um quadro em outro, ao incluir uma montanha cenográfica que substitui uma “real” e ao aumentar a interação entre cada uma das divisões na tela. Aliás, Contratempo representou uma exceção em meu processo criativo, pois normalmente defino a linguagem apenas depois que o tema foi desenvolvido. Não sou formalista a ponto de ter a estética definida antes do conteúdo – no entanto, o segundo episódio tinha uma forma narrativa muito radical que era o centro da proposta. A linguagem do cinema diz a respeito à justaposição de cenas que, reunidas, ganham um sentido que não possuem isoladamente. E quando estamos abordando acontecimentos simultâneos, enfrentamos uma limitação óbvia do formato, já que precisamos mostrá-los um após o outro e deixar que o espectador os “remonte” em sua mente, compreendendo que, na realidade, deveriam ser vistos paralelamente. Pois a idéia de Contratempo era justamente apresentar os fatos simultaneamente na tela. O que víamos em um quadro estava ocorrendo ao mesmo tempo do que aparecia em outro. É claro que eu poderia contar aquela mesma historinha de forma tradicional, utilizando cortes, mas não teria a mesma graça: o enredo era extremamente simples e se tornava interessante graças ao formato. Sempre tive uma fixação pelo Viaduto Santa Tereza, que, além de ser um ponto marcante na paisagem da capital, está intimamente relacionado à nossa cultura. Durante os anos 20, autores como Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava costumavam percorrer o gigantesco arco do viaduto, sentando-se lá no alto para apreciar a vista – algo que seria retomado pela geração imortalizada no Encontro Marcado, de Fernando Sabino. E esta relação aparece até mesmo no poema Triste Horizonte, que citamos no curta, intitulado O Poeta e o Viaduto, e que manifesta a rejeição posterior de Drummond a BH. Assim, eu não podia deixar de incluir, na série, aquela imagem clássica – e muitas pessoas vêm me perguntar, ainda hoje, como filmamos aquilo. A resposta é simples: o ator Ricardo Macedo, integrante do Grupo Armatrux, realmente subiu no arco do viaduto. Na época, chegamos a consultar o Corpo de Bombeiros sobre possíveis proteções que poderíamos utilizar durante as filmagens, mas a resposta foi desanimadora. Como não havia uma forma de armar uma rede ali, por falta de pontos de apoio, teríamos que prender o ator em um colete ligado a uma longa corda, e o aparato seria inevitavelmente visto pelo espectador. Sem saber exatamente como faríamos a cena, decidi consultar a parte mais interessada, o próprio Ricardo. A conversa foi rápida e direta: – Ricardo, você tem problema com altura? – Nenhum. – Você faz a cena sem proteção? – Faço. E fez. Estava tão tranqüilo que, durante os intervalos, ficava sentado lá no alto, balançando as pernas como se estivesse em uma mesa de bar. Anos mais tarde, o ator Benjamim Abras repetiria a proeza em Uma Onda no Ar, chegando até mesmo a caminhar de costas sobre o arco. Depois de O Poeta e o Viaduto e Uma Onda no Ar, aliás, creio que finalmente me livrei da obsessão pelo Viaduto Santa Tereza. É hora de buscar outra. O quarto episódio, A Cidade dos Livros, era uma experiência mais simples, embora tenha envolvido muita pesquisa. O objetivo era recordar como Belo Horizonte já havia sido retratada pela literatura. Para fazer as locuções dos trechos citados, escalei, entre outras pessoas, a Simone e minha mãe – que participou pela primeira vez em um de meus projetos. Um pouco depois, ela faria uma ponta em Amor & Cia. como a senhora que vê o personagem do Marco Nanini jogar algumas maçãs no chão e diz: Meu senhor, suas maçãzinhas caíram! Somente por isto, esse episódio já mereceria um lugar especial em minhas lembranças. O quinto episódio surgiu durante o tempo de espera na ante-sala do Gabinete do Prefeito, quando fui conversar com o Patrus em certa ocasião. Olhando para todos aqueles retratos dos antigos administradores de Belo Horizonte, comecei a associá-los aos seus respectivos períodos e julguei que isto daria um curta interessante – e como logo viriam as eleições municipais, percebi que tinha um pretexto adicional para abordar o tema. Filmei os retratos um por um e, na montagem, utilizei o efeito de passar de um para outro como folhas virando em um livro – sempre com imagens da cidade (em seu período histórico correspondente) ao fundo. Por fim, chegávamos a um quadro em branco, indicando a incerteza de quem ocuparia o posto em seguida, e fechávamos com o texto: “Alguns prefeitos a gente nunca esquece. Outros são apenas retratos na parede.” A reação do público nas salas de exibição era sempre entusiasmada. A passagem dos prefeitos mais antigos era acompanhada em silêncio, mas, à medida que íamos chegando ao presente, os espectadores começavam a se manifestar, aplaudindo alguns e vaiando outros. Finalmente, quando surgiam os dois administradores mais recentes, Eduardo Azeredo e Patrus Ananias, a platéia se dividia como numa torcida, aprontando uma barulheira tremenda de apoio ou repulsa, dependendo da afiliação partidária de cada um. Ou seja, o curta acabou ganhando contornos políticos – o que, confesso, não foi de todo inesperado. A Lagoa da Pampulha é o que temos de mais marcante em Belo Horizonte. Não há nenhuma outra intervenção do homem na geografia de uma cidade tão interessante, criativa e atraente como aquela. Porém, na época em que os curtas foram realizados estávamos assistindo ao fim da Pampulha. Chateado com a degradação da região, concebi o sexto episódio da série, Pampulha, Até Quando?, que combinava as imagens sacras de Cândido Portinari presentes na Igreja São Francisco de Assis (mais conhecida como “Igrejinha da Pampulha”) com planos que rodei na própria Lagoa, entrando em seus canais e revelando o grau de destruição em que estes se encontravam. Esta é a essência do cinema: vistas isoladamente, as imagens pouco significavam, mas, contrapostas, criavam um sentido trágico, dramático, quase como num grito de dor pintado por Portinari em reação ao possível fim daquele marco de BH. Felizmente, a Lagoa da Pampulha encontra-se atualmente em franca recuperação. Pé na Roça é um documentário sobre o Mercado Central, mostrando-o tal qual como ele é. O objetivo era ilustrar uma característica marcante de Belo Horizonte: todos temos essa ligação com o interior, com a roça – e o Mercado, por representar isso tão bem, tornou-se um dos principais pontos turísticos da capital. Aliás, a escolha de Tavinho Moura para compor a trilha era uma conseqüência deste raciocínio, já que, ao mesmo tempo em que possui o instinto de um violeiro do interior do Estado, Tavinho é um músico sofisticado e urbano, refletindo-se de forma precisa neste encontro entre o “refinamento” da cidade grande e a autenticidade da roça. Finalmente, o oitavo e último episódio veio da observação direta dos hábitos daqueles que freqüentam a Barragem Santa Lúcia, que costumava servir de cenário para minhas caminhadas diárias. A Barragem surgiu no final do governo Patrus e foi uma iniciativa genial. Antes um lugar pavoroso, um charco que parecia local de desova de cadáveres, ela se transformou em um espaço comunitário com características singulares por situar-se entre um bairro de classe média e uma favela. Para viabilizar a criação do espelho d’água, das pistas e das quadras, Patrus fez um acordo com ambas as comunidades. A Associação Comunitária da favela reivindicou os campos de futebol e os brinquedos para as crianças, por exemplo, enquanto os representantes do outro bairro sugeriram as pistas para caminhada. Ali as contradições sociais são sempre visíveis – e algo que sempre achei fascinante são as formas diferentes com que cada comunidade ocupa o lugar. A classe média fica rodando por ali, fazendo jogging. Já o pessoal da favela não anda por ali, optando por fazer piqueniques, pescar, jogar capoeira e por aí afora. Além disso, há uma diferença no horário. De modo geral, os habitantes da favela descem no domingo à tarde, enquanto a classe média permanece ali no máximo até o meio-dia, uma hora da tarde. E eu quis mostrar esta contraposição no filme. O plano final do curta ilustra outro elemento interessante daquela paisagem, composta por um bairro burguês e uma comunidade carente lado a lado. Enquanto a favela ocupa o morro de forma harmônica, respeitando suas curvas de nível e mantendo-o presente, a região povoada pela classe média resume-se a um paliteiro de prédios, eliminando a geografia original do morro. Por todos esses motivos, batizei este último episódio como Barragem Social. Toda a série de Pequenas Estórias baseia-se em minhas observações como morador da cidade, como alguém que se fascina e se horroriza com suas realidades disparatadas. Já recebi, inclusive, a proposta de retomar o projeto e criar novos episódios, algo que não descarto fazer algum dia. No entanto, se isto vier a se concretizar, pretendo abordar as “gentes” de Belo Horizonte, os grupos humanos que ajudaram a construir a cidade. Como nasceu pouco depois da abolição da escravatura, por exemplo, BH recebeu muitos negros libertos que procuravam reiniciar suas vidas em um lugar que também estava dando seus primeiros passos – e seria interessante levar essas diferentes histórias para o cinema. Realizar Pequenas Estórias foi uma experiência muito gratificante. Além da recepção carinhosa do público, pude realizar deliciosos exercícios de narrativa, e sempre com extrema liberdade – o que, é claro, fez com que eu me sentisse privilegiado, pois, no Brasil, esta é uma oportunidade raramente concedida aos cineastas. Capítulo XXXIII Eça em Minas – Helvécio, você já leu Alves & Cia., do Eça de Queiroz? Foi com esta pergunta que surgiu Amor & Cia., meu terceiro longa-metragem. A indagação foi feita por Leonardo Magalhães Gomes, tio de Simone, que me apresentou ao conto que o escritor português deixara inacabado e que acabou sendo encontrado por seu filho em um baú, tempos depois de sua morte. Quando li o texto, percebi que tinha muitos elementos de O Primo Basílio e girava em torno de uma possível traição – assunto recorrente na obra do Eça. E o mais importante: logo vi que o tipo de humor presente no conto permitia facilmente uma adaptação da história para Minas Gerais, já que os pontos que Eça criticava na burguesia portuguesa eram bastante semelhantes ao que se observava (e ainda se observa) no interior do Estado. Outro detalhe que me atraiu foi que a Lisboa do final do século 19, que servia de cenário para a trama, traduzia-se com perfeição para a São João del Rei daquele mesmo período, quando a pequena cidade mineira tornou-se próspera e luxuosa por localizar-se em um importante entroncamento ferroviário. Contava pontos, também, o fato de que eu poderia me “apropriar” do conto e modificá-lo, pois, além de inacabado, era considerado uma obra menor na carreira do Eça de Queiroz, o que certamente diminuiria a pressão sobre meu trabalho. Ainda assim, eu queria complementar a história com elementos de outras obras do escritor, a fim de manter-me fiel ao seu estilo – e, para isso, vasculhei seus livros, debruçando-me com particular atenção sobre Os Maias e O Primo Basílio. E, claro, alterei detalhes do original. Ao final de Alves & Cia., por exemplo, o personagem-título encontrava sua esposa, Ludovina, lendo uma carta, mas o incidente não tinha maiores repercussões. Pois decidi aproveitar aquilo para puxar um outro fio que poderia despertar novas tensões: que carta era aquela? Quem a enviara? O que dizia? Além disso, o livro terminava de forma fria, ao passo que optei por concluir a história com um olhar mais cínico sobre o compromisso burguês assumido pelos dois homens, Alves e Machado. Depois de desenvolver o argumento final, entreguei a tarefa de escrever o roteiro ao meu irmão, Carlos Alberto, com quem estava habituado a trabalhar na VT-3, na qual já éramos sócios. Não foi uma tarefa fácil, pois tínhamos que estabelecer bem aquele conflito e sua resolução, mas sem jamais resvalarmos no humor rasteiro, escrachado, que seria o mais óbvio em função do tema “adultério” – e, embora um dos tratamentos tenha investido neste aspecto, não queríamos fazer uma chanchada e logo alteramos o tom da narrativa para refletir isto. Creio que fomos bem-sucedidos. Quando o filme estreou em Portugal, confesso que temi a reação dos estudiosos de Eça, já que este é muito cultuado por lá, mas Amor & Cia. foi muito elogiado e, curiosamente, percebi que algumas sutilezas foram melhor captadas pelo público lusitano, que ria de alusões que aqui passavam desapercebidas. Para mim, ficou claro desde o início que o filme deveria ser rodado em São João del Rei, uma cidade que eu conhecia bem, pois, durante a infância, costumava ir com papai para a casa de minha avó, que lá morava (a família Ratton era de lá). E, como tantas outras cidades profundamente ligadas à história de Minas (como Ouro Preto e Tiradentes), seus habitantes possuem uma certa conexão inquebrável com o passado, com suas origens e seus antepassados. Por tudo isso, acreditávamos que seria um pouco mais fácil fazer a reconstituição de época ali. Assim, eu e Clóvis Bueno viajamos para São João a fim de estudarmos as locações – e, quando voltei para Belo Horizonte, ele ficou por lá, tentando conseguir objetos do período que iríamos retratar. Alguns dias depois, ele me ligou desanimado: – Helvécio, os objetos simplesmente não aparecem. Acho que teremos que recorrer aos antiquários do Rio e de São Paulo, para onde vão muitos itens de época de Minas Gerais. Achei aquilo estranho e desconfiei que Clóvis estava sendo apenas mais uma vítima da tradicional desconfiança mineira. Voltei a São João e expliquei a situação para alguns parentes, colocando-os para “trabalhar” seus conterrâneos. Pouco depois, as coisas começaram a aparecer: pianos fabulosos, salas de jantar imensas, objetos lindíssimos e uma infinidade de outros itens. E, além de conseguirmos o que precisávamos, tive a oportunidade de fortalecer meus laços familiares, transformando aquela experiência em algo ainda mais gostoso. Amor & Cia. é um filme que mostra, na tela, um luxo maior do que aquele que poderia ter sido comprado com nosso médio orçamento. Isto se deve não apenas à boa administração dos recursos (Simone foi a produtora), mas também à colaboração dos habitantes da cidade (que cederam, como já expliquei, vários objetos usados em cena) e ao apoio logístico oferecido por alguns órgãos e secretarias governamentais. O imóvel que usamos como a casa de Alves, por exemplo, pertencia à Secretaria de Educação e nos foi emprestado sem qualquer tipo de exigências – a não ser, é claro, a de que a reformássemos, pois se desconfiava que ela não iria durar muito tempo em pé. Reforçamos a estrutura, pintamos sua fachada e os imensos aposentos que utilizaríamos – um trabalho coordenado cuidadosamente pela Vera Hamburger, que também distribuiu os objetos que conseguíramos de acordo com as pesquisas que fizera ao longo dos meses. Tivemos, ainda, que construir uma parede de vidro que desempenharia um papel importante na história. No texto original do Eça, havia um reposteiro separando dois ambientes e o Alves, ao puxar uma dessas pesadas cortinas, descobria a esposa em situação comprometedora ao lado de Machado, seu melhor amigo. Eu considerava aquilo pouco cinematográfico e decidi que seria melhor colocar uma espécie de biombo de vidro entre marido e esposa – e, finalmente, optamos pelo vidro bisotê, que criava certa deformação, uma confusão visual que se refletia no estado emocional do próprio Alves, além de impedir que ele compreendesse perfeitamente o que estava vendo. Já o escritório de Alves e Machado foi construído em um dos vários armazéns cedidos pela administração da Central Ferroviária da cidade (utilizamos os demais galpões como escritórios da produção, guardando objetos, equipamentos e os magníficos figurinos criados por Rita Murtinho). Para criar a empresa dos dois personagens, Clóvis não apenas ergueu o cenário num dos galpões, como ainda fez um belo trabalho ao acrescentar barris, sacos e diversos outros itens que ilustravam bem a linha de operação do protagonista. Aliás, poucas vezes tive estúdios tão bons para trabalhar como aqueles. Como iríamos filmar importantes seqüências nas ruas de São João del Rei, era fundamental que corrigíssemos alguns problemas nas fachadas de certas construções. Em certo momento, por exemplo, Alves vai comprar uma jóia para Ludovina e passa perto do prédio da Prefeitura que, infelizmente, estava pintado com cores horríveis. Portanto, precisávamos consertar aquilo (entre muitas outras coisas) antes das filmagens. Depois de consultarmos a Jurema Machado, do IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico), definimos quais seriam as cores coerentes para a época e procuramos uma grande fabricante de tintas, que se dispôs a nos ceder a quantidade de que precisássemos. Assim, fomos até o prefeito de São João, explicamos que daríamos a tinta para pintar o prédio e que precisaríamos apenas da mão-de-obra. Na realidade, nossa necessidade dizia respeito apenas às duas fachadas que seriam vistas no filme, mas obviamente ele não iria querer que as demais ficassem diferentes e, portanto, esclarecemos que a tinta seria suficiente para fazer todo o trabalho. Vários anos se passaram até que alguém finalmente tomasse a iniciativa de pintar as fachadas que não apareceram em Amor & Cia. Capítulo XXXIV Viagem ao Passado Filmar Amor & Cia. exigiu um trabalho de pesquisa e uma logística impressionantes. Como concentraríamos as filmagens no núcleo histórico de São João del Rei, que se encontrava muito desfigurado, fomos obrigados a fazer intervenções enormes, removendo placas, pintando casas e erguendo tapumes que tampassem tudo aquilo que não deveria ser visto. Como estávamos no centro de São João, obviamente tínhamos que contar com a compreensão e o apoio dos habitantes da cidade e também da Associação Comercial e dos lojistas. Para descobrir como era a São João no final do século 19, contratei uma pesquisadora que me forneceu vastas informações sobre os usos e costumes do período, incluindo até mesmo a origem de várias palavras de nossa língua (descobri, por exemplo, que o termo “enfezado” veio dos escravos que eram encarregados de carregar as fezes acumuladas para o rio, ao fim de cada dia. Eles iam levando baldes de fezes sobre a cabeça – e não é difícil imaginar que realmente estivessem “enfezados”, não apenas no sentido literal, mas na forma com que a palavra é empregada atualmente). Enquanto isso, Clóvis Bueno e Vera Hamburger realizaram suas próprias pesquisas a fim de definirem o visual que a rua principal teria no filme. Consultaram jornais da época e chegaram inclusive a resgatar nomes de lojas famosas, como “O Luto Elegante”, que acabaram aparecendo na tela. Durante os oito dias de filmagem na locação, a rua ficou “montada”, como se tivesse voltado um século no tempo, pois tivéramos um cuidado imenso com os detalhes, preparando uma infinidade de placas, toldos e outros objetos de cena. Outro elemento marcante do filme, obviamente preparado especialmente para a produção, foi o retrato de Ludovina, pintado por um grande artista mineiro, José Maria Vargas. A obra foi feita em minha casa. Patrícia Pillar viera do Rio de Janeiro e posara para o pintor depois de definirmos exatamente a composição e a pose do retrato, que ficou maravilhoso. Na véspera do início das filmagens, José Maria ainda foi a São João para alguns retoques finais e finalmente anunciou que estava pronto. O quadro ficou na parede da casa de Alves durante toda a filmagem. Quando os trabalhos chegaram ao fim, voltei para Belo Horizonte enquanto Simone permaneceu em São João para coordenar a desprodução e despachar tudo pelos caminhões. No dia seguinte, ela me telefonou: – Helvécio, o quadro sumiu. Alguém havia roubado o retrato de “Ludovina” em sua última noite na casa de “Alves”. Ainda fomos à rádio da cidade e anunciamos o desaparecimento, pedindo que ele fosse devolvido, mas nunca mais o vimos, o que sempre me deixou bastante chateado. A idéia era exibirmos o quadro durante os eventos de lançamento do filme e, depois, dá-lo de presente a Patrícia. Agora ele está escondido na casa de algum gatuno. Praticamente paralisávamos toda a cidade quando íamos rodar algum plano. Estávamos fazendo som direto, e o José Moreau Louzeiro, nosso técnico de som, era um profissional com um rigor imenso – a única forma de evitarmos que ruídos não relacionados ao filme acabassem vazando era realmente interromper o funcionamento de São João del Rei. Tínhamos membros da equipe ao lado de guardas de trânsito em cada semáforo situado na região em que estávamos trabalhando. Quando íamos rodar, dávamos o aviso através de walkie-talkie e o tráfego era interrompido na área, voltando a ser liberado quando gritávamos o Corta!. Eram, portanto, paradas intermitentes que poderiam irritar a população, que, apesar disso, nos ajudava de todas as formas possíveis, por ter consciência de que o filme estava retratando a cidade de forma positiva e que isto poderia até mesmo ajudar a incentivar a visita de turistas. Interrompíamos até mesmo os ensaios em um conservatório de música situado atrás da casa do Alves. Quando íamos filmar, tocávamos um sino que instalamos no fundo da construção e eles descansavam os instrumentos por algum tempo. Durante os dois meses que trabalhamos em São João del Rei, a população foi simplesmente adorável. Chegamos a utilizar cerca de 300 habitantes locais como figurantes, o que deu bastante trabalho para minha assistente de direção, Márcia Farias, que, no entanto, saiu-se muito bem. Era lindo ver aquela multidão usando roupas de época e passeando pelas ruas que, transformadas, pareciam ter parado no fim do século XIX. Era como se tivéssemos viajado no tempo. Capítulo XXXV Trabalhando com o Ator Conheci Patrícia Pillar quando fomos jurados no Festival de Gramado em 1989 (o mesmo no qual exibi O Elixir do Pagé em sessões “clandestinas”). Depois de convidá-la para atuar em O Menino Maluquinho, senti que era inevitável escalá-la como a Ludovina de Amor & Cia. Temos uma parceria de trabalho muito forte. Além de ser uma excelente atriz, Patrícia é muito inteligente e leal, jamais deixando de questionar, criticar ou provocar quando julga ser necessário. Além disso, há o óbvio: a câmera a adora. A sugestão para que convidássemos o Marco Nanini para viver Alves partiu dela e, juntos, fomos a um espetáculo que Nanini estava protagonizando (era um texto de Molière, mas não me lembro qual). Eu já estava com um roteiro na pasta e, quando a peça chegou ao fim, fui direto ao camarim e o entreguei a Nanini, convidando-o para participar do projeto. Poucos dias depois, ele me ligou, aceitando a oferta. Ter um ator como Marco Nanini em seu filme é um luxo absoluto. O rigor com o qual ele se entrega ao trabalho é admirável, pois estuda o personagem à exaustão: o roteiro que ele carregava para cima e para baixo tinha uma infinidade de marcas azuis, vermelhas e amarelas, além de diversas anotações espalhadas por todo o texto. Ele analisava com profundidade cada emoção, cada diálogo e cada movimento do Alves, deixando, ainda, espaço para o inesperado, para o improviso (aliás, a melhor forma de improvisar é através da preparação, ao contrário do que muitos acreditam). Calmamente, Nanini ia mergulhando no personagem, até que, de repente, sumia. No início, tinha muitas dúvidas, fazia perguntas, sugeria caminhos e soluções, mas aos poucos foi dominando Alves completamente, como se tivesse sempre conhecido aquela figura. Combinamos que ele chegaria em São João del Rei uma semana antes das filmagens, para poder deixar para trás todas as demais atividades que vinha desenvolvendo (além de ator, Nanini é produtor, o que implica uma série de responsabilidades e compromissos profissionais). Mas quando chegou, já estava pronto; até mesmo a forma de andar do Alves já estava definida. Aquele era, claro, um personagem difícil. Como estava em uma posição ridícula, Alves poderia facilmente ter se tornado alvo da zombaria do espectador, já que era um burguês pomposo e corno. Contudo, não queríamos simplesmente rir dele, pois isto impediria que o público se importasse com seu sofrimento. Assim, Nanini (auxiliado por mim, como diretor) tinha que manter a dignidade e a humanidade de Alves, mas deixando espaço para o humor – e sem permitir que o riso obscurecesse sua dor. Como eu disse, era um trabalho complexo. Nos últimos quatro anos, Alexandre Borges participou de vários longas-metragens, mas quando o escalei para o papel de Machado, em 1997, ele havia feito poucos filmes. Além de ser bonito o bastante para dar vida a um personagem galanteador, Alexandre tinha algo fundamental – talento. Como ator de teatro, ele possuía os recursos dramáticos que eu procurava para enriquecer o elenco – e era importante que o ator escalado para interpretar Machado tivesse personalidade suficiente para não se apagar em frente de Nanini e Patrícia, dois artistas brilhantes. Da mesma forma, o elenco secundário contava com nomes de peso, como Cláudio Mamberti (que protagoniza um momento genial, quando mal esconde sua excitação ao ouvir a história sobre a possível traição de Ludovina), Nelson Dantas (um veterano admirável) e Rui Resende (de quem também gosto muito). Ainda assim, minha maior descoberta, em Amor & Cia., atendia pelo nome de Rogério Cardoso. Até aquele momento, Rogério interpretara tipos mais popularescos, de humor menos sofisticado, embora fosse um ator refinadíssimo. Como o humor de Eça de Queiroz sempre foi muito apurado, eu sabia que precisaria de alguém com grande veia cômica para viver Neto, o pai de Ludovina – e, além de sempre considerar Rolando Lero o melhor personagem da Escolinha do Professor Raimundo, eu percebia em Rogério outras possibilidades e uma sutileza digna de um mestre. Já nas leituras iniciais confirmei minha impressão. Eu não conseguia parar de rir da forma sempre inspirada com que ele lia os diálogos de Neto, explorando com competência o cinismo daquele sujeito que via, na crise vivida por sua filha, a oportunidade ideal para arrancar dinheiro do genro. E tive, a partir daí, ainda mais confiança em desenvolver o relacionamento do personagem com a criada – algo que era levemente sugerido pelo livro, mas que acabamos realçando bastante. Eu gostava muito do Rogério e queria ter tido a oportunidade de filmar com ele mais uma vez. Sua morte precoce e inesperada foi um choque doloroso para todos que o conheceram. No período que antecedeu as filmagens, Marco Nanini e Patrícia Pillar fizeram um detalhado estudo de como as pessoas falavam e se comportavam no final do século XIX. Trabalhando com Ivaldo Bertazzo, um grande dançarino, coreógrafo e preparador de atores, Nanini desenvolveu até mesmo a forma do personagem caminhar, enquanto Patrícia se preparou exaustivamente para tocar a difícil música que abre o filme, Quem Sabe?!, não apenas cantando, mas também a executando no piano (durante os créditos finais, ela é acompanhada pelo Nanini). Quando você tem bons atores em mãos, não diz a eles como devem andar, gesticular ou falar “Bom dia”. Isto seria inclusive um insulto à capacidade daqueles profissionais. O papel do diretor é ajudá-los a decifrar o personagem: quais são suas intenções, por que age de determinada maneira, como chegaram até aquele ponto visto no filme. Já a definição de como viver o papel compete somente ao ator e, à medida que este vai compondo o personagem, dou algumas indicações para me assegurar de que o resultado final será condizente com a proposta geral da produção, impedindo que cada intérprete pareça ter saído de um universo diferente. É o diretor quem cria esta unidade e, para isto, começo a ler o roteiro separadamente com cada integrante do elenco, passando em seguida a trabalhar em pequenos grupos, até integrar todo mundo. Apesar de toda esta preparação, a filmagem ainda representa (pelo menos, para mim) a etapa de maior ansiedade em todo o processo – e, mesmo então, jamais desgrudo os olhos do ator. Hoje em dia, é mais comum que o cineasta acompanhe tudo através da tela do monitor, e nem tanto pelo visor da câmera (embora, durante os ensaios, eu faça questão de usar o visor), mas não gosto de ficar de costas para a cena. Assim, gosto de colocar o monitor bem próximo da ação, bastando levantar os olhos para ver o que está sendo filmado: o ator, o set e as luzes. Capítulo XXXVI O Filme e Suas Circunstâncias Amor & Cia. é um filme que está sempre oscilando entre o drama e a comédia, o que representa um desafio difícil para o diretor. Se não houver um equilíbrio cuidadoso entre estes extremos, há o risco de diluir o drama e enfraquecer a comédia, falhando nos dois campos. Neste aspecto, fui fiel ao sentimento do Eça de Queiroz, que trabalhava bem com esta dicotomia (especialmente em O Primo Basílio): quando o leitor está prestes a se enternecer com algo, ele escapa pelo riso e cria um distanciamento. O Marco Nanini, aliás, dizia que eu lidava bem com este tipo de humor – não o humor da gargalhada aberta, mas aquele do riso de canto de boca, irônico, típico dos mineiros. Esta é uma marca pessoal que coloquei no longa – e, quando Amor & Cia. participou do Festival de Mar del Plata, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, que era presidente do júri, comentou com o Luiz Carlos Barreto (que depois me contou) que o filme ia no fio do melodrama, mas sem resvalar neste, lidando muito bem com o burlesco. Coincidência ou não, saímos do festival com o prêmio de melhor filme ibero-americano. Esta complexidade no tom de Amor & Cia. deveria, claro, ser refletida em sua trilha e, para desempenhar esta tarefa, convidei o Tavinho Moura, cujas experiências com o Carlos Alberto Prates Pereira em Perdida (1976), Cabaret Mineiro (1980) e Noites do Sertão (que produzi em 1984) haviam me convencido de seu imenso talento, não apenas como músico, mas como compositor de cinema. Como eu já esperava, ele não me desapontou. Sua trilha era incrivelmente densa, indo do humor ao drama, passando pela opereta. E, para gravar os temas, Tavinho montou uma pequena orquestra de câmara especialmente para o filme, usando os instrumentos para pontuar a ação (como na cena em que Alves segue Ludovina). Para um diretor, a definição da trilha já começa com a escolha do compositor mais adequado para o projeto e continua até o fim da mixagem. Na cena do duelo, por exemplo, sugeri que Tavinho adotasse um estilo meio Piazzolla, pois, como aquilo era apenas um sonho do Alves, nada seria melhor para se refletir neste fato do que o tango, que combina tragédia e farsa de maneira inigualável. Porém, somente um compositor com recursos é capaz de lidar com todas estas possibilidades – e Tavinho Moura é um dos melhores. Como comentei ao discutir O Menino Maluquinho, sou muito econômico ao filmar. Como gosto de rodar os planos já montando, graças a uma decupagem cuidadosa, praticamente obtive um rendimento de 100% do que filmei: descartei uma única cena, na qual os comerciantes da cidade falavam sobre o Alves e a Ludovina enquanto bebiam em um quiosque na rua – e, mesmo assim, só a excluí da versão final porque não a considerei bem resolvida. Além disso, já trabalhávamos a comédia na própria mise-en-scène, não na montagem. Respeito muito o tempo do ator, não me apresso em cortar quando este acabou de fazer um gesto ou de dizer sua fala. E, em Amor & Cia., utilizamos alguns longos planos para transmitir idéias e sensações que talvez se perdessem em seqüências com muitos cortes. Logo no início do filme, por exemplo, acompanhamos Alves enquanto este entra em sua casa, sobe as escadas, pendura o chapéu, guarda a bengala, vê o relógio, caminha por um corredor e finalmente vê Ludovina através do vidro bisotê – e como não fizemos corte algum, o espectador começa a ficar tenso, sabendo que algo vai acontecer com aquele personagem. O problema é que não estávamos em um cenário montado em estúdio, mas num casarão verdadeiro, que não podia ser adaptado às nossas necessidades. Isto exigiu que fizéssemos um planejamento rigoroso: a steadycam respirava com Nanini, seguindo-o de perto ao mesmo tempo em que evitava sombras e reflexos indesejados. Aliás, este foi um filme de engenharia cuidadosa, de quadros precisos e movimentos estudados. Outro longo plano que fizemos representou uma opção corajosa do ponto de vista técnico e narrativo e exigiu do Nanini uma concentração absurda, pois ele teria que se entregar totalmente ao personagem e, ainda assim, manter-se atento à marca estabelecida com a câmera. A cena em questão é aquela em que Alves abraça uma prostituta em um cabaré e esta começa a cantar. Tudo tinha que encaixar: a música, o movimento da câmera e a emoção do ator. Enquanto a moça cantava, fazíamos um travelling que lentamente aproximava Alves do espectador – mas Marco Nanini, sendo o ator maravilhoso que é, foi além e, pegando todos de surpresa, começou a chorar no colo de sua companheira de cena. Quando finalmente cortamos, eu (como toda a equipe) estava emocionadíssimo e, sem dizer nada, me aproximei do Nanini e o beijei. É por isso que é tão importante criar boas condições de trabalho em um set: o ator deve sentir-se à vontade para deixar suas emoções aflorarem – e o diretor tem que ter a sensibilidade e o respeito para não cortar de imediato, esperando sempre um pouco mais, para ver o que o seu elenco irá fazer. Reza a lenda que, quando Elia Kazan estava se preparando para rodar a morte de Emiliano em Viva Zapata! (1952), Marlon Brando se aproximou do diretor e avisou: Não grite corte! – e Kazan só compreendeu a sugestão depois que viu o que o ator tinha preparado: além de “morrer” de cócoras (um dos momentos inesquecíveis do cinema), Brando tinha sempre uma mexidinha, um tremor ou um outro detalhe para acrescentar. Este é o segredo: se não houver uma cumplicidade entre o diretor e o ator, tudo se complica. Como cineasta, minha jornada com o elenco recomeça todos os dias, mas vai crescendo ao longo das filmagens e só se fecha quando rodamos o último plano. Quando fiz A Dança dos Bonecos, eu ainda não havia descoberto que a filmagem é apenas parte de todo o processo. A partir do momento em que você parte para a pós-produção, há inúmeras possibilidades de reescrita através da montagem, da mixagem e da fotografia final. E foi somente depois que me dei conta disso é que percebi que, ao longo do caminho, devemos abraçar a possibilidade da imperfeição. Explico: desde que não comprometa a obra, pequenos erros e contratempos podem contribuir bastante para tornar o filme mais real e estabelecer uma certa cumplicidade com o espectador. Na seqüência em que o Alves seguia Ludovina, por exemplo, Nanini escorregou em um degrau ao se esconder do olhar de Patrícia Pillar, mas manteve-se concentrado e deu prosseguimento à cena como se nada tivesse acontecido. Ora, aquilo era perfeito para um personagem que beirava o ridículo e, portanto, mantivemos o “deslize” na versão final. Em todos os meus trabalhos, procuro sempre adaptar a realidade à minha necessidade expressiva, extraindo do ambiente o que quero e tirando do quadro o que não me interessa. O cinema absorve a imperfeição, é o que aprendi. Mais: ele vive dela. Parafraseando Ortega y Gasset, eu diria que um filme é um filme e suas circunstâncias. Capítulo XXXVII Nanini e o Trem O maquinista estava morrendo de medo. Não era para menos; afinal, eu estava pedindo que ele acelerasse a locomotiva ao máximo enquanto esta se aproximava não apenas da câmera, mas de Marco Nanini, que se encontrava desprotegido, agarrado a um pilar situado a vários metros de altura. A seqüência do trem envolveu muitos riscos. Era importante que o espectador percebesse que Alves estava em um momento de extrema fragilidade, considerando a possibilidade de suicidar-se. Deprimido, o sujeito caminha por um trilho erguido sobre um abismo e contempla a idéia de saltar dali – até que, no melhor estilo Eça de Queiroz, uma locomotiva surge de repente e Alves percebe que, afinal de contas, não quer morrer e agarra-se apavorado na estrutura da ponte enquanto os vagões passam a centímetros de distância de seu corpo. Para criarmos a sensação de medo, era importante que o espectador pudesse perceber que o personagem estava mesmo em uma situação difícil – e, como eu queria mostrar o rosto de Nanini para capturar suas expressões, decidi ater-me ao real e usar uma linha de trem, uma locomotiva e uma ponte verdadeiras. O problema era convencer o maquinista a acelerar o trem. No primeiro plano que rodamos, não houve emoção alguma: quando saiu da curva em direção à ponte na qual Nanini se encontrava, o condutor reduziu a marcha e se aproximou lentamente do ator. Não funcionou. Fui conversar com ele: – Vem com tudo! Você tem que vir com tudo! – Mas eu vou atropelar este cara! – Ele está sabendo. – Como assim, “ele está sabendo”? É muito perigoso! – Eu já disse: ele está sabendo. – Mas eu vou atropelar o cara, a câmera, a sua equipe e você! – Nós estamos sabendo. Vem com tudo! Nós conhecemos os riscos. A sua parte é vir para valer, só isso. E ele veio. Quando saiu da curva, botou carvão na máquina e se aproximou a toda velocidade. É claro que já tínhamos feito testes, ensaiado com o trem (não tão rápido) e calculado a distância ideal para posicionarmos a câmera. Mas era impossível não sentir medo – especialmente o Nanini, agarrado em uma viga a metros de altura do chão enquanto um trem em alta velocidade passava ao seu lado, fazendo toda a ponte estremecer violentamente. Mas mesmo conhecendo o perigo, ele não hesitou em fazer a cena. Como eu já disse antes, é um luxo poder contar com um ator como Marco Nanini. Usar noite americana nem sempre é uma boa solução. O problema é que, para filmar na noite verdadeira, é preciso contar com uma grande quantidade de luz. Não basta apenas iluminar o(s) ator(es), é necessário cobrir também o fundo do quadro, a fim de criar uma profundidade de campo ideal. E, mesmo molhando o chão para ajudar na difusão da luz (já notou como, nos filmes, sempre parece ter chovido nas cenas noturnas?), é um processo complicado e dispendioso. Ainda assim, raramente uso a noite americana, optando, sempre que possível, pela dificuldade logística imposta pelos planos noturnos. Por quê? Simples: nada se iguala ao que é real; para “enganar” o espectador de fato, é preciso gastar fortunas na pós-produção – um luxo ao qual os cineastas norte-americanos podem se entregar, mas não os brasileiros (pelo menos, na maior parte do tempo). Em Amor & Cia., no entanto, o fotógrafo José Tadeu Ribeiro e eu utilizamos a noite americana em um determinado momento – a seqüência de sonho de Alves, na qual o protagonista surge duelando com Machado. Decidimos abrir uma exceção técnica neste caso por dois motivos. Em primeiro lugar, eu queria mostrar a cidade e as montanhas ao fundo, mas, para fazer isto à noite, precisaríamos de um verdadeiro parque de luz (nos faroestes americanos, sempre que há um plano geral noturno exibindo formações rochosas como aquelas do Monument Valley – vide os filmes de John Ford – o efeito foi empregado; não há luz capaz de iluminar tudo aquilo, a não ser a que vem do sol). Além disso, fazia sentido utilizar este recurso do ponto de vista narrativo, já que o clima irreal produzido pela noite americana era ideal para o sonho de Alves. O cinemascope é um formato belíssimo e muito elegante. E como Amor & Cia. era um filme de época, eu queria realizá-lo com um requinte estético, explorando bem a cenografia e as locações de São João del Rei. E, além de tudo, o cinemascope é ótimo para se mostrar dois ou mais personagens no mesmo quadro, dialogando. Depois de alguns testes, comprovamos que a única grande dificuldade apresentada pelo formato residia na necessidade de um grande recuo de câmera, o que poderia nos atrapalhar quando estivéssemos trabalhando em espaços reduzidos. Por outro lado, os casarões nos quais rodaríamos a maior parte das seqüências (incluindo o que usaríamos como residência de Alves) eram grandes e espaçosos, o que contou pontos importantes quando tomamos a decisão final. Infelizmente, quando o filme foi lançado em vídeo, perdemos todo aquele trabalho cuidadoso de composição, pois, como na época não existia o DVD, tivemos que retalhá-lo para o modo full screen. E, mesmo que o Tadeu (fotógrafo) tenha acompanhado o processo de transferência, era impossível fazer jus ao formato original. Porém, se teimássemos com o widescreen, prejudicaríamos as vendas, pois, além da resolução inferior do VHS, o quadro ficaria muito estreito em função da razão de aspecto do cinemascope. Mas quando Amor & Cia. for lançado em DVD (o que deve acontecer em breve), pretendo incluir os dois modos de tela: full e wide, além da cena deletada envolvendo os comerciantes da cidade. É possível que também coloque O Elixir do Pagé como bônus especial; afinal, os dois trabalhos possuem muito em comum. Amor & Cia. é dedicado ao meu pai, que era de São João del Rei e fora importante fonte de inspiração, e ao pai de Simone, que morrera durante as filmagens, em função de um infarto. Como adorava o Eça de Queiroz, ele dera várias idéias durante a fase de roteirização, chegando a sugerir que modernizássemos o texto, trazendo-o para os dias de hoje (algo que descartei por me impedir de utilizar aquilo que achava mais interessante na história, a possibilidade real de um duelo). E sempre desconfiei que, caso Alves e Machado existissem na atualidade, resolveriam seus problemas no fórum, através de um duelo entre seus advogados. O mundo moderno muitas vezes acaba com o romantismo. Capítulo XXXVIII Você Está na Favela! Meu interesse pela Rádio Favela surgiu no final de 1998. Eu ainda estava me “despregando” de Amor & Cia., que fora lançado pouco antes, e já decidira que, depois de filmar duas histórias de época (os anos 60 de O Menino Maluquinho e o final do século 19 de Amor & Cia.), meu próximo projeto deveria ter um tema atual – e estava aberto a novas idéias. Certo dia, procurando algo interessante para ouvir no rádio do carro, encontrei a Rádio Favela, que chamou minha atenção imediatamente. Atualmente, todas as emissoras são muito parecidas e seguem uma linguagem hegemônica, contratando locutores sem características que os destaquem dos demais e veiculando sempre as mesmas músicas. De repente, uma voz nada empostada começou a sair da caixa de som e, antes que me desse conta, já estava prestando atenção ao que ela dizia. Minha curiosidade foi imediatamente despertada pela forma singular com que o apresentador explicava para os ouvintes as notícias que acabava de ler. Nas semanas seguintes, sempre que tinha oportunidade, questionava meus amigos sobre a tal Rádio Favela, procurando descobrir mais e mais sobre sua história. Em pouco tempo, já ouvira dezenas de relatos sobre um de seus criadores, Misael dos Santos (muitos dos quais haviam sido claramente aumentados com o passar do tempo, transformando-o numa espécie de “super-herói” local, responsável pelo resgate de vítimas das mãos de traficantes e por aí afora). Decidi que deveria subir o morro e conversar com aquelas pessoas. Era carnaval de 1999 e eu estava completamente à toa em Belo Horizonte, o túmulo do samba, quando decidi ligar para o Misael e me apresentar. Ele me conhecia de nome e aceitou bater um papo comigo e, naquela mesma tarde, fui até o Aglomerado da Serra, onde a rádio funcionava. A princípio, percebi uma forte desconfiança por parte dele e do Nerimar, outro dos fundadores da entidade, que me consideravam um play, um cara do asfalto que queria apenas “se meter” nas coisas deles. Por outro lado, eles haviam ficado claramente interessados na minha idéia de talvez realizar um filme (curta ou longa) sobre a trajetória que haviam percorrido ao longo dos anos. Descartando a idéia de fazer um documentário (já que a Rádio tinha sido personagem de diversas matérias das emissoras de TV locais), constatei que, antes de formatar um projeto, precisava conhecer a fundo aquela história. Convidei o Eid Ribeiro para realizar uma série de longas entrevistas com todas aquelas pessoas: Misael, Nerimar, Dona Mariquinha, Hudson e outros integrantes da Rádio. Eid sempre foi um ótimo interlocutor e, ao todo, conseguiu um material que, depois de digitado, rendeu mais de 200 páginas de depoimentos. Conheci o roteirista Jorge Durán no Chile, em meu período de exílio, e nossos caminhos voltaram a se cruzar em 1986, quando ambos lançamos nossos longas-metragens de estréia, que acabaram competindo juntos no Festival de Brasília daquele ano: A Cor do Seu Destino venceu cinco prêmios, e A Dança dos Bonecos, quatro. Eu admirava sua postura ideológica e julguei que ele seria mais do que adequado para trabalhar no roteiro de Uma Onda no Ar. Foi um processo especialmente complicado, pois estávamos lidando com uma história real e recente, cujos protagonistas estavam vivos e iriam acompanhar de perto a adaptação de suas narrativas para o cinema. Como seria de se esperar, teríamos que tomar uma série de liberdades na elaboração do roteiro, a começar pela redução do número de fundadores da Rádio. Na realidade, a iniciativa partiu de um grupo bem maior de pessoas, mas seria difícil, em termos de dramaturgia, lidar com tantos personagens. Assim, os reduzimos para quatro, número que mantinha a idéia de grupo sem sacrificar o desenvolvimento da ação. Procurávamos sempre nos inspirar em fatos, obviamente, mas alterávamos sua cronologia ou os transformávamos em outros incidentes mais cinematográficos (embora com a mesma significação). Assim, praticamente concebemos uma nova história para a Rádio Favela – e, curiosamente, boa parte dela acabou sendo “adotada” pelos verdadeiros fundadores como se fosse totalmente verídica. Para preservar Misael e seus companheiros, decidimos alterar os nomes de todos os personagens, principalmente porque estes não eram, como já expliquei, transposições absolutas das figuras reais. Assim, embora fosse inspirado em Misael, o Jorge de Uma Onda no Ar não era propriamente aquele. Aliás, nossa preocupação no sentido de separarmos bem as coisas era tamanha que, quando estávamos perto do início das filmagens, procurei Misael e disse: – Se você estiver sentindo que esta Rádio do filme não representa com justiça a Rádio Favela, podemos mudar o nome para Rádio Quilombo. A escolha é sua. Ele não apenas decidiu que o nome verdadeiro seria mantido, como ainda pediu que rebatizássemos os personagens do filme para que estes tivessem os mesmos nomes daqueles que os haviam inspirado – algo que me neguei a fazer. Ao todo, escrevemos oito versões do roteiro e, já no final do processo, pedi que a equipe da Rádio revisasse os diálogos para que nestes se refletissem a forma com que eles se expressavam, incluindo gírias e outras corruptelas do português que, no conjunto, Misael batizara como “favelês”. Desde as etapas iniciais do projeto, busquei manter-me fiel ao que considerava como sendo o aspecto mais admirável da Rádio Favela: sua dedicação à tarefa de manter os jovens suficientemente informados sobre o mundo a fim de mantê-los longe do tráfico. Eu sentia que, caso o filme não fosse compreensível para um garoto daqueles, eu estaria traindo os próprios princípios da Rádio e, por esta razão, adotei uma postura de buscar a realidade sem romantizá-la mais do que o necessário. Esta visão aplicava-se não só à fotografia, mas à direção de arte, aos figurinos, à montagem e aos demais aspectos da produção. Eu queria que o espectador mergulhasse na favela, naquele universo que tanto aterroriza o cidadão da classe média, e percebesse que as coisas não eram tão pavorosas quanto a mídia fazia questão de pregar. Não é à toa que a primeira frase ouvida em Uma Onda no Ar é aquela da sensacional vinheta da emissora: – Você está na favela! Ao contrário do que havia feito em Amor & Cia., eu pretendia manter-me afastado da estilização, adotando, em vez disso, uma linguagem quase documental. Não que o apuro técnico de Uma Onda no Ar seja menor; ambos os trabalhos exigiram um estudo cuidadoso e extenuante. O importante é que o estilo sirva à história, e não o contrário. Assim, no lugar do cinemascope entrou o 16 mm, que me daria um visual mais bruto, uma luz mais dura e um grão maior (especialmente com a ampliação posterior para 35 mm). Infelizmente, algumas pessoas parecem ter julgado que esta estética denunciava desleixo por parte da produção, quando, na realidade, esta era uma proposta estudada detalhadamente e que exigia tanto trabalho para realizar quanto os belos quadros de Amor & Cia. Da mesma forma, a cenografia era extremamente realista. Como não podíamos filmar nos barracos verdadeiros, já que estes mal conseguiam abrigar uma família (imaginem então uma equipe de cinema, câmera, luzes...), Vera Hamburger recriou os interiores em estúdio com impressionante competência. Até mesmo outros profissionais do meio ficaram surpresos com o resultado, pois construímos os cenários com tijolo e cimento, descartando a idéia de utilizarmos madeira simulando aqueles materiais. E um detalhe importante: acabamos gastando menos do que se tivéssemos insistido em uma cenografia tradicional. Capítulo XXXIX A Força dos Anônimos A forma como os atores brasileiros se superexpõem é algo que complica o trabalho dos cineastas. Como nosso star system vem da televisão, e não do cinema, o público está mais do que habituado a enxergar aqueles mesmos rostos na sala de sua casa, dia após dia, e acaba criando uma familiaridade com os artistas que se torna prejudicial a estes. Quando o ator finalmente participa de um filme, o espectador sente dificuldades em esquecer que aquela pessoa estava fazendo um comercial de telefonia num canal, apresentando um programa em outro, participando de uma novela e fazendo pontas em programas humorísticos. Conseqüentemente, o filme se enfraquece, já que o personagem não se torna crível. Caso escalássemos nomes famosos em Uma Onda no Ar, todos os nossos esforços para criar um universo real teriam sido desperdiçados e, portanto, era imperativo que fôssemos atrás de atores desconhecidos do grande público – e, somente para o papel do Jorge, chegamos a testar mais de 800 pessoas. Finalmente, chegamos aos quatro protagonistas: Alexandre Moreno (Jorge) era de Jacarepaguá; Babu Santana (Roque) era do Vidigal; Adolfo Moura (Zequiel) era gaúcho; e Benjamin Abras (Brau), de Belo Horizonte. Todos com sotaques diferentes e carregados. Portanto, nossa primeira tarefa foi dar início a um longo processo de preparação, entregando-os aos cuidados do Rui Moreira (do Grupo Corpo) e do Gil Amâncio, que não só “limparam” os sotaques, como também cuidaram da postura, do gestual e da ginga dos quatro atores, ajudando-os, inclusive, a desenvolver o envelhecimento gradual dos personagens, já que mais de dez anos se passam no decorrer da projeção. Ao mesmo tempo, levei-os para conhecer o morro, a Rádio e seus fundadores, o que era parte importante do trabalho. Apesar de ser um excelente ator, Alexandre tivera poucas oportunidades no cinema e na televisão; é fato inquestionável que há poucos papéis para intérpretes negros. Ao longo de sua carreira, ele chegara até mesmo a trabalhar como locutor em uma Rádio de Jacarepaguá enquanto fazia testes para as mais diversas produções (algo que pesou quando o selecionamos; afinal, o personagem era justamente um radialista). Certo dia, quando estávamos fazendo uma leitura conjunta do roteiro, percebi que Alexandre estava tentando imitar o Misael e falei: – Alexandre, acho que o caminho não é esse. O Misael é diferente do nosso personagem. Eu quero que o Jorge seja uma criação sua. A partir desta conversa, ele assumiu uma outra direção e, em pouco tempo, captou algo muito mais relevante do que os trejeitos e a voz do Misael: sua postura quase missionária. Jorge age levando a Palavra para seus ouvintes; não a de Deus, mas a de alguém que quer igualmente afastá-los do caminho errado. A história do movimento negro norte-americano, que é grande fonte de inspiração para os ativistas brasileiros, é repleta de líderes com atitude evangelizadora, homens como Malcolm X, Martin Luther King, Jesse Jackson e muitos outros que se formaram, em sua maioria, nos púlpitos, mesmo que posteriormente viessem a assumir posições mais radicais, como Malcolm X, que chegou a considerar a violência justificada quando empregada contra os opressores de seu povo. Esta forma de pensar, como se tivessem “visto uma Luz” e se dedicassem a compartilhá-la com seus irmãos, é evidente naqueles líderes e Misael, embora não tenha origens evangélicas, segue, consciente ou inconscientemente, por este mesmo caminho. Aliás, a presença das igrejas evangélicas no morro é fortíssima, superando até mesmo as católicas, que, de modo geral, não participam tanto do cotidiano dos habitantes locais – e esta é uma realidade que procurei incluir no filme de forma mais sutil, na cena em que Zequiel canta uma música de fundo religioso enquanto solda parte do equipamento da Rádio. Esta cena, diga-se de passagem, despertou alguns comentários negativos por parte da crítica, que não percebeu o propósito da música. O irônico é que, depois de ler um artigo de José Geraldo Couto, que brincava com aquele elemento da narrativa, me dei conta de algo que nunca havia percebido: em todos os meus filmes algum personagem canta em determinado momento – inclusive nos curtas-metragens. Em A Dança dos Bonecos, era a Cíntia quem cantava; em O Menino Maluquinho, a empregada vivida por Edyr Duqui; já em Amor & Cia., Patrícia e Nanini soltavam a voz; e, em Uma Onda no Ar, não apenas o Zequiel cantava, mas também o Brau (Benjamin Abras). Isso não mudou no meu novo curta, O Casamento da Iara, no qual Maurício Tizumba, que, além de ator, é cantor, exibe seu talento para a música. O estranho é que isto nunca foi intencional. Sempre gostei de cantar, é claro, e meu pai afinava pianos, tinha um ouvido formidável para a música, mas só percebi este traço depois da provocação de José Geraldo. Meu próximo longa, Batismo de Sangue, dará continuidade à “tradição”, pois, como o verdadeiro Frei Tito adorava seu violão, no filme o retrataremos cantando Lunik 9, de Gilberto Gil. Capítulo XL Subindo o Morro Como estávamos determinados a filmar no Aglomerado da Serra, precisávamos de um interlocutor junto aos moradores para viabilizar nossos esforços – e este papel foi desempenhado pela própria Rádio Favela. Porém, numa área tão populosa como aquela, é lógico que a emissora estava longe de ser uma unanimidade, e alguns setores da comunidade simplesmente questionavam a validade do trabalho de Misael, Nerimar e companhia. Então, comecei a subir o morro com freqüência, ao lado de minha equipe, e passei a dar entrevistas na Rádio e a conversar com a população, explicando qual era a proposta do filme e como pretendíamos desenvolver nossas atividades ali. Além disso, contratei vários moradores da favela como assistentes de produção e fui me integrando à comunidade aos poucos. No final, já usávamos os banheiros dos barracos, passávamos cabos de um lado para outro e empregávamos uma infinidade de pequenos serviços oferecidos pelos habitantes locais, o que significou uma razoável injeção de dinheiro lá dentro. Chegamos até mesmo a utilizar vários deles como figurantes, o que trouxe, acredito, mais sinceridade ao filme. Foram todos muito generosos comigo e com a equipe e, com o passar do tempo, tornei-me conhecido por boa parte das pessoas, que até faziam brincadeiras quando me viam passar na rua, gritando: Ô Helvécio! Ação! ou Corta!. Em contrapartida, nos esforçávamos bastante para não atrapalhar a rotina local. Como as ruas eram estreitas, por exemplo, chegávamos sempre muito cedo, às 5h30 da manhã, para não interrompermos o trânsito de carros e ônibus que desciam levando os moradores para o trabalho. Mas às vezes era impossível evitar algum tipo de intervenção, como ao rodarmos a seqüência em que os carros da polícia sobem o morro – naquele dia, tivemos que cercar trechos grandes e mobilizar muita gente para que tudo funcionasse. Quando lidamos com uma comunidade real, inevitavelmente surge a expectativa, por parte de seus integrantes, de que aquele filme irá modificar a vida de todos, transformando radicalmente aquela realidade. Isso me preocupava muito e, por isso, dizia sempre (através da Rádio, inclusive) que Uma Onda no Ar não mudaria a vida de ninguém, que apenas chamaríamos a atenção das pessoas para aqueles problemas, mas que isto era apenas um humilde começo. Ainda assim, sinto que eles perceberam que o projeto lutava em prol do aglomerado. Já para a Rádio Favela, o filme significou muito, obviamente, amplificando sua mensagem inclusive fora do país: Misael foi chamado várias vezes para ir aos Estados Unidos e à Europa e chegou até mesmo a receber um prêmio da ONU – algo que “profetizamos” no longa (na vida real, ele tinha sido premiado no Dia Internacional de Combate às Drogas pelo papel da Rádio na luta contra o tráfico). Dessa forma, a história do filme acabou se misturando à história da Rádio Favela. Eu não queria invadir o morro ao lado da polícia, levando os moradores a pensarem que tínhamos medo deles. E, mais uma vez, fui conversar com o Misael, que respondeu com uma pergunta: – Quando você vai filmar na rua, você pede polícia? – Sim, é preciso, pois estou com equipamentos, precisamos parar o trânsito... – Pois então. Aqui é a mesma coisa. O povo vai entender. O fato é que não podíamos dispensar a presença da Polícia Militar. Além da segurança (como expliquei para Misael, lidávamos com equipamentos caríssimos), a instituição nos ofereceu apoios logísticos, emprestando armas e viaturas para serem usadas no filme. Por via das dúvidas, acabei encontrando uma forma de evitar que a presença dos policiais soasse de forma intrusiva. Depois de ser apresentado a um tenente que morava na favela, sugeri ao comando da PM que o destacasse para a tarefa, o que se revelou um grande acerto, pois ele era respeitado pela população por ser um sujeito honesto e justo, que nunca fizera acordo com bandidos. Aliás, quando entrei em contato com a Polícia Militar pela primeira vez, para solicitar um esquema de segurança, os comandantes ficaram cautelosos quando descobriram qual seria o tema do filme – e pediram várias vezes para ler o roteiro. Como eu sabia que eles não iriam gostar de alguns elementos da narrativa, recusei-me a ceder o texto e, finalmente, eles acabaram nos dando o apoio necessário (sem o qual ficaríamos em maus lençóis). Não que o filme se esforçasse para falar mal da polícia. Na realidade, eu sabia que a direção da PM vinha se esforçando para mudar o relacionamento com as comunidades, realizando experiências com destacamentos que permaneciam o tempo todo naquelas regiões, em vez de enviarem viaturas apenas para a captura de bandidos (depois das filmagens, doamos para a instituição os uniformes que havíamos criado para o longa – até mesmo para evitar que estes caíssem em mãos erradas). Infelizmente, estas iniciativas são uma exceção no Brasil, cujas forças policiais são mal treinadas, autoritárias e compostas, inclusive, por muitos negros que tratam mal os próprios negros – algo que Gil e Caetano expressaram muito bem em Haiti: “Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos E outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados...” Retratei isso no filme, com o policial negro que reprime os grupos que estão dançando break na rua (uma seqüência que tem a participação de Nelson Triunfo, um dançarino espetacular). Historicamente, a relação da polícia com o pobre e o negro é de uso permanente da força. Então não havia como buscarmos ser verdadeiros sem exibirmos estes abusos. Havia dois fatores complicadores adicionais que levaram a repressão à Radio Favela ser tão violenta como retratamos em Uma Onda no Ar. Em primeiro lugar, infrações referentes às telecomunicações devem ser resolvidas pela Polícia Federal, que cumpre os mandados com o respaldo da PM – e esta mistura de jurisdições é uma questão sempre problemática. Além disso, a Rádio foi criada ainda na época da ditadura, que temia imensamente o poder desta mídia. (No início dos anos 70, em Vitória, dois garotos montaram um transmissor amador no bar do pai de um deles e a forma extremamente violenta com que este foi preso e acusado de subversão indica o medo que os generais militares sentiam do alcance das rádios piratas.) Curiosamente, excetuando-se o episódio da invasão de uma emissora no Rio por Marighella, que queria ler um comunicado, a esquerda brasileira praticamente ignorou este poderoso recurso em suas ações, ao contrário do que os rebeldes liderados por Fidel Castro fizeram na Sierra Maestra (Che Guevara inaugurou a Radio Rebelde para divulgar a ideologia marxista para os camponeses cubanos). Assim, a repressão adotava o método de “salgar a terra”, quebrando todo o equipamento para evitar que este voltasse a operar – e Misael sempre diz que suavizei muito a forma como ele foi tratado pela polícia e que, ao contrário do que acontece no filme, ele não levou apenas um tapa, e sim apanhou muito. Na última vez em que a Rádio foi fechada (incidente que abre o filme), se eu colocasse na tela o aparato policial usado na vida real, todos me criticariam pela aparente irrealidade da situação: foram enviados mais de 700 homens, além de helicópteros, para realizar a tarefa. A idéia, segundo descobri depois, era “dar uma demonstração de força”. Creio que este objetivo foi cumprido. Capítulo XLI Muxiba e Ossos A maior parte das pessoas enxerga a favela como o estereótipo daquilo que ocorre no Rio de Janeiro, em que há um traficante poderoso mandando em todos na comunidade. Em Belo Horizonte, a estrutura de poder é bem diferente. Num lugar como o Aglomerado da Serra, por exemplo, que conta com 60 mil habitantes, não há um “chefão” que comanda com mão-de-ferro; em vez disso, existem vários pequenos traficantes espalhados por vários pontos e não se vê uma quantidade de armas tão grande como no Rio. O poder é mais dissimulado, dividido. Assim, não tivemos que pedir uma “autorização” do tráfico para filmarmos na favela. Por outro lado, como fiz questão de conversar com todos os grupos e associações do aglomerado, inevitavelmente tive que abordar também os traficantes. Eu os encontrei disputando um campeonato de futebol em uma quadra da comunidade e expus rapidamente o que iria fazer, explicando que o filme não girava em torno do tráfico, mas sim da Rádio Favela. Foi o bastante; não enfrentamos problema de espécie alguma, mesmo quando rodávamos às 3, 4 horas da madrugada. Antes do início das filmagens, conversei muito com os membros de minha equipe, estabelecendo regras claras de como todos deveriam se comportar enquanto estivéssemos na comunidade. Salientei, por exemplo, que não admitiria nenhum tipo de relação com drogas – não por uma postura moralista, mas para evitar qualquer tipo de confusão que pudesse vir a prejudicar os moradores. Em Uma Onda no Ar, há até traficante fazendo papel de traficante, pois um dos integrantes do chamado “movimento” quis interpretar a si mesmo. No entanto, quando fomos rodar a cena, um dos policiais que nos acompanhava falou: – Eu não quero que aquele cara ali pegue numa arma nossa. Estabeleceu-se imediatamente um clima de tensão, mas não cabia à nossa equipe resolver a questão, já que não tínhamos qualquer informação de que aquele indivíduo fosse procurado pela polícia (e não devia ser, caso contrário teria sido preso no ato), embora fosse claro que ele tinha, sim, envolvimento com o crime. O dilema foi resolvido quando esclarecemos que as armas ficariam sobre uma mesa durante toda a cena, sem que ninguém as tocasse (e é óbvio que estavam descarregadas). Outro incidente curioso relacionado ao cruzamento entre realidade e ficção ocorreu quando nos preparávamos para filmar na “fortaleza do tráfico” vista no longa. Na verdade, aquelas ruínas pertenciam a um centro de saúde cuja construção fora abandonada anos antes e que acabara sendo depredado com o passar do tempo, tendo suas janelas e portas arrancadas. Vendo aquele prédio no alto do morro, Vera sugeriu que o usássemos no filme e, assim, levamos vários móveis para montarmos a cena que se passaria ali. No dia seguinte, quando chegou para o trabalho, Vera notou que a disposição dos móveis havia sido alterada durante a noite e, depois de conversar com algumas pessoas, descobriu que aquilo fora obra dos traficantes de uma boca próxima dali, que haviam decidido “ajudar” a produção ao mostrar como eles arrumariam a mobília. Aceitamos a sugestão. É impossível não se deixar afetar por todos os dramas que ocorrem em uma comunidade carente como aquela. Apenas no período das filmagens, presenciamos várias situações trágicas, de partir o coração. No barraco em que rodamos a cena na qual Jorge e Zequiel testam o transmissor, por exemplo, morava uma família com 12 crianças, e o pai, sempre bêbado, batia na esposa constantemente. Certo dia, quando chegamos para trabalhar, ela havia ido embora com os filhos. Já em outro momento, ocorreu uma triste coincidência. Havíamos acertado de filmar uma cena em um bar do aglomerado, que na história pertenceria ao pai do Brau, que era assassinado em um tiroteio. Pois alguns dias antes de filmarmos, o filho do verdadeiro dono do bar foi morto por uma bala perdida. E a todo instante escutávamos uma história do tipo Fulano brigou com sicrano e teve que fugir do morro!, Beltrano levou uma facada depois de ser confundido com outra pessoa!, e por aí afora. Não consigo ficar indiferente a esta trágica realidade brasileira. Cada um desses relatos mexia comigo profundamente. A favela é um lugar incrivelmente barulhento. A quantidade de sons que a comunidade produz é enlouquecedora – principalmente para alguém tão perfeccionista como o José Louzeiro, responsável pelo som direto. Na medida do possível, contávamos com a cooperação dos moradores, pedindo para que desligassem suas tevês, abaixassem o volume do rádio ou mesmo ficassem em silêncio absoluto enquanto rodávamos um plano. O problema eram os cachorros. O aglomerado da Serra tinha uma quantidade assombrosa de cachorros e, quando estes começam a latir, não há como simplesmente pedir que se calem por alguns minutos. E não podíamos (nem queríamos) matá-los. Finalmente, alguém surgiu com a idéia que resolveu a questão: tínhamos sempre um saco repleto de muxiba e ossos – quando um animal se punha a latir, alguém da produção ia até lá e jogava algo pra ele, que se calava no ato. Quem podia imaginar que o maior segredo para se fazer som direto em externas seria um saco de muxiba? Capítulo XLII A Voz do Morro O Chile conta com um excelente estúdio de mixagem, e foi lá que fizemos a de Amor & Cia. e Uma Onda no Ar. Muitas produções brasileiras preferem realizar este trabalho em estúdios de Los Angeles, mas sempre percebi um problema sério dos técnicos norte-americanos com relação ao português: como não entendem nossa língua, eles a tratam como uma música, uma melodia a ser refinada. Mas nós, ibero-americanos, sibilamos muito, e eles tendem a cortar este sibilado e, conseqüentemente, nossos “ésses”. Basta observar alguns filmes brasileiros mixados nos Estados Unidos para perceber que as palavras terminadas em “s” costumam soar inconclusas; o “estamossss” vira “estamo”, e assim por diante. Já os chilenos, compreendendo o problema do sibilado, não cortam o “s”, apenas o acomodam, o reduzem, sem eliminá-lo totalmente. Mas não é só isso. É complicado mixar o som ao lado de alguém que não entende os diálogos. Até que ponto aquele técnico está apenas supondo que o diálogo está sendo ouvido e bem compreendido, já que ele mesmo não entende uma palavra daquilo? Para mim, é fundamental que o mixador seja, no mínimo, capaz de perceber as palavras individualmente. E, para isto, é preciso que tenha uma proximidade maior com o português. Além de trabalhar na preparação do elenco, Gil Amâncio também foi responsável pela trilha de Uma Onda no Ar. Nosso objetivo era colocar a voz do morro, o som da favela, no filme. Porém, esta voz não é mais o samba, como aconteceu até a década de 50 ou 60. Hoje o morro conta com uma variedade enorme de ritmos, num som rico e polifônico que queríamos levar para a trilha. Além disso, assim como a Rádio Favela sempre ofereceu espaço para novas bandas, fizemos questão de incluir músicas de grupos de Belo Horizonte, mais uma vez com o propósito de seguirmos o espírito da emissora. No filme, o personagem Brau funcionou também como uma ferramenta para que pudéssemos estabelecer a relevância do rap na cultura da comunidade. Através de pesquisas, descobrimos que na época (início dos anos 80) já havia uma espécie de “proto-rap”, conhecido como Tagarela, e que se resumia a versos ainda muito falados e não tão marcados como o rap – mas que já expunham uma vertente poética. Não é à toa que, em certo momento, vemos Brau percorrer o arco do viaduto Santa Tereza: como Carlos Drummond de Andrade brincara ali nos anos 20, queríamos fazer uma ligação atemporal entre ele e os poetas do rap, numa leitura que poucos decifraram ao assistir ao longa. O DVD de Uma Onda no Ar traz, entre seus extras, uma seqüência alternativa de créditos iniciais. Nessa versão, vemos o ótimo dançarino Rui Moreira se apresentando ao fundo, meio fora de foco, à medida que os nomes do elenco e da equipe surgem na tela. Essa seqüência foi criada por dois irmãos mestres em efeitos gráficos, Vítor e Vinícius, acostumados a realizar trabalhos para o meio publicitário. Infelizmente, enfrentamos vários contratempos com o laboratório, que não acertava na transferência da abertura para película. Como tínhamos um pacote apertado com a empresa e eu estava mais preocupado com o blow-up do 16 mm para 35 mm, acabei sacrificando a seqüência, perdendo a dança que, na minha opinião, representava muito bem o tema do filme. Foi uma pena. Porém, orçamento é linguagem. O cineasta pode ter uma “grande idéia”, mas esta só será realmente boa caso seja compatível com o orçamento do projeto. Em vez de realizá-la mal, é preferível deixá-la de lado. Embora tenhamos conseguido captar a verba necessária para realizar Uma Onda no Ar, a tarefa foi dificílima. Afinal, era um filme sobre uma rádio pirata que seria protagonizado por atores negros e desconhecidos – uma combinação que não agradou muitos dos possíveis patrocinadores. Assim, o único elemento que tínhamos para utilizar como base da apresentação do projeto era meu currículo, ao passo que o que as empresas realmente querem é a presença de atores globais. Com isso, a captação foi demorada e tivemos que dividi-la entre vários investidores – daí a grande quantidade de logotipos no início da projeção. Aliás, é curioso: as pessoas costumam achar que, quanto maior o número de empresas citadas como patrocinadoras, mais fácil foi o processo de captação – quando é justamente o oposto. No final, decidi doar 8% de toda a arrecadação que Uma Onda no Ar obtivesse nos cinemas e em vídeo para a Rádio Favela. A princípio, Misael recusou a oferta, dizendo estar mais do que satisfeito com a divulgação que faríamos do trabalho da emissora, mas ainda assim insisti. Já havíamos pago a ele e aos seus companheiros um valor fixo pelos direitos de adaptação da história, mas senti que deveria fazer mais. Afinal, o filme se inspirava na trajetória deles e era apenas justo que, sempre que o longa ganhasse alguma coisa, eles também pudessem colher os frutos. Capítulo XLIII Perdas Pessoais A primeira sessão pública do filme ocorreu no pé do Aglomerado da Serra. Inicialmente, esta nossa première ocorreria em São Paulo, numa sessão organizada pela Viviane Senna (do Instituto Ayrton Senna) para os candidatos à Presidência da República (estávamos em 2002). Porém, por mais honrado que eu estivesse com a deferência (e, de fato, a exibição foi prestigiadíssima), eu queria exibir Uma Onda no Ar em primeiro lugar para a comunidade que tanto nos apoiara. Montamos uma tela enorme na rua e, num domingo à noite, fizemos a sessão. Nada menos do que 5 mil pessoas desceram para ver o filme. Eu passara o dia inteiro olhando ansioso para o céu nublado, torcendo para que não chovesse, mas quando começou a anoitecer o tempo foi fechando ainda mais. Para aumentar minha ansiedade, antes da sessão o Misael decidiu fazer uma longa introdução. Tínhamos ido a Gramado pouco antes e creio que ele aprendeu um pouco com o Festival, pois insistiu em distribuir prêmios para todo mundo: deu uma placa para mim, outras para os atores, para o pessoal da Rádio, para gente da comunidade e acompanhava cada apresentação com um pequeno discurso. Finalmente, sugeri que começássemos o filme. E um verdadeiro temporal desabou sobre todos. Foi uma experiência mágica. Mesmo com todo aquele toró, as pessoas permaneceram ali, de pé, olhando encantadas para a tela. E não permitiam sequer que os guarda-chuvas fossem abertos, porque poderiam atrapalhar a visão daqueles que estavam mais atrás. Foi uma sessão pacífica e emocionante, uma das mais lindas que já presenciei. Uma Onda no Ar recebeu uma série de importantes prêmios internacionais. Somente no Festival de Las Palmas de Gran Canaria, na Espanha, recebeu dois, incluindo o do júri popular. E o melhor é que esta premiação incluía uma boa quantia para que pudéssemos lançá-lo naquele país, o que foi uma surpresa agradável (ele entrou em cartaz na Espanha em 2004). Também fomos premiados no Festival Internacional de Miami, onde fui convidado para participar de um debate muito interessante com o cineasta Jonathan Demme, que havia exibido seu documentário The Agronomist (2003). A partir daí, o filme foi convidado para participar de uma série de eventos em todo o mundo, mas, depois de um tempo, parei de acompanhá-lo, embora Misael tenha feito algumas dessas viagens. Não dá para ganhar a vida em festivais. Ainda hoje, dois anos depois de seu lançamento, Uma Onda no Ar continua a ser exibido em todo o país, participando até mesmo de sessões itinerantes promovidas pelo Banco do Brasil. Creio que a relevância do filme diz respeito à maneira franca com que se propõe a discutir temas difíceis, como o racismo disfarçado, mas sempre presente, que tanto mal faz à sociedade brasileira. Pessoalmente, fazer Uma Onda no Ar representou uma experiência altamente educativa e prazerosa – embora também dolorosa, como já seria de se esperar em um universo com histórias tão tristes como aquele. O mês de setembro de 2002 foi um dos mais difíceis de minha vida. Há algum tempo, meu irmão José Luís vinha lutando contra um implacável câncer de pulmão. A essa altura, minha mãe já estava com 89 anos de idade e preferimos não contar para ela o que estava acontecendo, pois não havia nada que pudesse fazer. Porém, à medida que meu irmão foi enfraquecendo, percebemos que não podíamos mais esconder sua doença de mamãe – que, é claro, ficou chateadíssima com a notícia, embora logo recuperasse as forças, dizendo que iria ajudá-lo de todas as maneiras possíveis. Em 18 de setembro, viajei para a Espanha para acompanhar a exibição de Uma Onda no Ar no Festival de San Sebastian. Dois dias depois, haveria uma conferência de imprensa para que os diversos cineastas pudessem falar sobre seus filmes. Quando eu estava no palco, explicando o processo de realização do longa, uma pessoa se aproximou com um celular, sugerindo que eu o atendesse imediatamente. Mamãe havia morrido. Fui para o hotel, tentando decidir o que faria em seguida. San Sebastian fica no Norte da Espanha; para voltar, eu teria, primeiro, que viajar para Madri e então tentar conseguir um vôo para o Brasil, chegando somente depois do enterro. Sem encontrar outra solução, fui com Simone até a Catedral de San Sebastian e pensei em minha mãe, rezando por ela, que sempre foi muito católica. Naquela noite, dediquei a sessão de Uma Onda no Ar a ela, mas apenas em pensamento, sem expor ao público o que acontecera. Esse tipo de dor não se divide. Mais tarde, telefonei para Belo Horizonte e conversei com meus irmãos Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Maria Luisa – já Luís Fernando, bastante abalado, não conseguiu falar por muito tempo. Para piorar, fui informado de que José Luís também não estava bem, mas não achei que fosse alguma coisa imediata. Dois dias depois, ele morreu, sem saber o que acontecera com mamãe. Quando saí do Brasil, éramos uma família de sete pessoas; quando voltei, éramos cinco. Cheguei a tempo de assistir a missa de sétimo dia de minha mãe. Porém, não estar presente no enterro de pessoas tão próximas é algo terrível; é como se não fechássemos as coisas apropriadamente, deixando os cadáveres eternamente insepultos. Resta o consolo de saber que ela morreu sem ter que passar pela dor de enterrar o filho. E também é reconfortante saber que se foi de maneira leve e bonita. Ela morava com uma empregada, já que sempre se recusou a ir morar na casa dos filhos: Eu vou fazer uma declaração em cartório afirmando que não quis morar com nenhum de vocês, para que ninguém se sinta culpado!, ela costumava dizer. Conforme a senhora que vivia com ela nos contou, mamãe a chamou em seu quarto, durante a madrugada, e pediu que ela abrisse a janela, pois estava com falta de ar. Quando ela se virou para sair, viu que mamãe estava morrendo – e, em questão de segundos, estava tudo terminado. Fiquei com esta imagem de que ela pediu que a janela fosse aberta para, em seguida, sair por ali. Seu nome era Eurydice. Capítulo XLIV Voltado ao Universo Infantil Depois de quase dez anos sem dirigir um trabalho voltado para o público infantil, comecei a sentir vontade de fazê-lo. Enquanto remoía algumas idéias, fui informado de que a TVE do Rio estava promovendo um concurso para a realização de curtas-metragens infanto-juvenis, cujos temas estivessem relacionados ao folclore nacional. Lembrei-me da extensa pesquisa que havia feito sobre a Iara, na época de A Dança dos Bonecos, e de como ficara frustrado com as seqüências protagonizadas pela personagem. Escrevi o roteiro de O Casamento da Iara recheando-o de pequenas sutilezas que, de certa forma, remetiam à história da Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen. Como naquele clássico, a Iara só falaria enquanto fosse uma criatura fantástica, perdendo a voz a partir do momento em que se transformasse em uma mulher comum. Isto abriria campo para que o filme tivesse leituras diferentes; as crianças se divertiriam com as situações vividas pelos personagens, enquanto os adultos reconheceriam as metáforas bem-humoradas (mas críticas) apresentadas pela história, como a mentalidade machista de uma sociedade na qual a esposa ideal é aquela que serve ao marido sempre calada, e é claro, o esfriamento da paixão, provocado pelo cotidiano de um casamento monótono. Como gosto de fazer, escrevi o roteiro especificamente para a Patrícia Pillar e o Maurício Tizumba. Sempre tive grande admiração pelo Tizumba, um artista completo, que não apenas canta, dança e compõe muito bem, como ainda é ótimo ator. Depois de utilizá-lo em uma pequena participação em Uma Onda no Ar, como o motorista do carro da repórter, senti-me em dívida para com seu talento e criei o personagem do pescador com a certeza de que ele o interpretaria muito bem. E estava certo. Já a Patrícia, como expliquei anteriormente, é uma atriz com quem adoro trabalhar – e ela aceitou o convite imediatamente, chegando até mesmo a pedir que a Globo atrasasse em alguns dias sua entrada na novela Cabocla, cujas gravações começariam em seguida, para que pudesse filmar conosco. E não mediu sacrifícios: boa parte de suas cenas foram rodadas às 3 da madrugada, em uma água geladíssima, mas em nenhum momento ela permitiu que isso fosse visível para o espectador. A diferença entre a temperatura de seu corpo e a da água era tão grande que, durante as filmagens, saía fumaça de sua pele. Aliás, eu e o fotógrafo Antônio Luís Soares (com quem trabalhei pela primeira vez) chegamos a considerar a possibilidade de utilizarmos noite americana, mas, depois de alguns testes, desistimos da idéia, pois percebemos que o resultado ficaria aquém do satisfatório. Antônio Luís, diga-se de passagem, revelou-se uma grata surpresa – extremamente competente, ele fez um trabalho sensacional, conferindo ao filme cores belíssimas de fábula e um grão finíssimo. Com O Casamento da Iara já finalizado, tive a idéia de utilizá-lo como o primeiro passo de um novo projeto. Como o curta-metragem tem uma existência efêmera em função de suas poucas alternativas de veiculação, decidi criar quatro novas narrativas e lançá-las como um único longa-metragem dividido em segmentos, que deverá se chamar Cinco Histórias para Pequenos e Grandes. Já concluí, inclusive, o segundo roteiro, Procissão das Almas, e estou preparando o argumento do terceiro curta. Meu objetivo é rodar o segundo episódio antes de dar início aos trabalhos do meu próximo longa-metragem. Se tudo correr bem, Cinco Histórias para Pequenos e Grandes ficará pronto quase na mesma época do lançamento de Batismo de Sangue, o que pode ser bastante interessante. Capítulo XLV A Tragédia de Frei Tito Atualmente, estou trabalhando no roteiro de Batismo de Sangue, adaptação do livro homônimo de Frei Betto que está sendo escrita pela paulista Dani Patarra. Quando decidi levar este dramático relato para as telas, fiz a opção de convidar um roteirista jovem, que não tivesse vivido o período da ditadura e que, portanto, fosse capaz de enxergá-lo com um distanciamento sadio e objetivo. Além disso, esta seria uma forma de certificar-me de que a história ficaria clara para os espectadores mais jovens, que, em sua maioria, desconhecem alguns detalhes mais obscuros da época. Conheci Dani depois de dar uma entrevista para o jornal O Estado de S.Paulo, durante a qual anunciei que estava à procura de um colaborador para meu novo projeto. Entre as diversas propostas que recebi a partir de então, estava um e-mail desta jovem profissional, que, além de se apresentar, dizia que já havia escrito alguns roteiros. Pedi que ela me enviasse seus textos e gostei do que li. Eram narrativas bem inteligentes que contavam com diálogos interessantes e bem construídos. Em seguida, ela viajou para Belo Horizonte e, durante nossa conversa, me contou que seu pai, o jornalista Paulo Patarra, havia sido editor da revista Realidade, na qual trabalhara com Frei Betto, o que não deixava de ser uma curiosa coincidência. Já estamos na quarta versão do roteiro. Escolhi o livro de Frei Betto por acreditar que, até hoje, a participação da Igreja na luta contra a ditadura não foi explorada pelo cinema. Os dominicanos se envolveram intensamente com os revolucionários, utilizando o Convento das Perdizes para abrigar refugiados e ajudando a causa com recursos obtidos através da doação de fiéis. Infelizmente, eles também são lembrados pela relação que tiveram com a morte de Carlos Marighella, porque foram utilizados pelo cruel delegado Sérgio Paranhos Fleury na emboscada que levou ao assassinato do líder revolucionário. Como se não bastasse, a repressão utilizou o episódio para desmoralizá-los publicamente, com a clara intenção de romper a ligação desta igreja esquerdista com o povo. Os militares haviam percebido o perigo em potencial que aqueles dominicanos representavam. Em um país essencialmente católico como o Brasil, a existência de religiosos marxistas que eram respeitados pelos fiéis era algo temerário para os propósitos da ditadura. O filme será todo narrado a partir do ponto de vista dos dominicanos. Junto com a Dani, estou assumindo a voz dos frades, e todos os acontecimentos retratados ao longo da trama serão apresentados de forma subjetiva; o espectador só descobrirá os fatos na medida em que os dominicanos o fizerem. Além disso, esta será a primeira vez que uma versão da morte de Marighella diferente da oficial será vista nas telas. Em Batismo de Sangue, quero arrastar o público para dentro dos porões da ditadura, levando-o a sentir o que significava cair nas mãos daqueles monstros – e, para isto, vou abordar a tortura de uma forma rasgada, totalmente aberta. Mas o núcleo do filme dirá respeito à história do Frei Tito, que conheci no Chile, onde ele chegou depois de ser libertado (ao lado de outros 69 presos políticos) em troca do embaixador suíço no Brasil, que fora seqüestrado pelos revolucionários. Arredio e visivelmente afetado pelo tempo que passara nos porões da repressão, o frade ficou pouco tempo em Santiago. Mais tarde, já em Paris, começou a sofrer alucinações, afirmando ver seu antigo carrasco, Fleury, nas ruas da capital francesa. Enquanto torturavam Frei Tito, seus algozes usavam paramentos religiosos. O propósito era claro: queriam destruí-lo não apenas fisicamente, mas espiritualmente, quebrando-o por dentro. E conseguiram. Mesmo depois de libertado, ele jamais se livrou da tortura, que continuou a corroê-lo lentamente. Finalmente, pouco antes de se matar, em 1974, Frei Tito afirmou que não acreditava mais em Cristo, nem em Marx, nem em Freud, ou seja, passou a negar as três principais vertentes do pensamento ocidental. Não restara caminho algum para ele, a não ser a morte. No filme, pretendo investigar a fundo este conflito interior do frade, que me interessa bastante. Seja como for, estamos prestes a viabilizar o filme economicamente. Fomos, inclusive, selecionados para receber um importante patrocínio da Petrobrás, que nos permitirá dar início às filmagens em 2005. Batismo de Sangue é, sem dúvida alguma, meu projeto mais ambicioso e, por isto mesmo, desafiador. Aliás, estou me preparando cuidadosamente para realizá-lo, já que tenho plena consciência de que ele me levará a uma viagem interior que deverá ser bastante dolorosa. Mas necessária. Epílogo Estou em uma boa fase de minha vida. Viver é um desafio, um prazer. É uma felicidade poder sobreviver daquilo que mais gosto de fazer – e simplesmente adoro criar; sinto-me muitíssimo bem quando estou escrevendo um roteiro ou dirigindo um filme. Isso me torna uma pessoa melhor. E, ao mesmo tempo, sinto-me cada vez mais feliz com a vida que tenho em família. Meu relacionamento com Juliana, Andréa e Bárbara está cada vez mais gostoso e gratificante. É muito bom ver minhas três filhas mais velhas seguindo seus caminhos com tamanha determinação, seguras de seus objetivos. Ao mesmo tempo, além de ter consolidado com Simone uma maravilhosa relação, não apenas sentimental, mas profissional, tornar-me pai novamente depois dos 40 anos revelou-se uma experiência fascinante. O tempo agora é outro, não vejo o mundo caminhar com a mesma velocidade de quando tinha 23, 24 anos – e isto me permite curtir Clara de outra forma, acompanhando seu crescimento e suas descobertas. Não que seja tudo melhor ou pior do que o que vivi com minhas outras filhas. O amor é o mesmo; a comunicação é que é diferente. Atualmente, estamos lendo juntos Cazuza, de Viriato Correia – o mesmo livro que mamãe lia para mim na infância. A vida dá voltas. Cronologia Filmes de longa-metragem/premiações A Dança dos Bonecos (1986) 35 mm, 93 min Roteiro original: Helvécio Ratton, Tairone Feitosa e Ângela Santoro Rodado em Biribiri, Sabará e Belo Horizonte Direção: Helvécio Ratton Produção: Tarcísio Vidigal Direção de Fotografia: Fernando Duarte Direção de arte: Anísio Medeiros – Música: Nivaldo Ornelas – Montagem: Vera Freire Elenco: Wilson Grey, Kimura Schettino, Cíntia Vieira, Ezequias Marques, Divana Brandão, Rui Polanah e Cláudia Gimenez Premiações Internacionais e Nacionais: *?Medalha de Ouro no Festival de Filmes para a Infância e a Juventude de Giffoni, Itália *?Melhor Filme no Festival Internacional de Tomar, Portugal *?Prêmio Especial do Júri, Prêmio da Crítica, Troféu Macunaíma da Assoc. de Cineclubes *?Melhor Fotografia, Melhor Trilha Sonora e Melhor Cenografia no XIX Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *?Melhor Filme – Júri Popular, Prêmio Especial do Júri e Melhor Ator no XVII Festival de Cinema de Gramado Menino Maluquinho (1995) 35 mm, 83 min Adaptação do livro homônimo de Ziraldo. Roteiro: Helvécio Ratton, Alcione Araújo, Maria Gessy e Ziraldo Rodado em Belo Horizonte e Tiradentes Direção: Helvécio Ratton Produção: Tarcísio Vidigal / Grupo Novo de Cinema – Co-produção: Quimera Filmes Direção de Fotografia: José Tadeu Ribeiro Direção de Arte: Clóvis Bueno – Música: Antônio Pinto – Montagem: Vera Freire Elenco: Samuel Costa, Patrícia Pillar, Roberto Bomtempo, Luís Carlos Arutin, Vera Holtz Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Prêmio Margarida de Prata, CNBB *?Prêmio Golden Cairo de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema do Cairo, Egito *?Prêmio Especial do Júri no Festival Ragazzi Bellinzona, Suíça *?Prêmio do Público no Festival Internacional de Cinema para Crianças e Jovens de Montevideo, Uruguay *?Melhor Filme na IV Mostra do Cinema Nacional de Cuiabá *?Melhor Filme – Júri Popular – 4º Cinema Criança – CINEDUC Amor & Cia. (1998) 35 mm, 100 minutos, Cinemascope, Dolby Digital Adaptação livre da novela Alves & Cia., de Eça de Queiroz. Roteiro: Carlos Alberto Ratton Rodado em S. João del Rei e Rio de Janeiro Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes – Co-produção: Riofilme e Rosa Filmes (Portugal) Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Direção de Arte: Clóvis Bueno – Som: José Moreau Louzeiro – Música: Tavinho Moura Montagem: Diana Vasconcelos Elenco: Marco Nanini, Patrícia Pillar, Alexandre Borges, Rogério Cardoso, Cláudio Mamberti, Maria Sílvia e Ary França Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Melhor Filme Ibero-americano no 14º Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata *?Melhor Filme, Melhor Atriz e Melhor Direção de Arte no 31º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *?Melhor Direção, 2º Prêmio IBEU de Cinema *?Melhor Ator, Marco Nanini, Associação Paulista de Críticos de Arte *?Melhor Direção de Arte, 2º Prêmio Estação Botafogo do Cinema Brasileiro *?Melhor Ator, Marco Nanini, e Melhor Trilha Sonora no Festival de Miami *?Melhor Filme Latino-americano e Melhor Filme – Federação Nacional de Imprensa no XVII Festival Cinematográfico Internacional do Uruguay *?Melhor Ator, Marco Nanini, e Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Santa Cruz, Bolívia *?Melhor Maquiagem no Prêmio Avon de Artes Uma Onda no Ar (2002) 35 mm, 92 minutos, Dolby Digital Roteiro original de Helvécio Ratton e Jorge Durán, livremente inspirado na história real da Rádio Favela Rodado em Belo Horizonte Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Direção de Arte: Vera Hamburger – Som: José Moreau Louzeiro – Música: Gil Amâncio – Montagem: Mair Tavares Elenco: Alexandre Moreno, Babu Santana, Adolfo Moura, Benjamin Abras, Edyr Duqui e Priscila Dias Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Prêmio Lady Harimaguada de Plata e Prêmio do Júri Popular de Melhor Filme no 4º Festival Internacional de Cine – Las Palmas de Gran Canaria /Espanha *?Melhor Filme – Júri Popular no 5ème Festival du Cinéma Brésilien de Paris *?Prêmio Especial do Júri no 20th Miami International Film Festival *?Melhor Ator – Alexandre Moreno e Prêmio Especial do Júri no 30º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino *?Margarida de Prata – Menção Honrosa da CNBB *?Melhor Ator – Alexandre Moreno e Melhor Ator Coadjuvante – Babu Santana no 2º Festival de Cinema de Varginha *?Prêmio OCIC – Prêmio de Pós-Produção da Organização Católica Internacional de Cinema, pela qualidade e criatividade no uso da linguagem cinematográfica e por promover a Cultura da Vida, Valores Cristãos, Direitos Humanos, Cultura da Paz e Desenvolvimento Humano. Debates Internacionais: *?Giving Voice to the Voiceless : Community Radio Panel Roundtable – The Walker Art Center – Minneapolis – EUA / 2002 – Participantes : Misael dos Santos/Rádio Favela; Walter Q-Bear Banks/KMOJ Radio e Janis Lane-Ewart/KFAI Fresh Air Community Radio. *?Free Radio... A Voice for the Unheard – 20th Miami International Film Festival – EUA/ 2.003 – Participantes: Misael dos Santos/Rádio Favela; Helvécio Ratton, Michele Montas/Rádio Haiti Inter e Jonathan Demme, diretor dos filmes The Agronomist e O Silêncio dos Inocentes • www.umaondanoar.com.br Filmes de curta-metragem/premiações Criação (1978) Direção: Helvécio Ratton e Fausto Hugo Prats Fotografia: Carlos Giovanni – Música: Célio Balona Prêmios: *?Premiado no Salão de Humor de Curitiba, em 1980 *?Prêmio Concurso Mineiro de Filmes de Curta-metragem, em 1979 Em Nome da Razão (1980) Direção: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema – Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Tavares de Barros Narração: Roberto Marcondes Prêmios: *?Prêmio Especial do Júri no X Festival de Lille, França *?Melhor Documentário na IX Jornada Brasileira de Curtas-metragens *?Margarida de Prata da CNBB *?Primeiro lugar no IX Concurso de Filmes Mineiros de Curtas-metragens João Rosa (1982) Direção: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Música: Nivaldo Ornelas – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Tavares de Barros Narração: Paulo César Pereio Prêmio: *?Melhor Direção e Melhor Trilha Sonora no XIV Festival de Brasília. Um Homem Público (1982) Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema – Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Sette Prêmio: *?Roteiro premiado pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Elixir do Pagé (1989) Roteiro e Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia e Câmera: Gilberto Otero Ilustrações: Eri Gomes – Música: Sérgio Canedo Edição: Júpiter Camisassa e Osger Demóstenes Elenco: Paulo César Pereio, Ana Romano, Mônica Magalhães e Simone Magalhães Prêmios: *?Melhor Direção e Melhor Ator no Festival de Canela, Rio Grande do Sul; *?Prêmio Polivídeo no Festival VideoBrasil, São Paulo. Um Olhar Sobre Barcelona (1990) Roteiro e Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia e Câmera: Gilberto Otero Edição: Simone Magalhães Matos Exibido na TV Cultura de São Paulo e na Rede Minas de Televisão. Vida de Rua (1991) vídeo, 35 min Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Johns Hopkins University e UFMG – Simone Magalhães Matos Confecção de Bonecos: Paulinho Polika Diretor de Fotografia: Gilberto Otero Edição: Mário Nereu Prêmios e Participações Internacionais e Nacionais: *?Congresso Internacional Cidade e Educação na Cultura pela paz, RJ *?Exibido em vários simpósios e congressos internacionais sobre AIDS, em redes de televisão educativas, associações comunitárias, escolas das redes pública e particular e nas ruas de diversas cidades brasileiras, em programas educativos e de prevenção à AIDS para crianças e adolescentes com trajetória de rua Pequenas Estórias (1995 a 1997) Série de oito curtas-metragens que homenageiam o centenário de Belo Horizonte. Produção: Quimera Filmes I – E os Próximos Cem? Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero Música Original: André Baptista – Voz: Titi Walter Edição: Luís Victor II – Contratempo Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção e Direção de Arte: Simone Magalhães Matos Fotografia: Carlos Giovanni Música Original: André Baptista Edição: Gafanhoto Elenco: Ana Romano e Euzébio Silveira III – O Poeta e o Viaduto Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Poema: Carlos Ávila – Fotografia: Gilberto Otero – Música Original: André Baptista Edição: Luís Victor – Voz: Titi Walter Elenco: Ricardo Macedo IV – A Cidade dos Livros Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero – Pesquisa Literária: Leonardo Magalhães Gomes – Música Original: André Baptista – Edição: Luís Victor – Imagens Históricas: Zoltan Glueck Narração: Simone Magalhães, Eurydice de Amorim Ratton, Wilson Baptista, Titi Walter, Helvécio Ratton V – Prefeitos Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Ricardo Vianna – Música Original: André Baptista – Edição: Luís Victor VI – Pampulha, até Quando? Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero – Música Original: André Baptista – Edição: Eduardo Zech – Efeitos Visuais: Leonardo Rocha – Direção de Produção: Guilherme Fiúza Vozes: Lígia Jacques, Titi Walter, Ernani Maletta, Mateus Braga VII – Pé na Roça Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Música: Tavinho Moura – Edição: Luís Victor – Direção de Produção: Guilherme Fiúza VIII – Barragem Social Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Música Original: Juarez Moreira – Edição: Luís Victor Participações Internacionais e Nacionais: *?Encontro de Urbanismo, Costa Rica *?Conferência Habitat, Istambul, Turquia *?Semana de Belo Horizonte em Havana *?Exibido no Circuito de Cinemas Belas Artes Liberdade *?Mostra “As Dez Décadas que Fizeram o Cinema” *?Incluído na revista Zapp Cultural, CD-ROM da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte *?Seminário A Cidade Latino-americana e o Futuro *?Exibido em emissoras de TV de sinal aberto e por assinatura *?Incluído no CD-ROM “BH Cem Anos – Nossa História”, Jornal Estado de Minas O Casamento da Iara (2004) 15 min Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Quimera Filmes – Produção Executiva: Guilherme Fiúza Fotografia: Antonio Luís Mendes – Som: Gustavo Campos – Música: Flávio Henrique Montagem: Mair Tavares Elenco: Patrícia Pillar, Maurício Tizumba, Rodolfo Vaz, Benjamin Abras, Manoelita Lustosa e participação especial do candomblé de D. Mercês. Para Simone Magalhães Matos, minha cúmplice. Helvécio Ratton Introdução Meu primeiro encontro com Helvécio Ratton não foi dos melhores. Era uma manhã fria de setembro de 2002 e o cineasta estava realizando uma sessão fechada para a crítica de Belo Horizonte. No passado, eu havia conversado uma ou duas vezes por telefone com Helvécio, a fim de obter algumas informações sobre Uma Onda no Ar para uma matéria que estava preparando para o site do qual sou editor, Cinema em Cena, mas até então não nos conhecíamos pessoalmente. Cheguei ao Cinema Jardim pouco antes da sessão e percorri o saguão sem prestar muita atenção nas pessoas que ali se encontravam. Eu saíra de casa com pressa e precisava urgentemente comer algo antes do início do filme. Foi quando senti uma batida no ombro e, ao virar-me para ver do que se tratava, dei de cara com um sujeito enorme, de porte ameaçador. Era um cantor e compositor renomado em Minas Gerais, e que fizera uma pequena participação no longa: – Você é o crítico de cinema que apresenta aquele programa na televisão? – Sou – respondi, acreditando egocentricamente que um elogio viria a seguir. – Pois você passou do lado do Helvécio Ratton e nem se dignou a cumprimentá-lo? Você devia saber que sua profissão só existe em função de realizadores como ele. Onde está seu respeito? Você tem que aprender a ser mais humilde, rapaz, caso contrário não irá pra frente. Por que você o ignorou? Olhei confuso para a direção apontada e, de fato, lá estava Helvécio, conversando com algumas outras pessoas. Voltei a encarar meu interlocutor, sentindo o rosto queimar de vergonha e raiva. Por que ele estava agindo de forma tão bruta? Ah, se ele fosse uns 30 centímetros menor... Sem saber o que responder, gaguejei: – É... é que eu sou tímido. Hein? Que diabos de resposta era aquela? Eu sou tímido? Será que eu tinha voltado à adolescência? Por que simplesmente não respondi que não tinha visto Helvécio? Ou, ainda melhor, por que não mandei aquele sujeito catar coquinho? Afastei-me embaraçado – e reconheço que parte de mim culpou o próprio Helvécio Ratton pelo incidente. Corta para 18 meses depois. Estou conversando com Rubens Ewald Filho pelo telefone, ouvindo uma breve explicação sobre a Coleção Aplauso, um projeto que seria lançado pela Imprensa Oficial de São Paulo. Finalmente, quando Rubens perguntou se havia algum diretor em particular sobre o qual eu me interessaria em escrever, fui surpreendido por minha própria resposta: – Helvécio Ratton! Durante os dez minutos seguintes, expliquei por que considerava Helvécio o candidato ideal para uma biografia: sua militância política durante a Ditadura; sua postura ideológica admirável; e, é claro, sua carreira invejável, que incluía uma filmografia heterogênea, abarcando documentários, romances de época e comédias voltadas para o público infantil. Foi somente depois que desliguei o telefone, já com a aprovação de Rubens para procurar o cineasta, que me dei conta de que Helvécio provavelmente se recusaria a conversar comigo – afinal, além do confronto com o tal músico, eu escrevera uma crítica apenas moderadamente favorável a Uma Onda no Ar, recomendando o filme, mas citando alguns elementos que haviam me incomodado durante a projeção (uma opinião que não apenas publiquei no site, como também manifestei em meu programa). Aliás, agora que eu estava pensando calmamente sobre o assunto, eu tinha certeza de que ele riria ao ouvir minha proposta e desligaria o telefone na minha cara. É claro que eu estava enganado. Desde o primeiro momento, Helvécio foi extremamente simpático, concordando imediatamente em participar do projeto. Na realidade, como descobri depois, ele nem ficara sabendo sobre o incidente na sessão de seu último filme. Ainda assim, eu fazia questão de cumprimentá-lo efusivamente todas as vezes que nos encontrávamos. E se seu “guarda-costas” estivesse escondido em algum lugar por ali? A Quimera Filmes, produtora da qual Helvécio é sócio ao lado de sua esposa Simone, fica em uma aconchegante casa situada em uma rua tranqüila do Bairro Serra. Do bem cuidado jardim à cadeira de balanço presente na recepção da empresa, a Quimera é um agradável lugar de trabalho – e é fácil perceber que há um forte clima de camaradagem entre todos os integrantes da equipe. Ao longo dos meses seguintes, Helvécio e eu nos encontramos diversas vezes, o que se traduziu em horas e horas de entrevista. Falamos sobre os mais diversos assuntos. Como cada filme representa um aprendizado para o cineasta, concluí que o mesmo deveria se aplicar a este livro, que, como a própria filmografia de Ratton, procura despertar o interesse do espectador/leitor para temas tão distintos (e fascinantes) como o sistema manicomial brasileiro, a poesia maldita de Bernardo Guimarães, a arquitetura de Gaudí, a história política da América Latina durante os anos 1960 e 70 e, é claro, cinema. Aliás, através das experiências de Helvécio, o leitor conhecerá detalhes fascinantes sobre uma profissão que está sempre buscando um meio-termo entre as ambições artísticas e suas exigências financeiras. Afinal, como diz o próprio biografado, “orçamento é linguagem”. Reconheço que, a princípio, a idéia de escrever o texto na primeira pessoa (um padrão da Coleção) me desanimou: senti que, inevitavelmente, perderia a liberdade de enriquecer o livro com dados e reflexões adicionais que complementariam a história e as argumentações do diretor. Enganei-me novamente. Helvécio é um contador de histórias nato, e suas narrativas raramente precisam de complementos. Sua capacidade de comunicação é tamanha que, à medida que ia redigindo o texto, eu conseguia me colocar em seu lugar como se tivesse testemunhado todos aqueles acontecimentos. De certa forma, é como se Helvécio tivesse se convertido em um personagem para mim. Ou eu é que me tornara um mero personagem em sua narrativa? Em certo momento deste livro, Helvécio explica que, durante muito tempo, rejeitou sua “mineiridade”, lutando contra suas próprias raízes. Porém, basta dar uma rápida olhada em sua sala na Quimera Filmes para perceber que o tradicional conceito de “família”, algo peculiar entre os mineiros, manifesta-se em todos os detalhes do escritório, da janela voltada para o belo jardim (Você precisa ver quando a pitangueira fica carregada!) ao armário recheado de fotos antigas. E é impossível evitar um sorriso ao notar, pregado entre os cronogramas de produção de O Casamento da Iara, um desenho feito por Clara, a filha caçula do cineasta, no qual vemos um homem calvo identificado singelamente em uma escrita infantil: “Papai”. O fato é que até mesmo a equipe de Ratton se comporta como uma grande família. Não há como ele negar suas raízes: seus filmes podem ser universais, mas Helvécio é mineiro com “M” maiúsculo. Pablo Villaça Prólogo O exílio estava chegando ao fim. Depois de quase quatro anos longe do Brasil e de conhecer o terror patrocinado pelas ditaduras militares de dois países, eu estava retornando à minha pátria. Era noite de 27 de dezembro de 1973 e, quando o avião passou a sobrevoar o céu do Rio de Janeiro, a bela composição de Tom Jobim pôde ser ouvida através dos alto-falantes da cabine de passageiros: “Minha alma canta Vejo o Rio de Janeiro Estou morrendo de saudades Rio, seu mar Praia sem fim Rio, você foi feito pra mim...” Olhei pela janela e, emocionado, vi a Baía de Guanabara toda iluminada. Em pouco tempo pousaríamos e eu poderia abraçar meu pai, que me esperava no aeroporto com o documento que comprovava a prescrição de minha pena. Ainda assim, ao lado da emoção que eu sentia, havia uma tensão inequívoca, que nem mesmo o papel oficial conseguido por meu pai ou a inesperada carta que se encontrava em minha mala conseguia apaziguar. Eu procurava afastar o receio da mente, mas ele voltava ainda mais forte. Infelizmente, logo eu teria motivos reais para ficar preocupado. Segundos depois que o avião havia tocado a pista, percebi que havia algo errado: em vez de taxiar em direção ao portão de desembarque, o piloto levou o aparelho para um canto distante da pista, bem distante do prédio do (então) Galeão. Talvez pela tensão ou por estar desacostumado com o calor do Brasil depois de tanto tempo no Chile, comecei a suar profusamente. – Isso é comigo, Márcia – disse para minha esposa, que viajava ao meu lado. – Não, Helvécio, deve ser um problema com o avião – ela tentou me tranqüilizar. Porém, à medida que o tempo ia passando, os demais passageiros começaram a ficar inquietos e a questionar as aeromoças sobre o motivo da demora no desembarque. Mesmo assim, não houve qualquer tipo de explicação por parte do comandante. Finalmente, cerca de 30 minutos depois da aterrissagem, nos preparamos para descer e procurei ficar no meio do bolo de pessoas que saíam do avião, numa tentativa inútil de passar desapercebido de quem quer que fosse. Não adiantou. Eu mal havia caminhado cinco metros quando dois homens se aproximaram de mim rapidamente, sem um segundo qualquer de hesitação. Um deles abriu a capanga que carregava na cintura e, com expressão inconfundível de ameaça, exibiu seu revólver e disse simplesmente: – Não faça besteira nenhuma. Olhei para o grupo de passageiros e percebi que, apesar dos olhares intrigados, todos se afastavam rapidamente, temendo algum tipo de confusão. Imediatamente, percebi por que o avião parara tão longe do terminal: os dois agentes do DOI-CODI não queriam que ninguém percebesse que eu fora preso – principalmente meu pai, que certamente protestaria e criaria uma confusão indesejável. Enquanto íamos, Márcia e eu, sendo conduzidos pelos dois homens em direção a um Opala estacionado a algumas dezenas de metros, comecei a avaliar minhas opções. Senti que precisava, de alguma forma, alertar meu pai sobre minha chegada e, para isso, cheguei a considerar um plano arriscado: correr em direção ao portão de desembarque e saltar em seu imenso painel de vidro com os pés, o que certamente criaria uma bagunça grande o bastante para chamar a atenção da minha família. Comuniquei, aos sussurros, minhas intenções a Márcia, que imediatamente tratou de me dissuadir, dizendo que poderia ser pior, que eles poderiam atirar em mim. Assim que entramos no carro, minha cabeça foi coberta com um capuz negro e fui colocado no chão do veículo. No entanto, a presença de Márcia parecia confundir um pouco meus dois captores, que não haviam previsto que eu poderia estar acompanhado. Depois de uma breve discussão com a base através do rádio-comunicador, eles decidiram levá-la também e, como não tinham outro capuz, usaram minha jaqueta para cobrir sua cabeça. Os agentes deram a partida no carro e senti que nos movimentávamos. Minha mente começou a funcionar freneticamente, já tentando costurar o depoimento que daria durante o interrogatório que certamente viria a seguir. Enquanto eu ensaiava meus diálogos no chão do Opala, meu pai ainda me aguardava no saguão do aeroporto, confiante como sempre de que o instrumento legal que carregava em seu bolso garantiria a liberdade do filho. Parte I As Circunstâncias Capítulo I A Primeira Infância Meu pai sempre acreditou na lei. Não podia ser diferente: como juiz de direito, ele prezava a ordem acima de tudo e, em sua visão, até aquele momento a justiça não apenas jamais o havia desapontado, como ainda lhe dera meios de criar seus filhos em condições melhores do que aquelas nas quais ele próprio crescera ao lado de seus 16 irmãos e irmãs. Aos 16 anos, decidido a se tornar advogado, ele se mudou para Belo Horizonte, onde passou a morar sozinho, enquanto alguns de seus irmãos optaram pelo Rio de Janeiro. Acostumado a se virar da melhor maneira possível, meu pai abriu uma engraxataria, com a qual passou a bancar a faculdade. Foi em Belo Horizonte que ele conheceu minha mãe, que ainda morava com meu avô, um pernambucano que, depois de sofrer perseguições políticas em sua terra durante a década de 30, decidira se mudar para Minas Gerais – uma decisão curiosa, já que ele sempre dizia que quem nascia no mar não podia viver na montanha (o que o levava a fazer diversas viagens ao Rio, para matar as saudades do oceano). Figura fundamental na vida de minha mãe, ele a criara praticamente sozinho, já que muito cedo perdera a esposa. Quando mamãe tinha 12 anos de idade, seu irmão mais velho, na época com 17 anos, contraiu tuberculose. Incapacitado pela doença, ele freqüentemente pedia que o colocassem ao lado da janela, para que pudesse observar os colegas que voltavam da escola, até que finalmente sucumbiu depois de algum tempo. Arrasada pela morte precoce deste meu tio, minha avó morreu de desgosto pouco depois, e, a partir de então, minha mãe passou a se sentir responsável por seu pai e por seus dois irmãos, o que certamente a levou a amadurecer muito rapidamente. Mas jamais deixei de notar uma profunda melancolia que tomava conta de seus olhos quando ela cantava as músicas de sua juventude. Nasci em Divinópolis, em 14 de maio de 1949. A esta altura, meus pais já tinham quatro outros filhos – o mais velho deles com 12 anos de idade. Como meu pai já era juiz de direito, sendo constantemente transferido de um lugar para outro, saímos de Divinópolis quando eu tinha apenas 2 anos, e mais tarde descobri que a maior parte das lembranças que eu julgava ter da cidade eram, na verdade, memórias dos meus irmãos e dos meus pais que eu assimilara através de casos narrados ao longo do tempo. Mesmo assim, guardo duas lembranças que, creio eu, são de fato minhas: uma diz respeito a uma ocasião em que estava andando de velocípede na calçada e, de repente, me vi dentro de um buraco, numa imagem infantil meio louca. Aparentemente, havia caído em um bueiro aberto. (Será que isto é uma fantasia?, me pergunto agora). A outra é ainda mais assustadora: toda cidade do interior tem sua cota de “malucos”, de indivíduos que despertam um medo irracional na garotada. Certo dia, um desses tipos se aproximou de nossa casa e a Dinha, a cozinheira (que também era minha madrinha), brincou: – Ô fulano, leva esse menino aí! E ele imediatamente me agarrou e me colocou nas costas, o que me despertou um pavor imenso. É curioso que as duas principais recordações de minha infância em Divinópolis digam respeito a experiências assustadoras, mas é assim que a mente das crianças funciona. Obviamente, a coisa funcionou de forma diferente em Peçanha, para onde meu pai foi transferido em seguida e onde moramos durante os quatro anos seguintes. É desta época, por exemplo, que vem minha primeira lembrança relativa à Sétima Arte: os cartazes que ficavam expostos ao longo da semana em um cinema local, e que divulgavam o filme que seria exibido na sessão dominical que eu sempre freqüentava. Aliás, Peçanha foi uma cidade muito interessante para se viver a primeira infância, já que possuía vários lugares fascinantes e misteriosos que eram fartamente explorados pelas crianças: lugares como a Mãe D’Água, onde nadávamos e perto da qual residia uma índia com quem sempre mexíamos, Sá Tiburça (e que, ao responder, nos levava a sair em disparada dali). Mas é claro que ela não estava sozinha na reação que provocava na molecada; havia também a Maria Abana-Rabo, uma “doida mansa” que provocávamos apenas para vê-la nos ameaçando com pedras. Eventualmente, ela acabou realmente atirando uma pedra em alguém e foi detida pelo delegado da cidade, o que provocou grande comoção entre nós, garotos – e foi meu pai quem resolveu a situação. Depois de descobrir que ela possivelmente apanhara na cadeia, ele se irritou com o incidente e, alegando que ela não tinha condições de avaliar o que fazia, ordenou que a libertassem. Dessa forma, a prisão e libertação da Maria Abana-Rabo, que era parte do imaginário infantil, ficaram marcadas em minha memória. A participação de meu pai naquele caso não foi algo atípico. Numa cidade do interior, a figura do juiz é muito forte, a pura encarnação da autoridade, e não era raro que as pessoas levassem seus problemas até nossa casa, como se ele fosse uma espécie de Rei Salomão pronto para solucionar todos os conflitos com sua sabedoria milenar. No entanto, é claro que nem todos que buscavam seu auxílio traziam questões simples. Certa vez, um caminhão parou na nossa porta e seus ocupantes desceram desesperados a fim de procurar meu pai. Enquanto eles se encontravam dentro de casa, meus irmãos subiram na boléia e levantaram a lona que a cobria, sem imaginar a terrível surpresa que os esperava: um cadáver sem a cabeça. Ao mesmo tempo em que meus irmãos saíam correndo apavorados dali, meu pai era informado sobre o bizarro suicídio do rapaz que escolhera uma forma absurda de morrer, colocando a cabeça na linha do trem. Era este o cotidiano de papai: tratar de questões que iam do prosaico ao chocante. E ele desempenhava seu trabalho com prazer. Isso não quer dizer que ele não encontrasse tempo para os filhos. Sua relação comigo, em particular, era muito gostosa, considerando-se que ele já era um pouco mais velho quando nasci. Sempre presente em minha vida, ele me pegava no colo assim que chegava do fórum e conversávamos durante um bom tempo. E, apesar de sua postura severa de magistrado, só me bateu uma única vez, em uma ocasião em que saí pendurando nos varais do quintal. Eu pendurava em um, arrebentava; pendurava em outro, arrebentava. Aí ele, finalmente, perdeu a paciência e me deu uns tabefes. Minha mãe, por sua vez, era a típica mulher mineira da época (nascera em Ubá) – incrivelmente amorosa, ela se dedicava integralmente aos filhos e ao marido. Ao mesmo tempo, era uma mãe rígida, daquelas que, numa festa de aniversário, não permitia que os filhos fossem os primeiros a pegar os docinhos que eram servidos (e era terrível quando alguém insistia, já que uma eventual desobediência seria castigada com um rápido beliscão). Para uma criança, poucas coisas são piores do que ver um doce se afastar a salvo. Mas isso fazia parte de sua criação e o fato é que ela sempre foi uma mãe maravilhosa, preocupada com o português que falávamos e escrevíamos, tinha uma paciência imensa para nos ensinar e corrigir, além de incentivar ao máximo a leitura. Não foi à toa que aprendi a ler tão cedo, bem antes de entrar para a escola. Eu adorava conhecer novas histórias. Como tinha irmãos mais velhos, nossa biblioteca possuía uma grande quantidade de livros infantis: Cazuza, de Viriato Correia; Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur; várias edições diferentes dos trabalhos de Monteiro Lobato; e assim por diante. E essa bibliografia sempre esteve à minha disposição, o que me levava a perseguir minha mãe para que ela lesse as histórias para mim. E foi justamente o hábito de ouvir muitas histórias que começou a me preparar para uma leitura rápida e precoce. Durante um tempo, cheguei mesmo a transformar a biblioteca em meu quarto, já que esta era a única opção de dormir sozinho, posto que, em uma casa cheia como a nossa, os irmãos não tinham alternativa a não ser dividir os quartos uns com os outros. Mas é claro que eu não deixava de brincar. Como só comecei a freqüentar a escola aos 7 anos, quando já morávamos em Belo Horizonte, eu não tinha responsabilidade alguma durante meus primeiros anos de vida, e passava o dia fazendo molecagem na rua ou no quintal de casa, que era imenso e estava sempre cheio de crianças. Tudo era muito diferente do que ocorre hoje, quando crianças de dois anos de idade já estudam e têm horários, obrigações. Em contrapartida, éramos bem mais ingênuos. Lembro-me, por exemplo, que só descobri a existência do sexo feminino aos 4 anos, quando minha irmã nasceu. Ao vê-la pelada enquanto minha mãe a banhava, notei que ela não tinha pinto. Que ser era aquele? Acabei concluindo que o pinto nasceria mais tarde. Porém, algum tempo depois acompanhei minha mãe em um batizado e observei que o bebê, muito mais novo que minha irmã, já tinha algo entre as pernas – e só então percebi que definitivamente havia algo de diferente com ela. Em 1956, meu pai finalmente recebeu sua última transferência – Belo Horizonte. Como tínhamos muitos parentes na capital (especialmente de minha mãe), já estávamos acostumados a visitá-la na época do Natal – e eu sempre ficava fascinado com as dimensões de tudo que via, desde a enorme quantidade de brinquedos nas Lojas Americanas até os luminosos espalhados por todos os lados durante o mês de dezembro. Em Peçanha, as crianças namoravam a vitrine da única loja de brinquedos da cidade, e a luzinha vermelha que piscava na porta do estabelecimento era sua grande atração. Assim, toda vez que retornávamos das férias, eu encantava meus amigos com as histórias das maravilhas que vira na capital e, de certa forma, percebia que meus horizontes haviam se expandido com relação aos deles. Além disso, perto da casa na qual costumávamos nos hospedar quando íamos a Belo Horizonte, que ficava na descida da Av. Álvares Cabral, ocorriam sessões do Cine Grátis, o que me encantava imensamente. A mudança não representou, portanto, trauma algum. Embora lamentasse a perda dos amigos que ficavam para trás, eu não podia ignorar um elemento importantíssimo que aumentava minha vontade de morar em BH: eu sabia que nas Lojas Americanas havia milhares de soldadinhos de chumbo. Crescer em Belo Horizonte no final da década de 50 e início da de 60 era algo que ainda permitia grande liberdade. É claro que não tínhamos a mesma tranqüilidade de Peçanha, pois mamãe se preocupava com nossa segurança. Já havia algum grau de violência na capital e, além disso, os carros e ônibus sempre foram um pesadelo para qualquer pai cujos filhos curtiam brincadeiras de rua, como andar de carrinhos-de-rolimã e jogar bente-altas (diversões que, quatro décadas depois, eu retrataria em O Menino Maluquinho). Até mesmo andar de bicicleta era diferente; quando caíamos, em Peçanha, a queda era amenizada pelo chão de terra ou pela grama, enquanto, em BH, éramos recebidos pela aspereza do asfalto e dos paralelepípedos ou pelas perigosas quinas dos passeios. E obviamente havia muito mais gente pelas ruas; no interior, “multidão” é uma referência muito diferente. De modo geral, contudo, não tive problemas de adaptação. Afinal, éramos uma família grande e isto gera a sensação de que todo seu universo foi transportado junto com você, o que representa uma situação aconchegante. Além disso, em Peçanha éramos “de fora”, “a família do juiz” que fora transplantada para lá. E não se pode esquecer que minha mãe passara toda sua infância em Belo Horizonte, e seus dois irmãos, que ainda moravam ali, sempre tiveram um carinho muito grande com ela e conosco. Mas a transferência de meu pai para a capital não representou uma simples mudança nos cenários das brincadeiras. Eu agora teria que entrar para a escola e enfrentar o choque da disciplina acadêmica. Comecei a estudar no Colégio Barão do Rio Branco. Minha mãe sempre contava, orgulhosa, que eu inicialmente tivera minha matrícula rejeitada por não ter 7 anos completos (que eu só faria em maio) e que, por esta razão, seria transferido para o ano seguinte, o que atrasaria minha formação. Determinada a evitar que isto acontecesse, ela procurou a diretora do colégio e a convenceu a permitir que eu fizesse um exame. Apesar de concordar, a diretora preparou minha mãe para a decepção que esta certamente teria, já que eu não tinha preparação alguma, nunca freqüentara a escola, estava vindo do interior, e assim por diante. Passei no exame e, assim, pude entrar no meio daquela meninada danada, com seus horários, uniformes e tudo o mais que representa a escolarização. Capítulo II Mergulhando na Política Em 1961, decidi me matricular no Colégio Militar. Admirador de meu tio (irmão de papai), que era general, eu sentia atração pela farda e, aos 12 anos de idade, decidi que seria um bom momento para começar a vesti-la. O colégio tinha ótimos professores e eu já sabia que a disciplina seria rígida, mas não imaginava que fosse tanto: fui surpreendido pela realidade que encontrei, a mentalidade absurdamente conservadora daqueles militares e a chatice de ser obrigado a raspar a cabeça toda semana. O que já era ruim tornou-se insuportável depois do Golpe de 64. Enquanto o mundo vivia um período fértil de riqueza e liberdade culturais, eu me encontrava encarcerado em uma instituição que procurava controlar nossas idéias e ideais, chegando mesmo a censurar vários artigos que seriam publicados no jornalzinho editado pelos alunos. Nas ruas, os jovens exibiam um comportamento cada vez mais ousado e diferente, cantando músicas dos Beatles e dos Rolling Stones, ao passo que eu e meus colegas nos colocávamos de pé todas as manhãs para ouvir o toque de cornetas, seguido por um sermão que dizia respeito a alguma “questão nacional”. Com o passar do tempo, aconteceu o inevitável – comecei a me sentir sufocado e disse para meu pai que queria sair do colégio. Isto deu origem à nossa primeira briga, que ele venceu ao argumentar que, se eu estudasse ali por mais dois anos, estaria livre do serviço militar. De qualquer maneira, o colégio é ótimo, finalizou com segurança. Havia todo um clima de segredo na escola, com boatos correndo de um lado para o outro – algo que sempre ocorrera, como na ocasião em que se disse que, durante a parada de 7 de Setembro, na qual éramos obrigados a desfilar, levaríamos fuzis carregados com balas de verdade (o que gerou grande empolgação entre os mais jovens). Por outro lado, coisas estranhas certamente ocorriam: generais importantes passavam por lá e vários professores (militares e civis) sumiam de repente, sendo demitidos sem qualquer aviso prévio. Lembro-me particularmente de um professor de Geografia, um major, que sempre colocava questões políticas em suas aulas e que acabou sendo expulso do exército em função de suas “idéias progressistas”. Assim que os dois anos que eu combinara com meu pai ficaram para trás, larguei com alegria meu uniforme e fiz o vestibular para o Colégio Universitário, uma experiência belíssima da UFMG que fora organizada pelo professor Aluísio Pimenta. Ali, os alunos cursavam o último ano do colegial praticamente dentro da universidade (literalmente, já que ficava situado no câmpus) e aquele foi o melhor período acadêmico de minha vida. Tínhamos extrema liberdade; era uma escola muito criativa que nos estimulava constantemente e onde passávamos o dia inteiro. O entrecruzamento das disciplinas era fantástico. De manhã, por exemplo, estudávamos o Romantismo na classe de Português e, à tarde, íamos para um estúdio ouvir o Romantismo na música, conhecê-lo na pintura, e assim por diante. Era um sistema avançadíssimo para a época e que formou uma geração muito inquieta; dali saíram vários artistas. E foi, como não poderia deixar de ser, um núcleo de agitação política entre os estudantes. Tive um amadurecimento político muito precoce, justamente por ser tão mais jovem que meus irmãos, que traziam para casa as experiências que viviam na universidade. E, talvez como um gesto inconsciente de desafio a papai (um juiz) e ao nosso tio (um general), logo passamos a evidenciar uma clara tendência à esquerda – o que dava origem a brigas horrorosas na hora do almoço. Meu pai, sempre um legalista, dizia que devíamos respeitar a “ordem estabelecida”, o presidente em exercício, e não aceitava nossas argumentações de que aquela “ordem” era ilegítima, fruto de um golpe que feria nossos direitos e a Constituição. Estas discussões constantes sempre acabavam com um sinal inconfundível de minha mãe para que calássemos a boca. E, como em nossa casa ela era a “ordem estabelecida”, nos calávamos imediatamente. Ali não havia espaço para golpes. Com o tempo, meu pai ficou politicamente isolado em seu próprio lar, e, para seu desespero, eu e meus irmãos estávamos sempre estudando teorias socialistas. Pouco depois, tornei-me militante de uma organização de esquerda, uma dissidência da POLOP (Política Operária), que era forte em Belo Horizonte. Na época, estas organizações ofereciam formação teórica aos militantes, e estudávamos e discutíamos uma bibliografia marxista clássica, que ia desde O Capital a outros importantes títulos do marxismo-leninismo. Eu lia sistematicamente, buscando dominar a filosofia e a dialética por trás de tudo aquilo. Entrei naquela dissidência não porque apoiava seu afastamento da POLOP (àquela altura, eu sequer tinha condições de julgar o mérito da questão), mas porque pessoas próximas a mim a apoiavam. Logo fiz amizade com um companheiro de célula, Fernando Pimentel, sem sequer imaginar que, mais de 30 anos depois, ele viria a se tornar prefeito de Belo Horizonte pelo Partido dos Trabalhadores. Tínhamos, então, 17 anos e atuávamos todos no movimento estudantil. Pouco depois, passei no vestibular e tornei-me um dos militantes responsáveis pela Organização dentro da Faculdade de Economia da UFMG. À medida que a Ditadura ia se tornando mais violenta em seus métodos de repressão, fomos chegando à conclusão de que a luta armada era a única via para combatê-la e, no processo, nossa organização mudou de nome e passou a ser conhecida como COLINA (Comando de Libertação Nacional), tornando-se bastante presente entre os estudantes, que basicamente se viam divididos entre vários grupos de esquerda. Havia uma divisão entre os grupos católicos (cujo maior representante era a AP, Ação Popular) e os marxistas. Estes últimos incluíam inúmeros subgrupos, que iam desde o Partidão até suas dissidências. Em Belo Horizonte, a maior dessas dissidências era a Corrente Revolucionária de Minas Gerais (ou, simplesmente, Corrente), que também caminhou para a luta armada e posteriormente se ligou aos guerrilheiros da ALN (Ação Libertadora Nacional) de Carlos Marighella. Enquanto isso, a COLINA juntou-se a outras facções, formando, mais tarde, a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares), que, por sua vez, se tornaria a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), que chegou a ser dirigida por Carlos Lamarca. Todas estas siglas significavam, entre outras coisas, que o movimento estava fragmentado em várias correntes ideológicas, o que, ao mesmo tempo em que nos enfraquecia, dificultava o trabalho de repressão para os militares. No final de 68, início de 69, uma destas organizações realizou uma série de ações armadas em Belo Horizonte e Sabará, chegando a executar um assalto conjunto, simultâneo, em dois bancos, numa ação audaciosa e brilhantemente planejada. Esta organização era a COLINA, o grupo do qual eu fazia parte. Meu setor era o Movimento Estudantil. A organização se dividia claramente entre o componente político, que militava entre os estudantes e operários, e o componente militar, formado pelos companheiros ligados às ações armadas. Estes últimos tinham outros tipos de células, formação e contatos – algo necessário para aumentar sua segurança. No final da década de 60, a COLINA colocou em prática uma série de manobras que atraíram a repressão. Em pouco tempo, os militares chegaram a um aparelho que funcionava no bairro São Geraldo, invadindo-o durante a noite. Encurralados, nossos companheiros reagiram à bala e acabaram matando um policial, sendo presos em seguida. Nos meses seguintes, passariam por um verdadeiro martírio, chegando a serem levados para o Rio e usados em aulas de tortura – algo que Elio Gaspari relata em sua coleção de livros sobre o período da Ditadura. Com a queda deste aparelho, alguns militantes acabaram falando sob tortura e, com isso, meu nome e codinome (Clemente) caíram nas mãos dos militares. À medida que novas prisões iam sendo efetuadas e que pessoas mais próximas a mim começaram a cair, percebi que algo estava sendo revelado e o cerco estava se fechando. Por precaução, saí de casa e passei a morar em um de nossos aparelhos. Naquela época, ainda conseguíamos filtrar muitas informações das prisões – e foi desta maneira que um companheiro pôde me avisar para fugir, pois eu estava prestes a ser capturado. Larguei a faculdade e fugi para o Rio de Janeiro, já na clandestinidade. Sem querer expor meus pais ou aumentar a preocupação que já sentiam, procurei revelar o mínimo possível. Por meio de carta, menti para mamãe, dizendo que estava saindo do Brasil e indo para um lugar seguro, e que manteria contato de tempos em tempos. Por mais que desejasse conversar com minha família, eu não podia me arriscar, pois a repressão estava avançando rapidamente em seus métodos de controle e busca de informações. Um ano e meio se passaria até que eu pudesse finalmente contatar meus pais, ainda em circunstâncias desesperadoras. Capítulo III Clandestino À medida que companheiros espalhados por todo o Brasil eram obrigados a mergulhar na clandestinidade, suas organizações de origem passaram a se preocupar com uma questão logística: o que fazer com tantos militantes perseguidos pela ditadura, e que, em sua maioria, iam se esconder no Rio de Janeiro? Os famosos “deslocados” do Rio formavam um grupo numeroso cuja atividade principal era, acreditem ou não, ir ao cinema ou visitar as bibliotecas. Vivendo em quartos alugados em pensões, éramos forçados a passar todo o dia fora de casa, para evitar desconfianças que poderiam facilmente levar-nos à prisão. Assim, antes que alguém pudesse perguntar: “O que um cara dessa idade fica fazendo o dia inteiro no quarto?”, mentíamos descaradamente, alegando que trabalhávamos ou estudávamos – e, como parte da farsa, saíamos logo pela manhã e retornávamos somente à noite. Ora, o que fazer durante todas aquelas horas? Na maioria das vezes, eu ia ao cinema, algo que adorava. Durante o período em que estudei no Colégio Universitário, ajudei a organizar e a criar as programações de um cineclube, e freqüentemente participava de sessões no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC). Assim, como militante clandestino, simplesmente retomei o hábito e chegava a entrar no cinema ao meio-dia e sair apenas às 8 horas da noite. Desenvolvi uma relação de absoluta paixão com o cinema e assistia a todos os filmes que estavam em cartaz, muitos deles três vezes seguidas. Eu chegava a sair tonto da sala de exibição. Logo fiquei fascinado com as produções do Cinema Novo que, de certa forma, pareciam uma espécie de rascunho dos filmes americanos em função de sua precariedade técnica e suas diferenças narrativas e temáticas, bem mais próximas de mim. Os longas de Hollywood eram perfeitinhos, bem-acabados, e isto me distanciava, eu não percebia a possibilidade de fazer algo como aquilo. Ainda assim, eu sequer tinha como pensar na possibilidade de algum dia vir a me dedicar ao cinema, já que minhas preocupações eram mais imediatas e graves. De todo modo, já sonhava muito com aqueles filmes brasileiros que me impressionavam enquanto linguagem e forma de expressão. Além do tempo gasto em frente à tela grande, eu também realizava uma série de tarefas pela cidade e, em determinado instante, fui enviado para Magé, no interior do Estado, onde funcionava uma base de pescadores ligados à organização. Aquelas semanas foram um verdadeiro suplício para mim, mas não por motivos políticos. O problema é que eles comiam abóbora praticamente o dia inteiro, e eu sempre detestei abóbora. Esta foi, aliás, uma das grandes provas de minha dedicação à causa: comer peixe com abóbora. Minha estada em Magé chegou ao fim quando alguns companheiros foram presos em um local próximo dali e recebi ordens de voltar à capital. Nós vivíamos de altos e baixos, e tínhamos, em nossas mentes, um certo modelo de como as coisas deveriam funcionar. Era fundamental que montássemos um foco guerrilheiro no campo a fim de realizar ações estratégicas nas cidades, como a expropriação de bancos com o objetivo de financiar a organização e preparar novos quadros. Ao contrário do que o Partidão advogava, nós acreditávamos que os combates poderiam levar à conscientização da população, que perceberia a importância da causa revolucionária. E, quando encaixávamos a realidade neste nosso esquema teórico, acabávamos achando que a coisa toda estava avançando, num processo contínuo de auto-ilusão. Creio que sempre tivemos um certo sentimento de onipotência, acreditando que um grupo pequeno, mas formado por pessoas inteligentes, bem preparadas e extremamente corajosas, poderia vencer um exército. Não é à toa que o lema da organização era “Ousar Lutar, Ousar Vencer”. E é claro que realizamos várias ações bem-sucedidas que acabavam por humilhar os militares – que voltavam com força redobrada para nos liquidar. Uma dessas ações foi realmente fantástica. Em 18 de julho de 1969, a VAR-Palmares conseguiu executar um roubo que se tornou famoso ao invadir a residência de uma amante de Adhemar de Barros, ex-governador de São Paulo, e levar 2,8 milhões de dólares que se encontravam em um cofre. Dias depois, recebi a incumbência de transportar parte deste dinheiro para Brasília, a fim de distribuí-lo entre aparelhos ligados ao grupo. Como o controle era enorme nas estradas, optei por viajar sempre de ônibus. Ainda assim, volta e meia a polícia nos parava e entrava pedindo os documentos de todos os passageiros, chegando a prender aqueles que considerava suspeitos. Portando documentos falsos, eu levava uma malinha pequena, entupida de dólares, e a colocava no porta-volumes situado sobre um dos bancos na parte dianteira do veículo, bem distante do meu próprio assento. Dessa forma, eu poderia vigiá-la, mas, caso a polícia a localizasse (o que nunca aconteceu), não iria poder associá-la a mim. Depois de algum tempo, a organização me mandou para Goiás, uma região estratégica para nossos propósitos. Sempre acreditamos que qualquer foco guerrilheiro no Brasil, para ser bem-sucedido, deveria ser situado por aquelas bandas, caminhando em direção ao sul do Pará, onde mais tarde houve a guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB. Aquela era uma região perigosa, de conflitos sociais violentos pela posse da terra. Eu deveria montar uma base de apoio em Goiânia e, conseqüentemente, fui obrigado a circular muito por Brasília a fim de estabelecer contatos com os companheiros que lá operavam. Ser militante clandestino em Brasília é uma coisa pavorosa. Numa cidade normal, com esquinas, lojas, bancas de revistas, é fácil circular a pé – o que não ocorre ali. Com isso, à solidão natural do militante somava-se a solidão que a capital do país provocava, o que era terrível. Em Brasília, vivi uma história de amor que me marcou muito: apaixonei-me por uma companheira de organização, que havia se separado há pouco tempo de outro militante. Tentar manter um relacionamento em um contexto maluco como o daquele período era algo difícil e eu me sentia terrivelmente só. Os poucos casos que tinha eram marcados por mentiras, já que eu não podia revelar nem mesmo meu nome para minhas companheiras. Já aquele novo romance era diferente, pois ela sabia um pouco mais sobre mim, sobre minhas ideologias. Logo decidimos viver juntos em um dos aparelhos que a VAR-Palmares mantinha em Brasília – algo que desagradou ao seu ex-marido, que não escondia o desejo de reatar o casamento. E foi então que ele foi preso pelos militares e, sob tortura, acabou entregando o nome de sua ex-mulher. Na ocasião, eu tinha viajado para o Rio por alguns dias e, na volta, deveria me reunir com ele, a fim de lhe entregar uma quantia em dinheiro enviada pela organização. O encontro seria num domingo de manhã, às 11 horas, perto do Hotel Nacional. Como cheguei no sábado à noite, decidi ligar para um padre holandês, um de nossos contatos com a Igreja Católica (e que acabou sendo expulso do Brasil tempos depois). Assim que ouviu minha voz, ele disse, com seu sotaque carregado: – Graças a Deus que você ligou! E me colocou a par da queda do sujeito, acrescentando que ele estava entregando várias pessoas. Apesar do incrível golpe de sorte (um de vários) que evitou minha prisão, minha relação com a ex-esposa deste companheiro se tornou complicada. Sabendo que ele estava sendo torturado, ela passou a se sentir culpada por viver comigo. E o que é pior: a repressão sabia do nosso envolvimento e usava isto para atormentar o prisioneiro: “Sua mulher está com o Clemente!”, diziam, entre risos. Decidimos nos separar, mas aquela perda adicional consumiu o resto das forças que eu tinha para continuar lutando. Depois de ter escapado por pouco em duas ou três ocasiões, eu sabia que, caso fosse capturado, seria terrivelmente torturado e provavelmente morto. Eu a vi pela última vez em um bar, onde nos despedimos. Eu sofria profundamente por causa da separação, mas, racionalmente, sabia que, se continuássemos a nos ver, os riscos seriam imensos. Jamais voltei a encontrá-la e, segundo soube tempos depois, ela acabou reatando com o ex-marido quando este saiu da prisão. Em 1970, resolvi que era hora de deixar a organização e sair do país. Não era uma decisão fácil. Mesmo que as coisas estivessem afundando e as perspectivas se tornando cada vez mais sombrias, era impossível deixar de se sentir como um traidor, como se estivesse abandonando os companheiros que estavam presos e sofrendo nos porões da ditadura. Havia enorme peso moral em largar tudo. Além disso, eu seria obrigado a me virar sozinho, já que a organização não possuía um esquema montado para retirar os militantes perseguidos do país. Tirar as pessoas da luta não era uma prioridade – e eu não sabia por quanto tempo teria que ficar escondido e nem mesmo se conseguiria sair do Brasil. Finalmente, manifestei minhas intenções para o meu contato na VAR-Palmares, o dirigente Carlos Alberto Soares de Freitas. Cerca de dez anos mais velho do que eu, Beto, um sujeito afável e interessante, era muito conhecido em Belo Horizonte, onde era dono de um bar famoso na Av. Getúlio Vargas, quase com a Av. Afonso Pena. Eu e Beto tínhamos uma relação muito afetuosa; eu gostava imensamente dele e admirava a sua inteligência. A essa altura, ele já era um dos caras mais procurados do Brasil. Quando expliquei que pretendia deixar o país, ele aceitou minhas ponderações de forma tranqüila, embora deixasse claro que discordava de minha decisão. Muito correto, me entregou algum dinheiro para que eu pudesse sobreviver por algum tempo e, assim, nos despedimos. Ele foi uma das últimas pessoas da organização com quem estive antes de sair. Menos de um ano depois, em 15 de fevereiro de 71, Beto foi preso ao lado de dois companheiros na pensão em que residia, em Ipanema. Levado para o DOI-CODI, foi torturado durante os 100 dias seguintes, sendo finalmente assassinado com vários tiros à queima-roupa. Seu corpo nunca foi encontrado. Em homenagem à mãe deste companheiro, que passou a manter o quarto do filho exatamente como ele deixara, Chico Buarque compôs Pedaço de Mim, na qual canta: “Ó pedaço de mim Ó metade arrancada de mim Leva o vulto teu, Que a saudade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filho que já morreu...” Comecei a me preparar para cruzar a fronteira ao lado de outro companheiro, que também iria deixar o país. Certo dia, durante os longos preparativos para a fuga, li uma reportagem na revista Manchete sobre a Universidade do Pará e, para minha surpresa, vi o nome de uma tia (na verdade, uma prima de minha mãe) que era diretora da Faculdade de Educação. Como ainda teríamos que esperar algum tempo até que surgisse o momento mais adequado para a viagem, eu e o outro militante decidimos nos separar temporariamente – enquanto ele iria para Goiás, sua terra natal, decidi estabelecer contato com tia Anunciada, em Belém. Combinamos de nos encontrar no Rio, dentro de poucas semanas, e fomos cada um para um lado. Minha intenção era utilizar estas parentas para avisar minha família sobre o que iria fazer em seguida e, talvez, conseguir algum tipo de apoio logístico ou financeiro. Certo de que os militares jamais poderiam imaginar que eu fosse procurar uma senhora, prima de minha mãe, no Pará, peguei o ônibus e encarei uma viagem que durava dois dias e duas noites. Era uma estrada perigosíssima, repleta de bandidos, e carreguei meu .38 na cintura todo o tempo. Lá chegando, procurei imediatamente minha tia que, como já estava a par da minha situação, quase morreu de susto ao me ver. Ainda assim, me acolheu generosamente e se mostrou mais do que disposta a me ajudar a entrar em contato com meus pais. Mas antes disso acontecer, eu levaria outro grande susto. Naquela época, a repressão costumava fazer um jogo psicológico baixíssimo para: a) convencer a população de que os “terroristas” estavam cada vez mais fragilizados; e, b) abalar a confiança dos militantes clandestinos. A estratégia era simples: levar prisioneiros políticos à televisão para que estes “manifestassem seu arrependimento” publicamente. Era um espetáculo triste e patético, digno de dó. Mas que cumpriu seu objetivo de assustar ao menos um clandestino – eu. Certa noite, assistindo aborrecido a um destes “atos de contrição”, senti o coração disparar ao reconhecer o rosto de ninguém menos do que o companheiro que deveria estar em Goiás e com quem, supostamente, eu me encontraria no Rio, em poucos dias. Foi uma sensação pavorosa, como se o cerco estivesse fechando ainda mais (outro que se prestou a este triste papel foi o ex-marido de minha antiga companheira de Brasília, que foi à televisão poucos dias antes do último encontro que eu e ela tivemos no bar). Como se não bastasse, esta prima descobre, entre meus pertences, o revólver que eu trouxera e ficou petrificada, já que não esperava que eu estivesse armado em sua casa. Assim, tive que acelerar minha saída de Belém, onde me julgava relativamente seguro. Felizmente, neste meio tempo minha família já havia recebido a carta que eu enviara (estrategicamente escondida na correspondência destinada a outra tia) e, dessa forma, marquei um encontro com um de meus irmãos no Rio de Janeiro. Era junho de 1970, época de Copa do Mundo. Hospedei-me, apresentando documentos falsos, em uma pensão no Bairro Peixoto. Eu estava emocionado e ansioso para encontrar meu irmão, já que há 18 meses não via ninguém de minha família. Foi um momento inesquecível, aquele... Depois de nos abraçarmos demoradamente, saímos para conversar nas areias de Copacabana. Era uma tarde de jogo do Brasil, e o Rio estava completamente vazio, não se via ninguém nas ruas. Sentamos em um banco do calçadão, momentaneamente felizes e relaxados, esquecendo, por alguns minutos, que havia uma ditadura assassinando jovens por todo o país, e que, se não fugisse logo, eu poderia me tornar um deles. Conversamos sobre meus pais e nossos irmãos, e contei a ele parte do que vivera nos últimos meses. Ficamos em silêncio por alguns instantes, apenas curtindo a presença um do outro. Subitamente, toda a cidade explodiu em uma cacofonia de gritos e foguetes. Era gol do Brasil. Capítulo IV Fuga para o Chile Sem poder contar com apoio logístico por parte da organização, passei a depender do auxílio de minha família para sair do país e, assim, fui para Belo Horizonte em uma tensa viagem de carro com Arildo de Barros, do Grupo Galpão. Ironicamente, acabei me hospedando na casa de meu irmão, que ficava a apenas dois quarteirões do DOPS. Preso em casa, passava o tempo lendo, vendo os jogos do Brasil e, é claro, matando as saudades de minha mãe, que, sempre tomando todo o cuidado possível para não ser seguida, ia me visitar freqüentemente. Finalmente, meu pai, por intermédio de seus inúmeros contatos, localizou alguém que poderia me ajudar, um contrabandista que era dono de um pequeno avião. Especializado no transporte de cigarros americanos, calças jeans, uísque e perfumes, o sujeito costumava sair de Belo Horizonte e ir até a fronteira do Mato Grosso com o Paraguai, onde ficavam seus fornecedores. Inicialmente hesitante em me levar, ele acabou sendo convencido pelo argumento que compreendia melhor: dinheiro. Não sei exatamente quanto papai ofereceu a ele, mas foi o bastante. De clandestino, passei a contrabando. Ainda assim, havia uma condição. Não poderíamos dizer para o co-piloto quem eu era, por dois motivos: muitos daqueles contrabandistas tinham ligações com a Polícia Federal, e eu poderia acabar sendo denunciado. E, além disso, dividir o avião com um perseguido político, um “terrorista”, era algo temeroso para aquela linha de trabalho, pois poderia atrair a atenção indesejada da repressão. Dessa forma, fui apresentado ao co-piloto como sendo o filho de um contrabandista de maconha que estava viajando para estabelecer novos “contatos comerciais”. Naquela época, era preferível ser traficante do que militante político. Partimos do aeroporto da Pampulha na madrugada fria de 22 de junho de 1970 e fomos direto para o Mato Grosso, onde pousamos num trecho de estrada abandonado. Os motores mal haviam parado quando alguns homens correram em direção ao avião, cobrindo-o com uma lona imensa. Eles não deixavam nada ao acaso. Os depósitos dos contrabandistas ficavam nas proximidades – galpões imensos, repletos de roupas, bebidas e inúmeros outros itens que viriam a ser comercializados em vários pontos do Brasil. Fui apresentado a várias outras pessoas e um sujeito de aparência simpática e alegre, apontando para uma verdadeira montanha de roupas, disse: – Pega uma calça pra você! Aceitei o presente. Cruzamos a divisa de Ponta Porã com Pedro Juan Caballero e, como num passe de mágica, eu estava em outro país. Isso não significa que eu estivesse a salvo: Pedro Juan Caballero era (e continua a ser) um verdadeiro lugar de faroeste, uma cidade barra-pesada na qual circulava de tudo, principalmente uma grande quantidade de drogas. À noite, o piloto me levou a um bar que tinha um ambiente fantástico, quase surreal. Em um pequeno palco improvisado, uma orquestra paraguaia tocava, com harpas, uma música popular no país, Caballo Blanco. Enquanto isso, várias putas circulavam pelas mesas, oferecendo seus corpos e drogas para os fregueses. Para evitar que minha presença gerasse qualquer tipo de desconfiança, meu companheiro resolveu esclarecer que eu era um rapaz acima de qualquer suspeita. Em outras palavras, um traficante. Assim, pediram que o dono do bar fosse chamado para me conhecer. Eu não sei exatamente o que eu esperava ver. Talvez um sujeito grandalhão e ameaçador, cercado por capangas e armado até os dentes (ou qualquer outro clichê do gênero). O que eu certamente não esperava era um cearense baixinho, com sotaque nordestino carregadíssimo. Quando explicaram para ele que eu ia ao Peru para comprar um carregamento, ele ficou indignado: – Porra, tá indo ao Peru pra comprar maconha? E foi rapidamente ao seu “escritório”, de onde voltou carregando um tijolo de maconha, colocando-o em minhas mãos sem a menor cerimônia, no meio de todas aquelas pessoas, como se fosse uma garrafa de cerveja ou um sanduíche de presunto. – Experimenta essa aí e, se aprovar, tenho muito mais. Temos uma tonelada plantada na região. Pra que ir ao Peru, se pode comprar no Paraguai? Como se eu já não tivesse o bastante com que me preocupar, agora eu tinha que arranjar um jeito de esconder maconha no meu quarto de hotel. Como o piloto que me trouxera ao Paraguai ia retornar ao Brasil – e eu tinha que sair urgentemente de Pedro Juan Caballero, que ainda estava muito perto dos militares – preparei-me para viajar para a capital, Assunção. O único avião que fazia aquela rota pertencia, ironicamente, ao transporte aéreo militar do Paraguai. Isso não importava; dei um jeito de comprar a passagem. Até então, ninguém havia pedido para ver minha carteira de identidade, que era falsa e trazia o nome de Marcos dos Santos. Era uma falsificação de boa qualidade, assim como o título de eleitor que a acompanhava. Porém, eu precisava de um passaporte. Em um acordo entre o Brasil e outros países do Cone Sul, era possível viajar apenas com a carteira de identidade para o Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina. No entanto, eu pretendia ir para o Peru – não para comprar maconha, mas porque o país tinha um governo nacionalista, que provavelmente ofereceria melhores condições para exilados políticos como eu. Felizmente, eu estava acompanhado pelas pessoas certas. Quem melhor para conhecer falsificadores de passaportes do que contrabandistas? De posse de um contato em Assunção, embarquei no avião do exército paraguaio. Para variar um pouco, desta vez os militares estavam me ajudando. Assim que cheguei à capital, fui em busca do tal sujeito que poderia me fornecer um passaporte. Ele morava em uma mansão enorme, guardada por vários sujeitos armados, e era claramente algum tipo de gângster local. E, aparentemente, era também um homem ocupado, pois estava viajando e não tinha previsão de retorno. Minhas opções agora tinham se restringido drasticamente. A única possibilidade que me restava era viajar para um dos países que permitiam a entrada de brasileiros portando apenas a carteira de identidade. Fiquei dividido entre a Argentina e o Chile, mas um elemento político pesou em favor deste último: o presidente chileno era Eduardo Frei, da democracia cristã, e parecia bem mais receptivo. Além disso, vários brasileiros já se encontravam lá, incluindo a geração mais velha, que fugira assim que o Golpe acontecera, em 64. Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por exemplo, já eram inclusive professores em universidades do país. Cheguei em Santiago no dia 25 de junho de 1970, três dias depois de deixar o Brasil. Imediatamente, decidi procurar um amigo de Belo Horizonte, João Batista Mares Guia, irmão de Walfrido (que se tornaria Ministro do Turismo no governo Lula, anos depois). João me recebeu com alegria e me convidou para ficar na pensão na qual residia. Mais tarde, alugaríamos juntos um apartamento. Decidi permanecer no Chile, que teria eleições presidenciais em setembro. A esquerda contava com um candidato forte, Salvador Allende, e todos estavam otimistas com relação ao futuro, já que aquela poderia representar uma bela experiência de governo. Quando a vitória de Allende foi confirmada, decidi estabelecer-me de vez no país – e, como já seria de se esperar, uma verdadeira multidão de brasileiros começou a chegar em Santiago. Para sustentar-me, comecei a trabalhar em um órgão das Nações Unidas, fazendo pesquisas socioeconômicas de porta em porta. Basicamente, andava por toda a cidade visitando as casas e perguntando para seus moradores quantas pessoas viviam ali, suas rendas, e por aí afora. Como ganhava por questionário preenchido, conseguia algum dinheiro, que complementava fazendo outros bicos. Acreditando que meu período na clandestinidade havia se encerrado, matriculei-me na Escola de Economia e retomei os estudos. Naquela época, a faculdade de Economia do Chile era uma das mais brilhantes do mundo, contando com professores de vários países. Além dos já citados FHC e Serra, estavam ali Maria da Conceição Tavares (que foi minha professora), Martha Harnecker e Günther Franck, um professor sueco fantástico. O ambiente acadêmico era vigoroso e estimulante e, por isso, insisti no curso por mais um ano, finalmente trocando-o por uma experiência que, além de ligada diretamente ao Cinema, era simplesmente fascinante. Um departamento ligado ao Ministério da Cultura recebeu, do governo inglês, doação de 20 Land Rovers audiovisuais. Eram veículos espetaculares, preparados não apenas para enfrentar qualquer tipo de chão, mas também para serem convertidos em palcos. Além disso, eles possuíam projetor, tela e diversos recursos do tipo. A partir disso, alguns intelectuais chilenos criaram uma série de expedições que foram batizadas como Operação Saltamontes (ou Gafanhoto). Para colocar o projeto em prática, o Ministério montou equipes integradas que contavam com profissionais das áreas de Jornalismo, Artes Plásticas, Música, Teatro e Cinema. Quando a Operação foi anunciada e as equipes passaram a recrutar jovens, inscrevi-me imediatamente para a área de Cinema e fui contratado. Era algo fantástico: viajávamos por todo o interior do país visitando o maior número possível de cidades. Assim que chegávamos nas localidades selecionadas, montávamos o palco e convidávamos a população para assistir a espetáculos teatrais, filmes e shows de música; distribuíamos um jornal; e fazíamos uma agitação danada. Ficávamos cerca de 20 dias em cada cidade, transferindo estes meios para seus habitantes – e, assim, quando íamos embora, eles já sabiam como produzir uma peça, editar um jornalzinho e rodá-lo num mimeógrafo e, é claro, montar um cineclube. Era uma experiência altamente revolucionária que, até hoje, não encontra paralelos no Brasil, por exemplo. Eu falava um espanhol satisfatório, mas meu sotaque levava as pessoas a acreditarem que eu era cubano – o que, apenas dez anos depois da Revolução liderada por Fidel e Guevara, era algo que gerava conflitos inevitáveis com os conservadores de direita das cidades que visitávamos. Como andávamos por áreas de latifúndio no Sul do Chile, onde ocorriam conflitos intensos pela posse da terra, tínhamos que evitar, para nossa própria segurança, qualquer desentendimento. Participei da Operação Saltamontes durante os oito meses de sua curta e gloriosa existência. Infelizmente, pressões de grupos da direita, que alegavam que as equipes do projeto eram formadas por guerrilheiros internacionais que queriam apenas tumultuar o país, acabaram por levar o Ministério a desativar o projeto. Todos saíram perdendo – menos, é claro, os conservadores poderosos, como de hábito. Capítulo V Respirando Cinema Voltei para Santiago desempregado e sem quaisquer perspectivas profissionais – e, mais uma vez, o acaso agiu em meu favor. Andando no centro da cidade, encontrei um conhecido da Faculdade de Economia da UFMG, Jaime Moreira, que me contou que iria começar a trabalhar em um filme, do qual seria produtor executivo. – Você curte cinema, né? Pois eu estou montando minha equipe de produção! Quer entrar? É claro que eu queria. – Então, amanhã bem cedo, vá até a Chile Films para conversarmos. Menos de 24 horas depois, eu já era funcionário contratado da Chile Films, na qual permaneci até ser obrigado a sair do país, mais de dois anos depois. Espécie de Embrafilme chilena, aquela estatal diferia (para melhor) da versão brasileira por não ser apenas um centro burocrático, mas também um núcleo de produção, com estúdios, laboratórios de sonorização, moviolas e cursos de cinema. Quando fui contratado, o cineasta mais famoso do país, Miguel Littin, já tinha rodado O Chacal de Nahueltoro (muito interessante, por sinal) e estava finalizando Terra Prometida através justamente da Chile Films. Além disso, duas outras produções estavam começando, e passei a fazer parte da equipe de uma delas, Balmaceda, como assistente de direção de arte. Foi um aprendizado muito bacana, pois a diretora de arte, uma alemã rigorosa e metódica que viera ao Chile para este trabalho específico, desenhava muitíssimo bem, ilustrando toda a concepção do projeto em lâminas. Da mesma forma, como me envolvi com a cenografia e os figurinos, pude dar alguns palpites sobre as cores do filme, o que era empolgante. O longa iria contar a história do ex-presidente José Manuel Balmaceda, que governou o país entre 1886 e 1891 e foi deposto por um golpe, refugiando-se na embaixada da Argentina – onde cometeu suicídio no dia exato em que seu mandato constitucional terminaria. Curiosamente, a direção do filme seria de Fernando Balmaceda, descendente do ex-presidente, que encarava aquela superprodução caríssima como algo pessoal. Aliás, é curioso que aquela empreitada tenha marcado meu primeiro passo na Chile Films, considerando-se que, em algum tempo, as linhas gerais daquela trágica história seriam ressuscitadas, tendo Salvador Allende no lugar de Balmaceda. Infelizmente, a produção foi interrompida no meio. Estávamos no segundo semestre de 71 e a situação política do Chile ia se tornando cada vez mais complicada, já que havia muita resistência a Allende por parte da direita, incluindo sabotagens, resistência no campo à política agrícola do governo e boicotes às grandes cidades (levando à escassez de alimentos nestes centros). Com isso, o presidente e sua equipe experimentavam dificuldades para implantar suas políticas e o clima tornou-se permanentemente tenso, com a ocorrência de atentados e rumores de uma possível interferência norte-americana no país. Foi então que o Ministério do Interior, ao qual a Chile Films era ligada, botou em prática uma idéia muito sábia: suspendeu a produção de longas-metragens e instruiu que nos dedicássemos à realização de curtas que deveriam ter, como tema, questões sociais e políticas relativas ao que acontecia no país naquele momento, a fim de instruir (e alertar) a população sobre a manipulação feita pela direita e por certos setores do Exército. Visivelmente chateado (o que é compreensível), Fernando Balmaceda reuniu a equipe e anunciou a decisão do Ministério, acrescentando que esperava poder retomar o longa no futuro (algo que jamais conseguiu fazer). Como a realização de nada menos do que 40 curtas já havia sido aprovada, ele concluiu: – Quero saber se alguém tem alguma idéia ou um projeto que se encaixe nestas características e que possa ser apresentado já amanhã. Ergui a mão e disse que tinha. Mentira pura. Acho que estava simplesmente seguindo o slogan da minha antiga organização: “Ousar Lutar, Ousar Vencer”. A única coisa que eu tinha era um poema que havia escrito sobre um acontecimento recente que me intrigara muito. Poucos meses antes, um crime bárbaro fora cometido na periferia de Santiago. Dois rapazes do interior tinham assassinado e estuprado (nesta ordem) duas mulheres da favela, sendo rapidamente presos e condenados à morte. A crueldade do ato era inegável, mas a forma com que a imprensa trabalhava e vendia uma infinidade de jornais graças ao crime começou a chamar minha atenção. No Chile, este tipo de assassino é normalmente chamado de “chacal” (como ilustra o título do filme de Littin, O Chacal de Nahueltoro), e a mídia, que adora criar “celebridades do crime” a fim de estimular a circulação de seus periódicos, batizou os dois rapazes de “chacais de La Pincoya” (a favela na qual o incidente acontecera). Horrorizado com tudo aquilo, escrevi um poema intitulado Os Chacais dos Chacais, no qual retratava a imprensa como uma entidade carniceira que se alimentava de tragédias. Voltei para casa depois da reunião, peguei o poema e decidi apresentá-lo como premissa para um curta. Para isto, bolei uma idéia que já incluía o hibridismo de minha formação de brasileiro: a história seria narrada por um repentista por meio de versos e contaria a trajetória de dois jovens que, chegando à cidade grande, ficavam sem emprego ou perspectivas e acabavam se associando a grupos de drogados e traficantes, vindo a cometer um crime. Para criar a figura do repentista (que lá se chama payador), inspirei-me em um velho cego que cantava na porta de um mercado da cidade, Don Lázaro Cárdenas, um poeta popular muito talentoso. A idéia acabou ficando bem formatada e, no dia seguinte, expus o argumento. Balmaceda aprovou o projeto e decidiu dirigir o filme, que foi o primeiro da série de curtas encomendada pelo Ministério. Além de roteirista, assumi a assistência de direção, participando diretamente de todo o processo criativo do projeto. Intitulado Un Crimen Tan Comentado, o curta foi bastante impregnado pelas idéias da época. A primeira parte foi rodada em preto-e-branco; e a segunda, que já descortinava uma perspectiva mais otimista e era mais alegre, rodamos em cores. O filme terminava com uma imagem que, de certo modo, era muito ligada à minha infância: uma pipa subindo com as cores da UP (Unidade Popular), a frente política de Salvador Allende. Assim, embora fosse pesado (chegamos a recriar os assassinatos das duas mulheres), ele terminava com um sentimento positivo, inspirador. Un Crimen Tan Comentado tornou-se extremamente popular, porque, naquele período, havia a obrigatoriedade de se exibir curtas-metragens chilenos antes dos longas estrangeiros, algo semelhante ao que tivemos no Brasil na década de 80. Jamais voltei a ver este filme, que quase foi destruído pelos militares depois do golpe (eles queimaram dezenas de títulos), sendo salvo pelo próprio Fernando Balmaceda, que o tem em sua posse até hoje. Depois desse projeto, trabalhei em outros. Fiz produção, escrevi roteiros e atuei praticamente em todas as áreas. Foi uma verdadeira escola de cinema, principalmente porque o Chile vivia um momento muito rico – a conjuntura política do país atraía vários profissionais que, curiosos com aquela experiência, resolviam filmar ali: Costa-Gavras, Leon Hirszman, Bruno Barreto e muitos outros. Silvio Tendler, em particular, chegou a ser meu colega na Chile Films. Infelizmente, não cheguei a dirigir, pois, não sendo chileno, enfrentava barreiras para assumir o cargo em uma produção nacional. O Chile do início da década de 70 também oferecia muitos atrativos para os cinéfilos. Como a economia norte-americana rompeu com o governo marxista de Allende, as distribuidoras ianques pararam de enviar seus filmes para o país e, para preencher o vácuo, os cinemas chilenos começaram a exibir longas antigos e toda a produção do Leste Europeu, além da cubana. Isso permitiu que eu assistisse a maior parte da filmografia cubana até aquele momento, incluindo os trabalhos de Santiago Álvarez e Tomás Gutiérrez Alea. Além disso, o Cinema do Leste Europeu era muito interessante, especialmente suas animações, que me fascinavam. Tudo estava à nossa disposição: a obra do húngaro Miklós Jancsó (que jamais passou comercialmente no Brasil), os primeiros filmes de Milos Forman e Roman Polanski (ainda na Checoslováquia e na Polônia, respectivamente), e de outros cineastas. Passei a respirar cinema. Capítulo VI De um Golpe para Outro A partir de 72, a situação política no Chile se complicou enormemente. A sensação era a de que estávamos sempre andando em terreno movediço e a Chile Films, em particular, era um local de muita atividade, de inúmeros encontros importantes. Tínhamos informações sobre o que estava acontecendo e sentíamos, por isso, que vivíamos um momento transitório, que algo logo iria acontecer para alterar radicalmente a realidade com a qual estávamos habituados. A maioria de nós tinha plena consciência de que a repressão viria em breve, mas não podíamos imaginar com qual intensidade. E muitos se preparavam para o enfrentamento inevitável. Aliás, a própria direção da Chile Films promovia reuniões para que discutíssemos exatamente o que poderíamos e deveríamos fazer caso (ou quando) ocorresse o golpe militar: estudávamos estratégias para defender o prédio, rechaçar o exército e por aí afora. Estas eram nossas sombrias expectativas. Enquanto isso, a vida continuava. Já me sentindo praticamente em casa naquele país, eu procurava estabelecer amizades com os companheiros chilenos, pois não queria ficar apenas entre os brasileiros. Eu fazia, inclusive, questão de falar e escrever bem o espanhol – ao contrário de muitos outros exilados, que, por viverem isolados entre seus compatriotas, permaneciam eternamente falando um portunhol horroroso. A essa altura, minha situação no Chile já estava legalizada. Como o consulado do Brasil se negava a me fornecer um passaporte, o próprio governo chileno me deu um documento de viagem, o que foi um procedimento comum durante algum tempo. Porém, na medida em que mais exilados começaram a chegar, a situação começou a ficar difícil em Santiago e várias restrições à imigração foram adotadas. Para complicar, vários brasileiros, num terrível desajuste de visão estratégica, se envolveram com grupos de ultra-esquerda do país e participaram de atentados, além de buscarem uma ação muito aberta contra os militares do Brasil – o que causava certo constrangimento diplomático a Allende. (Isso não quer dizer que não combatêssemos a ditadura; apenas o fazíamos com mais discrição para não inviabilizarmos nossa estada em Santiago.) Em julho de 1973, um incidente espantoso abalou todos que trabalhavam na Chile Films. Certa manhã, descobrimos uma câmera 16 mm no saguão do prédio, com um bilhete anônimo solicitando que o material fosse revelado. Quando o filme voltou do laboratório, ficamos chocados. Ninguém esperava ver algo tão explosivo como o que estava naquele filme. Alguns dias antes, em 29 de junho, acontecera uma tentativa de golpe que se tornou conhecida como Tanquetaço. Liderados pelo tenente-coronel Roberto Souper, 80 soldados de um regimento de Santiago, amparados por 16 tanques, atacaram o Palácio Presidencial de La Moneda. Na realidade, hoje sabemos que aquilo foi um mero ensaio para o golpe que se seguiria, e que o propósito dos militares era testar a capacidade de reação de Allende. Assim, o incidente durou pouco tempo e a rebelião foi logo debelada pelas forças fiéis ao presidente. O material que agora tínhamos em mãos fora produzido durante o Tanquetaço e mostrava nada menos do que a morte do próprio cinegrafista, o argentino Leonardo Henrichsen, que trabalhava sob a orientação do jornalista sueco Jan Sandquist. Com pouco mais de 3 minutos de duração, o filme começava com um plano aberto, mostrando a movimentação dos tanques e dos caminhões que traziam os soldados rebelados para o La Moneda. Momentos depois, vemos um capitão apontando para a câmera, que fecha um zoom no sujeito, mostrando seu rosto. Visivelmente irritado, o militar ordena que os soldados apontem as armas para o cinegrafista, que continua filmando tudo. Eles atiram e a imagem treme, levando o espectador a perceber que Henrichsen foi atingido. Ainda assim, ele volta a enquadrar seus assassinos, que disparam mais uma vez. Finalmente, o argentino cai, vemos o céu momentaneamente e, em seguida, o asfalto. O filme termina aí. Aquelas imagens provavelmente jamais seriam descobertas, caso um dos soldados não tivesse cometido a burrice de atirar a câmera no esgoto, julgando que ela seria destruída. Em vez disso, alguém (jamais descobrimos quem) resgatou o equipamento e, dias depois, depositou-o no saguão da Chile Films, onde o encontramos. Todas as semanas produzíamos um cinejornal que era enviado aos cinemas do país e, assim que vimos aquelas imagens, decidimos realizar uma edição extra. Aquele crime era um indício alarmante de que os militares estavam tão confiantes no sucesso de seus planos que já não se importavam sequer com a opinião pública ou com os protestos internacionais. Matar um correspondente estrangeiro era algo impensável, mas eles não hesitaram um segundo sequer antes de fuzilarem Henrichsen. O cinejornal ficou ótimo – fazíamos uma longa pausa no instante em que o rosto do capitão aparecia em quadro, a fim de identificá-lo. No entanto, o filme não chegou a durar um dia nas salas de exibição – o exército simplesmente invadia os cinemas e recolhia as cópias. Porém, como já havíamos enviado o material para fora do país, as imagens percorreram todo o mundo, tornando-se célebres. Em 1989, a Argentina transformou o 29 de junho no Dia Nacional do Cinegrafista Argentino, em homenagem a Leonardo Henrichsen, que morreu com apenas 33 anos de idade. Inexplicavelmente, a identidade do capitão que deu a ordem para que ele fosse assassinado jamais foi revelada. Conheci Márcia em 1973, numa festa na casa de amigos. Formada em medicina, ela era obstetra em um hospital de Santiago e morava com a irmã em um apartamento no centro da cidade. Logo estávamos namorando e não levou muito tempo para que decidíssemos nos casar – o que aconteceu em 20 de agosto daquele ano. Depois de passar tanto tempo na solidão, eu estava começando a recriar uma estrutura familiar, já que, além de estar casado, recebi uma visita de mamãe neste período, o que me trouxe enorme felicidade. Teria sido terrível ficar sem vê-la por tanto tempo. Em setembro, começamos a nos preparar para as filmagens de Cuento de Medo, longa-metragem que seria dirigido por José “Pepe” Caviedes, um bom cineasta chileno que tinha realizado vários trabalhos para a televisão. Eu faria a assistência de direção. Não deu tempo. Em 11 de setembro de 1973, os militares deram o temido golpe de Estado – e, pela segunda vez em pouco mais de três anos (e com apenas 20 dias de casado), eu voltava à clandestinidade. Em termos de violência inicial, o golpe no Brasil foi bem mais brando do que aquele que ocorreu no Chile. Além de não termos, em 64, uma esquerda tão organizada quanto a chilena, os militares pegaram o governo brasileiro completamente despreparado. Além disso, a repressão no Brasil era feita de forma pontual. Os agentes do DOI-CODI invadiam um aparelho aqui; prendiam alguns militantes ali; e poucas vezes atacavam a população “civil”. Já em Santiago, os militares estavam nas ruas, atirando nas pessoas. Felizmente, o acaso me salvaria mais uma vez, como explicarei mais adiante. Eu e Márcia vivíamos em um bairro de classe média, dividindo o apartamento com um casal de brasileiros que viera do Paraná, Marcos e Marieta, ambos exilados políticos. Na véspera do golpe, às 11 horas da noite, escutamos um forte barulho vindo da sala: alguém havia disparado um tiro que atravessara a janela e se alojara na parede do aposento. – Porra, isso é coisa da direita, que sabe que aqui moram brasileiros! – concluímos. Em 73, “brasileiro” e “militante comunista” eram sinônimos. Já éramos cerca de 10 mil exilados. Decidi que, no dia seguinte, iria conversar com o presidente da Chile Films, o Eduardo “Coco” Paredes, que tinha sido um cara muito importante do Ministério do Interior e Chefe do Departamento de Investigações. No passado, Paredes tornara-se notório por perseguir com violência a direita golpista que, em função disso, jamais deixara de odiá-lo. Minha idéia era pedir que ele mandasse alguns homens ao nosso apartamento, a fim de assustar quem quer que houvesse disparado aquele tiro (eu julgava que era alguém que morava ali perto e que certamente veria os temidos subordinados de Coco Paredes). O que eu não sabia era que, neste momento, ele já havia sido preso pelos golpistas e estava sendo terrivelmente torturado. Agindo de forma estratégica, os militares prenderam e assassinaram, durante a madrugada, a maior parte das pessoas mais importantes ligadas a Salvador Allende e que poderiam oferecer qualquer tipo de resistência. Porém, como inimigo particularmente odiado pela direita, Paredes enfrentaria um destino infinitamente pior que uma morte rápida: depois de ter vários ossos quebrados, ele foi encharcado com gasolina e queimado vivo – e ainda respirava quando foi fuzilado com 17 tiros. Seus restos só seriam descobertos 22 anos depois, enterrados clandestinamente no Cemitério Geral. Às 5 da madrugada, fomos despertados por dois amigos que foram nos avisar que o golpe havia começado em Valparaíso. Duas horas depois, Allende fez o primeiro de uma série de pronunciamentos através do rádio: “Aqui fala o presidente da República, direto do Palácio de La Moneda. Informantes assinalam que um setor da marinha ocupou Valparaíso, o que significa um levante contra o Governo legitimamente constituído e que está amparado pela Lei e pela vontade do povo. Nestas circunstâncias, conclamo todos os trabalhadores a ocuparem seus postos de trabalho, que se dirijam às suas fábricas e que mantenham a calma e a serenidade. Até este momento, em Santiago não ocorreu nenhum movimento inesperado de tropas. (...) Em todo caso, estou aqui, no Palácio do Governo, e aqui ficarei, defendendo o Governo que represento pela vontade do povo. Peço que os trabalhadores fiquem atentos, vigilantes, e que evitem provocações. Num primeiro momento, temos que esperar a resposta, que espero ser positiva, dos soldados da Pátria, que juraram defender o regime estabelecido. (...) O povo e os trabalhadores devem estar atentos, em seus locais de trabalho, para o chamado que poderá fazer e as instruções que lhes dará seu companheiro presidente da República.” Era um chamado para a defesa. Eu ainda tinha meu revólver .38 e o coloquei na cintura antes de sair de casa. Minha esposa foi para a maternidade na qual trabalhava, enquanto o outro casal foi para a universidade em que estudavam. Quando botei os pés fora do prédio, a situação era assustadora – aviões e helicópteros sobrevoavam a cidade, enquanto caminhões carregando dezenas de soldados cruzavam as ruas. Os militares usavam lenços vermelhos no pescoço, um sinal de identificação que adotaram com ironia, já que aquela era conhecida como a cor da esquerda. O transporte público fora interrompido, e as pessoas voltavam a pé do centro da cidade. A Chile Films ficava num dos bairros mais altos (e ricos) de Santiago, ao pé da Cordilheira dos Andes, bem longe de onde eu estava. No entanto, não havia alternativa; eu tinha que ir até lá, já que este tinha sido o plano exaustivamente ensaiado. Comecei a caminhar por uma grande avenida, a arma pesando na cintura, e fiquei assustado ao passar em frente à embaixada de Cuba e perceber que ela já estava cercada por um número enorme de soldados, que apontavam suas metralhadoras para o prédio. A coisa estava bem pior do que eu imaginara, e sons de tiros podiam ser ouvidos por todos os lados. Consegui pegar uma carona e mantive a boca fechada durante todo o trajeto, para não revelar minha nacionalidade – algo que poderia ser fatal naquele momento. Através do rádio do carro, ouvi mais um discurso de Allende, desta vez bem mais sombrio: “A situação é crítica, estamos fazendo frente a um golpe de Estado do qual participou a maior parte das Forças Armadas. Nesta hora, quero recordar algumas das palavras que disse em 1971, e as repito com calma, com absoluta tranqüilidade. Não tenho talento para apóstolo ou messias. Não levo jeito para mártir, sou um lutador social que cumpre uma tarefa recebida do povo. Mas que aqueles que (...) desconhecem a vontade majoritária do Chile entendam uma coisa: sem ter carne de mártir, não darei um passo atrás. (...) Só deixarei o La Moneda quando o mandato que o povo me deu se encerrar. (...) Não tenho outra alternativa. Somente à bala é que poderão me impedir de cumprir o programa do povo. Se me matarem, o povo seguirá seu caminho, mas com a diferença de que as coisas serão muito mais duras, mais violentas, porque esta será uma lição para as massas de que esta gente não se detém por nada. (...) O progresso social não vai desaparecer porque um dirigente desapareceu. Poderá demorar, mas não será detido. (...) O companheiro presidente não abandonará seu povo nem seu local de trabalho. Permanecerei no La Moneda, inclusive à custa de minha própria vida.” Finalmente me aproximei da Chile Films, que ficava no fim de uma ruazinha. Quando virei a esquina que levava ao prédio da estatal, ouvi alguém me chamando baixinho. Olhei para trás e vi um companheiro de trabalho, que disse simplesmente: – Eles já estão lá. Fiquei gelado. Os militares já haviam fuzilado centenas de pessoas naquele dia. Caso eu tivesse entrado no prédio carregando uma arma, teria sido morto antes de poder perceber o que havia acontecido. Meu anjo-da-guarda me salvara mais uma vez. Conversando rapidamente com este amigo (a quem devo a vida), fui informado de que um diretor de fotografia com quem eu costumava trabalhar fora assassinado enquanto filmava o golpe – ele estava em cima de uma árvore, com uma pequena câmera 16 mm, quando foi atingido por uma saraivada de balas. Depois de ouvir este triste relato, nos despedimos com desejos de Boa sorte! e ele se afastou com passos rápidos. Fiquei sozinho, sem saber exatamente o que fazer. Voltar para casa seria estupidez, pois, como o tiro disparado na noite anterior comprovava, o apartamento era um lugar perigoso. Para onde eu poderia ir? Capítulo VII A Queda de Allende Mario Fiorani! Esta era a solução. Lembrei-me de que o cineasta austro-ítalo-brasileiro, que realizara diversos filmes no Rio de Janeiro, agora morava em Santiago com sua esposa e que – o mais importante – sua casa ficava a poucos quarteirões dali. Procurando controlar meus passos, já que meu impulso era correr e sair da rua o mais rápido possível, caminhei até lá e toquei a campainha. Assim que me viu, Fiorani compreendeu a situação e abriu o portão em questão de segundos. Além do cineasta e sua esposa Beatriz, lá também estava Luís Carlos Pires, um produtor de cinema que também era de Belo Horizonte, apesar de morar no Rio. – Estamos aqui buscando asilo – brincou, com um sorriso triste. Neste momento, fortes explosões nos fizeram estremecer. Corremos para a varanda no andar superior da casa e assistimos, como de camarote, à destruição da residência de Salvador Allende, que ficava a apenas algumas centenas de metros. O presidente estava, é claro, no La Moneda (que logo também seria bombardeado), mas o propósito dos golpistas naquele ataque era óbvio: eliminar a maior parte do GAP (Grupo de Amigos do Presidente), escolta pessoal de Allende que tinha preparação militar e estava concentrada em sua residência. Os bombardeios, feitos por aviões ingleses, tinham uma precisão cirúrgica absurda, o que era mais uma evidência de como os militares se prepararam cuidadosamente para aquele momento. Indicava, também, que eles não se importavam em arriscar a vida dos civis – a mansão de Allende ficava no meio de um bairro residencial. Permanecíamos com os ouvidos colados no rádio, à cata de quaisquer informações. Descobrimos que a emissora que havia transmitido os pronunciamentos anteriores do presidente fora destruída pelos aviões e, por alguns instantes, acreditamos que não voltaríamos a ouvir a voz de Allende. Nós o subestimamos. Às 9h03 da manhã, ele fez um novo discurso por telefone através da Rádio Magallanes. Sua voz era nervosa e, apesar do autocontrole que exibia, podíamos perceber que estava sob imensa tensão: “Neste momento, passam os aviões. É possível que nos atinjam. Mas que saibam que aqui estamos, com nosso exemplo, demonstrando que este país tem homens que sabem cumprir suas obrigações. (...) Em nome dos mais sagrados interesses do povo, em nome da Pátria, digo que tenham fé. A História não pode ser detida nem pela repressão nem pelo crime. Esta é uma etapa que será superada. (...) Pagarei com minha vida a defesa dos princípios que são caros a esta Pátria. O povo deverá estar alerta e vigilante. Não deve deixar-se provocar nem se deixar massacrar, mas também deve defender suas conquistas.” A mensagem era clara. Ao mesmo tempo em que manifestava sua intenção de resistir, Allende pedia que as pessoas não enfrentassem os militares. Foi uma atitude sensata, que impediu um banho de sangue muito maior do que aquele que acabou ocorrendo. Ainda assim, vários franco-atiradores, fiéis ao governo, permaneceram nos telhados das casas e dos prédios, atirando no exército durante os dias seguintes e sendo mortos um a um. Lá fora, barulho de tiros de metralhadora, bombardeios e muita fumaça para todos lados. Dentro da casa de Fiorani, um reflexo deste caos: Mario e a esposa atiravam na lareira todos os documentos e textos relacionados ao PCB. Só então me lembrei que eu estava armado, algo que, numa situação daquelas, só poderia piorar as coisas. Tirei o revólver da cintura e o mostrei aos meus companheiros, que reagiram exatamente como eu esperava – ficaram apavorados. Decidimos esconder o .38 em um vão do pequeno depósito usado para guardar a lenha pra lareira. Às 9h10 da manhã, apenas 7 minutos depois de seu pronunciamento anterior, o presidente voltou a falar na Rádio Magallanes. Seu discurso evidenciava o óbvio: estava tudo perdido. “Esta será certamente a última oportunidade em que poderei me dirigir a vocês. A Força Aérea está bombardeando as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, apenas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. (...) Só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! Pagarei com minha vida a lealdade ao povo. (...) Trabalhadores de minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que foi apenas um intérprete de grandes anseios de justiça, que prometeu respeitar a Constituição e a Lei, e assim o fez. (...) Certamente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranqüilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Vocês continuarão a ouvi-la, pois sempre estarei junto de vocês. Pelo menos serei lembrado como um homem digno que foi leal à Pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar. (...) Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. (...) Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, no mínimo, será uma lição moral que castigará a vilania, a covardia e a traição.” Poucas horas depois, Salvador Allende estaria morto. O que realmente aconteceu no interior do La Moneda permanece um mistério até hoje. Algumas testemunhas garantem que o presidente, ainda carregando o fuzil que Fidel Castro lhe dera de presente em 71, foi para outra sala e, depois de gritar Allende não se rende!, tirou a própria vida com um tiro na cabeça. Já outras pessoas afirmam que ele foi morto pelos militares (versão defendida inclusive pelo escritor Gabriel Garcia Marquez). O que quer que tenha ocorrido, o fato é que foi um espetáculo sangrento que impediu, inclusive, que o rosto desfigurado de Allende pudesse ser visto durante o velório. A bela experiência democrática do Chile chegava ao fim, sendo substituída por 17 anos de terror patrocinado pelo sadismo do general Augusto Pinochet. Por volta das 11 horas da manhã, os militares ordenaram que os chilenos exibissem bandeiras do país nas fachadas e janelas de suas casas. Como o Chile é historicamente muito nacionalista, quando fomos para a varanda, a rua inteira estava embandeirada. Menos, é claro, nossa casa. Foi um sentimento de profunda solidão. Os três dias seguintes ao golpe foram marcados pelo toque de recolher; ninguém podia sair nas ruas. Foi somente depois deste período que consegui ter notícias de Márcia e saber onde ela estava. Quando o toque de recolher chegou ao fim, nos falamos e marcamos um encontro. Era uma oportunidade, além de tudo, para me livrar do objeto mais comprometedor que eu possuía, o revólver. Caminhamos calmamente, como se namorássemos, à beira de um canal no qual corria um rio que emergia da Cordilheira dos Andes. Quando tive certeza de que ninguém nos observava, tirei o .38 da cintura e o atirei rapidamente na água. Posteriormente, centenas de armas foram encontradas neste rio. O toque ia até as 6 horas da tarde, e eu precisava pegar algumas roupas e objetos de uso pessoal que deixara em casa. Quando passamos de ônibus em frente ao prédio, vimos que ele havia sido ocupado pelo exército, e que vários vizinhos e transeuntes apontavam, curiosos, para a janela do nosso apartamento. Marcos e Marieta tinham sido presos. (Tempos depois foram soltos e retornaram ao Brasil.) Só pudemos voltar ao apartamento um mês depois. Como não podíamos correr o risco de que algum vizinho denunciasse minha presença, Márcia entrou no prédio e, mais tarde, descreveu como os militares haviam deixado o lugar: móveis e louças foram destruídos; os livros estavam atirados no chão; o sofá, as poltronas e o colchão tinham sido rasgados; e as roupas se encontravam espalhadas por todos os lados. Meu impulso inicial fora o de sair do Chile rapidamente. A maior parte de meus amigos estava pulando os muros das embaixadas, à procura de asilo. Certo dia, encontrei um amigo, o médico Apolo Lisboa, que me disse: – Você ainda está aqui, Helvécio?! Nós vamos pular para a embaixada da Argélia e você deveria ficar conosco! Várias embaixadas estavam recebendo os fugitivos. Porém, em conversas por telefone, meu pai insistia para que eu esperasse um pouco mais, pois estava viabilizando meu retorno legal ao Brasil. Enquanto durava esta indefinição, concluí que o melhor a fazer seria, no mínimo, sair de Santiago. Os pais de Márcia moravam no interior do país, em uma cidade chamada San Felipe, e se ofereceram para nos hospedar até que as coisas se acalmassem. Foram eles, também, que encontraram uma maneira de me transportar pelas estradas repletas de barreiras policiais: decidiram me buscar. Assim, fizemos os quatro a viagem de carro – e a presença de um casal já mais velho e sem quaisquer ligações passadas com a política foi o bastante para conferir uma aura de inocência aos jovens com quem viajavam. Fiquei na casa de meus sogros por quase dois meses. Em dezembro, meu pai finalmente me avisou que havia conseguido um documento que regularizava minha situação no Brasil, e que, portanto, eu já podia voltar para casa. Ele me explicou que, como eu fora condenado antes dos 21 anos de idade, em 1969, a lei determinava que minha pena prescreveria depois de um período equivalente ao dobro da sentença. Ou seja, como eu fora condenado a um ano e meio de prisão (da qual talvez nem saísse vivo, diga-se de passagem), a condenação perderia o efeito depois de três anos, o que ocorrera em 1972. Desde então, papai vinha batalhando junto à Justiça Militar para obter um documento oficial que comprovasse isso e, conseqüentemente, me libertasse dos problemas com a polícia brasileira. Quando recebi uma cópia do documento, desisti da idéia de procurar asilo em outro país. No entanto, havia mais um problema a ser resolvido. Ao embarcar para o Brasil, eu seria obrigado a me apresentar às autoridades chilenas – e certamente seria preso e levado para o Estádio Nacional, onde os militares estavam concentrando (ou melhor, depositando) seus prisioneiros políticos. Isso já havia acontecido com alguns de meus amigos e não seria diferente comigo. Para piorar, o Exército do Chile estava em contato direto com seus colegas de farda do Brasil, e já se dizia, por exemplo, que o temido delegado Sérgio Paranhos Fleury tinha comandado interrogatórios e até mesmo torturas de exilados brasileiros no próprio Estádio. Eu precisava de um salvo-conduto. Mais uma vez, foi um amigo quem veio em meu auxílio. Juan Forch era fotógrafo de cinema e filho de um general que fora chefe de Estado Maior durante o governo Eduardo Frei. Durante os anos que permaneci no Chile, almocei diversas vezes em sua casa e me dava muito bem tanto com a mãe de Juan quanto com o próprio general, que era uma ótima pessoa e um democrata declarado. Com o golpe, o pai de meu amigo se tornara um dos prefeitos de Santiago, sendo responsável por um dos bairros mais elegantes e abastados da capital. A essa altura, ele já havia ajudado o próprio filho a sair do país em direção ao México e, assim, fui procurá-lo diretamente na municipalidade. Identifiquei-me para sua secretária e fui recebido imediatamente. O general, que também se chamava Juan Forch, fora adido militar do Chile em Washington no mesmo período em que Garrastazu Médici exercera função similar e as duas famílias se tornaram próximas (na sala da casa do meu amigo havia uma foto dos Médici e dos Forch). Expliquei minha situação para o general, que me alertou: – Você vai voltar para o Brasil num contexto muito complicado. Eu sabia disso, é claro, mas contei que meu pai conseguira um documento que provavelmente me livraria da cadeia. E foi então que ele me ofereceu algo bem mais poderoso do que um simples salvo-conduto: – Eu vou escrever uma carta ao presidente do Brasil, recomendando você. O presidente em exercício naquele momento era Médici. Ele escreveu uma carta autenticada com selos oficiais do governo chileno e a colocou em minhas mãos, desejando-me sorte. Além disso, providenciou o salvo-conduto que eu precisaria para embarcar rumo ao Brasil. Infelizmente, este procedimento representava uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo em que era imprescindível possuir o salvo-conduto para sair do país, os militares chilenos se encarregavam de avisar os colegas brasileiros sobre a iminente chegada de mais um antigo exilado. Mas não havia saída; eu tinha que torcer para que meu nome passasse em branco. Descobri isso da pior maneira possível: sendo recebido por dois agentes do DOI-CODI ao desembarcar no aeroporto do Rio de Janeiro. Capítulo VIII A Geladeira Na época de minha condenação (quando obviamente fui julgado à revelia), a repressão me procurara exaustivamente, já que eu era constantemente citado em interrogatórios. Em algumas ocasiões, estive bastante perto de ser preso, mas a sorte parecia estar sempre ao meu lado e eles falharam todas as vezes. Seria de se imaginar que, depois de quatro anos, minha captura não fizesse mais sentido, já que eu estava afastado da luta por tempo suficiente para não poder mais fornecer qualquer informação relevante. No entanto, além de uma questão de orgulho (eles odiavam fracassar, independentemente da importância do alvo), os militares acreditavam que eu poderia dizer coisas importantes sobre a colônia de exilados no Chile. Quando fui preso, meu pai estava no saguão do aeroporto com o documento original que comprovava a prescrição da minha pena. Como homem da Justiça portando um instrumento jurídico que permitia minha volta ao Brasil, ele ficou naturalmente abalado ao perceber que sua fé no “sistema” era pura ilusão. Naquela noite, ele parecia estar à beira de um colapso nervoso, passando toda a madrugada indo de quartel em quartel, procurando o filho. Como era de praxe, os militares não davam informação alguma sobre meu paradeiro, e papai foi desmontando. Ele simplesmente não podia acreditar que a Ordem havia sido desrespeitada daquela maneira. A presença inesperada de minha esposa causara certa confusão entre os agentes do DOI-CODI. Ainda na pista do aeroporto, eles entraram em contato com a base, através de radiocomunicador, e informaram que eu estava acompanhado por uma “gringa”. A voz do outro lado ordenou que eles a deixassem para trás, mas os dois agentes se recusaram a fazer isso e cobriram a cabeça de Márcia com minha jaqueta, já que só haviam levado um capuz. Durante o trajeto, permaneci deitado no chão do Opala. Depois do que me pareceu uma eternidade, senti que o carro descia uma rampa e confirmei meus temores: eu sabia que a entrada do DOI-CODI era subterrânea. Quando saímos do carro, alguém (eu ainda estava encapuzado) me perguntou aos gritos onde deveriam deixar minha esposa. Respondi com o único endereço no Brasil que ainda sabia de cor: Jardim Botânico, 625, a casa de meu tio. Ainda assim, fiquei inseguro: será que iam mesmo deixá-la partir? Eu não tinha outra opção a não ser esperar que sim. Fui levado para uma sala de interrogatório, onde fui deixado sozinho por alguns minutos. De repente, percebi, pelos sons, que duas pessoas haviam entrado no aposento. Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, joguei minha última carta (num sentido quase literal): – Na minha mala tem uma carta ao presidente da República. Há duas outras cópias desta carta: uma nas mãos de meu pai e outra que já foi encaminhada ao próprio Médici. Era mentira, claro. Não havia cópia alguma. Os dois sujeitos saíram da sala, batendo a porta. Através de um sistema de som, recebi autorização para tirar o capuz e pude ver, pela primeira vez, o ambiente no qual me encontrava. A sala era completamente revestida por placas de Eucatex, que a deixavam à prova de som. Em uma das paredes havia um imenso espelho, que, deduzi, permitia que as pessoas do outro lado vissem o que se passava no interior do cômodo. Não havia móveis; apenas a cadeira na qual eu me encontrava. Mais algum tempo se passou até que, por fim, recebi ordens de recolocar o capuz. (Este procedimento seria utilizado durante todo o tempo em que permaneci preso, o que me impedia de ver o rosto de meus interrogadores.) Assim que entraram, perguntaram quem era o tal general chileno. – Um amigo pessoal do presidente e ex-chefe de Estado Maior do Chile – respondi. Não voltaram a mencionar a carta. A essa altura, final de 73, início de 74, a repressão já havia acrescentado novos métodos ao seu cotidiano nas prisões. Como ocorriam muitas denúncias de tortura, os militares decidiram importar procedimentos utilizados na Inglaterra pelas autoridades britânicas contra os militantes do IRA (Exército Republicano Irlandês), e que não deixavam vestígios. Criaram uma série de celas, chamadas de “geladeiras”, que podiam ser completamente brancas ou negras, e nas quais os prisioneiros podiam ficar sempre sob luz fortíssima ou totalmente na escuridão. Peguei este sistema anti-IRA e, em poucos dias, já perdera a noção do tempo. Além disso, jamais conseguia mergulhar no sono, permanecendo sempre num estado de semitorpor, meio alerta, meio dormindo. Certa noite, comecei a escutar um som distante de foguetes. Aquela imensa quantidade de fogos só podia significar uma coisa: era réveillon. Eu estava preso há quatro dias. Permaneci nu durante todo o período de cativeiro e, muitas vezes, era obrigado a urinar na própria cela, já que os carcereiros não se preocupavam particularmente com higiene e só concordavam em me levar ao banheiro quando estavam de bom humor. Além disso, como também era levado para os interrogatórios sem roupa, apenas de capuz, sentia-me ainda mais vulnerável, sem saber por onde estávamos passando. E eles sabiam como nos sentíamos, pois faziam questão de aumentar nossa insegurança. Certo dia, por exemplo, enquanto era guiado para um interrogatório, ouvi alguém perguntar algo como “Quem é esse Zé Piroca?”, e se aproximar com violência ao mesmo tempo em que simulava um golpe em meu estômago. Pude sentir o deslocamento de ar e a proximidade de seu punho, enquanto seus companheiros gargalhavam com vontade. Eles me ameaçavam o tempo inteiro, dizendo que eu tinha que entregar o que sabia. Meu grande trunfo era que eu não tinha o que entregar, já que fora preso quatro anos depois de ter sido identificado por eles e, assim, qualquer coisa que eu soubesse já teria caído, acabado. Mas eles não desistiam. Primeiro, insistiram em perguntas sobre o Chile e, mais tarde, sobre o período em que atuei na VAR-Palmares, 1968 e 69. Esse tipo de pressão psicológica representa um tipo de negociação permanente entre você e o interrogador. Decidi que deveria tentar descobrir o que eles já sabiam, para só então “revelar” algumas coisas que não seriam novidade para a repressão. Ainda que dificilmente pudesse entregar algo importante, eu não queria correr o risco de fazê-lo. Na época, o uso do computador era muito limitado e, apesar de o DOI-CODI ter a função de centralizar as informações, na prática a coisa não funcionava muito bem, principalmente porque os militares contavam com centros de repressão funcionando separadamente. Além do DOPS e da Operação Bandeirantes (um centro de tortura que o exército mantinha em São Paulo), havia diversos outros locais, muitos secretos, nos quais os presos eram torturados e, em diversos casos, mortos: a Casa da Morte, em Petrópolis; o Cisa (Centro de Informação da Aeronáutica), que ficava na Base Aérea do Galeão; e o Cenimar (Centro de Informações da Marinha), situado na Ilha das Cobras, entre outros. Certo dia (ou noite, não sei), a oportunidade que eu esperava surgiu. Os interrogadores começaram a fazer uma série de perguntas sobre Goiânia e Brasília, e respondi que nunca tinha estado nessas cidades. Como forma de me pressionar, trouxeram vários álbuns que continham fotografias e fichas de militantes políticos para que identificasse as pessoas, alegando que várias delas haviam confirmado minha passagem por aqueles lugares. Fiquei sozinho na sala, com os álbuns, e comecei a estudar as fichas. E percebi que, para minha sorte, eles haviam cometido um erro estratégico grave: esqueceram de tirar as minhas fichas da pasta. Dessa maneira, pude descobrir tudo o que a repressão já sabia sobre mim – e sabiam muita coisa: minhas atividades em Brasília e em Goiás; os transportes de dinheiro; meu envolvimento com a militante de Brasília; e assim por diante. A partir daí, desenvolvi minha estratégia. Deixava que me fizessem quantas perguntas quisessem, enquanto ia negando tudo. Finalmente, quando percebia que eles estavam começando a ficar impacientes e violentos, “revelava” algo que já estava em minha ficha. Este jogo psicológico de gato-e-rato durou um bom tempo, até que eles pareceram se cansar de mim. Talvez como punição, me deixaram uns 20 dias na geladeira escura, sem sair. Permanecer um período tão longo na escuridão total é algo terrível, desorientador. Perde-se não apenas a noção de tempo, mas de espaço. E o cheiro, nem preciso dizer, ficou insuportável na medida em que o tempo passava. Como eu permanecera muito tempo no Chile, nesta época eu costumava até mesmo sonhar em espanhol. Certa manhã, quando o carcereiro me acordou para me entregar um café nojento, comecei a conversar naquela língua, ainda meio grogue pela falta de sono. Ele me olhou surpreso, bateu a porta e saiu pelo corredor, rindo e dizendo em voz alta: – Porra, tem até gringo preso aqui! Despertei com a sensação de cócegas, como se algo estivesse roçando em minha pele levemente. A luz da geladeira estava temporariamente acesa e movi o corpo, tentando afastar aquilo que estava me incomodando. Poucos segundos depois, voltei a sentir que algo me fazia cócegas, desta vez na coxa. Era como se... um inseto estivesse caminhando sobre minha pele! A barata caiu no chão no instante em que virei o corpo, enojado com a constatação, e correu para o canto oposto da cela. Sua presença não era de se estranhar, considerando-se o estado lastimável em que eu e a geladeira nos encontrávamos. Porém, ela representava um problema: eu não podia dormir (ou “semidormir”, que era o que eu fazia na maior parte do tempo) e correr o risco de ela voltar a passear sobre mim, passar na minha boca. No entanto, eu estava nu e a cela se resumia a uma grande caixa vazia. Era uma situação bizarra. Eu, sentado nu em um canto do aposento, olhando fixamente para a barata enquanto tentava decidir qual parte do corpo usar para esmagá-la. Será que eu deveria rolar sobre ela? Ou, quem sabe, tentar matá-la com o joelho? Eu não queria usar as mãos, obviamente, e torcia desesperadamente para que, enquanto eu pensava, ela saísse por onde quer que tivesse entrado. Quando concluí que isto não iria acontecer, levantei-me, decidido, e parti atrás do inseto. Lembro-me até hoje da sensação pegajosa da barata estourando sob o meu calcanhar. Depois de algum tempo, fui transferido para uma cela que ficava em outro setor do prédio, e só então descobri que estava em um quartel do exército. Agora as condições eram sensivelmente melhores, já que ali havia um catre, um vaso sanitário e até mesmo uma janela no alto, perto do teto, por onde a luz exterior podia entrar e através da qual eu conseguia ouvir os sons de marcha e exercícios que vinham do pátio. E o mais importante – agora eu podia usar roupas. Além disso, o movimento no corredor em que as celas ficavam era grande, e logo me acostumei a ver muitos integrantes da PE (Polícia do Exército), que eram altos e loiros em sua maioria. Não pude deixar de pensar na palavra “arianos”, pois claramente havia uma seleção criteriosa, envolvendo aparência física, naquele destacamento. Os interrogatórios começaram a se tornar mais espaçados. Eu finalmente estava convencendo aquelas pessoas de que não sabia nada que eles já não soubessem. A constatação de que eu realmente não passaria muito tempo mais na prisão veio numa manhã, quando, para minha surpresa, dois homens entraram na sala sem os indefectíveis capuzes. Durante a conversa, muito mais amena do que de costume, percebi que o mais velho dos dois só fazia perguntas corriqueiras, sem a menor importância, e compreendi o que estava acontecendo: ele queria que eu ficasse tranqüilo, que soubesse que tinha um contato lá dentro. Era provavelmente um amigo de meu tio general. – Você estava fazendo cinema no Chile, pelo que fiquei sabendo. O que quer fazer aqui no Brasil? Respondi que pretendia continuar fazendo cinema e televisão. Então, ele se virou para o companheiro e disse: – Ih, daqui a pouco nós vamos estar vendo umas porcarias desse cara na televisão! Eu jamais poderia ficar ofendido com a brincadeira, pois a mensagem que a frase incluía era animadora: em pouco tempo eu seria solto. Capítulo IX Redescobrindo Minas Apenas alguns dias depois daquele encontro, fui informado de que seria libertado. Eu passara 40 dias na prisão. Quando vieram entregar meus pertences, percebi que a carta do general Juan Forch havia desaparecido. Tudo bem. Eu queria apenas rever minha família. Com a cabeça novamente coberta por um capuz, fui colocado em um carro e, então, me perguntaram onde eu queria ser deixado. Dei a resposta padrão: – Jardim Botânico, 625. Meia hora depois, eu tocava a campainha da casa de meu tio. Assim que a porta se abriu, vi o rosto de minha tia, que me devolveu um olhar assustado. Certamente não era esta a recepção que eu esperava. Ela me abraçou com força e, então, me encarou com a expressão séria: – Você deveria estar no Ministério do Exército, para se apresentar para o coronel-alguma-coisa. Se não for, poderá ser preso de novo. Peguei um táxi e corri para o Ministério, que ficava ao lado da Central do Brasil. E foi lá que reencontrei Márcia, que estava acompanhada de meu irmão. Nos abraçamos longamente e, então, fui conversar com o tal militar. Depois de confirmar que eu agora ficaria em liberdade, ele acrescentou: – Mas você deve pensar duas vezes antes de se meter em qualquer coisa que tenha conotação política. Se quiser fazer política, há um partido legal para isso, que é o MDB. Não recomendo que venha parar aqui outra vez. Quer dizer, a não ser para sua apresentação mensal, obrigatória a partir de agora. Meu desejo inicial, quando decidi voltar para o Brasil, era permanecer no Rio de Janeiro, que oferecia maior campo de atuação para quem queria se dedicar ao cinema. Eu já havia estabelecido bons contatos com cineastas como Bruno Barreto e Leon Hirszman, e pretendia procurá-los a fim de conseguir trabalho. Porém, concluí que ficar sozinho no Rio, sem apoio familiar e com os militares sabendo exatamente onde me encontrar, seria arriscado. O porão da ditadura estava fora de controle; enquanto alguns haviam adotado novos métodos, outros permaneciam utilizando extrema violência e matando seus prisioneiros – algo que seria comprovado com as mortes de Wladimir Herzog, de líderes operários e do resto da esquerda armada brutalmente liquidada em Recife. Eu estaria completamente exposto a uma retaliação. Decidi voltar para Belo Horizonte e disse isso para o tal coronel. – Muito bem, então você se apresentará lá mesmo, todos os meses. Depois de uma rápida ligação, me informou que eu deveria me apresentar em um quartel que ficava no bairro de Lourdes. Quando pensei que a conversa estava encerrada, ele abriu uma gaveta e, me entregando o envelope com o selo do governo chileno, concluiu: – Por último, eu queria te entregar esta carta. Como é uma carta pessoal para o presidente da República, entregue-a você a ele. Tenho a carta guardada até hoje. Mudei-me, com Márcia, para a casa de meus pais. Depois de passar tanto tempo longe de todos e de viver momentos terríveis que jamais seria capaz de esquecer, eu buscava a segurança familiar e o convívio com aquelas pessoas tão próximas a mim. Além disso, foi uma decisão importante para minha formação cultural. Quando saí de Belo Horizonte, em 68, eu tinha uma certa ojeriza a Minas Gerais, que considerava um Estado chato. A tal da “mineiridade” me incomodava imensamente; eu a julgava atrasada, pesada e opressiva. Como fiquei muito tempo fora, percorrendo vários lugares, acabei perdendo meu sotaque original e, no Chile, ninguém me identificava como mineiro, tomando-me por paulista ou carioca. Eu achava isso ótimo. Convivendo na colônia brasileira em Santiago, eu sempre observava companheiros que eram muito marcados por suas regiões, como os baianos e gaúchos – e gostava de ter um “quê” de cosmopolita. Isso mudou com o tempo. Aos poucos, comecei a sentir curiosidade sobre minhas raízes culturais e, ainda no Chile, passei a me reaproximar de Minas Gerais. Auxiliado por meu irmão, que me mandava muitos livros, dediquei-me a ler os mineiros – Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Murilo Rubião, entre outros. A partir disso, desenvolvi uma nova visão sobre meu Estado, entendendo um pouco melhor essa “mineiridade” da qual tanto se falava. Eu sempre me perguntava se esta “alma mineira” tinha alguma coisa de particular, alguma consistência. E meu retorno a Belo Horizonte permitiu que eu continuasse a descobrir isso. Comecei a me apresentar mensalmente no quartel do bairro de Lourdes para assinar uma declaração de domicílio. Sempre que queria sair do Estado, eu era obrigado a avisar os militares com antecedência. Cerca de um ano e meio depois de meu retorno ao Brasil, quando liguei para o oficial responsável por minha ficha, ele me informou casualmente que eu não precisava mais prestar contas de meus movimentos, que eu fosse cuidar da vida. Pensei que aquele seria meu último contato com a repressão, mas, infelizmente, estava equivocado. Poucos anos depois, quando Márcia e eu voltávamos de uma breve viagem ao Chile (onde fôramos visitar seus pais), tive uma desagradável surpresa quando o funcionário do aeroporto no Rio de Janeiro digitou meu nome em seu terminal, durante os procedimentos de desembarque, e, assustado, me informou que meu nome estava listado com o aviso de “Procurado pela polícia”. Tentei esclarecer que aquilo era um equívoco, que minha situação legal estava resolvida, mas não houve como convencê-lo e fui novamente preso. Fui colocado em uma cela na qual já se encontrava Aguinaldo Silva, que fora detido em função de problemas com o jornal O Lampião da Esquina, que, por ser voltado ao público homossexual, era muito malvisto pela Ditadura. Fiquei no DOPS por 24 horas, até que, finalmente, um advogado da família esclareceu o mal-entendido e fui finalmente liberado. Capítulo X Movimento Inverso Com meu amadurecimento, parei de brigar com meu pai a todo momento por questões ideológicas ou políticas – mesmo que ele continuasse a argumentar (embora com menos empenho) que não ganharíamos nada em desafiar a “ordem estabelecida”. Em 1975, fiz vestibular para Psicologia na Universidade Católica e passei. Quando fui fazer a matrícula, eles exigiram, como de praxe, que eu apresentasse um atestado de bons antecedentes. Como eu tinha que viajar para o Rio, pedi que papai buscasse o documento para mim. À noite, ele me ligou de Belo Horizonte e disse que já estava com o atestado e que, na manhã seguinte, faria minha matrícula. No outro dia, porém, ele voltou a telefonar para mim: – Helvécio, o delegado me ligou e disse que seu atestado tinha sido expedido por engano e que isso poderia prejudicá-lo. Mandou que eu o devolvesse. Sempre correto, foi o que meu pai fez e, assim, fiquei impedido de matricular-me. Quando voltei da viagem, conversamos sobre as alternativas possíveis e ele teve a idéia de ligar para o irmão general, que nesta época estava morando em Belo Horizonte. – O Antônio resolveu o problema – comemorou papai. – É pra gente passar amanhã na casa dele, para irmos todos juntos à Secretaria de Segurança Pública para pegarmos o atestado. Fiquei feliz, mas intrigado. Como ele teria conseguido aquilo? Eu sabia que meu tio ocupava cargos importantes para os quais havia sido designado pelo Exército: além de dirigir a Rádio Inconfidência, ele pertencera ao Conselho Estadual de Telecomunicações. Por outro lado, ele jamais participara ativamente da repressão e nunca comandara um quartel (embora certamente tivesse consciência de tudo que acontecia). Assim, eu não entendia que tipo de contatos ele utilizara para fazer um acordo. Quando nos encontramos com meu tio, na manhã seguinte, fiz esta pergunta. – Foi fácil. Você só vai ter que assinar uma declaração. – Declaração? Que declaração vai ser essa? – Uma bobagenzinha. Uma declaração dizendo que você não tem mais nada a ver com aquelas coisas. – Eu não vou assinar nada disso! – protestei. – Mas é uma coisa pro forma! Recusei-me terminantemente. Eu não iria negociar o atestado com os militares, muito menos assinar qualquer tipo de declaração. Entendo que meu pai e meu tio, um juiz e um general, acreditassem que estaria tudo bem, que era mera formalidade, mas eles não compreendiam que aquela era uma formalidade perigosa – a repressão poderia perfeitamente expor a declaração em público e me apresentar como mais um “arrependido”, alegando que eu renegara minha participação na luta contra a ditadura. E isso era algo que eu não podia tolerar. Tentei explicar a questão para os dois, mas logo concluí que era inútil. Para eles, eu estava simplesmente sendo teimoso, orgulhoso. Virei as costas e fui embora, determinado a encontrar um outro meio de superar aquela inconveniente barreira. A solução foi bem mais fácil do que o esperado. Decidi ser objetivo e procurei o reitor da PUC-MG, a fim de explicar o que estava acontecendo. Foi o suficiente. Ele permitiu que eu fizesse a matrícula sem o tal atestado. Mais tarde, em conversas com papai, percebi que ele chegara à conclusão de que eu agira da forma correta e que sentira respeito por meus princípios. Acho que, a essa altura, ele finalmente havia se dado conta do que significava o porão e a forma terrível com que a repressão agia, sem dar satisfações a ninguém. De certa forma, não posso deixar de lamentar que ele tenha descoberto tudo aquilo de uma forma tão traumática. Sua crença na infalibilidade da justiça era simples reflexo de sua própria e enorme ética profissional. Minha decisão de cursar Psicologia foi algo, percebo hoje, perfeitamente natural, quase inevitável. Depois de ficar imerso por tanto tempo em um ideal social, coletivo, era apenas lógico que eu optasse por seguir um movimento inverso, voltando-me para algo individual. O que eu queria, naquele novo momento de minha vida, era fazer uma leitura sobre o ser humano, e não sobre a sociedade. Ao mesmo tempo eu não tinha a menor intenção de abandonar o cinema. Infelizmente, tive que mudar meus planos profissionais, pois, ao chegar em Belo Horizonte, encontrei um grupo de pessoas que tinha uma visão muito reduzida da prática cinematográfica. Muitas eram ligadas à crítica, mas nunca tinham pisado num set – e, ainda assim, sonhavam em fazer cinema. Eu não era um grande profissional, é verdade, mas elas simplesmente não pareciam falar do ofício que eu conhecia. Eu já havia filmado, sabia como formular um projeto de curta ou longa. Enquanto isso, elas falavam o tempo todo de “cinema mineiro”, o que me incomodava muito. Logo nas primeiras reuniões, manifestei minha discordância daquela visão: – Não existe cinema parisiense, mas sim cinema francês. Não existe cinema californiano, mas norte-americano. E eu definitivamente não penso em fazer “cinema mineiro”. Penso em fazer cinema brasileiro a partir de Minas Gerais, o que é bem diferente. Minas sempre teve o hábito de se fechar mais do que já era fechada geograficamente, e eu queria mudar aquilo. De todo modo, percebi que minhas perspectivas de fazer cinema autoral eram nulas naquele momento. Então resolvi procurar uma alternativa que pudesse me levar o mais perto possível do exercício cinematográfico. Algo que me permitisse voltar a trabalhar com câmeras e negativos. Algo que me possibilitasse contar histórias, seja lá de qual forma fosse. Decidi partir para a publicidade. Parte II O Cinema Capítulo XI Criando Criação Para alcançar meu objetivo de realizar filmes publicitários, decidi procurar as produtoras baseadas em Belo Horizonte. Depois de alguns testes, comecei a trabalhar na Exata Produções, onde passei a dirigir e produzir comerciais para clientes como a Caixa Econômica Federal. Posteriormente, entrei para a área de Rádio e TV de uma agência, o que era ainda melhor, já que me permitia não apenas dirigir, mas também roteirizar os filmes. A partir daí, realizei também inúmeros documentários institucionais. Não era um trabalho autoral, claro, mas era um exercício permanente de narrar por meio de imagens. O período de 74 a 77 foi extremamente cansativo, já que, pai de duas filhas, eu não podia me dar ao luxo de ficar parado e, assim, além de trabalhar durante o dia, continuava a estudar Psicologia à noite. E, como na época não havia o metrô e eu não tinha carro, era um longo e demorado trajeto diário de ônibus. Além disso, a publicidade, sempre exigente, esgota qualquer um. Fausto Prats era um colega da agência e ilustrador magnífico. Um de seus personagens, em particular, eu considerava divertidíssimo: uma galinha que protagonizava diversas charges que ele produzia praticamente para consumo próprio, como uma brincadeira. Propus a ele que fizéssemos um curta estrelado por aquela galinha e ele aceitou imediatamente, já que tinha muita vontade de ter experiência em animação. O processo foi, obviamente, muito trabalhoso, mas gratificante, por ser infinito em possibilidades. Chaplin já dizia que o verdadeiro cinema estava na animação, que não podia ser limitada por nada – atores, locações ou estúdios. Em certo sentido, ele foi profético, já que hoje caminhamos em direção a um cinema que não tem limites justamente em função da animação. Através dos efeitos visuais (que são uma extensão digital da técnica), o cineasta coloca o que quiser na tela, de dinossauros a enchentes – algo que, diga-se de passagem, eu mesmo viria a utilizar no curta O Casamento da Iara, quase 30 anos depois. Escrevi o roteiro e co-dirigi o filme, que mostrava a Galinha botando vários ovos, que, como planetas, formavam um sistema girando em torno do sol. De repente, a ave começava a sofrer e, depois de um esforço colossal, botava o “ovo-Terra” e o olhava com atenção. Neste instante, inseríamos uma montagem de fotos tristes da nossa História, como o Holocausto, as guerras e, é claro, o bombardeio do La Moneda. Finalmente, voltávamos para a Galinha que, chocada com o que vira, toma uma decisão prática – esmaga o planeta. Era um roteiro muito político. Mesmo com o conselho do tal coronel, aquilo era algo muito intenso em mim; eu não podia simplesmente virar as costas para tudo o que acreditava. Vivíamos ainda sob a ditadura militar e, por isso, temi que o curta viesse a ser censurado. No entanto, como usamos poucas imagens do Brasil (intencionalmente, para evitar a censura), o filme passou pelo filtro da repressão, embora sua mensagem fosse clara. Em 78, época em que o curta foi lançado, já estávamos empurrando os limites, tentando descobrir o ponto máximo ao qual conseguiríamos levar estes limites antes de sermos reprimidos. A animação foi realizada de forma básica, com traço sobre o acetato. Embora o profissional responsável pela animação (no caso, o Fausto) seja o principal diretor, estive presente durante todo o processo, sugerindo planos, enquadramentos e fazendo a decupagem ao seu lado – e, assim, dividimos os créditos de direção. Além disso, pesquisei em centenas de revistas, nacionais e estrangeiras, até encontrar as imagens mais representativas para ilustrar o que ocorria no “ovo-Terra”. Foram meses de trabalho. Por meio de minhas relações com as produtoras, consegui viabilizar a filmagem, pagando o mínimo possível pelo negativo, laboratório e a cópia final. Intitulado Criação, o curta trouxe-me de volta ao cinema de autor e possibilitou que eu estabelecesse contatos que seriam importantes no futuro, pois foi exibido em festivais e mostras pelo país (lembro-me de encontrar a Tizuka Yamasaki, por exemplo, que me disse ter visto o filme no Salão de Humor de Curitiba e, como membro do júri, ajudado a premiá-lo). Embora fosse um projeto pequeno, eu o inscrevi em diversos eventos, como o Festival de Cinema da Bahia, no qual foi muito bem recebido, chegando a ganhar um prêmio especial. Em Minas Gerais, também recebemos um prêmio em dinheiro da Secretaria da Cultura. Na época, havia a obrigatoriedade de exibição de curtas-metragens nacionais antes dos longas estrangeiros e, como Criação tinha apenas 5 minutos de duração, era um verdadeiro presente para os donos das salas, já que, além de breve, era engraçado (eles detestavam curtas com mais de 10 minutos, que geralmente irritavam o espectador e aumentavam a duração da sessão). Como os curtas recebiam 5% da bilheteria, era algo também interessante financeiramente para os realizadores – até que, tempos depois, os exibidores encontraram uma maneira suja de evitar a “divisão”. Passaram a produzir seus próprios “filmes”, horrorosos em sua maioria – o que levou o público a tomar antipatia pelo formato. Como eu não tinha produtora registrada na época do lançamento de Criação, usei a Filmes Geraes Ltda., do Victor Hugo de Almeida, para viabilizar a realização do curta. Foi somente depois disso que formei uma parceria no Grupo Novo de Cinema com o Tarcísio Vidigal, que se tornaria produtor de meus trabalhos nos 15 anos seguintes – uma parceria que, infelizmente, não acabaria bem. Capítulo XII Filmando o Inferno O primeiro filme que fiz já no Grupo Novo de Cinema foi o documentário em curta-metragem Em Nome da Razão. O projeto nasceu de uma idéia que tive quando ainda fazia Psicologia. Certo dia, tive acesso a umas imagens que um fotógrafo fez clandestinamente em um hospício de Barbacena, no final da década de 70. Fiquei chocado com o que vi e achei que era necessário – mais do que isso, urgente – fazer um documentário sobre o assunto. Participei, então, de uma reunião com a Associação Mineira de Saúde Mental e falei sobre esta idéia, pela qual eles se interessaram imediatamente. A Associação já vinha lutando há um bom tempo para denunciar os absurdos ao lado de Franco Basaglia, que era o principal líder do Movimento Internacional Anti-Manicomial e que, mais tarde, se tornaria fundamental na divulgação do documentário. Assim, fizemos uma parceria com a instituição, que, com sua influência, contribuiu para que conseguíssemos realizar o filme no mesmo hospício no qual as fotos que eu vira anos antes haviam sido tiradas. Porém, meu interesse por aquele “hospital”, em particular, não vinha apenas das fotos: eu queria rodar o projeto na cidade de Barbacena, que, graças justamente às instituições manicomiais que abrigava, havia se transformado num adjetivo para classificar “caras doidões”: – Ô, seu “barbacena”! – Era uma “ofensa” de tom brincalhão entre amigos. Aliás, Barbacena fazia parte não apenas de uma realidade terrível, como também do imaginário sobre loucura em Minas Gerais, a começar por Sorôco, Sua Mãe e Sua Filha, de Guimarães Rosa, e passando pelo famoso “trem da loucura”, que cruzava o interior do Estado em direção àquela cidade. Daí minha vontade de saltar aqueles muros, capturar imagens sobre o que ocorria lá dentro e trazê-las cá para fora, para o mundo. Essa era a intenção do documentário. Obter a autorização para filmar dentro do hospício foi complicadíssimo, e só a conseguimos graças a uma conjunção de fatores. A Associação Mineira de Saúde Mental e o Movimento Anti-Manicomial já vinham fazendo pressão sobre a Secretaria de Saúde há um bom tempo, discutindo especialmente o que ocorria em Barbacena e questionando o fato de que, como todos os hospícios públicos da época, aquela era uma instituição fechada, sem qualquer tipo de fiscalização externa. Encurralado, o Secretário decidiu permitir a entrada no “hospital” (sempre entre aspas) de um grupo de profissionais da área de Saúde Mental, além de jornalistas selecionados. Esta “excursão” ao hospício (da qual fiz parte) aconteceu nos meses finais de 1979 e deu origem a uma série de reportagens assinadas pelo Iran Firmino, do jornal Estado de Minas. Infelizmente, a situação que testemunhei era ainda pior do que aquela que vira nas fotos – aquilo era um caso espantoso, passando a idéia de ser uma instituição medieval, de ter concepção quase pré-Pinel. Voltei de Barbacena com um sentimento de urgência. Eu precisava filmar tudo aquilo rapidamente, antes que as portas voltassem a se fechar. Com a ajuda preciosa da Associação, levamos o projeto do documentário para o Secretário de Saúde, que, alegando não ter nada a esconder, o autorizou. Organizamos a operação em pouquíssimos dias. Muitas pessoas tinham receio de participar do documentário, tanto por motivos políticos como por insegurança: há todo um mito que cerca estes lugares. Convenci o Tarcísio de que era importante fazer o filme e, então, montamos uma equipe pequena, composta por apenas quatro pessoas – o diretor de fotografia (Dileny Campos), sua assistente (Maria Amélia Palhares), o técnico de som (Evandro Lemos) e eu. Tarcísio também esteve lá, mas voltou para Belo Horizonte para cuidar de outros detalhes da produção. Tínhamos que funcionar como uma equipe ágil, rápida, que pudesse circular bem pela instituição. Filmamos no hospício durante uma semana. Chegávamos às 6 da manhã e ficávamos até o momento em que a luz se tornava insuficiente para o trabalho. Era um processo muito difícil. Entrar num pátio daqueles era algo que nos consumia física e mentalmente. Assim que pisávamos lá dentro, éramos cercados por dezenas de pessoas que queriam nos agarrar, apalpar, abraçar. Não de uma forma agressiva, mas por pura carência. Eles estavam constantemente entrando na frente da câmera para pedir cigarros, que é algo sempre desejado em prisões e manicômios. Certo dia, bolamos uma estratégia. Abrimos uma série de maços e enchemos uma caixinha de papelão com cigarros. O Tarcísio, então, saiu numa direção distribuindo-os, sendo seguido pelos mais aflitos, e isto permitia que o equipamento se deslocasse na direção oposta. A situação tornava-se ainda mais complicada no pátio das mulheres, em função da agitação na qual elas se encontravam e da própria questão da sexualidade: éramos três homens em um espaço habitado por 800 mulheres. Já no pátio masculino, era a Maria Amélia quem causava agitação nos pacientes. Ao todo, o hospício abrigava 5 mil internos, um número muitas vezes maior do que sua capacidade ideal. Aquele era um verdadeiro pátio dos horrores. Apesar de Barbacena ser uma cidade muito fria, os pacientes caminhavam por ali quase nus, já que suas roupas iam sendo destruídas pelo uso e pela falta de troca ou lavagem. Nunca mais consegui esquecer aquele cheiro de morte, de excremento humano, de suor e de sofrimento. Eu chegava no hotel, à noite, e tomava longos banhos, certo de que aquele cheiro havia ficado grudado em mim para sempre – e, até hoje, sempre que assisto ao filme (algo que evito fazer), sinto o cheiro voltar, tão forte como na época. O mais assustador é que muitas daquelas pessoas estavam internadas sem a menor justificativa, indo parar ali em função de bebedeiras, brigas familiares ou outros motivos tão absurdos quanto estes. Era como se elas tivessem sido condenadas à prisão sem passar por um julgamento. E se você recebe a alcunha de “louco”, é alienado juridicamente e perde os direitos sobre você mesmo. Suponhamos que você tivesse uma crise e sua família decidisse te internar – a primeira coisa que faziam, no manicômio, era tirar todos os seus pertences e te obrigar a vestir um macacão azul, ou seja, imediatamente você perdia qualquer traço do que poderia ser seu e que iria te separar dos demais. Você estaria igual a todos os outros que estivessem dentro daquele macacão azul podre; não teria um lugar para guardar suas coisas, um armário, nada. Seria “dono” de uma cama velha em um dormitório deprimente. Isso seria mais do que suficiente para que o paciente avançasse em sua loucura – se ela estava apenas começando, iria se aprofundar; se ainda não existia, iria surgir, inevitavelmente. Percebam que estou me referindo apenas às pessoas que viviam sob aquelas condições sem terem cometido crime algum, já que não chegamos a filmar no manicômio judiciário, onde estavam presos os pacientes condenados e que exigia uma autorização especial para permitir nossa entrada. O pavilhão das crianças, em particular, era algo trágico. Havia meninos de apenas 5 anos de idade internados ali – muitos dos quais provavelmente passariam a vida toda naquele lugar, como uma senhora que aparece no filme, reclamando da ausência do médico: ela chegara ali aos 5 anos, e naquele momento já tinha 60. Era aterrador e incorreto do ponto de vista terapêutico. Uma pessoa que teve uma crise ainda tão jovem, que poderia se recuperar, perde quaisquer possibilidades de melhora ao ser enviada para um lugar como aqueles. Além disso, os responsáveis pela instituição insistiam em dizer que, naqueles pacientes, a sexualidade estava “adormecida”. Ora, bastava caminhar um pouco pelo pátio para perceber que isso era ridículo. O homossexualismo, por exemplo, era visível nos pátios masculino e feminino – e quando entramos neste último para filmar, uma mulher parou na nossa frente e começou a se masturbar. Aliás, fiz questão de ilustrar isso no curta, que enfoca um pré-adolescente tentando beijar uma garota. Sexualidade adormecida nada. E não era sequer necessário ser freudiano para perceber isso. Não “armávamos” nada para a câmera. Todos os flagrantes presentes no documentário eram justamente isto: flagrantes, momentos capturados sem que houvesse qualquer interferência de nossa parte, como a seqüência que mostra um dos pacientes enfiando a cabeça em uma fogueira e ateando fogo aos cabelos. É claro que nossa presença ali modificava o cotidiano daquelas pessoas, que vinham conversar conosco e perguntar o que estávamos fazendo. Eu tentava explicar para elas que queria mostrar para todos o que estava acontecendo ali dentro, mas elas pareciam não entender. E isso me incomodava terrivelmente – saber que estava filmando aqueles indivíduos sem que eles tivessem consciência do que isso significava. Era uma questão ética complicada, que resolvi interiormente tentando me convencer de que tinha que fazer aquilo, já que o objetivo do filme era melhorar as condições de vida daquelas pessoas e de outras que estivessem vivendo situações semelhantes. Eu me forçava a pensar assim para aplacar meu conflito interior. Eu me culpava por saber que, de certa forma, estaria me beneficiando com o filme e com a reação que este provocaria lá fora. Isso me constrangia muito, pois sempre me preocupo imensamente com os aspectos éticos do meu trabalho. De todo modo, resolvi que tentaria ao máximo fazer com que o filme se tornasse muito mais forte do que qualquer promoção que eu, em particular, pudesse vir a receber. Enquanto isso, alguns pacientes simplesmente se negavam a aceitar nossas explicações e desenvolviam suas próprias teorias sobre nossa presença no hospício: – Eu sei por que vocês estão fazendo isso! – declarou um homem, certo dia, se aproximando de nossa equipe – É pra quando alguém aqui morrer, vocês saberem quem foi que morreu! Mas nem todas as reações tinham fundo paranóico. Estabelecemos relações muito fortes com certos pacientes ali dentro. Lembro-me, particularmente, de duas senhoras que estavam no pavilhão dos doentes crônicos e que, por isso mesmo, tinham mais liberdade para sair de seu pátio. Andando sempre juntas, elas ficavam impressionadas com o fato de que não almoçávamos. Como queríamos fazer o trabalho render, comíamos apenas sanduíches. Elas foram ficando preocupadas e, um dia, quando terminamos os trabalhos e fomos para o carro, descobrimos duas goiabadazinhas sobre o capô, embrulhadas num papel. No dia seguinte, elas vieram perguntar se tínhamos comido os doces (tínhamos), que eram as sobremesas que haviam guardado para nos dar. O ato de gentileza das duas comoveu toda a equipe. Fizemos o trabalho de captação de som de maneira independente das imagens. O Evandro percorria os pátios e pavilhões colhendo pequenos depoimentos e, principalmente, registrando os intermináveis gritos e a cantoria dos pacientes. Aliás, as músicas que costumávamos ouvir lá dentro eram extremamente significativas e acabaram servindo como forma de pontuarmos o filme. Era comovente ouvir aquelas pessoas cantando versos como: “Jesus Cristo! Jesus Cristo! Jesus Cristo, eu estou aqui!” Ou: “Felicidade foi-se embora E a saudade no meu peito ainda mora E é por isso que eu gosto lá de fora Porque sei que a falsidade não vigora. A minha casa fica lá detrás do mundo Onde eu vou em um segundo quando começo a cantar O pensamento parece uma coisa à-toa Mas como é que a gente voa quando começa a pensar...” E, mesmo que eles não se dessem conta disso, havia uma imensa carga de trágica ironia em ver aqueles pacientes cantando o Hino Nacional. Por outro lado, talvez eles tivessem consciência da ironia, sim, já que, como também mostramos no filme, não há inocência alguma na canção que eles mesmos compuseram sobre o tratamento que recebiam no “hospital” administrado pelo famoso “Seu Manuel”: “Ô Seu Manuel, tenha compaixão! Tira nós todas dessa prisão! Estamos todas de azulão Lavando o pátio de pé no chão. Lá vem a bóia do pessoal Arroz cru e feijão sem sal E mais atrás vem o macarrão Parece cola de colar balão. E mais atrás vem a sobremesa Banana podre em cima da mesa E mais atrás vêm as funcionárias Que são as putas mais ordinárias.” Seu Manuel, aliás, aparece no filme colocando um disco para tocar para os pacientes, mas optei por não mostrar seu rosto em nenhum momento, embora inclua seu depoimento em off. Sua posição era extremamente ambígua, diga-se de passagem. Apesar de fazer diversas críticas à instituição ao longo de Em Nome da Razão, ele a dirigia há muitos anos, convivendo com tudo aquilo, e nunca fizera nada para alterar aquela realidade. O cinismo, portanto, era enorme, já que as pessoas responsáveis pelo tratamento desumano dado aos internos assumiam, quando questionadas, uma postura de distanciamento, como se não fizessem parte daquilo – quando eram, obviamente, uma parte importantíssima. Seu Manuel não era o diretor do hospício, que era comandado por um médico, mas era ele quem lidava com o cotidiano da instituição: alimentação, organização interna, disciplina, e todos os outros detalhes referentes ao funcionamento prático do “hospital”, tendo, logicamente, um poder enorme. Conversamos, também, com o diretor, cuja postura diante de tudo aquilo era de cinismo. Sua responsabilidade moral, aliás, era maior do que a de seu subordinado direto, o Manuel, já que, como médico, ele tinha a obrigação ética de denunciar os crimes que ocorriam lá dentro. Em vez disso, ele se contentava em receber o salário de funcionário do Estado, ao mesmo tempo em que cuidava de pacientes endinheirados em sua clínica particular. Durante as entrevistas, evitei ao máximo provocar qualquer tipo de confronto direto com as pessoas responsáveis pelo manicômio, pois estava me sentindo numa corda bamba: a qualquer momento a autorização para filmar poderia ser cancelada. No entanto, é claro que elas sabiam que o documentário daria origem a sérios questionamentos. Além disso, nossa decisão de jamais citar, por meio de legendas ou locução, o nome de quem estava dando o depoimento tinha um objetivo claro: evitar que o espectador se sentisse direcionado com relação à identidade, à ideologia e aos interesses da pessoa que estava discursando. Queríamos que as conclusões viessem dos fatos apresentados, e não de preconceitos. Capítulo XIII O Horror da Lobotomia Poderíamos ter produzido outro documentário apenas com as denúncias dos pacientes contra os enfermeiros do hospício. Agindo como policiais, os funcionários estavam sempre reprimindo suas vítimas, atuando de forma brutal. Porém, eu não quis colocar isso no filme por uma razão estratégica: evitar que o comportamento dos enfermeiros desviasse a atenção dos espectadores de uma questão que era muito maior e dizia respeito à sociedade como um todo. Incluir casos particulares transformaria os funcionários em vilões saídos de Um Estranho no Ninho. Numa produção típica de Hollywood, era isso que aconteceria, o “conflito” seria reduzido a alguns personagens. De um lado, teríamos um McMurphy (o paciente rebelde que será lobotomizado) e, de outro, uma enfermeira Ratched (que detém o poder e o exerce de forma cruel). Ora, qualquer integrante da equipe do hospício de Barbacena poderia fazer o papel vivido por Louise Fletcher no ótimo filme do Milos Forman. Porém, eu não queria individualizar o conflito. O problema não se resume ao funcionário X ou à “enfermeira malvada”; era a instituição que levava as pessoas a agirem daquela maneira, colocando um ou dois homens para tomarem conta de um pavilhão que contava com mais de 50 pacientes – e ai de quem estivesse entre estes últimos, já que, para mantê-los sob controle, valia tudo: aplicar choques elétricos como punição ou aumentar a dosagem dos remédios para prostrar os rebeldes. Caso aqueles “profissionais” específicos fossem demitidos, seus substitutos acabariam agindo da mesma maneira. Além disso, ao evitarmos denúncias particulares, impedimos que as autoridades pudessem lavar as mãos com declarações do tipo já afastamos aqueles funcionários que estavam abusando de seus poderes. O papel de Em Nome da Razão era evidenciar um absurdo institucional, social, e não individual. Aquele manicômio demonstrava – como colocamos na locução do filme – todo o poder de opressão desenvolvido pelos humanos. Essa capacidade que nós temos de reduzir o mais fraco, o mais frágil, é inesgotável. Aliás, a degradação e a falta de quaisquer direitos básicos daquelas pessoas continuavam a ser visíveis mesmo depois de suas mortes, já que a maior parte acabava tendo seus cadáveres vendidos para faculdades de Medicina de todo o país, para serem utilizados em aulas de anatomia. Isso leva a outra questão, o famoso “Chá da Meia-Noite”, que foi denunciado por pacientes de várias instituições. A questão era simples e perigosa: Barbacena fornecia (ainda fornece) cadáveres para o eixo MG-RJ-SP, abastecendo faculdades destes Estados – o que deu origem a um verdadeiro comércio. Surgiram denúncias, então, de que funcionários de determinados hospícios, ansiosos para fazer negócio com instituições que precisavam de material para aulas de anatomia, davam um certo “Chá da Meia-Noite” para alguns pacientes, matando-os e vendendo seus corpos. Durante as entrevistas que conduzi para Em Nome da Razão, ouvi várias histórias relativas a isso, mas sempre de forma vaga, encoberta. Porém, eu jamais poderia fazer uma exposição baseada em rumores. Para incluir essa questão no documentário, teria que adotar uma linha investigativa, descobrir cadáveres enviados para instituições e averiguar como haviam morrido, o que constava da Certidão de Óbito e outros procedimentos que iriam provocar grande atraso no lançamento do filme e que, além de tudo, fugiam da nossa proposta principal. Para complicar, se aquilo de fato acontecia, seria praticamente impossível provar, já que não havia controle algum sobre as mortes dos pacientes, a começar da própria falta de interesse de seus familiares – se haviam sido abandonados ali, é porque não tinham ninguém que se importasse com eles. Escrito segundo a ótica de Foucault, o texto de Em Nome da Razão, que é ouvido ao longo do documentário com a voz de Roberto Marcondes, foi escrito pelo psiquiatra Antônio Soares Simone e por mim. Procuramos abordar a violência das instituições fechadas e sua relação com o tempo e o ócio. Como a postura de Foucault era a de liquidar com esse tipo de instituição, o roteiro ficou fortíssimo. Em certo momento, por exemplo, nos referimos ao louco como um “dissidente social”, alguém que não se adaptou ao esquema da maioria. Quando isso acontece, o indivíduo é visto como uma ameaça a ser segregada dos demais. Em certo período da história da União Soviética, os dissidentes eram tratados justamente dessa maneira. O escritor Alexander Solzhenitsyn (futuro Nobel de Literatura), por exemplo, foi mandado para um hospício na Sibéria. Os manicômios não abrigavam, portanto, apenas doentes mentais, mas doentes “políticos”. Em outro momento, o filme diz que o objetivo ali não é curar nem recuperar, mas controlar, referindo-se à prática odiosa da lobotomia, como se esta fosse uma cirurgia cosmética que visava apenas a evitar a aparência da loucura. Ora, algumas das teorias mais modernas da Psiquiatria percebem o “louco” como um emergente patológico; alguém em quem a loucura coletiva da sociedade acaba emergindo. Em outras palavras, confinar o paciente mental em uma instituição fechada é acreditar que aquele comportamento “estranho” está ligado estritamente ao outro, não tendo nada a ver com a humanidade ou com a própria sociedade (que, na realidade, produziu aquele doente). É claro que, durante as filmagens, eu não ficava racionalizando tudo o que via. Nosso objetivo era, simplesmente, o de trabalhar em grande velocidade, pois queríamos colher o maior tempo possível de material. Não que filmássemos sem critério algum, pois, como estávamos bancando a produção sozinhos, não tínhamos dinheiro para gastar com o negativo – e, como na época ainda não havia a alternativa do digital, tínhamos quer ser seletivos. Assim, seguíamos nossa intuição à medida que íamos conhecendo os pacientes e, aos poucos, selecionamos aquelas pessoas que aparecem no filme. Uma dessas pessoas foi a Sueli, que era candidata certeira para lobotomia, como Seu Manuel declara no filme. Os funcionários do “hospital” estavam loucos para submetê-la à cirurgia, porque, além de contestar as atitudes da administração, ela vivia fugindo. Aliás, para não tomar choque elétrico, ela desenvolvera uma estratégia grotesca, mas eficaz: passava fezes por todo o corpo, o que fazia com que os enfermeiros desistissem de agarrá-la. A maior parte dos pacientes passava a aceitar passivamente as humilhações sofridas, pois recebiam doses cavalares de antipsicóticos como Haldol, que os mantinha prostrados, sem capacidade de reação. E, ainda assim, havia indivíduos que conseguiam reagir, que não aceitavam, que protestavam. Percebi logo que Sueli era assim e, por esta razão, “dei” a câmera para ela, ouvi parte de sua história e a filmei cantando a ácida música dedicada ao seu Manuel (que, suspeito, ela ajudara a compor). Aliás, senti, na época, que a luz que Em Nome da Razão jogou sobre a Sueli foi fundamental para impedir que ela fosse lobotomizada. Infelizmente, o mesmo não aconteceu com outro paciente que aparece no documentário, o Adão. Durante as filmagens no hospício, o descobri preso numa solitária, com as mãos marcadas pelas algemas (uma imagem que usei no filme) e à espera da lobotomia, exatamente como alguém que estivesse no corredor da morte, à espera da execução. Conversei com ele, rodei aqueles planos que estão no curta, e percebi que era um sujeito extremamente manso, calmo. Mas, no caso dele, não houve tempo suficiente: quando estava montando o filme, recebi a notícia de que ele havia sido lobotomizado e enviado para casa. Decidi, então, que iria visitá-lo, pois tinha que incluir aquela tragédia no documentário. Antes de ser internado, Adão era operário do metrô de São Paulo, trabalhando em sua construção. Em certo momento, ele “surtou” e foi até a rodoviária, querendo comprar uma passagem pra Lua. Os atendentes começaram a rir, a sacaneá-lo; ele quebrou o guichê e agrediu algumas pessoas, sendo preso em flagrante. Em seguida, foi enviado para Barbacena, onde (supostamente) matou outro paciente que teria se sentado no lugar que “pertencia” a ele. (Brigas desse tipo eram comuns no hospício, já que aquelas pessoas, destituídas de todas as suas posses, passavam a supervalorizar o que tinham, como seus “lugares” no pátio.) Não sei se ele realmente matou alguém; o fato é que, antes um homem forte, após a lobotomia não conseguia amassar uma caixa de fósforos com a mão. Isso criou uma situação muito complicada para sua família, pois, além de não poder mais contribuir financeiramente, Adão se tornou uma boca a mais para alimentar, pois não tinha mais condições de morar sozinho. E o mais grave: para que ele fosse lobotomizado, alguém da família teria que assinar uma autorização. O “hospital” alegava que a irmã de Adão assinara o papel, mas ela negava. E ainda que ela houvesse autorizado, o fato é que a família não tinha condições de julgar as repercussões do procedimento. Ora, se o médico, que para eles é uma autoridade absoluta, afirma que vai fazer uma cirurgia que melhorará a condição do paciente, é óbvio que não será contestado. O que a família do Adão e as de tantos outros pacientes não sabiam é que a lobotomia, desenvolvida por um cientista português, sempre foi um procedimento puramente empírico – os cirurgiões não sabiam exatamente o que estavam lesando no cérebro; sabiam apenas que, ferindo determinadas regiões do sistema límbico, certos comportamentos seriam inibidos. É claro que não alertavam os familiares de que tais lesões eram irreversíveis e afetariam outras áreas que nada tinham a ver com o problema. A mesma falta de base científica se aplicava ao eletrochoque, que surgiu na Itália, em matadouros de porcos – que eram abatidos através de descargas elétricas. Um psiquiatra italiano observou que os animais que não morriam tinham seus comportamentos alterados e, a partir disso, resolveu transportar o “tratamento” para os humanos que apresentavam agitação excessiva. Cheguei a considerar a possibilidade de filmar um daqueles procedimentos, já que certamente teria permissão para isto, mas logo descartei a idéia: eu não queria colocar algo tão escatológico, uma tortura com eletrochoque, no documentário. E o fato é que, mesmo sem essas cenas, o filme já é muito forte e até hoje me emociona muitíssimo – não por questões ideológicas, mas sim humanitárias. Aliás, foi desse sentimento que veio o título do curta: ver seres humanos sendo tratados daquela maneira, “em nome de uma razão” que desconhece parte do nosso comportamento, era algo que me indignava. Este filme foi um verdadeiro cruzamento do meu estudo de Psicologia e da minha iniciação cinematográfica; um casamento do meu Cinema e da minha Psicologia. Foi com Em Nome da Razão que tomei a decisão irreversível de seguir fazendo Cinema e não enveredar rumo aos consultórios. Meu caminho estava irremediavelmente traçado. Capítulo XIV Entra Basaglia As filmagens aconteceram sem limitação alguma por parte dos responsáveis pelo hospício. Cheguei até mesmo a gravar uma entrevista com seu diretor, embora não a tenha utilizado na versão final do curta. Os problemas começaram durante a pós-produção. Enquanto montava o filme ao lado de José Tavares de Barros numa moviola do Belas Artes, recebi o comunicado de que a Secretaria de Saúde queria vê-lo antes de ser lançado. Além disso, funcionários do governo começaram a apresentar uma série de questões relativas ao projeto, como se quisessem ter controle sobre o material que eu havia produzido. Estávamos já em 1980, e em algumas semanas ocorreria o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que seria sediado em Belo Horizonte e contaria com a presença de Franco Basaglia, que abriria o Congresso e era a maior estrela mundial do Movimento Anti-Manicomial. Discutindo a questão com alguns membros da Associação Mineira de Saúde Mental, cheguei à conclusão de que o grande momento para estrear o filme seria na abertura do evento. E eles começaram a preparar tudo para que assim fosse. Continuei a trabalhar no documentário na surdina, sem mostrá-lo para ninguém. A estratégia era evitar que a Secretaria assistisse ao curta e tivesse a chance de censurá-lo de alguma forma (afinal, ainda estávamos sob uma ditadura). Depois que o exibíssemos no Congresso, o Secretário não poderia fazer mais nada para impedir sua divulgação. Basaglia amou o filme. Intelectual admirável e um indivíduo de grande amor pelo próximo, ele se comoveu com Em Nome da Razão e passou a falar dele em todos os eventos dos quais participava. Ele dizia que havia três hospícios que representavam a pior situação da humanidade: um ficava no Paraguai, o outro na África e o terceiro estava em Barbacena. A partir dos elogios incansáveis de Franco Basaglia, o filme passou a ser exibido no Rio, o que acabou de vez com a possibilidade de censura. Além disso, o Secretário provavelmente percebeu que sua situação era até favorável, já que fora ele quem permitira a realização do documentário. Aquele manicômio não havia sido criado por ele, representava uma situação crônica, com anos de existência. Mas ele poderia afirmar que “abrira os portões”. E, de certa forma, isso era verdade. O cinema não muda o mundo, mas Em Nome da Razão foi uma ferramenta importante com relação à situação em Barbacena e à luta contra esse tipo de instituição no Brasil. Em 2001 (mais de 20 anos após sua realização, portanto), fui chamado para testemunhar em um tribunal simbólico – formado por médicos, parlamentares e magistrados – que denunciou a rede de hospitais psiquiátricos, e, há alguns anos, o deputado Paulo Delgado, autor da Lei Anti-Manicomial, declarou em Brasília, durante sessão do Congresso, que o movimento antimanicômio divide-se em “antes” e “depois” de Em Nome da Razão, tamanho o choque que o filme provocou nas pessoas, que não acreditavam que aquilo pudesse acontecer. O problema da instituição fechada é este: a partir do momento em que um muro é erguido e um grupo de “párias” é jogado ali dentro, as pessoas que tiveram o privilégio de ficar do lado de fora não querem saber o que está ocorrendo do outro lado. Há um plano no filme que ilustra isso. Em certo momento, coloquei a câmera sobre o muro do “hospital” e mostrei, de um lado, a rua e a vida normal; e, do outro, aquela coisa espantosa que acontecia ali do lado e que a “rua” não via. Lamentavelmente, Barbacena não era um exemplo isolado. No curta, cito ainda o Galba Veloso e o Raul Soares, que também eram pavorosos, ainda que num grau menor. Aliás, eu quis rodar o filme de uma forma seca, bruta, pois julgava que aquela seria a única forma de captar aquelas imagens e apresentá-las da forma mais próxima possível do que eu havia visto, sem muita intermediação. Acho que acertei, pois muitas pessoas não conseguiam terminar de vê-lo e saíam aos prantos das salas de projeção (Isto também acontece comigo: recentemente telecinei o filme, melhorando o som, e tive dificuldades em conter a emoção). Outra coisa de que fiz questão foi encerrar o documentário de uma maneira que deixasse claro, para os espectadores, que os problemas persistiam. O discurso da irmã de Adão, que continuava mesmo depois do fade-out, ilustrava que a sessão podia ter acabado, mas que aquela tragédia seguia, infelizmente. Em Nome da Razão ganhou a Margarida de Prata da CNBB, o prêmio de Melhor Documentário das Jornadas de Salvador e do Festival de Lille, na França. Mas, muito mais importante do que isso, conseguiu levantar uma discussão que, somada a muitas outras, contribuiu para uma mudança real daquele cenário. O hospício de Barbacena ainda existe, mas foi bastante modernizado e não possui mais pavilhões fechados, além de permitir que os pacientes tenham suas roupas e armários para guardar seus objetos pessoais. A instituição possui, inclusive, um memorial do qual o filme faz parte. Além disso, sou freqüentemente chamado para participar de debates sobre o assunto. No caso específico desse curta, permito-me acreditar que o cinema conseguiu, sim, mudar ao menos uma pequena parte do mundo. Capítulo XV Drummond e Manuelzão Enquanto Em Nome da Razão seguia sua carreira, retornei aos filmes publicitários e, em meus poucos momentos de folga, trabalhava em alguns roteiros que poderiam render projetos interessantes no futuro. No início de 1981, a Secretaria de Planejamento do Estado de Minas Gerais me contratou para roteirizar e dirigir um curta-metragem que deveria girar em torno do processo de legalização dos lotes ocupados nas favelas de Belo Horizonte. O resultado foi Cidadão Favelado, que rodei no Aglomerado da Serra – exatamente onde, tempos depois, filmaria Uma Onda no Ar. Além do caráter informativo solicitado pelo governo, incluí no roteiro algumas seqüências de ficção nas quais mostrava as pessoas construindo barracos e fazendo reuniões para decidir questões comunitárias. Porém, embora seja autoral no formato que adotei para abordar o assunto, Cidadão Favelado foi produzido para cumprir uma finalidade específica. Era um filme de encomenda. Naquele mesmo período, o governo do Estado promoveu um concurso de roteiros que premiaria os vencedores com a quantia necessária para a realização de seus curtas. As principais exigências eram as de que os textos deveriam ser escritos sob pseudônimos, para evitar favoritismos, e teriam que homenagear uma de três figuras públicas: o ex-governador Milton Campos, o escritor Guimarães Rosa ou o médico sanitarista Carlos Chagas. Eu tinha particular interesse nos dois primeiros e, assim, apresentei dois roteiros: um, sobre Guimarães Rosa, foi escrito em parceria com Mário Alves Coutinho; e outro, sobre Milton Campos, concebi sozinho. Ambos foram aprovados. Infelizmente, não tive muito tempo para comemorar, pois logo recebi a notícia de que o concurso relativo ao ex-governador de Minas Gerais fora cancelado – e que meu roteiro fora o pivô da confusão. A vida de Milton Campos incluía um incidente que eu julgava bastante representativo de seu grande caráter e de seu amor pela democracia. Na época em que ele era governador, ocorreu uma importante greve de ferroviários em Divinópolis. Como estavam há meses sem receber seus salários, eles haviam bloqueado um entroncamento vital para a circulação de trens pelo interior do Estado, o que obviamente causava graves problemas. Finalmente, um de seus assessores sugeriu a Milton Campos que enviasse um trem militar para a região, para acabar com a greve. A resposta do governador tornou-se parte da história de sua gestão: – Não seria o caso de mandarmos um trem pagador? E foi isso o que fez: enviou um único funcionário com dinheiro suficiente para pagar os grevistas, sem qualquer tipo de escolta militar, e no dia seguinte o entroncamento estava liberado. O roteiro que escrevi abordava esse incidente de uma forma que considerei interessante. Em montagem paralela, eu mostraria imagens de um trem em movimento, como um tema recorrente, enquanto contava partes da vida de Milton Campos. No final, quando a locomotiva chegava a Divinópolis, encerrávamos o filme com o episódio do trem pagador. Dessa forma, frisaria a mensagem de que ele se recusara a usar a força policial contra pessoas que estavam simplesmente reclamando da falta de salário. O projeto foi aprovado quase por unanimidade, segundo fui informado. O problema é que o único membro da comissão que reprovou a idéia era justamente o “representante” da família do ex-governador. Sem compreender o conceito da inventiva cinematográfica, ele julgou que o curta passaria a impressão de que aquele fora o único episódio importante da vida de Milton Campos – e, assim, praticamente vetou o roteiro, obrigando a comissão a reabrir as inscrições. Apresentei um novo texto, sob outro pseudônimo, e voltei a ganhar. Dessa vez, no entanto, não houve obstáculo algum. Exceto, é claro, pelo fato de que eu não estava nada satisfeito com o novo roteiro. Bem mais convencional do que o projeto que eu apresentara inicialmente, Um Homem Público era um documentário que se concentrava principalmente em depoimentos de pessoas que haviam convivido com Milton Campos. A fim de enriquecer o filme, decidi que seria fundamental incluir uma entrevista com um homem que eu admirava imensamente e que poderia ter boas histórias para contar, Carlos Drummond de Andrade. Porém, eu sabia que Drummond detestava conceder entrevistas e, assim, quando consegui o número de seu telefone e liguei para sua casa, foi com imenso nervosismo que reconheci a voz que dissera Alô? do outro lado da linha. – É... hum... eu queria falar com o poeta? Falei, com aquela típica entonação de pergunta que os mineiros costumam empregar em situações semelhantes. – Sou eu. Ainda ansioso, expliquei que estava ligando de Belo Horizonte e que iria dirigir um filme sobre Milton Campos, e que se, talvez, não fosse muito incômodo, e ele tivesse um tempinho livre, poderia dar um depoimento. – Que dia você quer fazer isso? Ele respondeu, simplesmente. Quase caí para trás. Não era possível que pudesse ser tão simples! – Quando o senhor puder. – O dia que você quiser. Era possível. De todo modo, para garantir logo a entrevista, perguntei se poderíamos filmar na semana seguinte. – Tudo bem. Incrível. Eu realmente iria conhecer Carlos Drummond de Andrade. No dia marcado para a entrevista, chegamos ao prédio de Drummond logo pela manhã e tivemos uma grande surpresa. Enquanto descarregávamos o equipamento, um senhor já de certa idade se aproximou e perguntou: – São vocês que vieram gravar? O Drummond me chamou para participar da conversa, porque éramos todos muito amigos e também convivi com o Milton Campos. Reconheci imediatamente aquele homem e mal pude acreditar na minha sorte: era Pedro Nava. Filmamos uma conversa inesquecível entre os dois célebres mineiros. Na realidade, horas de um delicioso bate-papo recheado de anedotas narradas com uma graça que só poderíamos esperar de homens como aqueles. Em certo momento, por exemplo, Drummond nos contou que Milton Campos, ainda um jovem Juiz de Direito, foi enviado para uma cidadezinha que abrigava um “lugar de rendez-vous” (o que não era nada incomum). Porém, quando a ala mais conservadora do município procurou o recém-chegado juiz a fim de requisitar o fechamento da tal “casa de tolerância”, o futuro governador do Estado se negou a fazê-lo, argumentando que ela não interferia, de modo algum, no cotidiano da cidade. Então, com um sorrisinho maroto, Drummond virou-se para Nava e concluiu a história: – E ele bem que usava os serviços delas... Infelizmente, enfrentamos um sério problema durante a conversa. Drummond morava num edifício que ficava na Av. Rainha Elizabeth, onde Copacabana vira Ipanema, e o ruído de trânsito ali se revelou insuportável – a ponto de nosso técnico de som não conseguir filtrá-lo. Além disso, como o som do 16 mm (a bitola que adotamos) já era muito deficiente, o diálogo dos dois tornou-se dificílimo de se ouvir. Há algum tempo, o Ângelo Oswaldo, que foi Secretário de Cultura do Estado, pediu uma cópia da transcrição dos diálogos e a publicou num caderno especial do jornal Estado de Minas, tamanho o interesse existente pela rara conversa. Tenho, aliás, muita vontade de retornar a este material preciosíssimo, histórico, e tentar melhorá-lo de alguma forma através dos recursos disponíveis atualmente. (Atualmente, as imagens estão com o Tarcísio Vidigal, no Grupo Novo de Cinema.) De todo modo, a verdade é que não gosto de exibir Um Homem Público, e não só pela má qualidade do som, mas porque não o considero bem resolvido; a idéia original era bem melhor. É um filme longo, com mais de 20 minutos, e, além desse diamante representado pelo bate-papo de Drummond e Navas, tem imagens históricas do Palácio da Liberdade, onde o corpo de Milton Campos foi velado. Mas não há como escapar do fato de que não gostei desse curta já na época em que o finalizei. E essa constatação representou um enorme aprendizado. Foi importante perceber que o diretor não é um ser onipotente, que há fatores que estão além de seu controle e, portanto, é preciso aprender a ter domínio sobre o maior número possível de elementos, justamente para contrabalançar aqueles que escapam. Foi um erro grave, por exemplo, não ter visitado (ao lado do técnico de som) a casa do Drummond com antecedência para avaliar as condições de se gravar lá dentro. As más condições de trabalho são mortais, e Um Homem Público me ensinou isto: não se pode aceitar menos do que o ideal, mesmo que, no processo, sejamos obrigados a dar as costas para boas oportunidades. É preciso perceber que o que vai ficar registrado é aquele material que foi rodado – e, se este não fizer jus à importância dos fatos ali armazenados, a culpa será sua. É fundamental saber intervir na hora certa, mas esta confiança só vem com a experiência e com o tempo. No caso da entrevista com o Drummond e o Nava, eu era bem mais jovem e estava diante de dois ídolos que já haviam aceitado fazer algo que raramente faziam. E, assim, fiquei intimidado e não tive coragem de convidá-los a rodar a conversa em outro lugar. E paguei um alto preço por minha hesitação. O outro projeto aprovado naquele concurso, como já disse antes, envolvia um roteiro que escrevi em parceria com Mário Alves Coutinho, João Rosa, que, ao contrário de Um Homem Público, saiu exatamente como eu queria. Tinha uma proposta interessante: pegar um personagem clássico de Guimarães Rosa, o Manuelzão, e usá-lo para falar sobre o próprio escritor. Meu encontro com Manuelzão, aliás, foi fabuloso, amizade à primeira vista. Mais do que um grande personagem do Guimarães Rosa, ele era uma figura humana sensacional. Tão sensacional que, na medida em que as filmagens iam acontecendo, fui abandonando o esquema pré-estabelecido pelo roteiro e deixei que Manuelzão tomasse conta do curta com sua exuberância e conduzisse a narrativa. Para mostrarmos o tipo de material no qual Guimarães Rosa se baseara para escrever Grande Sertão: Veredas e Manuelzão e Miguilim, fomos a Andrequicé, onde Manuelzão morou em seus últimos 22 anos de vida, e rodamos alguns planos nos quais ele aparecia contando um “causo” para uma roda de amigos. Em seguida, o levamos a Belo Horizonte para filmarmos outras cenas. Como Guimarães Rosa fizera Medicina, convidamos o Jota D’Ângelo para fazer uma participação na qual apareceria dando uma aula de anatomia quando, de repente, o Manuelzão entraria no quadro, como se fosse chroma-key, mas “ao vivo”. Outra seqüência da qual gosto muito é aquela em que ele aparece andando a cavalo em plena Av. Afonso Pena, enquanto Paulo César Pereio recita um texto lindo que fazia parte de uma entrevista que o Guimarães dera ao Curt Meyer-Clason, que traduzia suas obras para o alemão e por quem ele tinha grande admiração e respeito: “Levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão.” Na época, Manuelzão tinha 76 anos de idade e, quando fomos buscar o cavalo que a Polícia Militar aceitara nos emprestar para a cena, o responsável pelos animais ficou preocupado e me chamou num canto: – Esse velho não vai conseguir montar nesse cavalo. Os nossos cavalos são muito ariscos. – Você está falando de um vaqueiro com muitos anos em lombo de cavalo – respondi. Não deu outra: assim que Manuelzão montou no animal, este pareceu entender quem estava sobre a cela e aceitou tranqüilamente os comandos do velho sertanejo. Curto muito João Rosa, que, acredito, dá uma boa idéia sobre quem foi Guimarães Rosa – não apenas o escritor, mas o homem, o embaixador e o médico. E, no processo, também pude homenagear outra lenda inesquecível: Manuel Nardy, o Manuelzão. Capítulo XVI A “Intromissão” de Spielberg Eu ainda estava no Chile quando comecei a ter o desejo de fazer um filme para crianças. A idéia era contar uma história que falasse um pouco sobre a sociedade de consumo e ilustrasse, para o público infantil, que havia muitas coisas melhores do que simplesmente comprar os brinquedos da moda. A premissa inicial girava em torno de um marciano de cabelos vermelhos que caía na Terra e que, para conseguir trocar o motor de sua nave, se juntava a um grupo de meninos. As crianças passavam a desenvolver várias atividades a fim de arrecadarem o dinheiro necessário e o marciano chegava mesmo a trabalhar em uma fábrica que produzia os motores. O filme discutiria, de uma forma leve e bem-humorada, a “mais-valia” do sistema capitalista – como, em uma sociedade voltada para o consumo, alguém pode produzir algo que não tem condições de comprar. Era uma brincadeira, obviamente, mas a idéia partia desse conceito. Já no Brasil, escrevi o roteiro, que tinha o título Martinho Contra o Dr. Kap. Martinho era o marciano e o Dr. Kap era, claro, o vilão (cujo nome era uma alusão a “capital”). Apresentei o projeto para a Embrafilme, que o aprovou. E foi então que Steven Spielberg surgiu para atrapalhar tudo. Certo dia, quando já estava trabalhando nos primeiros detalhes da produção, o então presidente da Embrafilme, Carlos Augusto Calil, me ligou: – Helvécio, acho que você vai ter que trocar seu projeto. – Hein? Como assim? – Eu acabei de voltar da Europa, onde assisti a um filme chamado E.T. Calil me explicou rapidamente qual era a história do longa de Spielberg e, antes que ele chegasse ao fim, eu já sabia que Elliott e seu amigo espacial haviam liquidado Martinho e o Dr. Kap. Por mais diferentes que fossem os conceitos por trás dos filmes, a impressão inevitável seria a de que eu havia tentado parodiar (ou pior, plagiar) a superprodução norte-americana com uma espécie de E.T. no Brasil. Ainda frustrado, concentrei meus esforços na concepção de outra idéia, já que, de um modo ou de outro, obtivera a aprovação da Embrafilme. Convidei uma colega de publicidade, a redatora (que mais tarde se tornaria autora de diversos livros para crianças) Ângela Santoro, com quem escrevi o argumento de A Dança dos Bonecos durante um único fim de semana, numa espécie de jorro criativo. Em seguida, liguei para o Tairone Feitosa, um roteirista que morava no Rio e era fabulista por natureza. Alagoano, ele possuía um talento incrível para a criação de personagens fantásticos e, juntos, fizemos a segunda versão do roteiro. Finalmente, reescrevi o terceiro e último tratamento. Aliás, este é um hábito que tenho até hoje: ainda que o roteiro não seja de minha autoria, sinto sempre necessidade de reescrever a versão final, de me “apossar” da história e vesti-la com meu olhar e minhas impressões particulares. Não consigo trabalhar com um roteiro como se este fosse algo de outra pessoa; tenho que tomá-lo como se fosse meu (o que não quer dizer que os demais colaboradores não sejam devidamente creditados e reconhecidos por sua participação no projeto, claro). Com o último tratamento pronto, apenas troquei o Martinho Contra o Dr. Kap por A Dança dos Bonecos. É óbvio que demos entrada formal no projeto, para solicitar o financiamento, mas ele já havia sido aprovado. Recebemos uma miséria de dinheiro. A Dança dos Bonecos fazia parte de um convênio entre a Embrafilme e o governo de Minas Gerais, que tinha o objetivo de corrigir um problema grave na produção cinematográfica brasileira: como acontece ainda hoje com qualquer lei de incentivo à cultura, os financiamentos voltados para produções artísticas se concentravam basicamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Numa tentativa de reverter este quadro, nós, realizadores de Minas, passamos a fazer pressão sobre o governo mineiro para que este firmasse um convênio com a Embrafilme, comprometendo-se a arcar com a metade dos gastos de cada projeto aprovado, sendo que a estatal se encarregaria da outra metade. Esses projetos eram escolhidos por comissões formadas por pessoas da Embrafilme que viajavam até Belo Horizonte para analisar as propostas. Martinho Contra o Dr. Kap (posteriormente substituído por A Dança dos Bonecos) foi o quinto longa-metragem a ser aprovado pelo convênio, mas foi feito com pouquíssimo dinheiro, exigindo um esforço enorme. Em valores atuais, creio que deve ter custado o equivalente a 200 mil dólares. O segundo filme dessa “leva” foi Idolatrada, do Paulo Augusto Gomes, que produzi. Embora fosse ligado a outras pessoas, Paulo Augusto procurou o Grupo Novo de Cinema (Tarcísio e eu) por acreditar que teríamos mais capacidade de lidar com um projeto maior. Montamos a equipe, armamos a produção e realizamos o filme. O exercício do ofício do cinema tem muitas facetas, é uma atividade na qual a criação está ligada ao orçamento, à viabilização desta verba e à administração eficaz dos recursos. É impossível, num país como o Brasil, Argentina ou México, existir um cineasta que não tenha uma boa noção do quanto um projeto (curta, médio ou longa) significa em termos de dinheiro e planejamento. E, como eu ainda não tinha produzido nenhum longa-metragem, concluí que participar de Idolatrada representaria um aprendizado fundamental para minha carreira, como de fato aconteceu – tanto que repeti a experiência pouco tempo depois, em Um Filme 100% Brasileiro (1985), do José Sette, que o Grupo Novo também produziu. Sempre gostei de escrever certos personagens especificamente para determinados atores ou atrizes. Em A Dança dos Bonecos, criei a dupla formada por Mr. Kapa (sim, o Dr. Kap do roteiro anterior acabou sobrevivendo de alguma forma) e seu assistente Geléia pensando em entregá-los ao Wilson Grey e ao Kimura Schettino. Mr. Kapa e Geléia eram o motor da história e representavam uma mistura de personagens típicos do cinema e de artistas mambembes. Apesar de sua longa e brilhante carreira no cinema (até hoje detém o recorde de ser o ator que participou do maior número de filmes brasileiros), Wilson Grey só havia sido protagonista de um único longa, O Segredo da Múmia (1982), de Ivan Cardoso (mais tarde, no mesmo ano em que lancei A Dança dos Bonecos – 1986 – ele seria co-protagonista de outra produção de Cardoso, As Sete Vampiras). Conheci o Grey quando produzi Um Filme 100% Brasileiro e, observando seu tipo inconfundível, com seu sapatinho bicolor, bigodinho malandro e um jeito extremamente gentil e educadíssimo, logo percebi que gostaria de trabalhar com ele – e o fato é que não haveria ator melhor para viver o Mr. Kapa, que era adorável, carismático, mas um fracassado com ilusões de grandeza. Enquanto Geléia mostrava-se sempre prático, preocupando-se em conseguir comida, seu chefe insistia em levar tudo para o lado da “nobreza do artista”. Aliás, eu brincava muito com o Grey sobre essa característica do personagem e sua semelhança com o sonho do ator brasileiro de fazer um cinema cheio de recursos – um desejo muito distante da realidade. Isto era ilustrado pela própria vida do Wilson Grey, que tinha feito mais de duas centenas de filmes e era um sujeito pobre. Mr. Kapa vivia mergulhado em seus delírios de grandeza, em sua ânsia de ter seu talento apreciado. Há um momento na história, por exemplo, em que, depois de ganhar uma boa quantia graças ao show dos bonecos, ele olha para aquele monte de cédulas com a mais absoluta certeza de que os aplausos foram para ele – uma cena que o Grey faz muitíssimo bem, por sinal. Mr. Kapa sempre se levava a sério, mesmo que os outros não o fizessem. Já sua caracterização envolvia várias citações. Sua maquiagem, por exemplo, envolveu muita pesquisa. Como ele era um saltimbanco e usava recursos teatrais e do cinema mudo, decidimos investir num visual expressionista, carregando na palidez e no próprio desenho do rosto – ao mesmo tempo em que Grey buscou trazer certos maneirismos típicos de Bela Lugosi. Aliás, ele contribuiu imensamente com o filme expondo suas idéias e improvisações. Quando íamos rodar a cena na qual o Jack Domina (vivido por Ezequias Marques) soprava fumaça de charuto no Mr. Kapa, o Grey sugeriu: – Aí eu posso tentar dar uma baforada na cara dele e, como não vou conseguir, jogo a guimba nele! Fizemos assim e o resultado ficou engraçadíssimo. Além de um grande companheiro de trabalho (como contarei mais adiante), Wilson Grey era um ator fabuloso. Kimura Schettino visitava sempre a nossa produtora. Ator rude (no melhor sentido da palavra), era um sujeito muito terno e foi por isso que batizei o personagem de Geléia: como seu intérprete, era duro por fora e mole por dentro. Outro elemento que emprestei do próprio ator para criar o personagem foi sua mineiridade, que não aparecia apenas em seu sotaque, mas também no seu comportamento. Além disso, como é um ator muito físico, Kimura improvisava bastante durante os ensaios, e muitas de suas gags acabaram sendo levadas para o filme, como a brincadeira de enfiar o pé no penico ao invadir a casa da Ritinha para roubar os bonecos. Para permitir que a química entre Mr. Kapa e Geléia se tornasse visível, hospedei os dois atores na mesma casa em Biribiri, onde as filmagens aconteceram. Como Kimura admirava muito o Grey, ele acabou se tornando uma sombra do ídolo, seguindo-o para todo lado – e isso era perfeito, já que se refletia o que deveria acontecer na história. Para escolher a intérprete de Ritinha, a dona dos bonecos que dão título ao longa, realizamos testes com mais de cem crianças no espaço em que hoje funciona o Cine Belas Artes, mas que na época era o DCE da UFMG. Sempre parti do princípio de que os testes deveriam causar algum tipo de constrangimento nas crianças – embaraços que, mais tarde, elas teriam que enfrentar no set: interpretar em frente à câmera, sob fortes luzes e com várias pessoas em volta, olhando. Assim, eu poderia ver até que ponto cada uma conseguiria manter a espontaneidade diante de tais circunstâncias. Mais tarde, durante a seleção do elenco de O Menino Maluquinho, aprendi também a avaliar as relações familiares dos pequenos atores. Reduzi o grupo até chegar a seis finalistas e, então, optei pela Cíntia Vieira, que era filha de uma poetisa, Flausina Márcia (que hoje trabalha na Secretaria de Estado da Cultura). Cíntia era uma menina extremamente independente; foi a primeira garota de 9 anos que conheci que já tinha a chave de casa. Logo percebi que ela teria condições de ficar fora de Belo Horizonte por algum tempo, longe da família. Ela exibia essa segurança, além de ser bastante sensível e inteligente, percebendo as coisas sempre de forma rápida. Já para o papel do avô, minha intenção era escalar o Dionísio Azevedo, de quem eu gostava muito. Porém, ele estava fazendo um trabalho para a televisão e não pôde aceitar o convite – algo que só ficou definido quando já estávamos em Biribiri, rodando o filme. Ficamos numa situação difícil. Biribiri ficava próxima a Diamantina, que é um local muito isolado no qual não chegava avião, e os contatos com Rio e São Paulo tinham que passar por Belo Horizonte, provocando grande demora. Além disso, tínhamos poucas opções para o papel, que exigia um ator mais velho e com disponibilidade para passar dois meses no interior de Minas. Quando tudo começava a ficar desesperador, o Eid Ribeiro, que era meu assistente de direção, descobriu, em Diamantina, um italiano baixinho, meio gordinho e narigudo, que parecia um boneco do Álvaro Apocalypse. Dono de uma casa de máquinas, este senhor havia feito cinema na Itália, nos anos 20, participando de produções do cinema mudo na época do Mussolini. Eid sugeriu que eu o conhecesse e fomos a Diamantina. Assim que bati os olhos no sujeito, que se chamava Ângelo Dettori, percebi que encontrara o avô de Ritinha – isto é, até que ele começou a falar com um português carregado de sotaque, incompreensível. No entanto, além de ter o físico ideal para o papel e de ser bastante simpático, ele morava ao lado de Biribiri, e, num plano de filmagem que estava sendo alterado a cada hora, ter um ator à mão era algo fundamental. Decidi contratá-lo e dublá-lo na pós-produção. Outro que optei por dublar com outra voz foi o Rui Polanah, que faz o papel do Destino. Dono de uma figura impressionante (que já havia sido utilizada por John Boorman em A Floresta de Esmeraldas, de 1985), Rui tinha uma voz que não combinava com seu físico, pois era delicada demais e não dava a dimensão que eu queria para o personagem. E, como o Brasil tem um elenco de dubladores fantásticos, não pensei duas vezes antes de resolver utilizar estes talentos para conferir novas vozes ao Rui e ao Ângelo Dettori. Para tornar o filme ainda mais divertido, escalei a Cláudia Jimenez, que pouco havia feito em cinema, e não me arrependi. Com seu timing cômico impecável, ela trouxe boas risadas para o longa, como ao improvisar, no momento da filmagem, a fala em que diz: “Não cospe, não!” para o Kimura – que realmente havia cuspido acidentalmente nela. Aliás, tudo pode servir de referência na concepção e no desenvolvimento de um personagem: de incidentes ocorridos no set a detalhes tirados de pessoas reais. Eu tinha um vizinho, por exemplo, que falava o tempo todo cobrindo a boca com a mão, envergonhado por um problema que tinha nos dentes. Quando fui ensaiar com o Derly De Lea, que fazia um dos capangas do Jack Domina, notei que ele tinha uma dentadura meio solta e sugeri que ele incorporasse aquele hábito do meu vizinho – algo que ele fez de forma engraçada, conferindo maior realidade a um personagem que poderia ter se tornado insignificante. O filme foi totalmente dublado na pós-produção. Como não tínhamos condições de levar uma câmera blimpada e uma equipe de som direto para Biribiri, optamos por fazer o som-guia e dublar os diálogos posteriormente. O som direto exige uma câmera silenciosa e sincronizada com o gravador, igualmente silencioso (o Nagra), que capta os sons da filmagem que serão trabalhados e levados para a tela – e isso exigiria um investimento muito maior. Embora alguns atores adorem dublar (como a Patrícia Pillar, que diz que isso permite que ela descubra coisas novas para suas personagens), o grande problema desse recurso é que perdemos muito do frescor da interpretação, mesmo com a referência do som-guia através dos fones, orientando os atores com as pausas e inflexões utilizadas originalmente. Para os dubladores profissionais isso é fácil, mas eu temia pelos membros inexperientes do elenco, como a Cíntia e o Kimura. Felizmente, todos se saíram bem. Capítulo XVII A Cidade-Fantasma Biribiri é uma cidade-fantasma. E, assim como escrevi a história para o Wilson Grey e o Kimura Schettino, pensei o tempo todo em Biribiri enquanto finalizava o roteiro. Eu havia visitado a cidade algum tempo antes, quando fora a Diamantina para o carnaval, e ficara absolutamente encantado. Inicialmente, o lugarejo girava em torno de uma companhia de tecidos e, quando esta encerrou suas atividades, a família Mascarenhas, que era dona da fábrica e da cidadezinha, decidiu conservá-la intacta. Quando vi aquilo, pensei: É um cenário maravilhoso de cinema! E isto se tornou realidade quando eles aceitaram nos emprestar a cidade, na qual filmamos e moramos por dois meses. Além de uma única família que ainda morava ali, éramos os únicos habitantes de Biribiri. E, embora estivesse trabalhando com algumas pessoas muito mais experientes do que eu, sentia-me como uma espécie de prefeito do lugar, já que, como diretor do filme, era o responsável por tê-los levado para lá. Com o passar do tempo, a tensão foi ficando enorme. Ao todo, éramos umas 90 pessoas e muita gente pirou, pois era uma situação atípica: como estávamos literalmente morando nos cenários, quando terminávamos de filmar no fim do dia, todos eram obrigados a continuar olhando para as mesmas caras, que eram as únicas disponíveis. A estrada de Biribiri até Diamantina era péssima e tínhamos poucos veículos à disposição (meu carro simplesmente desmontou com o uso constante e, quando voltamos para Belo Horizonte, tive praticamente que jogá-lo fora. Era uma época heróica de se fazer cinema, pois colocávamos o que era nosso na produção.) É claro que o isolamento não afetou a todos. O Grey, por exemplo, levava a situação na maior tranqüilidade e passava boa parte de seu tempo vago jogando sinuca com alguns companheiros. Enquanto isso, eu estava extremamente concentrado na produção e, por ser meu primeiro longa-metragem, insistia em me preocupar com os mínimos detalhes – até mesmo aqueles que já estavam sendo supervisionados por outras pessoas. Certa noite, durante uma reunião de produção, começamos a ouvir uns gemidos. Saímos correndo da casa na qual nos encontrávamos e demos de cara com uma cena surreal: um técnico de som que viera do Rio estava de quatro no chão, uivando enlouquecidamente para a Lua. E não estava sozinho: dois ou três outros integrantes da equipe estavam claramente fora de seus estados normais (algo que percebi quando um deles se aproximou de mim e, apontando para as enormes pedras que cercavam a cidade, gritou: Olha os dinossauros! Olha os dinossauros!). Logo descobrimos a causa do delírio coletivo. Aquele pequeno grupo, com muito tempo nas mãos, havia decidido fazer uma excursão pelos arredores de Biribiri e acabou encontrando uma verdadeira plantação de cogumelos. E um deles decidiu fazer um chá “especial”. O resultado podia ser visto nas ruas antigamente tranqüilas do pequeno distrito de Diamantina – um bando de malucos correndo de dinossauros e outras criaturas invisíveis durante boa parte da noite. Aquele não foi um incidente isolado. O isolamento e a falta de “lei” deixavam as pessoas entregues a si mesmas, e as conseqüências eram imprevisíveis. Em certa ocasião, uma figura conhecida (cujo nome fica em segredo) me procurou, pedindo desesperadamente algum comprimido que a fizesse voltar “ao mundo real”. Sugeri que fosse dormir. Mas nem sempre os problemas eram causados por comportamentos imaturos. Um dos momentos mais dramáticos que vivemos em Biribiri foi provocado por doença. O Paulo Henrique Pessoa (mais conhecido como “Ganso”), que executava a direção de arte do Anísio Medeiros, contraiu pneumonia – algo que já seria grave em um lugar sem assistência médica. Para piorar, ele tinha apenas um pulmão, o que trouxe enorme preocupação a todos. Felizmente, conseguimos levá-lo para Diamantina a tempo e ele se recuperou sem sofrer maiores conseqüências. Tínhamos uma equipe muito solidária e unida, mas o clima começou a ficar pesado por um outro motivo, além do já citado isolamento: os atrasos constantes no pagamento. Os técnicos de cinema brasileiros são escaldados por experiências desse tipo, e poucos podem dizer que nunca levaram o cano de alguma produção. Como o Tarcísio Vidigal ficava em Belo Horizonte durante a maior parte do tempo, eu tinha que enfrentar sozinho o mau humor (justificado) da equipe, explicando sempre que ele estava pressionando a Embrafilme para que esta pagasse o que ainda nos devia – o que de fato estava acontecendo. Esta falta de verba atrapalhava imensamente a produção, pois, muitas vezes, não tínhamos o dinheiro para pagar algo que seria necessário mais à frente, nas filmagens (depois que concluímos os trabalhos em Biribiri, fomos obrigados a suspender a produção durante quatro meses, por absoluta falta de condições financeiras, até que finalmente pudemos rodar as cenas restantes em Belo Horizonte). Uma figura fundamental para acalmar os ânimos de nossa equipe foi Wilson Grey. Ao longo das oito semanas que passamos em Biribiri, ele viajou para o Rio em apenas duas ocasiões e, em ambas, retornou com presentes para todo mundo – para os homens, trouxe desodorantes e barbeadores; para as mulheres, camisolas. Era um galanteador, uma figura sedutora e, quando a situação se tornava crítica, colocava-se sempre ao meu lado durante as reuniões feitas para tranqüilizar o grupo. Enquanto eu explicava que estávamos batalhando pelo pagamento e que jamais ficaríamos com o dinheiro da equipe (algo que, infelizmente, acontecia em outras produções), o Grey salientava que também estava apostando no projeto e que tinha plena confiança em nossa honestidade. E mais: em várias ocasiões, ele chegou a dizer que não precisávamos nos preocupar em pagá-lo imediatamente, pois poderíamos acertar a dívida quando tudo estivesse mais tranqüilo. Devo muito ao Grey por ter conseguido levar A Dança dos Bonecos até o final. Há uma cena, no filme, em que Mr. Kapa e Geléia se apresentam para os moradores da cidadezinha na qual a história se passa. Minha referência, ali, era o cinema neo-realista italiano, com rostos verdadeiros na tela que se tornam bonitos e expressivos apenas por se deixarem filmar. Como Biribiri não tinha habitantes, fomos procurar esses figurantes nas roças da região e reunimos um grupo de rostos impressionantes. Como estávamos lidando com pessoas sem a menor experiência em cinema, tínhamos que produzir alguma coisa que provocasse o riso e o brilho nos olhos, típicos de quem está assistindo a algo encantador, mágico – e acabamos encenando parte do espetáculo do próprio Mr. Kapa, com o Grey e o Kimura se apresentando ao vivo. Foi um sucesso; todos adoraram o pequeno show daqueles personagens tão picaretas. Desenvolvemos uma relação bacana com os figurantes. Nós os buscávamos, os divertíamos, os alimentávamos e ainda pagávamos um pequeno cachê. Em troca, eles trouxeram algo valioso para o filme – o realismo inimitável de uma cidadezinha abandonada, já que aquele abandono era, infelizmente, o contexto no qual eles próprios viviam. Obviamente, eu precisava de alguém que ficasse com a Cíntia o tempo inteiro e que fosse sua referência entre os adultos. Como ela ficaria hospedada na mesma casa e conviveria com essa pessoa durante toda a filmagem em Biribiri, concluímos que teria que ser uma mulher, de preferência alguém que também pudesse ajudá-la a memorizar o texto de forma natural, sem mecanizá-lo. A escolhida foi Ana Donnard, uma atriz muito interessante de teatro que, mais tarde, se afastaria dos palcos e se mudaria para a França, para fazer doutorado em estudos célticos. Com o passar do tempo, Cíntia praticamente a “adotou” como mãe, reservando, para mim, o papel de “pai”. No entanto, isso não significa que ela seguia todas as nossas instruções. Dona de uma forte personalidade, Cíntia sabia ser firme na hora de dizer “não”, como ilustra um curioso episódio. Havia uma cena, em A Dança dos Bonecos, na qual Ritinha, a personagem de Cíntia, deveria nadar pelada em uma cachoeira. Quando o dia da filmagem foi se aproximando, ela começou a ficar nervosa e a dizer que não queria tirar toda a roupa. Tentei argumentar: – Cíntia, pensa bem: uma menina que está sozinha no meio do mato e resolve nadar na cachoeira não iria entrar na água de calcinha, iria? Foi um drama. Ela tinha 9 anos de idade, mas se mostrou irredutível. Um dia antes de rodarmos a seqüência na Cachoeira dos Cristais (um lugar lindo, por sinal), ela protestou com a Ana: – Será que o Helvécio está pensando que eu não tenho nada? Ao perceber que era uma questão importante para ela, resolvi parar de insistir. E ela fez a seqüência de calcinha. Acho que as cachoeiras são lugares mágicos. Além do problema enfrentado com Cíntia, outra importante seqüência situada em uma queda d’água acabou se tornando a mais difícil de ser realizada, embora, no filme, ocupe pouco tempo: a aparição da Iara. Sempre considerei a lenda da Iara interessantíssima em função de sua sensualidade e do perigo que esta representava ao atrair suas vítimas para debaixo d’água. E, quando comecei a pesquisar sobre o assunto para preparar-me para A Dança dos Bonecos, descobri algumas coisas interessantes. Este mito sempre foi vendido como parte da cultura indígena, o que é uma grande mentira. A Iara foi uma adaptação das sereias européias, feita pelos escritores românticos, surgindo principalmente em José de Alencar (em O Tronco do Ipê), que a transportou dos mares do hemisfério norte para as águas doces dos nossos rios, ou seja, ela nunca foi um mito indígena, mas sim literário, combinando, em sua eclética mistura, a vertente negra da lenda de Iemanjá. Ainda assim, a Iara passou a fazer parte do folclore nacional, dando origem a centenas de histórias fantasiosas sobre suas supostas aparições em cidades ribeirinhas – muitas delas registradas por Câmara Cascudo. Além disso, ela se incorporou até mesmo à natureza, sendo usada para batizar um tipo de vegetação do Rio Cipó que, em função de seu aspecto ondulante, passou a se chamar Cabelo de Iara. Para interpretar a personagem, escalei uma atriz lindíssima, de olhos cor de água, que chegou a filmar uns testes que ficaram maravilhosos. Porém, a poucos dias de rodarmos sua participação em uma cachoeira de Biribiri, a garota pirou e foi se trancar em um mosteiro de São Paulo. Para substituí-la, analisei várias fotos de outras atrizes, ainda em Biribiri, mas concluí que não teria calma para tomar a decisão naquele momento. Além disso, como a seqüência protagonizada pela Iara representava um episódio à parte na história, decidi filmar aquelas cenas em uma cachoeira perto de Belo Horizonte, na segunda etapa da produção. Meses depois, já com outra moça escalada para o papel (a modelo Agada Chaves), enfrentamos outro contratempo. Como sempre acontece entre outubro e janeiro, Minas Gerais estava sempre debaixo de fortes temporais. Finalmente, quando a chuva estiou, reuni a equipe e fomos para uma cachoeira de Itabirito, ou, ao menos, tentamos ir. Ao chegarmos na região, a estrada havia desaparecido. Fui obrigado a adiar mais uma vez a seqüência. Semanas depois, quando já havia localizado uma bela cachoeira na descida da Serra de Teresópolis, tive que trocar a atriz mais uma vez e contratei a modelo Divana Brandão – e, pela primeira vez, tivemos sorte com relação à Iara. Divana acabara de fazer um filme com os americanos na Amazônia (Selva Viva, de 1986) e tinha feito um aplique enorme nos cabelos, até a cintura, que herdamos da outra produção. Mas eu gostaria de ter tido a tranqüilidade necessária para elaborar melhor a participação da Iara. Essa frustração sempre me faz lembrar de uma de minhas conversas com Manuelzão sobre Guimarães Rosa. Como já havia respondido a inúmeras perguntas sobre sua relação com o escritor, o sertanejo soltava algumas frases prontas e, assim, um dia me disse: – Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão: Veredas e, com o que sobrou, escreveu Sagarana. É claro que havia uma imprecisão cronológica nessa teoria, já que Sagarana foi escrito bem antes de Grande Sertão: Veredas, mas esta história me veio à mente porque o material que juntei sobre a Iara na época de A Dança dos Bonecos dava para fazer muito mais do que aquilo que foi parar no filme. E, repetindo de certa forma o que o Manuelzão disse, com o que sobrou daquela experiência, acabei fazendo O Casamento da Iara, quase 20 anos depois. Capítulo XVIII A Arte de Apocalypse Para criar os bonecos que davam título ao filme e que seriam, sem dúvida alguma, os elementos mais complicados da produção, decidi procurar um mestre da área: Álvaro Apocalypse, do Grupo Giramundo. Contei a história do longa para o Álvaro e expliquei que a idéia era que os três bonecos teriam sido feitos à mão pelo avô da menina, que, por sua vez, costurara as roupas que eles usavam. Este era um conceito importante, anticonsumista, que viera do roteiro Martinho contra o Dr. Kap. Partindo dessas instruções, Álvaro foi desenhando, com aquele seu traço genial, todas as idéias que tinha para os bonecos, até que chegamos às versões finais dos três personagens (durante as filmagens, percebemos que um deles, o Tiziu, era a cara do Milton Nascimento e, na seqüência em que ele tocava o pianinho, mal conseguíamos conter o riso ao nos lembrarmos do Bituca). Mas definir o visual dos bonecos era apenas o começo. Complicado mesmo seria encontrar uma forma de fazer com que eles se mexessem. Álvaro Apocalypse dominava a manipulação teatral. O problema é que, no teatro, há um acordo tácito com a platéia, que vê os fios que erguem os bonecos, mas os ignora; enxerga os manipuladores vestidos de preto, mas os abstrai. No caso do cinema, não há este acordo. Se a criança vir o fio, vai dizer: Olha lá o fio!, e o filme desmonta. No nível de realismo adotado pelos filmes, a hipótese de que a manipulação possa ser percebida é inaceitável. Expliquei este problema para o Álvaro, que nos convenceu a realizar alguns testes com fios e fundos pretos. Como já era esperado, não funcionou – e o próprio diretor de fotografia, o ótimo Fernando Duarte, disse: – Helvécio, estes fios vão sempre ser vistos por causa da luz. Não há como tirar a luz dos fios. Começamos a discutir soluções e o Álvaro, com toda a sua vasta experiência, passou a me mostrar possíveis formas de manipulação: em cantos de parede; locais nos quais eu poderia esconder o manipulador; mesas vazadas sobre as quais poderíamos colocar os bonecos; e assim por diante. Ao mesmo tempo, assisti a vários filmes para pesquisar o assunto: Os Muppets, O Cristal Encantado (1982) e, de modo geral, qualquer outro trabalho do Jim Henson, que foi nossa principal referência. Construímos 18 bonecos – seis versões de cada um dos três personagens vistos no filme. Cada uma delas era adaptada para circunstâncias e usos diferentes: bonecos de vara; outros que eram manipulados com uma espécie de revólver que o próprio Álvaro havia inventado (e que era ótimo para se trabalhar em quinas do cenário); alguns que só foram feitos da cintura para cima; e, finalmente, aqueles movidos por cordéis. Além, é claro, dos três bonecos inteiros que não se mexiam e eram usados, portanto, nas cenas que não requeriam qualquer tipo de movimento. A partir daí, passamos a criar situações para o filme e o próprio Álvaro sugeriu várias delas. Foi um processo contínuo de descoberta, tanto de minha parte, que não entendia nada de manipulação, quanto da parte dele, que nunca havia feito cinema. Fomos aprendendo na prática, descobrindo as possibilidades que cada versão dos bonecos nos oferecia. Infelizmente, Álvaro não pôde trabalhar diretamente como manipulador, já que o Giramundo tinha uma série de viagens agendadas, mas, antes de partir, formou uma turma formidável de profissionais, entre os quais se encontravam Paulinho Polika (que mais tarde faria comigo o curta Vida de Rua) e Ivana Andrés. Trabalhamos com o princípio de que ninguém ali deveria se comportar como um mero técnico, mas como atores que deveriam passar suas emoções para os bonecos. E sinto que foi esta atitude que ajudou a enriquecer tanto o filme. De todas as seqüências envolvendo os três personagens, a mais complicada foi justamente aquela que deu título ao filme. Para rodarmos a dança, tivemos que dividir os trabalhos em duas etapas. Primeiro, filmamos o quarto real, em Biribiri, e mais tarde o reproduzimos em Belo Horizonte, dentro do estúdio. A diferença é que o quarto cenográfico estava um metro e meio acima do chão, permitindo que os manipuladores ficassem sob as tábuas do assoalho – algo que, para um filme de baixíssimo orçamento, era enlouquecedor. Assim, através das frestas das tábuas, cada ator pôde movimentar seu respectivo boneco. Sempre fui muito econômico em meus trabalhos, buscando filmar o que precisava, e só. Geralmente, jogo pouca coisa fora durante a montagem e a única exceção foi, justamente, A Dança dos Bonecos, talvez por ser meu primeiro longa. Ainda assim, esse “desperdício” aconteceu apenas nas seqüências protagonizadas pelos atores de carne e osso, e não naquelas com os bonecos, já que, sempre que estes se encontravam em cena, buscávamos ser absolutamente precisos, pois a manipulação exigia um esforço tremendo. Mesmo assim, eram necessários muitos takes, uma vez que várias coisas podiam sair erradas: a mão do manipulador poderia aparecer ou um fio arrebentar, por exemplo. Em alguns casos, tudo corria maravilhosamente bem e, quando achávamos que iríamos conseguir encerrar o plano com sucesso, o olho do boneco travava. Era impossível prever o que me obrigaria a dizer: Corta! Apenas um obstáculo tornou-se insuperável durante a feitura dos bonecos: os movimentos da boca. A única opção era aquele corte duro no maxilar, não havia uma forma mais maleável, fluida, de mexermos a boca mecanicamente, embora o Álvaro tenha chegado a construir alguns protótipos cujos queixos se moviam de maneira menos artificial. Finalmente, decidi que os personagens não falariam. No roteiro, os bonecos teriam diálogos, mas não cheguei a escrevê-los porque logo percebi, trabalhando com o Álvaro, que não seria viável mostrá-los conversando. Em vez das falas, resolvi que eles poderiam se comunicar através de uma linguagem particular, e propus ao Anderson, do Tangram, que ele criasse esses sons. Ele trabalhava bastante com crianças e fazia experiências com os mais diversos tipos de ruídos e, a partir daí, a língua dos bonecos foi nascendo, como se da própria vontade que eles tinham de expressar alguma coisa. Além dos barulhinhos emitidos pelos personagens, a história conta com uma série de efeitos sonoros engraçadinhos que sublinhavam a ação e que foram concebidos pelo Nivaldo Ornelas, que fez toda a trilha. Era um trabalho delicado, porque esse tipo de efeito pode arruinar um filme se usado à exaustão (e, de fato, cortamos muitos deles). Depois que o longa ficou pronto, fiquei com os três bonecos (as versões de corpo inteiro, que não mexiam) por muitos anos – e minhas três filhas do primeiro casamento, Juliana, Andréa e Bárbara (às quais o filme é dedicado), brincaram muito com eles. Certo dia, como eles já estavam começando a apresentar sinais de deterioração, minha atual esposa, Simone, levou-os para que fossem restaurados no Giramundo, e a Tereza Veloso (esposa do Álvaro e co-fundadora do Teatro de Bonecos) quis guardá-los no museu do grupo. Como sabíamos que eles ficariam mais protegidos sob os cuidados de seus criadores, não nos opusemos. Capítulo XIX Trabalho em Equipe A relação entre o diretor e o fotógrafo deve ser de total cumplicidade. É fundamental que exista uma confiança absoluta neste profissional, pois o filme passa primeiro por seus olhos – e, embora estejamos acompanhando as imagens pelo monitor, há uma série de detalhes que só o diretor de fotografia irá perceber. Para trabalhar comigo em A Dança dos Bonecos convidei um dos melhores do ramo, Fernando Duarte, que trouxe consigo outro talento que logo se transformaria num dos mais requisitados da área, Walter Carvalho (que operou a câmera). Comentava-se muito que Fernando era um fotógrafo lento. Discordo. Para mim, ele é refinado, capaz de observar as sutilezas mais delicadas. Precisamos de uma sombrazinha aqui, ele dizia, indo recortar pessoalmente o papel que seria colocado na frente da luz para criar o efeito que desejava. Dificilmente A Dança dos Bonecos poderia ter tido alguém melhor naquela função. Quando vou escolher o diretor de fotografia para um projeto, converso com aqueles que pré-selecionei a fim de avaliar a maneira com que eles percebem o filme, a luz, o grão e a textura. A primeira relação do espectador com o filme se dá pelo trabalho do fotógrafo e, por isso, é importantíssimo que este esteja em sintonia com o diretor. O cinema é um ramo no qual estamos sempre aprendendo. Todo profissional que vem trabalhar comigo em uma produção traz consigo tudo o que absorveu de suas experiências anteriores e, desta maneira, me oferece a oportunidade de conhecer novos olhares e métodos. E, ao fim do projeto, também acaba levando algo que aprendeu comigo. Assim, todos saem ganhando. Sempre discuto todas as seqüências com meus companheiros de equipe. Como faço meu dever de casa permanentemente, chego no set com a decupagem já estabelecida e sei o que pretendo fazer. A partir daí, analiso com o fotógrafo a ordem de planos, a luz, o clima a ser criado e por aí afora. As sugestões que recebo e que considero boas, absorvo sem problemas. E não só do diretor de fotografia, mas do eletricista ou da pessoa mais simples da equipe. Ouço sempre – o que não quer dizer que aceite tudo, obviamente. Se não achar que a idéia acrescentará algo ao filme, a descarto. Mas gosto muito de trabalhar com gente competente e não tenho o menor medo do talento alheio. Conheço alguns cineastas que parecem temer constantemente que o brilho de um auxiliar possa ofuscá-los, sem perceber que todo talento a serviço do filme acabará se refletindo de forma positiva sobre seu diretor. No Brasil, nos beneficiamos muito de nossa forma nada rigorosa de encarar as convenções técnicas e estéticas – ao contrário do cinema norte-americano, que é uma indústria com comportamentos muito enraizados e pouco flexíveis. Enquanto nos concedemos a liberdade de criar com relação às posições de câmera, por exemplo, os profissionais de Hollywood muitas vezes são limitados pelas exigências constantes de se apegarem ao consagrado, ao clássico, ao “certo”. Em A Dança dos Bonecos trabalhamos diferentes temperaturas de cor para as seqüências que se passam no interior e na capital do Estado. No interior havia toda uma natureza idílica, romântica e encantadora, com uma luz mais agradável e quente. Já a capital, Belo Horizonte, apresentava uma realidade dura, de concreto, com cores mais frias e acinzentadas. Este é o papel da fotografia: ajudar a contar a história através da luz e das cores. Há um plano neste filme que foi especialmente complicado de realizar e do qual gosto muito. A câmera começa perto de uma pequena queda d’água e passa a subir, mostrando o personagem Destino, que, agachado perto da correnteza, recolhe uma flor que havia sido descartada pela Iara. Continuamos a subir até que, finalmente, enquadramos Ritinha, que está caminhando sobre uma ponte, ao fundo. Além de bonito, este plano funciona como elemento narrativo ao ressaltar a ligação entre aqueles três personagens. Sempre crio planos em função da geografia que encontro nas locações. Há duas formas de se raciocinar em nosso métier: a primeira resume-se a estabelecer inicialmente a posição da câmera e, então, trazer todos os demais elementos para a frente daquele quadro pré-definido, como se a câmera fosse algo totêmico e diante da qual faremos um ritual. Neste caso, você estabelece sua mise-en-scène arbitrariamente, em função do equipamento. A segunda forma é perceber a geografia, a movimentação dos atores durante os ensaios e, a partir daí, definir as posições de câmera – e é assim que prefiro trabalhar. Sempre busquei uma narrativa orgânica, visual. Não é à toa que um dos planos que mais admiro na história do cinema é aquele da festa, em Interlúdio (Notorious, de Hitchcock, 1946), no qual a grua sai do alto de uma escadaria, em um plano geral, e desce até a chave que se encontra na mão de Ingrid Bergman, quase num plano-detalhe. Este tipo de movimentação de câmera, além de provar a genialidade de Alfred Hitchcock, é a mais pura evidência de que o cinema é intraduzível para qualquer outra linguagem, que o nó central da linguagem cinematográfica não pode ser transportado para nenhuma outra arte. Isto é algo que aprendi durante minha formação e que busquei, dentro de minhas limitações, desenvolver ao longo da carreira. Em meus roteiros, jamais indico movimentações de câmera, tamanhos de lente ou outras observações do tipo – informações que só defino depois de visitar as locações. É claro que a opção de criar os planos a partir do cenário (natural ou criado em estúdio) pode originar problemas complicados. No exemplo que citei, em A Dança dos Bonecos, a grua, pesadíssima, teve que ser montada sobre as pedras, o que não foi nada fácil. Outro elemento do qual me orgulho, em A Dança dos Bonecos, é a direção de arte. O caminhãozinho do Mr. Kapa, em particular, demonstra todo o talento que tinha o Anísio Medeiros, um grande cenógrafo que, infelizmente, já faleceu. Ainda hoje guardo as pranchas feitas por ele, durante o planejamento do caminhão – cuja realização coube ao Ganso (Paulo Henrique Pessoa), que também acrescentou vários detalhes. A concepção visual de um filme envolve infinitos elementos – muitos deles, bastante sutis, acabarão passando desapercebidos pela maioria dos espectadores. Poucas pessoas notam, por exemplo, a figura no capô do veículo, uma miniatura do próprio Mr. Kapa. Além disso, a belíssima pintura foi um trabalho em conjunto do Gilberto de Abreu e do Roberto Silva, que se inspiraram na mítica do faroeste americano e seus “vendedores de elixires e fórmulas mágicas” – tudo adaptado, é claro, à verve nordestina do Tairone Feitosa (cujo pai fora artista mambembe). Mas é claro que, como tínhamos um orçamento reduzido, procuramos aproveitar ao máximo o que encontrávamos pronto para ser usado. Para rodar a seqüência do sonho megalomaníaco do Mr. Kapa, por exemplo, utilizamos um bar localizado no bairro São Lucas, em Belo Horizonte, que reproduzia o interior de um castelo. Da mesma forma, o escritório das empresas Domina era, na realidade, o Palácio da Justiça – tanto sua fachada quanto parte do interior. A reunião vista no longa foi filmada na sala em que os desembargadores se reúnem. Já as escadarias e elevadores pertenciam ao Automóvel Clube, que, convenientemente, ficava ao lado do Palácio da Justiça. Saber utilizar o que se tem à mão é fundamental para qualquer cineasta brasileiro, desde que, obviamente, o filme não seja prejudicado por isto. Capítulo XX Vaquinhas de Manga Assim como anos mais tarde seria O Menino Maluquinho, A Dança dos Bonecos é um filme anticonsumo, apresentando o argumento básico de que a fantasia não pode ser reproduzida ou industrializada, e que, por isto, o brinquedo artesanal possui uma mágica que aquele fabricado aos milhares jamais possuirá (aliás, até mesmo a trilha sonora que acompanhava a história era, em sua grande parte, uma releitura de canções populares e de domínio público). Curiosamente, um fabricante de brinquedos paulista, Emerson Kapaz (que mais tarde se tornaria deputado e participaria da campanha de José Serra para a Presidência), foi a uma sessão de lançamento do filme, em São Paulo, interessado na possibilidade de lançar os bonecos no mercado. Quando a projeção chegou ao fim, ele se aproximou de mim e brincou: – Poxa, esse filme foi feito contra mim! É claro que ele se referia também à incrível semelhança entre seu sobrenome e o de Mr. Kapa, mas a mensagem da história não passou desapercebida por ele, que ainda disse: – Antes do início da sessão, eu estava a fim de produzir esses bonecos, mas cheguei à conclusão de que é impossível fazer isso. A própria idéia do filme inviabiliza essa possibilidade. E concluiu: – Além do mais, eu não quero virar o Jack Domina. Coincidência ou não, nessa mesma ocasião a mãe de uma garotinha que chorava desconsoladamente veio me perguntar se os bonecos seriam comercializados, pois a menina queria tê-los em casa. Fui obrigado a dizer que não: uma produção que se propõe a ridicularizar os dollies, que perdem toda a magia na industrialização, não poderia se contradizer daquela maneira. Não é à toa que o grande vilão de A Dança dos Bonecos é, na realidade, um conglomerado, uma corporação, que, com sua busca incessante pelo brinquedo mais “fascinante” e vendável, assassina a fantasia ao nos dizer como devemos brincar com seus produtos, como se estivéssemos meramente reproduzindo uma dança mecanizada e seguindo os mesmos passos de todas as outras pessoas que irão usar aquele mesmo item. O brinquedo eletrônico, automatizado, reduz imensamente a capacidade criativa da criança – e isso é gravíssimo, já que brincar é algo fundamental na descoberta do mundo, na relação das pessoas com as coisas, na invenção e na fantasia que se transfere para um boneco. Lembro-me de brincar com vaquinhas feitas com mangas espetadas em palitos de fósforo. Lembro-me de que construíamos cidadezinhas a partir de lixo e pedrinhas. É claro que ficávamos doidos para ganhar um brinquedo industrializado, mas isso não nos impedia de brincarmos com o que tínhamos à mão. Porém, não podemos ser nostálgicos; a roda da história não gira para trás. Mas perdeu-se muito em todo esse processo. A Dança dos Bonecos incluía, também, uma crítica ao meio publicitário, no qual eu ainda ganhava meu pão – afinal, o orçamento do longa foi tão pequeno que sequer me remunerei. De todo modo, durante o terceiro ato há um comercial apresentado pelo Chico Pinheiro (que na época trabalhava na filial mineira da Rede Bandeirantes) e com locução da Valéria Grillo, e através do qual fiz uma crítica aos filmes-vitrine, que funcionam apenas como um chamariz para a venda de produtos relacionados ao longa e seus astros – um tipo de produção representado nos dias de hoje pelos trabalhos da Xuxa. Nestes projetos, a vitrine supera o próprio espetáculo; o produto é mais importante do que o filme. É claro que fazer merchandising em um longa-metragem não é, por definição, algo reprovável – afinal, o cinema é um arte cara que precisa desse tipo de apoio financeiro para existir. Porém, por que não fazer isso de forma orgânica, sem agredir o espectador com verdadeiras pausas para os comerciais? Capítulo XXI Simone e o Elixir Em um longa-metragem, geralmente é uma péssima idéia apresentar um personagem importante depois da metade da projeção. Por outro lado, na vida real podemos conhecer a qualquer momento pessoas que virão a se tornar fundamentais em nossa existência. Se este livro fosse um roteiro, eu teria apresentado Simone já na página 2, nem que para isso tivesse sido obrigado a usar um flash-forward ou algo no gênero. Como é uma biografia, no entanto, só me resta ficar preso à cronologia correta. Eu a conheci em 1987, em São Gonçalo do Rio das Pedras, uma pequena cidade ao norte de Diamantina. Estávamos ambos passeando: ela com a irmã, e eu com Márcia e nossas três filhas. Era um cenário maravilhoso, com cachoeiras fabulosas. Ficamos todos hospedados na mesma pousada e, com o passar dos dias, ficamos amigos e trocamos endereços de contato. Como ela estudava Comunicação e pretendia fazer estágio em alguma produtora de vídeo dali a algum tempo, sugeri que levasse seu currículo na VT-3, empresa que eu já mantinha ao lado de meu irmão Carlos Alberto (e na qual somos sócios até hoje). A essa altura, meu casamento com Márcia já enfrentava uma forte crise, pois há muito tempo tornara-se impossível ignorar as enormes diferenças entre nossos temperamentos e interesses pessoais. Em retrospecto, percebo claramente que o Golpe de 73, no Chile, foi responsável por conferir uma grande sobrevida à nossa relação, que dificilmente teria se mantido por tanto tempo sob condições normais de existência. Com 20 dias de casados, no entanto, tornamo-nos náufragos em meio a uma situação ameaçadora, e tínhamos, como tábuas de salvação, apenas um ao outro – e, na clandestinidade, uma das últimas coisas que irão te preocupar é seu casamento, já que, ante a possibilidade de prisão e morte, todos os outros problemas se tornam menores. Da mesma forma, quando conseguimos sair do Chile, acabei sendo preso pelos militares brasileiros, o que mais uma vez contribuiu para que mantivéssemos nossa ligação. A partir de minha libertação, porém, passamos a levar uma vida normal e no cotidiano afloraram nossas diferenças culturais, de formação e de objetivos. Ainda assim, tomar a decisão de separar-se não é algo fácil. Interiormente, eu já percebia que nosso casamento estava acabado, mas o fato de termos três filhas me fazia hesitar – a referência básica da criança é ter a mãe e o pai, juntos, amando-a. Quebrar essa estrutura sem provocar o sofrimento dos filhos é quase impossível, por mais que, hoje em dia, seja grande o número de casais divorciados. Mas, depois de certo período, decidi que manter aquela situação seria algo ainda mais desgastante para todos. Saí de casa em 29 de fevereiro de 1988, um ano bissexto – o que, de certo modo, foi uma bênção. Afinal, eu não seria obrigado a me lembrar desta data todos os anos. Alguns meses depois da separação, voltei-me a encontrar com Simone, que passou a estagiar na VT-3, fazendo edição – cargo que desempenhou até começarmos a nos relacionar, quando, então, concordamos que seria melhor que ela deixasse a produtora para evitarmos desgastes em nosso namoro. Nossa relação tem sido sempre muito rica e forte, aprofundando um companheirismo também profissional que não tive em meu primeiro casamento. Dividindo interesses similares, acabamos criando a Quimera Filmes em 1990, e, desde então, Simone vem produzindo todos os meus trabalhos em longa ou curta-metragem (com exceção de O Menino Maluquinho, como explicarei posteriormente). Apesar de todo este envolvimento, nos separamos por um breve período, ainda no início da década de 90, mas logo percebemos que queríamos mesmo ficar juntos – e finalmente nos casamos, em 94 (até então, continuávamos a morar em casas separadas). Nosso primeiro trabalho juntos foi O Elixir do Pagé (lançado em 1989), realizado em meio a todo aquele processo gostoso de descoberta que o início do namoro envolve. Realizado ainda através da VT-3, o projeto foi produzido por Simone, que também atuou no curta. A idéia de realizar O Elixir do Pagé (assim mesmo, com a grafia da época) surgiu em 87, quando meu irmão Carlos Eduardo me presenteou com o livrinho que incluía aquele poema engraçadíssimo e muito bem construído – o mesmo livro visto no filme, diga-se de passagem. Além de seu tom satírico e repleto de invencionismo, o poema era bastante diferente de tudo aquilo que acostumamos a associar a Bernardo Guimarães, que normalmente é lembrado por A Escrava Isaura, O Seminarista e suas obras mais “comportadas”. O que nem todos sabem é que ele, como mineiro típico (nasceu e morreu em Ouro Preto), tinha seu lado oculto, clandestino, ao qual deu vazão através de poemas sacanas como O Elixir do Pagé e A Origem do Mênstruo (que não é tão bom quanto o primeiro). No final de 88, começamos a nos preparar para as gravações e, para isto, Simone e eu fomos a Ouro Preto e descobrimos onde o escritor estava enterrado. Aliás, assim como acontece no curta, pulamos a grade do cemitério situado atrás da Igreja de São José, que já estava meio abandonado, e lá encontramos a tumba, que em breve seria removida e transferida para outro lugar (todo o terreno estava afundando rapidamente). Eu estava ansioso para fazer algo que fosse na contramão de A Dança dos Bonecos, pois, apesar de ter feito um único trabalho voltado para crianças, passara a ser considerado como “diretor de filmes infantis”. Então, ao escrever o roteiro, criei um personagem masculino que conversa com o próprio pênis em um banheiro e, como contraponto, acrescentei três colegiais que liam o poema de Bernardo Guimarães enquanto passeavam pelo cemitério no qual ele fora sepultado – o que criou um contraste entre o obsceno e o puro (embora as meninas não fossem totalmente angelicais; ao lado daquela inocência havia um lado claramente sacana). E, como adoro fazer filmes de época sem época (como A Dança dos Bonecos e O Menino Maluquinho), acrescentamos alguns detalhes da década de 50 à ambientação, mas sem exageros, apenas insinuando um determinado período. Para recitar aquela poesia tão picante, pensei imediatamente no Paulo César Pereio, que já havia feito a locução do meu curta João Rosa. Além de termos uma relação pessoal muito boa e de termos feito vários trabalhos publicitários em parceria, nem preciso dizer que a voz e a dicção de Pereio são incomparáveis. Não haveria outro ator com a capacidade de escandir aqueles “caralhos” com tamanha perfeição: “Que tens, caralho, que pesar te oprime que assim te vejo murcho e cabisbaixo sumido entre essa basta pentelheira, mole, caindo pela perna abaixo? Nessa postura merencória e triste para trás tanto vergas o focinho, que eu cuido vais beijar, lá no traseiro, teu sórdido vizinho!” Além disso, já tínhamos um trabalho em conjunto agendado: ele iria a Belo Horizonte a fim de fazer a locução de uma campanha política que a VT-3 fora contratada para realizar. Porém, havia alguns detalhes que poderiam levá-lo a se recusar a participar do projeto, por mais amigos que fôssemos. Ele teria que aparecer nu o tempo inteiro e recitar um texto longo e complicado. Ah, sim... e teria que trabalhar de graça, pois não tínhamos como pagá-lo. Pereio aceitou na hora. Enquanto isso, as três colegiais deveriam representar as Três Graças, como se formassem um só personagem. Ao mesmo tempo, eu queria que evocassem a feminilidade universal e decidi que cada uma teria uma cor de cabelo. Como Simone já estava bastante envolvida na produção, concordamos que ela faria um dos papéis, enquanto os outros dois ficariam com a loira Mônica Magalhães (que, além de ser sua prima, ainda estava trabalhando na cenografia) e a ruiva Ana Romano (que também cuidou dos figurinos). Havia, também, a vantagem de que as três eram amigas próximas e, portanto, já tinham uma forte cumplicidade. Como nenhuma delas tinha muita experiência como atriz, nos preparamos exaustivamente fazendo ensaios e constantes leituras do texto, que era dificílimo. Ao longo desse processo, fui absorvendo vários detalhes que surgiam espontaneamente e incorporando-os ao roteiro, observando sempre a forma com que elas diziam o texto, incluindo suas facilidades e dificuldades em cada passagem – algo que ajuda muito na naturalidade da interpretação. Trabalhamos, também, o sotaque mineiro marcadíssimo que elas usariam em suas cenas, e que fez grande sucesso junto ao público, que achava aquilo uma delícia. O tema polêmico, no entanto, dificultou nossa tarefa de encontrar patrocinadores para o projeto e, como eu era sócio de uma produtora de vídeo, resolvi fazer o filme com o que tinha em mãos, gastando o mínimo possível – e descartei o uso de película. Do ponto de vista narrativo, o suporte é cada vez menos importante para o cineasta e, como eu estava bancando a produção sozinho, tinha que levar em consideração o custo de se trabalhar em película. Como em Minas Gerais o vídeo é um formato usado principalmente para a videoarte, uma escola à qual não pertenço, poderíamos dizer que eu estava contrabandeando um suporte para outro tipo de narrativa – tanto que, na época do lançamento de O Elixir do Pagé, nomes consagrados da videoarte, como Éder Santos (que adorou o curta), disseram que aquilo não era vídeo, mas sim cinema. Particularmente, não gosto muito dessa atitude de botânico, de classificar as espécies dessa maneira – e, justamente por isso, inscrevi O Elixir do Pagé na sétima edição do Festival Videobrasil, o mais importante do país, e ele foi premiado. Ainda assim, evito chamá-lo de “vídeo”, justamente para evitar generalizações do tipo este suporte serve para isto; aquele, para aquilo. E, atualmente, essas fronteiras tornaram-se ainda menos definidas, já que, com a popularização do digital, podemos captar em DV e transferir o resultado para película – uma opção que não existia na época (se existisse, eu a teria aproveitado). Da mesma maneira, montei uma equipe formada principalmente por profissionais de cinema, como o fotógrafo Gilberto Otero, que tinha feito câmera em A Dança dos Bonecos. Aliás, a fotografia é o aspecto mais complicado ao se trabalhar com o vídeo – e, para dificultar ainda mais, em 88 ainda éramos obrigados a utilizar o formato U-Matic, que apresentava muito mais complicações do que seu sucessor, o Betacam. Mas Gilberto, sempre competente, conseguiu obter um belíssimo resultado ao equilibrar cuidadosamente os tons, a luz e as sombras. De modo geral, há uma diferença básica de formação e prática entre os fotógrafos. Aqueles que se formam em vídeo, têm o hábito de ficar com o monitor ligado, observando através deste as modificações que vão fazendo na luz. Já os profissionais de cinema equilibram a luz através do fotômetro e se preocupam em antecipar, com sua experiência, o resultado que só será visto depois que a película retornar do laboratório. Além disso, são obrigados a possuir um grande conhecimento técnico, incluindo as opções de alteração (de brilho, cores, etc) que cada negativo, com seu range específico, pode oferecer. Por outro lado, embora tenha ignorado diferenças teóricas e práticas entre película e vídeo, na edição decidi realizar algumas brincadeiras que só seriam possíveis neste último formato, como ao inserir letreiros e incluir rewinds ao longo da narrativa. Caso fosse fazer, em filme, letreiros e inserts como aqueles vistos em O Elixir do Pagé, teria sido obrigado a desembolsar uma fortuna, mas numa ilha de edição aqueles eram procedimentos banais – e minha experiência em manejar estes recursos em meus trabalhos publicitários facilitou o processo. Mesmo assim foi uma edição trabalhosa, que exigiu grande refinamento. Embora tivesse um roteiro bem marcado, este não incluía posições específicas de câmera, pois, como disse anteriormente, prefiro defini-las já no set. Além disso, quando parto para a montagem, não quero simplesmente estampar figurinhas ao longo do roteiro de forma inorgânica. É preciso lembrar que o cinema não se resume a ilustrar um texto com imagens; o encadeamento dessas imagens é uma arte em si. A partir do momento em que filmamos um roteiro, ele deixa de ser algo literário e desaparece. É como Truffaut disse: “A filmagem vai contra o roteiro, assim como a montagem vai contra a filmagem.” O Elixir do Pagé envolveu muita criação durante a edição, tornando-se uma narrativa híbrida, que segue o cinema clássico, mas que conta com várias intervenções típicas do vídeo. Filmamos tudo em apenas dois dias: um para as cenas com as garotas e outro para o monólogo do Pereio. Geralmente sou rápido para filmar, pois, como esta é uma etapa muito cara, me preparo bastante para evitar desperdício de tempo. Para montarmos o banheiro no qual o personagem masculino se encontrava, queríamos um lugar cujo piso fosse feito de cerâmica hidráulica e que, ao mesmo tempo, fosse suficientemente espaçoso para permitir a colocação dos equipamentos e um bom recuo de câmera. Finalmente, encontramos o espaço ideal em um colégio de freiras de Ouro Preto. O problema é que as freiras não podiam saber do que se tratava o filme, pois duvido que fossem gostar de ouvir a voz poderosa do Pereio recitando: “Um cabaço! Que era este o único esforço, única empresa digna de teus brios; porque surradas conas e punhetas são ilusões, são petas, só dignas de caralhos doentios. (...) Sus, ó caralho meu, não desanimes, que ainda novos combates e vitórias e mil brilhantes glórias a ti reserva o fornicante Marte, que tudo vencer pode co’engenho e arte.” Como iríamos filmar durante o fim de semana, quando o colégio não estaria funcionando, a tarefa se tornou mais fácil. Mas, por precaução, cercamos cuidadosamente o espaço reservado para o cenário a fim de evitar que elas soubessem o que estávamos fazendo ali (e, embora os créditos incluam agradecimentos especiais às freiras, acho que elas nunca descobriram que um homem pelado caminhou pelo estabelecimento enquanto conversava com o próprio pênis). O cenário, aliás, é repleto de detalhes, pois, para montar aquele banheiro, fizemos o empréstimo de dezenas de objetos que encontrávamos nas casas de amigos e conhecidos de Ouro Preto: móveis, vidros e até mesmo uma banheira imensa. Em certo momento, inclusive, Simone me disse que tinha visto uma garça muito interessante na casa do Ângelo Oswaldo, e que ela ficaria muito legal no banheiro. Como eu conhecia o Ângelo, fui até sua casa pela manhã bem cedo e bati na porta. Ele, que estava em campanha para a Prefeitura da cidade, atendeu com a cara toda amassada, pois tinha ido dormir muito tarde. Expliquei que queria a garça emprestada. – Garça? Que garça? – A garça! – Que garça, meu Deus? Achei que o sono o deixara meio devagar e ele, por sua vez, devia estar me considerando um louco por invadir sua casa à procura de uma “garça”. Finalmente, depois de muita procura (eu insistia em dizer que Simone vira uma garça, talvez de porcelana, em algum lugar da residência), encontramos o objeto: um banquinho fino, de madeira, cujo formato lembrava, de fato, uma garça. Ênfase na palavra “lembrava”. Ele acabou me emprestando o tal banco e voltou para a cama. Quando ainda estávamos em Ouro Preto, rodando o curta, recebemos a notícia de que Joaquim Pedro de Andrade havia falecido. Fiquei muito chateado, pois, de toda a turma do Cinema Novo, era o Joaquim com quem eu mais me identificava pessoalmente, por sermos mineiros e por sua formação e postura. Sempre fui louco por Macunaíma (1969) e acho que ele teria adorado O Elixir do Pagé, que tem muito a ver com Guerra Conjugal (1975) e com a trama da melancia em Contos Eróticos (1977). Ele tinha esse lado mineiro meio sacana e creio que se identificaria muito com o curta. Por isso dediquei o filme a ele. Em 89, fui convidado para o júri do Festival de Gramado e levei o vídeo, já finalizado, em minha bagagem. Durante o evento, convidei algumas pessoas para vê-lo e, antes que me desse conta, ele já estava sendo exibido em sessões durante o próprio Festival – e o Carlão Reichenbach queria até mesmo dar um prêmio para o filme, embora Gramado nem aceitasse a inscrição de vídeos. A partir disso, comecei a receber muitos pedidos de cópias e, nesse sentido, o formato ajudou na divulgação do curta, já que podíamos duplicá-lo facilmente na ilha de edição. Além disso, quando o canal pago Multishow surgiu, o Wilson Cunha, que vira o filme em Gramado, propôs que o exibíssemos em algumas sessões à meia-noite, o que trouxe reconhecimento ainda maior para o trabalho. Ao mesmo tempo, Carlinhos Ávila, filho do Afonso Ávila, enviou uma cópia para o Haroldo de Campos, que era amigo de sua família em função de sua aproximação com a poesia concretista. Com isso, o Haroldo promoveu o lançamento do filme em São Paulo, na Cinemateca, incluindo uma mesa-redonda que contou com a participação do professor Boris Schneiderman. Já em Belo Horizonte fizemos uma festa lindíssima no Museu de Arte Moderna da Pampulha, durante a qual vendíamos cópias do filme, que vinham acompanhadas do livrinho com o poema e as ilustrações feitas pelo Eri Gomes. E, como brinde, as pessoas ganhavam vidrinhos contendo um “elixir” violeta, com rótulo e tudo mais, que a Simone preparou. Foi uma curtição. Até hoje, O Elixir do Pagé é muito procurado e tenho versões dele em inglês, francês e espanhol. Provavelmente o incluiremos como extra no DVD de Amor & Cia., com o qual se parece em tom e clima. Creio que Bernardo Guimarães teria ficado feliz com o vídeo, pois O Elixir do Pagé nunca constou de suas antologias, apesar de ser um trabalho primoroso. No dia em que terminamos de filmar no cemitério, havia uma luzinha impressionante na efígie localizada em seu túmulo – o que, inclusive, nos deu a idéia de fazer a brincadeira que encerra o filme, com o desaparecimento daquela imagem, como se o próprio Bernardo houvesse escapado dali. Fazer O Elixir do Pagé representou um aprendizado enorme, pois foi uma experiência feita com liberdade, sem amarras e com meus próprios recursos. Foi uma provocação. Ou, como dito nos créditos, uma molecagem de todos os envolvidos. Capítulo XXII Filmografia Imaginária O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes desenvolveu, em certo momento de sua brilhante carreira, um conceito muito importante para os cineastas brasileiros: o da “filmografia imaginária”. Como no Brasil é praticamente impossível manter-se sempre em atividade, pois cada novo projeto exige longos períodos de gestação até ser viabilizado financeiramente, Paulo Emílio pregava que a filmografia de cada profissional deveria incluir, também, as idéias e roteiros que não saíram do papel e projetos que, em algum momento, deixaram de existir. Projetos como Era uma Vez em Brasília, que tentei realizar no início da década de 90 e que representou meu primeiro esforço de falar sobre o período da ditadura brasileira e minha militância política. O roteiro abordava a relação de um casal de militantes e foi escrito (a partir de um argumento que concebi) pelo argentino Alfredo Oroz, um ótimo profissional que fora responsável pela adaptação de A Hora da Estrela (1985), ao lado de Suzana Amaral, e que morreria de AIDS poucos anos depois (mas não antes de roteirizar outro longa ambientado naquele período, Lamarca, de 1994). Depois de apresentarmos o projeto na Embrafilme, ainda em 1989, recebemos a primeira parcela da verba aprovada pela estatal, o que foi suficiente para que o Tarcísio Vidigal o colocasse em movimento, produzindo material gráfico, enquanto eu acertava as participações de Felipe Camargo (que encontrava-se no auge do sucesso, graças ao sucesso das novelas Roda de Fogo e Mandala, da Rede Globo) e Ana Beatriz Nogueira, que fora premiada pouco tempo antes com o Urso de Prata, em Berlim, e com o Candango, em Brasília, por seu magnífico desempenho em Vera, de 1987 – justamente o ano em que A Dança dos Bonecos venceu em quatro categorias, incluindo o Prêmio Especial do Júri. Depois de confirmarmos as participações de Felipe e Ana Beatriz em Era uma Vez em Brasília, marcamos uma entrevista coletiva em Belo Horizonte, na qual lançamos o projeto oficialmente. Foi quando Fernando Collor, com uma medida assinada pelo cineasta Ipojuca Pontes, deu fim à Embrafilme, paralisando toda a produção nacional por vários anos. Foi uma época frustrante para todos os profissionais do meio. Durante dois ou três anos, Tarcísio e eu tentamos viabilizar Era uma Vez em Brasília, mas finalmente percebemos que seria impossível, até mesmo em função de seu tema (havíamos saído há pouco da ditadura), e decidimos abandoná-lo. De certa forma, foi melhor, pois agora que estou preparando Batismo de Sangue, meu próximo longa, percebo que não teria o distanciamento crítico necessário para dirigir um filme tão próximo de minhas próprias experiências – ao contrário deste novo projeto, que, por ser narrado a partir da ótica dos dominicanos, me permitirá assumir uma postura menos complacente e mais crítica. E voltamos, dessa maneira, à inteligência do conceito de “filmografia imaginária” criado por Paulo Emílio. Afinal, Era uma Vez em Brasília pode até não ter saído do papel, mas foi fundamental para meu crescimento profissional. Capítulo XXIII Conhecendo Barcelona Nesse mesmo período, entre 1989 e 1990, realizei o documentário Um Olhar sobre Barcelona, que vendi para a TV Cultura de São Paulo. Algum tempo antes, eu havia sido convidado para um festival de cinema em Sofia, na Bulgária, que seria encerrado com uma sessão especial de A Dança dos Bonecos. Lá chegando, fui apresentado ao diretor de um festival português de filmes voltados para a infância e a juventude, que me informou que A Dança... havia vencido um prêmio naquele outro evento – uma surpresa, pois a Embrafilme sequer havia me informado de que o longa seria exibido em Portugal. Muito simpático, o sujeito me convidou para visitar Lisboa depois de deixar a Bulgária, aproveitando a oportunidade para receber o tal prêmio. Nessa época, meu amigo Lício Marcos, que fizera o som de alguns de meus trabalhos, já morava em Barcelona e combinei com ele que o visitaria depois de sair de Portugal. Fiquei dez dias em sua casa e visitei o principal da cidade: os projetos concebidos por Antoni Gaudí (incluindo, obviamente, a Sagrada Família), as ramblas, o museu Picasso, entre outros. Cheguei até mesmo a visitar o apartamento, situado no espantoso edifício La Pedrera, em que Glauber Rocha morou durante certo tempo. Barcelona estava se preparando para as Olimpíadas de 92 e, por essa razão, estava tomada por equipes de cinema e de televisão de todo o mundo. Assim, quando retornei ao Brasil, decidi montar um projeto sobre a cidade para a televisão e o apresentei para a TV Cultura de São Paulo, que o aprovou. A idéia central do documentário era analisar a vida cultural de Barcelona, uma cidade em que Pablo Picasso e Miró viveram e na qual a arte estava nas ruas. A partir daí, consegui uma série de apoios: passagens de avião, ajuda de custo do governo espanhol (que também colocou um carro à nossa disposição) e até mesmo credenciais oficiais para que pudéssemos filmar no interior dos museus – algo dificílimo de se obter. Enquanto isso, Regina Martins, esposa do Lício e figurinista com quem eu também trabalhara em A Dança dos Bonecos, passou a me ajudar com a pesquisa necessária, chegando a descobrir uma série de figuras que renderiam entrevistas interessantes para o documentário. Além disso, contamos bastante com a sorte: o cantor Joan Manuel Serrat, que nascera em Barcelona e era famoso em toda a Espanha, iria cantar na cidade justamente no período em que filmamos – e, graças a essa coincidência, conseguimos agendar uma conversa. Também entrevistei um cineasta que adoro, Bigas Luna, que nos apresentou uma teoria fabulosa sobre o povo da região: – Minha relação pessoal com Barcelona é muito boa, porque gosto muito de comer. Creio que nós, do norte do Mediterrâneo, somos uma gente de cultura bucal. Para nós, a boca é algo importante: gostamos de comer, de falar e de fazer sexo oral. Barcelona tem um astral impressionante. As ramblas, então, são maravilhosas. Ali acontece de tudo, como o próprio filme comprova ao mostrar uma mulher que, ao perceber que éramos do Brasil, começou a tirar a roupa e a cantar Noite dos Mascarados – outro momento espontâneo que deixou o documentário mais interessante; não pela nudez, mas pelo que o ato da moça representava. Hoje a cidade está muito transformada, pois o investimento colossal feito na época das Olimpíadas permitiu a realização de uma série de obras que mudaram o visual de diversos lugares, como La Barceloneta, bairro retratado no curta. O mais impressionante, no entanto, é que a cidade cresce se preservando. Os catalães perceberam que poderiam ganhar dinheiro através da conservação de sua história – e como Barcelona tem 2 mil anos, oferece atrações turísticas imperdíveis, como um bairro gótico espetacular. Aliás, é possível ver a passagem do tempo através de sua própria geografia; há a época gótica e, logo em seguida, o salto com o modernismo de Gaudí e a expansão da cidade para fora das muralhas, terminando com sua condição atual, hipermoderna. Essa inteligência no planejamento de Barcelona serviu para aumentar minha vontade de trazer estas informações para cá, para que as pessoas vissem aquilo. Mas nem tudo era edificante, com o perdão do trocadilho involuntário: Barcelona também é uma cidade, como tantas outras, em que há abundância de drogas, do haxixe à heroína. A decadência física provocada pela heroína, em particular, torna seus usuários fáceis de se identificar e, em vários lugares, víamos grupos de viciados com suas olheiras profundas e rostos que pareciam ser feitos de cera. Certa noite, eu estava em uma das fantásticas bancas de revistas espalhadas pelas ramblas, quando notei que uma garota ao meu lado balançava de forma estranha, pouco natural. Olhei para baixo e vi que sua calça estava cortada na altura da coxa e que havia uma seringa pendurada em sua perna: ela tinha se picado na veia femoral e, quando o “barato” começou, ela nem se preocupou em retirar a seringa. Os heroinômanos são verdadeiros fantasmas, uns mortos-vivos. (Particularmente, tive poucas experiências com drogas: fumei maconha algumas vezes no Brasil e no Chile, quando estava na clandestinidade, e experimentei cocaína uma vez, nos anos 80. É uma droga terrível, artificial, falsa. Fiquei numa falação desenfreada, pois ela te faz sentir inchado, infla seu ego. As pessoas que usam cocaína falam sem parar, sempre com muita ênfase, certas de que dizem verdades inquestionáveis. É chatíssimo. Hoje em dia, fumo apenas charutos.) Outra droga fartamente comercializada nas ramblas é o haxixe, uma pasta escura (que os viciados chamam de chocolate) feita com a flor da cannabis sativa e que é condensada em barrinhas que podem ser fumadas. O tráfico de haxixe envolve a participação de muitos marroquinos que moram em Barcelona – e lembro-me de que, certo dia, estávamos na Plaza Real entrevistando um marroquino quando, de repente, uma senhora espanhola se aproximou aos berros, acusando o sujeito de ser traficante. Porém, ao contrário do que eu faria em Pequenas Estórias, anos depois, minha intenção não era conferir um viés sociológico a Um Olhar sobre Barcelona, abordando seus problemas. Não que eu quisesse apenas fazer um cartão-postal da cidade; queria apenas concentrar-me em seus aspectos culturais. A equipe que saiu do Brasil rumo a Barcelona era reduzidíssima: fomos eu, Simone, Gilberto Otero (diretor de fotografia) e um personagem chamado Ricardo Gesta, que se tornou protagonista de um incidente que nos deixou muito abalados. Ele havia trabalhado como assistente do Gilberto em algumas produções e, quando convidei este último para fazer a fotografia do documentário, Ricardo me procurou e se ofereceu para ser assistente de câmera e fazer o som. E acrescentou: – Eu só quero a passagem de ida. Não quero mais voltar para este país. Expliquei que as passagens haviam sido fornecidas pela VARIG, como apoio ao projeto, e que eu já tinha recebido todas, quatro de ida e quatro de volta. Ricardo insistiu, dizendo que não queria receber salário algum por seu trabalho, apenas a passagem – do que discordei, insistindo em remunerá-lo (até para ter o direito de cobrar um serviço bem feito). As filmagens duraram um mês e, em seguida, voltamos todos ao Brasil, com exceção de Ricardo. Estávamos no início de 90. Em 1992, recebi uma ligação do Gilberto, que, por sua vez, acabara de conversar com o Lício, que lhe telefonara de Barcelona. Ricardo tinha sido encontrado morto na cama de seu pequeno apartamento. Tinha 32 anos de idade. Sempre sinto um frio no estômago quando me lembro de sua determinação em não pegar a passagem de volta ao Brasil. No início, até pensamos que ele poderia ter sofrido uma overdose – algo que, aparentemente, a autópsia descartou. Ele simplesmente morreu. Boa parte de Um Olhar sobre Barcelona é dedicada às obras de Gaudí. Não havia como nem por que evitar isso. Ele era um gênio impressionante. Quando projetava um prédio, como La Pedrera, não se limitava a criar a concepção do edifício, mas se preocupava com os móveis, com as portas e suas maçanetas. E abominava a linha reta: seus projetos não possuíam quinas nem eram realizados com o auxílio de esquadro – o que não quer dizer que ele não fosse refinado e extremamente meticuloso. Mas Gaudí apreciava a individualidade e, por isso, evitava criar moldes rigorosos que seus subordinados pudessem copiar à risca. Quando criava um gradil, por exemplo, ensinava aos seus empregados o básico sobre a peça e, em seguida, os libertava: Agora faça uma como a minha, mas do seu jeito. E pensar que a burguesia catalã bancou suas loucuras, como o Parque Guell (assim batizado em função do grande mecenas de Gaudí, Eusebi Guell), com suas colunas retorcidas e seu visual que parece ter saído de Alice no país das Maravilhas. A arquitetura de Gaudí era poética e surpreendente: a Casa Batlló, situada em frente a La Pedrera, chega a parecer comestível. Por essas razões, fiz questão de incluir o depoimento de um catedrático especializado em Gaudí no documentário – e é ele quem esclarece parte do mistério das obras do artista ao dizer: – Gaudí não reproduzia as formas geométricas, mas sim aquelas que encontrava na natureza. Daí vinha o caráter orgânico de sua arquitetura. Realizar esse filme foi algo que me deu a oportunidade de enriquecer culturalmente, de descobrir o jovem Picasso e as inspirações de Gaudí. Aliás, dirigir documentários é uma maneira sempre interessante de aprender coisas novas, já que implica pesquisar com profundidade o tema a ser abordado. Ganhamos pouquíssimo dinheiro, é verdade. Mas crescemos como indivíduos. Capítulo XXIV Bonecos contra a AIDS No final da década de 80 e início da de 90, a John Hopkins University, uma das instituições de pesquisa sobre a AIDS mais conceituadas do mundo, passou a fazer várias intervenções didáticas sobre a doença na América Latina, com o objetivo de diminuir a expansão da epidemia, ao esclarecer as dúvidas mais comuns das populações carentes. No Brasil, uma das parceiras da John Hopkins foi a Universidade Federal de Minas Gerais, com a qual os americanos decidiram realizar um trabalho voltado para os meninos de rua. Na época, o dr. Dirceu Greco coordenava todas as iniciativas da UFMG com relação à doença e, acreditando que eu poderia contribuir com o novo projeto, decidiu me convidar para uma reunião com as médicas americanas que haviam viajado para Belo Horizonte a fim de discutir a questão. Quando me explicaram a idéia de criar um vídeo didático voltado para as crianças, propus que fizéssemos algo envolvendo ficção, pois sempre acreditei que a melhor forma de educar é através da emoção, e não simplesmente atirando um monte de informações frias sobre o público infantil. Sugeri, então, que criássemos uma história e produzíssemos o vídeo a partir daí – e a idéia não só foi aceita, como recebi total liberdade para criar esta premissa. Meu primeiro passo foi me reunir com grupos de meninos de rua e ouvir as histórias que eles tinham para contar. Percebi, também, que eles teriam certa dificuldade para assimilar as informações que precisávamos passar e confirmei algo de que já desconfiava: produzir um filme convencional, com atores de carne e osso, não seria a melhor opção. Eu precisava de algo que criasse uma ligação com as crianças, que permitisse uma identificação entre elas e os personagens da história. Foi então que me lembrei das reações que observei durante as exibições de A Dança dos Bonecos, anos antes. Ora, a criança é um ser que se sabe frágil e que reconhece a necessidade de ter a proteção de um adulto. Ao mesmo tempo, ela sempre desenvolve um grande carinho por seus bonecos, que são ainda mais frágeis do que ela e os quais ela se encarrega de proteger. Por mais brutalizados que fossem os meninos de rua para os quais eu deveria realizar o vídeo, eles continuavam a ser crianças. Assim, concluí que utilizar bonecos para transmitir as informações seria um meio eficaz. A partir deste conceito, escrevi o roteiro. Como a John Hopkins exigia que o projeto fosse constantemente pré-testado, reuni os meninos mais uma vez e, com a ajuda de atores, encenei a história para eles. À medida que observava suas reações, ia efetuando alterações que facilitassem a compreensão do enredo e dos dados médicos. Além disso, durante as conversas que ocorriam após as leituras, absorvi gírias e outras características do linguajar daquelas crianças, sempre com o propósito de tornar o filme cada vez mais acessível a elas. Apesar de estar confiante na linguagem que escolhera, eu não tinha a menor intenção de fazer algo teatral, artificial. E como era importante levar os personagens para a realidade do público-alvo, tomei a decisão de usar as ruas da cidade como cenário – o que, obviamente, apresentou enormes dificuldades. Na realidade, fui obrigado a rodar o filme duas vezes. Na primeira etapa, gravei apenas as ruas, que serviriam de “fundo”. É claro que já ia decupando tudo; rodava um plano geral, depois um quadro mais fechado, e assim em diante. Tudo sem os bonecos, que só entraram na segunda etapa. Com a base pronta, fomos para o estúdio e filmamos os personagens em chroma-key, acrescentando-os aos planos previamente gravados. Isto enriqueceu o projeto, já que tínhamos um fundo sempre em movimento, com carros e pedestres passando e conferindo realismo à história. Como eu já sabia que o processo levaria um bom tempo (as filmagens demoraram um mês), nem cheguei a cogitar a possibilidade de convidar o Giramundo (Álvaro Apocalypse, em particular) para participar do projeto, pois a agenda sempre cheia do grupo certamente impediria que eles aceitassem o convite. Por outro lado, eu também queria trabalhar com uma equipe mais jovem e, assim, chamei o Paulinho Polika (que trabalhara como manipulador em A Dança dos Bonecos) para criar os personagens e montar uma nova turma de profissionais que pudesse dar vida a eles. Como a AIDS ainda era um tabu, o filme, que recebeu o título de Vida de Rua, começou a ser muito requisitado por colégios de classe média e acabou sendo exibido também na TVE do Rio, ultrapassando, e muito, seus objetivos iniciais. Porém, além da satisfação evidente de criar um média-metragem que desempenharia um importante papel social, a experiência de realizar o Vida de Rua me ensinou bastante sobre o processo de pré-testes, que é fundamental para trazer o cineasta de volta à realidade, mostrando que nem tudo que ele cria é compreendido magicamente por todos. Os americanos são especialistas nesta prática, pois estão acostumados a pré-testar de vídeos publicitários a longas-metragens, passando por trailers e até mesmo embalagens de produtos. Já no Brasil, infelizmente, não temos a mesma facilidade de agir desta maneira e, assim, Vida de Rua representou uma experiência rara e educativa. Capítulo XXV Maluquinho Drummondiano O Menino Maluquinho foi um projeto que caiu em meu colo graças ao meu trabalho em A Dança dos Bonecos. Quando Tarcísio Vidigal me convidou para assumir a direção do filme, eu já havia deixado o Grupo Novo de Cinema, no qual éramos sócios, por razões que explicarei mais adiante. Interessado em levar o personagem para o cinema há um bom tempo, Tarcísio sugeriu meu nome para Ziraldo, que aceitou com entusiasmo. O convite me deixou dividido. Por um lado, sempre gostei muito do Maluquinho e sabia que o filme permitiria que eu falasse um pouco de minha infância em Belo Horizonte e das brincadeiras nas ruas, como andar de carrinho-de-rolimã e jogar bente-altas; por outro, eu temia ficar marcado como diretor de filmes infantis. Minha admiração pelo Maluquinho levou a melhor. Sempre achei que o personagem possuía um espírito meio drummondiano, uma forma bastante particular de enxergar o mundo. Além disso, levá-lo para as telas representava um desafio interessante. Afinal, o fantástico livro de Ziraldo não conta uma história, e sim apresenta um personagem. Teríamos, portanto, que criar um roteiro partindo apenas da personalidade de seu protagonista. Não foi uma tarefa fácil. Inicialmente, convidamos o Alcione Araújo, que no cinema havia se dedicado a trabalhos mais pesados, como Nunca Fomos tão Felizes (1984) e Faca de Dois Gumes (1989). Esta primeira versão do roteiro, cujo argumento também fora criado pelo Alcione, calcava-se principalmente no universo das tirinhas de jornal, que não representavam a visão que eu tinha do filme. Desde o início, acreditei que o longa deveria contar com o espírito poético do livro, embora, é claro, também incluísse a turma do Maluquinho, tão presente nas tiras. Como Ziraldo também não havia gostado do roteiro, fizemos uma série de reuniões no Rio e, depois de algum tempo, Alcione decidiu se afastar do processo. Juntos, Ziraldo e eu criamos outro argumento e, então, convidamos a Maria Gessy (roteirista da TVE do Rio) para escrever um novo tratamento. Depois que ela entregou sua versão, Ziraldo apresentou novas idéias e, finalmente, escrevi o roteiro final, acrescentando alguns temas que eram importantes para mim: a morte do vovô Passarinho, por exemplo, permitiu que eu trabalhasse meus próprios sentimentos com relação à perda de papai, que havia falecido pouco antes. Ao mesmo tempo, como meus avôs já haviam morrido quando nasci, tive a chance de idealizar um vovôzão perfeito – um com o qual eu sonhara na infância. E minhas viagens para São João del Rei durante as férias escolares foram transformadas na viagem que a turma do Maluquinho faz para o sítio do avô. Outro aspecto pessoal que transferi de certa maneira para o filme foi meu divórcio. No livro, a separação dos pais do Maluquinho era insinuada, mas não totalmente desenvolvida. Assim, projetei naquele casal as dificuldades que vivi com relação às minhas três filhas. Como explicar para uma criança de 5 anos (idade da mais nova, na época) que seus pais deixaram de se amar, quando, na realidade, ela ainda nem descobriu o que é o amor entre um homem e uma mulher? Nesta idade, elas enxergam os pais como uma entidade única que zela por sua segurança – e perceber que isto vai se romper pode fragilizá-las imensamente. Enquanto isso, eu mesmo fui obrigado a enfrentar o fato de que perderia o convívio diário com minhas filhas, o que era terrível. Tudo isso serviu, no filme, para conferir maior dimensão ao Maluquinho, que lida muito bem com as perdas, incorporando-as à sua própria vida – e isso é muito bonito, pois são essas provações que nos fazem crescer. O personagem também mostrou para o público infantil que não é preciso esconder os sentimentos: o Maluquinho chora, se tranca no quarto e chega até mesmo a manifestar sua dor através de um poeminha. Outra decisão importante que tomei foi a de ambientar a história nos anos 60, pois isso me permitiria justamente apresentar uma realidade diferente para as crianças de hoje. Em vez dos jogos de computadores, tínhamos a pelada de rua, o pião e as bolinhas de gude. Em função disso, enfrentei alguma resistência por parte do Tarcísio, que achava (corretamente) que teríamos maiores possibilidades de explorar o merchandising caso o filme se passasse na atualidade: poderíamos “vender” videogames, computadores e toda essa parafernália eletrônica que os meninos usam. Mas isso ia radicalmente contra minhas intenções. Não que eu quisesse convencer as crianças modernas a abandonar o Nintendo e a brincar de pau-de-bosta (uma brincadeira vista no filme e que se resumia a levar alguma vítima desavisada a segurar em um pedaço de pau que estivesse sujo de cocô de cachorro). Eu queria apenas mostrar que havia uma outra forma de se divertir e que a interação com outras crianças era mais importante do que interagir apenas com uma máquina. Ainda assim, evitei ao máximo “datar” o filme. Usamos os anos 60 como referência, é verdade, mas trabalhamos de forma a assegurar que o momento em que a história se passa não importasse de fato. Fundamental era o sentimento. Capítulo XXVI Procurando o Maluquinho A seleção do elenco de O Menino Maluquinho foi um processo espantoso. Abrimos testes no Rio de Janeiro, em São Paulo e Belo Horizonte e, num único dia, apareceram 1,5 mil crianças em BH e mais de 3 mil na capital paulista. Todos candidatos a personagem-título, já que decidimos escalar o Maluquinho em primeiro lugar (é óbvio que, a partir dos testes, começamos a separar garotos que se encaixariam melhor em outros papéis). Apareciam meninos de todos os jeitos: loiros, orientais, negros, altos, baixos, gordinhos, magrinhos... Todas as famílias acreditavam ter o Maluquinho ideal. Curiosamente, ninguém parecia assumir ter um Bocão, um Herman ou um Junim em casa. Gravamos todos aqueles milhares de testes em vídeo. O teste, que eu mesmo bolei, dividia-se em três partes. Depois de ler um pequeno texto que escrevi e que falava que fazer um filme é, na realidade, uma grande brincadeira, mas uma brincadeira séria (o que o deixava mais à vontade), cada candidato deveria memorizar um pequeno texto retirado do roteiro. O objetivo era avaliar a facilidade com que cada criança decorava o monólogo e como dizia as falas, se com naturalidade ou mecanicamente. Logo em seguida, pedíamos que os garotos improvisassem diante das câmeras, contando um caso, uma piada ou cantando – o que nos permitia estudar a espontaneidade de cada um. Finalmente, levávamos os meninos para um set parecido com o que eles encontrariam durante as filmagens, incluindo luzes e várias pessoas nos bastidores. Queríamos ver como eles reagiriam nestas circunstâncias. Vários candidatos, que pareciam ideais nas duas etapas anteriores, acabavam se encolhendo frente a uma situação que seriam obrigados a enfrentar mais tarde, constrangendo-se diante da equipe e dos equipamentos. Não acompanhei todos os testes, é claro, mas posso dizer que assisti a praticamente todas as fitas, embora recebesse separadamente aquelas que eram supostamente as “melhores”. O Menino Maluquinho apareceu em São Paulo. Certo dia, Simone, que acompanhava os testes, me telefonou dizendo que um garoto muito legal tinha aparecido, e que, apesar de ter feito alguns comerciais, era desconhecido do grande público – exatamente como queríamos (ao contrário de outro jovem ator que, embora tivesse se saído muito bem nos testes, era famoso por fazer o Castelo Rá-Tim-Bum). Quando vi a fita, constatei que Simone tinha razão: o menino era fantástico. Samuel chegara mascando chicletes e, quando pediram que ele o tirasse da boca para dizer o texto, ele simplesmente o enfiou na camisa, passando o restante do teste tentando desgrudá-lo dali, sem perder o rebolado. Selecionei seis finalistas e os levei para Belo Horizonte, onde fizemos uma nova bateria de testes. Nesta fase, pedi que fossem com suas mães ou com a pessoa que iria acompanhá-los durante as filmagens, caso fossem contratados. Minha intenção era avaliar não apenas os garotos, mas também os adultos e a relação que estes manteriam comigo, com a equipe e com os jovens atores. Ziraldo estava na África quando decidimos escalar o Samuel, mas, quando retornou da viagem, ficou empolgadíssimo com a escolha, dizendo que o menino tinha o rosto e a vivacidade do Maluquinho. E o tempo comprovou que estávamos certos. Com o Maluquinho já selecionado, passamos a nos preocupar com o restante da turma e retomamos os testes. João Romeu Filho, que fez o Bocão, surgiu através dos testes no Rio de Janeiro, enquanto a maior parte dos demais foi escolhida entre os candidatos mineiros. Como (para variar) contávamos com um orçamento apertado, queríamos concentrar a produção em Belo Horizonte. Já para os papéis da mãe e do pai do Maluquinho, as coisas foram mais fáceis. Simplesmente convidei Patrícia Pillar e Roberto Bomtempo, dois profissionais de quem gosto muito, e ambos aceitaram rapidamente. Por outro lado, definir quem interpretaria o vovô Passarinho foi algo mais delicado, pois era um personagem muito forte. Depois de algum tempo, chegamos ao nome de Luiz Carlos Arutin, que acabara de fazer uma novela na Globo e se revelou ideal para o papel. Aos poucos, fomos fechando o resto do elenco. Edir Castro, que pertencera ao grupo As Frenéticas, estava ansiosa para fazer cinema e topou fazer um teste, que adorei (mais tarde, ela voltaria a trabalhar comigo em Uma Onda no Ar, no qual viveu a mãe do protagonista). E, embora também tenhamos enfrentado algumas dificuldades para encontrar a atriz ideal para interpretar a avó do Maluquinho, fomos felizes ao escalar Hilda Rebello (mãe do diretor de novelas Jorge Fernando), que se mostrou entusiasmada com o papel. O filme inclui, ainda, uma ponta do Othon Bastos, que aparece como um padre no final da projeção. Sempre admirei o Othon, um autêntico ator de cinema, e quando o encontrei durante o Festival de Gramado, pouco antes do início das filmagens, não pude resistir e perguntei se ele toparia fazer aquela pequena participação. Como aquela era uma época em que a produção cinematográfica era praticamente inexistente no país, ele estava com saudades dos sets e aceitou o convite com grande prazer. Por fim, trouxemos outro grande nome do nosso cinema para fazer a narração: Paulo José. O curioso é que, em retrospecto, creio que esta era desnecessária, já que não complementa em nada a história contada pelo filme (embora a locução do Paulo tenha ficado belíssima). Acho que ela acabou funcionando como um tributo ao livro, e só. Capítulo XXVII Dirigindo Crianças Jamais gostei de repetir takes muitas vezes. Como sempre me concentro bastante no trabalho, creio que isto se faz desnecessário, pois as filmagens acabaram rendendo bastante. Além disso, como gosto de manter o set sempre tranqüilo, isso contribui para a eficiência de todos. Ao contrário de alguns outros diretores, que parecem acreditar que a pressão constante é a melhor forma de manter tudo funcionando, detesto gritar e tampouco aceito que gritem perto de mim durante as filmagens. Não é aos berros que se impõe o respeito; prefiro me fazer entender e respeitar de outra maneira. Por outro lado, julgo inadmissível um set desorganizado, frouxo, no qual nunca se sabe por que todos estão parados. Sempre quero saber por que não estou rodando. Afinal, o que estou esperando? E quem está cuidando do assunto? Algo comum em uma produção pouco concentrada é a espera injustificada. Você começa esperando por uma coisa e, meia hora depois, já não sabe mais o que está provocando a demora. Para isso há o assistente de direção e o platô – e é fundamental que eles desempenhem bem suas funções. Há algum tempo, vi uma entrevista do Clint Eastwood na qual ele dizia que não gostava sequer de gritar Ação!, preferindo dar o comando em um tom de voz suave, pois certa vez vira um grito daqueles assustar até mesmo os cavalos que se encontravam em cena – e se o berro de Ação! é capaz de espantar até os animais, imaginem o estresse que pode provocar nos atores. Concordo com ele. Mas, voltando ao número de takes que costumo rodar, é preciso salientar que, além de minha relutância em repeti-los muitas vezes, havia um elemento adicional a ser considerado durante a produção de O Menino Maluquinho: as crianças detestavam repetir a mesma cena, ficando rapidamente cansadas e impacientes. De todo modo, na maior parte das ocasiões, acredito que você vai sempre conseguir “a boa” já nas três primeiras tentativas. Depois de certo número de repetições, torna-se muito difícil conseguir algo melhor, pois, além de os atores começarem a oferecer uma resposta automática, mecanizada, fica complicado perceber a diferença entre um take e outro. Conheci diretores que chegavam a rodar o mesmo plano 18, 20 vezes (Stanley Kubrick era famoso por rodar 90, 100 vezes). Ora, como definir qual é a diferença entre a tomada 89 e a 93 ou a 75? Além disso, há uma questão importante quando falamos do cinema nacional: o custo. Aqui não temos 11 meses para filmar nem negativo à vontade. Kubrick era um gênio, é claro, mas também vivia numa realidade completamente diferente da dos cineastas brasileiros. Para preparar o elenco infantil, contei com um ótimo profissional de Juiz de Fora, o Alexandre “Xanxão” Alvarenga, que sabia lidar bem com crianças. Além de ajudá-las a memorizar o texto de forma natural, ele estabeleceu uma forte cumplicidade entre os integrantes da “turminha”, o que era fundamental para que o espectador não percebesse que, na realidade, os atores se conheciam há pouco tempo. Ainda assim, alguns problemas foram impossíveis de contornar. O João Romeu, que fazia o Bocão, tinha a mania de mover os lábios enquanto seus companheiros de cena diziam suas falas, o que nos obrigava a interromper as filmagens o tempo todo – isso não evitou que um desses momentos passasse desapercebido e acabasse na versão final do longa. Outra preocupação constante era ensinar as crianças a se comportarem num set, respeitando o fato de que ali era um local de trabalho sem, com isso, deixarem de ser garotos. Conversei com a equipe diversas vezes sobre isso, explicando que ninguém deveria esperar que o elenco infantil tivesse um comportamento adulto – mas, ao mesmo tempo, estabelecendo que deveria haver limites; eles não poderiam, por exemplo, ficar botando a mão em tudo que quisessem. E, se deixássemos, botariam a mão em tudo. Eram todos muito curiosos, viviam fazendo perguntas. O Samuel, em especial, era impressionante. Logo já dominava a forma com que trabalhávamos e era capaz até mesmo de avaliar o tempo necessário para preparar uma cena. Certo dia, por exemplo, depois que ensaiamos um plano, liberei os meninos até que preparássemos tudo para a filmagem e eles foram jogar bola. De repente, o Samuel chegou correndo e perguntou: – Helvécio, quanto tempo vai demorar ainda? – Só o tempo de montar este travelling – respondi. – Ele vai de onde a onde? – Começa aqui e termina ali. – Vai demorar! – comemorou, saindo correndo para voltar ao futebol. Samuel era um garoto adorável – e sua mãe, Rosana, também acompanhou todo o processo de forma absolutamente tranqüila, sempre confiando em meu julgamento. Estabeleci uma ligação afetiva muito forte com o Samuel e tenho muitas saudades dele. Só sei que, depois do sucesso do filme, fez algumas novelas na Globo, ainda garoto, chegando a mudar-se para o Rio. Porém, não faço a menor idéia de onde ele pode estar atualmente. E o mais incrível é que em nenhum momento ele sentiu o peso do personagem; com a câmera ligada ou desligada, era o mesmo menino. Jamais perdia a graça e a espontaneidade. É, eu sinto mesmo saudades dele. Capítulo XXVIII Fazendo Horas a Mais Um dia antes do início das filmagens, perdi o diretor de arte e a cenógrafa em função de um desentendimento banal. Desde o princípio, Ziraldo havia me dado liberdade absoluta com relação ao longa: – O filme é seu, não vou nem aparecer nas filmagens – ele disse repetidas vezes. E fez isso de uma forma extremamente sincera e espontânea. Porém, na véspera de os trabalhos começarem, Ziraldo foi a Belo Horizonte para que pudéssemos lançar o projeto oficialmente, apresentando os atores e a equipe para a imprensa. Decidimos realizar a coletiva na Rua Congonhas, no quarteirão que serviu de cenário para o lar do Maluquinho – e, depois das entrevistas, Ziraldo se aproximou de mim e falou: – Eu combinei com você que não vou interferir em nada e não vou mesmo. Só tem uma coisinha que eu não estou gostando, que é o amarelo da casa do Maluquinho. Estou achando que ficou forte demais, não é um amarelo que eu use em minha paleta de cores. Se possível, eu gostaria que ele fosse rebaixado. Concordei imediatamente. Afinal, estávamos lidando com a paleta de cores dele, e aquela fora sua única sugestão em todo o processo. Assim, julgando que não teríamos problema algum, fui conversar com o Clóvis Bueno, que fizera a direção de arte. – Clóvis, o Ziraldo pediu para pintarmos a casa do Maluquinho em um tom mais claro de amarelo. Para minha surpresa, a reação dele foi veemente: repintar a casa estava fora de questão, não iria aceitar uma interferência daquele tipo. – Clóvis, sinceramente, este é um detalhe menor. O personagem é dele, o Ziraldo é um artista plástico, trabalha com uma certa gama de cores e está sugerindo um outro amarelo, mais coerente com a obra dele. Não vejo problema nenhum. – Se for assim, estou fora. E realmente saiu, sendo acompanhado pela cenógrafa, Vera Hamburger, sua esposa. É claro que ele já havia completado toda a concepção visual do projeto há dois ou três meses, ao lado da Vera. Porém, com sua saída a execução de parte de suas idéias coube a Kika Lopes, que entrara na equipe a convite do próprio Clóvis e que acabou criando elementos novos. Assim, os créditos pela cenografia do filme listam não só a Vera, mas também a Kika. Se ficou algum ressentimento entre Clóvis, Vera e eu? A resposta é simples: Clóvis voltou a assinar a direção de arte em meu projeto seguinte, Amor & Cia., enquanto Vera assumiu o posto no trabalho que veio depois, Uma Onda no Ar. Esse tipo de desentendimento pode acontecer em qualquer produção e o fato é que ambos são profissionais incrivelmente competentes e de quem gosto muito. O resto é bobagem. O Menino Maluquinho é um filme cujas cores seguem um esquema cuidadoso. Observe o vermelho do carro dirigido pelo personagem do Roberto Bomtempo ou o (problemático) amarelo da casa do Maluquinho e perceberá que trabalhamos sempre com cores chapadas, básicas. Fizemos isso pelo mesmo motivo que escolhemos um Gordini como automóvel do Pai: queríamos evocar as histórias em quadrinhos. Aliás, em minha vida tive duas grandes influências formadoras, uma do ponto de vista narrativo, outra do político. A primeira foi Carl Barks, autor das melhores histórias do Pato Donald nos quadrinhos. Barks era um verdadeiro gênio que trabalhava no setor de cinema da Disney e que acabou sendo chamado para ajudar a criar as tiras do personagem, vindo a influenciar, por exemplo, George Lucas durante a criação do Indiana Jones. Morando num rancho no interior da Califórnia, o desenhista produzia uma história de dez páginas por mês e desenvolveu uma narrativa cinematográfica inigualável, que impressiona ainda hoje. Já a segunda grande influência foi Karl Marx, anos depois. Carl Barks e Karl Marx. Curioso, não? Um dos motivos que me levaram a escolher aquelas casinhas da Rua Congonhas como a vizinhança ideal para o Maluquinho foi justamente o fato de que possuíam o mesmo tipo de traços simples dos quadrinhos. Além disso, precisávamos encontrar um quarteirão que tivesse várias casas parecidas lado a lado e que lembrassem o estilo das construções dos anos 60. Foi uma tarefa dificílima. É comum ouvir muitos belo-horizontinos defendendo as tradições da cidade, alegando que ainda contamos com vários imóveis tradicionais conservados da forma que eram há 30, 40, 50 anos. Isso, infelizmente, não é verdade. As casas atualmente são cercadas por muros altos, grades de proteção e cercas eletrificadas; praticamente não existem mais casinhas “abertas” como aquelas do filme – tanto que só encontramos duas ruas que poderiam servir aos nossos propósitos. A escolha inicial do Clóvis foi uma que ficava no bairro Santo Antônio, mas acabei optando pela Rua Congonhas por esta ser plana e facilitar as brincadeiras das crianças. (Quem já tentou jogar bola numa ladeira sabe que é chatíssimo.) Curiosamente, encontramos uma situação que lembrava as condições de filmagem em Biribiri, na época de A Dança dos Bonecos: todas as casinhas pertenciam à mesma dona, e a maioria estava desocupada. Inicialmente, a proprietária se mostrou relutante em nos alugar os imóveis, acreditando que a publicidade que o filme iria gerar poderia terminar acarretando o tombamento das construções, o que a prejudicaria. Finalmente, ela acabou cedendo e combinamos que, quando encerrássemos os trabalhos, pintaríamos as casas com as cores que ela solicitasse. Além disso, refizemos o passeio com cimento de cor, pintamos os postes, recriamos os jardins e realizamos diversas outras intervenções que melhoraram bastante a rua. E tudo isso para usarmos apenas as fachadas, já que os interiores foram construídos em estúdio. Coisas do cinema. Com relação à fotografia, o José Tadeu Ribeiro (um veterano premiadíssimo com quem eu voltaria a trabalhar em meus dois filmes seguintes) seguiu a mesma perspectiva da direção de arte, optando sempre por cores básicas e mostrando os atores recortados muitas vezes contra fundos chapados. Praticamente não mostramos o horizonte da cidade; uma das únicas exceções pode ser vista na seqüência com o pau-de-bosta, que filmamos no Santo Antônio. Aliás, sempre gostei de filmar em cantinhos da cidade que poucas pessoas conhecem (aquele ficava na viradinha da Rua Nunes Vieira, mas hoje foi substituído por um muro feioso que obstruiu a visão da cidade). Para compor a música-tema do filme, convidei dois mineiros de talento indiscutível, Fernando Brant e Milton Nascimento. A idéia principal era que a canção capturasse o espírito lúdico da história e, para isto, entreguei a eles fitas em VHS com algumas seqüências já prontas do longa – e o resultado ficou uma delícia. A outra opção que considerei na época foi o Skank e, coincidentemente, anos depois o Samuel Rosa veio me dizer que, quando criança, tinha sido o próprio Menino Maluquinho, jogando bente-altas na rua e tudo mais. Pena que não havia como incluir composições de todos eles. A trilha instrumental do filme foi feita pelo Antônio Pinto, ninguém menos do que filho do Ziraldo e para quem este escreveu O Menino Maluquinho, o que não deixa de ser uma curiosidade bem interessante. Recentemente, o Antônio compôs a trilha de sucessos como Abril Despedaçado (2001) e Cidade de Deus (2002). Outro detalhe que muitos ignoram é o fato de que os créditos iniciais, que contam com os traços típicos de Ziraldo, não foram produzidos por ele, mas sim pelo Kiko, que sempre foi o responsável pelas animações envolvendo aqueles personagens, como, por exemplo, em comerciais. Um dos temas recorrentes no livro é a idéia de que, para o Maluquinho, o tempo “faz horas a mais”. Para ilustrar isto, tivemos a idéia do sonho com o “balé das horas” e a Vera projetou aquele relógio gigante que acabou sendo feito em aço pela Acesita, que não cobrou nada pelo serviço (atualmente, o relógio está numa praça da empresa, na cidade de Timóteo). Foi também a Acesita que produziu a famosa panela do Menino Maluquinho – feita sob medida para a cabeça do Samuel, ela era idêntica ao desenho do Ziraldo e tinha, em seu interior, todo um sistema com tiras (semelhante a capacetes de operários) para acomodá-la confortavelmente em quem a usasse. Houve muita discussão sobre a forma em que usaríamos a panela no filme. Como nas tirinhas o personagem usa a panela na cabeça o tempo todo, algumas pessoas defendiam que fizéssemos o mesmo no longa-metragem. Para mim, aquilo era inconcebível. Era óbvio que, a partir de um certo momento, o público começaria a ficar incomodado em ver uma criança andando de um lado para outro com uma panela na cabeça. Para contornar o problema, pensei naquela seqüência que se passa na cozinha: afinal, não haveria lugar melhor para que um garoto resolvesse brincar daquela maneira com uma panela – e, ao vesti-lo com o casaco do pai, criamos a assinatura do filme e do personagem. Naquele momento, o Menino Maluquinho que todos conhecem se materializa. A partir dali, poderíamos dar prosseguimento à história sem o casaco ou a panela, que já haviam cumprido sua função de maneira orgânica, verossímil. Capítulo XXIX Os Cachorros e as Árvores Como já disse anteriormente, ao selecionar o elenco infantil de O Menino Maluquinho, procurei também avaliar os adultos que acompanhariam cada criança, pois sabia que seria fundamental estabelecer uma relação de confiança com todos. Felizmente, fiz boas escolhas – como o problema do avião viria a comprovar. Originalmente, o avião pilotado pelo vovô Passarinho seria um Paulistinha, um aparelho compacto e com a cabine fechada. O problema era que suas janelas eram muito pequenas e não permitiriam que víssemos as crianças lá dentro, durante o vôo. Eu estava insatisfeito com a situação, mas não havia muito que pudesse fazer sobre o assunto. Ao se aproximar o dia de filmarmos a seqüência aérea, visitei o aeroporto de Conselheiro Lafaiete, cidade próxima a Tiradentes (onde rodávamos as cenas envolvendo a fazenda do avô), e foi ali que descobri um aviãozinho... digo, um protótipo de aviãozinho que mais parecia uma canoinha com asas. E que era aberto. Surpreso, vi um senhor entrar no aparelho e decolar – aquilo realmente voava! Quando finalmente pousou, fui conversar com o piloto, um mecânico de automóveis que havia construído aquele avião em suas horas vagas, chegando inclusive a instalar dois motores para ter mais segurança: caso um parasse, o outro teoricamente continuaria a funcionar. E se o segundo falhasse, ele ainda conseguiria planar por algum tempo. Conversei durante um bom tempo com o sujeito, que me garantiu que não havia perigo algum em utilizar sua invenção. Achei aquilo genial, parecia mesmo ser algo construído pelo vovô Passarinho! E ainda havia o bônus de poder ver as crianças a partir do helicóptero que acompanharia o vôo! Só existia um problema: eu teria que colocar as crianças naquele avião. E ele teria que realmente voar com elas a bordo. E os pais teriam que dar permissão para que fizéssemos isso. No dia marcado para a filmagem, fomos todos até o aeroporto – e os meninos ficaram instantaneamente alucinados com o aviãozinho. Chamei as mães em um canto e expliquei: – Ó, o negócio é o seguinte: é aquele avião ali que estou querendo filmar. Já conversei com o dono, o aparelho tem dois motores e ainda consegue planar. Eu gostaria de ouvir a opinião das senhoras. Elas fizeram apenas uma pergunta: – Você confia no avião? Eu havia pensando longamente sobre o assunto e, quando respondi, tinha certeza sobre o que estava falando: – Confio. – Então nós também confiamos. Filmamos a cena, que me agradou imensamente. De vez em quando, ainda penso no risco que corremos. Imagina se aquele avião cai? Não tenho o hábito de rodar masters. Em vez disso, pré-decupo cuidadosamente cada seqüência. Sempre achei essa história de master, em que se roda toda a cena para depois cobrir os ângulos, algo extremamente burocrático, típico de Hollywood. Gosto de filmar já montando: aqui introduzo um plano geral; ali corto para perto do personagem; agora faço um close do outro ator; e assim por diante, realizando diretamente os planos que vou precisar. Quando concluí as filmagens de Amor & Cia., por exemplo, o longa já estava praticamente montado; a edição durou apenas quatro semanas. Já O Menino Maluquinho diminuiu a eficiência desse processo, pois envolvia muitas seqüências de ação complicadíssimas. Seqüências como a do cachorro na árvore, a mais complexa da produção. Normalmente, não sinto necessidade de fazer storyboards, mas, num caso como este, que exige extrema precisão, era imprescindível – e foi o próprio Ziraldo quem os desenhou, o que foi um luxo inesperado. No filme, o Maluquinho, o Bocão e o Tonico vão roubar mangas e, de repente, o cão de guarda da propriedade surge e começa a atacá-los, chegando a subir na árvore. As crianças, acuadas, vão escalando os galhos, sempre perseguidas pelo animal, até chegarem ao topo. Quando tudo parece perdido, o vovô Passarinho surge em seu balão e as resgata – bem no momento em que o cão ia alcançá-las. Ora, o primeiro obstáculo era encontrar um cachorro que de fato subisse na árvore – algo quase impossível, já que eles têm medo de altura. Depois de alguma procura, descobrimos uma cadela da Polícia Militar que fazia demonstrações de salvamento e estava habituada a subir numa escada Magirus do Corpo de Bombeiros. Funcionou até certo ponto. No filme, é ela quem inicia o movimento de pular na árvore e aparece nos planos mais afastados em que vemos o animal escalando os galhos. Só havia um detalhe negativo. Ela era extremamente mansa, pois fora treinada para salvamento, não para perseguir bandidos. Era, portanto, extremamente doce: não rosnava, não latia e não fazia cara de feroz. Enquanto buscávamos uma solução para a questão do “temperamento canino”, decidi rodar o final da seqüência, quando o balão chega e salva os garotos. Neste ponto, tivemos que enfrentar outro empecilho. Precisávamos prendê-lo na árvore, para garantir sua estabilidade, mas descobrimos que os balões só podem ser usados em determinadas horas do dia, dependendo dos “ares quentes” ou algo do gênero. Esperamos o tal momento mágico. Para permitir uma maior mobilidade da câmera ao longo da árvore, montamos uma gigantesca estrutura metálica que a circundava, quase como num show de rock. Contando mais uma vez com a cadela “alpinista” da PM, conseguimos o material que precisávamos, e com um bônus: quando apareceu na copa da árvore, o animal estendeu as patas e, num movimento de pinça, “abraçou” a perna (falsa, obviamente) do Bocão, arrancando seu sapato e conferindo maior tensão ao momento. Faltava agora incluir os planos intermediários, nos quais os garotos eram perseguidos enquanto subiam nos galhos. Pedimos outro cão para a Polícia Militar, um que metesse medo. Eles nos emprestaram uma verdadeira fera. Quando o bicho passava perto, era impossível não tirar a perna de seu caminho. Tudo bem, Sr. Cão, estamos prontos para o seu close-up!, pensei. Infelizmente, tivemos uma decepção. Assim que seu treinador o colocou no primeiro andar da árvore, a fera virou um gatinho, tremia de medo. Não houve como rodar um único plano com o animal. E havíamos esgotado nossas opções em Minas Gerais. Parti para a montagem do longa, sabendo que ainda faltava algum material. Na moviola, fui percebendo quais eram os planos de que ainda precisava e, então, marcamos mais um dia de filmagem. Achamos uma mangueira em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, e contratamos uma empresa que preparava animais para aparições em TV e cinema. E foi assim que conseguimos aquele exemplar raro na natureza: um cachorro que continua bravo mesmo em cima de uma árvore. Como queríamos apenas planos mais fechados, apontamos a lente para o cão enquanto uma pessoa ficava ao lado da câmera provocando o bicho, que ficou maluco de raiva. Em pouco tempo, conseguimos o material necessário e encerramos os trabalhos. E, então, no momento em que desmontávamos o equipamento, o cachorro conseguiu escapar e foi direto no pescoço do pobre coitado que passara horas despertando seu ódio. Foi por pouco. Os treinadores conseguiram controlar a fera com dificuldade, mas ao menos evitaram uma tragédia. Balanço da situação: três cachorros e três mangueiras depois, a perseguição na árvore estava pronta. E o resultado ficou tão bom que, na época do lançamento do filme, o Arnaldo Jabor afirmou ter ficado impressionado com a competência com que aquela seqüência fora realizada. Quase tão difícil quanto filmar um cachorro subindo numa árvore é rodar uma boa seqüência envolvendo uma partida de futebol. Na maior parte das vezes, os jogos ficam chatos, perdem justamente aquela que é a maior característica do nosso futebol, o encanto. Além disso, tínhamos um outro fator complicador. No filme, a partida tinha que ser disputadíssima entre a turma da “cidade” e a da “roça”. Só que, com exceção do próprio Samuel, a turma do Maluquinho era ruim de bola, enquanto o time adversário contava com dois gêmeos que davam um show à parte. Se deixássemos o jogo rolar solto, o placar final seria 10 a 0 para a “seleção da roça”. Para piorar, o único craque da equipe da cidade era obrigado a ficar no gol, já que esta era a posição na qual o personagem jogava – algo que deixava o Samuel louco de frustração. A única maneira era armarmos jogada por jogada, filmando-as separadamente. Como adoro futebol (torço pelo Atlético Mineiro), encarreguei-me de criar a “coreografia” da partida ao lado do José Tadeu, o fotógrafo. O truque para evitar que tudo soe falso, “armado” demais, é dar uma certa liberdade para os atores. Assim, separávamos uma determinada faixa do campo e, trabalhando com lentes mais abertas, explicávamos onde a jogada deveria começar e terminar – e a favor de quem. A partir daí, os garotos ficavam à vontade para criar os dribles e passes, conferindo energia ao jogo. Finalmente, chegamos ao ponto em que deveríamos rodar os planos que, numa referência direta ao livro, mostravam o Maluquinho executando diversos saltos para defender os chutes adversários. Para isso, cavamos valas em volta do gol e ali colocamos vários colchões, permitindo que o Samuel saltasse sem receio de se machucar. E então voltei a ser criança e me encarreguei de dar os chutes necessários em direção ao gol. Capítulo XXX Manter-se Criança Sempre que um bebê nasce nas proximidades de um mosteiro, os monges Zen vão observá-lo em silêncio, contemplando sua pureza incomparável. Divido essa admiração com eles; adoro crianças e estou constantemente aprendendo com elas. Essa alegria de viver que elas possuem, e que não é motivada por nada a não ser o simples fato de que estão vivas, é algo com o qual busco impregnar-me. Ziraldo compreende isso muito bem, pois conserva sua infância muito viva dentro de si; é um moleque incrível, admirável. E quando me preparei para dirigir O Menino Maluquinho, uma de minhas principais preocupações era retratar com sensibilidade o que é ser criança, evocando sensações (e idéias) que acabamos esquecendo na medida em que envelhecemos: como o tempo demora a passar; a facilidade com que elas fazem novas amizades; a falta de autocensura; como é gostoso comer até sentir dor de barriga e diversas outras características adoráveis dos pequenos. A cena em que os garotos vêem a mesa de guloseimas, por exemplo, se reflete estritamente na ótica infantil. Fizemos um longo plano, como se a quantidade de doces fosse colossal, e colocamos uma luz sob a mesa a fim de levá-los a brilhar. A idéia da seqüência era a de que talvez os doces não fossem tantos nem tão belos, mas que eram vistos daquela maneira pelos meninos, que pareciam estar entrando em uma câmara do paraíso (não é à toa que o Bocão tira seu chapéu respeitosamente, como alguém que acabou de entrar na igreja). É claro que todos ficaram ansiosos para dar cabo de todas aquelas delícias assim que o plano fosse concluído. Porém, como tínhamos que esperar o material voltar do laboratório para verificarmos se tudo saíra corretamente, a mesa permaneceu intocada por 2 ou 3 dias – e quando finalmente a liberamos, os jovens atores e a equipe simplesmente devoraram tudo. E, assim como acontece no filme, tiveram uma bela dor de barriga. Diversos artistas já disseram isso – a ponto de transformar essa verdade em clichê – mas é essencial manter viva nossa criança interior. É uma pena, portanto, ver como a mídia vem se encarregando de destruir a inocência das crianças. Em O Menino Maluquinho, os garotos cantam Jardineira, o que é inimaginável nos dias de hoje, quando eles são levados a cantar Egüinha Pocotó e dançar Na Boquinha da Garrafa. Esta erotização perversa, representada pela Xuxa e sua invasão do imaginário sexual dos meninos, é algo doentio, trágico. Lembro-me de algo que o Misael, um dos criadores da Rádio Favela, me disse certa vez, ao explicar porque não tocava axé para seus ouvintes: – É uma questão de princípios, Helvécio. Esses caras que fazem essas músicas nunca viram uma menina de 9 anos de idade que foi estuprada. Agora, há uma diferença básica entre erotizar uma criança e retratar o desenvolvimento de sua sexualidade. O curioso é que a mídia, de modo geral, inverte os dois conceitos, em uma lógica maluca liderada pela praga do “politicamente correto”. Assim, ao mesmo tempo em que vemos concursos de “minigarotas do É o Tchan!” em programas dominicais vespertinos, todos se arrepiam quando alguém tenta ilustrar, de forma natural e nada erotizada, todo esse processo de crescimento. Em O Menino Maluquinho, a preocupação era abordar o universo infantil com precisão e, assim, não podíamos excluir a sexualidade, pois isto seria careta e incorreto. Essa curiosidade com relação ao sexo está na infância de todos – daí mostrarmos, no filme, os garotos folheando uma revista masculina. E a breve cena em que o Samuel sai do banho pelado (e que ele fez sem o menor problema, ao contrário do que acontecera em A Dança dos Bonecos) gerou alguns problemas absurdos na carreira internacional do filme. No festival de Halifax, no Canadá, a programação impressa trazia o título Nutty Nutty Boy e, ao lado, acompanhado de asterisco, o aviso: Contém cenas de nudez. Já na época em que o longa foi selecionado para o festival de Chicago, o diretor do evento me enviou um e-mail dizendo que tinha gostado muito do filme e propôs que o exibíssemos nas escolas da cidade. Aceitei a idéia e ele me convidou, inclusive, para acompanhar uma exibição que aconteceria no maior colégio do Estado. Algumas semanas depois, quando eu já estava em Chicago para o festival, ele me chamou para avisar que as sessões nas escolas haviam sido canceladas. O motivo? Ele passara o filme para os diretores das instituições e estes se recusaram a exibi-lo para os alunos, alegando que algum pai poderia processá-los em função da “cena de nudez”. Leia-se: porque tinha um menino de 9 anos pelado em uma cena curtíssima. Não foi à toa que a psicanálise enfrentou tantas dificuldades para entrar nos Estados Unidos e os ensaios de Freud permaneceram proibidos por tanto tempo. A forma com que eles enxergam as crianças remonta ao início do século: elas são seres assexuados que, magicamente, aos 18 anos, descobrem o que é o sexo. Como cineasta, não posso me deixar levar por este conservadorismo babaca. Se estivesse rodando O Menino Maluquinho hoje, faria a cena novamente, sem constrangimentos. Eu jamais me imporia limites criados pela caretice e pela mentalidade reacionária e puritana do “politicamente correto”. Paradoxalmente, embora a sexualidade seja tabu, os norte-americanos têm uma facilidade imensa de aceitar a violência no cinema. Li um artigo da escritora Susan Sontag no qual ela diz que a sociedade norte-americana vai ser lembrada como a sociedade que transformou a violência em entretenimento. Vá entender. O Menino Maluquinho teve sessões impressionantes. Lembro-me de uma exibição em Campos, no Rio de Janeiro, que aconteceu em um cinema gigantesco no qual havia 2 mil crianças. Quando cheguei, elas estavam gritando, alucinadas, numa alegria típica dos brasileiros – algo que perdurou durante toda a projeção. No dia seguinte, fui para a Alemanha, onde acompanhei uma sessão do filme em Frankfurt. A diferença era brutal: as crianças entraram praticamente marchando no cinema, conduzidas em silêncio por professoras com aparência militar. Todos se sentaram calmamente e, por alguns minutos, pensei que a experiência seria um fracasso. Felizmente, estava enganado; elas riram muito o tempo todo. Quando o filme chegou ao fim, fui apresentado ao público e me prontifiquei a responder quaisquer perguntas que quisessem fazer (intermediado pelas professoras, obviamente). Vários braços se ergueram e, quando um aluno recebeu permissão para falar, indagou com curiosidade genuína: – Aquele concurso de pum era de verdade? Criança é um ser universal, com os mesmos sentimentos e sonhos. Por mais excessivamente disciplinados que aqueles pequenos alemães parecessem, ainda eram tão meninos quanto os bagunceiros brasileiros. Não há como reprimir a infância. Capítulo XXXI Narrando com Imagens Quando estou me preparando para rodar um novo projeto, costumo assistir a alguns filmes com o objetivo de estabelecer um certo clima ao lado do fotógrafo e buscar referências de certos tipos de luz. Aliás, estou constantemente vendo longas e curtas-metragens nos cinemas e em DVD, embora diminua o ritmo durante as filmagens de minhas próprias produções – não para evitar qualquer tipo de influência, mas sim por pura falta de tempo e para poder relaxar nas horas de folga, esquecendo um pouco aquele mundo de enquadramentos e movimentos de câmera. Por outro lado, não gosto de “pesquisar” filmes que giram em torno do mesmo assunto que estou abordando. Agora que estou dando início a Batismo de Sangue, não estou certo se quero rever obras que se passam na mesma época, como Pra Frente, Brasil (1982) e O Que É Isso, Companheiro? (1997). E, embora ocasionalmente busque certos tipos de solução para seqüências de ação, não costumo “citar” quadros ou movimentações específicas de câmera. A homenagem que presto a Sergio Leone em O Menino Maluquinho, por exemplo, diz mais respeito ao clima do confronto entre os garotos da cidade (os forasteiros) e os da roça (os locais, que desprezam os “estranhos”) do que exatamente ao local em que posicionei a câmera. (E por falar em referências, os espectadores mais atentos certamente notaram que o vovô Passarinho guarda, em seu armário de remédios, um vidrinho com o bálsamo de Minerva – aquele mesmo que era vendido pelo Mr. Kapa em A Dança dos Bonecos. Normalmente, não curto muito este tipo de brincadeira, mas quando o Tarcísio sugeriu a idéia, não conseguimos resistir à tentação). Imagens e sentimentos caminham de mãos dadas. Gosto muito de narrar por meio de imagens, desde que estas não apresentem metáforas primárias, banais. Há uma cena, em O Menino Maluquinho, na qual o pai do protagonista o leva para o meio de um lago e ali conta que vai se divorciar da esposa. Era importante que as crianças compreendessem a sensação de isolamento que ambos deveriam estar sentindo naquele momento, como se apenas os dois existissem – e acho que conseguimos transmitir este sentimento apenas com o que era visto no plano, sem a necessidade de diálogos que poderiam arruinar todo o clima. Por outro lado, também é possível usar as imagens para desfazer sentimentos, cortar a ligação entre o público e o filme – algo que quase nunca é desejado pelo cineasta, que, ao contrário, quer que o espectador mergulhe o máximo possível na história. Neste sentido, O Menino Maluquinho representa um exemplo raro: a montagem das “melhores cenas” que encerra a projeção, surgindo com os créditos, tinha o propósito de ajudar as crianças a se dissociarem da experiência, como se disséssemos: “Você riu, chorou, se emocionou, torceu, mas tudo era apenas um filme.” Por que fizemos isso? Para que elas saíssem felizes do cinema, afinal, durante o terceiro ato alguns momentos bastante realistas são introduzidos na narrativa, como a morte do vovô Passarinho – e eu queria justamente resgatar a imagem do avô naquela despedida (enquanto isso, o público adulto poderia interpretar aquela montagem como representando as lembranças alegres que o avô deixou para trás). Há algum tempo, assisti com minha filha de 8 anos de idade, Clara, ao terceiro capítulo da ótima trilogia O Senhor dos Anéis, que apresenta seqüências pesadas, fortes – aqueles orcs são terríveis. Em certo instante, percebi que Clara estava muito tensa e comecei a fazer brincadeiras com o filme, para provocar o distanciamento necessário e impedir que os “demônios” marcassem tanto em sua cabeça, apavorando-a. Às vezes, isso é fundamental. Principalmente quando estamos lidando com crianças. Originalmente, eu havia criado um outro final para O Menino Maluquinho, que chegou a ser filmado. A seqüência se passava nos dias de hoje e mostrava quatro garotos jogando bola na rua, exatamente como a turma do Maluquinho fazia no passado. De repente, a bola escapa e um sujeito que está caminhando por ali a intercepta e faz várias embaixadinhas – sem que jamais vejamos seu rosto. Então, ele dá um chute na direção do goleiro, que faz uma bela defesa. Em seguida, na medida em que o homem se afasta da câmera, com as costas para o espectador, as crianças comentam: “Pôxa, que cara legal!”, deixando subentendido que aquele era o Maluquinho já adulto. Infelizmente, a seqüência não ficou como eu esperava. Como toda a equipe já estava muito cansada, não conseguimos capturar a essência do que deveria ser transmitido pela cena, o que foi lamentável. O Menino Maluquinho não participou de nenhum festival de Cinema no Brasil; o filme ficou pronto em março e o lançamos em julho. Para a maior parte das produções, o circuito de mostras e festivais é interessante ao despertar o interesse do público e da mídia, mas, neste caso específico, já contávamos com uma marca forte que atraía naturalmente a atenção de todos. Ainda assim, vencemos alguns prêmios bacanas no exterior, em eventos realizados na Alemanha, no Egito, na Suíça e no Uruguai. O sucesso do filme nas bilheterias brasileiras foi muito importante ao ajudar a alavancar o cinema nacional naquele momento, embora muitas pessoas lembrem-se apenas de Carlota Joaquina – Princesa do Brasil (1995), esquecendo-se de que O Menino Maluquinho conseguiu atrair o número impressionante de 600 mil pessoas em uma época na qual nosso cinema estava praticamente morto. E o que é mais incrível: realizamos o projeto sem a Embrafilme e num período em que a Lei Rouanet estava apenas engatinhando. Aquele foi um projeto muito feliz, que me ajudou a adquirir a experiência de rodar seqüências complexas com pouco dinheiro e de vencer diversos desafios logísticos complicados. Nem preciso dizer que a comunicação estabelecida com o público nos cinemas foi um bônus inesquecível. Como o próprio Maluquinho, senti naquele momento que era capaz de abraçar o mundo com as pernas. É uma pena, portanto, que os acontecimentos que se seguiram acabaram por tirar um pouco a satisfação pelo sucesso do filme – além de colocarem um fim definitivo em uma longa amizade. Tarcísio Vidigal e eu tivemos uma forte relação de trabalho durante todo o período de nossa sociedade no Grupo Novo de Cinema, que estabeleceu presença em âmbito nacional graças aos filmes que realizamos juntos. Na segunda metade da década de 80, porém, comecei a ficar inquieto com a forma com que o Tarcísio administrava nossas produções, especialmente com sua desorganização, e, por esta razão, decidi romper a sociedade e sair do Grupo Novo de Cinema. No entanto, foi uma separação amigável e quando o Tarcísio me convidou para dirigir O Menino Maluquinho, poucos anos depois, não vi problema algum em aceitar e assinei o contrato sem maiores preocupações. Infelizmente, ele não cumpriu sua parte do acordo, o que me obrigou a recorrer à Justiça. Venci em todas as instâncias de um processo lento e doloroso que vem se arrastando desde 1996, destruindo não apenas uma relação profissional que havia entre nós, mas também uma amizade que durou mais de uma década. Capítulo XXXII Quimera e as Estórias Sempre gostei da definição de “quimera” como sonho, desejo, utopia. E adoro os versos de Augusto dos Anjos lidos no enterro de Glauber Rocha: “Vês?! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera Somente a Ingratidão – esta pantera - Foi tua companheira inseparável!” Além disso, “quimera” é, também, uma luz de cinema. Assim, quando Simone e eu fundamos nossa produtora, em 1990, o nome surgiu quase que de imediato: Quimera Filmes. Eu já era sócio da VT-3, pela qual realizara O Elixir do Pagé e Um Olhar sobre Barcelona, mas sempre achei que a atividade cultural, por envolver um maior risco financeiro, deveria ser desenvolvida separadamente, deixando a VT-3 desimpedida para assumir projetos mais comerciais, como filmes publicitários e documentários institucionais (aliás, continuo a trabalhar nesta empresa ao lado do meu irmão, Carlos Alberto, e de duas outras sócias, Regina e Mônica). Assim, quando tive a idéia de dirigir uma série de quatro curtas-metragens sobre o centenário de Belo Horizonte, que foi comemorado em 1997, o projeto foi inscrito na Lei Municipal de Incentivo à Cultura por intermédio da Quimera, o que era mais natural. Minha proposta era retratar a capital como eu a enxergava no dia-a-dia, em minhas andanças por suas ruas. Coisas pequenas, sem nenhuma grandiloqüência, mas que permitiam que lançássemos um olhar carinhoso e crítico sobre Belo Horizonte, sem resvalarmos na homenagem formal. Inicialmente, roteirizei e dirigi quatro episódios, que foram patrocinados pela BMS (Belgo Mineira Sistemas) e exibidos antes dos longas-metragens em cartaz nos cinemas Belas Artes, do Pedro Olivotto (um cinéfilo inveterado e um exibidor moderno e aberto do cinema em Minas Gerais). A cada mês entrava uma nova estória, que invariavelmente era bem recebida pelos espectadores, gerando grande repercussão. Além disso, o prefeito em exercício, Patrus Ananias, adorou o projeto e fez uma tiragem grande de cópias para presentear todos os que faziam visitas oficiais à capital. Com isso, a BMS se ofereceu para patrocinar mais quatro episódios, o que foi ótimo. Como os curtas não faziam oficialmente parte das comemorações do centenário, tive imensa liberdade na criação dos roteiros, podendo, inclusive, fazer comentários sobre o que considerava alguns aspectos negativos de Belo Horizonte. E, ao gravá-los em vídeo (em Betacam, diferente do difícil U-Matic de O Elixir do Pagé), pude brincar mais facilmente com os estilos de cada um dos episódios, que, em conjunto, foram batizados de Pequenas Estórias. O primeiro deles, intitulado E os Próximos Cem?, fazia uma síntese da capital, com imagens diferentes, e perguntando o que o futuro lhe reservava. Belo Horizonte, infelizmente, cresce se devorando, não demonstrando preocupação alguma em se preservar (ao contrário de Barcelona, por exemplo). É curioso: a maior parte das cidades cresce para “fora”, preservando um núcleo, um centro histórico no qual as construções mais significativas vão permanecendo. Já em BH, estamos sempre testemunhando a demolição de estruturas interessantes, que dão lugar a shoppings, igrejas evangélicas ou prédios gigantescos. Isto é, obviamente, um atestado imenso de burrice por parte de nossos administradores ao longo das últimas décadas. Por que destruir o Cine Metrópoles para construir um banco no lugar? Não havia outro espaço para que aquele banco pudesse se instalar? Por que não fazer um planejamento mínimo que permita que o novo e o antigo convivam de forma harmônica? A cidade não pode permanecer com os 400 mil habitantes para os quais foi planejada originalmente, é claro, mas será que não pode se expandir para outras áreas e preservar sua história? Este é um tema que me preocupa bastante e que, graças ao Pequenas Estórias, pude explorar no cinema. Já a idéia para o segundo filme, Contratempo, surgiu a partir de um curta-metragem que assisti na Espanha, durante a produção de Um Olhar sobre Barcelona, e que fora produzido no Leste Europeu. A história era contada por intermédio de ações simultâneas que transcorriam em quadros espalhados pela tela (um conceito que mais tarde, três anos depois que rodei este episódio, seria reutilizado por Mike Figgis no longa Timecode, de 2000). Quando vi aquilo, fiquei encantando com a forma narrativa encontrada pelo diretor (cujo nome infelizmente não me lembro) e percebi que ela daria margem a diversas possibilidades e, ao escrever o roteiro, creio que acabei aprimorando-a um pouco, já que “trapaceei” um pouco mais ao esconder pessoas de um quadro em outro, ao incluir uma montanha cenográfica que substitui uma “real” e ao aumentar a interação entre cada uma das divisões na tela. Aliás, Contratempo representou uma exceção em meu processo criativo, pois normalmente defino a linguagem apenas depois que o tema foi desenvolvido. Não sou formalista a ponto de ter a estética definida antes do conteúdo – no entanto, o segundo episódio tinha uma forma narrativa muito radical que era o centro da proposta. A linguagem do cinema diz a respeito à justaposição de cenas que, reunidas, ganham um sentido que não possuem isoladamente. E quando estamos abordando acontecimentos simultâneos, enfrentamos uma limitação óbvia do formato, já que precisamos mostrá-los um após o outro e deixar que o espectador os “remonte” em sua mente, compreendendo que, na realidade, deveriam ser vistos paralelamente. Pois a idéia de Contratempo era justamente apresentar os fatos simultaneamente na tela. O que víamos em um quadro estava ocorrendo ao mesmo tempo do que aparecia em outro. É claro que eu poderia contar aquela mesma historinha de forma tradicional, utilizando cortes, mas não teria a mesma graça: o enredo era extremamente simples e se tornava interessante graças ao formato. Sempre tive uma fixação pelo Viaduto Santa Tereza, que, além de ser um ponto marcante na paisagem da capital, está intimamente relacionado à nossa cultura. Durante os anos 20, autores como Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava costumavam percorrer o gigantesco arco do viaduto, sentando-se lá no alto para apreciar a vista – algo que seria retomado pela geração imortalizada no Encontro Marcado, de Fernando Sabino. E esta relação aparece até mesmo no poema Triste Horizonte, que citamos no curta, intitulado O Poeta e o Viaduto, e que manifesta a rejeição posterior de Drummond a BH. Assim, eu não podia deixar de incluir, na série, aquela imagem clássica – e muitas pessoas vêm me perguntar, ainda hoje, como filmamos aquilo. A resposta é simples: o ator Ricardo Macedo, integrante do Grupo Armatrux, realmente subiu no arco do viaduto. Na época, chegamos a consultar o Corpo de Bombeiros sobre possíveis proteções que poderíamos utilizar durante as filmagens, mas a resposta foi desanimadora. Como não havia uma forma de armar uma rede ali, por falta de pontos de apoio, teríamos que prender o ator em um colete ligado a uma longa corda, e o aparato seria inevitavelmente visto pelo espectador. Sem saber exatamente como faríamos a cena, decidi consultar a parte mais interessada, o próprio Ricardo. A conversa foi rápida e direta: – Ricardo, você tem problema com altura? – Nenhum. – Você faz a cena sem proteção? – Faço. E fez. Estava tão tranqüilo que, durante os intervalos, ficava sentado lá no alto, balançando as pernas como se estivesse em uma mesa de bar. Anos mais tarde, o ator Benjamim Abras repetiria a proeza em Uma Onda no Ar, chegando até mesmo a caminhar de costas sobre o arco. Depois de O Poeta e o Viaduto e Uma Onda no Ar, aliás, creio que finalmente me livrei da obsessão pelo Viaduto Santa Tereza. É hora de buscar outra. O quarto episódio, A Cidade dos Livros, era uma experiência mais simples, embora tenha envolvido muita pesquisa. O objetivo era recordar como Belo Horizonte já havia sido retratada pela literatura. Para fazer as locuções dos trechos citados, escalei, entre outras pessoas, a Simone e minha mãe – que participou pela primeira vez em um de meus projetos. Um pouco depois, ela faria uma ponta em Amor & Cia. como a senhora que vê o personagem do Marco Nanini jogar algumas maçãs no chão e diz: Meu senhor, suas maçãzinhas caíram! Somente por isto, esse episódio já mereceria um lugar especial em minhas lembranças. O quinto episódio surgiu durante o tempo de espera na ante-sala do Gabinete do Prefeito, quando fui conversar com o Patrus em certa ocasião. Olhando para todos aqueles retratos dos antigos administradores de Belo Horizonte, comecei a associá-los aos seus respectivos períodos e julguei que isto daria um curta interessante – e como logo viriam as eleições municipais, percebi que tinha um pretexto adicional para abordar o tema. Filmei os retratos um por um e, na montagem, utilizei o efeito de passar de um para outro como folhas virando em um livro – sempre com imagens da cidade (em seu período histórico correspondente) ao fundo. Por fim, chegávamos a um quadro em branco, indicando a incerteza de quem ocuparia o posto em seguida, e fechávamos com o texto: “Alguns prefeitos a gente nunca esquece. Outros são apenas retratos na parede.” A reação do público nas salas de exibição era sempre entusiasmada. A passagem dos prefeitos mais antigos era acompanhada em silêncio, mas, à medida que íamos chegando ao presente, os espectadores começavam a se manifestar, aplaudindo alguns e vaiando outros. Finalmente, quando surgiam os dois administradores mais recentes, Eduardo Azeredo e Patrus Ananias, a platéia se dividia como numa torcida, aprontando uma barulheira tremenda de apoio ou repulsa, dependendo da afiliação partidária de cada um. Ou seja, o curta acabou ganhando contornos políticos – o que, confesso, não foi de todo inesperado. A Lagoa da Pampulha é o que temos de mais marcante em Belo Horizonte. Não há nenhuma outra intervenção do homem na geografia de uma cidade tão interessante, criativa e atraente como aquela. Porém, na época em que os curtas foram realizados estávamos assistindo ao fim da Pampulha. Chateado com a degradação da região, concebi o sexto episódio da série, Pampulha, Até Quando?, que combinava as imagens sacras de Cândido Portinari presentes na Igreja São Francisco de Assis (mais conhecida como “Igrejinha da Pampulha”) com planos que rodei na própria Lagoa, entrando em seus canais e revelando o grau de destruição em que estes se encontravam. Esta é a essência do cinema: vistas isoladamente, as imagens pouco significavam, mas, contrapostas, criavam um sentido trágico, dramático, quase como num grito de dor pintado por Portinari em reação ao possível fim daquele marco de BH. Felizmente, a Lagoa da Pampulha encontra-se atualmente em franca recuperação. Pé na Roça é um documentário sobre o Mercado Central, mostrando-o tal qual como ele é. O objetivo era ilustrar uma característica marcante de Belo Horizonte: todos temos essa ligação com o interior, com a roça – e o Mercado, por representar isso tão bem, tornou-se um dos principais pontos turísticos da capital. Aliás, a escolha de Tavinho Moura para compor a trilha era uma conseqüência deste raciocínio, já que, ao mesmo tempo em que possui o instinto de um violeiro do interior do Estado, Tavinho é um músico sofisticado e urbano, refletindo-se de forma precisa neste encontro entre o “refinamento” da cidade grande e a autenticidade da roça. Finalmente, o oitavo e último episódio veio da observação direta dos hábitos daqueles que freqüentam a Barragem Santa Lúcia, que costumava servir de cenário para minhas caminhadas diárias. A Barragem surgiu no final do governo Patrus e foi uma iniciativa genial. Antes um lugar pavoroso, um charco que parecia local de desova de cadáveres, ela se transformou em um espaço comunitário com características singulares por situar-se entre um bairro de classe média e uma favela. Para viabilizar a criação do espelho d’água, das pistas e das quadras, Patrus fez um acordo com ambas as comunidades. A Associação Comunitária da favela reivindicou os campos de futebol e os brinquedos para as crianças, por exemplo, enquanto os representantes do outro bairro sugeriram as pistas para caminhada. Ali as contradições sociais são sempre visíveis – e algo que sempre achei fascinante são as formas diferentes com que cada comunidade ocupa o lugar. A classe média fica rodando por ali, fazendo jogging. Já o pessoal da favela não anda por ali, optando por fazer piqueniques, pescar, jogar capoeira e por aí afora. Além disso, há uma diferença no horário. De modo geral, os habitantes da favela descem no domingo à tarde, enquanto a classe média permanece ali no máximo até o meio-dia, uma hora da tarde. E eu quis mostrar esta contraposição no filme. O plano final do curta ilustra outro elemento interessante daquela paisagem, composta por um bairro burguês e uma comunidade carente lado a lado. Enquanto a favela ocupa o morro de forma harmônica, respeitando suas curvas de nível e mantendo-o presente, a região povoada pela classe média resume-se a um paliteiro de prédios, eliminando a geografia original do morro. Por todos esses motivos, batizei este último episódio como Barragem Social. Toda a série de Pequenas Estórias baseia-se em minhas observações como morador da cidade, como alguém que se fascina e se horroriza com suas realidades disparatadas. Já recebi, inclusive, a proposta de retomar o projeto e criar novos episódios, algo que não descarto fazer algum dia. No entanto, se isto vier a se concretizar, pretendo abordar as “gentes” de Belo Horizonte, os grupos humanos que ajudaram a construir a cidade. Como nasceu pouco depois da abolição da escravatura, por exemplo, BH recebeu muitos negros libertos que procuravam reiniciar suas vidas em um lugar que também estava dando seus primeiros passos – e seria interessante levar essas diferentes histórias para o cinema. Realizar Pequenas Estórias foi uma experiência muito gratificante. Além da recepção carinhosa do público, pude realizar deliciosos exercícios de narrativa, e sempre com extrema liberdade – o que, é claro, fez com que eu me sentisse privilegiado, pois, no Brasil, esta é uma oportunidade raramente concedida aos cineastas. Capítulo XXXIII Eça em Minas – Helvécio, você já leu Alves & Cia., do Eça de Queiroz? Foi com esta pergunta que surgiu Amor & Cia., meu terceiro longa-metragem. A indagação foi feita por Leonardo Magalhães Gomes, tio de Simone, que me apresentou ao conto que o escritor português deixara inacabado e que acabou sendo encontrado por seu filho em um baú, tempos depois de sua morte. Quando li o texto, percebi que tinha muitos elementos de O Primo Basílio e girava em torno de uma possível traição – assunto recorrente na obra do Eça. E o mais importante: logo vi que o tipo de humor presente no conto permitia facilmente uma adaptação da história para Minas Gerais, já que os pontos que Eça criticava na burguesia portuguesa eram bastante semelhantes ao que se observava (e ainda se observa) no interior do Estado. Outro detalhe que me atraiu foi que a Lisboa do final do século 19, que servia de cenário para a trama, traduzia-se com perfeição para a São João del Rei daquele mesmo período, quando a pequena cidade mineira tornou-se próspera e luxuosa por localizar-se em um importante entroncamento ferroviário. Contava pontos, também, o fato de que eu poderia me “apropriar” do conto e modificá-lo, pois, além de inacabado, era considerado uma obra menor na carreira do Eça de Queiroz, o que certamente diminuiria a pressão sobre meu trabalho. Ainda assim, eu queria complementar a história com elementos de outras obras do escritor, a fim de manter-me fiel ao seu estilo – e, para isso, vasculhei seus livros, debruçando-me com particular atenção sobre Os Maias e O Primo Basílio. E, claro, alterei detalhes do original. Ao final de Alves & Cia., por exemplo, o personagem-título encontrava sua esposa, Ludovina, lendo uma carta, mas o incidente não tinha maiores repercussões. Pois decidi aproveitar aquilo para puxar um outro fio que poderia despertar novas tensões: que carta era aquela? Quem a enviara? O que dizia? Além disso, o livro terminava de forma fria, ao passo que optei por concluir a história com um olhar mais cínico sobre o compromisso burguês assumido pelos dois homens, Alves e Machado. Depois de desenvolver o argumento final, entreguei a tarefa de escrever o roteiro ao meu irmão, Carlos Alberto, com quem estava habituado a trabalhar na VT-3, na qual já éramos sócios. Não foi uma tarefa fácil, pois tínhamos que estabelecer bem aquele conflito e sua resolução, mas sem jamais resvalarmos no humor rasteiro, escrachado, que seria o mais óbvio em função do tema “adultério” – e, embora um dos tratamentos tenha investido neste aspecto, não queríamos fazer uma chanchada e logo alteramos o tom da narrativa para refletir isto. Creio que fomos bem-sucedidos. Quando o filme estreou em Portugal, confesso que temi a reação dos estudiosos de Eça, já que este é muito cultuado por lá, mas Amor & Cia. foi muito elogiado e, curiosamente, percebi que algumas sutilezas foram melhor captadas pelo público lusitano, que ria de alusões que aqui passavam desapercebidas. Para mim, ficou claro desde o início que o filme deveria ser rodado em São João del Rei, uma cidade que eu conhecia bem, pois, durante a infância, costumava ir com papai para a casa de minha avó, que lá morava (a família Ratton era de lá). E, como tantas outras cidades profundamente ligadas à história de Minas (como Ouro Preto e Tiradentes), seus habitantes possuem uma certa conexão inquebrável com o passado, com suas origens e seus antepassados. Por tudo isso, acreditávamos que seria um pouco mais fácil fazer a reconstituição de época ali. Assim, eu e Clóvis Bueno viajamos para São João a fim de estudarmos as locações – e, quando voltei para Belo Horizonte, ele ficou por lá, tentando conseguir objetos do período que iríamos retratar. Alguns dias depois, ele me ligou desanimado: – Helvécio, os objetos simplesmente não aparecem. Acho que teremos que recorrer aos antiquários do Rio e de São Paulo, para onde vão muitos itens de época de Minas Gerais. Achei aquilo estranho e desconfiei que Clóvis estava sendo apenas mais uma vítima da tradicional desconfiança mineira. Voltei a São João e expliquei a situação para alguns parentes, colocando-os para “trabalhar” seus conterrâneos. Pouco depois, as coisas começaram a aparecer: pianos fabulosos, salas de jantar imensas, objetos lindíssimos e uma infinidade de outros itens. E, além de conseguirmos o que precisávamos, tive a oportunidade de fortalecer meus laços familiares, transformando aquela experiência em algo ainda mais gostoso. Amor & Cia. é um filme que mostra, na tela, um luxo maior do que aquele que poderia ter sido comprado com nosso médio orçamento. Isto se deve não apenas à boa administração dos recursos (Simone foi a produtora), mas também à colaboração dos habitantes da cidade (que cederam, como já expliquei, vários objetos usados em cena) e ao apoio logístico oferecido por alguns órgãos e secretarias governamentais. O imóvel que usamos como a casa de Alves, por exemplo, pertencia à Secretaria de Educação e nos foi emprestado sem qualquer tipo de exigências – a não ser, é claro, a de que a reformássemos, pois se desconfiava que ela não iria durar muito tempo em pé. Reforçamos a estrutura, pintamos sua fachada e os imensos aposentos que utilizaríamos – um trabalho coordenado cuidadosamente pela Vera Hamburger, que também distribuiu os objetos que conseguíramos de acordo com as pesquisas que fizera ao longo dos meses. Tivemos, ainda, que construir uma parede de vidro que desempenharia um papel importante na história. No texto original do Eça, havia um reposteiro separando dois ambientes e o Alves, ao puxar uma dessas pesadas cortinas, descobria a esposa em situação comprometedora ao lado de Machado, seu melhor amigo. Eu considerava aquilo pouco cinematográfico e decidi que seria melhor colocar uma espécie de biombo de vidro entre marido e esposa – e, finalmente, optamos pelo vidro bisotê, que criava certa deformação, uma confusão visual que se refletia no estado emocional do próprio Alves, além de impedir que ele compreendesse perfeitamente o que estava vendo. Já o escritório de Alves e Machado foi construído em um dos vários armazéns cedidos pela administração da Central Ferroviária da cidade (utilizamos os demais galpões como escritórios da produção, guardando objetos, equipamentos e os magníficos figurinos criados por Rita Murtinho). Para criar a empresa dos dois personagens, Clóvis não apenas ergueu o cenário num dos galpões, como ainda fez um belo trabalho ao acrescentar barris, sacos e diversos outros itens que ilustravam bem a linha de operação do protagonista. Aliás, poucas vezes tive estúdios tão bons para trabalhar como aqueles. Como iríamos filmar importantes seqüências nas ruas de São João del Rei, era fundamental que corrigíssemos alguns problemas nas fachadas de certas construções. Em certo momento, por exemplo, Alves vai comprar uma jóia para Ludovina e passa perto do prédio da Prefeitura que, infelizmente, estava pintado com cores horríveis. Portanto, precisávamos consertar aquilo (entre muitas outras coisas) antes das filmagens. Depois de consultarmos a Jurema Machado, do IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico), definimos quais seriam as cores coerentes para a época e procuramos uma grande fabricante de tintas, que se dispôs a nos ceder a quantidade de que precisássemos. Assim, fomos até o prefeito de São João, explicamos que daríamos a tinta para pintar o prédio e que precisaríamos apenas da mão-de-obra. Na realidade, nossa necessidade dizia respeito apenas às duas fachadas que seriam vistas no filme, mas obviamente ele não iria querer que as demais ficassem diferentes e, portanto, esclarecemos que a tinta seria suficiente para fazer todo o trabalho. Vários anos se passaram até que alguém finalmente tomasse a iniciativa de pintar as fachadas que não apareceram em Amor & Cia. Capítulo XXXIV Viagem ao Passado Filmar Amor & Cia. exigiu um trabalho de pesquisa e uma logística impressionantes. Como concentraríamos as filmagens no núcleo histórico de São João del Rei, que se encontrava muito desfigurado, fomos obrigados a fazer intervenções enormes, removendo placas, pintando casas e erguendo tapumes que tampassem tudo aquilo que não deveria ser visto. Como estávamos no centro de São João, obviamente tínhamos que contar com a compreensão e o apoio dos habitantes da cidade e também da Associação Comercial e dos lojistas. Para descobrir como era a São João no final do século 19, contratei uma pesquisadora que me forneceu vastas informações sobre os usos e costumes do período, incluindo até mesmo a origem de várias palavras de nossa língua (descobri, por exemplo, que o termo “enfezado” veio dos escravos que eram encarregados de carregar as fezes acumuladas para o rio, ao fim de cada dia. Eles iam levando baldes de fezes sobre a cabeça – e não é difícil imaginar que realmente estivessem “enfezados”, não apenas no sentido literal, mas na forma com que a palavra é empregada atualmente). Enquanto isso, Clóvis Bueno e Vera Hamburger realizaram suas próprias pesquisas a fim de definirem o visual que a rua principal teria no filme. Consultaram jornais da época e chegaram inclusive a resgatar nomes de lojas famosas, como “O Luto Elegante”, que acabaram aparecendo na tela. Durante os oito dias de filmagem na locação, a rua ficou “montada”, como se tivesse voltado um século no tempo, pois tivéramos um cuidado imenso com os detalhes, preparando uma infinidade de placas, toldos e outros objetos de cena. Outro elemento marcante do filme, obviamente preparado especialmente para a produção, foi o retrato de Ludovina, pintado por um grande artista mineiro, José Maria Vargas. A obra foi feita em minha casa. Patrícia Pillar viera do Rio de Janeiro e posara para o pintor depois de definirmos exatamente a composição e a pose do retrato, que ficou maravilhoso. Na véspera do início das filmagens, José Maria ainda foi a São João para alguns retoques finais e finalmente anunciou que estava pronto. O quadro ficou na parede da casa de Alves durante toda a filmagem. Quando os trabalhos chegaram ao fim, voltei para Belo Horizonte enquanto Simone permaneceu em São João para coordenar a desprodução e despachar tudo pelos caminhões. No dia seguinte, ela me telefonou: – Helvécio, o quadro sumiu. Alguém havia roubado o retrato de “Ludovina” em sua última noite na casa de “Alves”. Ainda fomos à rádio da cidade e anunciamos o desaparecimento, pedindo que ele fosse devolvido, mas nunca mais o vimos, o que sempre me deixou bastante chateado. A idéia era exibirmos o quadro durante os eventos de lançamento do filme e, depois, dá-lo de presente a Patrícia. Agora ele está escondido na casa de algum gatuno. Praticamente paralisávamos toda a cidade quando íamos rodar algum plano. Estávamos fazendo som direto, e o José Moreau Louzeiro, nosso técnico de som, era um profissional com um rigor imenso – a única forma de evitarmos que ruídos não relacionados ao filme acabassem vazando era realmente interromper o funcionamento de São João del Rei. Tínhamos membros da equipe ao lado de guardas de trânsito em cada semáforo situado na região em que estávamos trabalhando. Quando íamos rodar, dávamos o aviso através de walkie-talkie e o tráfego era interrompido na área, voltando a ser liberado quando gritávamos o Corta!. Eram, portanto, paradas intermitentes que poderiam irritar a população, que, apesar disso, nos ajudava de todas as formas possíveis, por ter consciência de que o filme estava retratando a cidade de forma positiva e que isto poderia até mesmo ajudar a incentivar a visita de turistas. Interrompíamos até mesmo os ensaios em um conservatório de música situado atrás da casa do Alves. Quando íamos filmar, tocávamos um sino que instalamos no fundo da construção e eles descansavam os instrumentos por algum tempo. Durante os dois meses que trabalhamos em São João del Rei, a população foi simplesmente adorável. Chegamos a utilizar cerca de 300 habitantes locais como figurantes, o que deu bastante trabalho para minha assistente de direção, Márcia Farias, que, no entanto, saiu-se muito bem. Era lindo ver aquela multidão usando roupas de época e passeando pelas ruas que, transformadas, pareciam ter parado no fim do século XIX. Era como se tivéssemos viajado no tempo. Capítulo XXXV Trabalhando com o Ator Conheci Patrícia Pillar quando fomos jurados no Festival de Gramado em 1989 (o mesmo no qual exibi O Elixir do Pagé em sessões “clandestinas”). Depois de convidá-la para atuar em O Menino Maluquinho, senti que era inevitável escalá-la como a Ludovina de Amor & Cia. Temos uma parceria de trabalho muito forte. Além de ser uma excelente atriz, Patrícia é muito inteligente e leal, jamais deixando de questionar, criticar ou provocar quando julga ser necessário. Além disso, há o óbvio: a câmera a adora. A sugestão para que convidássemos o Marco Nanini para viver Alves partiu dela e, juntos, fomos a um espetáculo que Nanini estava protagonizando (era um texto de Molière, mas não me lembro qual). Eu já estava com um roteiro na pasta e, quando a peça chegou ao fim, fui direto ao camarim e o entreguei a Nanini, convidando-o para participar do projeto. Poucos dias depois, ele me ligou, aceitando a oferta. Ter um ator como Marco Nanini em seu filme é um luxo absoluto. O rigor com o qual ele se entrega ao trabalho é admirável, pois estuda o personagem à exaustão: o roteiro que ele carregava para cima e para baixo tinha uma infinidade de marcas azuis, vermelhas e amarelas, além de diversas anotações espalhadas por todo o texto. Ele analisava com profundidade cada emoção, cada diálogo e cada movimento do Alves, deixando, ainda, espaço para o inesperado, para o improviso (aliás, a melhor forma de improvisar é através da preparação, ao contrário do que muitos acreditam). Calmamente, Nanini ia mergulhando no personagem, até que, de repente, sumia. No início, tinha muitas dúvidas, fazia perguntas, sugeria caminhos e soluções, mas aos poucos foi dominando Alves completamente, como se tivesse sempre conhecido aquela figura. Combinamos que ele chegaria em São João del Rei uma semana antes das filmagens, para poder deixar para trás todas as demais atividades que vinha desenvolvendo (além de ator, Nanini é produtor, o que implica uma série de responsabilidades e compromissos profissionais). Mas quando chegou, já estava pronto; até mesmo a forma de andar do Alves já estava definida. Aquele era, claro, um personagem difícil. Como estava em uma posição ridícula, Alves poderia facilmente ter se tornado alvo da zombaria do espectador, já que era um burguês pomposo e corno. Contudo, não queríamos simplesmente rir dele, pois isto impediria que o público se importasse com seu sofrimento. Assim, Nanini (auxiliado por mim, como diretor) tinha que manter a dignidade e a humanidade de Alves, mas deixando espaço para o humor – e sem permitir que o riso obscurecesse sua dor. Como eu disse, era um trabalho complexo. Nos últimos quatro anos, Alexandre Borges participou de vários longas-metragens, mas quando o escalei para o papel de Machado, em 1997, ele havia feito poucos filmes. Além de ser bonito o bastante para dar vida a um personagem galanteador, Alexandre tinha algo fundamental – talento. Como ator de teatro, ele possuía os recursos dramáticos que eu procurava para enriquecer o elenco – e era importante que o ator escalado para interpretar Machado tivesse personalidade suficiente para não se apagar em frente de Nanini e Patrícia, dois artistas brilhantes. Da mesma forma, o elenco secundário contava com nomes de peso, como Cláudio Mamberti (que protagoniza um momento genial, quando mal esconde sua excitação ao ouvir a história sobre a possível traição de Ludovina), Nelson Dantas (um veterano admirável) e Rui Resende (de quem também gosto muito). Ainda assim, minha maior descoberta, em Amor & Cia., atendia pelo nome de Rogério Cardoso. Até aquele momento, Rogério interpretara tipos mais popularescos, de humor menos sofisticado, embora fosse um ator refinadíssimo. Como o humor de Eça de Queiroz sempre foi muito apurado, eu sabia que precisaria de alguém com grande veia cômica para viver Neto, o pai de Ludovina – e, além de sempre considerar Rolando Lero o melhor personagem da Escolinha do Professor Raimundo, eu percebia em Rogério outras possibilidades e uma sutileza digna de um mestre. Já nas leituras iniciais confirmei minha impressão. Eu não conseguia parar de rir da forma sempre inspirada com que ele lia os diálogos de Neto, explorando com competência o cinismo daquele sujeito que via, na crise vivida por sua filha, a oportunidade ideal para arrancar dinheiro do genro. E tive, a partir daí, ainda mais confiança em desenvolver o relacionamento do personagem com a criada – algo que era levemente sugerido pelo livro, mas que acabamos realçando bastante. Eu gostava muito do Rogério e queria ter tido a oportunidade de filmar com ele mais uma vez. Sua morte precoce e inesperada foi um choque doloroso para todos que o conheceram. No período que antecedeu as filmagens, Marco Nanini e Patrícia Pillar fizeram um detalhado estudo de como as pessoas falavam e se comportavam no final do século XIX. Trabalhando com Ivaldo Bertazzo, um grande dançarino, coreógrafo e preparador de atores, Nanini desenvolveu até mesmo a forma do personagem caminhar, enquanto Patrícia se preparou exaustivamente para tocar a difícil música que abre o filme, Quem Sabe?!, não apenas cantando, mas também a executando no piano (durante os créditos finais, ela é acompanhada pelo Nanini). Quando você tem bons atores em mãos, não diz a eles como devem andar, gesticular ou falar “Bom dia”. Isto seria inclusive um insulto à capacidade daqueles profissionais. O papel do diretor é ajudá-los a decifrar o personagem: quais são suas intenções, por que age de determinada maneira, como chegaram até aquele ponto visto no filme. Já a definição de como viver o papel compete somente ao ator e, à medida que este vai compondo o personagem, dou algumas indicações para me assegurar de que o resultado final será condizente com a proposta geral da produção, impedindo que cada intérprete pareça ter saído de um universo diferente. É o diretor quem cria esta unidade e, para isto, começo a ler o roteiro separadamente com cada integrante do elenco, passando em seguida a trabalhar em pequenos grupos, até integrar todo mundo. Apesar de toda esta preparação, a filmagem ainda representa (pelo menos, para mim) a etapa de maior ansiedade em todo o processo – e, mesmo então, jamais desgrudo os olhos do ator. Hoje em dia, é mais comum que o cineasta acompanhe tudo através da tela do monitor, e nem tanto pelo visor da câmera (embora, durante os ensaios, eu faça questão de usar o visor), mas não gosto de ficar de costas para a cena. Assim, gosto de colocar o monitor bem próximo da ação, bastando levantar os olhos para ver o que está sendo filmado: o ator, o set e as luzes. Capítulo XXXVI O Filme e Suas Circunstâncias Amor & Cia. é um filme que está sempre oscilando entre o drama e a comédia, o que representa um desafio difícil para o diretor. Se não houver um equilíbrio cuidadoso entre estes extremos, há o risco de diluir o drama e enfraquecer a comédia, falhando nos dois campos. Neste aspecto, fui fiel ao sentimento do Eça de Queiroz, que trabalhava bem com esta dicotomia (especialmente em O Primo Basílio): quando o leitor está prestes a se enternecer com algo, ele escapa pelo riso e cria um distanciamento. O Marco Nanini, aliás, dizia que eu lidava bem com este tipo de humor – não o humor da gargalhada aberta, mas aquele do riso de canto de boca, irônico, típico dos mineiros. Esta é uma marca pessoal que coloquei no longa – e, quando Amor & Cia. participou do Festival de Mar del Plata, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami, que era presidente do júri, comentou com o Luiz Carlos Barreto (que depois me contou) que o filme ia no fio do melodrama, mas sem resvalar neste, lidando muito bem com o burlesco. Coincidência ou não, saímos do festival com o prêmio de melhor filme ibero-americano. Esta complexidade no tom de Amor & Cia. deveria, claro, ser refletida em sua trilha e, para desempenhar esta tarefa, convidei o Tavinho Moura, cujas experiências com o Carlos Alberto Prates Pereira em Perdida (1976), Cabaret Mineiro (1980) e Noites do Sertão (que produzi em 1984) haviam me convencido de seu imenso talento, não apenas como músico, mas como compositor de cinema. Como eu já esperava, ele não me desapontou. Sua trilha era incrivelmente densa, indo do humor ao drama, passando pela opereta. E, para gravar os temas, Tavinho montou uma pequena orquestra de câmara especialmente para o filme, usando os instrumentos para pontuar a ação (como na cena em que Alves segue Ludovina). Para um diretor, a definição da trilha já começa com a escolha do compositor mais adequado para o projeto e continua até o fim da mixagem. Na cena do duelo, por exemplo, sugeri que Tavinho adotasse um estilo meio Piazzolla, pois, como aquilo era apenas um sonho do Alves, nada seria melhor para se refletir neste fato do que o tango, que combina tragédia e farsa de maneira inigualável. Porém, somente um compositor com recursos é capaz de lidar com todas estas possibilidades – e Tavinho Moura é um dos melhores. Como comentei ao discutir O Menino Maluquinho, sou muito econômico ao filmar. Como gosto de rodar os planos já montando, graças a uma decupagem cuidadosa, praticamente obtive um rendimento de 100% do que filmei: descartei uma única cena, na qual os comerciantes da cidade falavam sobre o Alves e a Ludovina enquanto bebiam em um quiosque na rua – e, mesmo assim, só a excluí da versão final porque não a considerei bem resolvida. Além disso, já trabalhávamos a comédia na própria mise-en-scène, não na montagem. Respeito muito o tempo do ator, não me apresso em cortar quando este acabou de fazer um gesto ou de dizer sua fala. E, em Amor & Cia., utilizamos alguns longos planos para transmitir idéias e sensações que talvez se perdessem em seqüências com muitos cortes. Logo no início do filme, por exemplo, acompanhamos Alves enquanto este entra em sua casa, sobe as escadas, pendura o chapéu, guarda a bengala, vê o relógio, caminha por um corredor e finalmente vê Ludovina através do vidro bisotê – e como não fizemos corte algum, o espectador começa a ficar tenso, sabendo que algo vai acontecer com aquele personagem. O problema é que não estávamos em um cenário montado em estúdio, mas num casarão verdadeiro, que não podia ser adaptado às nossas necessidades. Isto exigiu que fizéssemos um planejamento rigoroso: a steadycam respirava com Nanini, seguindo-o de perto ao mesmo tempo em que evitava sombras e reflexos indesejados. Aliás, este foi um filme de engenharia cuidadosa, de quadros precisos e movimentos estudados. Outro longo plano que fizemos representou uma opção corajosa do ponto de vista técnico e narrativo e exigiu do Nanini uma concentração absurda, pois ele teria que se entregar totalmente ao personagem e, ainda assim, manter-se atento à marca estabelecida com a câmera. A cena em questão é aquela em que Alves abraça uma prostituta em um cabaré e esta começa a cantar. Tudo tinha que encaixar: a música, o movimento da câmera e a emoção do ator. Enquanto a moça cantava, fazíamos um travelling que lentamente aproximava Alves do espectador – mas Marco Nanini, sendo o ator maravilhoso que é, foi além e, pegando todos de surpresa, começou a chorar no colo de sua companheira de cena. Quando finalmente cortamos, eu (como toda a equipe) estava emocionadíssimo e, sem dizer nada, me aproximei do Nanini e o beijei. É por isso que é tão importante criar boas condições de trabalho em um set: o ator deve sentir-se à vontade para deixar suas emoções aflorarem – e o diretor tem que ter a sensibilidade e o respeito para não cortar de imediato, esperando sempre um pouco mais, para ver o que o seu elenco irá fazer. Reza a lenda que, quando Elia Kazan estava se preparando para rodar a morte de Emiliano em Viva Zapata! (1952), Marlon Brando se aproximou do diretor e avisou: Não grite corte! – e Kazan só compreendeu a sugestão depois que viu o que o ator tinha preparado: além de “morrer” de cócoras (um dos momentos inesquecíveis do cinema), Brando tinha sempre uma mexidinha, um tremor ou um outro detalhe para acrescentar. Este é o segredo: se não houver uma cumplicidade entre o diretor e o ator, tudo se complica. Como cineasta, minha jornada com o elenco recomeça todos os dias, mas vai crescendo ao longo das filmagens e só se fecha quando rodamos o último plano. Quando fiz A Dança dos Bonecos, eu ainda não havia descoberto que a filmagem é apenas parte de todo o processo. A partir do momento em que você parte para a pós-produção, há inúmeras possibilidades de reescrita através da montagem, da mixagem e da fotografia final. E foi somente depois que me dei conta disso é que percebi que, ao longo do caminho, devemos abraçar a possibilidade da imperfeição. Explico: desde que não comprometa a obra, pequenos erros e contratempos podem contribuir bastante para tornar o filme mais real e estabelecer uma certa cumplicidade com o espectador. Na seqüência em que o Alves seguia Ludovina, por exemplo, Nanini escorregou em um degrau ao se esconder do olhar de Patrícia Pillar, mas manteve-se concentrado e deu prosseguimento à cena como se nada tivesse acontecido. Ora, aquilo era perfeito para um personagem que beirava o ridículo e, portanto, mantivemos o “deslize” na versão final. Em todos os meus trabalhos, procuro sempre adaptar a realidade à minha necessidade expressiva, extraindo do ambiente o que quero e tirando do quadro o que não me interessa. O cinema absorve a imperfeição, é o que aprendi. Mais: ele vive dela. Parafraseando Ortega y Gasset, eu diria que um filme é um filme e suas circunstâncias. Capítulo XXXVII Nanini e o Trem O maquinista estava morrendo de medo. Não era para menos; afinal, eu estava pedindo que ele acelerasse a locomotiva ao máximo enquanto esta se aproximava não apenas da câmera, mas de Marco Nanini, que se encontrava desprotegido, agarrado a um pilar situado a vários metros de altura. A seqüência do trem envolveu muitos riscos. Era importante que o espectador percebesse que Alves estava em um momento de extrema fragilidade, considerando a possibilidade de suicidar-se. Deprimido, o sujeito caminha por um trilho erguido sobre um abismo e contempla a idéia de saltar dali – até que, no melhor estilo Eça de Queiroz, uma locomotiva surge de repente e Alves percebe que, afinal de contas, não quer morrer e agarra-se apavorado na estrutura da ponte enquanto os vagões passam a centímetros de distância de seu corpo. Para criarmos a sensação de medo, era importante que o espectador pudesse perceber que o personagem estava mesmo em uma situação difícil – e, como eu queria mostrar o rosto de Nanini para capturar suas expressões, decidi ater-me ao real e usar uma linha de trem, uma locomotiva e uma ponte verdadeiras. O problema era convencer o maquinista a acelerar o trem. No primeiro plano que rodamos, não houve emoção alguma: quando saiu da curva em direção à ponte na qual Nanini se encontrava, o condutor reduziu a marcha e se aproximou lentamente do ator. Não funcionou. Fui conversar com ele: – Vem com tudo! Você tem que vir com tudo! – Mas eu vou atropelar este cara! – Ele está sabendo. – Como assim, “ele está sabendo”? É muito perigoso! – Eu já disse: ele está sabendo. – Mas eu vou atropelar o cara, a câmera, a sua equipe e você! – Nós estamos sabendo. Vem com tudo! Nós conhecemos os riscos. A sua parte é vir para valer, só isso. E ele veio. Quando saiu da curva, botou carvão na máquina e se aproximou a toda velocidade. É claro que já tínhamos feito testes, ensaiado com o trem (não tão rápido) e calculado a distância ideal para posicionarmos a câmera. Mas era impossível não sentir medo – especialmente o Nanini, agarrado em uma viga a metros de altura do chão enquanto um trem em alta velocidade passava ao seu lado, fazendo toda a ponte estremecer violentamente. Mas mesmo conhecendo o perigo, ele não hesitou em fazer a cena. Como eu já disse antes, é um luxo poder contar com um ator como Marco Nanini. Usar noite americana nem sempre é uma boa solução. O problema é que, para filmar na noite verdadeira, é preciso contar com uma grande quantidade de luz. Não basta apenas iluminar o(s) ator(es), é necessário cobrir também o fundo do quadro, a fim de criar uma profundidade de campo ideal. E, mesmo molhando o chão para ajudar na difusão da luz (já notou como, nos filmes, sempre parece ter chovido nas cenas noturnas?), é um processo complicado e dispendioso. Ainda assim, raramente uso a noite americana, optando, sempre que possível, pela dificuldade logística imposta pelos planos noturnos. Por quê? Simples: nada se iguala ao que é real; para “enganar” o espectador de fato, é preciso gastar fortunas na pós-produção – um luxo ao qual os cineastas norte-americanos podem se entregar, mas não os brasileiros (pelo menos, na maior parte do tempo). Em Amor & Cia., no entanto, o fotógrafo José Tadeu Ribeiro e eu utilizamos a noite americana em um determinado momento – a seqüência de sonho de Alves, na qual o protagonista surge duelando com Machado. Decidimos abrir uma exceção técnica neste caso por dois motivos. Em primeiro lugar, eu queria mostrar a cidade e as montanhas ao fundo, mas, para fazer isto à noite, precisaríamos de um verdadeiro parque de luz (nos faroestes americanos, sempre que há um plano geral noturno exibindo formações rochosas como aquelas do Monument Valley – vide os filmes de John Ford – o efeito foi empregado; não há luz capaz de iluminar tudo aquilo, a não ser a que vem do sol). Além disso, fazia sentido utilizar este recurso do ponto de vista narrativo, já que o clima irreal produzido pela noite americana era ideal para o sonho de Alves. O cinemascope é um formato belíssimo e muito elegante. E como Amor & Cia. era um filme de época, eu queria realizá-lo com um requinte estético, explorando bem a cenografia e as locações de São João del Rei. E, além de tudo, o cinemascope é ótimo para se mostrar dois ou mais personagens no mesmo quadro, dialogando. Depois de alguns testes, comprovamos que a única grande dificuldade apresentada pelo formato residia na necessidade de um grande recuo de câmera, o que poderia nos atrapalhar quando estivéssemos trabalhando em espaços reduzidos. Por outro lado, os casarões nos quais rodaríamos a maior parte das seqüências (incluindo o que usaríamos como residência de Alves) eram grandes e espaçosos, o que contou pontos importantes quando tomamos a decisão final. Infelizmente, quando o filme foi lançado em vídeo, perdemos todo aquele trabalho cuidadoso de composição, pois, como na época não existia o DVD, tivemos que retalhá-lo para o modo full screen. E, mesmo que o Tadeu (fotógrafo) tenha acompanhado o processo de transferência, era impossível fazer jus ao formato original. Porém, se teimássemos com o widescreen, prejudicaríamos as vendas, pois, além da resolução inferior do VHS, o quadro ficaria muito estreito em função da razão de aspecto do cinemascope. Mas quando Amor & Cia. for lançado em DVD (o que deve acontecer em breve), pretendo incluir os dois modos de tela: full e wide, além da cena deletada envolvendo os comerciantes da cidade. É possível que também coloque O Elixir do Pagé como bônus especial; afinal, os dois trabalhos possuem muito em comum. Amor & Cia. é dedicado ao meu pai, que era de São João del Rei e fora importante fonte de inspiração, e ao pai de Simone, que morrera durante as filmagens, em função de um infarto. Como adorava o Eça de Queiroz, ele dera várias idéias durante a fase de roteirização, chegando a sugerir que modernizássemos o texto, trazendo-o para os dias de hoje (algo que descartei por me impedir de utilizar aquilo que achava mais interessante na história, a possibilidade real de um duelo). E sempre desconfiei que, caso Alves e Machado existissem na atualidade, resolveriam seus problemas no fórum, através de um duelo entre seus advogados. O mundo moderno muitas vezes acaba com o romantismo. Capítulo XXXVIII Você Está na Favela! Meu interesse pela Rádio Favela surgiu no final de 1998. Eu ainda estava me “despregando” de Amor & Cia., que fora lançado pouco antes, e já decidira que, depois de filmar duas histórias de época (os anos 60 de O Menino Maluquinho e o final do século 19 de Amor & Cia.), meu próximo projeto deveria ter um tema atual – e estava aberto a novas idéias. Certo dia, procurando algo interessante para ouvir no rádio do carro, encontrei a Rádio Favela, que chamou minha atenção imediatamente. Atualmente, todas as emissoras são muito parecidas e seguem uma linguagem hegemônica, contratando locutores sem características que os destaquem dos demais e veiculando sempre as mesmas músicas. De repente, uma voz nada empostada começou a sair da caixa de som e, antes que me desse conta, já estava prestando atenção ao que ela dizia. Minha curiosidade foi imediatamente despertada pela forma singular com que o apresentador explicava para os ouvintes as notícias que acabava de ler. Nas semanas seguintes, sempre que tinha oportunidade, questionava meus amigos sobre a tal Rádio Favela, procurando descobrir mais e mais sobre sua história. Em pouco tempo, já ouvira dezenas de relatos sobre um de seus criadores, Misael dos Santos (muitos dos quais haviam sido claramente aumentados com o passar do tempo, transformando-o numa espécie de “super-herói” local, responsável pelo resgate de vítimas das mãos de traficantes e por aí afora). Decidi que deveria subir o morro e conversar com aquelas pessoas. Era carnaval de 1999 e eu estava completamente à toa em Belo Horizonte, o túmulo do samba, quando decidi ligar para o Misael e me apresentar. Ele me conhecia de nome e aceitou bater um papo comigo e, naquela mesma tarde, fui até o Aglomerado da Serra, onde a rádio funcionava. A princípio, percebi uma forte desconfiança por parte dele e do Nerimar, outro dos fundadores da entidade, que me consideravam um play, um cara do asfalto que queria apenas “se meter” nas coisas deles. Por outro lado, eles haviam ficado claramente interessados na minha idéia de talvez realizar um filme (curta ou longa) sobre a trajetória que haviam percorrido ao longo dos anos. Descartando a idéia de fazer um documentário (já que a Rádio tinha sido personagem de diversas matérias das emissoras de TV locais), constatei que, antes de formatar um projeto, precisava conhecer a fundo aquela história. Convidei o Eid Ribeiro para realizar uma série de longas entrevistas com todas aquelas pessoas: Misael, Nerimar, Dona Mariquinha, Hudson e outros integrantes da Rádio. Eid sempre foi um ótimo interlocutor e, ao todo, conseguiu um material que, depois de digitado, rendeu mais de 200 páginas de depoimentos. Conheci o roteirista Jorge Durán no Chile, em meu período de exílio, e nossos caminhos voltaram a se cruzar em 1986, quando ambos lançamos nossos longas-metragens de estréia, que acabaram competindo juntos no Festival de Brasília daquele ano: A Cor do Seu Destino venceu cinco prêmios, e A Dança dos Bonecos, quatro. Eu admirava sua postura ideológica e julguei que ele seria mais do que adequado para trabalhar no roteiro de Uma Onda no Ar. Foi um processo especialmente complicado, pois estávamos lidando com uma história real e recente, cujos protagonistas estavam vivos e iriam acompanhar de perto a adaptação de suas narrativas para o cinema. Como seria de se esperar, teríamos que tomar uma série de liberdades na elaboração do roteiro, a começar pela redução do número de fundadores da Rádio. Na realidade, a iniciativa partiu de um grupo bem maior de pessoas, mas seria difícil, em termos de dramaturgia, lidar com tantos personagens. Assim, os reduzimos para quatro, número que mantinha a idéia de grupo sem sacrificar o desenvolvimento da ação. Procurávamos sempre nos inspirar em fatos, obviamente, mas alterávamos sua cronologia ou os transformávamos em outros incidentes mais cinematográficos (embora com a mesma significação). Assim, praticamente concebemos uma nova história para a Rádio Favela – e, curiosamente, boa parte dela acabou sendo “adotada” pelos verdadeiros fundadores como se fosse totalmente verídica. Para preservar Misael e seus companheiros, decidimos alterar os nomes de todos os personagens, principalmente porque estes não eram, como já expliquei, transposições absolutas das figuras reais. Assim, embora fosse inspirado em Misael, o Jorge de Uma Onda no Ar não era propriamente aquele. Aliás, nossa preocupação no sentido de separarmos bem as coisas era tamanha que, quando estávamos perto do início das filmagens, procurei Misael e disse: – Se você estiver sentindo que esta Rádio do filme não representa com justiça a Rádio Favela, podemos mudar o nome para Rádio Quilombo. A escolha é sua. Ele não apenas decidiu que o nome verdadeiro seria mantido, como ainda pediu que rebatizássemos os personagens do filme para que estes tivessem os mesmos nomes daqueles que os haviam inspirado – algo que me neguei a fazer. Ao todo, escrevemos oito versões do roteiro e, já no final do processo, pedi que a equipe da Rádio revisasse os diálogos para que nestes se refletissem a forma com que eles se expressavam, incluindo gírias e outras corruptelas do português que, no conjunto, Misael batizara como “favelês”. Desde as etapas iniciais do projeto, busquei manter-me fiel ao que considerava como sendo o aspecto mais admirável da Rádio Favela: sua dedicação à tarefa de manter os jovens suficientemente informados sobre o mundo a fim de mantê-los longe do tráfico. Eu sentia que, caso o filme não fosse compreensível para um garoto daqueles, eu estaria traindo os próprios princípios da Rádio e, por esta razão, adotei uma postura de buscar a realidade sem romantizá-la mais do que o necessário. Esta visão aplicava-se não só à fotografia, mas à direção de arte, aos figurinos, à montagem e aos demais aspectos da produção. Eu queria que o espectador mergulhasse na favela, naquele universo que tanto aterroriza o cidadão da classe média, e percebesse que as coisas não eram tão pavorosas quanto a mídia fazia questão de pregar. Não é à toa que a primeira frase ouvida em Uma Onda no Ar é aquela da sensacional vinheta da emissora: – Você está na favela! Ao contrário do que havia feito em Amor & Cia., eu pretendia manter-me afastado da estilização, adotando, em vez disso, uma linguagem quase documental. Não que o apuro técnico de Uma Onda no Ar seja menor; ambos os trabalhos exigiram um estudo cuidadoso e extenuante. O importante é que o estilo sirva à história, e não o contrário. Assim, no lugar do cinemascope entrou o 16 mm, que me daria um visual mais bruto, uma luz mais dura e um grão maior (especialmente com a ampliação posterior para 35 mm). Infelizmente, algumas pessoas parecem ter julgado que esta estética denunciava desleixo por parte da produção, quando, na realidade, esta era uma proposta estudada detalhadamente e que exigia tanto trabalho para realizar quanto os belos quadros de Amor & Cia. Da mesma forma, a cenografia era extremamente realista. Como não podíamos filmar nos barracos verdadeiros, já que estes mal conseguiam abrigar uma família (imaginem então uma equipe de cinema, câmera, luzes...), Vera Hamburger recriou os interiores em estúdio com impressionante competência. Até mesmo outros profissionais do meio ficaram surpresos com o resultado, pois construímos os cenários com tijolo e cimento, descartando a idéia de utilizarmos madeira simulando aqueles materiais. E um detalhe importante: acabamos gastando menos do que se tivéssemos insistido em uma cenografia tradicional. Capítulo XXXIX A Força dos Anônimos A forma como os atores brasileiros se superexpõem é algo que complica o trabalho dos cineastas. Como nosso star system vem da televisão, e não do cinema, o público está mais do que habituado a enxergar aqueles mesmos rostos na sala de sua casa, dia após dia, e acaba criando uma familiaridade com os artistas que se torna prejudicial a estes. Quando o ator finalmente participa de um filme, o espectador sente dificuldades em esquecer que aquela pessoa estava fazendo um comercial de telefonia num canal, apresentando um programa em outro, participando de uma novela e fazendo pontas em programas humorísticos. Conseqüentemente, o filme se enfraquece, já que o personagem não se torna crível. Caso escalássemos nomes famosos em Uma Onda no Ar, todos os nossos esforços para criar um universo real teriam sido desperdiçados e, portanto, era imperativo que fôssemos atrás de atores desconhecidos do grande público – e, somente para o papel do Jorge, chegamos a testar mais de 800 pessoas. Finalmente, chegamos aos quatro protagonistas: Alexandre Moreno (Jorge) era de Jacarepaguá; Babu Santana (Roque) era do Vidigal; Adolfo Moura (Zequiel) era gaúcho; e Benjamin Abras (Brau), de Belo Horizonte. Todos com sotaques diferentes e carregados. Portanto, nossa primeira tarefa foi dar início a um longo processo de preparação, entregando-os aos cuidados do Rui Moreira (do Grupo Corpo) e do Gil Amâncio, que não só “limparam” os sotaques, como também cuidaram da postura, do gestual e da ginga dos quatro atores, ajudando-os, inclusive, a desenvolver o envelhecimento gradual dos personagens, já que mais de dez anos se passam no decorrer da projeção. Ao mesmo tempo, levei-os para conhecer o morro, a Rádio e seus fundadores, o que era parte importante do trabalho. Apesar de ser um excelente ator, Alexandre tivera poucas oportunidades no cinema e na televisão; é fato inquestionável que há poucos papéis para intérpretes negros. Ao longo de sua carreira, ele chegara até mesmo a trabalhar como locutor em uma Rádio de Jacarepaguá enquanto fazia testes para as mais diversas produções (algo que pesou quando o selecionamos; afinal, o personagem era justamente um radialista). Certo dia, quando estávamos fazendo uma leitura conjunta do roteiro, percebi que Alexandre estava tentando imitar o Misael e falei: – Alexandre, acho que o caminho não é esse. O Misael é diferente do nosso personagem. Eu quero que o Jorge seja uma criação sua. A partir desta conversa, ele assumiu uma outra direção e, em pouco tempo, captou algo muito mais relevante do que os trejeitos e a voz do Misael: sua postura quase missionária. Jorge age levando a Palavra para seus ouvintes; não a de Deus, mas a de alguém que quer igualmente afastá-los do caminho errado. A história do movimento negro norte-americano, que é grande fonte de inspiração para os ativistas brasileiros, é repleta de líderes com atitude evangelizadora, homens como Malcolm X, Martin Luther King, Jesse Jackson e muitos outros que se formaram, em sua maioria, nos púlpitos, mesmo que posteriormente viessem a assumir posições mais radicais, como Malcolm X, que chegou a considerar a violência justificada quando empregada contra os opressores de seu povo. Esta forma de pensar, como se tivessem “visto uma Luz” e se dedicassem a compartilhá-la com seus irmãos, é evidente naqueles líderes e Misael, embora não tenha origens evangélicas, segue, consciente ou inconscientemente, por este mesmo caminho. Aliás, a presença das igrejas evangélicas no morro é fortíssima, superando até mesmo as católicas, que, de modo geral, não participam tanto do cotidiano dos habitantes locais – e esta é uma realidade que procurei incluir no filme de forma mais sutil, na cena em que Zequiel canta uma música de fundo religioso enquanto solda parte do equipamento da Rádio. Esta cena, diga-se de passagem, despertou alguns comentários negativos por parte da crítica, que não percebeu o propósito da música. O irônico é que, depois de ler um artigo de José Geraldo Couto, que brincava com aquele elemento da narrativa, me dei conta de algo que nunca havia percebido: em todos os meus filmes algum personagem canta em determinado momento – inclusive nos curtas-metragens. Em A Dança dos Bonecos, era a Cíntia quem cantava; em O Menino Maluquinho, a empregada vivida por Edyr Duqui; já em Amor & Cia., Patrícia e Nanini soltavam a voz; e, em Uma Onda no Ar, não apenas o Zequiel cantava, mas também o Brau (Benjamin Abras). Isso não mudou no meu novo curta, O Casamento da Iara, no qual Maurício Tizumba, que, além de ator, é cantor, exibe seu talento para a música. O estranho é que isto nunca foi intencional. Sempre gostei de cantar, é claro, e meu pai afinava pianos, tinha um ouvido formidável para a música, mas só percebi este traço depois da provocação de José Geraldo. Meu próximo longa, Batismo de Sangue, dará continuidade à “tradição”, pois, como o verdadeiro Frei Tito adorava seu violão, no filme o retrataremos cantando Lunik 9, de Gilberto Gil. Capítulo XL Subindo o Morro Como estávamos determinados a filmar no Aglomerado da Serra, precisávamos de um interlocutor junto aos moradores para viabilizar nossos esforços – e este papel foi desempenhado pela própria Rádio Favela. Porém, numa área tão populosa como aquela, é lógico que a emissora estava longe de ser uma unanimidade, e alguns setores da comunidade simplesmente questionavam a validade do trabalho de Misael, Nerimar e companhia. Então, comecei a subir o morro com freqüência, ao lado de minha equipe, e passei a dar entrevistas na Rádio e a conversar com a população, explicando qual era a proposta do filme e como pretendíamos desenvolver nossas atividades ali. Além disso, contratei vários moradores da favela como assistentes de produção e fui me integrando à comunidade aos poucos. No final, já usávamos os banheiros dos barracos, passávamos cabos de um lado para outro e empregávamos uma infinidade de pequenos serviços oferecidos pelos habitantes locais, o que significou uma razoável injeção de dinheiro lá dentro. Chegamos até mesmo a utilizar vários deles como figurantes, o que trouxe, acredito, mais sinceridade ao filme. Foram todos muito generosos comigo e com a equipe e, com o passar do tempo, tornei-me conhecido por boa parte das pessoas, que até faziam brincadeiras quando me viam passar na rua, gritando: Ô Helvécio! Ação! ou Corta!. Em contrapartida, nos esforçávamos bastante para não atrapalhar a rotina local. Como as ruas eram estreitas, por exemplo, chegávamos sempre muito cedo, às 5h30 da manhã, para não interrompermos o trânsito de carros e ônibus que desciam levando os moradores para o trabalho. Mas às vezes era impossível evitar algum tipo de intervenção, como ao rodarmos a seqüência em que os carros da polícia sobem o morro – naquele dia, tivemos que cercar trechos grandes e mobilizar muita gente para que tudo funcionasse. Quando lidamos com uma comunidade real, inevitavelmente surge a expectativa, por parte de seus integrantes, de que aquele filme irá modificar a vida de todos, transformando radicalmente aquela realidade. Isso me preocupava muito e, por isso, dizia sempre (através da Rádio, inclusive) que Uma Onda no Ar não mudaria a vida de ninguém, que apenas chamaríamos a atenção das pessoas para aqueles problemas, mas que isto era apenas um humilde começo. Ainda assim, sinto que eles perceberam que o projeto lutava em prol do aglomerado. Já para a Rádio Favela, o filme significou muito, obviamente, amplificando sua mensagem inclusive fora do país: Misael foi chamado várias vezes para ir aos Estados Unidos e à Europa e chegou até mesmo a receber um prêmio da ONU – algo que “profetizamos” no longa (na vida real, ele tinha sido premiado no Dia Internacional de Combate às Drogas pelo papel da Rádio na luta contra o tráfico). Dessa forma, a história do filme acabou se misturando à história da Rádio Favela. Eu não queria invadir o morro ao lado da polícia, levando os moradores a pensarem que tínhamos medo deles. E, mais uma vez, fui conversar com o Misael, que respondeu com uma pergunta: – Quando você vai filmar na rua, você pede polícia? – Sim, é preciso, pois estou com equipamentos, precisamos parar o trânsito... – Pois então. Aqui é a mesma coisa. O povo vai entender. O fato é que não podíamos dispensar a presença da Polícia Militar. Além da segurança (como expliquei para Misael, lidávamos com equipamentos caríssimos), a instituição nos ofereceu apoios logísticos, emprestando armas e viaturas para serem usadas no filme. Por via das dúvidas, acabei encontrando uma forma de evitar que a presença dos policiais soasse de forma intrusiva. Depois de ser apresentado a um tenente que morava na favela, sugeri ao comando da PM que o destacasse para a tarefa, o que se revelou um grande acerto, pois ele era respeitado pela população por ser um sujeito honesto e justo, que nunca fizera acordo com bandidos. Aliás, quando entrei em contato com a Polícia Militar pela primeira vez, para solicitar um esquema de segurança, os comandantes ficaram cautelosos quando descobriram qual seria o tema do filme – e pediram várias vezes para ler o roteiro. Como eu sabia que eles não iriam gostar de alguns elementos da narrativa, recusei-me a ceder o texto e, finalmente, eles acabaram nos dando o apoio necessário (sem o qual ficaríamos em maus lençóis). Não que o filme se esforçasse para falar mal da polícia. Na realidade, eu sabia que a direção da PM vinha se esforçando para mudar o relacionamento com as comunidades, realizando experiências com destacamentos que permaneciam o tempo todo naquelas regiões, em vez de enviarem viaturas apenas para a captura de bandidos (depois das filmagens, doamos para a instituição os uniformes que havíamos criado para o longa – até mesmo para evitar que estes caíssem em mãos erradas). Infelizmente, estas iniciativas são uma exceção no Brasil, cujas forças policiais são mal treinadas, autoritárias e compostas, inclusive, por muitos negros que tratam mal os próprios negros – algo que Gil e Caetano expressaram muito bem em Haiti: “Quando você for convidado pra subir no adro da Fundação Casa de Jorge Amado Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos De ladrões mulatos E outros quase brancos Tratados como pretos Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados...” Retratei isso no filme, com o policial negro que reprime os grupos que estão dançando break na rua (uma seqüência que tem a participação de Nelson Triunfo, um dançarino espetacular). Historicamente, a relação da polícia com o pobre e o negro é de uso permanente da força. Então não havia como buscarmos ser verdadeiros sem exibirmos estes abusos. Havia dois fatores complicadores adicionais que levaram a repressão à Radio Favela ser tão violenta como retratamos em Uma Onda no Ar. Em primeiro lugar, infrações referentes às telecomunicações devem ser resolvidas pela Polícia Federal, que cumpre os mandados com o respaldo da PM – e esta mistura de jurisdições é uma questão sempre problemática. Além disso, a Rádio foi criada ainda na época da ditadura, que temia imensamente o poder desta mídia. (No início dos anos 70, em Vitória, dois garotos montaram um transmissor amador no bar do pai de um deles e a forma extremamente violenta com que este foi preso e acusado de subversão indica o medo que os generais militares sentiam do alcance das rádios piratas.) Curiosamente, excetuando-se o episódio da invasão de uma emissora no Rio por Marighella, que queria ler um comunicado, a esquerda brasileira praticamente ignorou este poderoso recurso em suas ações, ao contrário do que os rebeldes liderados por Fidel Castro fizeram na Sierra Maestra (Che Guevara inaugurou a Radio Rebelde para divulgar a ideologia marxista para os camponeses cubanos). Assim, a repressão adotava o método de “salgar a terra”, quebrando todo o equipamento para evitar que este voltasse a operar – e Misael sempre diz que suavizei muito a forma como ele foi tratado pela polícia e que, ao contrário do que acontece no filme, ele não levou apenas um tapa, e sim apanhou muito. Na última vez em que a Rádio foi fechada (incidente que abre o filme), se eu colocasse na tela o aparato policial usado na vida real, todos me criticariam pela aparente irrealidade da situação: foram enviados mais de 700 homens, além de helicópteros, para realizar a tarefa. A idéia, segundo descobri depois, era “dar uma demonstração de força”. Creio que este objetivo foi cumprido. Capítulo XLI Muxiba e Ossos A maior parte das pessoas enxerga a favela como o estereótipo daquilo que ocorre no Rio de Janeiro, em que há um traficante poderoso mandando em todos na comunidade. Em Belo Horizonte, a estrutura de poder é bem diferente. Num lugar como o Aglomerado da Serra, por exemplo, que conta com 60 mil habitantes, não há um “chefão” que comanda com mão-de-ferro; em vez disso, existem vários pequenos traficantes espalhados por vários pontos e não se vê uma quantidade de armas tão grande como no Rio. O poder é mais dissimulado, dividido. Assim, não tivemos que pedir uma “autorização” do tráfico para filmarmos na favela. Por outro lado, como fiz questão de conversar com todos os grupos e associações do aglomerado, inevitavelmente tive que abordar também os traficantes. Eu os encontrei disputando um campeonato de futebol em uma quadra da comunidade e expus rapidamente o que iria fazer, explicando que o filme não girava em torno do tráfico, mas sim da Rádio Favela. Foi o bastante; não enfrentamos problema de espécie alguma, mesmo quando rodávamos às 3, 4 horas da madrugada. Antes do início das filmagens, conversei muito com os membros de minha equipe, estabelecendo regras claras de como todos deveriam se comportar enquanto estivéssemos na comunidade. Salientei, por exemplo, que não admitiria nenhum tipo de relação com drogas – não por uma postura moralista, mas para evitar qualquer tipo de confusão que pudesse vir a prejudicar os moradores. Em Uma Onda no Ar, há até traficante fazendo papel de traficante, pois um dos integrantes do chamado “movimento” quis interpretar a si mesmo. No entanto, quando fomos rodar a cena, um dos policiais que nos acompanhava falou: – Eu não quero que aquele cara ali pegue numa arma nossa. Estabeleceu-se imediatamente um clima de tensão, mas não cabia à nossa equipe resolver a questão, já que não tínhamos qualquer informação de que aquele indivíduo fosse procurado pela polícia (e não devia ser, caso contrário teria sido preso no ato), embora fosse claro que ele tinha, sim, envolvimento com o crime. O dilema foi resolvido quando esclarecemos que as armas ficariam sobre uma mesa durante toda a cena, sem que ninguém as tocasse (e é óbvio que estavam descarregadas). Outro incidente curioso relacionado ao cruzamento entre realidade e ficção ocorreu quando nos preparávamos para filmar na “fortaleza do tráfico” vista no longa. Na verdade, aquelas ruínas pertenciam a um centro de saúde cuja construção fora abandonada anos antes e que acabara sendo depredado com o passar do tempo, tendo suas janelas e portas arrancadas. Vendo aquele prédio no alto do morro, Vera sugeriu que o usássemos no filme e, assim, levamos vários móveis para montarmos a cena que se passaria ali. No dia seguinte, quando chegou para o trabalho, Vera notou que a disposição dos móveis havia sido alterada durante a noite e, depois de conversar com algumas pessoas, descobriu que aquilo fora obra dos traficantes de uma boca próxima dali, que haviam decidido “ajudar” a produção ao mostrar como eles arrumariam a mobília. Aceitamos a sugestão. É impossível não se deixar afetar por todos os dramas que ocorrem em uma comunidade carente como aquela. Apenas no período das filmagens, presenciamos várias situações trágicas, de partir o coração. No barraco em que rodamos a cena na qual Jorge e Zequiel testam o transmissor, por exemplo, morava uma família com 12 crianças, e o pai, sempre bêbado, batia na esposa constantemente. Certo dia, quando chegamos para trabalhar, ela havia ido embora com os filhos. Já em outro momento, ocorreu uma triste coincidência. Havíamos acertado de filmar uma cena em um bar do aglomerado, que na história pertenceria ao pai do Brau, que era assassinado em um tiroteio. Pois alguns dias antes de filmarmos, o filho do verdadeiro dono do bar foi morto por uma bala perdida. E a todo instante escutávamos uma história do tipo Fulano brigou com sicrano e teve que fugir do morro!, Beltrano levou uma facada depois de ser confundido com outra pessoa!, e por aí afora. Não consigo ficar indiferente a esta trágica realidade brasileira. Cada um desses relatos mexia comigo profundamente. A favela é um lugar incrivelmente barulhento. A quantidade de sons que a comunidade produz é enlouquecedora – principalmente para alguém tão perfeccionista como o José Louzeiro, responsável pelo som direto. Na medida do possível, contávamos com a cooperação dos moradores, pedindo para que desligassem suas tevês, abaixassem o volume do rádio ou mesmo ficassem em silêncio absoluto enquanto rodávamos um plano. O problema eram os cachorros. O aglomerado da Serra tinha uma quantidade assombrosa de cachorros e, quando estes começam a latir, não há como simplesmente pedir que se calem por alguns minutos. E não podíamos (nem queríamos) matá-los. Finalmente, alguém surgiu com a idéia que resolveu a questão: tínhamos sempre um saco repleto de muxiba e ossos – quando um animal se punha a latir, alguém da produção ia até lá e jogava algo pra ele, que se calava no ato. Quem podia imaginar que o maior segredo para se fazer som direto em externas seria um saco de muxiba? Capítulo XLII A Voz do Morro O Chile conta com um excelente estúdio de mixagem, e foi lá que fizemos a de Amor & Cia. e Uma Onda no Ar. Muitas produções brasileiras preferem realizar este trabalho em estúdios de Los Angeles, mas sempre percebi um problema sério dos técnicos norte-americanos com relação ao português: como não entendem nossa língua, eles a tratam como uma música, uma melodia a ser refinada. Mas nós, ibero-americanos, sibilamos muito, e eles tendem a cortar este sibilado e, conseqüentemente, nossos “ésses”. Basta observar alguns filmes brasileiros mixados nos Estados Unidos para perceber que as palavras terminadas em “s” costumam soar inconclusas; o “estamossss” vira “estamo”, e assim por diante. Já os chilenos, compreendendo o problema do sibilado, não cortam o “s”, apenas o acomodam, o reduzem, sem eliminá-lo totalmente. Mas não é só isso. É complicado mixar o som ao lado de alguém que não entende os diálogos. Até que ponto aquele técnico está apenas supondo que o diálogo está sendo ouvido e bem compreendido, já que ele mesmo não entende uma palavra daquilo? Para mim, é fundamental que o mixador seja, no mínimo, capaz de perceber as palavras individualmente. E, para isto, é preciso que tenha uma proximidade maior com o português. Além de trabalhar na preparação do elenco, Gil Amâncio também foi responsável pela trilha de Uma Onda no Ar. Nosso objetivo era colocar a voz do morro, o som da favela, no filme. Porém, esta voz não é mais o samba, como aconteceu até a década de 50 ou 60. Hoje o morro conta com uma variedade enorme de ritmos, num som rico e polifônico que queríamos levar para a trilha. Além disso, assim como a Rádio Favela sempre ofereceu espaço para novas bandas, fizemos questão de incluir músicas de grupos de Belo Horizonte, mais uma vez com o propósito de seguirmos o espírito da emissora. No filme, o personagem Brau funcionou também como uma ferramenta para que pudéssemos estabelecer a relevância do rap na cultura da comunidade. Através de pesquisas, descobrimos que na época (início dos anos 80) já havia uma espécie de “proto-rap”, conhecido como Tagarela, e que se resumia a versos ainda muito falados e não tão marcados como o rap – mas que já expunham uma vertente poética. Não é à toa que, em certo momento, vemos Brau percorrer o arco do viaduto Santa Tereza: como Carlos Drummond de Andrade brincara ali nos anos 20, queríamos fazer uma ligação atemporal entre ele e os poetas do rap, numa leitura que poucos decifraram ao assistir ao longa. O DVD de Uma Onda no Ar traz, entre seus extras, uma seqüência alternativa de créditos iniciais. Nessa versão, vemos o ótimo dançarino Rui Moreira se apresentando ao fundo, meio fora de foco, à medida que os nomes do elenco e da equipe surgem na tela. Essa seqüência foi criada por dois irmãos mestres em efeitos gráficos, Vítor e Vinícius, acostumados a realizar trabalhos para o meio publicitário. Infelizmente, enfrentamos vários contratempos com o laboratório, que não acertava na transferência da abertura para película. Como tínhamos um pacote apertado com a empresa e eu estava mais preocupado com o blow-up do 16 mm para 35 mm, acabei sacrificando a seqüência, perdendo a dança que, na minha opinião, representava muito bem o tema do filme. Foi uma pena. Porém, orçamento é linguagem. O cineasta pode ter uma “grande idéia”, mas esta só será realmente boa caso seja compatível com o orçamento do projeto. Em vez de realizá-la mal, é preferível deixá-la de lado. Embora tenhamos conseguido captar a verba necessária para realizar Uma Onda no Ar, a tarefa foi dificílima. Afinal, era um filme sobre uma rádio pirata que seria protagonizado por atores negros e desconhecidos – uma combinação que não agradou muitos dos possíveis patrocinadores. Assim, o único elemento que tínhamos para utilizar como base da apresentação do projeto era meu currículo, ao passo que o que as empresas realmente querem é a presença de atores globais. Com isso, a captação foi demorada e tivemos que dividi-la entre vários investidores – daí a grande quantidade de logotipos no início da projeção. Aliás, é curioso: as pessoas costumam achar que, quanto maior o número de empresas citadas como patrocinadoras, mais fácil foi o processo de captação – quando é justamente o oposto. No final, decidi doar 8% de toda a arrecadação que Uma Onda no Ar obtivesse nos cinemas e em vídeo para a Rádio Favela. A princípio, Misael recusou a oferta, dizendo estar mais do que satisfeito com a divulgação que faríamos do trabalho da emissora, mas ainda assim insisti. Já havíamos pago a ele e aos seus companheiros um valor fixo pelos direitos de adaptação da história, mas senti que deveria fazer mais. Afinal, o filme se inspirava na trajetória deles e era apenas justo que, sempre que o longa ganhasse alguma coisa, eles também pudessem colher os frutos. Capítulo XLIII Perdas Pessoais A primeira sessão pública do filme ocorreu no pé do Aglomerado da Serra. Inicialmente, esta nossa première ocorreria em São Paulo, numa sessão organizada pela Viviane Senna (do Instituto Ayrton Senna) para os candidatos à Presidência da República (estávamos em 2002). Porém, por mais honrado que eu estivesse com a deferência (e, de fato, a exibição foi prestigiadíssima), eu queria exibir Uma Onda no Ar em primeiro lugar para a comunidade que tanto nos apoiara. Montamos uma tela enorme na rua e, num domingo à noite, fizemos a sessão. Nada menos do que 5 mil pessoas desceram para ver o filme. Eu passara o dia inteiro olhando ansioso para o céu nublado, torcendo para que não chovesse, mas quando começou a anoitecer o tempo foi fechando ainda mais. Para aumentar minha ansiedade, antes da sessão o Misael decidiu fazer uma longa introdução. Tínhamos ido a Gramado pouco antes e creio que ele aprendeu um pouco com o Festival, pois insistiu em distribuir prêmios para todo mundo: deu uma placa para mim, outras para os atores, para o pessoal da Rádio, para gente da comunidade e acompanhava cada apresentação com um pequeno discurso. Finalmente, sugeri que começássemos o filme. E um verdadeiro temporal desabou sobre todos. Foi uma experiência mágica. Mesmo com todo aquele toró, as pessoas permaneceram ali, de pé, olhando encantadas para a tela. E não permitiam sequer que os guarda-chuvas fossem abertos, porque poderiam atrapalhar a visão daqueles que estavam mais atrás. Foi uma sessão pacífica e emocionante, uma das mais lindas que já presenciei. Uma Onda no Ar recebeu uma série de importantes prêmios internacionais. Somente no Festival de Las Palmas de Gran Canaria, na Espanha, recebeu dois, incluindo o do júri popular. E o melhor é que esta premiação incluía uma boa quantia para que pudéssemos lançá-lo naquele país, o que foi uma surpresa agradável (ele entrou em cartaz na Espanha em 2004). Também fomos premiados no Festival Internacional de Miami, onde fui convidado para participar de um debate muito interessante com o cineasta Jonathan Demme, que havia exibido seu documentário The Agronomist (2003). A partir daí, o filme foi convidado para participar de uma série de eventos em todo o mundo, mas, depois de um tempo, parei de acompanhá-lo, embora Misael tenha feito algumas dessas viagens. Não dá para ganhar a vida em festivais. Ainda hoje, dois anos depois de seu lançamento, Uma Onda no Ar continua a ser exibido em todo o país, participando até mesmo de sessões itinerantes promovidas pelo Banco do Brasil. Creio que a relevância do filme diz respeito à maneira franca com que se propõe a discutir temas difíceis, como o racismo disfarçado, mas sempre presente, que tanto mal faz à sociedade brasileira. Pessoalmente, fazer Uma Onda no Ar representou uma experiência altamente educativa e prazerosa – embora também dolorosa, como já seria de se esperar em um universo com histórias tão tristes como aquele. O mês de setembro de 2002 foi um dos mais difíceis de minha vida. Há algum tempo, meu irmão José Luís vinha lutando contra um implacável câncer de pulmão. A essa altura, minha mãe já estava com 89 anos de idade e preferimos não contar para ela o que estava acontecendo, pois não havia nada que pudesse fazer. Porém, à medida que meu irmão foi enfraquecendo, percebemos que não podíamos mais esconder sua doença de mamãe – que, é claro, ficou chateadíssima com a notícia, embora logo recuperasse as forças, dizendo que iria ajudá-lo de todas as maneiras possíveis. Em 18 de setembro, viajei para a Espanha para acompanhar a exibição de Uma Onda no Ar no Festival de San Sebastian. Dois dias depois, haveria uma conferência de imprensa para que os diversos cineastas pudessem falar sobre seus filmes. Quando eu estava no palco, explicando o processo de realização do longa, uma pessoa se aproximou com um celular, sugerindo que eu o atendesse imediatamente. Mamãe havia morrido. Fui para o hotel, tentando decidir o que faria em seguida. San Sebastian fica no Norte da Espanha; para voltar, eu teria, primeiro, que viajar para Madri e então tentar conseguir um vôo para o Brasil, chegando somente depois do enterro. Sem encontrar outra solução, fui com Simone até a Catedral de San Sebastian e pensei em minha mãe, rezando por ela, que sempre foi muito católica. Naquela noite, dediquei a sessão de Uma Onda no Ar a ela, mas apenas em pensamento, sem expor ao público o que acontecera. Esse tipo de dor não se divide. Mais tarde, telefonei para Belo Horizonte e conversei com meus irmãos Carlos Alberto, Carlos Eduardo e Maria Luisa – já Luís Fernando, bastante abalado, não conseguiu falar por muito tempo. Para piorar, fui informado de que José Luís também não estava bem, mas não achei que fosse alguma coisa imediata. Dois dias depois, ele morreu, sem saber o que acontecera com mamãe. Quando saí do Brasil, éramos uma família de sete pessoas; quando voltei, éramos cinco. Cheguei a tempo de assistir a missa de sétimo dia de minha mãe. Porém, não estar presente no enterro de pessoas tão próximas é algo terrível; é como se não fechássemos as coisas apropriadamente, deixando os cadáveres eternamente insepultos. Resta o consolo de saber que ela morreu sem ter que passar pela dor de enterrar o filho. E também é reconfortante saber que se foi de maneira leve e bonita. Ela morava com uma empregada, já que sempre se recusou a ir morar na casa dos filhos: Eu vou fazer uma declaração em cartório afirmando que não quis morar com nenhum de vocês, para que ninguém se sinta culpado!, ela costumava dizer. Conforme a senhora que vivia com ela nos contou, mamãe a chamou em seu quarto, durante a madrugada, e pediu que ela abrisse a janela, pois estava com falta de ar. Quando ela se virou para sair, viu que mamãe estava morrendo – e, em questão de segundos, estava tudo terminado. Fiquei com esta imagem de que ela pediu que a janela fosse aberta para, em seguida, sair por ali. Seu nome era Eurydice. Capítulo XLIV Voltado ao Universo Infantil Depois de quase dez anos sem dirigir um trabalho voltado para o público infantil, comecei a sentir vontade de fazê-lo. Enquanto remoía algumas idéias, fui informado de que a TVE do Rio estava promovendo um concurso para a realização de curtas-metragens infanto-juvenis, cujos temas estivessem relacionados ao folclore nacional. Lembrei-me da extensa pesquisa que havia feito sobre a Iara, na época de A Dança dos Bonecos, e de como ficara frustrado com as seqüências protagonizadas pela personagem. Escrevi o roteiro de O Casamento da Iara recheando-o de pequenas sutilezas que, de certa forma, remetiam à história da Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen. Como naquele clássico, a Iara só falaria enquanto fosse uma criatura fantástica, perdendo a voz a partir do momento em que se transformasse em uma mulher comum. Isto abriria campo para que o filme tivesse leituras diferentes; as crianças se divertiriam com as situações vividas pelos personagens, enquanto os adultos reconheceriam as metáforas bem-humoradas (mas críticas) apresentadas pela história, como a mentalidade machista de uma sociedade na qual a esposa ideal é aquela que serve ao marido sempre calada, e é claro, o esfriamento da paixão, provocado pelo cotidiano de um casamento monótono. Como gosto de fazer, escrevi o roteiro especificamente para a Patrícia Pillar e o Maurício Tizumba. Sempre tive grande admiração pelo Tizumba, um artista completo, que não apenas canta, dança e compõe muito bem, como ainda é ótimo ator. Depois de utilizá-lo em uma pequena participação em Uma Onda no Ar, como o motorista do carro da repórter, senti-me em dívida para com seu talento e criei o personagem do pescador com a certeza de que ele o interpretaria muito bem. E estava certo. Já a Patrícia, como expliquei anteriormente, é uma atriz com quem adoro trabalhar – e ela aceitou o convite imediatamente, chegando até mesmo a pedir que a Globo atrasasse em alguns dias sua entrada na novela Cabocla, cujas gravações começariam em seguida, para que pudesse filmar conosco. E não mediu sacrifícios: boa parte de suas cenas foram rodadas às 3 da madrugada, em uma água geladíssima, mas em nenhum momento ela permitiu que isso fosse visível para o espectador. A diferença entre a temperatura de seu corpo e a da água era tão grande que, durante as filmagens, saía fumaça de sua pele. Aliás, eu e o fotógrafo Antônio Luís Soares (com quem trabalhei pela primeira vez) chegamos a considerar a possibilidade de utilizarmos noite americana, mas, depois de alguns testes, desistimos da idéia, pois percebemos que o resultado ficaria aquém do satisfatório. Antônio Luís, diga-se de passagem, revelou-se uma grata surpresa – extremamente competente, ele fez um trabalho sensacional, conferindo ao filme cores belíssimas de fábula e um grão finíssimo. Com O Casamento da Iara já finalizado, tive a idéia de utilizá-lo como o primeiro passo de um novo projeto. Como o curta-metragem tem uma existência efêmera em função de suas poucas alternativas de veiculação, decidi criar quatro novas narrativas e lançá-las como um único longa-metragem dividido em segmentos, que deverá se chamar Cinco Histórias para Pequenos e Grandes. Já concluí, inclusive, o segundo roteiro, Procissão das Almas, e estou preparando o argumento do terceiro curta. Meu objetivo é rodar o segundo episódio antes de dar início aos trabalhos do meu próximo longa-metragem. Se tudo correr bem, Cinco Histórias para Pequenos e Grandes ficará pronto quase na mesma época do lançamento de Batismo de Sangue, o que pode ser bastante interessante. Capítulo XLV A Tragédia de Frei Tito Atualmente, estou trabalhando no roteiro de Batismo de Sangue, adaptação do livro homônimo de Frei Betto que está sendo escrita pela paulista Dani Patarra. Quando decidi levar este dramático relato para as telas, fiz a opção de convidar um roteirista jovem, que não tivesse vivido o período da ditadura e que, portanto, fosse capaz de enxergá-lo com um distanciamento sadio e objetivo. Além disso, esta seria uma forma de certificar-me de que a história ficaria clara para os espectadores mais jovens, que, em sua maioria, desconhecem alguns detalhes mais obscuros da época. Conheci Dani depois de dar uma entrevista para o jornal O Estado de S.Paulo, durante a qual anunciei que estava à procura de um colaborador para meu novo projeto. Entre as diversas propostas que recebi a partir de então, estava um e-mail desta jovem profissional, que, além de se apresentar, dizia que já havia escrito alguns roteiros. Pedi que ela me enviasse seus textos e gostei do que li. Eram narrativas bem inteligentes que contavam com diálogos interessantes e bem construídos. Em seguida, ela viajou para Belo Horizonte e, durante nossa conversa, me contou que seu pai, o jornalista Paulo Patarra, havia sido editor da revista Realidade, na qual trabalhara com Frei Betto, o que não deixava de ser uma curiosa coincidência. Já estamos na quarta versão do roteiro. Escolhi o livro de Frei Betto por acreditar que, até hoje, a participação da Igreja na luta contra a ditadura não foi explorada pelo cinema. Os dominicanos se envolveram intensamente com os revolucionários, utilizando o Convento das Perdizes para abrigar refugiados e ajudando a causa com recursos obtidos através da doação de fiéis. Infelizmente, eles também são lembrados pela relação que tiveram com a morte de Carlos Marighella, porque foram utilizados pelo cruel delegado Sérgio Paranhos Fleury na emboscada que levou ao assassinato do líder revolucionário. Como se não bastasse, a repressão utilizou o episódio para desmoralizá-los publicamente, com a clara intenção de romper a ligação desta igreja esquerdista com o povo. Os militares haviam percebido o perigo em potencial que aqueles dominicanos representavam. Em um país essencialmente católico como o Brasil, a existência de religiosos marxistas que eram respeitados pelos fiéis era algo temerário para os propósitos da ditadura. O filme será todo narrado a partir do ponto de vista dos dominicanos. Junto com a Dani, estou assumindo a voz dos frades, e todos os acontecimentos retratados ao longo da trama serão apresentados de forma subjetiva; o espectador só descobrirá os fatos na medida em que os dominicanos o fizerem. Além disso, esta será a primeira vez que uma versão da morte de Marighella diferente da oficial será vista nas telas. Em Batismo de Sangue, quero arrastar o público para dentro dos porões da ditadura, levando-o a sentir o que significava cair nas mãos daqueles monstros – e, para isto, vou abordar a tortura de uma forma rasgada, totalmente aberta. Mas o núcleo do filme dirá respeito à história do Frei Tito, que conheci no Chile, onde ele chegou depois de ser libertado (ao lado de outros 69 presos políticos) em troca do embaixador suíço no Brasil, que fora seqüestrado pelos revolucionários. Arredio e visivelmente afetado pelo tempo que passara nos porões da repressão, o frade ficou pouco tempo em Santiago. Mais tarde, já em Paris, começou a sofrer alucinações, afirmando ver seu antigo carrasco, Fleury, nas ruas da capital francesa. Enquanto torturavam Frei Tito, seus algozes usavam paramentos religiosos. O propósito era claro: queriam destruí-lo não apenas fisicamente, mas espiritualmente, quebrando-o por dentro. E conseguiram. Mesmo depois de libertado, ele jamais se livrou da tortura, que continuou a corroê-lo lentamente. Finalmente, pouco antes de se matar, em 1974, Frei Tito afirmou que não acreditava mais em Cristo, nem em Marx, nem em Freud, ou seja, passou a negar as três principais vertentes do pensamento ocidental. Não restara caminho algum para ele, a não ser a morte. No filme, pretendo investigar a fundo este conflito interior do frade, que me interessa bastante. Seja como for, estamos prestes a viabilizar o filme economicamente. Fomos, inclusive, selecionados para receber um importante patrocínio da Petrobrás, que nos permitirá dar início às filmagens em 2005. Batismo de Sangue é, sem dúvida alguma, meu projeto mais ambicioso e, por isto mesmo, desafiador. Aliás, estou me preparando cuidadosamente para realizá-lo, já que tenho plena consciência de que ele me levará a uma viagem interior que deverá ser bastante dolorosa. Mas necessária. Epílogo Estou em uma boa fase de minha vida. Viver é um desafio, um prazer. É uma felicidade poder sobreviver daquilo que mais gosto de fazer – e simplesmente adoro criar; sinto-me muitíssimo bem quando estou escrevendo um roteiro ou dirigindo um filme. Isso me torna uma pessoa melhor. E, ao mesmo tempo, sinto-me cada vez mais feliz com a vida que tenho em família. Meu relacionamento com Juliana, Andréa e Bárbara está cada vez mais gostoso e gratificante. É muito bom ver minhas três filhas mais velhas seguindo seus caminhos com tamanha determinação, seguras de seus objetivos. Ao mesmo tempo, além de ter consolidado com Simone uma maravilhosa relação, não apenas sentimental, mas profissional, tornar-me pai novamente depois dos 40 anos revelou-se uma experiência fascinante. O tempo agora é outro, não vejo o mundo caminhar com a mesma velocidade de quando tinha 23, 24 anos – e isto me permite curtir Clara de outra forma, acompanhando seu crescimento e suas descobertas. Não que seja tudo melhor ou pior do que o que vivi com minhas outras filhas. O amor é o mesmo; a comunicação é que é diferente. Atualmente, estamos lendo juntos Cazuza, de Viriato Correia – o mesmo livro que mamãe lia para mim na infância. A vida dá voltas. Cronologia Filmes de longa-metragem/premiações A Dança dos Bonecos (1986) 35 mm, 93 min Roteiro original: Helvécio Ratton, Tairone Feitosa e Ângela Santoro Rodado em Biribiri, Sabará e Belo Horizonte Direção: Helvécio Ratton Produção: Tarcísio Vidigal Direção de Fotografia: Fernando Duarte Direção de arte: Anísio Medeiros – Música: Nivaldo Ornelas – Montagem: Vera Freire Elenco: Wilson Grey, Kimura Schettino, Cíntia Vieira, Ezequias Marques, Divana Brandão, Rui Polanah e Cláudia Gimenez Premiações Internacionais e Nacionais: *?Medalha de Ouro no Festival de Filmes para a Infância e a Juventude de Giffoni, Itália *?Melhor Filme no Festival Internacional de Tomar, Portugal *?Prêmio Especial do Júri, Prêmio da Crítica, Troféu Macunaíma da Assoc. de Cineclubes *?Melhor Fotografia, Melhor Trilha Sonora e Melhor Cenografia no XIX Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *?Melhor Filme – Júri Popular, Prêmio Especial do Júri e Melhor Ator no XVII Festival de Cinema de Gramado Menino Maluquinho (1995) 35 mm, 83 min Adaptação do livro homônimo de Ziraldo. Roteiro: Helvécio Ratton, Alcione Araújo, Maria Gessy e Ziraldo Rodado em Belo Horizonte e Tiradentes Direção: Helvécio Ratton Produção: Tarcísio Vidigal / Grupo Novo de Cinema – Co-produção: Quimera Filmes Direção de Fotografia: José Tadeu Ribeiro Direção de Arte: Clóvis Bueno – Música: Antônio Pinto – Montagem: Vera Freire Elenco: Samuel Costa, Patrícia Pillar, Roberto Bomtempo, Luís Carlos Arutin, Vera Holtz Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Prêmio Margarida de Prata, CNBB *?Prêmio Golden Cairo de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema do Cairo, Egito *?Prêmio Especial do Júri no Festival Ragazzi Bellinzona, Suíça *?Prêmio do Público no Festival Internacional de Cinema para Crianças e Jovens de Montevideo, Uruguay *?Melhor Filme na IV Mostra do Cinema Nacional de Cuiabá *?Melhor Filme – Júri Popular – 4º Cinema Criança – CINEDUC Amor & Cia. (1998) 35 mm, 100 minutos, Cinemascope, Dolby Digital Adaptação livre da novela Alves & Cia., de Eça de Queiroz. Roteiro: Carlos Alberto Ratton Rodado em S. João del Rei e Rio de Janeiro Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes – Co-produção: Riofilme e Rosa Filmes (Portugal) Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Direção de Arte: Clóvis Bueno – Som: José Moreau Louzeiro – Música: Tavinho Moura Montagem: Diana Vasconcelos Elenco: Marco Nanini, Patrícia Pillar, Alexandre Borges, Rogério Cardoso, Cláudio Mamberti, Maria Sílvia e Ary França Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Melhor Filme Ibero-americano no 14º Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata *?Melhor Filme, Melhor Atriz e Melhor Direção de Arte no 31º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *?Melhor Direção, 2º Prêmio IBEU de Cinema *?Melhor Ator, Marco Nanini, Associação Paulista de Críticos de Arte *?Melhor Direção de Arte, 2º Prêmio Estação Botafogo do Cinema Brasileiro *?Melhor Ator, Marco Nanini, e Melhor Trilha Sonora no Festival de Miami *?Melhor Filme Latino-americano e Melhor Filme – Federação Nacional de Imprensa no XVII Festival Cinematográfico Internacional do Uruguay *?Melhor Ator, Marco Nanini, e Melhor Roteiro no Festival Internacional de Cinema de Santa Cruz, Bolívia *?Melhor Maquiagem no Prêmio Avon de Artes Uma Onda no Ar (2002) 35 mm, 92 minutos, Dolby Digital Roteiro original de Helvécio Ratton e Jorge Durán, livremente inspirado na história real da Rádio Favela Rodado em Belo Horizonte Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Direção de Arte: Vera Hamburger – Som: José Moreau Louzeiro – Música: Gil Amâncio – Montagem: Mair Tavares Elenco: Alexandre Moreno, Babu Santana, Adolfo Moura, Benjamin Abras, Edyr Duqui e Priscila Dias Prêmios Internacionais e Nacionais: *?Prêmio Lady Harimaguada de Plata e Prêmio do Júri Popular de Melhor Filme no 4º Festival Internacional de Cine – Las Palmas de Gran Canaria /Espanha *?Melhor Filme – Júri Popular no 5ème Festival du Cinéma Brésilien de Paris *?Prêmio Especial do Júri no 20th Miami International Film Festival *?Melhor Ator – Alexandre Moreno e Prêmio Especial do Júri no 30º Festival de Gramado – Cinema Brasileiro e Latino *?Margarida de Prata – Menção Honrosa da CNBB *?Melhor Ator – Alexandre Moreno e Melhor Ator Coadjuvante – Babu Santana no 2º Festival de Cinema de Varginha *?Prêmio OCIC – Prêmio de Pós-Produção da Organização Católica Internacional de Cinema, pela qualidade e criatividade no uso da linguagem cinematográfica e por promover a Cultura da Vida, Valores Cristãos, Direitos Humanos, Cultura da Paz e Desenvolvimento Humano. Debates Internacionais: *?Giving Voice to the Voiceless : Community Radio Panel Roundtable – The Walker Art Center – Minneapolis – EUA / 2002 – Participantes : Misael dos Santos/Rádio Favela; Walter Q-Bear Banks/KMOJ Radio e Janis Lane-Ewart/KFAI Fresh Air Community Radio. *?Free Radio... A Voice for the Unheard – 20th Miami International Film Festival – EUA/ 2.003 – Participantes: Misael dos Santos/Rádio Favela; Helvécio Ratton, Michele Montas/Rádio Haiti Inter e Jonathan Demme, diretor dos filmes The Agronomist e O Silêncio dos Inocentes • www.umaondanoar.com.br Filmes de curta-metragem/premiações Criação (1978) Direção: Helvécio Ratton e Fausto Hugo Prats Fotografia: Carlos Giovanni – Música: Célio Balona Prêmios: *?Premiado no Salão de Humor de Curitiba, em 1980 *?Prêmio Concurso Mineiro de Filmes de Curta-metragem, em 1979 Em Nome da Razão (1980) Direção: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema – Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Tavares de Barros Narração: Roberto Marcondes Prêmios: *?Prêmio Especial do Júri no X Festival de Lille, França *?Melhor Documentário na IX Jornada Brasileira de Curtas-metragens *?Margarida de Prata da CNBB *?Primeiro lugar no IX Concurso de Filmes Mineiros de Curtas-metragens João Rosa (1982) Direção: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Música: Nivaldo Ornelas – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Tavares de Barros Narração: Paulo César Pereio Prêmio: *?Melhor Direção e Melhor Trilha Sonora no XIV Festival de Brasília. Um Homem Público (1982) Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Grupo Novo de Cinema – Produção Executiva: Tarcísio Vidigal Fotografia: Dileny Campos – Som: Evandro Lemos – Montagem: José Sette Prêmio: *?Roteiro premiado pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Elixir do Pagé (1989) Roteiro e Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia e Câmera: Gilberto Otero Ilustrações: Eri Gomes – Música: Sérgio Canedo Edição: Júpiter Camisassa e Osger Demóstenes Elenco: Paulo César Pereio, Ana Romano, Mônica Magalhães e Simone Magalhães Prêmios: *?Melhor Direção e Melhor Ator no Festival de Canela, Rio Grande do Sul; *?Prêmio Polivídeo no Festival VideoBrasil, São Paulo. Um Olhar Sobre Barcelona (1990) Roteiro e Direção: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos / Quimera Filmes Fotografia e Câmera: Gilberto Otero Edição: Simone Magalhães Matos Exibido na TV Cultura de São Paulo e na Rede Minas de Televisão. Vida de Rua (1991) vídeo, 35 min Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Johns Hopkins University e UFMG – Simone Magalhães Matos Confecção de Bonecos: Paulinho Polika Diretor de Fotografia: Gilberto Otero Edição: Mário Nereu Prêmios e Participações Internacionais e Nacionais: *?Congresso Internacional Cidade e Educação na Cultura pela paz, RJ *?Exibido em vários simpósios e congressos internacionais sobre AIDS, em redes de televisão educativas, associações comunitárias, escolas das redes pública e particular e nas ruas de diversas cidades brasileiras, em programas educativos e de prevenção à AIDS para crianças e adolescentes com trajetória de rua Pequenas Estórias (1995 a 1997) Série de oito curtas-metragens que homenageiam o centenário de Belo Horizonte. Produção: Quimera Filmes I – E os Próximos Cem? Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero Música Original: André Baptista – Voz: Titi Walter Edição: Luís Victor II – Contratempo Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção e Direção de Arte: Simone Magalhães Matos Fotografia: Carlos Giovanni Música Original: André Baptista Edição: Gafanhoto Elenco: Ana Romano e Euzébio Silveira III – O Poeta e o Viaduto Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Poema: Carlos Ávila – Fotografia: Gilberto Otero – Música Original: André Baptista Edição: Luís Victor – Voz: Titi Walter Elenco: Ricardo Macedo IV – A Cidade dos Livros Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero – Pesquisa Literária: Leonardo Magalhães Gomes – Música Original: André Baptista – Edição: Luís Victor – Imagens Históricas: Zoltan Glueck Narração: Simone Magalhães, Eurydice de Amorim Ratton, Wilson Baptista, Titi Walter, Helvécio Ratton V – Prefeitos Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Ricardo Vianna – Música Original: André Baptista – Edição: Luís Victor VI – Pampulha, até Quando? Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: Gilberto Otero – Música Original: André Baptista – Edição: Eduardo Zech – Efeitos Visuais: Leonardo Rocha – Direção de Produção: Guilherme Fiúza Vozes: Lígia Jacques, Titi Walter, Ernani Maletta, Mateus Braga VII – Pé na Roça Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Música: Tavinho Moura – Edição: Luís Victor – Direção de Produção: Guilherme Fiúza VIII – Barragem Social Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Simone Magalhães Matos Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Música Original: Juarez Moreira – Edição: Luís Victor Participações Internacionais e Nacionais: *?Encontro de Urbanismo, Costa Rica *?Conferência Habitat, Istambul, Turquia *?Semana de Belo Horizonte em Havana *?Exibido no Circuito de Cinemas Belas Artes Liberdade *?Mostra “As Dez Décadas que Fizeram o Cinema” *?Incluído na revista Zapp Cultural, CD-ROM da Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte *?Seminário A Cidade Latino-americana e o Futuro *?Exibido em emissoras de TV de sinal aberto e por assinatura *?Incluído no CD-ROM “BH Cem Anos – Nossa História”, Jornal Estado de Minas O Casamento da Iara (2004) 15 min Direção e Roteiro: Helvécio Ratton Produção: Quimera Filmes – Produção Executiva: Guilherme Fiúza Fotografia: Antonio Luís Mendes – Som: Gustavo Campos – Música: Flávio Henrique Montagem: Mair Tavares Elenco: Patrícia Pillar, Maurício Tizumba, Rodolfo Vaz, Benjamin Abras, Manoelita Lustosa e participação especial do candomblé de D. Mercês. Índice Apresentação – Hubert Alquéres 05 Introdução 15 Prólogo 23 A Primeira Infância 29 Mergulhando na Política 43 Clandestino 51 Fuga para o Chile 63 Respirando Cinema 73 De um Golpe para Outro 81 A Queda de Allende 95 A Geladeira 107 Redescobrindo Minas 119 Movimento Inverso 125 Criando Criação 131 Filmando o Inferno 137 O Horror da Lobotomia 151 Entra Basaglia 161 Drummond e Manuelzão 167 A “Intromissão” de Spielberg 179 A Cidade-Fantasma 201 A Arte de Apocalypse 213 Trabalho em Equipe 219 Vaquinhas de Manga 227 Simone e o Elixir 231 Filmografia Imaginária 247 Conhecendo Barcelona 251 Bonecos contra a AIDS 261 Maluquinho Drummondiano 267 Procurando o Maluquinho 273 Dirigindo Crianças 279 Fazendo Horas a Mais 285 Os Cachorros e as Árvores 297 Manter-se Criança 307 Narrando com Imagens 313 Quimera e as Estórias 319 Eça em Minas 333 Viagem ao Passado 341 Trabalhando com o Ator 347 O Filme e suas Circunstâncias 353 Nanini e o Trem 359 Você Está na Favela 367 A Força dos Anônimos 375 Subindo o Morro 381 Muxiba e Ossos 389 A Voz do Morro 395 Perdas Pessoais 401 Voltado ao Universo Infantil 409 A Tragédia de Frei Tito 413 Epílogo 419 Cronologia 421 Nota: Todas as fotografias deste volume são do acervo pessoal de Helvécio Ratton Coleção Aplauso Perfil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? 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