Paulo Betti Na Carreira de um Sonhador Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Perfil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistente Operacional Andressa Veronesi Revisão Ortográfica Heleusa Angélica Teixeira Tratamento de Imagens Edson Luiz Modena Paulo Betti Na Carreira de um Sonhador por Teté Ribeiro Cultura Fundação Padre Anchieta Imprensa Oficial São Paulo - 2005 © 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação elaborado pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Ribeiro, Teté Paulo Betti: na carreira de um sonhador / Teté Ribeiro – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005. 320p.: il. – (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-232-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-376-2 (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes cinematográficos – Brasil 2. Atores e atrizes de teatro – Biografia 3. Atores e atrizes de televisão – Biografia 4. Betti, Paulo I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.092 Índices para catálogo sistemático: 1.Atores brasileiros : Biografia : Representações públicas : Artes 791.092 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 6910/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audio- visual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa cole- ção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação com os nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estrei- tando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõem seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do País, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries : Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais preexistentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Para Ana, Dênis e Paula Teté Ribeiro Introdução   Conheço o Paulo Betti há 20 anos. Foi em 1984, quando a peça Feliz Ano Velho estreou no Centro Cultural São Paulo, muito perto da casa dos meus pais. Eu e minha turma inseparável resolvemos assistir no primeiro dia. E no segundo. E no terceiro. E no quarto... A turma, no caso, era formada por mim, minha irmã, Ana, e nossos melhores amigos do começo da adolescência, o Dênis e a Paula (o Dênis é meu melhor amigo até hoje; a Paula ganhou uma meia dúzia de concorrentes; e irmã é irmã). Assistimos um monte de vezes à peça, que depois mudou de teatro e foi para o Auditório Augusta (onde a hoje VJ da MTV e cineasta Marina Person ficava muitas vezes na bilheteria – sua mãe era a dona do teatro). O Feliz Ano Velho fez nossa simpatia pelo teatro virar paixão. Aqueles seis atores – Marcos Frota, Marcos Kaloy, Adilson Barros, Denise Del Vecchio, Cristiane Rando e Lília Cabral – nos fizeram rir, chorar e muitas vezes dar a fala baixinho junto com eles. Nós vimos tantas, mas tantas vezes a peça que decoramos todo o texto do Alcides Nogueira. E as músicas que a Tunica escolheu, assim como as composições inéditas da peça. E o Paulo Betti era o diretor, que ia ao teatro e nos deixava morrendo de vergonha. Ele sempre assistia da última fileira, depois reunia os atores e dava dicas de como fazer uma cena ser mais engraçada, como um gesto poderia dar a intenção exata de uma fala e outras coisas assim. Depois de um tempo, ele nos conheceu melhor e gostou de nós, aí perdemos a vergonha e ficávamos próximos dos atores vendo-o dirigi-los. Ficávamos maravilhados com aquilo, era uma aula, um curso avançado de direção e de interpretação. Paulo Betti nos ensinou como um segundo a mais pode destruir uma piada, assim como pode fazer uma coisa sem importância ter a maior graça do mundo. Paulo Betti sabe essas coisas, parece que entende o que cada uma das pessoas da platéia vai sentir quando uma determinada cena for apresentada. E ele nos incentivava a ver outros espetáculos, a conhecer outros atores, outros diretores, outras companhias de teatro. E muitas vezes até arranjava convites para a gente – um bando de adolescentes duros, mas que tinha conquistado o coração do Marinho, o produtor de Feliz Ano Velho, que nos deixava entrar de graça no teatro. Nossa paixão pelo teatro era tão grande que eu achei, por um momento, que queria ser atriz. Logo eu, a mais jeca da turma, que morro de medo de falar em público, resolvi fazer um teste com o Antunes Filho. Eu e o Dênis escolhemos uma cena, ensaiamos e – milagre – passei no teste. Eu adorava aquela turma do teatro do Antunes, era um povo divertido, engraçado, meio hipongo. Só não gostava quando tinha de atuar, ainda mais na frente dos outros. Meus pais também ficavam preocupados, já que os ensaios começavam às 19h30 e só acabavam às 23 horas – eu ia para a casa de metrô, aos 14 anos, com a mochila agarrada no peito de medo de assalto. Uma noite, eles foram assistir à peça Com a Pulga Atrás da Orelha, em que atuava a Eliane Giardini (nós já tínhamos visto e recomendamos para os dois). No intervalo, encontraram o Paulo Betti no foyer do Procópio Ferreira e se apresentaram a ele. Os três ficaram conversando horas, meus pais nem entraram para ver o segundo ato. No dia seguinte, o Antunes me dispensou. Eu nunca soube exatamente o que tinha acontecido, nem se o encontro da noite anterior tinha a ver com o fato de ele não me querer mais na companhia. Até que, no começo do ano passado, quando reencontrei o Paulo Betti via Marcelo Paiva (que na época do Feliz Ano Velho não ia nada com a cara dos quatro pirralhos que não saíam da platéia da peça baseada no livro dele, mas depois acabou ficando nosso amigo), ele confessou que tinha tudo a ver com o fato de o Antunes ter me botado para correr. Ele disse para os meus pais, que já estavam de cabelo em pé: “Vocês tem de ir lá e dizer para o Antunes que tem gente de olho nessa menina”. Os dois nunca confessaram, mas eu tenho certeza de que eles não foram do teatro direto para casa naquela noite. E que alívio! Não nasci para ser atriz, definitivamente. O lugar em que eu amo estar é na platéia. Por isso, acho que essa biografia é quase como uma homenagem ao Paulo Betti. Só não sei se uma homenagem como esta conta, afinal eu aproveitei o gancho de fazer esse livro para saber de todos os bastidores da peça que mudou um pouco a minha vida. Para melhor, claro. Teté Ribeiro Capítulo I Ser Ator Não sei dizer porque virei ator. Acho que é uma opção que mistura a vaidade com a insegurança. A vaidade faz você subir num banquinho, num caixote e ficar lá, fazendo umas coisas para as pessoas prestarem atenção. E a insegurança o empurra para a frente, o faz estudar, tentar melhorar, tentar se aprimorar. Comecei a fazer teatro quando era menino, tinha uma necessidade de representar, queria me destacar, expressar alguma coisa. Além disso, fazer teatro compensava minhas notas baixas de português, eu decorava um poema bem longo e declamava na frente da classe, aí não precisava me sair bem em gramática, por exemplo. A professora acabava me dando uma nota que era suficiente para passar de ano. E eu escrevia razoavelmente bem, porque lia muito. Então sempre tirei sete, nunca fui um aluno que tirasse notas muito altas. Mas era vaidoso no sentido de querer ampliar as fronteiras do mundo onde vivia. De certa maneira, o que me fez virar ator foi a possibilidade de poder trabalhar com a imaginação e sair dos limites de onde estava. Minha mãe e minha avó me influenciaram muito, tinham uma intensidade dramática muito grande, coisa dos italianos, e acho que a idéia de ser ator pode ter vindo um pouco daí também. Minha avó contava histórias hilariantes, comoventes, sobrenaturais. Lendo Fábulas Italianas, do Ítalo Calvino, notei que algumas eram as histórias que a minha avó contava. Meus amigos viviam desesperados por causa delas. Quase não tinha luz elétrica, era tudo muito escuro, a gente convivia intensamente com a idéia do sobrenatural. Isso quase me matava de medo. Minha mãe contava histórias de sua avó, já morta, que vinha à noite lhe pentear os cabelos. Toda vez que uma porta se abria com um golpe de ar, minha mãe dizia: Entre; era de arrepiar. A minha avó tinha vindo da Itália prometida para o meu avô. Eles vieram juntos num navio chamado Michele Lazzaroni, que naufragou na volta. Eles enfatizavam muito isso, diziam: A gente podia ter morrido, você podia não ter existido. A minha mãe também era muito dramática, ela dizia Você me mata! Você quer me matar! Era tudo bem teatral. Capítulo II Família Minha situação familiar era muito complicada, muito amorosa, afetiva, intensa, forte, mas extremamente problemática. Não que a pobreza fosse a maior dificuldade, nós éramos pobres, tínhamos uma casinha pequena, com apenas cinco pontos de luz, mas tínhamos galinhas, tínhamos porcos. Eu fui um filho temporão. Quando nasci, minha mãe tinha 45 anos, a diferença entre o meu irmão mais próximo e eu é de 10 anos. Hoje ele tem 62 anos e eu 52. E os outros irmãos são todos mais velhos. Minha mãe teve 15 filhos, sobreviveram sete. Oito morreram em trabalho de parto, ou perto do parto, ou logo depois que nasceram. Minha mãe teve quadrigêmeos e perdeu, depois ela teve gêmeos que morreram, assim ela perdeu seis, depois mais dois, um de cada vez. Mas ela segurou duas meninas, gêmeas e teve mais quatro meninos, um de cada vez. Nasci em Rafard (interior de São Paulo), num sítio. Meu irmão Nico foi a cavalo para Capivari buscar o médico quando minha mãe, dona Adelaide, entrou no terceiro dia de trabalho de parto. Um sofrimento danado. Já tinha uma parteira lá, tentando mil coisas, colocando ela agachada em cima de uma bacia com água quente, mas não acontecia nada. O dr. Faria, que veio em um carro amarelo, foi a salvação. Meus irmãos e minhas irmãs ficaram rezando, ajoelhados embaixo da mesa, enquanto o médico fazia o parto. Nasci e logo mijei para o alto, nas minhas irmãs, que contam isso morrendo de rir. Minha mãe tinha o maior orgulho de nunca ter dado um filho, o que não seria incomum para uma família tão pobre quanto a nossa e com tantos filhos para criar. Os patrões da fazenda onde o meu pai cuidava da roça sempre pediam, mas ela não dava de jeito nenhum. Como a prole era grande, eles achavam que não faria diferença ela dar um. Minha mãe e meu pai fugiram para casar. Ele a levou na garupa de um cavalo. Isso era muito comum naquela época, os noivos fugiam quando os pais não permitiam o casamento. Aí casavam escondidos, consumavam o matrimônio e quando voltavam os pais tinham que aceitar. Meus avós maternos não queriam o casamento, eles tinham um mau pressentimento em relação ao meu pai. Não era nada relacionado a dinheiro, classe social ou ascendência, era todo mundo pobre e descendente de italianos. Meu pai se chamava Ernesto, que significa combatente leal. Tenho mania de saber o que os nomes significam. O nome da minha mãe, Adelaide, quer dizer aquela que tem o semblante nobre. Meu pai era esquizofrênico.Uma vez eu li isso num atestado médico e fiquei chocado. Percebi a gravidade da doença numa reportagem que o jornalista Audálio Dantas fez para a revista O Cruzeiro, em que apareciam os doentes mentais nus no pátio do Franco da Rocha, um dos manicômios onde meu pai tinha sido internado enquanto eu era garoto. Quando virei adulto, comecei a falar muito sobre a doença de meu pai. Falar me ajudou a tentar entender melhor o problema que ele tinha. Meus avós maternos, João e Celeste, também moravam com a gente. E minha mãe era uma mulher velha. Imagine, quando eu comecei a me dar conta da vida, com uns cinco ou seis anos de idade, minha mãe tinha 50 anos. E 50 anos, para uma camponesa que tinha tido 15 filhos, nos anos 50, era idade de uma mulher bem velha. Ela era analfabeta, minha mãe nunca foi para a escola. Era muito inteligente. Sabia contar dinheiro, ninguém a passava para trás. E gostava de me ver lendo. Às vezes eu estava lendo um gibi e ela dizia para as minhas irmãs: Não incomodem que ele está estudando. Ela me fazia ler as ladainhas para ela quando fazia promessa. E prometia fazer uma trezena para Santo Antônio, aí quando acabava a trezena ela emendava com outra trezena, aí com outra trezena. Uma trezena é uma série de 13 dias em que você faz orações, e ladainha é uma reza em que um puxa e o outro responde. Então eu lia: São Benedito, ela respondia: Rogai por nós, e assim por diante. Eu já era adolescente, ou quase adulto, estava namorando, saía com as garotas, aí voltava pra casa, sentava com a minha mãe e lia a trezena para ela. Às vezes voltava tarde da noite, tinha ido namorar, e minha mãe e minha avó estavam me esperando no portão, debaixo de chuva: Você vai acabar matando a gente! Haja culpa! O meu pai fez quatro meses de escola rural, ele sabia ler, sabia escrever, lia jornal. Era um homem muito inteligente. E amoroso. Falava pouco e passava grande parte do tempo em casa dopado, porque minha mãe pingava o remédio, o Neozine para ele tomar, com o conta-gotas, ela contava até 30, sobrava outro tanto dentro do conta-gotas e ela despejava tudo no copo. Quando a gente reclamava, ela dizia: É melhor que ele durma. Depois ela se queixava que ele não ajudava em casa, que a cerca estava quebrada e ele tinha que consertar. Essas coisas de casal. Depois de velhos, meu pai, minha mãe e também minha avó se converteram à igreja da Congregação Cristã no Brasil. Meu pai adorava cantar os hinos. Eu ficava impressionado com a banda musical que é o centro dessa igreja. A importância da banda. Quando você vê aquelas pessoas vestindo ternos e carregando instrumentos na beira da estrada ou na periferia, pode ter certeza que tem uma Congregação por perto. Uma maravilha. Todos cantavam os hinos acompanhados por uma banda com 60 instrumentos. Meu pai adorava soltar a voz naquele grande coro. Minha avó foi batizada pela Congregação Cristã em um rio. Lembro dela voltando puta da vida com o pastor que enfiou a cabeça dela dentro d’água e quase a afogou. Ela dizia que o pastor se animou e deu um cardo nela. O pessoal da Congregação não cultua imagens e era muito rigoroso com relação a isso. Minha mãe, que também foi batizada no rio, nem ligava e mantinha suas imagens, imagina se ela ia esconder seu preto-velho Nhô João de Camargo! Mas uma das minhas irmãs foi fundo nas regras de Congregação e, quando ela ia visitar a nossa mãe, ela era obrigada a esconder tudo. E eu queria que ela mantivesse as imagens, implicava quando ela escondia para agradar minha irmã. Coitada, ficava num fogo cruzado. Do meu avô, João, eu me lembro muito pouco. Era um homem delicado. Trabalhava na roça e tinha um ranchinho de sapé, com uma cama tosca feita de galhos em forquilha, onde ele fazia a sesta. Na frente desse ranchinho ele cultivava um jardim de cristas-de-galo e outras flores. Ele se preocupava em ter um jardim, no meio da roça, e eu adorava isso nele. Eu ia para lá nos períodos de colheita. A família toda ia para ajudar. Minha mãe levava todos os lençóis de casa para colocar os grãos de arroz em cima e bater sem que eles se perdessem. Lembro dos lençóis como se fossem verdadeiras velas enfunadas pelo vento. Eu ia com minha bicicletinha Caloi, aro 18, pneu com câmara e freio na mão, uma raridade que ganhei de minha mãe. Ela comprou de segunda mão. Eu fui com ela buscar. A bicicleta estava com o garfo da frente quebrado, mas a gente levou no Seu Neves para fazer a solda. A operação foi fantástica. A máquina de solda soltando aquelas faíscas, o Seu Neves de máscara no meio das fagulhas e minha bicicleta sendo consertada. Foi o meu melhor presente na infância e eu sabia exatamente o valor que tinha aquele brinquedo, porque o vi sendo arrumado. Andava às vezes preocupado com aquele garfo soldado, tinha medo que se quebrasse num buraco. Por ser temporão eu fui muito protegido pela minha família. Mamei no peito da minha mãe até os sete anos de idade! E isso não é tão raro assim, já encontrei outras pessoas que também mamaram bastante. Eu me lembro que já era um menino, ia andando com a minha mãe até o centro espírita que ela freqüentava, do Zezinho Madureira (minha mãe era muito religiosa, mas nunca foi fiel a uma só crença), e ficava olhando as pessoas, ouvindo a Ave Maria de (compositor francês Charles) Gounod tocando numa vitrolinha e mamando no peito da minha mãe. Mais tarde notei que isso não fez mal nenhum para os seios de Dona Adelaide. Quando ela estava bem velhinha fui levá-la para fazer uma ultra-sonografia e pude ver os seus peitos que ainda estavam muito bonitos. Quando meu pai morreu apareceu um antigo pretendente da minha mãe. Eu aprovei. Meus irmãos ficaram um pouco grilados e ela, que estava bem a fim dele, desistiu. Ela já estava com 80 anos. Quando ela morreu, esse senhor ficou a noite inteira no velório. Achei lindo aquilo. A minha família não era uma família triste, era pobre, mas não triste. O problema mais grave era o meu pai. Todo ano era internado, sempre na mesma época, próximo do final do ano. Ele começava a perder o pé da realidade, aos poucos isso avançava a ponto de chegar o momento que tínhamos que interná-lo. Daí vinha a polícia, porque não tinha internação normal, com ambulância, diretamente para o hospital. A gente tinha que chamar a polícia e fingir para ele que estava tudo bem, tínhamos que mentir até chegar a hora de botar a camisa de força nele e levá-lo, primeiro para a cadeia e depois de uma batalha incrível da minha mãe, para o sanatório. Isso era um drama, a minha mãe se desesperava e durante uns meses a família toda ficava muito abalada. O manicômio de Sorocaba se chamava Associação Protetora dos Insanos. Estava escrito isso na porta, era muito impressionante. E depois tinha todo aquele negócio do pai não estar em casa, daí a gente ia visitar no domingo, ele no meio daquela multidão de doentes com o cabelo raspado e todo ferrado porque na época os tratamentos eram extremamente violentos. Às vezes ele pegava piolho, era muito doloroso, deprimente. Eu não posso reclamar, todo mundo tem seus problemas na infância, mas esse do meu pai era especial, e ainda tinha o fato da minha mãe ser velha e a gente morar com a minha avó e o meu avô, que eram mais velhos ainda. Com 10 anos de idade bateu pra mim a questão da morte como uma coisa muito forte, porque morreu o meu avô João. Eu estava jogando futebol na rua com os meus amigos e mandaram me chamar porque o meu avô não estava legal. Aí eu voltei para casa e vi o meu tio Bepe no quarto rezando, com o meu avô deitado segurando uma vela. Pouco depois ele morreu. Aquele lugar da casa ficou muito marcado para mim durante todo o tempo que eu morei lá, até os 21 anos. O lugar físico onde o meu avô morreu. Era um quarto escuro, sem janelas. Ali também eram guardadas as ferramentas. Numa caixa tinha uma pedra pesada, polida como um machado indígena, que meu avô dizia ter caído do céu, uma pedra de raio. Meu avô foi velado em casa, na época se costumava velar as pessoas em casa, então a sala de estar da casa também ficou marcada como o lugar onde tinha sido velado o meu avô. Meus avós paternos eram de Treviso, perto de Veneza, e meus avós maternos, esses com quem a gente morava, de Bergamo. Minha avó Celeste, que ficou viúva, morreu muitos anos depois. Ela foi ficando cada vez mais pequenina, mais encolhida, até que no final da vida engatinhava. Ela ficou bem caduca e urinava em pé no jardim na frente de casa, chupando o dedo polegar. Eu morria de vergonha daquilo, não queria que meus amigos vissem de jeito nenhum. Minha avó parecia um personagem de Cem anos de solidão, do Gabriel Garcia Marques. Quando ela ainda era forte e lúcida, mas já bastante velhinha, me pedia para ajudá-la a matar os porcos. Eu tinha que segurar a pata do bicho bem aberta, ele deitado de costas, enquanto ela enfiava o punhal procurando o coração. Eu tinha horror daquilo, e ela dizia que o porco estava sofrendo por minha causa, porque como eu tinha pena ele demorava a morrer. Depois a gente pelava o suíno com água quente no quintal e ela mostrava, orgulhosa, o coração atingido pela faca. As tripas ela usava para fazer lingüiça; depois, era tudo pendurado sobre o fogão de lenha para defumar. Capítulo III Gente Humilde A gente morava em Rafard, uma cidade pequenininha que fica no triângulo entre Sorocaba, Piracicaba e Campinas. Hoje deve ter uns 10 mil habitantes, e é onde nasceu a pintora Tarsila do Amaral. Aí uma das minhas irmãs foi trabalhar em Sorocaba e virou enfermeira, no Hospital Santo Antônio, ligado às Indústrias Votorantim. Ficou um ano fora. Quando ela voltou para Rafard, percebeu que nossa família inteira tinha bócio, que é uma doença na tireóide que causa uma inflamação, um papo. Era a água que causava isso, problemas com absorção e fixação do iodo, está no dicionário. Minha irmã conta que foi todo mundo esperá-la na porteira do sítio onde morava e ela viu que nós éramos papudos, todos, e ela sacava, porque era enfermeira. Então ela decidiu trazer a família inteira para Sorocaba, e pouco a pouco todos os meus irmãos foram se encaixando nas Indústrias Votorantim, trabalhando como operários. Minha mãe virou empregada doméstica na família de Dona Amélia Leão, uma família ilustre, que deve ter entendido o desejo de minha mãe de me dar uma educação formal mais sólida. Ela, que era analfabeta, sabia mais do que qualquer um a importância disso. Às vezes fico pensando como deve ser difícil ser analfabeto. Como o tempo deve ser diferente, como as coisas devem parecer tão complicadas. Andar numa rua e não saber nada do que está escrito nas placas. Uma das lembranças mais gostosas da minha infância é de ir para a escola de mãos dadas com a minha mãe, de uniforme novo, lendo as placas para ela. Minha mãe gostava também de ir ao cemitério. Um de seus programas prediletos. No da Saudade, em Sorocaba, tem uma frase curiosa escrita do lado de dentro do portão principal: Eu fui o que tu és, tu serás o que eu sou. Durante toda a minha infância e minha adolescência não tinha geladeira em casa. A primeira geladeira da minha mãe fui eu que comprei, quando já morava e trabalhava em São Paulo. Também não tinha portas internas na nossa casa, portanto não havia privacidade nenhuma. Aquelas casas antigas de pobre não têm porta e não têm forros, então o som passa por cima, eu ficava sentado em um cômodo e escutava tudo que acontecia no outro. Lembro do barulho do urinol de minha avó no meio da noite. O chão era de cimentão vermelho que minha mãe insistia em fazer brilhar na base do escovão, às vezes pedindo minha ajuda. Eu dormia numa cama Patente, uma caminha estreita que hoje em dia só se usa em cenário das peças do Plínio Marcos. Meu pai e minha mãe dormiam numa cama de casal ao lado, no mesmo quarto. Durante toda a minha infância e adolescência, até ir para São Paulo para fazer a EAD (Escola de Arte Dramática), eu dormi com meu pai e minha mãe, no mesmo quarto. E nunca vi nem percebi nada, não sei se os meus pais ainda transavam porque eles eram bem mais velhos, eu nem pensava nisso, mas também nunca notei nenhum movimento. A maior influência na minha família era a religiosa. Como o meu pai tinha esse problema, a esquizofrenia, a minha mãe freqüentou todo tipo de religião que pudesse ajudar a cuidar dele. E acabou virando benzedeira, ela benzia pessoas na minha casa. Vinha um monte de gente receber os passes dela, e ela também benzia quebrantos, benzia caxumba, benzia mau-olhado, benzia ar. Ar é uma espécie de enxaqueca, a pessoa tem muita dor de cabeça, e se dizia que pegava o ar com um reflexo de um raio de luz num espelho que atingia seus olhos. Minha mãe benzia levando a pessoa para a frente de casa no pôr-do-sol e ela pegava um lencinho rendado, um copo d’água e punha o lenço em cima da cabeça da pessoa, em cima do copo d’água. O copo estava cheio de água e o lenço em cima, tapando o copo. Depois ela virava isso tudo com um golpe preciso e equilibrava sem a água sair de dentro do copo no cocuruto da pessoa. Ela colocava os dois dedos segurando o copo emborcado na cabeça do paciente e rezava. Às vezes a água borbulhava dentro do copo, como se fosse gaseificada. E isso se repetia durante dias, até o fiel não sentir mais aquela dor de cabeça. Apesar de tudo, tive uma infância feliz. Nossa rua era de terra e a gente soltava balão, empinava papagaio, rodava pião. Cada coisa tinha sua época, cada brincadeira tinha seu tempo no ano. Ninguém fazia a brincadeira fora de época, era um mico que a gente não pagava. Pular cordas, a vila inteira pulando corda e cantando. E a gente brincava muito de esconde-esconde: Balança caixão! Balança você! Três tapas na bunda e vai se esconder E tinha estilingue, que a gente mesmo fazia. A única vez que acertei um pardal no bambuzal, no fundo do quintal de casa, e peguei o passarinho agonizando na minha mão, o coraçãozinho ainda batendo, parei de usar o estilingue. Mas continuei fazendo diversos tipos engenhosos de alçapões, tentando pegar os passarinhos sem machucar. No fundo do quintal de casa passava um córrego, um afluente do riacho da Água Vermelha. Eu brincava ali, fingindo que era uma praia. Também colecionava figurinhas e jogava bafo, fazendo as figurinhas virarem batendo com a palma da mão. Os meninos iam atrás da Dona Ana, uma negra maravilhosa que torrava o amendoim que seu marido, o seu Antenor, vendia na praça principal. Dona Ana era avó de meus amigos João Pelé e Bacalhau. Ela comprava figurinhas a granel, colecionava para ganhar os prêmios e jogava fora as que não eram carimbadas ou difíceis, aí ficava tudo para a gente. E nós ainda pegávamos as balas que vinham dentro das figurinhas enroladas. Eu lia também a Coleção Saraiva, que trazia histórias de Machado de Assis e José de Alencar. As capas eram fabulosas, do Nico Rosso, um desenhista fantástico. Dava gosto ler aqueles livros com aquelas capas. Todo mês vinha o homem de terno entregar o livro. Ele tinha uma maleta parecida com a de um médico. De dentro saíam os volumes envoltos numa pequena cinta de papel que anunciava as próximas atrações. Outra coisa que marcou a minha infância eram as cartas que meu amigo César recebia do irmão mais velho, João, que morava no Rio de Janeiro. Eu sonhava com aquele endereço no remetente: Av. N. S. de Copacabana, Rio de Janeiro. Capítulo IV Vila Leão A Vila Leão, o bairro onde eu morava, era uma festa permanente, e não só na época de São João quando as ruas ficavam cobertas com as brasas das fogueiras e o céu colorido de balões. Aos domingos eu trabalhava carregando carrinhos de terra numa obra caseira para ganhar uns trocados para ir à matinê. Os garotos levavam gibis para trocar. Empilhávamos nossas coleções na porta do cinema. Meus prediletos eram os do Fantasma. O bairro era predominantemente habitado por negros, e o contato e a intimidade com os negros é uma coisa muito importante na minha vida. Noventa por cento dos meus amigos de infância eram negros. A minha família, de imigrantes italianos, ficava rodeada de escolas de samba e de famílias de negros evangélicos. E minha mãe freqüentando centros espíritas, terreiros de umbanda, benzendo na porta da minha casa, eu sendo benzido pela minha mãe e por outros curandeiros. Tinha quatro ruas no meu bairro e quatro benzedores, cada esquina tinha um, ninguém ia ao médico, ia benzer. Sorocaba tinha três escolas de samba — Terceiro Centenário, Vinte e Oito de Setembro e Clube dos Trinta — e as três saíam do lugar onde eu morava, do meu bairro, que no fundo eram apenas quatro ruas que se cruzavam, como em um jogo da velha. E ficava num lugar mais baixo que o resto da cidade, era como um gueto. Um amigo meu do bairro, o João Lins de Albuquerque, que hoje trabalha como chefe do serviço de língua portuguesa da Rádio da ONU, que saía do bairro vestido de terno, ia lá para o alto da cidade, onde as ruas eram calçadas de paralelepípedos, e quando acabava a rua de terra e começava a rua de pedra, ele tirava um pano de um bueiro e dava uma limpada no sapato. Eu lembro disso como se fosse hoje, mas quando falo isso para ele, ele diz: É mentira, você é um doido, nunca viu isso. Pode até ter algumas histórias que eu inventei, é normal, mas por que é que eu ia inventar isso? E tinha os irmãos Bedenego, eles eram encanadores e tocavam gospel lindamente. Nunca esqueço deles porque eram tão fortes que não precisavam de chave de grifo para desatarraxar os canos. Eles chegavam lá e tchum, tchum, soltavam a torneira com a mão. Aquilo que a gente estava tentando fazer há dias, porque a gente só chamava encanador depois de tentar muito, aí chegavam os irmãos Bedenego, que tinham chave de grifo, mas abriam sem precisar dela. Quase todos os moradores estavam envolvidos com o samba e ensaiavam todo domingo com tamborins de couro de gato mesmo, era tudo primitivo, pé no chão, samba-de-roda e tal. E rolava tudo na frente da minha casa. Tinha um cara na Vila Leão, o Miroldo, que era um craque no futebol e no samba. Ele era famoso no bairro por isso. Era meu amigo, um pouco mais velho que eu, negro retinto, cheio de charme. Foi ele que me mostrou a música dos Beatles. Sabia tudo, o Miroldo. Em um dos carnavais, acho que no de 1968, o Miroldo foi o grande sucesso no palco-avenida que se armava no centro da cidade. Ele desfilou todo de branco, com um chapéu escrito black power. Era uma figura carimbada em Sorocaba. Uma vez ele estava jogando uma pelada e foi visto por um olheiro, que o convidou para treinar com o time do Bangu, no Rio de Janeiro. E deu um drible desconcertante no Fidélis, que era lateral da seleção brasileira. Aí o cara ficou puto e por vingança, não permitiu que o Miroldo fosse contratado pelo time. A história era uma lenda na cidade, todo mundo sabia. O Miroldo tinha um estilo espetacular, cheio de ginga, cheio de classe, jogando futebol ou desfilando no samba foi uma das maiores influências artísticas que eu tive. Sempre que faço alguma coisa imitando o Miroldo dá certo! Meu avô trabalhava numa roça de um fazendeiro que era negro. Isso é muito curioso. O dono das terras onde meu avô trabalhava era preto. O nome dele era Achiles Campolin, de apelido Quiló. O bairro que foi construído onde era a fazenda levou o nome dele, e é assim até hoje. É um dos mais elegantes da cidade. Hoje em dia eu passo lá e fico lembrando da rocinha de meu avô. A casa grande era habitada por uma família negra, os donos das terras onde meu avô trabalhava no sistema de meia. O fazendeiro dava as sementes e a terra e as pessoas plantavam e depois davam metade para o dono da terra. Eu via a família, todos muito bem vestidos, saindo num carrão. Minha imagem primeira dos negros é essa, uma família próspera, patrões da minha família. Há pouco tempo eu fui visitar as filhas do seu Quiló, Iracema e Ondina, naquela mesma casa grande, que eles conservaram. Elas com mais de 80 anos, lúcidas, me abraçaram emocionadas e disseram: Minha família tratava muito bem a sua. Não é gozado? Capítulo V Formação Eu fiz um pré-primário maravilhoso no Estadão, como era conhecida a principal escola pública de Sorocaba. Foi lá que eu aprendi a importância de escovar os dentes, por exemplo. Aprendi um monte de coisas que me foram muito úteis depois. E tinha os livros, tinha coisas que alimentavam um sonho poético, infantil, de fugir das fronteiras daquela realidade. Depois fiz o primário e um ginásio industrial muito bom, que foi a base para a minha formação. Era o Fernando Prestes, uma escola-modelo, foi superdifícil de entrar. Tinha inglês, um pouco de latim, francês, todas as matérias que eram dadas no ginásio naquela época, mas também noções de marcenaria, eletricidade, entalhamento, fundição, torno, mecânica, desenho industrial. Eu ficava o dia inteiro no ginásio, era um pouco um CIEP (Centros Integrados de Educação Pública, criados durante o governo Brizola, no Rio de Janeiro) da época, a gente entrava de manhã, botava um macacão, trabalhava em alguma coisa, depois tirava o macacão, fazia ginástica, tomava banho, almoçava e depois fazia as aulas normais. Os professores eram maravilhosos. Seu Paulo era o professor de entalhamento em madeira. Ele chupava sorvete na sala de aula, eu morria de rir, não era uma sala de aula normal, era uma oficina de marcenaria. Seu Deluno desenhava na lousa as figuras geométricas com seu guarda pó imaculado, e o Salvador nos fazia correr no pátio nas aulas de educação física, enquanto girava uma bola de basquete equilibrando no dedo indicador. Tinha uma professora baixinha maravilhosa, dona Maria Innez, que dava aulas de canto orfeônico. Ela pedia para os alunos desenharem em cartolinas, fazendo cópias de gravuras, os retratos de grandes compositores. O resultado era horrendo, mas ela falava extasiada do gênio daqueles homens, e a gente morria de rir vendo aquelas figuras deformadas pelos desenhos dos alunos. Dona Geninva me reprovou em Geografia, Dona Ana descobriu meu talento para declamar poesia. Uma escola séria, uma escola-modelo que tive a sorte de freqüentar. Era em plena ditadura. Uma vez o inspetor reuniu todos os alunos no pátio e em altos brados exigiu que cortássemos o cabelo, pois não podíamos ficar parecendo aqueles pederastas da televisão. Só uma pessoa tinha televisão na Vila Leão inteira, era na casa do Toninho Perfume. A gente ia lá de vez em quando assistir algum programa. Os meus irmãos pararam de estudar no primário, porque eles foram criados lá em Rafard, na roça. Eles foram desfavorecidos por isso. Então, de certa maneira, eu ainda tenho um compromisso com relação aos meus irmãos, e talvez essa seja a razão de eu ter feito o Instituto Vila Leão, de Sorocaba, a Casa da Gávea, no Rio. Gosto da idéia de poder proporcionar alguma coisa que eu tive para os outros. Em casa, quando voltava da escola, eu ajudava a minha mãe a passar roupa porque, além de ser empregada doméstica, ela pegava trouxa de roupa dos estudantes de medicina para lavar e passar. Então ela lavava e eu passava. Até hoje sou um ótimo passador de roupa. E eu passava ouvindo rádio, sempre. Lembro direitinho: Barros de Alencar vai apresentar as sete mais do dia, as sete campeãs. Torci para Disparada ganhar o Festival da Canção. Também sintonizava muito uma rádio que tinha abertura em diversas línguas, então era assim: This is the Radio City of New York. Depois: Ici la Radio Francese. E: Signora e signori, qüi parla la Radio e Televisione Italiana. Fiquei fascinado por aprender línguas. Aprendi inglês, um pouco de espanhol, italiano e francês. Eu jogava futebol descalço num campo de terra e pedregulho dos salesianos. Era o projeto social que os padres tinham, inspirado em Dom Bosco. Depois de assistir ao catecismo, onde cantávamos hinos que insistem em permanecer na minha memória, ganhávamos um cartãozinho que no final do mês servia para comprar os produtos do bazar. O bazar acontecia todo mês e vendia umas coisas bem baratas mas que a gente não achava em nenhum outro lugar. Minha avó pedia sempre para levar leite de soja em pó, que era uma novidade na época. Eu comprava, assim como calças jeans desbotáveis, americanas, que vinham doadas pelo programa Aliança para o Progresso, dos EUA. Eu fantasiava que as roupas tinham sido de soldados que haviam sido mortos na Guerra do Vietnã. Meu pé era um cascão, áspero, dava para colocar as chuteiras cravadas na própria sola, de tão grosso que era. Hoje boto o meu filho, João, para andar descalço para ele ficar com o pé grosso também, porque eu acho que é bom. O técnico do meu time de futebol era um homem fantástico, o padre Martini. Ele sabia A Divina Comédia, de Dante Alighieri, toda de cor e falava quatro dialetos italianos diferentes. Como eu era um menininho bonitinho, dentro de um universo de meninos mais maltratados que eu, que tinha dentes e mamava e escovava e tal, o padre Martini me colocou de coroinha. Ele era um homem muito culto, gostava de mostrar filmes para a gente na igreja. Foi aí que eu vi meu primeiro filme brasileiro, O Pagador de Promessas. Vejam como esse padre era esclarecido, exibiu um filme que criticava a intolerância da Igreja. Padre Martini foi importantíssimo em minha formação. Há pouco tempo eu o convidei para benzer o Instituto Vila Leão, na inauguração. Ele já estava bem velhinho, mas foi lá, se emocionou e citou uma frase linda de um poema de Camões: Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Eu tinha um encantamento com a teatralidade do culto religioso que era todo rezado em latim, era bonito. O incenso, os cheiros, os cânticos. Eu sempre lia os textos do evangelho ajudando a missa lá na frente como se fosse um palco. As festas de São João, do Salesiano, eram maravilhosas, ali dancei a quadrilha e me apaixonei platonicamente por uma menina sardenta, linda, chamada Clarice. Capítulo VI Origem do Ator Um dos meus imãos mais velhos foi ator amador em Sorocaba, o Zé. Hoje ele é sapateiro na cidade. Trabalha no centro, perto da estação de trem e é pessoa querida de todos. Ele puxava quadrilhas, me lembro muito dele puxando as quadrilhas: Tour!, Balancê!, Caminho da roça!, Vai chover! Tenho um cunhado que também era ator amador e fez bastante sucesso, o Joaquim, casado com a minha irmã, aquela que era enfermeira e que tirou a gente de Rafard. Esse meu cunhado tem olhos azuis e faz até hoje um preto velho hilário, ganhou até prêmio fazendo esse papel, se pintando com uma mistura de graxa de sapato e clara de ovo. As primeiras peças que eu vi, e eu me lembro muito vagamente disso, foram no circo. O circo ia até a gente, lembro do Circo Ordep – que é Pedro ao contrário – eles passavam anunciando no berro: É hoje, é hoje, é hoje, o Circo Ordep, com aqueles cabeções e aqueles bonecões. Era bem perto, bem baratinho e dava para ir. Eu não me lembro, mas acho que a minha mãe e meu pai iam também. Nessa época eu não pensava em profissão, em nada disso, mas já gostava daquele negócio, daquelas cadeirinhas, do ambiente circense. Gosto até hoje daquele ambiente, daquele cheiro de serragem que se misturava ao teatro que era feito no circo. Eu lamento quando acaba um circo de verdade como o Circo Garcia acabou, lamento profundamente, circo é uma coisa fabulosa. Mas detesto esses circos muito comerciais que ficam dando intervalo toda hora e imitando a televisão. Na casa onde minha mãe trabalhava como empregada doméstica tinha um menino chamado Robertinho. Ele era muito talentoso e fazia teatro de bonecos debaixo das jabuticabeiras. Ele caprichava, os bonecos eram articulados, muito bem feitos. Ajudando esse menino fiquei fascinado pelo teatro de bonecos, uma de minhas paixões como espectador. A primeira peça mais elaborada que eu vi e que me impressionou foi no Teatro Popular do Sesi. Era um trabalho muito bonito que o Sesi tinha, levando espetáculos profissionais e montando peças com grupos de teatro amador nas cidades do interior. Vi em Sorocaba, com uns 15, 16 anos, o Pluft, o Fantasminha (de Maria Clara Machado), vi também Almas Mortas, do (escritor russo Nikolai) Gogol, Júlio César, do (dramaturgo inglês William Shakespeare), numa montagem maravilhosa do Werner Rothschild com cenários e figurinos de sua mulher, Guscia, artistas importantes do teatro amador. Essa eu assisti umas dez vezes, sei de cor os discursos do Marco Antonio e do Brutus até hoje. Depois também vi uma montagem de Nossa Cidade, do (dramaturgo norte-americano) Thornton Wilder, que me marcou muito. A direção, assim como a de Pluft era do Osório Theodoro de Moraes, outro nome marcante do teatro amador sorocabano. Fiquei deslumbrado com Noites Brancas, do (russo Fiodor) Dostoievski, numa montagem do Sesi. A maioria era montagem de teatro amador, mas com atores que poderiam ser profissionais. Capítulo VII Influências Eu vi alguns atores fantásticos, vou citar dois aqui em nome de todos os outros que eu admiro e que me fizeram perceber que a interpretação tinha uma dimensão muito profunda: Rubens Pelline e Pedro Salomão José. O Rubens Pelline em o Santo e a Porca, do Ariano Suassuna, era de tirar o fôlego. E o Pedro era um ator completo, mas destacava-se como comediante, com traços de Oscarito, tinha excelente domínio corporal. Esses dois atores do teatro amador sorocabano poderiam ter feito carreira profissional em qualquer lugar que quisessem, no cinema, no teatro ou na televisão. Nessa época, também fiquei encantado com a mecânica do teatro, com a possibilidade prática de transportar o que tinha aprendido na escola, no Ginásio Industrial, para o teatro. Por exemplo, um refletor apagava em resistência, eu nunca tinha visto isso no teatro, uma luz que se extinguia lentamente até ficar a escuridão absoluta e, na escuridão, pelo jeito que aquela luz ia desaparecendo, ainda ficava a imagem gravada na retina. Isso hoje em dia não é nada, todo mundo tem resistência em casa, tem o dimer, né? A resistência, o dimer, que na casa da gente hoje serve para aumentar ou diminuir a intensidade da luz, no teatro servia para criar magia. Eu tinha um amigo, o Carlos Reis dos Santos, que era também conhecido como Corvinho, que foi um dos caras que ajudou a plantar em mim essa idéia de fazer teatro. O Corvinho morava no meu bairro e era iluminador de teatro, tinha feito cursos de iluminação em São Paulo com um profissional chamado Domingos Fiorine, que era do Oficina, e o Corvinho conhecia muito de iluminação, principalmente de eletricidade. Ele sabia fazer um refletor, sabia fazer esse refletor acender em resistência. Isso nada mais é do que a aproximação de dois pólos de energia, intermediados por água e sal. Uma bateria de automóvel, um pólo de um lado, um pólo do outro, dentro da bateria água e sal; conforme esses pólos se aproximam, a luz fica mais intensa; conforme eles se distanciam, a luz fica mais fraca. O Corvinho fazia essas coisas na mão no teatro amador de Sorocaba. E tem um nome que eu não poderia deixar de citar como uma das minhas grandes influências daquele período, um diretor de teatro amador muito talentoso, que está trabalhando até hoje, o Roberto Gil Camargo. Ele, naquela época, já fazia experiências com câmeras de super-8, com 16 mm, já misturava teatro com cinema. Gil dirigia fazendo a sonoplastia, colocando os discos na vitrola, criando climas, auxiliando os atores. Há pouco tempo vi um ensaio de um dos diretores do teatro norte-americano mais conceituados, Richard Foreman. Igualzinho o Gil fazia! Outra figura marcante, importante no meu desenvolvimento naquele momento, foi o Lourival Maffei. Ele é engenheiro e tem grande paixão pela arte. Fazia reuniões em sua casa e promovia o encontro de diferentes artistas sorocabanos. Foi em jantares memoráveis na casa do Maffei que conheci os pintores Pedro Lopes e Toshifume Nakano, a bailarina Janice Vieira, o compositor Nilson Lombardi, entre outros artistas. Foi o Maffei que meu levou, junto com a mulher e filhos, para conhecer o Museu de Arte de São Paulo - Masp, em São Paulo. Quase todos os fins de semana íamos no seu carro, uma DKW, para a capital. Ele adorava reconhecer os autores das telas, e a Mazé, sua mulher, ia atrás dos quadros e confirmava, para a satisfação do mecenas: Delacroix!  O Maffei tinha uma coleção incrível de slides de obras de todos os museus do mundo. Aprendi a gostar de pintura nas projeções da casa dele, que discorriam sobre grandes autores de teatro, sobre os grandes encenadores. Foi dele que ouvi falar a primeira vez em Meyerhold, pronunciado com seu indefectível sotaque sorocabano. Na cidade tinha também uma coisa muito interessante, a Fetabas - Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana. Ficava no prédio mais alto da cidade - eu lembro bem disso porque foi onde eu entrei pela primeira vez num elevador - e no andar mais alto do prédio tinha uma sala cheia de prateleiras com livros de teatro e um monte de refletores. O presidente da Federação era o Werner Rothschild. Então você podia tirar um livro, uma peça, e montar aquela peça usando os refletores. A Federação dava um certificado para você poder inscrever a peça na censura, cumprir as burocracias, fazer tudo de um jeito legal. Essa organização era muito importante, apoiava os primeiros passos. Em outras cidades também havia organizações semelhantes. Anualmente realizavam festivais, troca de experiências. O teatro amador era muito forte e atuante naquela época, inclusive politicamente. Uma montagem que me influenciou bastante, também, foi Arlequim, Servidor de Dois Patrões, de Goldoni, dirigido pelo Afonso Gentil, e um cenário deslumbrante da Guscia Rostchild, em que os atores entravam em cena, todos, escorregando por um tobogã. Tinha o Pedro Salomão José, o Paulo Newton e o Adilson Barros. Os atores improvisavam o tempo todo, foi a primeira vez que eu vi um elenco tão solto em cena. Afonso e Elvira Gentil foram dois profissionais que saíram de Sorocaba, do teatro amador, e foram ser profissionais em São Paulo. Eles abriram essa possibilidade, serviram de exemplo mesmo, foram muito importantes para que eu decidisse ir também mais tarde. O Roberto Gil, que foi um de meus primeiros diretores, formou o grupo Artes - Associação de Representação Teatral de Sorocaba, do qual eu fazia parte. E também fazia parte de um grupo no Colégio Salesiano, o Tejusa - Teatro da Juventude Salesiana. Eu estava completamente mergulhado no teatro, mas ainda não pensava nele como uma perspectiva de vida. Hair Algumas peças fizeram minha cabeça, literalmente. Daquelas que ficam, que marcam, que definem: É isso que eu quero fazer da vida. Senti isso quando fui para São Paulo ver Hair, com direção de Ademar Guerra, no Teatro Aquarius, em pleno Bexiga. Tudo era novidade, a viagem de ônibus, ir e voltar no mesmo dia, a excitação, ver os atores tomando café no bar da esquina e o espetáculo deslumbrante. Aquele libelo contra a guerra, as canções, os atores. O tempo todo o espetáculo surpreendia com marcações deslumbrantes como aquela em que os atores entravam debaixo de um pano grande e redondo, acho que era um pára-quedas, o pano se levantava e eles estavam nus e cantavam: Deixe o sol entrar... . Uma singeleza, uma poesia! E tinha a Sônia Braga, que usava uma bermuda jeans com uma borboleta bordada no bolso de trás. O que era Sônia Braga em Hair, meu Deus! O elenco todo era fabuloso, Ney Latorraca, Ivone Hoffman, Neusa Borges, Armando Bogus, Nuno Leal Maia, Altair Lima, Antônio Fagundes. Todo mundo trabalhou em Hair. O Balcão Outra peça que vi no mesmo esquema de ir de ônibus, etc., foi O Balcão, de Jean Genet, produção da Ruth Escobar. O que mais marcou foi a audácia da encenação e a concepção cenográfica, que eram realmente impressionantes. Uma estrutura tubular de ferro, a platéia acomodada em círculos de prateleiras e a ação se desenrolando dentro dessa estrutura com um palco de fibra acrílica que subia e descia. Uma loucura. Depois de ver esses dois espetáculos em São Paulo, eu não concebia mais fazer outra coisa senão teatro. Entre outras peças marcantes para mim, mas que eu vi depois de já estar profissionalmente no teatro, está com certeza a montagem de Macunaíma, dirigida pelo Antunes Filho. A sensação quando se assiste um espetáculo como aquele é a de um renascimento, um susto, uma vertigem, uma vontade de fazer mais, de se entregar ao teatro. É maravilhoso ver um espetáculo genial como esse, faz muito bem. Três Irmãs Não vi a chamada fase áurea do Oficina, mas me apaixonei por As Três Irmãs, de Chekhov, dirigida pelo Zé Celso. A noite em que vi o espetáculo, vim saber depois, foi a que o Fernando Peixoto substituiu o Renato Borghi no papel principal. Fernando me disse que as reações eram absolutamente inéditas porque em muitos momentos ele estava contracenando pela primeira vez com seus colegas. Ele lembra de ter atravessado o palco e beijado uma atriz, era a marca, sem nunca ter ensaiado aquilo, apenas combinado. Acho que esse fator de instabilidade deu uma energia muito grande para o espetáculo daquela noite. Lembro-me ainda hoje da Maria Fernanda falando atrás de um biombo, iluminado por uma tocha de fogo: Será que a gente ainda vai para Moscou? Tinha o Othon Bastos, a Analu Prestes.   Tinha um duelo fantástico, que o Zé Celso fez com um rastilho de pólvora correndo pelo chão, o efeito era incrível. O tiro partia da pistola e a pólvora ia queimando, criando um efeito de câmera lenta no tiro. O Oficina expressava o sufocamento que a gente sentia na época da ditadura. Engraçado foi como entrei para ver essa peça. Não tinha dinheiro para pagar o ingresso e fiz um negócio com a bilheteira. Ela me deu o ingresso em troca de meio frango daqueles que ficam nas televisões de cachorro das padarias. Depois acabei ficando amigo dessa bilheteira, a Teresa, que hoje trabalha no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Theatro Musical O Luiz Antônio Martinez Correia, irmão do Zé Celso, criou um espetáculo também inesquecível para mim, o Theatro Musical Brasileiro II, acho que vi umas dez vezes. Eu dirigia O Amigo da Onça, no Dulcina, e o Luis estava no Rival, eu ia com minhas filhas, que também viraram fãs do espetáculo. Outro que vi tantas vezes que até decorei as músicas foi A Capital Federal, de Arthur de Azevedo, com direção de Flavio Rangel. Tinha um elenco maravilhoso e começava com o Roberto Azevedo cantando na frente da cortina: Respeitável platéia, boa-noite, hoje nós representamos outra vez uma peça que, por ser tão brasileira, com orgulho oferecemos a vocês. Arthur de Azevedo é seu autor, um poeta, um sonhador tão genial que no palco fez sonhar mil brasileiros, nesse milagre que é o teatro nacional. Aí abria o pano e aparecia todo o elenco, enorme, cantando. Carlos Alberto Ricelli, Odilon Wagner, Lutero Luis, Neuza Borges, Laerte Morrone, Etty Fraser, Sonia de Paula... Gracias Senhor Outra inesquecível foi Gracias Senhor, do Teatro Oficina. O dia em que eu vi, uma mulher da platéia bateu muitas vezes com uma revista no rosto do Zé Celso. O elenco provocava a platéia de diversas maneiras, provocando vários confrontos, aí a mulher não agüentou e meteu a revista na cara do Zé, e não era uma revista leve não, devia ser uma Realidade, qualquer coisa assim. As imagens desse espetáculo eram muito poderosas, tenho tudo gravado na memória até hoje. Bob Wilson A apresentação do espetáculo A Vida e a Época de David Clark, de Bob Wilson, foi um marco em São Paulo e na minha vida. A peça durava 12 horas e era uma proposta superinovadora. O nome do espetáculo era A Vida e a Época de Joseph Stalin, mas a estúpida censura achou que havia uma conotação política perigosa e tiveram de mudar o nome da peça para que ela fosse apresentada no Brasil. Foi no Teatro Municipal. A primeira cena se passava na frente da cortina e tinha um jovem negro, vestido de padre, que tomava um copo de leite. Ele demorou meia hora para levar o copo até a boca e beber. A cena era só isso. Muita gente quis desistir e ir embora. Mas, no saguão do teatro, o diretor Antunes Filho mandava todo mundo voltar para dentro. Era hilário o espírito combativo do Antunes nos obrigando a ver a peça. E graças a Deus ele fez isso. Bob Wilson propunha uma linguagem completamente diferente de tudo que eu já tinha visto na época. Logo depois da cena do rapaz tomando o copo de leite, o pano se abria e se via uma praia quase realista, onde os mínimos movimentos eram de umas folhas secas sendo levadas pelo vento, um banhista que passava ao fundo de tempos em tempos e uma sonoplastia de cair o queixo. Acho que foi a primeira vez que se usou no Brasil o som vindo de caixas acústicas colocadas atrás da platéia. O envolvimento era total. Bob Wilson conseguiu descondicionar o ritmo acelerado do público. Só fico imaginando o que seria desse espetáculo hoje, quando acham que uma peça de hora e meia é longa e tudo tem que ser ainda mais rápido. Bob Wilson dizia que o público piscava demais e que perdia muita coisa nesse piscar de olhos, então ele fazia de um jeito que não se perdesse nada. Claro que isso era apenas uma brincadeira, mas o resultado era fabuloso. No meio da madrugada o público estava sonolento e vivia uma espécie de vigília, dormitando e vendo a peça, propunha-se que você sonhasse com o que estava vendo e fosse mesclando o sonho com o que acontecia no palco. Pode parecer um absurdo total, mas isso acontecia. Quem quiser saber mais sobre essa peça tem que ler o livro do Luiz Roberto Galizia, Os Processos Criativos de Robert Wilson, da Editora Perspectiva. O Galizia foi um ator talentosíssimo, também diretor e poeta, que infelizmente morreu muito cedo, foi um dos primeiros a contrair Aids no Brasil. Ele foi um dos criadores do Ornitorrinco. Capítulo VIII Primeiros Trabalhos Meu plano, entre os 15 e 18 anos, era virar médico. Quando chegou a hora de começar a trabalhar para ajudar a minha família, arrumei um emprego, com carteira profissional de menor, no Hospital Santo Antônio, onde minha irmã enfermeira trabalhava. E ali eu conseguiria uma bolsa para estudar medicina. Então eu estava dividido entre a perspectiva de ser médico – uma coisa bastante realista, bastante possível e concreta – e o sonho do teatro amador, que me fascinava. Em 1971, fiz uma montagem da peça O Pagador de Promessas, que foi para o Festival de Teatro de São Carlos, e lá ganhei o prêmio Governador do Estado de Melhor Diretor. Foi a primeira vez que eu fui para fora das fronteiras da minha cidade com o teatro, e isso foi muito importante para mim. O festival acontecia em um teatro de verdade, até então eu só tinha trabalhado em tablados improvisados, que com o movimento dos atores em cena abriam verdadeiras crateras durante as apresentações. Não cair do palco era a nossa maior preocupação. No festival a gente conviveu com outros grupos, de Santos, de São Paulo, e tinha todo aquele clima de festival de teatro, que é igual no mundo inteiro. Era uma loucura para mim, aquela excitação, aquele pessoal falando palavrão, discutindo política, eu fiquei fascinado. Minha família nem sabia direito o que seria uma carreira no teatro, então eles não palpitaram sobre isso. Eles eram muito simples, não tinham aquela censura pequeno-burguesa com relação ao meio teatral. Também não tinham preconceito nenhum, ninguém falava aquelas coisas: Isso é trabalho de veado ou então de mulheres da vida. Eles não tinham essa noção. Minha mãe sofreu muito com a história de eu sair de casa, porque eu era o arrimo da família, eu não servi Exército por isso. Mas eu tinha que ir. Parecia aquela música do Caetano Veloso: No dia em que eu vim me embora, minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui e eu nem olhava pra trás. Foi exatamente assim que aconteceu comigo. Capítulo IX Eliane Giardini Nessa época eu já namorava a Eliane Giardini, que também estava no elenco de O Pagador. Nós nos conhecemos no grupo Artes no ano anterior, e a Eliane tinha experiência de cinema. Ela tinha feito um filme na Paraíba aos 17 anos com o seu tio, o escritor Waldemar Solha, e isso tinha dado a ela, além de um status de estrela de cinema, uma noção de horizonte mais ampla do que a minha. Ela sonhava em sair de Sorocaba, ir para São Paulo e fazer teatro profissional. A Eliane sempre foi uma grande atriz, uma atriz maravilhosa! Além de muito bonita, era muito boa, sempre foi. E ela cantava, tinha uma suavidade, uma elegância, podia ser bailarina, podia ser cantora, ela já era tudo isso que é hoje. E era audaciosa, fumava, era uma moça solta, livre, que queria ir embora para São Paulo. Eu era mais amarrado, por temperamento e por causa da minha situação familiar. A Eliane, não. Ela não estava nem aí para Sorocaba, achava Sorocaba uma chatice, ela não curtia nada daquilo. Nós éramos muito apaixonados e nos completávamos, tínhamos a mesma idade e a mesma paixão pelo teatro. A família da Eliane não era tão pobre quanto a minha, eles moravam em outro bairro, numa casa muito melhor que a da minha família, o seu pai tinha um posto de gasolina e também era mecânico. O prêmio que eu ganhei, o Governador do Estado, dava direito a uma bolsa de estudos na Escola de Arte Dramática, da Universidade de São Paulo. Era uma bolsa muito pequena, mas, incentivado muito pela Eliane, tomamos coragem, fizemos a inscrição e passamos, os dois, no exame da EAD. No nosso exame fizemos uma cena de Senhorita Júlia, do (dramaturgo sueco August Strindberg), e pedimos para o Afonso Gentil, que é crítico de teatro e era diretor de teatro amador de Sorocaba, mas já morava em São Paulo nessa época, para nos dirigir. Na época o jornal O Estado de S.Paulo cobria os exames da EAD e dava meia página sobre o assunto, e no nosso ano eles publicaram uma foto minha e da Eliane fazendo o exame, e eu fui lá buscar a foto, queria guardar como recordação. Fico pensando como a sorte é necessária, fundamental. Se não tivesse saído aquela foto nossa na matéria do Estadão, justamente a nossa foto, será que teríamos passado no exame? Mais de 600 concorrendo, e escolhem justamente a nossa foto para publicar. Não é muita sorte? Capítulo X Filhas Casamos em 1974, já morávamos em São Paulo, mas o casamento foi lá em Sorocaba. Em 1977 nasceu a nossa primeira filha, a Juliana, e em 1980 nasceu a Mariana. Juliana fez Geografia na PUC-Rio, mas também é cantora e atriz. A Mariana estudou História na PUC-Rio e está no curso de teatro na CAL, também é atriz. No final do curso, ela fez sua monografia sobre o folclorista Câmara Cascudo. E a Juliana sobre o Chico Science, do mangue beat, juntando a geografia e a música. Já dirigi a Juliana na volta do Feliz Ano Velho, ela entrou no final da turnê. Ela tem muito talento, arrancou aplausos em cena aberta em diversas apresentações. A Mariana também é muito talentosa. Foi uma grande companheira minha como estagiária de direção no Cafundó. Vai poder trabalhar também como diretora, tenho certeza. Sou muito crítico. Se elas não levassem jeito eu não incentivaria. A única coisa que digo é que a profissão é uma delícia, mas tem que trabalhar duro. Capítulo XI Ida a São Paulo Em São Paulo não dava para viver só com a bolsa, então eu tinha um atestado de pobreza que dava direito a uma bolsa de alimentação na USP. E consegui ser transferido para o setor de compras da Indústria Votorantim, em São Paulo. O escritório ficava atrás do Teatro Municipal, na Pça. Ramos de Azevedo, e do lugar onde eu ficava, no térreo, eu via o portão do fundo do Teatro Municipal. Entravam cenários das óperas e tal, era incrível. O emprego em si era difícil, eu entrava às 8 horas da manhã e, se chegasse às 8h04, o cartão de ponto acusava em vermelho. No começo eu vim sozinho, a Eliane continuou em Sorocaba e eu morava numa pensão na Rua Martinico Prado. Então eu acordava cedinho e tinha que ir trabalhar de gravata na Votorantim, mas eu não queria ir engravatado para a EAD. Naquela época, usar gravata era a maior caretice, então ia de gravata e tênis até o trabalho, entrava, marcava ponto, pedia desculpas, não podia entrar de tênis, mas eu dava um jeito, aí trocava o tênis por um sapato que eu deixava na gaveta. No fim da tarde botava o tênis, guardava o sapato na gaveta, escondia a gravata na bolsa e ia esporte para a escola. A Eliane, que também fazia EAD, ficou vindo de ônibus durante dois anos para São Paulo. A sua mãe, que era costureira, fazia uma peça de roupa de encomenda, vendia e dava o dinheiro para a Eliane. Ela tomava o ônibus, vinha para São Paulo, fazia as aulas da EAD e, às 11h30 da noite, eu a deixava lá na Raposo Tavares, num posto de gasolina no começo da rodovia, onde ela pegava o ônibus da Cometa e voltava para Sorocaba. Depois que ela entrava no ônibus, eu entrava em outro, urbano, e voltava para a minha pensão. Dá para ter uma idéia da nossa evolução financeira por meio das casas que a gente foi morando. Durante os três anos de EAD morei numa pensão na Rua Martinico Prado, primeiro sozinho, depois com a Eliane. Eu habitava um quartinho que dava com a janela de frente para o banheiro. De manhã cedo abria a janela e tinha toda a fila das pessoas esperando para entrar no banheiro. Pensão era coisa brava mesmo, tinha um cobertorzinho fino, aquele pijaminha de flanela e aquele frio desgraçado que faz no inverno de São Paulo. Aí, fomos para uma quitinete na esquina da Rua Major Sertório com a Dr. Villa Nova, pertinho do Teatro Anchieta. Era uma boa quitinete, de carpete azul surrado, que a gente limpava com uma vassoura de piaçava. No andar de cima morava o Paulo Vilaça, ator do filme Bandido da Luz Vermelha. Depois, quando a situação melhorou um pouquinho, a gente arrumou um apartamento de dois quartos na Pça. Júlio Mesquita. Da janela víamos um teatro de revista e o interior dos prédios da frente, com seus travestis e prostitutas. Ali, naquela pracinha, nossa filha Juliana deu seus primeiros passos. Eu a levava também pra passear no Lgo. do Arouche. Ficávamos vendo aquelas flores, os cartazes dos cinemas, o restaurante O Gato que Ri. Depois do Na Carrêra melhoramos um pouco de vida por causa da televisão e da Unicamp, entrou mais um dinheirinho, alugamos uma casa numa vila em Perdizes, na Rua Cardoso de Almeida, na frente da PUC. Daí mais televisão, um pouco mais de sucesso, um pouco mais de dinheiro e começamos a construir uma casa em Cotia. Eu tinha um fusca e vivia indo e voltando, levando tijolos, azulejos e tal. No teatro foi mais ou menos o mesmo percurso. Até hoje ainda acho engraçado esse negócio de ter camareiro, se bobear tem até maquiador no camarim, é muita mordomia. A Eliane sempre brincava com a primeira vez que ela tinha usado sapato no teatro, que foram muitos anos depois de ter começado a trabalhar. Todas as nossas peças a gente fazia descalço, de pé no chão. O nosso negócio era assim, a gente era um grupo, e todo mundo fazia tudo. Quando acabava a peça a gente juntava os figurinos, os objetos de cena, e guardava em uns sacos de estopa. Cada um cuidava da sua contra-regra, a gente fazia iluminação, subia numa escada, pendurava os refletores, amarrava os fios, pintava o chão e depois entrava em cena. Capítulo XII EAD A EAD foi maravilhosa, nós tínhamos ótimos professores, o principal foi o Celso Nunes, que acompanhou a minha turma durante os três anos de curso. Mas tinha também a Myriam Muniz, que faleceu recentemente, uma professora genial, cheia de afeto pelos alunos, mas ao mesmo tempo supertemida. Ela tinha uma personalidade fortíssima, era ao mesmo tempo cúmplice e crítica, teve um impacto enorme na minha vida. A Myriam me ensinou muita coisa, como gostar de Federico Garcia Lorca, por exemplo. E tinha um lado mãezona dela que também era muito legal. Uma vez ela perguntou se eu estava me alimentando bem, disse que a família dela tinha um restaurante e que eu podia ir comer lá de graça quando precisasse. Eu fui várias vezes. Depois de muito tempo, quando eu já tinha a Casa da Gávea, no Rio, convidei a Myriam para dar um curso. Ela morava em São Paulo, então fui buscá-la no aeroporto. Ela chegou trazendo uma daquelas sacolas de feira, e lá dentro tinha um monte de folhas secas. Fomos direto para a Casa, e quando ela chegou lá, fez uma roda no quintal com a Cristina Pereira, a Eliane, para fazer uma fogueira. Nós demos as mãos e ficamos lá, chorando de emoção. Ela era uma pessoa única. Lembro muito do professor Hugo também, que dava aulas de esgrima. Ele fazia a gente aprender a luta e usar em uma cena, a da luta do Laertes e do Hamlet, na peça do Shakespeare. E tinha o professor Leontij Timozcezenko, russo, estranhíssimo, que dava aulas maravilhosas de maquiagem. E a grande poeta e dramaturga Renata Palottini, que dava aulas de História do Teatro, o Clóvis Garcia, que também ensinava História do Teatro; a saltitante Yolanda Amadei, que era nossa professora de expressão corporal; a Milene Pacheco, que dava aulas de dicção olhando para dentro da nossa boca para ver se tínhamos um bom freio na língua. E muitas outras pessoas inesquecíveis, como a Maria José de Carvalho, que botava os alunos nos gramados da USP declamando textos do Garcia Lorca; a Leila Cury, que fazia a gente se apaixonar pelos poetas brasileiros e portugueses; o Paulo Mendonça, o grande Paulo Mendonça! Ele era um dos donos da Editora Três, e vinha dar aula de terno. Aí entrava na sala de aula, tirava o paletó, filava um cigarro de uma aluna bonita sentada na frente e falava sem parar sobre Shakespeare, sobre o caráter do Hamlet, do Macbeth, era encantador. Tinha também os diretores, que iam para a EAD dirigir os trabalhos dos alunos. Conheci na escola o Fernando Peixoto, o Emilio di Biase, o Jonas Bloch. Além disso tinha toda a movimentação política na EAD, que era muito viva, muito envolvente. O Celso Nunes tinha um trabalho profissional maravilhoso, dirigiu O Interrogatório, do (dramaturgo alemão) Peter Weiss, dirigiu Um, Dois, Três de Oliveira Quatro, do Lafaiete Galvão, dirigiu um monte de peças importantes, dirigia a Fernanda Montenegro, era um dos grandes diretores de teatro daquela época. E ele acompanhava a nossa turma, era um privilégio isso. Capítulo XIII Pessoal do Victor Quando nos formamos, montamos, como trabalho final, a peça Victor, ou as Crianças no Poder, do (dramaturgo francês) Roger Vitrac. O Márcio Tadeu fazia o Victor e ele tinha um desempenho maravilhoso. Nessa época o Márcio era também figurinista na TV Cultura, além de cursar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU. O Márcio é um grande artista, trazia toda a experiência de seu contato com os diretores que trabalhavam na Cultura, como o Ademar Guerra e o Antunes Filho. Essa é a origem do Pessoal do Victor. E foi muito gostoso se formar com um trabalho profissional, foi o meu primeiro trabalho profissional. E a gente levou a peça para a Bienal, naquela época tinha teatro na Bienal, o Celso Nunes costumava fazer peças no meio das obras, era uma maravilha. Depois levamos o Victor para o Teatro Ruth Escobar, para a Sala do Meio, e a peça fez sucesso e teve ótima crítica, foi superlegal. Então a gente se animou e alguém achou na secretaria da EAD um convite para o Festival de Teatro Estudantil em Palermo, na Itália, quem quisesse podia pegar e ir. Então a gente se matou para conseguir dinheiro e ir para esse Festival. Conseguimos uns quadros e fizemos um leilão para comprar as passagens. A Ilka Maria Zanotto, maravilhosa crítica teatral, comprou um quadro do Volpi num leilão que a gente fez. E conseguimos o dinheiro das passagens. Do festival me lembro pouco, mas nos divertimos muito tomando aranciata, vendo os teatros de bonecos pelas esquinas de Palermo e procurando nossas origens italianas. A Eliane e eu queríamos ir para a França, ficar morando lá por um tempo. O Celso Nunes, que era o nosso exemplo, tinha estudado na Sorbonne, então a gente queria fazer a mesma coisa. Mas estávamos muito despreparados, não tínhamos dinheiro, não sabíamos nada de francês, aí ficamos um mês e voltamos. Então, retomamos o Pessoal do Victor, com o Celso Nunes dirigindo as peças, e começamos a fazer algum sucesso. Eu ainda não me levava a sério como diretor, mas assim que me formei na EAD fui para Sorocaba e dei um curso lá, desses cursos do Conselho Estadual de Cultura. Esse curso eu transformei na montagem de uma peça de teatro. Eu tinha traduzido do espanhol o texto de Cerimônia por um Negro Assassinado, do (dramaturgo espanhol Fernando) Arrabal e montei em Sorocaba com esse grupo de atores amadores. E ganhei o segundo Prêmio Governador do Estado, dessa vez como diretor. Eu dirigia, fazia iluminação, usava aqueles negócios lá de sal, aquelas resistências. A peça do Arrabal era linda, e a minha montagem ficou muito legal, tivemos até crítica de Alberto Guzik, ele dizia que eu já tinha nascido com a cabeça feita. Capítulo XIV Os Iks Depois do Victor, montamos Os Iks, uma peça do Peter Brook, Jean-Claude Carrière e Denis Cannan – os três são os autores. É uma adaptação do livro O Povo da Montanha, do antropólogo Colin Turnbull, que o Peter Brook tinha montado naquele teatro dele lá na França e o Celso Nunes conseguiu autorização para fazer. Quem trouxe essa peça para o Brasil foi o Yacov Hillel, um colega e diretor maravilhoso e sempre superantenado. A gente ficou um ano ensaiando, fazendo laboratórios, o nosso desejo era reproduzir o estado de ânimo de uma tribo indígena em Uganda, numa reserva. Esses índios, os Iks, estão lá, gerações e gerações de fome, de penúria, de miséria, e a peça fala da ética dos despossuídos. O Colin Turnbull é um antropólogo e ele sugere, no fim da peça, que os Iks sejam exterminados etnicamente, quer dizer, que eles sejam separados. Eles não vão viver mais juntos porque chegaram num estado tão irrisório da condição moral e humana que não devem mais ficar juntos. Meu personagem era o Atum, um dos protagonistas da peça. Tinha dois ou três protagonistas. Era ele que fazia a ponte com o mundo civilizado. O Atum era um malandro da tribo, um cara que pegava e trocava qualquer coisa por cigarros, um dos menos éticos e mais deturpados entre os Iks. A gente estreou no Teatro Oficina, e os ensaios também eram lá. Na época o José Celso Martinez Corrêa estava exilado, mas o irmão dele, o Luiz Antônio Martinez Corrêa, estava começando o Grupo Ornitorrinco e eu me lembro dele no piano junto com a Maria Alice Vergueiro. O Luiz tinha uma sala cheia de livros, e na parede estava escrito: A mais valia vai acabar seu Edgar. Andava por ali também o Cacá Rosset, que mais tarde fez montagens maravilhosas com o grupo Ornitorrinco. Foi muito bacana esse espetáculo, Os Iks, mas o resultado final foi frio em São Paulo. A gente fez uma temporada de quatro meses no Teatro Oficina, depois levamos a montagem para o Rio de Janeiro. Na verdade a gente estava levando o Victor, ou As Crianças no Poder, que era o nosso sucesso e que a gente achava a cara do Rio. Mas aproveitamos o caminhão que levou os cenários e botamos o material dos Iks junto. O Victor não foi muito bem no Rio, para nosso espanto, então substituímos por Os Iks. E o Celso Nunes mudou toda a concepção do espetáculo, mudou as marcações, foi ousadíssimo. Eu resisti muito às mudanças, achava que não ia dar nada certo. Ele confinou a gente num espaço de dois por dois no fundo do teatro e disse é aí que vocês vão fazer a peça. A gente não tinha para onde ir, só podia subir pelas paredes. Aí ele encheu a peça de tabuletas e de recados escritos nas paredes, explicando o que não tinham entendido em São Paulo. Isso deu uma contundência para o espetáculo, foi uma maravilha. Para um grupo jovem fizemos um puta sucesso no Rio. Teve crítica do Yan Michalski no Jornal do Brasil imediatamente depois da estréia. O Yan saiu do Teatro Cacilda Becker e foi direto para o jornal escrever a crítica, tamanho foi seu entusiasmo. No outro dia já estava no jornal. Não tem nada parecido com isso hoje em dia, tem? Capítulo XV Cerimônia por um Negro Assassinado Depois da temporada dos Iks no Rio de Janeiro, eu dirigi de novo a peça Cerimônia por um Negro Assassinado, mas dessa vez com o Pessoal do Victor, a Eliane Giardini, o Márcio Tadeu, o Adilson Barros e o Ismael Ivo. O Ismael é hoje diretor de um balé na Europa, e curador da área de dança da Bienal de Veneza, um dos maiores bailarinos da atualidade. E por essa montagem eu ganhei o Prêmio Revelação de Direção da APCA e o Prêmio Mambembe de Revelação de Direção. O Sábato Magaldi escreveu uma crítica falando maravilhas. Ajudou-me muito nesse trabalho o Reinaldo Santiago, que foi assistente de direção. O Márcio Tadeu fez um cenário maravilhoso, inspirado no quarto do Van Gogh, aproveitando de uma forma absolutamente genial a pequena Sala do Meio do Teatro Ruth Escobar, hoje Sala Myriam Muniz. O espetáculo devia ser realmente muito bom. O desempenho dos atores era de uma vitalidade extraordinária. O Adilson e o Márcio suavam em bicas, completamente entregues aos dois personagens principais criados pelo Arrabal. A Eliane fazia sua personagem com um humor sutil e muita delicadeza. A cena da morte do negro, que é o título da peça, era sensacional. O Adilson segurava o Ismael Ivo por trás, cobrindo seu rosto com o lençol. Ismael vestia apenas uma sunga, pois tinha acabado de transar com a moça a mando dos dois caras, que queriam ficar olhando. Eram o Adilson e o Márcio Tadeu os dois caras, que depois ficavam com ciúmes e decidiam matar o negro. Adilson aproveitava o lençol e colocava por baixo uma bexiga com sangue que o Márcio furava com uma faca, fazendo parecer que tinha furado o corpo do Ismael. O sangue jorrava e manchava o lençol, e o Ismael usava seus dotes de bailarino para estender ao máximo a agonia do personagem. Era realmente um grande momento. Capítulo XVI Teatro Profissional Então a gente já estava fazendo teatro profissional, mas ainda não dava para viver só disso. Todo mundo tinha outro trabalho. O Adilson era advogado e professor de educação física; o Márcio Tadeu era arquiteto, fazia cenários para outras peças; a Marcília era tradutora, o Waterloo era escrevente e eu estava no banco. Nessa época eu já não trabalhava mais na Votorantim, um colega meu de EAD, o Armando Azzari, já falecido, me levou para trabalhar com ele no Banco União Comercial, onde ele era gerente de Relações Humanas. Mais tarde ele se transferiu para o Banco de Boston, e eu fui junto. Aí não tinha mais cartão de ponto, podia chegar um pouco mais tarde, o refeitório era excelente, tinha uma tarefa mínima para fazer e dava tempo de ler. Eu deixava o livro dentro da gaveta, aí abria e ficava lendo. E o trabalho era uma moleza, a gente somava umas coisas, fazia umas contas, depois picava os papéis e jogava tudo pela janela no final do ano. Hoje em dia teve reengenharia nos bancos, acho que não é mais assim. Mas naquela época era bem gostoso, a gente trabalhava com mais folga. E o Armando também era ator, então ele me chamava na sala dele, fechava a porta e a gente ficava conversando horas sobre teatro. Foi graças à cumplicidade do Armando que eu encontrei tempo para traduzir Cerimônia por um Negro Assassinado. Em 1977, quando o nosso trabalho já estava mais sólido, consegui deixar de trabalhar no banco. Aí, para sobreviver, comecei a fazer dublagem, na Álamo. Comecei também a fazer testes para comerciais. Em 1977, o Celso Nunes convidou todo o grupo para ir para a Unicamp, e passamos a ser professores lá. O núcleo do Pessoal do Victor era a Marcília Rosário, o Anton Chaves (um ator maravilhoso que às vezes larga tudo por uma temporada e vai viver na roça), o Reinaldo Santiago, o Waterloo Gregório, o Márcio Tadeu, o Adilson Barros, a Eliane Giardini, a Maria Elisa Martins e eu. A Stella Freitas, o Iacov Hillel e a Isa Kopelman fizeram os Iks e Victor como atores convidados e deram uma contribuição espetacular. Nessa época eu ganhava um salário de começo de carreira universitária na Unicamp, o MS1, mas mantive esse emprego até 1984, quando fui para a Globo. Sempre fui muito prudente, sempre tive muito medo de não ter como pagar as contas. O Celso Nunes foi a pessoa mais importante na minha formação teatral. Quando entramos na EAD ele estabeleceu um vestibular diferenciado, colocando todos os concorrentes num estágio de observação. Conseguiu tirar 20 alunos de um grupo de 600 candidatos e nos acompanhou com entusiasmo durante toda a duração do curso. Ele se doou por inteiro a essa turma da EAD. No vestibular e durante o curso o Celso levava, muitas vezes, o Alberto Guzik para dar aulas. O Alberto era entusiasmado e nos iniciou no conhecimento teórico dos grandes encenadores, Gordon Graig, Pitoeff... O Celso ensinava com gosto, dirigia ensinando, propunha pesquisas criteriosas, acreditava no trabalho de profundidade. Nossos ensaios de Os Iks foram uma verdadeira universidade. Ele tem um carisma impressionante. Os olhos azuis, a barba que ele usava na época da EAD, era um tipaço. Era a pessoa que eu conheci que mais tem jeito de diretor, pinta de diretor, se é que isso existe. E era, de fato, um grande diretor. Falava com brilho. Sabia conceber os espetáculos, provocar os atores. E sempre muito generoso, preocupado em ajudar todo mundo. Levou-nos, o grupo inteiro, para dentro da Unicamp, onde pudemos desenvolver o trabalho que desaguou em Na Carrêra do Divino. É também o sujeito mais inquieto que já conheci. Depois de consagrado como um dos maiores diretores de teatro do Brasil, largou tudo e foi aprender sobre a técnica corporal rolfing, uma série de massagens profundas que visam ao realinhamento do corpo. Há muito tempo vive em Florianópolis. O Processo e A Vida é Sonho No nosso grupo éramos ultra-esforçados, todo mundo fazia tudo junto, dividíamos as tarefas, era um trabalho muito coletivo. Eu sempre trabalhei muito em grupo. Inclusive hoje, sempre que dirijo uma peça me coloco como se fôssemos um grupo. Depois fizemos uma montagem de O Processo, obra genial do (escritor nascido em Praga) Franz Kafka, com direção do Celso Nunes. Eu fazia o protagonista da peça, o Joseph K. Um papel dificílimo. A gente trabalhou muito o texto, misturamos várias adaptações, ensaiamos arduamente, mas ficamos pouco tempo em cartaz no Oficina. Tivemos críticas maravilhosas do Moacir Amâncio, na Folha de S.Paulo, da Consuelo de Castro, no jornal O São Paulo, mas a maioria das pessoas não gostou, ficamos pouco tempo em cartaz. Será que era um bom espetáculo? Teatro é cruel. No cinema você pode ter um trabalho reavaliado muito tempo depois, mas teatro é fugaz. Tinha entrado muita gente nova no Pessoal do Victor para a montagem do Processo. Então, quando saímos de cartaz, resolvemos reduzir o grupo de novo. Com o núcleo inicial, fizemos A Vida é Sonho, do (dramaturgo espanhol) Calderón de la Barca, com a direção do Celso, de novo, no Teatro Faap. Também não foi um grande sucesso, teve algumas grandes sessões, a crítica Ilka Maria Zanotto viu o espetáculo e amou, mas não foi um grande sucesso. Aí o grupo começou a ficar realmente muito dividido, uns queriam fazer uma coisa, outros queriam fazer outra. Unicamp Nossa ida para a Unicamp foi uma idéia do Celso. Ele tinha ido para lá para criar um curso de teatro e podia contratar três doutores, mas preferiu levar o que tinha restado do Pessoal do Victor. Nosso primeiro encontro foi com o professor Rogério César Cerqueira Leite. Um físico com uma cabeça maravilhosa. Nos deu total autonomia e começamos a desenvolver um trabalho coordenado pelo Celso. A gente dava aulas debaixo das árvores, porque ainda não tinha o espaço físico, as salas de aula. Era essa a filosofia da Unicamp, implantada pelo professor Zeferino Vaz. Primeiro ele trazia o material humano, depois ia criando os espaços necessários. Foi incrível. Eu me apaixonei pelo trabalho de professor. E dirigi algumas peças também, como Ubu Rei e Strip Tease. E conheci gente maravilhosa, como a escritora Marlyse Meyer, o pintor Álvaro Bautista, os compositores Raul do Valle e Almeida Prado e a bailarina Marília Andrade, filha do escritor Oswald de Andrade. Na Carrêra do Divino Foi a Unicamp que nos deu a estabilidade que a gente precisava para fazer o Na Carrêra do Divino. Nossa idéia era contar nossas histórias, a maioria do grupo tinha vindo do interior e a gente queria fazer uma peça sobre isso. O Celso estava dirigindo outra peça na época, com outros atores, e isso levou a gente a fazer o Na Carrêra sem ele. Na época, o grande sucesso do teatro brasileiro era Asdrúbal Trouxe o Trombone, com o Trate-me Leão, que era uma expressão muito carioca, um espetáculo incrível, mas a gente tinha uma consciência de que havia uma dominação cultural no País, todo mundo achava o sotaque carioca bacana, bonito, e o sotaque caipira era feio e inaceitável. Então a gente queria fazer uma espécie de Trate-me Jeca Tatu. Nós queríamos dizer que gostávamos de rock’n’roll, mas também gostávamos de moda de viola, era uma afirmação de identidade. Nós não tínhamos nenhum texto, mas começamos a nos reunir na casa do Adílson e a falar das coisas que queríamos botar na peça, das músicas, das histórias, dos causos. Uma das melhores reuniões que fizemos foi na casa do professor Egon Shaden, com os professores Florestan Fernandes e Antônio Cândido. A certa altura o professor Cândido ficou tão empolgado que começou a cantar cururus e modas de viola. Mas depois de uns seis meses de trabalho, percebemos que tínhamos uma boa pesquisa, mas não uma peça. Então chamamos o Carlos Alberto Soffredini, que era um autor e diretor que todos nós admirávamos desde a época do teatro amador. Ele gostou do projeto, pediu um tempo, ficou com a gente ouvindo todos os nossos desejos, pegou nossa pesquisa, fez a dele e escreveu uma peça. Aí deu para a gente encenar com o texto ainda inacabado, para ver o que a gente fazia. A gente montou, ele ficou assistindo e disse eu faria completamente diferente, mas achei ótimo. Agora eu fecho a peça. Aí ele completou os trinta por cento do texto que faltavam. O texto ia chegando, cena por cena, e a gente ficava esperando e sofrendo de tanta ansiedade. Uma ansiedade gostosa porque sabíamos que viriam cenas boas. Eu me lembro do Adilson absolutamente tomado pelo personagem dele, era um trabalho deslumbrante do Adilson, emocionante. Ele dominava tão completamente o personagem que quando chegava o texto novo, ele pegava, dava uma lida e começava a botar em pé, ele com aquela enxada, os pés sujos de terra. Foi um sucesso tremendo, todo mundo ganhou todos os prêmios, o Adilson ganhou todos os prêmios, eu ganhei o Molière de melhor direção, prêmio da APCA de melhor diretor, Mambembe de melhor diretor, Associação Paulista de Teatro, o escambau. O Soffredini ganhou todos os prêmios. Gravamos até um disco pela RCA, com a trilha da peça. A Eliane foi diversas vezes no programa do Rolando Boldrin, na Globo, fazer o monólogo do Sto. Antonio. A peça ficou muito tempo em cartaz, viajou por muitos lugares do Brasil. Nós íamos de ônibus para os lugares, aí chegávamos, montávamos o cenário, a luz, depois entrávamos em cena sem tomar banho, porque quanto mais sujo a gente estivesse era melhor para a peça. A gente tinha uma caixa de terra e se esfregava nela antes de entrar em cena, tinha que sujar bem os pés antes de pisar no palco. Eu adorava fazer essa peça, era uma catarse. E eu já era fã do Soffredini há muito tempo, tinha feito um curso de teatro que ele deu em Sorocaba quando eu tinha uns 17 anos e ele me marcou muito. Ele ficava o tempo todo dizendo assim com um vozeirão: Não se poupe, não se poupe. Ele achava que a gente devia ir sempre mais fundo, se exigir mais, querer mais, tentar mais, não se poupar física e mentalmente. Até hoje eu ouço a voz do Soffredini falando não se poupe. E tento não me poupar mesmo, anoto, escrevo, vivo ligado, trabalhando, tentando prestar atenção em tudo. E o Na Carrêra quase virou filme, ia ser dirigido pelo Jorge Bodanski, o diretor de Iracema. Não deu certo, mas aí o André Klotzel fez A Marvada Carne, que tem muito a ver com a peça. O Soffredini era o roteirista e o Adilson usa no filme o mesmo figurino que usava na peça. Na época fiquei um pouco grilado porque o André não falava nada da peça no lançamento, nas entrevistas, a gente queria que ele dissesse alguma palavrinha, para a gente era claro que o filme era um desdobramento da peça, mas ele dizia que tinha se inspirado no Nelson Pereira dos Santos. Hoje dou graças a Deus de ele ter feito esse filme, dá uma idéia do que era o trabalho do Adilson em Na Carrêra. Saiu em vídeo, depois em DVD, tem em qualquer locadora. No filme tem a Eliane cantando também, na mesma cena do Santo Antônio que era o maior sucesso dela na peça, e que no filme é a Fernanda Torres que faz. Na Carrêra foi um grande sucesso e, como todo grande sucesso, também teve seus problemas. O grupo começou a ficar dividido e isso se acentuou quando levamos a peça para o Rio de Janeiro. Não teve nenhuma briga feia, mas tinha os problemas de sempre, desgaste do relacionamento, vaidade, ou então o destaque que a imprensa dava mais para uns do que para os outros, essas coisas. A gente era um grupo, todo mundo ganhava a mesma coisa, todos estavam maravilhosos no espetáculo, mas, de repente eu tinha ganhado o Prêmio Molière, o APCA, o Mambembe, o Adilson tinha ganhado dois prêmios também, a Eliane era o maior sucesso. Enfim, começou a surgir uma certa discórdia e uma certa vontade de fazer coisas diferentes, e daí a gente se dividiu. O Márcio, a Marcília e o Reinaldo quiseram fazer outra peça com outro nome de grupo, e a gente continuou com o nome Pessoal do Victor, aí só nós três. Feliz Ano Velho A última peça do Pessoal do Victor foi Feliz Ano Velho. Tudo começou assim: o Marcos Kaloy, que na época tinha alguma ligação com a Unicamp que eu não lembro direito, leu a primeira edição do livro Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, e achou que dava uma peça. Aí ele procurou o Alcides Nogueira, para ver se ele gostaria de escrever o texto. E trouxe o livro também para mim e para o Adilson. Nós éramos professores da Unicamp, o livro bateu muito forte na gente, porque o Marcelo poderia ter sido nosso aluno. Não era, não tinha sido, mas poderia ser, porque vários personagens do livro, os melhores amigos dele, eram nossos alunos. O Cassiano Quilici, o Cassy, que na peça é o melhor amigo do Marcelo, era um dos meus melhores alunos. Montei duas peças com o Cassy na Unicamp: Ubu Rei, (do dramaturgo francês Alfred Jarry), em que ele fazia o papel principal, e Strip Tease, (do dramaturgo polonês Slawomir Mrozec). Hoje o Cassy é professor da PUC, dá aula de teatro. Enfim, começamos a pesquisar, o Alcides escreveu o texto e começamos a montar o elenco. O Adílson estava comigo desde o começo, aí o Alcides trouxe a Denise Del Vecchio, que trouxe a Cristiane Rando. A Lília Cabral tinha sido aluna da EAD eu a tinha visto numa peça do Valle Inclan (dramaturgo espanhol) As Divinas Palavras, direção do Iacov Hillel, ela estava maravilhosa, corajosamente aparecia nua (apesar do pai italiano severíssimo), e a convidei. As reuniões iniciais aconteciam na casa do Adilson, que era advogado. Foi ele que fundou a Cooperativa Paulista de Teatro. Foi um momento muito especial esse, as pessoas todas tinham uma energia muito forte. E a gente procurava contrapor a imobilidade do Marcelo a uma mobilidade física muito grande. Esse era o eixo da peça, a gente fazia ginástica, acrobacia, tudo na peça era contraponto à imobilidade. Era um espetáculo feito com grande despojamento e soluções cênicas muito simples, mas eficazes. Até hoje encontro pessoas que começaram a fazer teatro porque amaram Feliz Ano Velho. Ninguém se esquece da cena inicial do Marcos Frota pulando do alto da escada e mergulhando no escuro. Era um grande golpe teatral logo de cara, tirava o fôlego do espectador. Esse trabalho com o Alcides foi o de colaboração mais intensa que eu já fiz até hoje. Ele praticamente levou a máquina de escrever para o palco e ia propondo textos, cenas e diálogos o tempo todo, enquanto via os ensaios. Ele construiu uma estrutura que foi considerada infernal pelo crítico Macksen Luiz, do Jornal do Brasil. Foi idéia do Alcides de contrapor a imobilidade do Marcelo Paiva depois do acidente com uma extrema movimentação na representação do passado. Foi realmente genial. Quem teve a idéia dos aparelhos de ginástica foi a Denise Del Vecchio, que foi uma das maiores conquistas do espetáculo. Além de ser uma grande atriz, ela é extremamente agregadora, contribuiu muito com o trabalho em conjunto. Todo mundo dava muito palpite, mas o Alcides escreveu o texto palavra por palavra, dando-lhe poesia e dramaticidade. Quando ele chegava com as folhas impressas a emoção contaminava todo o elenco. O Alcides é um dramaturgo e poeta de mão cheia, além de ser um autor generoso, entusiasmado e absolutamente teatral. Não mudamos uma linha do que ele escreveu. Esse encontro com o Alcides foi definitivo em minha carreira. A cada peça dele que eu vou ver, como Lua de Cetim, Pólvora e Poesia, me dou conta da sorte que tive com o nosso encontro em Feliz Ano Velho. Alcides ganhou o prêmio Molière com a peça, eu como diretor e o Marcos Frota como ator. Ganhamos todos os prêmios naquele ano de 1984. Foi uma união muito criativa. O Adilson, além de ator, era um produtor, um animador, um incentivador, uma presença essencial. Foi um momento muito feliz. Quando a peça estreou era um evento, tinha aplausos em cena aberta, uma vez eu cheguei a contar 15! A Lília Cabral arrasava, um grande desempenho, o Marcos Frota estava incrível. A Cristiane Rando era uma graça em cena. O Kaloy parecia o Mick Jagger, a Denise fazia a mãe do Marcelo, a Eunice, com maestria e emoção e o Adilson se superava em diversos personagens, entre eles o do deputado Rubens Paiva. Era muito dramático e muito engraçado ao mesmo tempo. E o Marcelo Paiva passa a ser uma figura muito presente na minha vida a partir do Feliz Ano Velho, não só por causa da peça, mas porque desenvolvemos uma amizade muito grande. É hoje um dos meus melhores amigos. Ele foi junto com a gente apresentar a peça em Cuba, depois fomos pra Nova York e para a cidade do México. E eu sempre ficava pensando na história dele, na história do pai dele (o ex-deputado Rubens Paiva, que foi preso, torturado e morto pela ditadura militar). O Marcelo é um exemplo para qualquer um, ele é tão animado, tão cheio de vida, não deixa a deficiência física ser desculpa pra nada. Um dos momentos mais emocionantes de Feliz Ano Velho foi a entrada do Marcelo no palco do Teatro Karl Marx, em Havana, após a apresentação do espetáculo. Três mil pessoas aplaudindo em pé, foi lindo! Feliz Ano Velho fez um grande sucesso, ficou muito tempo em cartaz, mas daí estilhaçou o grupo. O Marcos foi para a televisão, a Lília foi para a televisão, eu também fui pra Globo e o Adilson ficou na Unicamp, querendo segurar o Pessoal do Victor como grupo, mas não teve jeito. O Adílson tinha um sentido de organização e de luta muito forte. Ele era meu grande amigo desde Sorocaba. Quando eu vim para a EAD o Adílson ficou em Sorocaba no teatro amador. Nós tínhamos feito O Pagador de Promessas juntos - a peça que me deu impulso para ir para São Paulo. Quando eu fui para a capital o Adilson me deu uma bolsa redonda, cilíndrica, de borracha, escrito Faculdade de Direito de Sorocaba, onde ele tinha se formado. Eu punha a chave da pensão, que parecia uma chave de cadeia, bem grande, amarrada no cordão da bolsa e ia para a EAD, que não era curso superior, era um curso técnico dentro da USP. Eu já tinha feito o científico em Sorocaba e a EAD era outro curso técnico que eu estava fazendo, e isso me incomodava um pouco. Queria ter um curso universitário, e às vezes sentia que estava fazendo o colegial de novo. E aquela bolsa me dava uma bossa de estudante universitário. Olha que bobagem, a EAD era um curso maravilhoso. Assim É Se Lhe Parece Logo depois de Feliz Ano Velho fui convidado pelo Sérgio Brito para dirigir a peça do escritor italiano Luigi Pirandello, no Teatro dos Quatro, que na época fazia as produções mais conceituadas do Rio de Janeiro. Os figurinos eram da Mimina Roveda e o cenário do Paulo Mamede, sócios do Sérgio e donos do teatro. O elenco era inacreditável: Nathalia Timberg, Henriqueta Brieba, Yara Amaral, Ary Fontoura, José Wilker, Vic Militello, Cristina Pereira, Mário César Camargo, Lícia Magna, Alexandre Zachia, Nildo Parente, Márcia Rodrigues, Sérgio Brito... A peça é maravilhosa e fui absolutamente fiel ao texto e procurei contar a história simplesmente, valorizando mais o enredo do que as elucubrações filosóficas do autor italiano que eu adoro. O espetáculo foi um sucesso estrondoso, lotou o teatro todas as noites. Está aí uma fórmula difícil de dar errado: uma boa peça, um elenco excelente e respeito ao texto. Ação entre Amigos Como toda regra, existem exceções. E a montagem de Ação entre Amigos é a exceção que confirma a regra. Eu tinha sido convidado para dirigir a peça Sábado, Domingo e Segunda (do dramaturgo italiano Eduardo De Filippo), e não quis fazer, passei a direção para o Wilker. Eu queria uma peça brasileira que tivesse mais características de teatro de grupo. Aí montei Ação entre Amigos, do Márcio de Souza, que foi um puta fracasso. O texto é maravilhoso, o elenco tinha atores maravilhosos, como Andréa Beltrão, Eliane Giardini, Luiz Carlos Arutin, Mário César Camargo, Vinícius Salvatore, Telmo Faria, e foi um fracasso. Durante os ensaios morreu a querida Lilian Lemmertz, que estava no elenco original e foi substituída pela Jaqueline Laurence. Fizemos um ensaio geral maravilhoso e a estréia foi horrível. Deu tudo errado. Márcio e eu íamos todos os dias ao Teatro Ipanema, onde a peça estava em cartaz, para tentar entender o que estava errado. A gente ficava sentado na platéia assistindo à peça e tentando entender. Devíamos ter desistido quando a Lilian morreu. Feliz Ano Velho de Novo A remontagem de Feliz Ano Velho recebeu excelentes críticas de novo, tudo favorável, o público adorou ver e rever a peça, acho que a gente fez um trabalho muito bonito, muito forte, caprichado, com músicas novas lindas que André Frateschi compôs, mas preservando a mesma trilha sonora genial da Tunika. Colocamos também alguns vídeos filmados pelo João Jardim e material de arquivo que mostrava cenas de estudantes na rua e momentos do golpe militar com tanques, etc. Aproveitamos a mesma concepção cenográfica da primeira montagem e entrou um time de atores novos que injetaram muita garra no espetáculo. A Maria Ribeiro estava ótima no papel que tinha sido da Lília Cabral, a Márcia Brasil fazia com brilho o papel que era da Cristiane Rando e o André Frateschi cantava e representava lindamente, no lugar que tinha sido do Kaloy. A minha filha Juliana substituiu a Maria em algumas cidades da excursão revelando talento e profissionalismo, sendo aplaudida em cena aberta, para minha completa felicidade. Denise Del Vecchio estava de novo na montagem e conseguiu fazer um trabalho ainda melhor do que o da primeira versão da peça. O Genésio Barros, que é um ator maravilhoso, entrou no lugar do Adilson e o Marcos Frota conseguiu a façanha de fazer o Marcelo Paiva com o mesmo frescor da versão que ele tinha criado originalmente 15 anos antes. Depois foi substituído com categoria pelo Cláudio Fontana e eu entrei no papel do Rubens Paiva na temporada carioca, fazendo par com a Suzana Faini, que substituiu a Denise. Foi muito emocionante fazer o papel que originalmente tinha sido criado pelo Adilson Barros. Às vezes eu me surpreendia repetindo seus gestos de uma forma tão automática que era como se ele tivesse baixado em mim, era assustador. E tinha um travo na peça, eu aprendi que não dá para voltar no tempo. E é difícil mesmo refazer as coisas, sei lá, foi meio dolorido. A gente ficou mais tempo do que deveria ter ficado em cartaz. Se tivéssemos ficado só três meses no Tuca, teria sido um sucesso, maravilhoso. Mas ficamos seis meses, aí deu prejuízo. Eu não esperava aquele sucesso todo de novo, mas ter prejuízo é demais, né? O ator José Rubens Chachá disse que quando a peça entrou em cartaz pela primeira vez era um fenômeno, na segunda vez, virou uma peça de teatro. Não quero mais remontar minhas peças. Agora só quero andar para a frente. Se fosse no cinema, seria uma releitura, aí ficaria estimulante de novo. Mas, no teatro, fazer tudo igual, é difícil. Não quero, não. E agora estou cada vez com mais vontade de dirigir filmes, bem mais do que dirigir peças. Capítulo XVII Adilson Barros e Chiquinho Brandão Lamento muito a morte prematura do Adilson, um ator excepcional e grande amigo. E também a do Chiquinho Brandão. Foram duas pessoas muito marcantes pra mim, como artistas e como amigos. Exemplos de coragem e determinação. O Adilson foi um irmão. Do Chiquinho sou compadre póstumo, batizei seu filho Diogo, que é a cara do pai e herdou seu talento. Adoro imitar o Chiquinho, sua forma de falar, suas tiradas. Uma das melhores dele é quando perguntava numa roda de amigos: Estou falando muito? Estou monopolizando? Muito bem, falem-me um pouco de vocês. O que vocês acham... de mim? Outra maravilhosa do Chiquinho foi durante nossos ensaios do Amigo da Onça, peça que o cartunista Chico Caruso escreveu e eu dirigi. O elenco era fabuloso, Andréa Beltrão, Cristina Pereira, Eliane Giardini, Sérgio Mamberti, Antonio Grassi, Rafael Ponzi, Marcos Breda e o Chiquinho. Todos faziam tudo. Durante quase um ano freqüentamos a Biblioteca Nacional fazendo pesquisas. À noite nos reuníamos na casa da Andréa e passávamos tudo para o Chico Caruso. No outro dia ele trazia o texto: uma frase! O Chico Caruso, cartunista, tinha o poder da síntese. Nós queríamos textos, bifes para falar. Aos poucos o Chico foi se soltando e escreveu uma peça linda. Mas, voltando ao Chiquinho. Como todo mundo fazia diversas atividades relacionadas com a produção, os percentuais que combinamos eram diferentes para cada pessoa, com variações mínimas de acordo com as funções extras de cada um. Ainda não tínhamos recebido nada, mas um dia o Chiquinho quis falar sobre a injustiça que era ele ganhar menos. Alguém falou: Mas você não produz nada, Chiquinho. Ele profundamente indignado retrucou: Como não? Eu produzo esperança, eu produzo alegria. Todo mundo caiu na gargalhada, concordando. Ele era genial. Capítulo XVIII Televisão Já na época do Na Carrêra, a Eliane começou a fazer a novela Ninho da Serpente, da Bandeirantes. Eu ia lá buscá-la e um dia o (ator e diretor) Antônio Abujamra me viu e disse: Você também é ator? Eu falei que sim e ele me perguntou se eu não queria fazer novela. Até aquele momento a única oportunidade que eu tinha tido de fazer televisão tinha sido com o Antunes Filho, que fazia uns programas dramatúrgicos usando peças de teatro na TV Cultura, e daí fui lá fazer uns testes. Fiz um teste esquisito e não peguei nenhum papel legal, mas foi a primeira vez, uma ponta em Chapetuba Futebol Clube, acho que nem tinha fala. Novela era uma coisa distante, eu não achava que fosse possível fazer novela, era de teatro, era outro mundo. Novela ficava lá longe. O Adílson não pensava assim. De vez em quando ele chegava cantando: Hoje é um novo dia, de um novo tempo... sugerindo que poderíamos um dia estar lá. Mas aí o Abujamra me botou no elenco de Como Salvar Meu Casamento, de Edy Lima e Carlos Lombardi na TV Tupi, e, depois, em Os Imigrantes, do Benedito Ruy Barbosa. Na época já não era mais escrita pelo Benedito e sim pela dramaturga e poeta Renata Pallottini, que tinha sido minha professora na EAD. E eu estreei na novela. Foi engraçada a minha estréia. Eu tinha acabado de fazer Na Carrêra do Divino. O Naum (Alves de Souza) convidou a Eliane para fazer uma peça e eu fui lá, junto com ela, e entrei no elenco. Era A Aurora da Minha Vida. Na peça eu fazia o louco. Nós ensaiamos quase um ano, levantando reminiscências do tempo da escola, cadernos e cartilhas escolares, e o Naum escreveu o texto que ia trazendo em pedaços para a gente. Uma cena hoje, outra cena amanhã, e a gente ia testando nos ensaios. O resultado foi um espetáculo emocionante, com a Cristina Pereira, a Eliane, a Maria do Carmo Sodré, Roberto Aduim, o Tacus, que é filho do Dionísio de Azevedo e da Flora Geny, o J.C. Viola e a Isa Kopelman. A Isa é uma atriz que precisa ser destacada, é uma das atrizes que eu conheci que mais contribuem com o trabalho da direção. Ela é tão instigante, tão provocativa, ela é maravilhosa. Ela fez a protagonista de outra peça do Naum, No Natal a Gente Vem te Buscar. Ela fez Macunaíma, com o Antunes; fez uma montagem genial de O Dibuk, com direção do Iacov Hillel. Fez um monte de coisas boas. A Isa Kopelman é uma atriz especialíssima. Mas, enfim, assim que a peça estreou eu fui escalado para a novela. E o meu personagem tinha que ser louro. O Abujamra disse que o cabelo preto não fotografava legal, que eu tinha que ser louro, que eu tinha que tingir em um salão chique nos Jardins. Puta, que sofrimento! A tinta não pegava de jeito nenhum, aí no primeiro dia eu fui fazer a peça com o cabelo vermelho, eu fiquei ruivo. Os atores morreram de rir em cena quando eu entrei como padre. Tive de passar o sábado inteiro tingindo, perdi cabelo, fiquei com feridas na cabeça por causa de tanta química, mas na segunda-feira estreei louro. Eu era namorado da Lúcia Veríssimo na novela. Capítulo XIX Entrada na Globo e Casa da Gávea Eu me dei muito bem em novelas, a Globo me contratou pela primeira vez em 1984 e eu fiquei contratado um tempão. Fui parar na Globo a convite do José Wilker, que me chamou, junto com o Paulo Ubiratan, para fazer uma novela do Lauro César Muniz, Transas e Caretas. Foi muito curioso porque, quando eu fui para a Globo, já tinha ganhado dois Molière como diretor de teatro, um por Na Carrêra do Divino e outro por Feliz Ano Velho, e já tinha um monte de outros prêmios da crítica. E o Paulo Ubiratan, que era um dos diretores mais poderosos da Globo na época, falou assim: Você acha que você foi convidado para fazer novela por causa dos prêmios que você tem do teatro? Não, não, não. Você foi convidado por causa de um comercial de pasta de dente que você fez. Você tem uns dentes muito bonitos. Quer dizer, ter mamado até os sete anos de idade me ajudou a ter bons dentes e a ir para a Globo. E eu não fui muito de quatro para a Globo, não. Nunca fiz uma novela aflito com o resultado do Ibope, é claro que quero que dê certo, mas não acho que deva ser preocupação minha, quero fazer sem esse compromisso. Por isso sempre estou fazendo duas ou três coisas. Estou numa peça de teatro, estou na Casa da Gávea, estou no Instituto que montei em Sorocaba. Nessa primeira novela, eles me convidaram para uma reunião no Rio de Janeiro, eu morava em São Paulo, mas fui, aí me ofereceram um papel pequeno e eu disse que não ia fazer. Aí saí da sala, desci de elevador até o térreo e o Wilker tinha descido pela escada, para me encontrar, e disse A gente quer você, a gente tem outro papel para você e me ofereceu um outro papel. Aí era o Dirceu Valente, que era um pintor, bem cafajeste, que namorava a Natália do Valle. Foi nessa novela que eu inaugurei uma boa e intensa relação com o Wilker. Eu o dirigi no Assim é, se lhe parece, ele me dirigiu nessa novela, depois ele me dirigiu num especial que escreveu pra Manchete, o Cinderela, que tinha o Grande Otelo. Daí viramos sócios na Casa da Gávea. Fundamos a Casa da Gávea junto com o Rafael Ponzi e a Cristina Pereira, o Antonio Grassi, a Eliane Giardini, a Vera Fajardo. Eu é que cutucava todo mundo para entrar com o dinheiro. O Wilker tinha, mas o Rafael fazia verdadeiros sacrifícios para inteirar sua cota igual à de todos. O Rafael foi heróico na criação da Casa da Gávea, nossa trincheira, centro cultural, produtora e escola no Rio. A Cristina Pereira, além de ser uma parceira constante, é uma atriz maravilhosa e que tem uma enorme dedicação a causas sociais. Foi uma das maiores batalhadoras para que a Casa da Gávea desse certo e até hoje está lá, lutando. A televisão me absorveu logo de cara. Absorveu mesmo, eu gostei da brincadeira. Fiz uma novela atrás de outra, depois apresentei o Vídeo Show durante um ano, ao lado da Miriam Rios. No começo eu vinha para o Rio de Janeiro de ônibus, meu primeiro contrato não tinha passagem de avião. Mas quando a novela entrou no ar já não dava mais para vir de ônibus, era impossível, eu já era muito reconhecido. Eu gostava de viajar de ônibus, porque além de ser mais econômico era o melhor momento pra ler. Eu chegava na rodoviária, comprava a passagem e ficava meio disfarçado na banca de jornal, até o momento que o ônibus ia sair, pois não queria ser incomodado. Mas às vezes, entrava no ônibus e ouvia alguém lá no fundo gritar o meu nome. Era o querido Luis Carlos Arutin, que também morava em São Paulo e trabalhava no Rio. Aí viajávamos batendo papo. Capítulo XX Trabalhar na TV O gostoso da televisão é quando você percebe que o ator com quem está contracenando está batendo bola comigo, está se esforçando para fazer a cena bem. É muito ruim quando o ator está fazendo aquilo sem se divertir, sem curtir. E isso acontece em todos os lugares. Quando acontece no teatro de você estar infeliz no trabalho é uma barra pesada, porque teatro exige uma convivência muito grande, então fica muito chato. Eu gosto de pensar que onde eu estou, o ambiente está nota dez. Se o ambiente está mais ou menos, eu cheguei, ele vai ficar dez. Eu sou bastante pretensioso nesse sentido. E me dou muito bem com as pessoas, adoro os atores e tenho a pretensão de ser muito querido pelos meus colegas. Eu seria um bom presidente de sindicato de artistas, me preocupo com os atores mais velhos, adoro os atores mais velhos. Isso me deslumbrou quando cheguei à televisão, eu me via na mesma sala com a Fernanda Montenegro, com o Rubens Correa, com o Ivan de Albuquerque, com o Cláudio Correa e Castro, a Marília Pêra, o Walmor Chagas, o Gianfrancesco Guarnieri, o Paulo José. Pô, o Paulo José é muito legal, né? Logo que eu entrei para a televisão o Paulo Autran estava fazendo uma novela. Um dia encontrei com ele no corredor, e perguntei: O que é que eu faço? Ele falou assim: Bote logo um tapa-olho, uma coisa assim, e faça uma coisa muito estranha para aparecer bastante. E depois eu encontrei a Fernanda Montenegro, que fazia a novela com o Paulo Autran, e fiz a mesma pergunta, e ela disse: Fique neutro, discretíssimo. Eu me divirto fazendo novela e adoro estar empregado, saber que naquele dia eu ganhei meu dinheirinho. Parece simples demais, mas é assim mesmo. No estúdio faço piadas, fico fazendo aquelas locuções de O Mundo dos Animais, me entroso com os câmeras, fico amigo de todo mundo. Nunca penso na criação do personagem. Eu crio tipos por acaso, assim, vai saindo, vou lá, já estou feliz para caramba, estou empregado, tenho seguro-saúde, tenho alimento, enfim, estou ganhando bem, as pessoas me acolhem, aí deixo que brote um personagem. Dou um pulo no escuro e faço o que acontecer na hora, não fico preparando nada. Quando eu gosto de um trabalho, é porque durante as filmagens foi agradável. Aí o resultado é bom. As duas coisas se juntam. As duas coisas são uma só. O nível das pessoas que fizeram, o nível de satisfação e inteligência que eu achei que tinha no set. Por exemplo, quase todos os trabalhos que fiz com o Guel Arraes e com o Jorge Furtado na televisão eu pensava assim enquanto estava fazendo: A gente está fazendo isso aqui na televisão, a gente devia fazer no cinema. De tão bom que era, eu achava que o registro em vídeo era insuficiente, que aquilo deveria ser registrado em película. Bobagem minha, tava bom porque era na TV mesmo. Fazer Vereda Tropical, com o Guel Arraes e o Jorge Fernando, que é divertidíssimo e hipertalentoso, foi uma maravilha. O meu personagem era o Marcão, que era irmão da família do Mário Gomes e do Paulo Guarnieri, nós éramos os três filhos da Geórgia Gomide. Era uma família de italianos, donos de uma cantina. O Guel me convidou para dirigir com ele seu próximo trabalho, que seria Armação Ilimitada, e talvez ali fosse o momento de aprender a dirigir televisão, mas fiquei com medo de não ser competente para dirigir, para falar a verdade. Eu tinha presenciado um episódio, certa vez, que me marcou muito: o diretor principal mandou o assistente ir fazer uma cena externa e quando ele voltou disse que não tinha ficado bom e que tinha que fazer de novo. Achei que não ia agüentar uma coisa assim, de trazer um trabalho que eu tinha feito e alguém falar: Não está bom, eu vou fazer de novo o seu trabalho porque você não fez direito. Mas amo ser dirigido pelo Guel. Ele vem para a gravação superpreparado. Com sua sandália e bolsona de couro nordestina, ele tem uma sofisticação e um conhecimento de câmera que eu nunca vi. Ele traz o texto todo marcado, embaixo de cada fala a ação que o personagem vai desenvolver. E tome ação! Enquanto assobia você tem que chupar cana, acender o cigarro, pegar as cartas do baralho e falar ao telefone. Isso tudo dá aquele ritmo ágil e delicioso de assistir. E ele Guel entende tudo de eixo, que é uma das coisas que os cineastas mais discutem no set. Se você errar o eixo da câmera, num diálogo, por exemplo, os dois atores aparecerão olhando cada um para um lado. O Guel manda colocar a câmera num lugar esquisito e acaba sempre dando certo. E nunca joga um plano fora. Se você fica esperando para gravar uma cena pode ter certeza que ela vai ser aproveitada na edição final. Ele não fica cobrindo todos os lados com medo da edição, ele faz o que é preciso. Um grande diretor. Eu gosto de ser dirigido na televisão, tem uns diretores com quem eu adoro trabalhar, como o Wolf Maia, que nasceu no mesmo dia, mês e ano que eu, o Jorge Fernando, o Dênis Carvalho, o Maurinho Mendonça, o Maurício Farias, o Carlinhos Araújo, o Reinaldo Boury, o Mário Márcio Bandarra; o Jayme Monjardim também é um cara que eu gosto muito. Trabalhei muitas vezes com o diretor Paulo Ubiratan. Com o Guel Arraes também, fiz diversas Comédias da Vida Privada, e especiais como O Coronel e o Lobisomem, O Engraçado Arrependido. Trabalhei com o Wolf Maia, com o Ricardo Waddington, eu acho que estava na primeira cena que o Ricardo Waddington dirigiu na vida. Adoro trabalhar também com o Marcos Paulo, que é também ator e sabe como são as coisas pro nosso lado. Também fiz muita coisa com o Luís Fernando Carvalho, Os Maias, Pedra Sobre Pedra, Tieta, Os Homens Querem Paz e Carmen, essa na TV Manchete. O autor com quem eu mais trabalhei na televisão foi o Aguinaldo Silva. Fiz quatro novelas do Aguinaldo. Também fiz novela do Gilberto Braga, A Força de um Desejo, que era escrita em dupla com o Alcides Nogueira, Vereda Tropical e A Próxima Vítima, as duas do Silvio de Abreu. É impressionante a importância que tem a novela na nossa cultura. E eu tive muita sorte na TV, só trabalhei com feras, grandes autores, grandes diretores, grandes colegas. Outro diretor impressionante com quem trabalhei bastante na televisão é o Luís Fernando Carvalho. O Luís sempre desafia todo mundo a fazer o seu melhor trabalho. Instaura um clima de concentração e dedicação e lança desafios a todo o momento, sempre pedindo mais. O Luís tem um jeitão romântico, parece aqueles malucos que morriam tuberculosos. Ele faz todo mundo sentir que está fazendo uma coisa especial, um trabalho único. É bom sentir isso no set. Eu estava fora da Globo depois da campanha Lula x Collor. Quem me botou lá de novo foi o Luís. Ele tem coragem. Chamou-me para fazer Os Homens Querem Paz. Gravamos num lugar chamado Canindé, perto de Fortaleza. Foi o primeiro trabalho da Letícia Sabatella. Com o Luís eu também trabalhei em Carmen, novela da Manchete, escrita pela Glória Perez. Fomos juntos para Machu Picchu, com a Lucélia Santos, o Roberto Bonfim e o grande fotógrafo Walter Carvalho. Sempre perguntam qual a diferença de televisão, cinema e teatro. Não acho que tenha muita diferença. Quando é chato, tanto faz ser na TV ou no teatro ou no cinema. Na televisão, como eu sou uma pessoa que adora estar empregado e gosto de me sentir assalariado e tal, se está chato eu penso Ah! eu tenho o meu salário, meu plano de saúde, vou me divertir com meus colegas, tudo bem, no fim do ano eu vou ganhar o peru da Globo. O cinema é legal porque você vai para o set, é aquela emoção, você sente que estão caprichando, que tudo vai ser muito bem feito, vai ser um registro eterno, perene, mas às vezes fica superchato, se instala uma caretice, um predomínio absurdo da técnica, aquelas marcações de luz que nunca terminam e aí a solução é encontrar um cantinho e dormir; no teatro você é o dono do negócio, você é o dono daquela lojinha, você que inventou de fazer aquela peça, é produtor também e tal, e sempre tem o aplauso do público no final. O mais complicado no teatro é quando o público não aparece. Um exercício de humildade sem fim. Capítulo XXI Tieta e os melhores trabalhos na TV Em Tieta eu tinha uns cinco bordões na novela, coisas que eu falava e repetia e as pessoas do Brasil inteiro imitavam. Tinha um que era assim: Di jeitu ninhúm, com acento. Tinha: Éliiisa, puxando o é, o Brasil inteiro falava Éliiisa. Quem fazia a Elisa, com muito talento, era a querida Tássia Camargo. Tinha outros bordões: Nos trinques, que era com um gesto, todo mundo fazia nos trinques. Eu falava Sum Paulo e todo mundo falava Sum Paulo. As coisas eram do texto, o texto maravilhoso do Aguinaldo Silva, mas parecia que eu é que estava inventando, é uma coisa que não dá muito para explicar. Foi com certeza o meu maior sucesso, a televisão é assim, tem momentos. Esse foi um grande momento. Eu fazia a novela, uma peça de teatro, Perversidade Sexual em Chicago, e a campanha do Lula contra o Collor. Ia a todos os comícios, estava com a macaca, uma energia incrível, isso devia passar em cena. Teve outro bom momento que foi a novela A Indomada. Meu personagem era o Ipiranga Pitiguari, que era uma mistura de diversos políticos corruptos e medíocres. Eu queria tirar um sarro dos políticos daquele momento. Mais uma vez o texto do Aguinaldo. Meu personagem era prefeito de uma cidade, Greenville, que queria ser inglês, totalmente colonizado, então ela mudava a mão de direção da cidade como na Inglaterra e causava a maior confusão. Eu adorava fazer os discursos políticos, era muito divertido. A Comédia da Vida Privada também faz sucesso até hoje, as pessoas alugam o DVD e assistem. Fiz o primeiro programa e mais uns dois depois. Os textos eram sempre muito bons, baseados na obra do Luís Fernando Veríssimo, que tive o prazer de conhecer pessoalmente em visitas à casa de sua mãe, Mafalda, em Porto Alegre. Outra novela que marcou muito foi A próxima Vitima, fiz o investigador Olavo, que desvendava o crime. O último capítulo parou o País. E foi gravado no mesmo dia, na mesma tarde, e à noite o Brasil ficou sabendo quem era o assassino. Acho que todos os aparelhos estavam ligados naquela novela do Sílvio de Abreu. Um dos meus melhores trabalhos na TV foi o juiz Odorico Quintela, que fiz na minissérie Engraçadinha, dirigida pelo Carlos Manga e pela Denise Sarraceni. O roteiro do Leopoldo Serran era perfeito. Acho que ele foi sábio seguindo as orientações precisas do romance de Nelson Rodrigues. Fui comparando o roteiro com os dois volumes do Nelson Rodrigues. Ele era um escritor tão genial que previa até as cenas dos próximos capítulos. O juiz era uma figura patética que sonhava com a Engraçadinha interpretada pela Cláudia Raia, mas nunca chegava a conquistá-la. Era muito divertido. Ele aumentava ou diminuía o tamanho da geladeira que daria para a amada de acordo com os favores que dela recebia. Capítulo XXII Luna Caliente Luna Caliente me deu a oportunidade de trabalhar com dois gaúchos de primeiro time, Jorge Furtado e Paulo José. O Jorge fez um discurso gauchesco hilário no primeiro dia de filmagem. Além de ser um talento extraordinário, tem um caráter maravilhoso. E uma equipe excelente que trabalha junto há muito tempo, a Rô Cortinhas, o Fiapo Barth, a Nora, o Gerbase, a Luli, o Giba, a Ana Azevedo, são todos incríveis, talentosos e bons de trabalhar. Eu já havia sido dirigido pelo Paulo José em Incidente em Antares, mas em Luna ele estava como ator. As filmagens aconteciam pertinho do lugar onde ele tinha nascido, ele voltava de visitas que fazia ao pai e à mãe completamente iluminado. E a gente caminhava pelos pampas, o Paulo falando de cada cantinho, da vegetação, respirava aquele ar com entusiasmo. Vamos mijar ali naquela moita, aquela moita é boa pra mijar. Nunca conheci um ator tão especial quanto o Paulo José. Um dia ele foi ver o ensaio de O Inimigo do Povo, uma peça que eu estava dirigindo, e quando acabou, ele conversou com o elenco e deu milhares de orientações. Uma nunca mais esqueci. Ele falou pra atuar como se tivesse um pequeno refletor no peito, e esse refletor deveria estar sempre apontado para o rosto do colega com quem estava contracenando. Experimente fazer isso e veja como melhora sua interpretação e postura em cena. E as mãos do Paulo, como são expressivas. O Paulo José dirigiu Incidente em Antares, uma minissérie da Globo, tem uma história que eu gosto de lembrar. Estava combinado que iam passar na minha casa para me pegar para a gravação. Quando chegou a condução para o primeiro dia de filmagem e eu entrei, quase caí para trás! Estava todo mundo dentro do carro, Guarnieri, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Ruy Rezende e Diogo Vilella. É a televisão: quem mais consegue juntar um time como esse? Capítulo XXIII Metamorphoses Eu recebi um convite de uma produtora de São Paulo que não se identificou, mas queria saber se eu iria para São Paulo se pintasse uma novela para fazer com uma produtora independente. Eu falei: Claro que faço. Era para Metamorphoses, com a Tizuka Yamazaki, que é uma diretora que eu admiro, texto do Mário Prata, de quem sou fã desde Cordão Umbilical, no teatro, e Estúpido Cupido, na TV, além de brilhante escritor, que leio sempre com prazer. E era uma produção independente, talvez o motivo mais forte para correr o risco. E com um tratamento diferenciado, uma sinopse muito interessante e a oportunidade de ampliar o mercado de trabalho. E que elenco: Suely Franco, Gianfrancesco Guarnieri, Myriam Muniz, Joana Fomm, Zezé Motta, Lúcia Alves, Ilana Kaplan... Dois excelentes diretores de fotografia: Edgar Moura e Carlos Ebert. Poderia ter sido uma ótima novela. É assim mesmo, entre o fracasso e o sucesso há uma linha muito tênue. Novela é autor. Nós tínhamos um ótimo, mas logo no começo ele saiu, porque interferiam muito no seu texto. Se um ótimo diretor receber um texto ruim ele não vai fazer uma grande novela, não tem jeito, você não salva uma novela com texto ruim. Mas adorei ter tentado, porque era a abertura de um mercado, me sinto orgulhoso de ter topado fazer Metamorphoses. A gente tem que acreditar em propostas novas, mesmo que seja para bater cabeça, para fracassar. E agora tem uma novela lá na Record fazendo sucesso: o remake de Escrava Isaura. Tem aí uns 20, 30 grandes autores que a Globo não deixa sair de lá de jeito nenhum. Eles sabem o que fazem. Tem um autor de teatro paulista chamado Mauro Chaves, que também trabalha no Estadão, que escreveu uma peça muito boa chamada Cabeça e Corpo. Um dia, depois da apresentação, fui jantar com o Chaves e fiquei a noite inteira discutindo com ele que a principal figura do teatro era o ator. Mas hoje em dia acho que até no teatro o autor é o principal. Outro dia, depois de Metamorphoses, eu estava andando na rua e vi passar o Mauro Chaves. Aí eu gritei: Mauro, Mauro Chaves, ele olhou pra mim, me reconheceu, me deu um abraço, e eu disse: Lembra daquela discussão de 20 anos atrás? Você é que estava certo. Sem um bom texto, não dá para fazer nada. Ele ficou emocionado. Capítulo XXIV Mais Teatro Perversidade Sexual em Chicago Quando fiz Perversidade Sexual em Chicago, do David Mamet, com direção do José Wilker, com o José Mayer, Eliane Giardini, eu e Vera Fajardo, eu estava no maior pique de popularidade, por causa da novela Tieta. Nessa peça aprendi muito com o Mayer, aprendi que eu não precisava correr de um lado pro outro para ocupar um lugar em cena. José Mayer é um ator econômico, inteligente e requintado. Só faz o essencial. Foi uma grande experiência poder dividir o palco com ele. Aproveitei a excursão dessa peça para fazer uma imensa campanha de elucidação da importância política e social da televisão, da democracia nos meios de comunicação, etc. Talvez uma das coisas mais importantes que eu fiz na minha vida. A gente chegava nas cidades na segunda-feira. Na coletiva de imprensa o Mayer falava da peça e eu convocava o pessoal para uma reunião no sábado, para falarmos sobre o processo eleitoral. A reunião de sábado ia sendo divulgada durante a semana e virava uma coisa muito importante. Em alguns lugares, como Recife, chegamos a juntar quase mil pessoas. Mil pessoas para discutir televisão, logo depois da eleição do Collor, e toda a importância que a televisão tinha tido. Acho que conseguimos fazer alguma coisa para a democratização da televisão naquele momento. Foram 22 capitais! A Fera na Selva Montar essa peça foi uma idéia da Eliane, que leu a novela do Henry James e achou que daria uma peça linda. Descobrimos que a Marguerite Duras tinha escrito a adaptação. Eu fiquei como produtor e convidamos o Wilker para dirigir e o Carlos Augusto Strazzer, um ator excepcional, para fazer par com a Eliane. Durante os ensaios o Strazzer ficou doente. A Eliane tinha percebido uma febre que ele tinha quando apoiou a cabeça no seu colo para as fotografias da divulgação. Ele estava muito quente. Um dia ele nos disse que estava muito mal. Ele acabou morrendo logo depois, sem fazer drama. Desistimos de fazer a peça da Duras. O Wilker foi para Portugal e começou a bolar um filme com o Paulo Branco, produtor do grande diretor Manoel de Oliveira. A Eliane faria o papel junto com um ator interessantíssimo que fazia A Bela da Tarde, do Buñuel, o Pierre Clementi, já falecido. Os portugueses entrariam com uma grana e eu deveria conseguir 100 mil dólares no Brasil. Não consegui o dinheiro, desistimos da Fera no cinema. Anos depois resolvemos fazê-la no teatro e entrei como ator. Chamamos o Luiz Arthur Nunes para dirigir e fazer uma adaptação nova. Ele fez um trabalho excelente. Ganhei o Prêmio Shell de ator com a peça. A Eliane teve um desempenho primoroso, mas pouca gente percebeu porque ela ainda não tinha estourado nas novelas. O trabalho dela era sutil, extraordinário. Agora estou obcecado pela idéia de fazer o filme sobre A Fera. Viagem a Forli Essa peça fiz com o Mauro Rasi, que escreveu e dirigiu e foi uma experiência muito boa. No elenco estavam a Nathalia Timberg, o Antônio Petrin e o Emílio de Mello. O Mauro Rasi tinha um jeito todo particular de fazer teatro, ele escrevia sobre suas experiências e sobre sua crença na reencarnação, aí transpunha isso para o palco. Eu fazia o papel do Mauro, aos 50 anos, viajando em direção a Forli, que era onde tinham nascido os antepassados dele. Na viagem, passava pela Áustria e revia o passado de colaboracionista nazista. Até hoje não entendo quase nada da peça. Tinha um monólogo enorme que eu falava vestido com um pijama de campo de concentração, aqueles listrados, eu falava aquilo tudo muito emocionado e não tinha a menor noção do que estava dizendo ou do que aquilo significava. A Camila Amado, que é uma atriz e professora genial, diz que ator não precisa sempre entender o que faz, não, às vezes o necessário é se entregar intuitivamente e isso basta. Claro que sei o que significa a peça, mas o que sentia aquele homem que era a reencarnação do Mauro, nunca entendi, só sabia que ele sofria, e eu fazia a peça com gosto. Era um espetáculo muito bonito, foi apresentado no Teatro Copacabana. Tinha um DKW no palco giratório, no cenário criado pelo Hélio Eichbauer. Começava com um monólogo rememorativo de meu personagem, o palco girava e lá estava eu, na marca, o palco deveria parar exatamente numa marca de luz. Todo dia era uma aventura, porque sabe como são essas coisas de palco giratório, nunca funcionam direito no Brasil. Foi muito instigante minha colaboração com o Mauro. Às vezes discordávamos politicamente, mas nos respeitávamos muito. Como eu, ele também nasceu no interior, em Bauru. Logo depois de Viagem a Forli ele escreveria aquela que viria ser sua obra-prima: Pérola. Inimigo do Povo A peça do Ibsen foi um trabalho emocionante. Apaixonei-me pelo personagem Dr. Stockman e seu idealismo quase irresponsável. Domingos Oliveira adaptou o texto mantendo sua essência. Uma adaptação muito boa. Domingos é um grande autor, além de diretor e ator de talento excepcional. Um grande companheiro. Domingos é um príncipe, um homem íntegro, idealista, desses que você só encontra nas páginas de um romance (de autor russo Leon Tolstoi). Nossa montagem era um faroeste. De um lado o Dr. Stockman e sua verdade, de outro seu irmão pusilânime. Funcionava maravilhosamente bem. Viajamos pelo Brasil inteiro e ficou a vontade de fazer a peça novamente, agora na íntegra. Conheci o Domingos Oliveira numa circunstância muito engraçada. Agora, depois de tanto tempo, ele me chamou para meu primeiro trabalho na Globo. Viu Na Carrêra do Divino e me chamou para declamar poemas na rua, em pleno Viaduto do Chá, em São Paulo. Lá estávamos com todo aquele aparato da Globo, quando, na hora de começarmos a gravar, o Domingos teve uma crise renal e caiu no chão tamanha a dor que sentia. Rapidamente ele foi recolhido e colocado dentro de um carro prateado e levado para um hospital. Fiquei com aquela imagem de sua fragilidade, caído no chão, contorcendo de dor. Ele, que naquele momento era um dos grandes nomes da dramaturgia da emissora, responsável por alguns dos melhores programas da Globo, como a série de peças encenadas na TV, Aplauso, além do diretor do mitológico filme Todas as Mulheres do Mundo. Até hoje quando o ouço falar com sabedoria e humor, quando vejo suas atuações geniais no teatro e no cinema, e quando desfruto da sua companhia de amigo querido, lembro sempre desse nosso primeiro encontro. Essa lembrança de sua dor naquele momento o torna ainda mais humano e me faz gostar ainda mais do Domingos, uma pessoa que é extremamente leal aos amigos que tem. O Homem Que Viu o Disco Voador A peça do (dramaturgo e jornalista) Flávio Márcio era paixão de minha querida sócia Vera Fajardo. Vera tem uma verdadeira e autêntica devoção pelo teatro nacional. Está sempre à procura de peças inéditas brasileiras. Ela desenvolve brilhantemente o Ciclo de Leituras da Casa da Gávea, há 13 anos. Foi ali que apareceu a peça inédita do Flávio Márcio, um autor que poderia ter tido um futuro maravilhoso, mas que morreu jovem, de maneira trágica. Ele tinha acabado de fazer uma operação para retirar as amídalas e não deveria fazer muito esforço. Mas desrespeitou a ordem médica e foi subir uma escada, aí rompeu um ponto, que provocou uma hemorragia que o afogou. Montamos a peça em 2001, o diretor foi o Aderbal Freire Filho, um dos melhores com quem trabalhei. O Aderbal tem um dom incrível para falar e estimular poeticamente os atores, quando você percebe, o trabalho está pronto, o personagem está desenhado, você está na cara do gol. Um homem de teatro, completo, inspirador. Os ensaios com Aderbal são gloriosos. Fizemos uma bela carreira com a peça no Rio de Janeiro e em São Paulo. O elenco era maravilhoso. Além da Vera, Hebe Cabral, Paulo Giardini e Rodolfo Mesquita. A Vera tinha uma atuação maravilhosa, fazíamos o jogo com grande prazer e alegria. Fui indicado para receber o prêmio de melhor ator no Rio de Janeiro e fiquei todo orgulhoso. Como Eu Aprendi a Dirigir um Carro Essa foi a última peça que fiz como ator (até a edição deste livro, em maio de 2005). É um texto norte-americano que ganhou o prêmio Pulitzer de 2001. Projeto do diretor Felipe Hirsch, com a Andréa Beltrão, querida companheira de outras viagens. Foi um reencontro adorável. A Andréa é uma atriz instigante, certamente uma das melhores com quem trabalhei, muito talentosa, e gosta de ensaiar como ninguém. Quando você acaba de fazer uma passada corrida da peça, a Andréa quer logo emendar outra, é incansável, disciplinada, ela passa a peça toda todo dia antes de fazer. Uma escola. Aprendi muito nesse reencontro com a Andréa. E de quebra ainda trabalhava na peça minha amiga Stella Freitas, que fez parte do Pessoal do Victor numa época. Outro reencontro importante na minha vida. Stella tem um humor ferino, morríamos de rir nos bastidores quando ela, brincando, falava da ginasta russa Vagina Seminova. O elenco todo era maravilhoso. Tinha o Mário Borges, que, além de excelente ator, é um grande companheiro no teatro. A Ivone Hoffman, uma atriz poderosa, que eu admirava desde que tinha visto a montagem de Hair, e o jovem e talentoso Felipe Koury. O Felipe Hirsh é um diretor extraordinário, é moderno mas tem estilo próprio, sabe o que quer e como conduzir um espetáculo, e é bamba em trilha sonora. Ele tem um grupo de amigos lá em Curitiba que fica baixando música 24 horas por dia na Internet. A trilha de Como Eu Aprendi... era tão boa que ainda é uma das que mais roda em meu carro. Capítulo XXV Cinema O cinema é uma vontade que eu tinha desde os tempos de teatro amador, com o Roberto Gil Camargo, diretor lá do Grupo Artes, hoje casado com a Janice Vieira, bailarina que também teve muita influência na minha carreira. Quando a gente começou a fazer teatro, ele tinha uma câmera de 16 mm, daquelas de dar corda, bem arcaica. A gente fazia umas filmagens, brincava um pouco, fazia umas projeções. Mas cinema é uma coisa de rico. Não é uma coisa de pobre. Precisa ter dinheiro, precisa ganhar uma câmera Super-8 aos 14, 15 anos, para você poder começar a pensar em fazer filmes. Acho que eu tenho no máximo umas três fotos minhas até os 10 anos de idade! Nunca tinha nem visto uma câmera de cinema na minha frente até muito mais tarde na vida. Para fazer cinema você tem que fotografar, isso custa dinheiro. Quando eu saí da EAD e fui para a Unicamp, fiz um filme com o Nuno César de Abreu, que é diretor de cinema e professor da Unicamp (ele dirigiu um filme sensacional chamado Corpo em Delito, com o Lima Duarte) – e a vontade ficou mais forte. Aí, antes da Globo, fiz um filme com o Ugo Giorgetti, que foi o Jogo Duro. O Ugo é um diretor maravilhoso. Eu já havia feito diversos comerciais com ele. Ele tem muita experiência, exatamente por causa da prática em comerciais. E fui fazendo mais filmes, junto à televisão e ao teatro, sempre que me chamavam. O problema de fazer cinema é depois ter que se assistir na estréia. É terrível, porque quando você vê o filme já faz tempo que filmou, então fica prestando atenção no que poderia ter sido diferente. E você não está suando para fazer aquilo. No teatro você acaba de fazer sua peça e encara o público: Fiz, vocês viram? Suei a camisa para fazer essa porra aí! No cinema não, você está sentadinho ali, todo bonitinho, já passou quase um ano, dois anos que você fez aquele trabalho, e aí você fica olhando, fica vendo os defeitos, é muito difícil de assistir aos filmes. Não é você, é sua imagem. Depois de um bom tempo, quando eu o vejo numa sessão noturna no Canal Brasil, acho ótimo! Aí penso: Até que eu fiz tudo direitinho! Esqueço que tinha aquelas intenções que eu não consegui dar, aquilo tudo que eu não consegui fazer, aquela esfriada que a dublagem deu naquela cena, eu esqueço. Cinema é muito gostoso, muito luxuoso, eles vão buscar você no hotel, você está em locação, que é a coisa mais gostosa do cinema, as pessoas tratam você superbem. Quando acaba o filme é bem capaz de esquecerem você lá no set, mas até você fazer a sua participação é muito gostoso. E não precisa decorar texto, porque na televisão é uma pauleira, você decora capítulos e capítulos, é muito cansativo. No cinema não precisa decorar, porque você tem tempo, entre mudar a câmera para um lado e para o outro, você vai decorando a cena. O Jorge Saldanha, que é um grande engenheiro de som com quem trabalhei diversas vezes, costuma dizer que você percebe que o filme acabou quando chega em casa e fala: Aquela janela está aberta, e sua mulher diz: Vai lá você mesmo e fecha. No cinema vai ter sempre alguém para fechar. Lamarca e Parcerias com Sérgio Rezende Eu passei três aniversários no sertão da Bahia, fazendo filmes com o Sérgio Rezende. Fiz quatro filmes com ele, e só um, o Barão de Mauá, não foi no sertão da Bahia. Doida Demais foi o primeiro; depois eu fiz Lamarca, depois Guerra de Canudos. O Sérgio Rezende e a Marisa Leão, mulher dele e produtora dos filmes, são duas pessoas especialíssimas para mim. Acho incrível a tranqüilidade do Sérgio no set de filmagem. E a confiança que ele e a Marisa transmitem aos atores. Você sabe que aquele filme vai sair. Quando você olha a obra do Sérgio em perspectiva você vê uma coerência impressionante. Ele é absolutamente honesto nas propostas dele. Os filmes refletem isso. A franqueza de propósito, a clareza. Ele se apaixona pelos personagens que filma, gosta dos atores, tem um relacionamento de amizade e respeito com eles. E sabe filmar como ninguém, além de ser um companheiro adorável de viagem. Sinto-me em casa quando estou filmando com o Sérgio. Com poucas palavras ele transmite o que quer da cena, ele sabe sempre o que quer da cena. A Marisa é um dínamo, organizada, criativa, afetiva, a produtora ideal. Imagine que ela precisou a data que começariam as filmagens de Guerra de Canudos um ano antes! E conseguiu, sem nenhum atraso. Um filme daquele tamanho. O entusiasmo que a Marisa coloca no trabalho contagia. Aprendi muito do pouco que sei de cinema com esses dois amigos. O meu primeiro protagonista no cinema foi o Lamarca, que foi o papel em que eu mais me empenhei na vida. Eu tinha uma pálida noção de quem era o Lamarca antes do filme, embora eu fosse muito envolvido com política. Sabia mais sobre o Marighella. Quando fui convidado para fazer o papel, estava na peça Viagem a Forli, do Mauro Rasi. Quando cheguei no teatro à noite, o Mauro, que tinha lido no jornal, me disse pra ficar à vontade para sair da peça, pois o papel era irrecusável. Comecei a perceber o mito que era o Lamarca e conforme fui estudando, fui ficando cada vez mais admirado. Foi um homem que se imolou por uma causa, alguém que buscava uma santidade de alguma forma. O Lamarca me parece um homem desses que tocam fogo no próprio corpo por uma causa, uma espécie de mártir. E eu queria fazer jus a aquele homem. Eu conheci a mulher dele, os filhos, vi as fotos, o que ele lia, tive acesso às cartas dele, aprendi a escrever cartas como o Lamarca. Eu peguei a letra dele. Escrevia cartas para os meus amigos com a letra do Lamarca. Tinha uma foto que a mulher dele me deu, em que ele aparecia de pijama no alojamento de um quartel lendo Guerra e Paz, do Tolstoi. Consegui a mesma edição e li durante as filmagens. Ajudou-me muito a entender o Lamarca. Ele não deve ter passado ileso por aquele romance tão poderoso. Fiquei apaixonado pelo livro que passou a ser uma referência forte para mim. Sempre que posso volto a esse romance. Os personagens sempre acabam trazendo muitas boas coisas para os atores, ainda mais quando é um que existiu de verdade e que tinha uma opção clara como o Lamarca. As pessoas passam a ver você como aquele personagem. Um general, que era deputado estadual no Rio de Janeiro e foi um dos homens que esteve na operação que acabou matando o Lamarca, ficou irritado comigo. Chegou a dar entrevista e referia-se a mim como o Lamarca. Confundiu o personagem com a pessoa. Acho que a minha devoção ao mito incomodou muita gente, porque era, realmente, uma devoção à pessoa do Lamarca, todo mundo percebeu isso. Como esse menino, o Daniel Oliveira, que fez o Cazuza agora no filme da Sandra Werneck e do Walter Carvalho. Não sei se minha interpretação do Lamarca foi tão boa quanto à desse menino, mas a entrega foi muito parecida. Ele emagreceu, eu também emagreci 15 quilos para fazer a parte final do filme. O Lamarca morreu com 47 quilos. Foi um mergulho muito fundo e talvez por isso mesmo esse seja o papel que eu fiz que mais me orgulha no cinema. E é claro que eu tenho esse lado político que as pessoas associaram com a minha entrega ao personagem. E nem sei se fui escolhido por causa disso, o Sérgio Rezende é quem sabe, mas acho que me pareço um pouco fisicamente com o Lamarca, temos a mesma estatura, o mesmo corpo. Mas também precisava ter certa chama revolucionária para fazer esse filme, tinha que ter uma vontade, um desejo de mudar as coisas. Pensei muito, na época do filme, se eu teria feito a mesma coisa que o Lamarca fez se estivesse naquela mesma situação e cheguei à conclusão que não. Eu teria sido mais pragmático, não seria o herói que ele foi. Eu não sou um herói, definitivamente. Eu acho que quando ele foi fazer a guerrilha na parte final de sua vida, ele não sabia que não havia estrutura para isso no Nordeste. Ele contava que havia pelo menos umas três mil pessoas lá, sendo treinadas e se preparando para a guerrilha. Disseram isso para ele, prometeram isso para ele. Então, pensando bem, talvez eu fizesse a mesma coisa que ele, sim, de boa-fé. É como quando você vai fazer uma excursão de uma peça e alguém fala que está tudo armado, o teatro, as acomodações, você vai, você acredita no produtor local. E isso aconteceu com ele na milícia, quando ele chegou lá, não havia mais a possibilidade de voltar. Acho que pensando bem eu faria a mesma coisa que o Lamarca, sim. Fiquei absolutamente apaixonado pelo personagem. Lendo o atestado de óbito do Lamarca fiquei ainda mais impressionado. Lá estava escrito que ele deixava mulher e filhos e não deixava bens. Lembrei do atestado de óbito de meu avô João, onde estava escrito a mesma coisa. Carreguei durante toda a filmagem um cachimbo de meu avô. Sempre ao lado do revólver do capitão, em todas as fotos do filme, está o cachimbo de meu avô. Eu gosto muito desse filme. Eu acho esse filme muito honesto, cheio de emoção, conta, com poucos recursos de produção, um momento importante da história recente de nosso país. E foi filmado num momento muito difícil da história do nosso cinema, quando o governo Collor tinha arrasado toda a estrutura do nosso cinema. Quando estávamos filmando, nossa produção era a única que estava sendo rodada no Brasil naquele momento. Nos sentíamos muito responsáveis por isso também. Lamarca foi, realmente, o filme da retomada do cinema brasileiro. Depois veio a Carla Camurati com Carlota Joaquina. E ela estava no nosso filme como atriz, fez o papel da Yara Iavelberg, companheira de Lamarca. Nos intervalos das filmagens ela tocava a produção de Carlota, que rodou logo depois. Guerra de Canudos Guerra de Canudos também é um grande filme. Um esforço de produção impressionante, um filmaço. Um trabalho de muito fôlego. Nesse épico, meu personagem, o Zé Lucena, era totalmente ficcional. Não existia no livro do Euclides da Cunha, no qual o Sérgio Rezende e o Paulo Halm se basearam para escrever o roteiro do filme. Não pensei em nada para construir o personagem, apenas vesti a roupa de couro e me misturei com os figurantes. Em pouco tempo estava parecido com eles. Fiquei morando em Juazeiro, na Bahia, por quatro meses. Até comprei um terreno lá, na beira do Rio São Francisco. Fiz amigos entre os atores locais, um deles o poeta Manuca Almeida, letrista de mão-cheia. Conheci toda a família, a Lucélia, as filhas, o irmão Armando, ficamos superamigos, até hoje nos falamos e nos encontramos. O personagem foi criado inteiramente na intuição e na vivência. Percebi depois que o meu sotaque era o mesmo que usei em O Pagador de Promessas, quando ainda estava em Sorocaba, 25 anos antes. Adoro minha participação nesse filme. Minha mulher era a Marieta Severo. Todo dia acordava de madrugada e íamos de carro, conversando, para o set de filmagens no meio do sertão. Marieta foi uma companheira e tanto. Nunca conheci alguém que soubesse escutar tanto quanto ela. Um dia, fui sozinho. Sentei-me no banco da frente. Geralmente deixava esse lugar para a Marieta. O carro capotou três vezes! O motorista dormiu em uma reta no meio do sertão. O carro ficou virado com as rodas para cima. Uma pedra entrou pelo banco de trás, se eu estivesse ali teria morrido. Não sofri um arranhão, graças a Deus. O motorista se feriu um pouco, mas nada de grave. Eu saí do carro e fiz uma foto do acidente. Naquela época eu andava sempre com uma máquina fotográfica. A equipe que vinha atrás estava lívida de susto. Eles viram tudo. O carro estava totalmente destruído. Fomos para a locação mesmo assim e filmamos o dia inteiro. Mauá Outro filme que eu adoro e que fiz com o Sérgio foi Mauá. Com produção do Joaquim Vaz de Carvalho. Toda hora encontro alguém que viu o filme. Quando passou na televisão foi uma comoção. Ninguém conhecia o homem Mauá. Ficaram surpresos com a história daquele visionário. O rapaz que cuida do estacionamento dos carros na frente da Casa da Gávea veio me cumprimentar de forma diferente. É interessante que quando um filme passa na televisão as pessoas mais simples percebem a diferença. A temática é diferente também, não só a imagem. Cinema provoca uma fascinação diferente no espectador, mesmo quando passa na televisão. O guardador dos carros havia sido tocado profundamente pela história. Ele tinha ficado emocionado com a cena em que o barão vai visitar o negro, seu grande amigo, que está para morrer, e os dois tomam uma cachaça juntos. Minha esposa nesse filme era a Malu Mader. O elenco todo é fabuloso: Hugo Carvana, Antônio Pitanga, Othon Bastos, Carlos Gregório, Rodrigo Penna, Roberto Bontempo, Rogério Fróes, Cláudio Correa e Castro. O Sérgio é um diretor que serve aos filmes que ele faz. Nos Estados Unidos há muitos diretores assim, que são considerados maravilhosos. Como o Sidney Lumet (de Sérpico, Um Dia De Cão, Negócios de Família). No Brasil, o cara precisa ser um gênio. Fazer pose de gênio. O Sérgio não se considera um gênio, ele se considera um diretor de cinema. Outro diretor com quem trabalhei e que não tinha nenhum estrelismo foi o Roberto Pires. Com ele fiz Césio 137, em 1990. Um filme sobre o acidente nuclear em Goiânia. Roberto tem seu nome garantido na história do cinema brasileiro como o autor de A Grande Feira e também como produtor de Glauber Rocha e inventor de maravilhosas traquitanas cinematográficas. Ele ia buscar a gente no aeroporto com uma kombi. Pegava a peça de césio de 70 quilos, arrastava de um lado para o outro no set sem o menor problema. Doida Demais Com o Sérgio Rezende fiz o meu filme mais sensual, Doida Demais. Foi uma delícia fazer esse filme, me dei superbem com a Vera Fischer. O Sérgio me mandava malhar, para ficar forte, eu achava aquilo tão engraçado. Mas fazia, eu sempre faço o que os diretores pedem. E agora fui ver umas fotos desse filme e não é que eu me achei bem bonitão? Na época eu não sabia que eu era bonito, mas agora, vendo as fotos, me achei o maior galã. A cena que mais gosto nesse filme é a do sarro na Rural. É impressionante como o Sérgio filmou bem aquela cena e o clima de sensualidade que ela transpira. E a Vera está deslumbrante. Ela, o Wilker e eu fazíamos um triângulo amoroso. E tinha também o Ítalo Rossi e o Carlos Gregório. Doida Demais, foi o primeiro trabalho que fiz com o Sérgio. Eu fazia um piloto de avião, desses que sobrevoam a floresta amazônica trabalhando nos garimpos. Fiz muitas aulas para aprender a pilotar um pequeno avião com apenas uma hélice. E filmamos naquela imensidão amazônica. Claro que eu não pilotava, mas é impressionante como não temos medo quando estamos trabalhando. Pegávamos temporais lá no alto, o Antônio Luis, que era o câmera, o assistente dele, o piloto e eu. Era um aviãozinho de quatro lugares, com a câmera e equipamento pesado dentro. Uma aventura. Quando cheguei com a equipe no pequeno aeroporto de Barreiras, um cara de calção e sandália de dedo se aproximou e falou: Você é que vai fazer o papel do piloto? Então vem cá. Eu fui. Pensei que era alguém da produção. Ele me disse para entrar num aviãozinho como aquele que eu estava treinando para pilotar. Entrei. Ele decolou e logo depois desceu na rua de terra em frente ao hotel. Há pouco tempo voltei a Barreiras e quando estava me aproximando do aeroporto comentei com o piloto do avião esse fato. Ele me disse: Eu conheço esse piloto. Ele atropelou e matou um homem com um avião na frente desse hotel. Quando cheguei no hotel, lá estava meu amigo piloto me esperando. Mas ele não tinha mais um avião. Ed Mort Foi muito divertido filmar o Ed Mort, com o Alain Fresnot, em 1997. Eu conhecia o Alain desde que ele era ator no grupo Ornitorrinco e se apresentava no Teatro Lira Paulistana. Ele tem um humor peculiar, e ríamos o tempo todo durante as filmagens. Alain é um excelente diretor e montou uma equipe maravilhosa para o filme, com o câmera Pedro Farkas, parceiro constante de Alain e os atores todos. O clima era sempre superestimulante durante o trabalho. Contracenei com Cauby Peixoto nesse filme, e também com o Chico Buarque, com a Cláudia Abreu, com o José Rubens Chasseraux (o Chachá), o engraçadíssimo Ary França. Olha que maravilha que é fazer cinema! Ed Mort é muito engraçado. Nele eu tento homenagear meu querido amigo Chiquinho Brandão e seu humor irresistível. Filmamos em locações na cidade de São Paulo. Um dia, durante a espera para as filmagens, dormi num colchonete no chão das Grandes Galerias. Quando acordei tinha umas cem pessoas paradas olhando meu sono, respeitosamente. Senti-me o próprio faquir que ficava bem ali na frente no Largo do Paissandu. O Toque do Oboé Esse é um filme que eu fiz e quase ninguém viu, mas que eu adoro, de 1998. Filmamos no Paraguai, é um trabalho do Cláudio MacDowel. O Cláudio é um diretor supertalentoso e tem um carinho imenso no trato com os atores. Foi professor na escola de cinema de Havana e escreveu um roteiro maravilhoso. O meu personagem é um cara que toca o oboé numa orquestra e que está com uma doença terminal e vai morrer numa pequena cidade do Paraguai. Sempre quis conhecer o Paraguai. Sempre me impressionou a crueldade da guerra contra o Paraguai. Li tudo sobre a guerra do Paraguai, o que o Brasil fez com eles foi uma grande sacanagem. Eu andava pelas ruas de Peribebuy, pequeno vilarejo onde filmamos, e parecia reviver toda a história. Os lugares tinham nomes das ruas de minha infância, Voluntários da Pátria, Aquidaban. Adoro guarânias. Esse negócio de voluntários da pátria foi a maior balela. Quem possuía escravos, mandava os coitados como voluntários para a guerra, assim evitavam enviar os próprios filhos. E teve o Conde D’Eu, esposo da Princesa Isabel, que foi de uma violência extrema nesse combate, chegando a incendiar hospitais. E o nosso grande Duque de Caxias também não teve um comportamento nada exemplar nessa batalha, usando de métodos não convencionais, como a guerra bacteriológica. Ele jogava cadáveres no rio para que infestassem as águas do lado paraguaio, levando epidemias e morte. Conheço histórias terríveis da covardia que foi essa guerra e que estavam muito presentes no cotidiano do povo paraguaio, e que permearam toda a filmagem da melancólica história do músico que vai morrer por lá. Oriundi e Anthony Quinn Outro momento de cinema que eu gosto de lembrar é o das filmagens de Oriundi, em 1999, do Ricardo Bravo, com produção da Virgínia Moraes e do Rubens Gennaro, meus parceiros em Cafundó. O ator principal era o Anthony Quinn, que tinha aceitado fazer o papel do meu pai no filme. Quando cheguei em Curitiba para as filmagens todo mundo só falava no Anthony Quinn, que ele estava bravo, que ele tinha dado um esporro em alguém, que o trailer tinha sido mudado, que ele reclamava muito, etc. Fiquei na minha. Pensei levianamente, a bola é redonda, quando tivermos que batê-la vamos fazer sem problemas, afinal, interpretar é um jogo e a bola é igual no mundo inteiro. Eu tinha visto muitos filmes do homem e tinha a maior curiosidade em conhecê-lo, mas segurei minha onda e não fui procurá-lo no set enquanto ele filmava com o Paulo Autran. Acho que eu ficaria até mais tenso filmando com o Paulo Autran, que faz mais parte de minha vida, do que com o Anthony; e é um ator tão soberbo quanto. Aliás, outro dia, quando estava fazendo a peça Como Eu Aprendi a Dirigir um Carro, percebi que o Paulo estava na platéia e quase perdi o fôlego. Depois ele foi supergeneroso, falou bem do espetáculo e tal. Tenho o Paulo muito mais presente, lembro de suas falas em Equus, lembro como ele começava, com o tom de sua voz vibrando ainda hoje: Ele está abraçando um cavalo... Tenho mais admiração pelo Paulo Autran do que pelo Anthony Quinn, mas o peso de dois Oscar, da carreira excepcional em Hollywood, de ter feito La Strada, Zorba, O Grego, Lawrence da Arábia e tantos outros coloca o ator mexicano num outro tipo de pedestal. Ele é um mito da história do cinema e estava ali, filmando em Curitiba, e tínhamos algumas boas cenas para fazer juntos. Eu sabia que era importante, um momento raro, excepcional, da minha carreira. E a sorte, mais uma vez, me ajudou. Eu adoro sebos. E Curitiba tem alguns ótimos. E lá estava eu fuçando num sebo quando, sem querer, encontro um antigo e lindo álbum de figurinhas com atores de cinema. Anthony Quinn, é claro, estava lá. Levei o álbum para ele e no nosso primeiro encontro pedi um autógrafo na figurinha dele. Mostrei ao Quinn como se jogava bafo e contei a ele umas histórias da minha infância. Ele adorou ver sua foto naquele álbum, adorou as histórias e ficou bem próximo de mim. Eu também relaxei e o vi parecido com meu pai. Um homem comum, de carne e osso. Nos ensaios ele mudava o texto constantemente, e alternava falando em inglês, italiano e espanhol, conforme o estado emocional e a cara que eu fazia de entendimento ou não. Nas filmagens ele improvisava e era supergeneroso. Quando a câmera estava no outro ator, ele ficava atrás, dando referência para que o olhar encontrasse o dele e não se perdesse no vazio. Não é todo mundo que faz isso. Ele tinha uma noção da gravidade do ato de filmar, sabia que aquele registro é perene. Não admitia ninguém na linha de visão dele porque atrapalhava, era superatento e cuidadoso. No final nos entendemos bem e ele me convidou para fazer seu próximo projeto, que seria Os Velhos Marinheiros, baseado na obra do Jorge Amado, que acabou não acontecendo. Capítulo XXVI Por Trás das Câmeras Sempre que fiz cinema como ator, ficava querendo saber tudo no set. O que era uma coisa, o que era outra, o que as pessoas estavam fazendo. Eu sempre fotografei muito o set, sempre quis saber como é que era por trás das câmeras. E você passa sempre muito tempo esperando no set de cinema, então dá para aprender um monte de coisas. Apesar de aprender no cinema, pra valer, eu vim a aprender mesmo agora, com meu parceiro, o Clóvis Bueno. Ele também não era diretor, mas a gente se complementava em nossa experiência na direção. Eu tinha dirigido teatro, muito, e o Clóvis tinha trabalhado muito como diretor de arte, além de também ter sido diretor de teatro. Daí a gente juntou tudo, e saiu um diretor de cinema. Trabalhei com o Clóvis antes, em Doida Demais e em Lamarca, onde ele foi diretor de arte. Clóvis também foi meu cenógrafo quando dirigi O Amigo da Onça. Nos entendemos superbem quando trabalhamos no roteiro durante anos e quando preparamos a filmagem do Cafundó. No set a experiência foi mais árdua, sempre um de nós tinha que abrir mão de alguma coisa, às vezes brigávamos, tínhamos noções diferentes do ritmo que algumas cenas deveriam ter, coisas assim, mas conseguimos manter a paixão pela criação acima de tudo. E tínhamos a história de Nhô João de Camargo, um exemplo de humildade que se impunha e nos orientava. O tempo enorme que levamos construindo o roteiro e preparando o projeto, quase uns sete anos, fez com que chegássemos ao set com poucas dúvidas e muito afinados sobre o que queríamos e isso ajudou bastante. Além de dividir o trabalho com o Clóvis, tive grandes parceiros nesse filme. Certamente os principais foram a Virgínia Moraes e o Rubens Gennaro, que assumiram a produção comigo, dividindo as responsabilidades, as angústias, as frustrações e também as muitas alegrias. Eles foram os produtores do filme Oriundi, e foi durante essa filmagem que aprendi a gostar do jeito de trabalhar desses paranaenses. É impossível fazer cinema sem produtores. A Virgínia e o Gennaro amam o que fazem, são persistentes, competentes, sem eles Cafundó não existiria. Quando a gente dava uma desanimada, lá estavam eles para levantar o astral, para dizer que era assim mesmo, que não podíamos desistir. Outra participação importantíssima foi a da Ângela Kucek na gerência administrativa. E tive sorte também com o diretor de fotografia, José Roberto Eliezer, a Vera Hambúrguer, diretora de arte, a experiência e competência dos irmãos Gullane, o Caio e o Fabiano, e, principalmente, os assistentes César Rodrigues e Luciana Batista, além do maravilhoso diretor de som Márcio Câmara, sobrinho do Dom Hélder Câmara. Foram companheiros de verdade durante as filmagens. E os atores! Mas esses eu sempre soube que entrariam com tudo no filme. Ator sempre é muito disponível, quer colaborar, quer ver o filme dar certo. E Cafundó é um projeto de um ator. Meus amigos foram supergenerosos. O Francisco Cuoco, Renato Consorte, Abrahão Farc, Renato Dobal, Luís Mello, Ernani Moraes, Chica Lopes, Flávio Bauraqui, Edson Rocha, Geisa Costa, todos. A maravilhosa Leona Cavalli, que além de ser uma grande atriz é uma pessoa doce, que faz tudo pelo filme que está fazendo. Mas nossa sorte grande foi ter o Lázaro Ramos. Quando eu vi o Lázaro na peça A Máquina, do João Falcão, tive a certeza de que o papel seria dele. Até aquele momento, na minha cabeça o papel principal seria do Itamar Assumpção, mas assim que vi o Lázaro em cena desloquei mentalmente o Itamar para outro papel. E, pena, durante as filmagens ele não pode estar presente, pois já estava muito doente. Ele morreu durante as filmagens, e no dia de seu enterro filmamos por coincidência uma das cenas mais fortes de Cafundó, que é quando Lázaro, completamente nu, enterra suas roupas, deixando para trás a vida antiga. O Lázaro é um ator excepcional. Ninguém acredita que seja tão jovem. Tem muita vivência. Ficou apaixonado pelo papel e foi peça-chave no processo de filmagem, não só porque fazia o protagonista, mas porque conseguia conciliar as orientações que vinham do Clóvis e as minhas, sempre generosamente procurando manter um clima amistoso, amoroso, que foi a característica principal das filmagens do Cafundó. O Leandro Firmino foi outro que ajudou muito. Levei o Leandro e o Lázaro num sítio na periferia do Rio de Janeiro para aprender a andar a cavalo. Nunca vi ninguém tão satisfeito quanto o Leandro quando ele sentiu que podia aprender, podia dominar o bicho. Durante as filmagens ele ficava o tempo todo em cima de sua mula, brincando, parecia um menino. O resultado foi que um garoto criado numa favela do Rio de Janeiro, que nunca tinha montado em um cavalo na vida, revela a intimidade de um tropeiro no trato com os animais no filme. Aprendi muito no set filmando, mas muito mais na mesa de edição. Agora eu acho que sei como é dirigir um filme, depois de ter montado. A montagem é fundamental. É incrível! Você pensa Por que é que não fizemos isso? Por que não pusemos a câmera um pouco mais pra cá? Você sente falta do material que poderia ter feito e não fez. Mas o trabalho é tão intenso, a filmagem é um tempo que não dá para pensar em nada. São dois meses de mergulho absurdo. Se chover, acabou seu filme. Então, não tem muito que pensar, não tem muita reflexão, não, é chegar lá e fazer. É um bando de gente enlouquecida, com os egos elevados a uma potência extraordinária, fazendo um filme. Cinema é muito complicado, você não pode pensar muito na hora, não. Você tem que cumprir os planos que estabeleceu previamente, e é isso. E lembro quando fazia filmes como ator, eu sempre tinha a impressão de que, se descesse um disco voador num set de filmagem, a produção não mudava o plano para filmar o disco voador. E realmente a gente não muda. Se descer um disco voador a câmera não sai da filmagem para filmar o disco voador. Os marcianos podem descer, fazer um show ali, e ninguém vai filmar porque tem que cumprir o plano de filmagem. É uma loucura a obsessão de cumprir o plano, não há um pingo de relaxamento no set de filmagem. Uma adrenalina incrível. Outra parte deliciosa do processo de trabalho é a mixagem. Ali se junta o trabalho de sonorização com a música. Uma delícia! Você vê o filme crescendo, sendo aquecido. O som é 50% de um filme! E o Beto Ferraz, o André Abujamra e a equipe do Sasso fizeram um trabalho incrível. Conheci o Zé Luís Sasso quando fazia dublagem na Álamo, em São Paulo em 1977. Um dos meus primeiros empregos. Quando o encontrei na mixagem fiquei superfeliz. Ele é um dos melhores e nossa antiga cumplicidade veio à tona imediatamente. Capítulo XXVII Cafundó e a Relação com Sorocaba Essa história do filme é uma obsessão minha, da vida inteira. Quando eu era pequeno e ia na roça do meu avô, lá em Sorocaba, no caminho tinha a igrejinha do João de Camargo. E eu contei que a roça era de um fazendeiro negro, né? Então isso ajudava a ter aquele mistério, a história da igrejinha do João de Camargo, que era negro. Eu tentei de todo jeito botar essa história na peça Na Carrêra do Divino, em 1979, mas na época não tinha nenhum negro no Pessoal do Victor, o Waterloo se desligou do grupo naquele momento, então não entrou o João de Camargo. Aí, quando eu fui cumprir a bolsa nos Estados Unidos, da Fulbright, eu vi muito documentário, e vi que as pessoas documentavam as questões familiares, que elas conheciam intimamente. E durante dez anos escrevi semanalmente uma coluna para o jornal O Cruzeiro, de Sorocaba, comecei lá nos Estados Unidos. Eu adorava escrever, registrava tudo o que estava acontecendo na minha vida, mas também pesquisava, lia, era o meu blog. E isso me manteve muito ligado com a cidade, e comecei a ter vontade de fazer um documentário, um depoimento sobre minha mãe, que tinha tido 15 filhos. Então arrumei uma equipe e fui para Sorocaba, com a idéia de fazer um documentário sobre ela. Mas na hora deu um certo pudor bobo de levar aquela equipe para registrar minha mãe, e como era Dia de Finados e ela adorava ir ao cemitério, achei que deveria começar filmando o túmulo de Nhô João e a visitação dos fiéis. Ficaram muito interessantes essas filmagens. Quando eu voltei para a casa, filmei minha mãe, ela falou do João de Camargo e eu decidi que o documentário seria sobre Nhô João e que minha mãe faria parte dele. À tarde nós sentamos num banquinho de cimento na frente de casa, minha mãe e eu. Era fim de tarde, estava um calorzinho gostoso, as pessoas passavam, cumprimentavam. Lembro que sentado nesse banquinho eu acabei concluindo emocionado que meu pai talvez não tivesse sido infeliz. Porque eu sempre achei que meu pai tinha sido infeliz por causa dos problemas mentais que ele tinha. Eu tive a sensação que ele ficava sentado ali naquele banquinho vendo o mundo em cinemascope e que aquilo devia ser muito prazeroso. Mas, enfim, chegou o Adilson Barros com a mãe dele, e eu estava todo feliz porque tinha começado o meu documentário sobre o João de Camargo e estava ali com a minha mãe. Aí falei: Pô, Adilson, comecei um documentário em vídeo sobre o João de Camargo. E o Adilson: Que pobreza, que coisa mixa. Isso é mixo. O João de Camargo é um longa-metragem, não é um documentário, é um longa, uma coisa maravilhosa. E isso fez todo o sentido para mim, comecei a pensar isso tem que ser um longa, tem que ser um longa. Naquela mesma noite o Adilson falou que tinha um trabalho do Florestan Fernandes sobre o João de Camargo, aí ficou dizendo que o João de Camargo era um tema do caralho para um filme, que eu tinha que correr atrás disso e tal. No dia seguinte eu já fui atrás do Florestan com uma câmera e peguei um depoimento. Conheci o Florestan Fernandes de uma maneira engraçada. Ele me parou na rua um dia, perto da PUC em São Paulo, para me dizer que via a novela Os Imigrantes que eu fazia na TV Bandeirantes. Depois nos encontramos em muitos palanques do PT, quando ele foi deputado. O estudo sobre João de Camargo foi o primeiro trabalho de campo do professor Florestan Fernandes na questão do negro, quando ele tinha 22 anos. Ele chamava Sorocaba de abacoros, que é o nome da cidade lido de trás pra frente. O fato de um grande mestre como ele ter interesse no tema reforçou ainda mais minha convicção de que ali estava um assunto fascinante. Aí o Adilson me falava: Procura o Sérgio Motta, vai pedir verba pro Serjão, que na época era Ministro das Comunicações do Fernando Henrique. Mas eu era PT, né? O Adilson era PMDB, era Quércia. E ele me falava: Pô, cara, você fica enchendo o saco por causa da aposentadoria do Franco Montoro. Deixa o Franco Montoro com a aposentadoria dele, é um homem maravilhoso, tem que ter aposentadoria. Você também não quer aposentadoria? Eu quero aposentadoria! A última vez que encontrei o Adilson, a última vez que o vi vivo, já muito magro, abatido pela Aids, foi em 1997. Eu estava excursionando com a peça O Inimigo do Povo, que passou por Campinas e ele foi ver. Perguntei o que ele tinha achado da peça e ele disse: é um Velho Barreiro, comentário engraçado, bem do Adilson. Alguém se lembra do desenho da embalagem dessa pinga? Na hora de se despedir ele falou no meu ouvido: Procura o Sérgio Motta, depois foi embora. Depois de Campinas a peça foi para Brasília, e lá, no primeiro dia, fui jantar na permuta do teatro e na frente tinha uma boate, Gates, que estava apresentando o Itamar Assumpção . Fui ver o show e dei de cara com o Sérgio Motta. Naquela época eu queria o Itamar Assumpção no papel do João Camargo, e o Serjão era fã do Itamar. Ele disse que se eu fizesse um filme com o Itamar ele patrocinava. A gente tirou uma foto. Itamar, Sérgio Motta e eu saímos na Isto É e no Correio Brasiliense. Imediatamente eu fiz um bom projeto, mas quando fui levar para o Sérgio Motta, ele ficou doente, estava internado no hospital e nunca mais saiu. Perdi o patrocínio dele e começou tudo do zero de novo. Hoje eu acho que ele foi uma figura incrível, fez boas coisas, o Sérgio Motta pensava longe. Naquela época eu era mais opositor a ele. Hoje eu compreendo muito mais a sua importância. Capítulo XXVIII Morte da Mãe Esse período que vai da conclusão de que Cafundó deveria ser um longa-metragem, em 1993, até começarem as filmagens, foi de dez anos! Nesse tempo minha mãe ficou três anos em coma profundo. Lembro do momento em que ela teve a crise. Ela saiu da UTI do Hospital Samaritano, em Sorocaba, muito inchada pelos medicamentos. O médico receitou um remédio que deveria fazê-la desinchar. Houve um choque. Ela entrou numa euforia. Deitada na cama do hospital, imóvel, falava com excitação dos bailes da juventude, dos pretendentes, de como tinha sido cortejada quando era jovem, de um namorico com um preto. E ria, divertida. Aos poucos foi cambiando para uma aflição, onde me recomendava comprar as galinhas, comprar um terreno. Fui vendo um desespero em seus olhos, como se ela estivesse caindo de uma grande altura, e foi o fim. Minha irmã Cida, que foi enfermeira, percebeu o que tinha acontecido, e de certa maneira previu que o final poderia ser muito demorado. O médico-chefe do hospital, dr. Espartacus, disse que ela não duraria muito. Minha irmã, Cida, duvidou. Ela levou nossa mãe para casa e cuidou dela com carinho e profissionalismo. Um dia recebemos a notícia de que dr. Espartacus havia morrido. Minha irmã e eu não pudemos deixar de rir da ironia. Três anos é muito tempo! Minha mãe ficou muito magrinha, poderia ter tido escaras e muito mais sofrimento se não fosse a dedicação e o desvelo que minha irmã teve para cuidar dela. Era impressionante o cuidado e como a vida conseguia seguir normalmente com a mãe ali, vegetando durante tanto tempo. Lembro das crianças brincando no quintal, os pássaros cantando nas gaiolas. As crianças paravam de brincar e iam colocar a comida no tubo que alimentava a bisavó que estava ali, demorando a morrer. À noite eu dormia na cama ao lado daquela onde minha mãe jazia. Antes eu ia para a casa do José Carlos de Campos Sobrinho e da Cleide Riva Campello, comíamos, bebíamos maravilhosamente, a Cleide é grande anfitriã, e conversávamos sobre o livro que o Zeca escrevia sobre João de Camargo. A idéia do livro surgiu quando decidi fazer o filme. Zeca, que é médico de formação, resolveu escrever um livro, que seria útil também para a pesquisa que eu teria que fazer para o filme. Ele convidou o historiador Adolfo Friolli e começaram o trabalho. O livro foi lançado três anos antes de começarem as filmagens. Consegui uma editora e participei do processo todo da busca de material, bem como do lançamento do livro em Sorocaba, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Sempre levávamos a Banda do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí, que, sob a batuta do maestro Pereira, tocava as partituras originais da Banda de Nhô João, a Número 5! Eu aproveitava a ocasião e declamava o poema Pitoco, um clássico da cultura caipira. Assim foram os três anos de agonia de minha mãe. Eu ia para Sorocaba, ia pra casa do Zeca e da Cleide, jantávamos, conversávamos, sonhávamos o livro e o filme e depois eu ia dormir com minha mãe agonizante. Isso deve estar no filme, de alguma maneira. Capítulo XXIX Captação de Recursos – Um Drama A captação de recursos para o filme demorou dez anos. Nem sei porque foi assim, mas foi assim. Eu acreditei em todas as perspectivas, tanto a do Serjão, quanto em várias outras que surgiram no percurso. Vou contar uma historinha de captação de recursos para o filme para você ver como é difícil conseguir o dinheiro. Um amigo meu de Sorocaba, o professor Marins, que é um antropólogo e palestrante famoso em todo o Brasil, me falou: Vai procurar o Júlio Bierrenbach, presidente do Seguro Real. Ele tem a ver com esse filme, vai gostar da idéia, procura ele. Eu fui, vesti um terno – naquela época eu ia de terno, achava que dava mais credibilidade –, marquei o encontro, cheguei, mostrei o projeto e ele achou lindo. Eu levava de tudo para os empresários e possíveis patrocinadores verem, muito fato, muita pesquisa, era uma demonstração mesmo. Acabou, ele falou: Essa história é do caramba! Mas eu preciso falar com o meu pai. No outro dia ele me ligou, e falou: Senta que eu vou te contar uma história. Falei com o meu pai, que é o almirante Bierrenbach – o almirante Bierrenbach é o homem que votou a favor da abertura do processo Riocentro, é uma pessoa especial dentro das Forças Armadas –, ele lê a tua coluna no jornal de Sorocaba. Quando eu era garoto nós tínhamos medo que as barragens da represa de Itupararanga arrebentassem, a gente achava que a cidade seria coberta de água – era uma lenda. E eu escrevi sobre isso na coluna quando descobri que a Marinha brasileira estava fazendo em Sorocaba o Projeto Aramar, que era o projeto secreto de um submarino atômico. Por que um submarino a 300 quilômetros do mar? Eu falei isso na coluna e também do medo da energia atômica, e o almirante leu porque dizia respeito às preocupações dele, né? O almirante também conhecia muito a história do João de Camargo, porque o pai dele, avô do Júlio Bierrenbach, tinha feito o desenho do arruamento em torno da igreja do místico, a pedido do Nhô João. Antigamente era assim, cada um fazia o seu próprio arruamento, é por isso que as cidades não são nada planejadas. Mas, enfim, o avô do Júlio, pai do almirante, que era engenheiro, fez o arruamento e não recebeu nenhum dinheiro por isso. Uns seis meses depois, ele não estava muito bem financeiramente e chegou um envelope lacrado para ele, ele abriu e tinha cinco contos de réis dentro do envelope, e quem tinha mandado era o taumaturgo. Eu não acreditei quando o Júlio me contou, fiquei maravilhado e falei: O seu avô recebeu cinco contos de réis do preto velho, bom, está estabelecido com quanto que o Seguro Real vai entrar nesse filme. Corrige cinco contos de réis em 84 anos e vê o que dá. Vai ser o patrocínio mais orgânico e miraculoso da história, né? Bom, aí entrou o gerente de marketing na área, um monte de outras reuniões, ternos, viagens de avião, e o resultado é que o Banco Real não deu um tostão para o filme. Não foi nem calculado quanto daria os cinco contos de réis do preto velho. Pobre do Júlio! Eu sei que ele tentou tudo o que pôde, mas bancos não costumam honrar dívidas de bigode dos avós de seus diretores. E assim por diante, foram mil histórias, mil reuniões. Teve outro banco que eu senti que tinha interesse nas terras do Cafundó, eles me chamaram, me atenderam, me receberam, mas só para ver que filme era aquele, porque acho que um dos diretores estava grilando as terras do Cafundó. O filme não tem a ver com essas terras, mas o nome do filme sugere que tenha. Enfim, eu acho que a busca do patrocínio foi o período mais desgastante. Eu poderia ter feito outras coisas que não fiz por causa disso. Eu não desisti por causa da frase do João Guimarães Rosa, o real está na travessia, e por minha fé em Nhô João, eu sempre achei que devia essa homenagem a ele. Eu tinha a ilusão de que seria mais fácil produzir o filme. Que alguns grandes empresários da cidade se juntariam e bancariam a empreitada, usando a lei, sem tirar dinheiro do bolso, aproveitando a renúncia fiscal. O custo do projeto foi de três milhões e meio de reais. E olha que eu batalhei para isso. Escrevi uma coluna durante dez anos explicando como faria o filme e qual sua importância. Hoje imagino até que esse excesso de transparência que a coluna propunha, explicando, reivindicando, esclarecendo, tudo isso tenha atrapalhado, tenha assustado as pessoas. Eu mantive durante dez anos os leitores numa expectativa, contando todos os passos que estava dando para produzir o filme. Eu escrevia: Ontem eu fui conversar com o Fernando Henrique Cardoso, conversei também com o governador Olívio Dutra do Rio Grande do Sul e com o ministro tal e tal, eu escrevia tudo na coluna. Quando finalmente fui rodar o filme o jornal Cruzeiro do Sul, atravessando dificuldades financeiras e conseqüente falta de espaço, resolveu cancelar minha colaboração, me dispensou. Uma pena. Imagine como seria bacana escrever no jornal durante as filmagens? Contar tudo que estava acontecendo. Tá tudo lá nos arquivos. Capítulo XXX Luta de Classes e Poder O tempo longo de desenvolvimento da empreitada e as dificuldades criaram diversas paranóias. Uma que alimentei durante muito tempo foi a de que havia um complô, uma organização de pensamentos reacionários que queriam impedir o filme, numa mistura de racismo, reação política e luta de classes. O cinema, além da imaginação, também tem uma relação muito forte com o poder, e aí, nessa paranóia, comecei a achar que parte da cidade certamente não queria, talvez até inconscientemente, me dar esse poder, de comandar uma produção grande, que mexe com a cabeça das pessoas como o cinema. Na minha obsessão eu imaginava os poderosos da cidade pensando: Como é que nós vamos dar a esse cara o poder de fazer isso? E ele ainda escreve uma coluna dizendo que é o Tarzan em Nova Iorque! Era esse o nome da coluna quando comecei a escrevê-la. Eu fantasiava que eles estavam incomodados com o fato de eu ter conseguido o dinheiro para fazer o filme, sem eles. Comecei a ficar obcecado com a idéia de que tinha vindo de uma classe social que não pode fazer cinema. Que se fosse o filho do empresário, do doutor não sei o quê, talvez, mas filho de uma empregada doméstica e de um servente de pedreiro, irmão do sapateiro da praça. A dificuldade de conseguir o dinheiro e alguns episódios chocantes faziam com que meus delírios persecutórios parecessem reais, por exemplo: eu faço parte do Instituto Cultural Vila Leão, em Sorocaba, eu tenho a casa que era da minha família durante 40 anos, onde funciona esse Instituto, eu tenho a minha vida inteira lá e quando fui pedir verba na lei de cultura local os jurados negaram dizendo que eu não era de lá! E quando, finalmente, depois de três tentativas, eu consegui legalmente ter direito à verba, uma verba que se não viesse para o filme não iria pra projeto cultural nenhum, seria devolvida para os cofres públicos, uma vereadora do PT(?!) entrou com um requerimento no Ministério Público para bloquear o dinheiro. Esse tipo de perseguição justificava a minha paranóia. Foi tudo muito complicado, mas tudo muito verdadeiro e acho que saí dessa história entendendo muito mais da natureza humana. A inveja é uma merda, como está escrito nos pára-choques de caminhão. E é claro, tem o tema do filme, a história de um escravo, uma história religiosa, que mistura umbanda, espiritismo e catolicismo. É um tema muito difícil de ser engolido. Alguém, um provável patrocinador, falou: Por que a história de Nhô João?, Por que você não conta a história do cel. Fernando Prestes? Eu respondi: Porque ele não criou uma religião e não tinha uma igrejinha para ele no caminho da roça de meu avô!. Eu caminhava pelas ruas de Sorocaba e todo mundo, nos bares, nas esquinas, perguntavam: E o filme? Cadê o filme? Até uma escola de samba de São Paulo, a Império de Casa Verde, do Grupo Especial, saiu com João de Camargo como tema de seu enredo. Eu tinha a ilusão de que todo mundo só pensava no filme, que Sorocaba estava vidrada no filme, contra e a favor. Que bobagem! As pessoas estavam informadas sim, mas cada um mais preocupado em tocar sua vida e quando o filme passar irão vê-lo no cinema, ou então esperar sair em DVD ou passar na televisão. Só eu, em meus delírios, pensava que tudo tinha que parar porque eu tinha inventado de construir uma catedral de celulóide. Meu conterrâneo de Capivari, o Amadeu Amaral, escreveu no seu livro A Pulseira de Ferro: Toda pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem-sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos. Eu devia ter lido esse livro antes! A Crítica Antecipada A coisa mais tocante que aconteceu foi receber o jornal da Associação Protetora dos Insanos - hoje eles têm jornal, as coisas mudaram no hospital que trata os doentes mentais onde meu pai ficava internado. Pois bem, recebi um jornalzinho em que um paciente escrevia a crítica do filme, que ainda nem tinha sido filmado! Ele imaginou e escreveu que o filme tinha sido maravilhoso, que ia ser um sucesso incrível. Com charge e tudo! Lindo. Patrocinadores No final das contas, o filme aconteceu porque entrou a BR Distribuidora. O Luiz Antônio Viana, seu presidente na época, numa reunião de meia hora, entendeu a importância do projeto e botou um milhão da BR Distribuidora no filme. O contrato com a BR deu firmeza, garantia, foi ótimo para levar para as outras empresas verem que tudo estava no caminho certo. Entraram também a Eletrobrás e o BNDES. De Sorocaba, a primeira a acreditar foi a Iharabrás, graças à sensibilidade do Antônio Amadeu Andreosi; depois vieram a Construbase, a Coopertools via Duílio Justi, a Luk via Romeu Massoneto Jr., e entrou a Lei de Incentivo do município de Sorocaba, por iniciativa do prefeito Renato Amary e seu secretário Carlos Maria. E teve também o Laércio Pereira, que entrou generosamente, sem fazer uso de nenhuma lei de incentivo! Tive muito apoio da Rede Globo de Sorocaba, que agora se chama TV Tem, e outros, Correios, Banco Safra, Nossa Caixa, Banespa-Santander. Visitei umas 400 empresas. Fui e acreditei em todas as perspectivas e achei que isso me deu uma grande experiência. Muita gente ajudou, marcou encontros, agendou, seria injusto se não falasse de Oswaldo Daniel, Hugo Rothschild, Maria Isabel Monteiro, Maria Cassiane Souza, professor Marins que deu boas dicas, Túlio Marins que nos mandou as mulas que usei nas filmagens e muitos outros. Capítulo XXXI Dez Anos Eu não fiquei dez anos fazendo só isso, só correndo atrás de verba para o filme. Se fosse assim, acho que teria enlouquecido, além de falido. Fiz teatro, televisão, cinema. O filme ficou germinado e sendo trabalhado o tempo todo. Mas minha carreira não parou. Eu sempre acho que alguma coisa a gente aprende em tudo e acho que conheci muita gente boa nesse trajeto. Quando você faz um filme que envolve valores altos, três milhões de reais, é um milhão de dólares, né? Isso desperta uma ambição nas pessoas, foi uma experiência de vida muito forte e definitiva pra mim. Hoje sei muito mais da natureza humana. Quando entrou o dinheiro eu peguei e botei na mão dos produtores, da parte executiva. Eu não assinei um cheque no set de filmagem. Eles é que articularam o dinheiro e me pagaram o que acharam que deviam me pagar, como diretor do filme e como produtor do filme. Eles calcularam, e decidiram o que é que eu ia receber dentro disso. Não fui eu que decidi. E eu entendo de dinheiro, eu saco muito de dinheiro. Interesso-me pelo assunto, leio a seção de economia dos jornais, eu sei cotação do dólar, eu sei de Bolsa. Minha mãe era analfabeta, mas sabia contar dinheiro. Eu gosto de dinheiro, tenho sangue árabe, sou descendente de italianos, mas gosto de fazer negócio, eu gosto de pagar, gosto de receber, gosto de negociar. Eu adoro isso! Não tenho problema com dinheiro, mas eu queria ficar mais tranqüilo durante as filmagens e não ficar assinando cheques. Capítulo XXXII Chatô O orçamento de um filme é quase uma abstração, mas precisa virar uma coisa concreta, né? É difícil vender a idéia de um filme num país como o nosso, com tantos problemas sociais. Um filme é como uma catedral, construída sem estruturas, de pedra e concreto. Engraçado que, quando fui falar a primeira vez com o prefeito de Sorocaba sobre o filme, ele comentou: Você viu quem acabou de sair da minha sala? Um padre. Sabe o que ele veio fazer? Falar da construção de uma nova catedral que custa o mesmo valor de seu filme! Se der uma zebra, se São Pedro não colabora, se acontece algum imprevisto e você perde o controle do caixa, você dança. E é isso que eu acho que aconteceu em Chatô. Quando o Guilherme Fontes trouxe o cineasta Francis Ford Copolla, todo mundo achou isso o máximo. Ele gastou 100 mil dólares para trazer o Copolla, segundo dizem. E todo o mundo adorou, todo o mundo achou genial, maravilhoso, o Copolla veio aqui, ficou dando canja, namorou, foi dançar Carnaval, a imprensa amou. Depois todo o mundo disse que foi uma besteira o Guilherme ter trazido o Copolla, mas naquele momento ele parecia certíssimo. Parecia que ele estava agregando um valor ao filme, a opinião e o apadrinhamento do Copolla. O resto eu não sei, ele tentou fazer o filme e deu no que deu. Eu não sei para onde foi o dinheiro, eu acho que foi para o filme. Espero que tenha ido para o filme, mas eu não posso riscar nenhuma alternativa, porque um filme pode custar x ou pode custar y, depende. Quando nós fazíamos Chatô, eu estava lá como ator, filmávamos no Palácio do Catete, tinha ar condicionado durante as filmagens. E quer saber? Eu acho que é bom que tenha ar condicionado nas filmagens. Você vestido com roupas de época, aquele calor imenso, era legal, entravam uns tubos enormes de ar condicionado, ficava fresquinho e a gente filmava. Depois disseram que isso era desperdício incrível de dinheiro, mas durante as filmagens eu achava muito legal. E nunca vi nada que parecesse desonesto. O que eu vi no set me deu a impressão de que estava sendo feito um filme caprichado, com idéias muito bacanas, o Guilherme dirigindo direitinho, estava superbacana. Mas eu não trabalharia de novo com o Guilherme, não. Eu defendi o Guilherme até o penúltimo momento, mas no último momento eu me estressei. Quando eu raspei meu cabelo pela segunda vez, para fazer a continuação da filmagem – teve até uma terceira – o Guilherme acho que percebeu que eu estava fazendo muito pelo filme, então ele me disse: Paulo, o filme tem todos esses figurinos, quando você for fazer o seu filme, se você precisar de figurino, eu te empresto. Tinha muita coisa de época, uns ternos anos 40, e quando eu fui fazer o meu filme, precisava de muitos ternos desse estilo para filmar um enterro e a figurinista reclamou que tinha pouco dinheiro. Me lembrei da oferta do Guilherme, pedi os figurinos emprestados e ele negou, não emprestou. Fiquei muito grilado com ele nesse último momento. Eu me lembrei muito daquela história do escorpião que vai atravessar o rio nas costas de um sapo, de favor e quase chegando na outra borda dá uma ferroada no sapo, porque essa é a natureza dele. E o Guilherme foi assim comigo, na hora que eu precisava que ele fosse generoso, ele foi mesquinho, tacanho. Eu já disse isso tudo para ele. Mas quando o filme estrear eu vou assistir, claro, vou adorar, tomara que seja maravilhoso, eu vou querer que seja maravilhoso. O cinema é mais importante que questões pessoais. E acho que eu tenho um papel muito bonito no filme. Eu faço o Getúlio Vargas, e acabei fazendo no cinema o Lamarca, o Getúlio e o Mauá, três grandes personalidades da história do Brasil, né? Capítulo XXXIII Ser Ator II O ator usa o seu próprio corpo, o ator é o seu próprio instrumento. É uma profissão meio esquisita essa. Quando você entra em cena é julgado em parâmetros que são muito subjetivos. Alguém entra em cena e diz: Nossa! Como ele é simpático! Olha que carisma ele tem! São essas palavras, né? Talento, carisma, simpatia. Você é julgado por esses parâmetros, e eles não podem ser medidos cientificamente, tudo depende de quem vê. Isso tudo deixa o ator muito inseguro. O Plínio Marcos dizia que ator agarra até em fio desencapado para poder representar o papel bem e agradar o público. A formação que eu tive na EAD era a básica do teatro ocidental, de uma forma bem substancial, o teatro do (dramaturgo francês) Molière, do (dramaturgo inglês William) Shakespeare e tal. E do ponto de vista da formação técnico-emocional do ator a gente tinha a escola do (ator, diretor e crítico de teatro russo Konstantin) Stanislawski. Nós aprendíamos técnica vocal, esgrima e muitas coisas mais, mas basicamente procurava a verdade do ponto de vista emotivo em cada cena. Trocando em miúdos, a cada empreitada, a gente tenta se ligar ao personagem da forma mais honesta possível: Eu não sou aquela pessoa, mas eu vivo diante de circunstâncias propostas que me levam a ser o mais parecido possível com aquela pessoa que foi criada por um escritor não sei onde. Enfim, esse é um jeito stanislawskiano de abordar uma pessoa fictícia, de ter o máximo da vivência dela. Claro que você não vai ser aquela figura humana imaginada, mas acaba incorporando algumas coisas, se preparando para sentir aquilo que ela hipoteticamente sente. Tem também o método inspirado no Bertolt Brecht, então você pode submergir na personagem, naquela abstração, mas ao mesmo tempo deve ficar a uma certa distância dela para poder criticá-la. Eu fiquei apaixonado pelo teatro do Brecht, por seu caráter político, pelo seu aspecto revolucionário. Uso as ferramentas que a EAD me deu de como abordar um personagem até hoje, talvez agora de um jeito mais diluído, mas a base é sempre a mesma. Eu não gosto de ficar muito tempo me angustiando antes de entrar em cena. Eu gosto de fazer a minha maquiagem em dez minutos mais ou menos, pelo menos nessas peças realistas que não exigem uma maquiagem especial, e estou pronto para começar. Uma curiosidade: quando eu chego no teatro depois de uma viagem de avião, acabo fazendo melhor a peça. Acho que aquele pequeno tremor do avião funciona como um relaxante muscular de primeira para mim. É muito bom. Chego cansado, mas me ajuda. Por outro lado, uma coisa que me atrapalha muito é saber quem está na platéia. Qualquer pessoa que eu saiba que está na platéia me atrapalha, eu fico pensando naquela pessoa, fico querendo fazer para aquela pessoa, fico achando que aquela pessoa não está gostando, não está entendendo, e que se eu fizer de um outro jeito ela vai gostar mais e aquilo me atrapalha muito. Eu acabo sendo dominado pela pessoa. Não pela platéia, pela pessoa. A quantidade de público não interfere muito. Às vezes você está fazendo uma peça que não lota nunca, aí, na noite que lota você acha que vai fazer um belo espetáculo, mas a platéia, apesar de numerosa, é ruim, e sai uma droga. E outras vezes, na noite em que tem menos gente você faz o melhor. Muitas das melhores apresentações que eu fiz foram para pouco público, aquele dia em que tinha menos gente na platéia, mas que era um bom público, atento, sensível, inteligente. O público é sempre a coisa mais importante, e a mais imprevisível. Tudo o que os atores falam quando saem de cena é sobre o público. Pelo menos nas peças que eu participei, a conversa sempre girava em torno da platéia, se eles eram bons, se estavam gostando, se eram talentosos, se estavam se divertindo, é sempre isso. As apresentações são absolutamente diferentes a cada noite. Você faz tudo igual, mas a química, a reação da platéia é diversa. É uma coisa sutil, só quem percebe são os atores. Até mesmo o diretor às vezes não percebe. E então acontece de você fazer excelentes apresentações e o mesmo espetáculo às vezes sair péssimo. Depende do talento da platéia, do humor, do jeito como eles percebem o que os atores estão fazendo. E o público é um coletivo que está sempre sujeito a tudo, ao clima, às notícias do dia, a uma porção de fatores. Tudo interfere no meu desempenho em cena, a vida pessoal, uma briga em casa, tudo. Mas geralmente eu saio das peças bem, melhor do que quando eu chego no teatro. Ele sempre teve pra mim o poder de me curar de uma certa maneira, sempre me fez bem. Sinto um cansaço bom, saio achando que foi legal, saio revigorado do teatro. E sou um ótimo público. Eu adoro ver teatro, sou desarmado, não fico pensando em como eu faria. Depois, sim. Mas durante eu sou surpreendido pelos golpes, eu gosto de quando apaga a luz e começa a acender os refletores, eu gosto de peças que têm mais atores, não gosto muito de monólogo, eu gosto de peças que eu sei que vai entrar um ator diferente, daqui a pouco vai entrar outro, eu gosto muito de teatro, eu gosto como espectador mesmo. Eu ganhei muitos papéis bons nas montagens curriculares da EAD porque eu tenho muita facilidade para ler. Então eu me aproximo dos personagens rapidamente, na leitura. Isso era até meio condenável na escola. A gente não podia ler logo de cara com intenção. O método dizia que você devia fazer neutro para depois chegar na intenção do personagem, da cena. E eu nunca fiz assim, já queria ir logo para o personagem. Isso sempre me fez ter a sensação de ser mau ator. Eu passei muito tempo me achando bastante canastrão. Eu ouvia essas opiniões de que me aproximava muito rapidamente dos personagens, e como também não gostava muito de me concentrar para entrar em cena, fiquei achando que era realmente um péssimo ator e sofria muito com isso. Mesmo assim, acho que na essência, sou ator. Comecei como ator, fiz uma escola de formação de ator. Depois eu comecei a dirigir. Mas, entre a direção e a atuação, o que mais me rendeu prêmios, reconhecimento da crítica, foi a direção. Se fosse avaliar pelos prêmios, eu devia ser só diretor. Tenho uns 17 prêmios como diretor e não tenho cinco prêmios como ator. Eu não me julgo muito talentoso. Eu não sou um talento natural para a representação, ou para a direção, não sou criativo, mas me informo, leio, estudo, trabalho, me esforço. Capítulo XXXIV Assédio Eu não me incomodo com o assédio, muito pelo contrário. Gosto disso, de ser reconhecido, tenho um desejo muito grande de agradar as pessoas, de retribuir, de corresponder, gosto de dar autógrafos, gosto que a pessoa leve aquilo para casa. Gosto que falem que me viram e que cheguem em casa e contem para os outros, gosto de pensar que isso dá uma alegria e eu sei que dá. Lembro de uma vez que vi a Bruna Lombardi na rua e cheguei em casa feliz – já era ator – e contei na mesa de jantar da minha casa e senti que aquilo transmitia uma alegria. Um amigo meu que é poeta e mora em Curitiba, o Zé Carlos Corrêa Leite, me disse: Paulo, quando você era ator em Sorocaba e eu trabalhava na tecelagem, eu via você na rua e isso me dava a maior alegria, você era o artista que eu tinha visto na rua. Eu não sabia disso na época, mas adorei quando ele me contou. Eu me lembro também que vi uma vez o Carlos Drummond de Andrade, comparação pretensiosa, não? É sempre especial ver alguém que você gosta, que você admira, andando na rua. Você pega um pouco da luz daquela pessoa e leva com você. Alegra-me dar essa alegria para as pessoas. Eu sei que isso faz bem, eu sei que isso agrada, por um momento ela está ali no mesmo lugar que o artista, então, ser reconhecido, dar autógrafo, não me aborrece nunca. Antigamente eu escrevia assim: Um beijo, quando era mulher e Um abraço, quando era homem. Mas um dia uma mulher chegou e começou a tirar uns papéis da bolsa procurando onde eu podia escrever, aí me deu um papel e eu: Um beijo, e tasquei meu nome. Daí eu abri o papel e era uma receita médica, escrita assim: Para uso interno na vagina. Aí parei de escrever Um beijo, agora escrevo Tudo de Bom, que é como minha mãe me dispensava quando eu estava enchendo muito o saco, às vezes no telefone ela dizia: Tudo de bom! Quando ela queria me interromper, dizia: Tudo de Bom, bem rápido, para não dar tempo de eu falar mais nada. Capítulo XXXV A Crítica Acho que o fracasso ensina muito. E não sofro muito quando um trabalho não dá certo, não. Uma vez, na escola de teatro, um professor chegou para mim e disse: 50% das pessoas vão gostar de você, vão gostar do que você faz, e outras 50% não vão, acho que foi o Jonas Bloch, ou o Sílvio Zylber. E é assim mesmo, de graça, você gosta ou não gosta de um ator, e os motivos não são conhecidos, não dá para listar, é uma espécie de química, bate ou não bate. Já fui criticado por quase todos os críticos que estão por aí, e por muitos que já não escrevem mais. Já falaram bem e mal de mim, todos. E eu leio, leio tudo, presto atenção, eu respeito os críticos. Apesar de não conseguir entender como alguém possa escolher como meio de vida julgar os outros, o trabalho dos outros, eu acho que é um trabalho muito importante o ofício do crítico. É difícil você ter que dizer o que achou de determinado trabalho, e escrever a sua opinião no jornal, não é fácil ser crítico. Eu comecei a ler jornal com uns 14 anos de idade. No bairro onde eu morava as ruas eram de terra e entrava uma única assinatura do Estadão lá. Era a minha. Lia o Suplemento Literário do Estadão, e eu não conhecia os atores e não assistia às peças porque estava lá no cafundozinho da Vila Leão, mas sabia quem eram os atores respeitados, tinha admiração por alguns que eu nunca tinha visto trabalhar. Então acho a cobertura dos jornais, a crítica, muito importante. Uma peça estréia, e a gente só contabiliza o público que foi ver a peça. E o povo que quis ir ver e não pôde? Tudo isso faz parte do fenômeno teatral e isso tudo está na mão do crítico, do editor, do articulista do jornal, do cara que escolheu a foto. Acho que as piores apresentações que fiz sempre foram para os críticos, porque sempre dão um jeito de me avisar que eles estão lá, eu tento proibir os produtores de me avisar, mas eles sempre dão um jeito. É uma sacanagem, vem sempre alguém com um pequeno sorriso falando assim: Hoje tem alguém. E eu sempre aviso 200 mil vezes que não me digam. E têm uns críticos que tomam nota, então aí é terrível. Ainda mais quando estou fazendo peça em teatro pequeno, como o da Casa da Gávea, aí vejo a pessoa anotando, aquilo acaba comigo. Capítulo XXXVI Dirigir Esse negócio de dirigir é uma coisa que sai meio assim, eu vou deixando fazerem, deixando contribuírem, incentivando. Sou bom de organizar, fazer as pessoas ficarem juntas, evitar que elas briguem, fazer com que rendam o máximo delas próprias, que dêem tudo de bom para aquele projeto. Isso eu acho que sei fazer. Gosto de ter a palavra final, gosto de apontar a direção, embora muitas vezes eu não saiba para onde ir, então junto todo mundo para decidir. Todas as vezes que eu dirigi uma peça foi um trabalho de muita colaboração. A minha maneira de trabalhar é assim, eu não chego para dirigir um espetáculo com a concepção inteira na cabeça. A concepção nasce junto dos atores, da equipe. Eu dirigi Assim é, se lhe parece, eram 15 atores do primeiro time, fez um sucesso estrondoso. Mas me incomodava um pouco o fato de que depois da estréia, durante a temporada, quando acabava a sessão todo mundo ia embora, cada um para o seu canto. Era impossível segurar os atores. Eu queria falar com eles, eu gosto de acompanhar as peças que eu dirijo, gosto de assistir no fundo do teatro e depois chegar para o elenco e dar pequenos toques, para fazer a peça ir engrenando, para que ela permaneça viva. No Feliz Ano Velho eu fiquei 150 apresentações operando a luz quando o Carlinhos, que era o nosso iluminador, caiu de uma escada depois da estréia e se machucou. Ele foi dar uma afinadinha na luz, caiu e quebrou a bacia, ficou dois meses no hospital - e eu fiquei operando a luz. O Feliz Ano Velho ganhou muito ritmo com isso, porque eu ia interferindo no espetáculo diariamente, a luz é uma edição, não é? Você apaga, a cena tem que mudar. O que me apavora quando estou dirigindo é a impressão de que os atores estão todos a ponto de saírem para ir fazer uma novela, ou um filme. Está todo mundo esperando um chamado para uma novela e eles vão largar a peça se forem chamados. Então, você tem um bom ator fazendo um bom trabalho, mas está arriscado a perder esse cara daqui a uma semana. O Marcos Frota foi chamado pra fazer uma novela às vésperas da estréia do Feliz Ano Velho e ele não foi. Foi muito bom pra ele, mas é muito difícil de isso acontecer. Os atores precisam se dividir entre o teatro e a televisão. Por que as peças de teatro começam as nove e meia, no Rio de Janeiro? Porque o horário de gravação das novelas acaba às nove. O horário de teatro no Brasil seria melhor se fosse às 8 horas, como é na Europa, como é nos Estados Unidos. Mas o teatro no Brasil tem que obedecer aos horários dos estúdios de gravação. Eu tenho uma certa nostalgia do tempo em que trabalhávamos completamente distantes da possibilidade da televisão. Os ensaios não tinham hora para começar nem para acabar, era uma delícia. Era uma coisa bem amadora, no melhor sentido. Já dirigi atores talentosíssimos. E para dirigir um ator muito especial você tem que gostar dele, não procurar modificá-lo. Aceitá-lo. Quando a gente dirige, a gente tem a pretensão de querer modificar a pessoa. Pode até conseguir modificar um pouco a interpretação do ator, mas tem que fazer isso com carinho, porque você vai ter que moldá-lo, vai ter que mexer com a insegurança dele, então o negócio é pegar leve, com cuidado. Para não agredir. Capítulo XXXVII Instituto Cultural Vila Leão O Instituto fica na casa onde passei a minha infância e na cidade onde estão todos os meus irmãos, a minha família. Quando fomos inaugurá-lo, chamei o padre Martini, o padre da minha infância, que foi muito importante para mim, para ir lá fazer uma bênção. Aí ele citou Camões nessa bênção: Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Quer dizer, de uma certa maneira a gente faz essas coisas todas para fugir da morte. Naquele dia eu fiquei olhando para o quintal lá da casa onde fui criado, onde a minha avó matava porco com uma faca e me obrigava a segurar a pata do bicho. E naquele exato lugar estava acontecendo uma peça do Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, com os alunos do Instituto. Bem no meio do quintal, onde tinha um pé de café, um ipê, um pé de romã, ali no meio daquilo tudo estavam as ninfas do Sonho de uma Noite de Verão. Foi muito bonito, muito emocionante. O Instituto tem dado alegrias e muitas dores de cabeça também. Não estaria em pé até hoje se não tivesse o trabalho abnegado de professores como a Fernanda Maia, o Heitor Saraiva, Elvira e Ila Gentil, além dos verdadeiros esteios que são a Cassiane Maria, a Isabel Monteiro e o Pedro Courbassier. Capítulo XXXVIII Política No começo da minha carreira profissional o ambiente era de muita censura e patrulha ideológica. Quando a gente levou o Cerimônia por um Negro Assassinado para o Rio de Janeiro, depois de uma temporada de muito sucesso em São Paulo, uma jornalista cobrou: Mas como é que vocês resolvem fazer uma peça poética nos dias de hoje? Não é muita alienação? Eu nunca achei que o teatro devia servir à ideologia política. Eu sempre me expressei bastante politicamente, eu era filho de camponeses, de lavradores, e estudava na USP, na época os alunos eram revistados na entrada e às vezes na saída, era um momento de repressão, e claro que eu achava tudo aquilo um absurdo, vivia participando de assembléias para discutir isso e aquilo. Mas eu não queria levar essas questões para o teatro, obrigatoriamente. O teatro tinha que ser livre, não podia ser uma manifestação atrelada, parametrada pela questão política. No meio do caos e da escuridão política, em 1975, a gente montou uma peça surrealista. Victor ou as Crianças no Poder é um libelo surrealista do Roger Vitrac e era nisso que a gente estava ligado, no surrealismo, a gente não estava ligado em (Bertolt) Brecht, seria até bacana se estivesse, mas não estava. Fazia-se na USP um teatro muito engajado nessa época, eu me lembro de grupos muito mais politizados que o nosso, porque na EAD nós éramos até pouco politizados em relação ao resto da universidade. A nossa formação era mais teatral. Gostávamos de política, mas gostávamos mais de teatro. Fazíamos aulas de expressão corporal, de esgrima, de maquiagem. Na época, talvez, a formação política fosse mais ligada ao Departamento de Sociologia, de Ciências Sociais, mas na EAD nós éramos atores, né? Capítulo XXXIX Militância Eu sempre fui muito crítico, sindicalista, cooperativista, filiado ao PT e tal. Hoje em dia gosto mais de exercitar a política no meu trabalho pessoal, quer dizer, eu faço contrapartida social há muito tempo, dou aulas, monto escolas, institutos, esse é o meu interesse. Eu não tenho mais uma crença partidária tão arraigada, continuo simpatizante do PT, até militante, mas dedico menos tempo a isso. E continuo pensando que devemos tentar corrigir o mundo. O ser humano precisa ser corrigido em alguns de seus instintos primários. Ele é naturalmente agressivo e competitivo. Meu pensamento é cristão também, acho mesmo que tem que sacrificar o conjunto pela ovelha desgarrada. Não acho que se 70 mil pessoas estão bem, ninguém precisa se preocupar com aquelas 15 que estão mal. Eu acho que é para elas que se tem que olhar. Eu comecei a arrefecer meu lado de militante partidário aos poucos a partir de 1989, quando o Lula não se elegeu. Na época, fiz uma excursão nacional com a peça Perversidade Sexual em Chicago. Fui a todas as capitais do Brasil e aproveitava para fazer campanha, falava sobre a democratização das redes de televisão, sobre televisão regional e visitava cada diretório do Partido dos Trabalhadores, querendo fazer de cada um também um núcleo de educação e cultura. Então eu entendi que não havia nenhuma intenção dos diretórios de se tornarem núcleos de educação e cultura. O pessoal estava mais preocupado com questões que achavam mais emergentes, como reforma agrária, etc. Talvez eles tivessem razão, sei lá, mas eu sempre achei a arte fundamental, ela teve na minha vida uma função muito forte, fui resgatado pela arte, não existiria sem ela. Eu me cansei um pouco de sempre os políticos pedirem para nós artistas desenvolvermos um projeto e depois esse projeto ser colocado de lado. Havia uma intenção de chegar ao poder, mas a cultura não era a coisa principal, não estava nem entre as dez prioridades do partido. E foi o que aconteceu, foi o que a gente viu, o PT não tinha pensado em projeto de cultura. Aos poucos fui entendendo que queria ficar mais independente de partido. Mas sempre com a maior simpatia pelo PT. Eu percebi que sendo artista, a política deve estar a serviço da arte, mas não a arte a serviço da política. Eu entendi também que preferia ser artista a ser político, que só teria uma forma de apitar politicamente, de ter influência política, se eu fosse político, e isso eu não queria ser. Tem até uma passagem que eu acho engraçada e que foi muito reveladora para mim. Aconteceu logo depois da eleição de 89. Eu fui lançado experimentalmente pelo PT como candidato a deputado federal. Eu nem sabia, era uma experiência do partido, mas minha foto saiu no jornal como candidato. Todo dia eu ia de bicicleta fazer ginástica numa academia e passava por uma passarela onde tinha um peixeiro. Eu sempre cumprimentava o peixeiro, mas naquele dia eu já estava candidato, já tinha sido picado pela mosca azul. Desci e abracei o peixeiro. No abraço meu espírito crítico se manifestou. Vi como aquilo era ridículo e populista. Definitivamente levava todo jeito para ser político profissional, mas tinha autocrítica para não sê-lo. Eu batalhei para eleger a Erundina à prefeitura de São Paulo, fiz mais de 15 chamadas na televisão, as mais agressivas, eu falava o que nenhum colega meu queria falar, batendo duro nos adversários e, depois que ela foi eleita, a gente fez um jantar e ela estava presente, e o meu amigo Rafael Ponzi perguntou: E a cultura, prefeita? Ela disse: Olha, a cultura não é a minha prioridade. Eu fiquei chocado com aquilo. E percebi que na relação do artista com o político você é manipulado, não tem jeito de fugir do esqueminha de apenas servir ao candidato na eleição. Depois, na eleição presidencial de 1994 eu ainda fiz campanha, mas já com essa noção. Em 1998 eu já não fiz mais campanha. Então, todo mundo sabia e todas as instâncias do PT sabiam que eu era um cara insatisfeito, porque o Lula nunca tinha ido ver uma peça de teatro. Não era só eu, o Antônio Fagundes, outros atores, a gente reclamava isso o tempo todo, a gente falava: Se ele não vem ver a gente no teatro nunca vai entender e gostar do que fazemos, nunca vai nos respeitar de verdade. A gente queria ver o Lula se ilustrando, crescendo, sendo mais culto. Eu tenho 15 irmãos também, sou o décimo quinto filho, não sou um cara nem classe média. E a arte serviu para mim, o teatro serviu para mim como um resgate de condição social e tudo o mais, eu tenho essa semelhança de origem humilde que me dá o direito de falar isso. Eu acho que posso falar isso para o Lula, mesmo agora que ele é presidente. Outra coisa que me marcou muito aconteceu durante a campanha presidencial de 1989, no debate final. Durante uma viagem num jatinho (pois é, o Lula tinha um jatinho no segundo turno) eu tinha falado longamente com o Lula sobre o debate. O Lula abriria e encerraria o debate por sorteio. Quer dizer, ele tinha um gol garantido no primeiro e no último minuto. Dei a ele uma idéia que um metalúrgico de Nova Iguaçu tinha passado pra mim: ele deveria tirar do bolso do paletó a carteira profissional no último minuto e mostrá-la para o Collor e depois jogaria no ar que o Collor nunca tinha tido uma carteira, porque nunca tinha trabalhado, e tudo isso mostrando para os espectadores a carteira azul, aquela que está no inconsciente coletivo dos trabalhadores, aquela que não permite que o cara seja preso porque está trabalhando, está empregado, aquela que todo o mundo guarda com o maior carinho. No dia do debate, uma quinta-feira, estávamos praticamente de joelhos na casa do Adair Rocha, ao meu lado estava Dom Mauro Morelli, que fumava nervosamente. Lula estava mal no debate, mas a gente contava com aquele pênalti no último minuto. Lembram o que ele falou? Aquela história do caçador de maracujás. Chutou o pênalti para fora. Por quê? Acho que porque, no fundo, ele não confiou na dica de um ator. Capítulo XL Briga com Lula Quando eu fui para a inauguração daquela fábrica em Sorocaba, e falei que o Lula não ia ao teatro, numa entrevista, virou um escândalo, um jornal botou uma foto minha com a boca torta, o vira-casaca, aquela coisa, foi um terror. Uma colunista social deu meu e-mail particular na coluna dela, para quem quisesse me escrever sobre o que achava da minha atitude. Minha vida virou um inferno, porque eu passei a ser visto como um cara antiético, porque eu tinha traído o Lula, né? O meu deslize foi ter falado do Lula naquela ocasião, quando eu estava ao lado do Fernando Henrique, que estava lá pra inaugurar uma fábrica, mas o que eu falei do Lula eu já pensava há muito tempo e nunca tinha falado em público, e acabei falando na hora errada. Perguntaram, Mas como é que você está aqui, pedindo dinheiro para o Fernando Henrique Cardoso? E eu respondi: Eu estou aqui pedindo para o Fernando Henrique ajudar meu filme, junto aos empresários de Sorocaba, porque eu estou tendo dificuldades para captar recursos por causa do meu trabalho para o PT durante esses anos todos, e também quero entregar ao presidente uma carta da Fundação Palmares para que se resolva o problema da posse da terra do Quilombo Cafundó. Mostrei para todos os jornais o documento do cartório, mas nenhum publicou nada disso. Eu estava meio entalado com o PT que não me ajudava a tocar o projeto do meu filme. A Secretaria de Cultura do Olívio Dutra, que era governador do Rio Grande do Sul, negou duas vezes autorização para eu captar recursos na lei do Estado. Isso depois de eu aparecer na campanha política dele na televisão e aparecer em público em palanques dele em diversas ocasiões. E o filme poderia começar lá, com a partida das tropas, tinha tudo a ver ele apoiar o filme, mas não o fez. Eu pensei que o Fernando Henrique, como um intelectual que era, e sendo amigo do Florestan, discípulo do Florestan, poderia apontar para essa viabilidade do filme. Um aceno dele e os empresários entrariam. E ele não fez isso lá em Sorocaba. Ele falou: Paulo, você é adepto de uma estranha religião. Referindo-se equivocadamente ao tema do filme. Eu falei essa religião é o cinema brasileiro presidente. Isso não saiu em jornal nenhum. Eu tinha encontrado três vezes com o presidente Fernando Henrique em Brasilia. Uma delas com o Anthony Quinn. Ele sabia do projeto e das dificuldades. Fiquei meio chateado dele ter reduzido tudo daquela maneira. Uma compreensão estreita essa de religião estranha, principalmente para quem trabalhou tanto na questão do negro, não é? Mas Fernando Henrique é um homem culto e respeito o trabalho que ele fez na presidência, apesar de muitos erros crassos como o processo de privatização das companhias elétricas como um exemplo. Uma vez vi uma foto dele num museu na Rússia e ele estava na frente de um quadro que retratava o General Kutuzov, ele sabia quem era, achei legal. São coisas simples, mas que marcam. É claro que me sinto muito mais próximo do Lula, a ponto de querer poder falar com ele o que eu quiser. Eu tinha vontade de ser um assessor especial do Lula na área do teatro, da cultura. Dar pitacos, quem não queria? O meu desejo mais profundo era que ele entendesse de teatro, que ele gostasse, que ele fosse um especialista em teatro. É um desejo de irmão, eu queria que ele curtisse isso. Eu queria que ele se interessasse por isso, porque é do que eu mais gosto de falar e então teríamos muito assunto para conversar. Na campanha de 1994 o Lula foi visitar meu irmão Zé , lá em Sorocaba, na sapataria. Tenho a foto dele com o Zé no meu escritório, tenho muito orgulho dela. A primeira reunião do Lula com os artistas, nessa eleição de 2002, foi na Casa da Gávea. O ministro Gilberto Gil quer fazer vários centros culturais em diversos lugares do Brasil. É aquela idéia dos centros culturais vingando. Acho que o trabalho que fiz em 90 não foi em vão. Quando eu me encontrei com o Lula em Brasília, depois de ele ter sido eleito, foi a maior emoção. Eu levei para ele a autobiografia do Lawrence Olivier, em que o ator conta como conheceu Churchil. Num intervalo da representação de Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, o grande estadista entrou sem querer no camarim do ator procurando a toalete. Olivier levou-o de volta a seu assento. Churchil costumava comprar três lugares, um para ele, outro para a filha e outro para colocar o sobretudo e o chapéu. Não é lindo? Como gostaria de ver o Lula fazendo isso com a Marisa. Aposto que ela ia gostar. O projeto Lula no poder foi um sonho meu a minha vida toda. Esse foi sempre o meu projeto e agora é, existe, eu quero muito que o Lula dê certo. Capítulo XLI Maria Ribeiro No O Inimigo do Povo, tive a felicidade de conhecer a Maria Ribeiro. Era 1997, ela tinha 21 anos, eu, mais de 40. Eu já estava separado da Eliane, e com a Maria foi amor à primeira vista. Ela fazia o papel de minha filha na peça. Fiquei apaixonado e logo de cara tive a certeza de que não era coisa passageira. A personalidade da Maria foi o que primeiro me atraiu. Além de linda, estudiosa, inteligente, responsável ela é ultratalentosa. É formada em jornalismo na PUC. Não tinha nada a ver com a minha vida passada, é carioca, de uma classe social completamente diferente da minha, vivência completamente diferente. A curiosidade era total. No começo eu morria de vergonha de sair na rua com ela, me sentia muito velho, mas aos poucos fui relaxando. Estamos juntos há quase sete anos. Estou aprendendo com ela a cada minuto. A Maria tem uma integridade, uma clareza a respeito do que quer e do que não quer impressionante. Está cada vez melhor como atriz, cada vez dominando mais seus recursos, a emoção, cada vez mergulhando mais nos personagens, além de ser também uma mãe dedicada e muito amorosa. Uma nova vida se abriu para mim. A separação da Eliana tinha me deixado escalavrado, foram muitos anos, muitas coisas juntos, duas filhas. Só mesmo uma pessoa especial para me fazer acreditar de novo no amor, na vida. Maria fez isso por mim e muito mais. Deu-me o João, que tem dois anos agora. Um menino lindo, inteligente, levo ele todo dia no Jardim Botânico. É uma maravilha ter um filho nessa idade. E tenho uma companheira que me instiga, me critica, me dá força. Acho que tenho tido muita sorte com as mulheres da minha vida. Capítulo XLII Personalidade Eu sou um cara meio bipolar, sabe? Nos ensaios de teatro eu acho que um dia é maravilhoso, no outro dia eu acho que é uma merda, no outro dia eu acho tudo maravilhoso, no outro dia eu acho tudo uma merda e fico eufórico e fico deprimido, fico eufórico e fico deprimido. Às vezes acho que sou muito difícil de se suportar, sou muito instável. Eu gosto de algumas frases, citações, e escolhi algumas para colocar neste livro, e a permanência delas em minha vida acho que quer dizer alguma coisa sobre mim. Tem uma do Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas, que é assim: O real não está nem na saída nem na chegada. Ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Tem uma outra do (poeta francês Arthur Rimbaud) que ficou bastante tempo me perseguindo: Contra a angústia, marchas forçadas. Não sei direito por que essas frases me perseguem, mas elas estão sempre presentes na minha vida. Acho que elas têm alguma coisa em comum, um sentido de esforço, de batalha, de luta. Talvez tenha alguma coisa a ver com o meu santo no candomblé que é um santo guerreiro. Meu amigos sempre me dizem isso, que uma das minhas principais características é a de ser lutador, eu fico tentando abrir portas o tempo todo. Às vezes até me questiono se eu não deveria ficar numa coisa só de cada vez, seguindo um caminho só, mas pode também ser medo de não ser chamado, ou não ser convocado, ou não ser escalado, então eu fico criando as minhas próprias alternativas. Dizem que as pessoas têm mais medo de ficar desempregado do que da morte. Como eu entendo isso. Na minha infância só se falava no corte nas fábricas. Minhas irmãs e irmãos trabalhavam nas fábricas de Votorantim e o corte era o pesadelo que rondava minha vida. Esse meu medo do desemprego deve ser uma coisa relacionada a esse meu passado, com a minha infância, com a obrigação de ganhar o sustento, de poder pagar as contas no fim do mês. Acho que eu sou exageradamente preocupado com isso. Um medo que não tenho é de falar em público. Eu já fiz loucuras falando para platéias. Uma vez fui para Portugal fazer um trabalho numa feira perto de Lisboa que chamava Próximo Milênio. Eu tinha feito uma minissérie na Globo, O Fim do Mundo, esse trabalho passou lá e eles gostaram do meu personagem, o Joãozinho de Dagmar, e me chamaram para anunciar a Feira do Município de Oeiras, que ia mostrar como a cidade estava se preparando para o futuro. Oeiras é uma cidadezinha ao lado de Lisboa. Eu fui achando que ia ter uma tarde de autógrafos, mas cheguei lá e estava anunciada uma palestra minha sobre o futuro. Pensei, vou contar umas histórias da minha profissão e pronto. Mas aí, vi aquela mesa toda preparada, com guirlanda de flores, uma garrafa d’água, um monte de gente na platéia. Comecei dizendo assim: O futuro está nos ovos. Esse é o título de uma peça do (dramaturgo francês Eugéne) Ionesco. Daí eu expliquei que era uma peça e tal e acabei falando horas sem parar sobre diversos assuntos e deu tudo certo. Eu não tenho esse medo. Eu tenho medo mesmo é de ficar desempregado. Da morte também não tenho muito medo, mas à medida que o tempo passa você acaba cada vez mais pensando nela. Eu me lembro de um professor meu, o Paulo Mendonça, que disse assim numa entrevista: Hoje em dia, de cada três pensamentos meus, dois são para a morte. Eu acho que a idade leva a gente a isso. Também sempre fui muito preocupado em documentar as coisas, quero segurar de alguma maneira os momentos. Eu nunca fui muito desprendido, e o teatro é muito fugaz. Sou muito trabalhador e isso já me trouxe muita coisa boa. Dizem que quem faz o dever de casa brinca melhor. Ganhei uma vez uma bolsa de estudos para fazer um curso em Nova York, da Fulbright. Na verdade era um prêmio: O Distinguished Artist Fellowship Fulbright. Quando foram abertas as inscrições para a bolsa-prêmio eu estava fazendo a novela Tieta, que exigia muito trabalho, eu fazia um personagem que gravava muito no Tieta, o Timóteo. E estava em cartaz com a peça Perversidade Sexual em Chicago. Ao mesmo tempo, era a época da campanha presidencial do Lula, em 1989, e acho que eu fui um dos artistas mais atuantes, foi a campanha do Lula-lá. Então eu viajava com o Lula para fazer comícios. E a inscrição pra bolsa da Fulbright não era uma coisa fácil, tinha que fazer um exame de inglês, o Toefl, e tinha que fazer um portfólio. Quando eu fui fazer o portfólio percebi que estava muito organizado, eu tinha tudo de que precisava guardado em caixas. Aí peguei as coisas e pedi para um amigo meu, o produtor Guilherme Abrahão, fazer para mim a parte gráfica e eu acabei conseguindo a bolsa no meio dessa loucura que estava a minha vida. Eu cumpri a bolsa acordando cedo, tirando neve de cima do carro, aquele ano o inverno foi super-rigoroso. Trabalhava para valer. Andava de metrô o dia todo, para cima e para baixo. De manhã ia para um curso de inglês na ONU com a minha querida amiga Vera Setta como companhia. O curso era uma delícia. A maioria dos alunos era mulheres, esposas de diplomatas, e basicamente, todo dia era dedicado à cozinha dos mais diversos países. Durante a aula elas explicavam como se fazia a comida típica de sua terra. No final comíamos o resultado da aula. Eu assisti a todas as peças, vi todos os vídeos no Lincoln Center, visitei diretores de teatro como Richard Foreman e Bob Wilson (que por sinal achei meio esnobes, mas na realidade acho que eles não estavam com saco para aquele brasileiro que falava de política o tempo todo, de televisão e do Brasil). O mais importante acontecimento dessa estada nos EUA foi ter conhecido o grande documentarista George Stoney que me admitiu como ouvinte de seu curso na NYU, além de me aceitar também na convivência com sua família. George havia estado no Brasil e tem um interesse autêntico e generoso por nossos problemas. Com mais de 80 anos subia os nove andares que levavam ao seu escritório na escola, na Quinta Avenida, sem esfolegar. Vendo aquele homem e sua extraordinária forma física, adquiri a mania salutar de subir escadas. George foi o criador do conceito de TV de Público Acesso nos EUA, uma conquista democrática que de alguma forma acabou vindo também para o Brasil. É só ver os canais comunitários, legislativos e universitários que temos em nossa TV a cabo para compreender a importância das conquistas de Stoney. Andei a pé pela cidade, lia o The New York Times todo dia, comi pizzas nas esquinas, tomei suco de cenoura, ia almoçar na ONU com meu amigo, o repórter Chaim Litewski. Comemorei o Thanksgiving, aquele feriado importante que acontece antes do Natal e é sempre comemorado em família, com os norte-americanos comendo peru recheado e purê de abóbora. E eu sempre achava que não estava fazendo tudo que podia. Quando a Fulbright fez 50 anos publicou uma lista com os Fulbrighters mais famosos no mundo. Meu nome está lá, abrindo a lista, mas só porque meu sobrenome começa com B e estou na categoria artist, que começa com A. Tive sorte por causa da ordem alfabética dessa vez. Sabe quem eram os outros da lista? Umberto Eco, John Updike, Philip Glass, Aaron Copland, e mais um monte de presidentes e prêmios Nobel. Olha aí o Tarzan em Nova Iorque! Não sou exatamente um workaholic, mas eu trabalho bastante. E nunca consegui pensar nas coisas que eu faço com o trabalho, a não ser comercial de televisão. Gravação de comercial me cansa mais e eu sinto que estou trabalhando, é a única situação em que eu penso: Eu preciso parar isso para descansar. Mas os ensaios de teatro, gravação de novela, representações de peças de teatro e cinema, eu nunca penso naquilo como um trabalho. Na televisão às vezes o dia fica muito longo e daí eu canso também, mas eu me divirto muito. Eu estou sempre ligado, sou um cara que fica lendo um livro sempre tomando nota, não sei ler um livro só por ler. Eu sempre risco os livros, tomo nota, tenho um monte de caderninhos em tudo quanto é lugar, pilhas de papéis, sou um pouco neurótico. Não gosto de ficar um tempão numa praia descansando, me entedio, levo 200 livros para a praia e geralmente é isso que eu fico fazendo, fico lendo, correndo, lendo, correndo. Entro na Internet umas três a quatro vezes por dia, fico aflito quando não me respondem os e-mails, fico ansioso também em responder rapidamente os e-mails que eu recebo, qualquer telefonema eu quero dar resposta, não deixo cair na secretária eletrônica, atendo todos os telefones que estão na minha frente. E tenho pelo menos uns 20 projetos de coisas que eu gostaria de fazer sendo meio tocados, ou pelo menos pensados de cada vez. Eu morro de medo de não ter trabalho, mas se todos os projetos que eu tenho derem certo eu tenho trabalho garantido para os próximos 50 anos. Só com os projetos que eu já quero, sem entrar mais nada. Capítulo XLIII Terceiro Ato Nesses últimos dez anos morreu o meu pai, morreu a minha mãe e isso foi muito forte para mim, como experiência. Eu senti que as coisas acabam. E que um dia eu também vou morrer. E agora, de vez em quando, eu penso nisso. Então há três anos comecei a fazer análise para poder entender melhor as coisas, para ver se fico mais suportável para as pessoas. Meu filho João tem dois anos. Ele é uma bênção, foi um prêmio que eu ganhei, mas ele me mostra mais a minha idade do que qualquer outra coisa. Ele não me faz sentir mais jovem, ao contrário, ele me faz ter a idade que eu tenho mesmo. Tem gente que pergunta: É seu neto? Tem gente que diz: Está curtindo uma de pai-avô? Não tem nada de mais nisso, mas é um fato. Quero ver meu filho crescer, mas isso também me dá uma certa ansiedade, espero merecer ver meus filhos sendo felizes e crescendo e fazendo suas vidas. Espero que eu tenha o reconhecimento pelos meus méritos em todos os níveis. Isso é bastante cristão, mas é assim que eu penso. Eu tenho muita religiosidade, mas ao mesmo tempo sou absolutamente materialista. Sou um materialista que reza. Acho que nada substitui a reza. Ave Maria, Pai Nosso, Salve Rainha. São as rezas católicas que eu aprendi, que, se eu tivesse sido budista, seriam budistas, eu não preciso mudar isso. Quando o desespero baixa, não tem razão que segure, você precisa rezar, porque você não tem mais nada a fazer. Também acho que é muito mais interessante pensar que vai haver um lugar aonde nós vamos nos encontrar todos depois e onde eu vou rever meus antepassados. Por que não? Eu sei que nós somos matéria que se dissolve no ar, mas e daí? Esses átomos podem se encontrar numa outra dimensão. E eu chamo todo mundo, meu preto velho, todos os santos, meu pai, minha mãe, minha avó, meu avô, meus irmãos que já foram, até o Adilson, o Chiquinho Brandão, eles também podem me auxiliar de alguma maneira. Adoro aquela canção que cantava na igreja: Com minha mãe estarei, na santa glória um dia, junto da Virgem Maria, no céu triunfarei, nó céu, no céu, com minha mãe estarei... Quer coisa melhor? Eu acho que cultuar a memória das pessoas é muito importante, eu sou o guerreiro que quer o reconhecimento de sua tribo, que vai e faz conquistas, mas depois volta e quer ser reconhecido. Eu sou assim. Uma vez eu quis fazer uma praça em Sorocaba para o diretor de teatro Adhemar Guerra (a pracinha está lá, quase na frente da igreja de Nhô João), e um jornalista da cidade escreveu uma matéria dizendo: Que cara estranho! O que é que ele quer? Só fazer uma praça para o Adhemar Guerra? Talvez ele esteja também querendo garantir uma praça para ele. E eu pensei: É isso mesmo. Ele pensou que me ofendeu, mas não, ele conseguiu ver além. FIM Cronologia TV Novelas 1977 • Os Imigrantes de Benedito Ruy Barbosa e Renata Pallotini - TV Bandeirantes 1979 • Como Salvar Meu Casamento de Edy Lima e Carlos Lombardi – TV Tupi 1983 • Maçã do Amor de Wilson Filho – TV Bandeirantes 1986 • Carmem de Gloria Perez - Rede Manchete 1984 • Transas e Caretas de Lauro Cesar Muniz - TV Globo • Vereda Tropical de Silvio de Abreu - TV Globo 1985 • De Quina Pra Lua de Alcides Nogueira - TV Globo 1986 • Hipertensão de Ivani Ribeiro – TV Globo 1989 • Tieta de Dias Gomes e Aguinaldo Silva - TV Globo 1992 • Pedra Sobre Pedra de Aguinaldo Silva - TV Globo 1993 • Mulheres de Areia de Ivani Ribeiro – TV Globo 1995 • A Próxima Vitima de Silvio de Abreu – TV Globo 1996 • O Fim do Mundo de Dias Gomes - TV Globo 1997 • A Indomada de Aguinaldo Silva - TV Globo 1999 • Força de Um Desejo de Gilberto Braga e Alcides Nogueira - Globo 2001 • O Clone de Glória Perez – TV Globo 2002 • Desejos de Mulher de Euclydes Marinho – TV Globo 2004 • Metamorphoses produção Casablanca – TV Record Minisséries 1994 • Incidente em Antares de Erico Veríssimo - TV Globo 1995 • Engraçadinha de Nelson Rodrigues - TV Globo • Malhação – TV Globo 1999 • Luna Caliente de Jorge Furtado - TV Globo • Chiquinha Gonzaga de Lauro Cesar Muniz - TV Globo 2001 • Os Maias de Eça de Queiroz, adaptação de Maria Adelaide Amaral - TV Globo Especiais de TV 1991 • Os Homens Querem Paz TV Globo 1994 • O Coronel e O Lobisomem José Candido de Carvalho - TV Globo • A Comédia da Vida Privada de Luis Fernando Veríssimo - TV Globo 1995 • O Engraçado Arrependido de Guel Arraes - TV Globo 2000 • Brava Gente Diversos - TV Globo • Um Anjo Trapalhão de Renato Aragão – TV Globo 2001 Teatro Ator em Peças Teatrais 1968 • O Rapto das Cebolinhas de Maria Clara Machado - direção de Rubens Falcone • Baco e a Orgia dos Tempos de Roberto Gil Camargo 1969 • Os Tambores de Roberto Gil Camargo • Os Servos da Gleba de Roberto Gil Camargo 1970 • A Entrevista de Jean Claude Von Italy - direção Elvira Gentil 1971 • O Pagador de Promessas de Dias Gomes - direção de Cesar Oliveira 1972 • O Boca de Ouro de Nelson Rodrigues - direção de Emilio di Biasi • Nossa Cidade de Thornton Wilder - direção de Silney Siqueira 1973 • O Inspetor Geral de Nicolai Gogol - direção Myrian Muniz e Silvio Zilber • Rasto Atrás de Jorge Andrade - direção Jonas Bloch 1974 • O Doente Imaginário de Molière - direção Antonio Mercado Netto • Fora , Diante da Porta de Wolfgang Borchert - direção Fausto Fuser • Victor, ou As Crianças no Poder de Roger Vitrac - direção de Celso Nunes 1977 • Os Iks de Peter Brook e Jean Claude Carriere – direção de Celso Nunes 1978 • O Processo de Franz Kafka - direção de Celso Nunes 1979 • A Vida é Sonho de Calderón de La Barca - direção Celso Nunes 1989 • Aurora da Minha Vida de Naum Alves de Souza 1992 • A Fera Na Selva de Henry James - direção Luiz Arthur Nunes 1993 • Viagem a Forli de Mauro Rasi 1998 • O Inimigo do Povo de Henrik Ibsen - dir. Domingos de Oliveira 2001 • O Homem Que Viu o Disco Voador de Flávio Márcio - direção Aderbal Freire-Filho 2004 • Como Aprendi a Dirigir um Carro de Paula Voguel - direção de Felipe Hirsh Diretor de peças teatrais 1977 • Cerimônia Para um Negro Assassinado de Fernando Arrabal 1979 • Na Carrêra do Divino de Carlos Alberto Soffredini 1978 • Strip-Tease de Slavomir Mrozek • O Anti-Nelson Rodrigues de Nelson Rodrigues 1984 • Feliz Ano Velho de Alcides Nogueira 1985 • Assim é, se lhe Parece de Luigi Pirandello 1989 • O Amigo da Onça de Chico Caruso 1998 • Três Maneiras de se Dançar o Tango de Denise Bandeira 2004 • Porque você nunca disse que me amava? de Vera Karan • A Grande Familia - TV Globo Cinema Ator em filmes 1977 • Revolução de 1932 de Nuno Cesar de Abreu 1978 • Jogo Duro de Ugo Giorgetti 1985 • Fonte da Saudade de Marco Altberg 1986 • Dedé Mamata de Dodô Brandão 1987 • Besame Mucho de Francisco Ramalho Jr. 1989 • Doida Demais de Sérgio Rezende 1990 • Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia de Roberto Pires 1993 • Lamarca de Sérgio Rezende 1997 • O Amor Está No Ar de Hamilton de Almeida 1999 • Guerra de Canudos de Sérgio Rezende 1999 • Oriundi de Ricardo Bravo • Quem Matou Pixote de Jose Joffily 2000 • Mauá, O Imperador e O Rei de Sérgio Rezende • Ed Mort de Alain Fresnot • O Toque do Oboé de Claudio MacDowel 2002 • Querido Estranho de Ricardo Pinto e Silva 2003 • Chatô, o Rei do Brasil de Guilherme Leme (inédito) Co-Diretor e produtor de cinema: 2003 • Cafundó (inédito) Prêmios 1971 • Prêmio Governador do Estado de Melhor Ator Teatral - SP 1975 e 1984 • Prêmio Governador do Estado de Melhor Diretor Teatral - SP 1977, 1979 e 1983 • Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de Melhor Diretor Teatral - SP   1977, 1980 e 1983 • Prêmio Mambembe de Melhor Diretor Teatral - SP 1984 • Prêmio da Associação Paulista de Produtores Teatrais de Melhor Diretor e Melhor Iluminador – SP 1991 • Prêmio Shell de Melhor Ator Teatral - RJ 1979 e 1983 • Prêmio Molière de Melhor Diretor Teatral - SP 1993 • Prêmio Cidade de São Paulo de Melhor Ator de Cinema – SP 1997 • Prêmio Contigo de Melhor Ator Cômico de Novela – SP 1997 • Prêmio Oscarito do Sindicato dos Artistas de Melhor Ator – SP Introdução   Conheço o Paulo Betti há 20 anos. Foi em 1984, quando a peça Feliz Ano Velho estreou no Centro Cultural São Paulo, muito perto da casa dos meus pais. Eu e minha turma inseparável resolvemos assistir no primeiro dia. E no segundo. E no terceiro. E no quarto... A turma, no caso, era formada por mim, minha irmã, Ana, e nossos melhores amigos do começo da adolescência, o Dênis e a Paula (o Dênis é meu melhor amigo até hoje; a Paula ganhou uma meia dúzia de concorrentes; e irmã é irmã). Assistimos um monte de vezes à peça, que depois mudou de teatro e foi para o Auditório Augusta (onde a hoje VJ da MTV e cineasta Marina Person ficava muitas vezes na bilheteria – sua mãe era a dona do teatro). O Feliz Ano Velho fez nossa simpatia pelo teatro virar paixão. Aqueles seis atores – Marcos Frota, Marcos Kaloy, Adilson Barros, Denise Del Vecchio, Cristiane Rando e Lília Cabral – nos fizeram rir, chorar e muitas vezes dar a fala baixinho junto com eles. Nós vimos tantas, mas tantas vezes a peça que decoramos todo o texto do Alcides Nogueira. E as músicas que a Tunica escolheu, assim como as composições inéditas da peça. E o Paulo Betti era o diretor, que ia ao teatro e nos deixava morrendo de vergonha. Ele sempre assistia da última fileira, depois reunia os atores e dava dicas de como fazer uma cena ser mais engraçada, como um gesto poderia dar a intenção exata de uma fala e outras coisas assim. Depois de um tempo, ele nos conheceu melhor e gostou de nós, aí perdemos a vergonha e ficávamos próximos dos atores vendo-o dirigi-los. Ficávamos maravilhados com aquilo, era uma aula, um curso avançado de direção e de interpretação. Paulo Betti nos ensinou como um segundo a mais pode destruir uma piada, assim como pode fazer uma coisa sem importância ter a maior graça do mundo. Paulo Betti sabe essas coisas, parece que entende o que cada uma das pessoas da platéia vai sentir quando uma determinada cena for apresentada. E ele nos incentivava a ver outros espetáculos, a conhecer outros atores, outros diretores, outras companhias de teatro. E muitas vezes até arranjava convites para a gente – um bando de adolescentes duros, mas que tinha conquistado o coração do Marinho, o produtor de Feliz Ano Velho, que nos deixava entrar de graça no teatro. Nossa paixão pelo teatro era tão grande que eu achei, por um momento, que queria ser atriz. Logo eu, a mais jeca da turma, que morro de medo de falar em público, resolvi fazer um teste com o Antunes Filho. Eu e o Dênis escolhemos uma cena, ensaiamos e – milagre – passei no teste. Eu adorava aquela turma do teatro do Antunes, era um povo divertido, engraçado, meio hipongo. Só não gostava quando tinha de atuar, ainda mais na frente dos outros. Meus pais também ficavam preocupados, já que os ensaios começavam às 19h30 e só acabavam às 23 horas – eu ia para a casa de metrô, aos 14 anos, com a mochila agarrada no peito de medo de assalto. Uma noite, eles foram assistir à peça Com a Pulga Atrás da Orelha, em que atuava a Eliane Giardini (nós já tínhamos visto e recomendamos para os dois). No intervalo, encontraram o Paulo Betti no foyer do Procópio Ferreira e se apresentaram a ele. Os três ficaram conversando horas, meus pais nem entraram para ver o segundo ato. No dia seguinte, o Antunes me dispensou. Eu nunca soube exatamente o que tinha acontecido, nem se o encontro da noite anterior tinha a ver com o fato de ele não me querer mais na companhia. Até que, no começo do ano passado, quando reencontrei o Paulo Betti via Marcelo Paiva (que na época do Feliz Ano Velho não ia nada com a cara dos quatro pirralhos que não saíam da platéia da peça baseada no livro dele, mas depois acabou ficando nosso amigo), ele confessou que tinha tudo a ver com o fato de o Antunes ter me botado para correr. Ele disse para os meus pais, que já estavam de cabelo em pé: “Vocês tem de ir lá e dizer para o Antunes que tem gente de olho nessa menina”. Os dois nunca confessaram, mas eu tenho certeza de que eles não foram do teatro direto para casa naquela noite. E que alívio! Não nasci para ser atriz, definitivamente. O lugar em que eu amo estar é na platéia. Por isso, acho que essa biografia é quase como uma homenagem ao Paulo Betti. Só não sei se uma homenagem como esta conta, afinal eu aproveitei o gancho de fazer esse livro para saber de todos os bastidores da peça que mudou um pouco a minha vida. Para melhor, claro. Teté Ribeiro Capítulo I Ser Ator Não sei dizer porque virei ator. Acho que é uma opção que mistura a vaidade com a insegurança. A vaidade faz você subir num banquinho, num caixote e ficar lá, fazendo umas coisas para as pessoas prestarem atenção. E a insegurança o empurra para a frente, o faz estudar, tentar melhorar, tentar se aprimorar. Comecei a fazer teatro quando era menino, tinha uma necessidade de representar, queria me destacar, expressar alguma coisa. Além disso, fazer teatro compensava minhas notas baixas de português, eu decorava um poema bem longo e declamava na frente da classe, aí não precisava me sair bem em gramática, por exemplo. A professora acabava me dando uma nota que era suficiente para passar de ano. E eu escrevia razoavelmente bem, porque lia muito. Então sempre tirei sete, nunca fui um aluno que tirasse notas muito altas. Mas era vaidoso no sentido de querer ampliar as fronteiras do mundo onde vivia. De certa maneira, o que me fez virar ator foi a possibilidade de poder trabalhar com a imaginação e sair dos limites de onde estava. Minha mãe e minha avó me influenciaram muito, tinham uma intensidade dramática muito grande, coisa dos italianos, e acho que a idéia de ser ator pode ter vindo um pouco daí também. Minha avó contava histórias hilariantes, comoventes, sobrenaturais. Lendo Fábulas Italianas, do Ítalo Calvino, notei que algumas eram as histórias que a minha avó contava. Meus amigos viviam desesperados por causa delas. Quase não tinha luz elétrica, era tudo muito escuro, a gente convivia intensamente com a idéia do sobrenatural. Isso quase me matava de medo. Minha mãe contava histórias de sua avó, já morta, que vinha à noite lhe pentear os cabelos. Toda vez que uma porta se abria com um golpe de ar, minha mãe dizia: Entre; era de arrepiar. A minha avó tinha vindo da Itália prometida para o meu avô. Eles vieram juntos num navio chamado Michele Lazzaroni, que naufragou na volta. Eles enfatizavam muito isso, diziam: A gente podia ter morrido, você podia não ter existido. A minha mãe também era muito dramática, ela dizia Você me mata! Você quer me matar! Era tudo bem teatral. Capítulo II Família Minha situação familiar era muito complicada, muito amorosa, afetiva, intensa, forte, mas extremamente problemática. Não que a pobreza fosse a maior dificuldade, nós éramos pobres, tínhamos uma casinha pequena, com apenas cinco pontos de luz, mas tínhamos galinhas, tínhamos porcos. Eu fui um filho temporão. Quando nasci, minha mãe tinha 45 anos, a diferença entre o meu irmão mais próximo e eu é de 10 anos. Hoje ele tem 62 anos e eu 52. E os outros irmãos são todos mais velhos. Minha mãe teve 15 filhos, sobreviveram sete. Oito morreram em trabalho de parto, ou perto do parto, ou logo depois que nasceram. Minha mãe teve quadrigêmeos e perdeu, depois ela teve gêmeos que morreram, assim ela perdeu seis, depois mais dois, um de cada vez. Mas ela segurou duas meninas, gêmeas e teve mais quatro meninos, um de cada vez. Nasci em Rafard (interior de São Paulo), num sítio. Meu irmão Nico foi a cavalo para Capivari buscar o médico quando minha mãe, dona Adelaide, entrou no terceiro dia de trabalho de parto. Um sofrimento danado. Já tinha uma parteira lá, tentando mil coisas, colocando ela agachada em cima de uma bacia com água quente, mas não acontecia nada. O dr. Faria, que veio em um carro amarelo, foi a salvação. Meus irmãos e minhas irmãs ficaram rezando, ajoelhados embaixo da mesa, enquanto o médico fazia o parto. Nasci e logo mijei para o alto, nas minhas irmãs, que contam isso morrendo de rir. Minha mãe tinha o maior orgulho de nunca ter dado um filho, o que não seria incomum para uma família tão pobre quanto a nossa e com tantos filhos para criar. Os patrões da fazenda onde o meu pai cuidava da roça sempre pediam, mas ela não dava de jeito nenhum. Como a prole era grande, eles achavam que não faria diferença ela dar um. Minha mãe e meu pai fugiram para casar. Ele a levou na garupa de um cavalo. Isso era muito comum naquela época, os noivos fugiam quando os pais não permitiam o casamento. Aí casavam escondidos, consumavam o matrimônio e quando voltavam os pais tinham que aceitar. Meus avós maternos não queriam o casamento, eles tinham um mau pressentimento em relação ao meu pai. Não era nada relacionado a dinheiro, classe social ou ascendência, era todo mundo pobre e descendente de italianos. Meu pai se chamava Ernesto, que significa combatente leal. Tenho mania de saber o que os nomes significam. O nome da minha mãe, Adelaide, quer dizer aquela que tem o semblante nobre. Meu pai era esquizofrênico.Uma vez eu li isso num atestado médico e fiquei chocado. Percebi a gravidade da doença numa reportagem que o jornalista Audálio Dantas fez para a revista O Cruzeiro, em que apareciam os doentes mentais nus no pátio do Franco da Rocha, um dos manicômios onde meu pai tinha sido internado enquanto eu era garoto. Quando virei adulto, comecei a falar muito sobre a doença de meu pai. Falar me ajudou a tentar entender melhor o problema que ele tinha. Meus avós maternos, João e Celeste, também moravam com a gente. E minha mãe era uma mulher velha. Imagine, quando eu comecei a me dar conta da vida, com uns cinco ou seis anos de idade, minha mãe tinha 50 anos. E 50 anos, para uma camponesa que tinha tido 15 filhos, nos anos 50, era idade de uma mulher bem velha. Ela era analfabeta, minha mãe nunca foi para a escola. Era muito inteligente. Sabia contar dinheiro, ninguém a passava para trás. E gostava de me ver lendo. Às vezes eu estava lendo um gibi e ela dizia para as minhas irmãs: Não incomodem que ele está estudando. Ela me fazia ler as ladainhas para ela quando fazia promessa. E prometia fazer uma trezena para Santo Antônio, aí quando acabava a trezena ela emendava com outra trezena, aí com outra trezena. Uma trezena é uma série de 13 dias em que você faz orações, e ladainha é uma reza em que um puxa e o outro responde. Então eu lia: São Benedito, ela respondia: Rogai por nós, e assim por diante. Eu já era adolescente, ou quase adulto, estava namorando, saía com as garotas, aí voltava pra casa, sentava com a minha mãe e lia a trezena para ela. Às vezes voltava tarde da noite, tinha ido namorar, e minha mãe e minha avó estavam me esperando no portão, debaixo de chuva: Você vai acabar matando a gente! Haja culpa! O meu pai fez quatro meses de escola rural, ele sabia ler, sabia escrever, lia jornal. Era um homem muito inteligente. E amoroso. Falava pouco e passava grande parte do tempo em casa dopado, porque minha mãe pingava o remédio, o Neozine para ele tomar, com o conta-gotas, ela contava até 30, sobrava outro tanto dentro do conta-gotas e ela despejava tudo no copo. Quando a gente reclamava, ela dizia: É melhor que ele durma. Depois ela se queixava que ele não ajudava em casa, que a cerca estava quebrada e ele tinha que consertar. Essas coisas de casal. Depois de velhos, meu pai, minha mãe e também minha avó se converteram à igreja da Congregação Cristã no Brasil. Meu pai adorava cantar os hinos. Eu ficava impressionado com a banda musical que é o centro dessa igreja. A importância da banda. Quando você vê aquelas pessoas vestindo ternos e carregando instrumentos na beira da estrada ou na periferia, pode ter certeza que tem uma Congregação por perto. Uma maravilha. Todos cantavam os hinos acompanhados por uma banda com 60 instrumentos. Meu pai adorava soltar a voz naquele grande coro. Minha avó foi batizada pela Congregação Cristã em um rio. Lembro dela voltando puta da vida com o pastor que enfiou a cabeça dela dentro d’água e quase a afogou. Ela dizia que o pastor se animou e deu um cardo nela. O pessoal da Congregação não cultua imagens e era muito rigoroso com relação a isso. Minha mãe, que também foi batizada no rio, nem ligava e mantinha suas imagens, imagina se ela ia esconder seu preto-velho Nhô João de Camargo! Mas uma das minhas irmãs foi fundo nas regras de Congregação e, quando ela ia visitar a nossa mãe, ela era obrigada a esconder tudo. E eu queria que ela mantivesse as imagens, implicava quando ela escondia para agradar minha irmã. Coitada, ficava num fogo cruzado. Do meu avô, João, eu me lembro muito pouco. Era um homem delicado. Trabalhava na roça e tinha um ranchinho de sapé, com uma cama tosca feita de galhos em forquilha, onde ele fazia a sesta. Na frente desse ranchinho ele cultivava um jardim de cristas-de-galo e outras flores. Ele se preocupava em ter um jardim, no meio da roça, e eu adorava isso nele. Eu ia para lá nos períodos de colheita. A família toda ia para ajudar. Minha mãe levava todos os lençóis de casa para colocar os grãos de arroz em cima e bater sem que eles se perdessem. Lembro dos lençóis como se fossem verdadeiras velas enfunadas pelo vento. Eu ia com minha bicicletinha Caloi, aro 18, pneu com câmara e freio na mão, uma raridade que ganhei de minha mãe. Ela comprou de segunda mão. Eu fui com ela buscar. A bicicleta estava com o garfo da frente quebrado, mas a gente levou no Seu Neves para fazer a solda. A operação foi fantástica. A máquina de solda soltando aquelas faíscas, o Seu Neves de máscara no meio das fagulhas e minha bicicleta sendo consertada. Foi o meu melhor presente na infância e eu sabia exatamente o valor que tinha aquele brinquedo, porque o vi sendo arrumado. Andava às vezes preocupado com aquele garfo soldado, tinha medo que se quebrasse num buraco. Por ser temporão eu fui muito protegido pela minha família. Mamei no peito da minha mãe até os sete anos de idade! E isso não é tão raro assim, já encontrei outras pessoas que também mamaram bastante. Eu me lembro que já era um menino, ia andando com a minha mãe até o centro espírita que ela freqüentava, do Zezinho Madureira (minha mãe era muito religiosa, mas nunca foi fiel a uma só crença), e ficava olhando as pessoas, ouvindo a Ave Maria de (compositor francês Charles) Gounod tocando numa vitrolinha e mamando no peito da minha mãe. Mais tarde notei que isso não fez mal nenhum para os seios de Dona Adelaide. Quando ela estava bem velhinha fui levá-la para fazer uma ultra-sonografia e pude ver os seus peitos que ainda estavam muito bonitos. Quando meu pai morreu apareceu um antigo pretendente da minha mãe. Eu aprovei. Meus irmãos ficaram um pouco grilados e ela, que estava bem a fim dele, desistiu. Ela já estava com 80 anos. Quando ela morreu, esse senhor ficou a noite inteira no velório. Achei lindo aquilo. A minha família não era uma família triste, era pobre, mas não triste. O problema mais grave era o meu pai. Todo ano era internado, sempre na mesma época, próximo do final do ano. Ele começava a perder o pé da realidade, aos poucos isso avançava a ponto de chegar o momento que tínhamos que interná-lo. Daí vinha a polícia, porque não tinha internação normal, com ambulância, diretamente para o hospital. A gente tinha que chamar a polícia e fingir para ele que estava tudo bem, tínhamos que mentir até chegar a hora de botar a camisa de força nele e levá-lo, primeiro para a cadeia e depois de uma batalha incrível da minha mãe, para o sanatório. Isso era um drama, a minha mãe se desesperava e durante uns meses a família toda ficava muito abalada. O manicômio de Sorocaba se chamava Associação Protetora dos Insanos. Estava escrito isso na porta, era muito impressionante. E depois tinha todo aquele negócio do pai não estar em casa, daí a gente ia visitar no domingo, ele no meio daquela multidão de doentes com o cabelo raspado e todo ferrado porque na época os tratamentos eram extremamente violentos. Às vezes ele pegava piolho, era muito doloroso, deprimente. Eu não posso reclamar, todo mundo tem seus problemas na infância, mas esse do meu pai era especial, e ainda tinha o fato da minha mãe ser velha e a gente morar com a minha avó e o meu avô, que eram mais velhos ainda. Com 10 anos de idade bateu pra mim a questão da morte como uma coisa muito forte, porque morreu o meu avô João. Eu estava jogando futebol na rua com os meus amigos e mandaram me chamar porque o meu avô não estava legal. Aí eu voltei para casa e vi o meu tio Bepe no quarto rezando, com o meu avô deitado segurando uma vela. Pouco depois ele morreu. Aquele lugar da casa ficou muito marcado para mim durante todo o tempo que eu morei lá, até os 21 anos. O lugar físico onde o meu avô morreu. Era um quarto escuro, sem janelas. Ali também eram guardadas as ferramentas. Numa caixa tinha uma pedra pesada, polida como um machado indígena, que meu avô dizia ter caído do céu, uma pedra de raio. Meu avô foi velado em casa, na época se costumava velar as pessoas em casa, então a sala de estar da casa também ficou marcada como o lugar onde tinha sido velado o meu avô. Meus avós paternos eram de Treviso, perto de Veneza, e meus avós maternos, esses com quem a gente morava, de Bergamo. Minha avó Celeste, que ficou viúva, morreu muitos anos depois. Ela foi ficando cada vez mais pequenina, mais encolhida, até que no final da vida engatinhava. Ela ficou bem caduca e urinava em pé no jardim na frente de casa, chupando o dedo polegar. Eu morria de vergonha daquilo, não queria que meus amigos vissem de jeito nenhum. Minha avó parecia um personagem de Cem anos de solidão, do Gabriel Garcia Marques. Quando ela ainda era forte e lúcida, mas já bastante velhinha, me pedia para ajudá-la a matar os porcos. Eu tinha que segurar a pata do bicho bem aberta, ele deitado de costas, enquanto ela enfiava o punhal procurando o coração. Eu tinha horror daquilo, e ela dizia que o porco estava sofrendo por minha causa, porque como eu tinha pena ele demorava a morrer. Depois a gente pelava o suíno com água quente no quintal e ela mostrava, orgulhosa, o coração atingido pela faca. As tripas ela usava para fazer lingüiça; depois, era tudo pendurado sobre o fogão de lenha para defumar. Capítulo III Gente Humilde A gente morava em Rafard, uma cidade pequenininha que fica no triângulo entre Sorocaba, Piracicaba e Campinas. Hoje deve ter uns 10 mil habitantes, e é onde nasceu a pintora Tarsila do Amaral. Aí uma das minhas irmãs foi trabalhar em Sorocaba e virou enfermeira, no Hospital Santo Antônio, ligado às Indústrias Votorantim. Ficou um ano fora. Quando ela voltou para Rafard, percebeu que nossa família inteira tinha bócio, que é uma doença na tireóide que causa uma inflamação, um papo. Era a água que causava isso, problemas com absorção e fixação do iodo, está no dicionário. Minha irmã conta que foi todo mundo esperá-la na porteira do sítio onde morava e ela viu que nós éramos papudos, todos, e ela sacava, porque era enfermeira. Então ela decidiu trazer a família inteira para Sorocaba, e pouco a pouco todos os meus irmãos foram se encaixando nas Indústrias Votorantim, trabalhando como operários. Minha mãe virou empregada doméstica na família de Dona Amélia Leão, uma família ilustre, que deve ter entendido o desejo de minha mãe de me dar uma educação formal mais sólida. Ela, que era analfabeta, sabia mais do que qualquer um a importância disso. Às vezes fico pensando como deve ser difícil ser analfabeto. Como o tempo deve ser diferente, como as coisas devem parecer tão complicadas. Andar numa rua e não saber nada do que está escrito nas placas. Uma das lembranças mais gostosas da minha infância é de ir para a escola de mãos dadas com a minha mãe, de uniforme novo, lendo as placas para ela. Minha mãe gostava também de ir ao cemitério. Um de seus programas prediletos. No da Saudade, em Sorocaba, tem uma frase curiosa escrita do lado de dentro do portão principal: Eu fui o que tu és, tu serás o que eu sou. Durante toda a minha infância e minha adolescência não tinha geladeira em casa. A primeira geladeira da minha mãe fui eu que comprei, quando já morava e trabalhava em São Paulo. Também não tinha portas internas na nossa casa, portanto não havia privacidade nenhuma. Aquelas casas antigas de pobre não têm porta e não têm forros, então o som passa por cima, eu ficava sentado em um cômodo e escutava tudo que acontecia no outro. Lembro do barulho do urinol de minha avó no meio da noite. O chão era de cimentão vermelho que minha mãe insistia em fazer brilhar na base do escovão, às vezes pedindo minha ajuda. Eu dormia numa cama Patente, uma caminha estreita que hoje em dia só se usa em cenário das peças do Plínio Marcos. Meu pai e minha mãe dormiam numa cama de casal ao lado, no mesmo quarto. Durante toda a minha infância e adolescência, até ir para São Paulo para fazer a EAD (Escola de Arte Dramática), eu dormi com meu pai e minha mãe, no mesmo quarto. E nunca vi nem percebi nada, não sei se os meus pais ainda transavam porque eles eram bem mais velhos, eu nem pensava nisso, mas também nunca notei nenhum movimento. A maior influência na minha família era a religiosa. Como o meu pai tinha esse problema, a esquizofrenia, a minha mãe freqüentou todo tipo de religião que pudesse ajudar a cuidar dele. E acabou virando benzedeira, ela benzia pessoas na minha casa. Vinha um monte de gente receber os passes dela, e ela também benzia quebrantos, benzia caxumba, benzia mau-olhado, benzia ar. Ar é uma espécie de enxaqueca, a pessoa tem muita dor de cabeça, e se dizia que pegava o ar com um reflexo de um raio de luz num espelho que atingia seus olhos. Minha mãe benzia levando a pessoa para a frente de casa no pôr-do-sol e ela pegava um lencinho rendado, um copo d’água e punha o lenço em cima da cabeça da pessoa, em cima do copo d’água. O copo estava cheio de água e o lenço em cima, tapando o copo. Depois ela virava isso tudo com um golpe preciso e equilibrava sem a água sair de dentro do copo no cocuruto da pessoa. Ela colocava os dois dedos segurando o copo emborcado na cabeça do paciente e rezava. Às vezes a água borbulhava dentro do copo, como se fosse gaseificada. E isso se repetia durante dias, até o fiel não sentir mais aquela dor de cabeça. Apesar de tudo, tive uma infância feliz. Nossa rua era de terra e a gente soltava balão, empinava papagaio, rodava pião. Cada coisa tinha sua época, cada brincadeira tinha seu tempo no ano. Ninguém fazia a brincadeira fora de época, era um mico que a gente não pagava. Pular cordas, a vila inteira pulando corda e cantando. E a gente brincava muito de esconde-esconde: Balança caixão! Balança você! Três tapas na bunda e vai se esconder E tinha estilingue, que a gente mesmo fazia. A única vez que acertei um pardal no bambuzal, no fundo do quintal de casa, e peguei o passarinho agonizando na minha mão, o coraçãozinho ainda batendo, parei de usar o estilingue. Mas continuei fazendo diversos tipos engenhosos de alçapões, tentando pegar os passarinhos sem machucar. No fundo do quintal de casa passava um córrego, um afluente do riacho da Água Vermelha. Eu brincava ali, fingindo que era uma praia. Também colecionava figurinhas e jogava bafo, fazendo as figurinhas virarem batendo com a palma da mão. Os meninos iam atrás da Dona Ana, uma negra maravilhosa que torrava o amendoim que seu marido, o seu Antenor, vendia na praça principal. Dona Ana era avó de meus amigos João Pelé e Bacalhau. Ela comprava figurinhas a granel, colecionava para ganhar os prêmios e jogava fora as que não eram carimbadas ou difíceis, aí ficava tudo para a gente. E nós ainda pegávamos as balas que vinham dentro das figurinhas enroladas. Eu lia também a Coleção Saraiva, que trazia histórias de Machado de Assis e José de Alencar. As capas eram fabulosas, do Nico Rosso, um desenhista fantástico. Dava gosto ler aqueles livros com aquelas capas. Todo mês vinha o homem de terno entregar o livro. Ele tinha uma maleta parecida com a de um médico. De dentro saíam os volumes envoltos numa pequena cinta de papel que anunciava as próximas atrações. Outra coisa que marcou a minha infância eram as cartas que meu amigo César recebia do irmão mais velho, João, que morava no Rio de Janeiro. Eu sonhava com aquele endereço no remetente: Av. N. S. de Copacabana, Rio de Janeiro. Capítulo IV Vila Leão A Vila Leão, o bairro onde eu morava, era uma festa permanente, e não só na época de São João quando as ruas ficavam cobertas com as brasas das fogueiras e o céu colorido de balões. Aos domingos eu trabalhava carregando carrinhos de terra numa obra caseira para ganhar uns trocados para ir à matinê. Os garotos levavam gibis para trocar. Empilhávamos nossas coleções na porta do cinema. Meus prediletos eram os do Fantasma. O bairro era predominantemente habitado por negros, e o contato e a intimidade com os negros é uma coisa muito importante na minha vida. Noventa por cento dos meus amigos de infância eram negros. A minha família, de imigrantes italianos, ficava rodeada de escolas de samba e de famílias de negros evangélicos. E minha mãe freqüentando centros espíritas, terreiros de umbanda, benzendo na porta da minha casa, eu sendo benzido pela minha mãe e por outros curandeiros. Tinha quatro ruas no meu bairro e quatro benzedores, cada esquina tinha um, ninguém ia ao médico, ia benzer. Sorocaba tinha três escolas de samba — Terceiro Centenário, Vinte e Oito de Setembro e Clube dos Trinta — e as três saíam do lugar onde eu morava, do meu bairro, que no fundo eram apenas quatro ruas que se cruzavam, como em um jogo da velha. E ficava num lugar mais baixo que o resto da cidade, era como um gueto. Um amigo meu do bairro, o João Lins de Albuquerque, que hoje trabalha como chefe do serviço de língua portuguesa da Rádio da ONU, que saía do bairro vestido de terno, ia lá para o alto da cidade, onde as ruas eram calçadas de paralelepípedos, e quando acabava a rua de terra e começava a rua de pedra, ele tirava um pano de um bueiro e dava uma limpada no sapato. Eu lembro disso como se fosse hoje, mas quando falo isso para ele, ele diz: É mentira, você é um doido, nunca viu isso. Pode até ter algumas histórias que eu inventei, é normal, mas por que é que eu ia inventar isso? E tinha os irmãos Bedenego, eles eram encanadores e tocavam gospel lindamente. Nunca esqueço deles porque eram tão fortes que não precisavam de chave de grifo para desatarraxar os canos. Eles chegavam lá e tchum, tchum, soltavam a torneira com a mão. Aquilo que a gente estava tentando fazer há dias, porque a gente só chamava encanador depois de tentar muito, aí chegavam os irmãos Bedenego, que tinham chave de grifo, mas abriam sem precisar dela. Quase todos os moradores estavam envolvidos com o samba e ensaiavam todo domingo com tamborins de couro de gato mesmo, era tudo primitivo, pé no chão, samba-de-roda e tal. E rolava tudo na frente da minha casa. Tinha um cara na Vila Leão, o Miroldo, que era um craque no futebol e no samba. Ele era famoso no bairro por isso. Era meu amigo, um pouco mais velho que eu, negro retinto, cheio de charme. Foi ele que me mostrou a música dos Beatles. Sabia tudo, o Miroldo. Em um dos carnavais, acho que no de 1968, o Miroldo foi o grande sucesso no palco-avenida que se armava no centro da cidade. Ele desfilou todo de branco, com um chapéu escrito black power. Era uma figura carimbada em Sorocaba. Uma vez ele estava jogando uma pelada e foi visto por um olheiro, que o convidou para treinar com o time do Bangu, no Rio de Janeiro. E deu um drible desconcertante no Fidélis, que era lateral da seleção brasileira. Aí o cara ficou puto e por vingança, não permitiu que o Miroldo fosse contratado pelo time. A história era uma lenda na cidade, todo mundo sabia. O Miroldo tinha um estilo espetacular, cheio de ginga, cheio de classe, jogando futebol ou desfilando no samba foi uma das maiores influências artísticas que eu tive. Sempre que faço alguma coisa imitando o Miroldo dá certo! Meu avô trabalhava numa roça de um fazendeiro que era negro. Isso é muito curioso. O dono das terras onde meu avô trabalhava era preto. O nome dele era Achiles Campolin, de apelido Quiló. O bairro que foi construído onde era a fazenda levou o nome dele, e é assim até hoje. É um dos mais elegantes da cidade. Hoje em dia eu passo lá e fico lembrando da rocinha de meu avô. A casa grande era habitada por uma família negra, os donos das terras onde meu avô trabalhava no sistema de meia. O fazendeiro dava as sementes e a terra e as pessoas plantavam e depois davam metade para o dono da terra. Eu via a família, todos muito bem vestidos, saindo num carrão. Minha imagem primeira dos negros é essa, uma família próspera, patrões da minha família. Há pouco tempo eu fui visitar as filhas do seu Quiló, Iracema e Ondina, naquela mesma casa grande, que eles conservaram. Elas com mais de 80 anos, lúcidas, me abraçaram emocionadas e disseram: Minha família tratava muito bem a sua. Não é gozado? Capítulo V Formação Eu fiz um pré-primário maravilhoso no Estadão, como era conhecida a principal escola pública de Sorocaba. Foi lá que eu aprendi a importância de escovar os dentes, por exemplo. Aprendi um monte de coisas que me foram muito úteis depois. E tinha os livros, tinha coisas que alimentavam um sonho poético, infantil, de fugir das fronteiras daquela realidade. Depois fiz o primário e um ginásio industrial muito bom, que foi a base para a minha formação. Era o Fernando Prestes, uma escola-modelo, foi superdifícil de entrar. Tinha inglês, um pouco de latim, francês, todas as matérias que eram dadas no ginásio naquela época, mas também noções de marcenaria, eletricidade, entalhamento, fundição, torno, mecânica, desenho industrial. Eu ficava o dia inteiro no ginásio, era um pouco um CIEP (Centros Integrados de Educação Pública, criados durante o governo Brizola, no Rio de Janeiro) da época, a gente entrava de manhã, botava um macacão, trabalhava em alguma coisa, depois tirava o macacão, fazia ginástica, tomava banho, almoçava e depois fazia as aulas normais. Os professores eram maravilhosos. Seu Paulo era o professor de entalhamento em madeira. Ele chupava sorvete na sala de aula, eu morria de rir, não era uma sala de aula normal, era uma oficina de marcenaria. Seu Deluno desenhava na lousa as figuras geométricas com seu guarda pó imaculado, e o Salvador nos fazia correr no pátio nas aulas de educação física, enquanto girava uma bola de basquete equilibrando no dedo indicador. Tinha uma professora baixinha maravilhosa, dona Maria Innez, que dava aulas de canto orfeônico. Ela pedia para os alunos desenharem em cartolinas, fazendo cópias de gravuras, os retratos de grandes compositores. O resultado era horrendo, mas ela falava extasiada do gênio daqueles homens, e a gente morria de rir vendo aquelas figuras deformadas pelos desenhos dos alunos. Dona Geninva me reprovou em Geografia, Dona Ana descobriu meu talento para declamar poesia. Uma escola séria, uma escola-modelo que tive a sorte de freqüentar. Era em plena ditadura. Uma vez o inspetor reuniu todos os alunos no pátio e em altos brados exigiu que cortássemos o cabelo, pois não podíamos ficar parecendo aqueles pederastas da televisão. Só uma pessoa tinha televisão na Vila Leão inteira, era na casa do Toninho Perfume. A gente ia lá de vez em quando assistir algum programa. Os meus irmãos pararam de estudar no primário, porque eles foram criados lá em Rafard, na roça. Eles foram desfavorecidos por isso. Então, de certa maneira, eu ainda tenho um compromisso com relação aos meus irmãos, e talvez essa seja a razão de eu ter feito o Instituto Vila Leão, de Sorocaba, a Casa da Gávea, no Rio. Gosto da idéia de poder proporcionar alguma coisa que eu tive para os outros. Em casa, quando voltava da escola, eu ajudava a minha mãe a passar roupa porque, além de ser empregada doméstica, ela pegava trouxa de roupa dos estudantes de medicina para lavar e passar. Então ela lavava e eu passava. Até hoje sou um ótimo passador de roupa. E eu passava ouvindo rádio, sempre. Lembro direitinho: Barros de Alencar vai apresentar as sete mais do dia, as sete campeãs. Torci para Disparada ganhar o Festival da Canção. Também sintonizava muito uma rádio que tinha abertura em diversas línguas, então era assim: This is the Radio City of New York. Depois: Ici la Radio Francese. E: Signora e signori, qüi parla la Radio e Televisione Italiana. Fiquei fascinado por aprender línguas. Aprendi inglês, um pouco de espanhol, italiano e francês. Eu jogava futebol descalço num campo de terra e pedregulho dos salesianos. Era o projeto social que os padres tinham, inspirado em Dom Bosco. Depois de assistir ao catecismo, onde cantávamos hinos que insistem em permanecer na minha memória, ganhávamos um cartãozinho que no final do mês servia para comprar os produtos do bazar. O bazar acontecia todo mês e vendia umas coisas bem baratas mas que a gente não achava em nenhum outro lugar. Minha avó pedia sempre para levar leite de soja em pó, que era uma novidade na época. Eu comprava, assim como calças jeans desbotáveis, americanas, que vinham doadas pelo programa Aliança para o Progresso, dos EUA. Eu fantasiava que as roupas tinham sido de soldados que haviam sido mortos na Guerra do Vietnã. Meu pé era um cascão, áspero, dava para colocar as chuteiras cravadas na própria sola, de tão grosso que era. Hoje boto o meu filho, João, para andar descalço para ele ficar com o pé grosso também, porque eu acho que é bom. O técnico do meu time de futebol era um homem fantástico, o padre Martini. Ele sabia A Divina Comédia, de Dante Alighieri, toda de cor e falava quatro dialetos italianos diferentes. Como eu era um menininho bonitinho, dentro de um universo de meninos mais maltratados que eu, que tinha dentes e mamava e escovava e tal, o padre Martini me colocou de coroinha. Ele era um homem muito culto, gostava de mostrar filmes para a gente na igreja. Foi aí que eu vi meu primeiro filme brasileiro, O Pagador de Promessas. Vejam como esse padre era esclarecido, exibiu um filme que criticava a intolerância da Igreja. Padre Martini foi importantíssimo em minha formação. Há pouco tempo eu o convidei para benzer o Instituto Vila Leão, na inauguração. Ele já estava bem velhinho, mas foi lá, se emocionou e citou uma frase linda de um poema de Camões: Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Eu tinha um encantamento com a teatralidade do culto religioso que era todo rezado em latim, era bonito. O incenso, os cheiros, os cânticos. Eu sempre lia os textos do evangelho ajudando a missa lá na frente como se fosse um palco. As festas de São João, do Salesiano, eram maravilhosas, ali dancei a quadrilha e me apaixonei platonicamente por uma menina sardenta, linda, chamada Clarice. Capítulo VI Origem do Ator Um dos meus imãos mais velhos foi ator amador em Sorocaba, o Zé. Hoje ele é sapateiro na cidade. Trabalha no centro, perto da estação de trem e é pessoa querida de todos. Ele puxava quadrilhas, me lembro muito dele puxando as quadrilhas: Tour!, Balancê!, Caminho da roça!, Vai chover! Tenho um cunhado que também era ator amador e fez bastante sucesso, o Joaquim, casado com a minha irmã, aquela que era enfermeira e que tirou a gente de Rafard. Esse meu cunhado tem olhos azuis e faz até hoje um preto velho hilário, ganhou até prêmio fazendo esse papel, se pintando com uma mistura de graxa de sapato e clara de ovo. As primeiras peças que eu vi, e eu me lembro muito vagamente disso, foram no circo. O circo ia até a gente, lembro do Circo Ordep – que é Pedro ao contrário – eles passavam anunciando no berro: É hoje, é hoje, é hoje, o Circo Ordep, com aqueles cabeções e aqueles bonecões. Era bem perto, bem baratinho e dava para ir. Eu não me lembro, mas acho que a minha mãe e meu pai iam também. Nessa época eu não pensava em profissão, em nada disso, mas já gostava daquele negócio, daquelas cadeirinhas, do ambiente circense. Gosto até hoje daquele ambiente, daquele cheiro de serragem que se misturava ao teatro que era feito no circo. Eu lamento quando acaba um circo de verdade como o Circo Garcia acabou, lamento profundamente, circo é uma coisa fabulosa. Mas detesto esses circos muito comerciais que ficam dando intervalo toda hora e imitando a televisão. Na casa onde minha mãe trabalhava como empregada doméstica tinha um menino chamado Robertinho. Ele era muito talentoso e fazia teatro de bonecos debaixo das jabuticabeiras. Ele caprichava, os bonecos eram articulados, muito bem feitos. Ajudando esse menino fiquei fascinado pelo teatro de bonecos, uma de minhas paixões como espectador. A primeira peça mais elaborada que eu vi e que me impressionou foi no Teatro Popular do Sesi. Era um trabalho muito bonito que o Sesi tinha, levando espetáculos profissionais e montando peças com grupos de teatro amador nas cidades do interior. Vi em Sorocaba, com uns 15, 16 anos, o Pluft, o Fantasminha (de Maria Clara Machado), vi também Almas Mortas, do (escritor russo Nikolai) Gogol, Júlio César, do (dramaturgo inglês William Shakespeare), numa montagem maravilhosa do Werner Rothschild com cenários e figurinos de sua mulher, Guscia, artistas importantes do teatro amador. Essa eu assisti umas dez vezes, sei de cor os discursos do Marco Antonio e do Brutus até hoje. Depois também vi uma montagem de Nossa Cidade, do (dramaturgo norte-americano) Thornton Wilder, que me marcou muito. A direção, assim como a de Pluft era do Osório Theodoro de Moraes, outro nome marcante do teatro amador sorocabano. Fiquei deslumbrado com Noites Brancas, do (russo Fiodor) Dostoievski, numa montagem do Sesi. A maioria era montagem de teatro amador, mas com atores que poderiam ser profissionais. Capítulo VII Influências Eu vi alguns atores fantásticos, vou citar dois aqui em nome de todos os outros que eu admiro e que me fizeram perceber que a interpretação tinha uma dimensão muito profunda: Rubens Pelline e Pedro Salomão José. O Rubens Pelline em o Santo e a Porca, do Ariano Suassuna, era de tirar o fôlego. E o Pedro era um ator completo, mas destacava-se como comediante, com traços de Oscarito, tinha excelente domínio corporal. Esses dois atores do teatro amador sorocabano poderiam ter feito carreira profissional em qualquer lugar que quisessem, no cinema, no teatro ou na televisão. Nessa época, também fiquei encantado com a mecânica do teatro, com a possibilidade prática de transportar o que tinha aprendido na escola, no Ginásio Industrial, para o teatro. Por exemplo, um refletor apagava em resistência, eu nunca tinha visto isso no teatro, uma luz que se extinguia lentamente até ficar a escuridão absoluta e, na escuridão, pelo jeito que aquela luz ia desaparecendo, ainda ficava a imagem gravada na retina. Isso hoje em dia não é nada, todo mundo tem resistência em casa, tem o dimer, né? A resistência, o dimer, que na casa da gente hoje serve para aumentar ou diminuir a intensidade da luz, no teatro servia para criar magia. Eu tinha um amigo, o Carlos Reis dos Santos, que era também conhecido como Corvinho, que foi um dos caras que ajudou a plantar em mim essa idéia de fazer teatro. O Corvinho morava no meu bairro e era iluminador de teatro, tinha feito cursos de iluminação em São Paulo com um profissional chamado Domingos Fiorine, que era do Oficina, e o Corvinho conhecia muito de iluminação, principalmente de eletricidade. Ele sabia fazer um refletor, sabia fazer esse refletor acender em resistência. Isso nada mais é do que a aproximação de dois pólos de energia, intermediados por água e sal. Uma bateria de automóvel, um pólo de um lado, um pólo do outro, dentro da bateria água e sal; conforme esses pólos se aproximam, a luz fica mais intensa; conforme eles se distanciam, a luz fica mais fraca. O Corvinho fazia essas coisas na mão no teatro amador de Sorocaba. E tem um nome que eu não poderia deixar de citar como uma das minhas grandes influências daquele período, um diretor de teatro amador muito talentoso, que está trabalhando até hoje, o Roberto Gil Camargo. Ele, naquela época, já fazia experiências com câmeras de super-8, com 16 mm, já misturava teatro com cinema. Gil dirigia fazendo a sonoplastia, colocando os discos na vitrola, criando climas, auxiliando os atores. Há pouco tempo vi um ensaio de um dos diretores do teatro norte-americano mais conceituados, Richard Foreman. Igualzinho o Gil fazia! Outra figura marcante, importante no meu desenvolvimento naquele momento, foi o Lourival Maffei. Ele é engenheiro e tem grande paixão pela arte. Fazia reuniões em sua casa e promovia o encontro de diferentes artistas sorocabanos. Foi em jantares memoráveis na casa do Maffei que conheci os pintores Pedro Lopes e Toshifume Nakano, a bailarina Janice Vieira, o compositor Nilson Lombardi, entre outros artistas. Foi o Maffei que meu levou, junto com a mulher e filhos, para conhecer o Museu de Arte de São Paulo - Masp, em São Paulo. Quase todos os fins de semana íamos no seu carro, uma DKW, para a capital. Ele adorava reconhecer os autores das telas, e a Mazé, sua mulher, ia atrás dos quadros e confirmava, para a satisfação do mecenas: Delacroix!  O Maffei tinha uma coleção incrível de slides de obras de todos os museus do mundo. Aprendi a gostar de pintura nas projeções da casa dele, que discorriam sobre grandes autores de teatro, sobre os grandes encenadores. Foi dele que ouvi falar a primeira vez em Meyerhold, pronunciado com seu indefectível sotaque sorocabano. Na cidade tinha também uma coisa muito interessante, a Fetabas - Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana. Ficava no prédio mais alto da cidade - eu lembro bem disso porque foi onde eu entrei pela primeira vez num elevador - e no andar mais alto do prédio tinha uma sala cheia de prateleiras com livros de teatro e um monte de refletores. O presidente da Federação era o Werner Rothschild. Então você podia tirar um livro, uma peça, e montar aquela peça usando os refletores. A Federação dava um certificado para você poder inscrever a peça na censura, cumprir as burocracias, fazer tudo de um jeito legal. Essa organização era muito importante, apoiava os primeiros passos. Em outras cidades também havia organizações semelhantes. Anualmente realizavam festivais, troca de experiências. O teatro amador era muito forte e atuante naquela época, inclusive politicamente. Uma montagem que me influenciou bastante, também, foi Arlequim, Servidor de Dois Patrões, de Goldoni, dirigido pelo Afonso Gentil, e um cenário deslumbrante da Guscia Rostchild, em que os atores entravam em cena, todos, escorregando por um tobogã. Tinha o Pedro Salomão José, o Paulo Newton e o Adilson Barros. Os atores improvisavam o tempo todo, foi a primeira vez que eu vi um elenco tão solto em cena. Afonso e Elvira Gentil foram dois profissionais que saíram de Sorocaba, do teatro amador, e foram ser profissionais em São Paulo. Eles abriram essa possibilidade, serviram de exemplo mesmo, foram muito importantes para que eu decidisse ir também mais tarde. O Roberto Gil, que foi um de meus primeiros diretores, formou o grupo Artes - Associação de Representação Teatral de Sorocaba, do qual eu fazia parte. E também fazia parte de um grupo no Colégio Salesiano, o Tejusa - Teatro da Juventude Salesiana. Eu estava completamente mergulhado no teatro, mas ainda não pensava nele como uma perspectiva de vida. Hair Algumas peças fizeram minha cabeça, literalmente. Daquelas que ficam, que marcam, que definem: É isso que eu quero fazer da vida. Senti isso quando fui para São Paulo ver Hair, com direção de Ademar Guerra, no Teatro Aquarius, em pleno Bexiga. Tudo era novidade, a viagem de ônibus, ir e voltar no mesmo dia, a excitação, ver os atores tomando café no bar da esquina e o espetáculo deslumbrante. Aquele libelo contra a guerra, as canções, os atores. O tempo todo o espetáculo surpreendia com marcações deslumbrantes como aquela em que os atores entravam debaixo de um pano grande e redondo, acho que era um pára-quedas, o pano se levantava e eles estavam nus e cantavam: Deixe o sol entrar... . Uma singeleza, uma poesia! E tinha a Sônia Braga, que usava uma bermuda jeans com uma borboleta bordada no bolso de trás. O que era Sônia Braga em Hair, meu Deus! O elenco todo era fabuloso, Ney Latorraca, Ivone Hoffman, Neusa Borges, Armando Bogus, Nuno Leal Maia, Altair Lima, Antônio Fagundes. Todo mundo trabalhou em Hair. O Balcão Outra peça que vi no mesmo esquema de ir de ônibus, etc., foi O Balcão, de Jean Genet, produção da Ruth Escobar. O que mais marcou foi a audácia da encenação e a concepção cenográfica, que eram realmente impressionantes. Uma estrutura tubular de ferro, a platéia acomodada em círculos de prateleiras e a ação se desenrolando dentro dessa estrutura com um palco de fibra acrílica que subia e descia. Uma loucura. Depois de ver esses dois espetáculos em São Paulo, eu não concebia mais fazer outra coisa senão teatro. Entre outras peças marcantes para mim, mas que eu vi depois de já estar profissionalmente no teatro, está com certeza a montagem de Macunaíma, dirigida pelo Antunes Filho. A sensação quando se assiste um espetáculo como aquele é a de um renascimento, um susto, uma vertigem, uma vontade de fazer mais, de se entregar ao teatro. É maravilhoso ver um espetáculo genial como esse, faz muito bem. Três Irmãs Não vi a chamada fase áurea do Oficina, mas me apaixonei por As Três Irmãs, de Chekhov, dirigida pelo Zé Celso. A noite em que vi o espetáculo, vim saber depois, foi a que o Fernando Peixoto substituiu o Renato Borghi no papel principal. Fernando me disse que as reações eram absolutamente inéditas porque em muitos momentos ele estava contracenando pela primeira vez com seus colegas. Ele lembra de ter atravessado o palco e beijado uma atriz, era a marca, sem nunca ter ensaiado aquilo, apenas combinado. Acho que esse fator de instabilidade deu uma energia muito grande para o espetáculo daquela noite. Lembro-me ainda hoje da Maria Fernanda falando atrás de um biombo, iluminado por uma tocha de fogo: Será que a gente ainda vai para Moscou? Tinha o Othon Bastos, a Analu Prestes.   Tinha um duelo fantástico, que o Zé Celso fez com um rastilho de pólvora correndo pelo chão, o efeito era incrível. O tiro partia da pistola e a pólvora ia queimando, criando um efeito de câmera lenta no tiro. O Oficina expressava o sufocamento que a gente sentia na época da ditadura. Engraçado foi como entrei para ver essa peça. Não tinha dinheiro para pagar o ingresso e fiz um negócio com a bilheteira. Ela me deu o ingresso em troca de meio frango daqueles que ficam nas televisões de cachorro das padarias. Depois acabei ficando amigo dessa bilheteira, a Teresa, que hoje trabalha no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. Theatro Musical O Luiz Antônio Martinez Correia, irmão do Zé Celso, criou um espetáculo também inesquecível para mim, o Theatro Musical Brasileiro II, acho que vi umas dez vezes. Eu dirigia O Amigo da Onça, no Dulcina, e o Luis estava no Rival, eu ia com minhas filhas, que também viraram fãs do espetáculo. Outro que vi tantas vezes que até decorei as músicas foi A Capital Federal, de Arthur de Azevedo, com direção de Flavio Rangel. Tinha um elenco maravilhoso e começava com o Roberto Azevedo cantando na frente da cortina: Respeitável platéia, boa-noite, hoje nós representamos outra vez uma peça que, por ser tão brasileira, com orgulho oferecemos a vocês. Arthur de Azevedo é seu autor, um poeta, um sonhador tão genial que no palco fez sonhar mil brasileiros, nesse milagre que é o teatro nacional. Aí abria o pano e aparecia todo o elenco, enorme, cantando. Carlos Alberto Ricelli, Odilon Wagner, Lutero Luis, Neuza Borges, Laerte Morrone, Etty Fraser, Sonia de Paula... Gracias Senhor Outra inesquecível foi Gracias Senhor, do Teatro Oficina. O dia em que eu vi, uma mulher da platéia bateu muitas vezes com uma revista no rosto do Zé Celso. O elenco provocava a platéia de diversas maneiras, provocando vários confrontos, aí a mulher não agüentou e meteu a revista na cara do Zé, e não era uma revista leve não, devia ser uma Realidade, qualquer coisa assim. As imagens desse espetáculo eram muito poderosas, tenho tudo gravado na memória até hoje. Bob Wilson A apresentação do espetáculo A Vida e a Época de David Clark, de Bob Wilson, foi um marco em São Paulo e na minha vida. A peça durava 12 horas e era uma proposta superinovadora. O nome do espetáculo era A Vida e a Época de Joseph Stalin, mas a estúpida censura achou que havia uma conotação política perigosa e tiveram de mudar o nome da peça para que ela fosse apresentada no Brasil. Foi no Teatro Municipal. A primeira cena se passava na frente da cortina e tinha um jovem negro, vestido de padre, que tomava um copo de leite. Ele demorou meia hora para levar o copo até a boca e beber. A cena era só isso. Muita gente quis desistir e ir embora. Mas, no saguão do teatro, o diretor Antunes Filho mandava todo mundo voltar para dentro. Era hilário o espírito combativo do Antunes nos obrigando a ver a peça. E graças a Deus ele fez isso. Bob Wilson propunha uma linguagem completamente diferente de tudo que eu já tinha visto na época. Logo depois da cena do rapaz tomando o copo de leite, o pano se abria e se via uma praia quase realista, onde os mínimos movimentos eram de umas folhas secas sendo levadas pelo vento, um banhista que passava ao fundo de tempos em tempos e uma sonoplastia de cair o queixo. Acho que foi a primeira vez que se usou no Brasil o som vindo de caixas acústicas colocadas atrás da platéia. O envolvimento era total. Bob Wilson conseguiu descondicionar o ritmo acelerado do público. Só fico imaginando o que seria desse espetáculo hoje, quando acham que uma peça de hora e meia é longa e tudo tem que ser ainda mais rápido. Bob Wilson dizia que o público piscava demais e que perdia muita coisa nesse piscar de olhos, então ele fazia de um jeito que não se perdesse nada. Claro que isso era apenas uma brincadeira, mas o resultado era fabuloso. No meio da madrugada o público estava sonolento e vivia uma espécie de vigília, dormitando e vendo a peça, propunha-se que você sonhasse com o que estava vendo e fosse mesclando o sonho com o que acontecia no palco. Pode parecer um absurdo total, mas isso acontecia. Quem quiser saber mais sobre essa peça tem que ler o livro do Luiz Roberto Galizia, Os Processos Criativos de Robert Wilson, da Editora Perspectiva. O Galizia foi um ator talentosíssimo, também diretor e poeta, que infelizmente morreu muito cedo, foi um dos primeiros a contrair Aids no Brasil. Ele foi um dos criadores do Ornitorrinco. Capítulo VIII Primeiros Trabalhos Meu plano, entre os 15 e 18 anos, era virar médico. Quando chegou a hora de começar a trabalhar para ajudar a minha família, arrumei um emprego, com carteira profissional de menor, no Hospital Santo Antônio, onde minha irmã enfermeira trabalhava. E ali eu conseguiria uma bolsa para estudar medicina. Então eu estava dividido entre a perspectiva de ser médico – uma coisa bastante realista, bastante possível e concreta – e o sonho do teatro amador, que me fascinava. Em 1971, fiz uma montagem da peça O Pagador de Promessas, que foi para o Festival de Teatro de São Carlos, e lá ganhei o prêmio Governador do Estado de Melhor Diretor. Foi a primeira vez que eu fui para fora das fronteiras da minha cidade com o teatro, e isso foi muito importante para mim. O festival acontecia em um teatro de verdade, até então eu só tinha trabalhado em tablados improvisados, que com o movimento dos atores em cena abriam verdadeiras crateras durante as apresentações. Não cair do palco era a nossa maior preocupação. No festival a gente conviveu com outros grupos, de Santos, de São Paulo, e tinha todo aquele clima de festival de teatro, que é igual no mundo inteiro. Era uma loucura para mim, aquela excitação, aquele pessoal falando palavrão, discutindo política, eu fiquei fascinado. Minha família nem sabia direito o que seria uma carreira no teatro, então eles não palpitaram sobre isso. Eles eram muito simples, não tinham aquela censura pequeno-burguesa com relação ao meio teatral. Também não tinham preconceito nenhum, ninguém falava aquelas coisas: Isso é trabalho de veado ou então de mulheres da vida. Eles não tinham essa noção. Minha mãe sofreu muito com a história de eu sair de casa, porque eu era o arrimo da família, eu não servi Exército por isso. Mas eu tinha que ir. Parecia aquela música do Caetano Veloso: No dia em que eu vim me embora, minha mãe chorava em ai, minha irmã chorava em ui e eu nem olhava pra trás. Foi exatamente assim que aconteceu comigo. Capítulo IX Eliane Giardini Nessa época eu já namorava a Eliane Giardini, que também estava no elenco de O Pagador. Nós nos conhecemos no grupo Artes no ano anterior, e a Eliane tinha experiência de cinema. Ela tinha feito um filme na Paraíba aos 17 anos com o seu tio, o escritor Waldemar Solha, e isso tinha dado a ela, além de um status de estrela de cinema, uma noção de horizonte mais ampla do que a minha. Ela sonhava em sair de Sorocaba, ir para São Paulo e fazer teatro profissional. A Eliane sempre foi uma grande atriz, uma atriz maravilhosa! Além de muito bonita, era muito boa, sempre foi. E ela cantava, tinha uma suavidade, uma elegância, podia ser bailarina, podia ser cantora, ela já era tudo isso que é hoje. E era audaciosa, fumava, era uma moça solta, livre, que queria ir embora para São Paulo. Eu era mais amarrado, por temperamento e por causa da minha situação familiar. A Eliane, não. Ela não estava nem aí para Sorocaba, achava Sorocaba uma chatice, ela não curtia nada daquilo. Nós éramos muito apaixonados e nos completávamos, tínhamos a mesma idade e a mesma paixão pelo teatro. A família da Eliane não era tão pobre quanto a minha, eles moravam em outro bairro, numa casa muito melhor que a da minha família, o seu pai tinha um posto de gasolina e também era mecânico. O prêmio que eu ganhei, o Governador do Estado, dava direito a uma bolsa de estudos na Escola de Arte Dramática, da Universidade de São Paulo. Era uma bolsa muito pequena, mas, incentivado muito pela Eliane, tomamos coragem, fizemos a inscrição e passamos, os dois, no exame da EAD. No nosso exame fizemos uma cena de Senhorita Júlia, do (dramaturgo sueco August Strindberg), e pedimos para o Afonso Gentil, que é crítico de teatro e era diretor de teatro amador de Sorocaba, mas já morava em São Paulo nessa época, para nos dirigir. Na época o jornal O Estado de S.Paulo cobria os exames da EAD e dava meia página sobre o assunto, e no nosso ano eles publicaram uma foto minha e da Eliane fazendo o exame, e eu fui lá buscar a foto, queria guardar como recordação. Fico pensando como a sorte é necessária, fundamental. Se não tivesse saído aquela foto nossa na matéria do Estadão, justamente a nossa foto, será que teríamos passado no exame? Mais de 600 concorrendo, e escolhem justamente a nossa foto para publicar. Não é muita sorte? Capítulo X Filhas Casamos em 1974, já morávamos em São Paulo, mas o casamento foi lá em Sorocaba. Em 1977 nasceu a nossa primeira filha, a Juliana, e em 1980 nasceu a Mariana. Juliana fez Geografia na PUC-Rio, mas também é cantora e atriz. A Mariana estudou História na PUC-Rio e está no curso de teatro na CAL, também é atriz. No final do curso, ela fez sua monografia sobre o folclorista Câmara Cascudo. E a Juliana sobre o Chico Science, do mangue beat, juntando a geografia e a música. Já dirigi a Juliana na volta do Feliz Ano Velho, ela entrou no final da turnê. Ela tem muito talento, arrancou aplausos em cena aberta em diversas apresentações. A Mariana também é muito talentosa. Foi uma grande companheira minha como estagiária de direção no Cafundó. Vai poder trabalhar também como diretora, tenho certeza. Sou muito crítico. Se elas não levassem jeito eu não incentivaria. A única coisa que digo é que a profissão é uma delícia, mas tem que trabalhar duro. Capítulo XI Ida a São Paulo Em São Paulo não dava para viver só com a bolsa, então eu tinha um atestado de pobreza que dava direito a uma bolsa de alimentação na USP. E consegui ser transferido para o setor de compras da Indústria Votorantim, em São Paulo. O escritório ficava atrás do Teatro Municipal, na Pça. Ramos de Azevedo, e do lugar onde eu ficava, no térreo, eu via o portão do fundo do Teatro Municipal. Entravam cenários das óperas e tal, era incrível. O emprego em si era difícil, eu entrava às 8 horas da manhã e, se chegasse às 8h04, o cartão de ponto acusava em vermelho. No começo eu vim sozinho, a Eliane continuou em Sorocaba e eu morava numa pensão na Rua Martinico Prado. Então eu acordava cedinho e tinha que ir trabalhar de gravata na Votorantim, mas eu não queria ir engravatado para a EAD. Naquela época, usar gravata era a maior caretice, então ia de gravata e tênis até o trabalho, entrava, marcava ponto, pedia desculpas, não podia entrar de tênis, mas eu dava um jeito, aí trocava o tênis por um sapato que eu deixava na gaveta. No fim da tarde botava o tênis, guardava o sapato na gaveta, escondia a gravata na bolsa e ia esporte para a escola. A Eliane, que também fazia EAD, ficou vindo de ônibus durante dois anos para São Paulo. A sua mãe, que era costureira, fazia uma peça de roupa de encomenda, vendia e dava o dinheiro para a Eliane. Ela tomava o ônibus, vinha para São Paulo, fazia as aulas da EAD e, às 11h30 da noite, eu a deixava lá na Raposo Tavares, num posto de gasolina no começo da rodovia, onde ela pegava o ônibus da Cometa e voltava para Sorocaba. Depois que ela entrava no ônibus, eu entrava em outro, urbano, e voltava para a minha pensão. Dá para ter uma idéia da nossa evolução financeira por meio das casas que a gente foi morando. Durante os três anos de EAD morei numa pensão na Rua Martinico Prado, primeiro sozinho, depois com a Eliane. Eu habitava um quartinho que dava com a janela de frente para o banheiro. De manhã cedo abria a janela e tinha toda a fila das pessoas esperando para entrar no banheiro. Pensão era coisa brava mesmo, tinha um cobertorzinho fino, aquele pijaminha de flanela e aquele frio desgraçado que faz no inverno de São Paulo. Aí, fomos para uma quitinete na esquina da Rua Major Sertório com a Dr. Villa Nova, pertinho do Teatro Anchieta. Era uma boa quitinete, de carpete azul surrado, que a gente limpava com uma vassoura de piaçava. No andar de cima morava o Paulo Vilaça, ator do filme Bandido da Luz Vermelha. Depois, quando a situação melhorou um pouquinho, a gente arrumou um apartamento de dois quartos na Pça. Júlio Mesquita. Da janela víamos um teatro de revista e o interior dos prédios da frente, com seus travestis e prostitutas. Ali, naquela pracinha, nossa filha Juliana deu seus primeiros passos. Eu a levava também pra passear no Lgo. do Arouche. Ficávamos vendo aquelas flores, os cartazes dos cinemas, o restaurante O Gato que Ri. Depois do Na Carrêra melhoramos um pouco de vida por causa da televisão e da Unicamp, entrou mais um dinheirinho, alugamos uma casa numa vila em Perdizes, na Rua Cardoso de Almeida, na frente da PUC. Daí mais televisão, um pouco mais de sucesso, um pouco mais de dinheiro e começamos a construir uma casa em Cotia. Eu tinha um fusca e vivia indo e voltando, levando tijolos, azulejos e tal. No teatro foi mais ou menos o mesmo percurso. Até hoje ainda acho engraçado esse negócio de ter camareiro, se bobear tem até maquiador no camarim, é muita mordomia. A Eliane sempre brincava com a primeira vez que ela tinha usado sapato no teatro, que foram muitos anos depois de ter começado a trabalhar. Todas as nossas peças a gente fazia descalço, de pé no chão. O nosso negócio era assim, a gente era um grupo, e todo mundo fazia tudo. Quando acabava a peça a gente juntava os figurinos, os objetos de cena, e guardava em uns sacos de estopa. Cada um cuidava da sua contra-regra, a gente fazia iluminação, subia numa escada, pendurava os refletores, amarrava os fios, pintava o chão e depois entrava em cena. Capítulo XII EAD A EAD foi maravilhosa, nós tínhamos ótimos professores, o principal foi o Celso Nunes, que acompanhou a minha turma durante os três anos de curso. Mas tinha também a Myriam Muniz, que faleceu recentemente, uma professora genial, cheia de afeto pelos alunos, mas ao mesmo tempo supertemida. Ela tinha uma personalidade fortíssima, era ao mesmo tempo cúmplice e crítica, teve um impacto enorme na minha vida. A Myriam me ensinou muita coisa, como gostar de Federico Garcia Lorca, por exemplo. E tinha um lado mãezona dela que também era muito legal. Uma vez ela perguntou se eu estava me alimentando bem, disse que a família dela tinha um restaurante e que eu podia ir comer lá de graça quando precisasse. Eu fui várias vezes. Depois de muito tempo, quando eu já tinha a Casa da Gávea, no Rio, convidei a Myriam para dar um curso. Ela morava em São Paulo, então fui buscá-la no aeroporto. Ela chegou trazendo uma daquelas sacolas de feira, e lá dentro tinha um monte de folhas secas. Fomos direto para a Casa, e quando ela chegou lá, fez uma roda no quintal com a Cristina Pereira, a Eliane, para fazer uma fogueira. Nós demos as mãos e ficamos lá, chorando de emoção. Ela era uma pessoa única. Lembro muito do professor Hugo também, que dava aulas de esgrima. Ele fazia a gente aprender a luta e usar em uma cena, a da luta do Laertes e do Hamlet, na peça do Shakespeare. E tinha o professor Leontij Timozcezenko, russo, estranhíssimo, que dava aulas maravilhosas de maquiagem. E a grande poeta e dramaturga Renata Palottini, que dava aulas de História do Teatro, o Clóvis Garcia, que também ensinava História do Teatro; a saltitante Yolanda Amadei, que era nossa professora de expressão corporal; a Milene Pacheco, que dava aulas de dicção olhando para dentro da nossa boca para ver se tínhamos um bom freio na língua. E muitas outras pessoas inesquecíveis, como a Maria José de Carvalho, que botava os alunos nos gramados da USP declamando textos do Garcia Lorca; a Leila Cury, que fazia a gente se apaixonar pelos poetas brasileiros e portugueses; o Paulo Mendonça, o grande Paulo Mendonça! Ele era um dos donos da Editora Três, e vinha dar aula de terno. Aí entrava na sala de aula, tirava o paletó, filava um cigarro de uma aluna bonita sentada na frente e falava sem parar sobre Shakespeare, sobre o caráter do Hamlet, do Macbeth, era encantador. Tinha também os diretores, que iam para a EAD dirigir os trabalhos dos alunos. Conheci na escola o Fernando Peixoto, o Emilio di Biase, o Jonas Bloch. Além disso tinha toda a movimentação política na EAD, que era muito viva, muito envolvente. O Celso Nunes tinha um trabalho profissional maravilhoso, dirigiu O Interrogatório, do (dramaturgo alemão) Peter Weiss, dirigiu Um, Dois, Três de Oliveira Quatro, do Lafaiete Galvão, dirigiu um monte de peças importantes, dirigia a Fernanda Montenegro, era um dos grandes diretores de teatro daquela época. E ele acompanhava a nossa turma, era um privilégio isso. Capítulo XIII Pessoal do Victor Quando nos formamos, montamos, como trabalho final, a peça Victor, ou as Crianças no Poder, do (dramaturgo francês) Roger Vitrac. O Márcio Tadeu fazia o Victor e ele tinha um desempenho maravilhoso. Nessa época o Márcio era também figurinista na TV Cultura, além de cursar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - FAU. O Márcio é um grande artista, trazia toda a experiência de seu contato com os diretores que trabalhavam na Cultura, como o Ademar Guerra e o Antunes Filho. Essa é a origem do Pessoal do Victor. E foi muito gostoso se formar com um trabalho profissional, foi o meu primeiro trabalho profissional. E a gente levou a peça para a Bienal, naquela época tinha teatro na Bienal, o Celso Nunes costumava fazer peças no meio das obras, era uma maravilha. Depois levamos o Victor para o Teatro Ruth Escobar, para a Sala do Meio, e a peça fez sucesso e teve ótima crítica, foi superlegal. Então a gente se animou e alguém achou na secretaria da EAD um convite para o Festival de Teatro Estudantil em Palermo, na Itália, quem quisesse podia pegar e ir. Então a gente se matou para conseguir dinheiro e ir para esse Festival. Conseguimos uns quadros e fizemos um leilão para comprar as passagens. A Ilka Maria Zanotto, maravilhosa crítica teatral, comprou um quadro do Volpi num leilão que a gente fez. E conseguimos o dinheiro das passagens. Do festival me lembro pouco, mas nos divertimos muito tomando aranciata, vendo os teatros de bonecos pelas esquinas de Palermo e procurando nossas origens italianas. A Eliane e eu queríamos ir para a França, ficar morando lá por um tempo. O Celso Nunes, que era o nosso exemplo, tinha estudado na Sorbonne, então a gente queria fazer a mesma coisa. Mas estávamos muito despreparados, não tínhamos dinheiro, não sabíamos nada de francês, aí ficamos um mês e voltamos. Então, retomamos o Pessoal do Victor, com o Celso Nunes dirigindo as peças, e começamos a fazer algum sucesso. Eu ainda não me levava a sério como diretor, mas assim que me formei na EAD fui para Sorocaba e dei um curso lá, desses cursos do Conselho Estadual de Cultura. Esse curso eu transformei na montagem de uma peça de teatro. Eu tinha traduzido do espanhol o texto de Cerimônia por um Negro Assassinado, do (dramaturgo espanhol Fernando) Arrabal e montei em Sorocaba com esse grupo de atores amadores. E ganhei o segundo Prêmio Governador do Estado, dessa vez como diretor. Eu dirigia, fazia iluminação, usava aqueles negócios lá de sal, aquelas resistências. A peça do Arrabal era linda, e a minha montagem ficou muito legal, tivemos até crítica de Alberto Guzik, ele dizia que eu já tinha nascido com a cabeça feita. Capítulo XIV Os Iks Depois do Victor, montamos Os Iks, uma peça do Peter Brook, Jean-Claude Carrière e Denis Cannan – os três são os autores. É uma adaptação do livro O Povo da Montanha, do antropólogo Colin Turnbull, que o Peter Brook tinha montado naquele teatro dele lá na França e o Celso Nunes conseguiu autorização para fazer. Quem trouxe essa peça para o Brasil foi o Yacov Hillel, um colega e diretor maravilhoso e sempre superantenado. A gente ficou um ano ensaiando, fazendo laboratórios, o nosso desejo era reproduzir o estado de ânimo de uma tribo indígena em Uganda, numa reserva. Esses índios, os Iks, estão lá, gerações e gerações de fome, de penúria, de miséria, e a peça fala da ética dos despossuídos. O Colin Turnbull é um antropólogo e ele sugere, no fim da peça, que os Iks sejam exterminados etnicamente, quer dizer, que eles sejam separados. Eles não vão viver mais juntos porque chegaram num estado tão irrisório da condição moral e humana que não devem mais ficar juntos. Meu personagem era o Atum, um dos protagonistas da peça. Tinha dois ou três protagonistas. Era ele que fazia a ponte com o mundo civilizado. O Atum era um malandro da tribo, um cara que pegava e trocava qualquer coisa por cigarros, um dos menos éticos e mais deturpados entre os Iks. A gente estreou no Teatro Oficina, e os ensaios também eram lá. Na época o José Celso Martinez Corrêa estava exilado, mas o irmão dele, o Luiz Antônio Martinez Corrêa, estava começando o Grupo Ornitorrinco e eu me lembro dele no piano junto com a Maria Alice Vergueiro. O Luiz tinha uma sala cheia de livros, e na parede estava escrito: A mais valia vai acabar seu Edgar. Andava por ali também o Cacá Rosset, que mais tarde fez montagens maravilhosas com o grupo Ornitorrinco. Foi muito bacana esse espetáculo, Os Iks, mas o resultado final foi frio em São Paulo. A gente fez uma temporada de quatro meses no Teatro Oficina, depois levamos a montagem para o Rio de Janeiro. Na verdade a gente estava levando o Victor, ou As Crianças no Poder, que era o nosso sucesso e que a gente achava a cara do Rio. Mas aproveitamos o caminhão que levou os cenários e botamos o material dos Iks junto. O Victor não foi muito bem no Rio, para nosso espanto, então substituímos por Os Iks. E o Celso Nunes mudou toda a concepção do espetáculo, mudou as marcações, foi ousadíssimo. Eu resisti muito às mudanças, achava que não ia dar nada certo. Ele confinou a gente num espaço de dois por dois no fundo do teatro e disse é aí que vocês vão fazer a peça. A gente não tinha para onde ir, só podia subir pelas paredes. Aí ele encheu a peça de tabuletas e de recados escritos nas paredes, explicando o que não tinham entendido em São Paulo. Isso deu uma contundência para o espetáculo, foi uma maravilha. Para um grupo jovem fizemos um puta sucesso no Rio. Teve crítica do Yan Michalski no Jornal do Brasil imediatamente depois da estréia. O Yan saiu do Teatro Cacilda Becker e foi direto para o jornal escrever a crítica, tamanho foi seu entusiasmo. No outro dia já estava no jornal. Não tem nada parecido com isso hoje em dia, tem? Capítulo XV Cerimônia por um Negro Assassinado Depois da temporada dos Iks no Rio de Janeiro, eu dirigi de novo a peça Cerimônia por um Negro Assassinado, mas dessa vez com o Pessoal do Victor, a Eliane Giardini, o Márcio Tadeu, o Adilson Barros e o Ismael Ivo. O Ismael é hoje diretor de um balé na Europa, e curador da área de dança da Bienal de Veneza, um dos maiores bailarinos da atualidade. E por essa montagem eu ganhei o Prêmio Revelação de Direção da APCA e o Prêmio Mambembe de Revelação de Direção. O Sábato Magaldi escreveu uma crítica falando maravilhas. Ajudou-me muito nesse trabalho o Reinaldo Santiago, que foi assistente de direção. O Márcio Tadeu fez um cenário maravilhoso, inspirado no quarto do Van Gogh, aproveitando de uma forma absolutamente genial a pequena Sala do Meio do Teatro Ruth Escobar, hoje Sala Myriam Muniz. O espetáculo devia ser realmente muito bom. O desempenho dos atores era de uma vitalidade extraordinária. O Adilson e o Márcio suavam em bicas, completamente entregues aos dois personagens principais criados pelo Arrabal. A Eliane fazia sua personagem com um humor sutil e muita delicadeza. A cena da morte do negro, que é o título da peça, era sensacional. O Adilson segurava o Ismael Ivo por trás, cobrindo seu rosto com o lençol. Ismael vestia apenas uma sunga, pois tinha acabado de transar com a moça a mando dos dois caras, que queriam ficar olhando. Eram o Adilson e o Márcio Tadeu os dois caras, que depois ficavam com ciúmes e decidiam matar o negro. Adilson aproveitava o lençol e colocava por baixo uma bexiga com sangue que o Márcio furava com uma faca, fazendo parecer que tinha furado o corpo do Ismael. O sangue jorrava e manchava o lençol, e o Ismael usava seus dotes de bailarino para estender ao máximo a agonia do personagem. Era realmente um grande momento. Capítulo XVI Teatro Profissional Então a gente já estava fazendo teatro profissional, mas ainda não dava para viver só disso. Todo mundo tinha outro trabalho. O Adilson era advogado e professor de educação física; o Márcio Tadeu era arquiteto, fazia cenários para outras peças; a Marcília era tradutora, o Waterloo era escrevente e eu estava no banco. Nessa época eu já não trabalhava mais na Votorantim, um colega meu de EAD, o Armando Azzari, já falecido, me levou para trabalhar com ele no Banco União Comercial, onde ele era gerente de Relações Humanas. Mais tarde ele se transferiu para o Banco de Boston, e eu fui junto. Aí não tinha mais cartão de ponto, podia chegar um pouco mais tarde, o refeitório era excelente, tinha uma tarefa mínima para fazer e dava tempo de ler. Eu deixava o livro dentro da gaveta, aí abria e ficava lendo. E o trabalho era uma moleza, a gente somava umas coisas, fazia umas contas, depois picava os papéis e jogava tudo pela janela no final do ano. Hoje em dia teve reengenharia nos bancos, acho que não é mais assim. Mas naquela época era bem gostoso, a gente trabalhava com mais folga. E o Armando também era ator, então ele me chamava na sala dele, fechava a porta e a gente ficava conversando horas sobre teatro. Foi graças à cumplicidade do Armando que eu encontrei tempo para traduzir Cerimônia por um Negro Assassinado. Em 1977, quando o nosso trabalho já estava mais sólido, consegui deixar de trabalhar no banco. Aí, para sobreviver, comecei a fazer dublagem, na Álamo. Comecei também a fazer testes para comerciais. Em 1977, o Celso Nunes convidou todo o grupo para ir para a Unicamp, e passamos a ser professores lá. O núcleo do Pessoal do Victor era a Marcília Rosário, o Anton Chaves (um ator maravilhoso que às vezes larga tudo por uma temporada e vai viver na roça), o Reinaldo Santiago, o Waterloo Gregório, o Márcio Tadeu, o Adilson Barros, a Eliane Giardini, a Maria Elisa Martins e eu. A Stella Freitas, o Iacov Hillel e a Isa Kopelman fizeram os Iks e Victor como atores convidados e deram uma contribuição espetacular. Nessa época eu ganhava um salário de começo de carreira universitária na Unicamp, o MS1, mas mantive esse emprego até 1984, quando fui para a Globo. Sempre fui muito prudente, sempre tive muito medo de não ter como pagar as contas. O Celso Nunes foi a pessoa mais importante na minha formação teatral. Quando entramos na EAD ele estabeleceu um vestibular diferenciado, colocando todos os concorrentes num estágio de observação. Conseguiu tirar 20 alunos de um grupo de 600 candidatos e nos acompanhou com entusiasmo durante toda a duração do curso. Ele se doou por inteiro a essa turma da EAD. No vestibular e durante o curso o Celso levava, muitas vezes, o Alberto Guzik para dar aulas. O Alberto era entusiasmado e nos iniciou no conhecimento teórico dos grandes encenadores, Gordon Graig, Pitoeff... O Celso ensinava com gosto, dirigia ensinando, propunha pesquisas criteriosas, acreditava no trabalho de profundidade. Nossos ensaios de Os Iks foram uma verdadeira universidade. Ele tem um carisma impressionante. Os olhos azuis, a barba que ele usava na época da EAD, era um tipaço. Era a pessoa que eu conheci que mais tem jeito de diretor, pinta de diretor, se é que isso existe. E era, de fato, um grande diretor. Falava com brilho. Sabia conceber os espetáculos, provocar os atores. E sempre muito generoso, preocupado em ajudar todo mundo. Levou-nos, o grupo inteiro, para dentro da Unicamp, onde pudemos desenvolver o trabalho que desaguou em Na Carrêra do Divino. É também o sujeito mais inquieto que já conheci. Depois de consagrado como um dos maiores diretores de teatro do Brasil, largou tudo e foi aprender sobre a técnica corporal rolfing, uma série de massagens profundas que visam ao realinhamento do corpo. Há muito tempo vive em Florianópolis. O Processo e A Vida é Sonho No nosso grupo éramos ultra-esforçados, todo mundo fazia tudo junto, dividíamos as tarefas, era um trabalho muito coletivo. Eu sempre trabalhei muito em grupo. Inclusive hoje, sempre que dirijo uma peça me coloco como se fôssemos um grupo. Depois fizemos uma montagem de O Processo, obra genial do (escritor nascido em Praga) Franz Kafka, com direção do Celso Nunes. Eu fazia o protagonista da peça, o Joseph K. Um papel dificílimo. A gente trabalhou muito o texto, misturamos várias adaptações, ensaiamos arduamente, mas ficamos pouco tempo em cartaz no Oficina. Tivemos críticas maravilhosas do Moacir Amâncio, na Folha de S.Paulo, da Consuelo de Castro, no jornal O São Paulo, mas a maioria das pessoas não gostou, ficamos pouco tempo em cartaz. Será que era um bom espetáculo? Teatro é cruel. No cinema você pode ter um trabalho reavaliado muito tempo depois, mas teatro é fugaz. Tinha entrado muita gente nova no Pessoal do Victor para a montagem do Processo. Então, quando saímos de cartaz, resolvemos reduzir o grupo de novo. Com o núcleo inicial, fizemos A Vida é Sonho, do (dramaturgo espanhol) Calderón de la Barca, com a direção do Celso, de novo, no Teatro Faap. Também não foi um grande sucesso, teve algumas grandes sessões, a crítica Ilka Maria Zanotto viu o espetáculo e amou, mas não foi um grande sucesso. Aí o grupo começou a ficar realmente muito dividido, uns queriam fazer uma coisa, outros queriam fazer outra. Unicamp Nossa ida para a Unicamp foi uma idéia do Celso. Ele tinha ido para lá para criar um curso de teatro e podia contratar três doutores, mas preferiu levar o que tinha restado do Pessoal do Victor. Nosso primeiro encontro foi com o professor Rogério César Cerqueira Leite. Um físico com uma cabeça maravilhosa. Nos deu total autonomia e começamos a desenvolver um trabalho coordenado pelo Celso. A gente dava aulas debaixo das árvores, porque ainda não tinha o espaço físico, as salas de aula. Era essa a filosofia da Unicamp, implantada pelo professor Zeferino Vaz. Primeiro ele trazia o material humano, depois ia criando os espaços necessários. Foi incrível. Eu me apaixonei pelo trabalho de professor. E dirigi algumas peças também, como Ubu Rei e Strip Tease. E conheci gente maravilhosa, como a escritora Marlyse Meyer, o pintor Álvaro Bautista, os compositores Raul do Valle e Almeida Prado e a bailarina Marília Andrade, filha do escritor Oswald de Andrade. Na Carrêra do Divino Foi a Unicamp que nos deu a estabilidade que a gente precisava para fazer o Na Carrêra do Divino. Nossa idéia era contar nossas histórias, a maioria do grupo tinha vindo do interior e a gente queria fazer uma peça sobre isso. O Celso estava dirigindo outra peça na época, com outros atores, e isso levou a gente a fazer o Na Carrêra sem ele. Na época, o grande sucesso do teatro brasileiro era Asdrúbal Trouxe o Trombone, com o Trate-me Leão, que era uma expressão muito carioca, um espetáculo incrível, mas a gente tinha uma consciência de que havia uma dominação cultural no País, todo mundo achava o sotaque carioca bacana, bonito, e o sotaque caipira era feio e inaceitável. Então a gente queria fazer uma espécie de Trate-me Jeca Tatu. Nós queríamos dizer que gostávamos de rock’n’roll, mas também gostávamos de moda de viola, era uma afirmação de identidade. Nós não tínhamos nenhum texto, mas começamos a nos reunir na casa do Adílson e a falar das coisas que queríamos botar na peça, das músicas, das histórias, dos causos. Uma das melhores reuniões que fizemos foi na casa do professor Egon Shaden, com os professores Florestan Fernandes e Antônio Cândido. A certa altura o professor Cândido ficou tão empolgado que começou a cantar cururus e modas de viola. Mas depois de uns seis meses de trabalho, percebemos que tínhamos uma boa pesquisa, mas não uma peça. Então chamamos o Carlos Alberto Soffredini, que era um autor e diretor que todos nós admirávamos desde a época do teatro amador. Ele gostou do projeto, pediu um tempo, ficou com a gente ouvindo todos os nossos desejos, pegou nossa pesquisa, fez a dele e escreveu uma peça. Aí deu para a gente encenar com o texto ainda inacabado, para ver o que a gente fazia. A gente montou, ele ficou assistindo e disse eu faria completamente diferente, mas achei ótimo. Agora eu fecho a peça. Aí ele completou os trinta por cento do texto que faltavam. O texto ia chegando, cena por cena, e a gente ficava esperando e sofrendo de tanta ansiedade. Uma ansiedade gostosa porque sabíamos que viriam cenas boas. Eu me lembro do Adilson absolutamente tomado pelo personagem dele, era um trabalho deslumbrante do Adilson, emocionante. Ele dominava tão completamente o personagem que quando chegava o texto novo, ele pegava, dava uma lida e começava a botar em pé, ele com aquela enxada, os pés sujos de terra. Foi um sucesso tremendo, todo mundo ganhou todos os prêmios, o Adilson ganhou todos os prêmios, eu ganhei o Molière de melhor direção, prêmio da APCA de melhor diretor, Mambembe de melhor diretor, Associação Paulista de Teatro, o escambau. O Soffredini ganhou todos os prêmios. Gravamos até um disco pela RCA, com a trilha da peça. A Eliane foi diversas vezes no programa do Rolando Boldrin, na Globo, fazer o monólogo do Sto. Antonio. A peça ficou muito tempo em cartaz, viajou por muitos lugares do Brasil. Nós íamos de ônibus para os lugares, aí chegávamos, montávamos o cenário, a luz, depois entrávamos em cena sem tomar banho, porque quanto mais sujo a gente estivesse era melhor para a peça. A gente tinha uma caixa de terra e se esfregava nela antes de entrar em cena, tinha que sujar bem os pés antes de pisar no palco. Eu adorava fazer essa peça, era uma catarse. E eu já era fã do Soffredini há muito tempo, tinha feito um curso de teatro que ele deu em Sorocaba quando eu tinha uns 17 anos e ele me marcou muito. Ele ficava o tempo todo dizendo assim com um vozeirão: Não se poupe, não se poupe. Ele achava que a gente devia ir sempre mais fundo, se exigir mais, querer mais, tentar mais, não se poupar física e mentalmente. Até hoje eu ouço a voz do Soffredini falando não se poupe. E tento não me poupar mesmo, anoto, escrevo, vivo ligado, trabalhando, tentando prestar atenção em tudo. E o Na Carrêra quase virou filme, ia ser dirigido pelo Jorge Bodanski, o diretor de Iracema. Não deu certo, mas aí o André Klotzel fez A Marvada Carne, que tem muito a ver com a peça. O Soffredini era o roteirista e o Adilson usa no filme o mesmo figurino que usava na peça. Na época fiquei um pouco grilado porque o André não falava nada da peça no lançamento, nas entrevistas, a gente queria que ele dissesse alguma palavrinha, para a gente era claro que o filme era um desdobramento da peça, mas ele dizia que tinha se inspirado no Nelson Pereira dos Santos. Hoje dou graças a Deus de ele ter feito esse filme, dá uma idéia do que era o trabalho do Adilson em Na Carrêra. Saiu em vídeo, depois em DVD, tem em qualquer locadora. No filme tem a Eliane cantando também, na mesma cena do Santo Antônio que era o maior sucesso dela na peça, e que no filme é a Fernanda Torres que faz. Na Carrêra foi um grande sucesso e, como todo grande sucesso, também teve seus problemas. O grupo começou a ficar dividido e isso se acentuou quando levamos a peça para o Rio de Janeiro. Não teve nenhuma briga feia, mas tinha os problemas de sempre, desgaste do relacionamento, vaidade, ou então o destaque que a imprensa dava mais para uns do que para os outros, essas coisas. A gente era um grupo, todo mundo ganhava a mesma coisa, todos estavam maravilhosos no espetáculo, mas, de repente eu tinha ganhado o Prêmio Molière, o APCA, o Mambembe, o Adilson tinha ganhado dois prêmios também, a Eliane era o maior sucesso. Enfim, começou a surgir uma certa discórdia e uma certa vontade de fazer coisas diferentes, e daí a gente se dividiu. O Márcio, a Marcília e o Reinaldo quiseram fazer outra peça com outro nome de grupo, e a gente continuou com o nome Pessoal do Victor, aí só nós três. Feliz Ano Velho A última peça do Pessoal do Victor foi Feliz Ano Velho. Tudo começou assim: o Marcos Kaloy, que na época tinha alguma ligação com a Unicamp que eu não lembro direito, leu a primeira edição do livro Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, e achou que dava uma peça. Aí ele procurou o Alcides Nogueira, para ver se ele gostaria de escrever o texto. E trouxe o livro também para mim e para o Adilson. Nós éramos professores da Unicamp, o livro bateu muito forte na gente, porque o Marcelo poderia ter sido nosso aluno. Não era, não tinha sido, mas poderia ser, porque vários personagens do livro, os melhores amigos dele, eram nossos alunos. O Cassiano Quilici, o Cassy, que na peça é o melhor amigo do Marcelo, era um dos meus melhores alunos. Montei duas peças com o Cassy na Unicamp: Ubu Rei, (do dramaturgo francês Alfred Jarry), em que ele fazia o papel principal, e Strip Tease, (do dramaturgo polonês Slawomir Mrozec). Hoje o Cassy é professor da PUC, dá aula de teatro. Enfim, começamos a pesquisar, o Alcides escreveu o texto e começamos a montar o elenco. O Adílson estava comigo desde o começo, aí o Alcides trouxe a Denise Del Vecchio, que trouxe a Cristiane Rando. A Lília Cabral tinha sido aluna da EAD eu a tinha visto numa peça do Valle Inclan (dramaturgo espanhol) As Divinas Palavras, direção do Iacov Hillel, ela estava maravilhosa, corajosamente aparecia nua (apesar do pai italiano severíssimo), e a convidei. As reuniões iniciais aconteciam na casa do Adilson, que era advogado. Foi ele que fundou a Cooperativa Paulista de Teatro. Foi um momento muito especial esse, as pessoas todas tinham uma energia muito forte. E a gente procurava contrapor a imobilidade do Marcelo a uma mobilidade física muito grande. Esse era o eixo da peça, a gente fazia ginástica, acrobacia, tudo na peça era contraponto à imobilidade. Era um espetáculo feito com grande despojamento e soluções cênicas muito simples, mas eficazes. Até hoje encontro pessoas que começaram a fazer teatro porque amaram Feliz Ano Velho. Ninguém se esquece da cena inicial do Marcos Frota pulando do alto da escada e mergulhando no escuro. Era um grande golpe teatral logo de cara, tirava o fôlego do espectador. Esse trabalho com o Alcides foi o de colaboração mais intensa que eu já fiz até hoje. Ele praticamente levou a máquina de escrever para o palco e ia propondo textos, cenas e diálogos o tempo todo, enquanto via os ensaios. Ele construiu uma estrutura que foi considerada infernal pelo crítico Macksen Luiz, do Jornal do Brasil. Foi idéia do Alcides de contrapor a imobilidade do Marcelo Paiva depois do acidente com uma extrema movimentação na representação do passado. Foi realmente genial. Quem teve a idéia dos aparelhos de ginástica foi a Denise Del Vecchio, que foi uma das maiores conquistas do espetáculo. Além de ser uma grande atriz, ela é extremamente agregadora, contribuiu muito com o trabalho em conjunto. Todo mundo dava muito palpite, mas o Alcides escreveu o texto palavra por palavra, dando-lhe poesia e dramaticidade. Quando ele chegava com as folhas impressas a emoção contaminava todo o elenco. O Alcides é um dramaturgo e poeta de mão cheia, além de ser um autor generoso, entusiasmado e absolutamente teatral. Não mudamos uma linha do que ele escreveu. Esse encontro com o Alcides foi definitivo em minha carreira. A cada peça dele que eu vou ver, como Lua de Cetim, Pólvora e Poesia, me dou conta da sorte que tive com o nosso encontro em Feliz Ano Velho. Alcides ganhou o prêmio Molière com a peça, eu como diretor e o Marcos Frota como ator. Ganhamos todos os prêmios naquele ano de 1984. Foi uma união muito criativa. O Adilson, além de ator, era um produtor, um animador, um incentivador, uma presença essencial. Foi um momento muito feliz. Quando a peça estreou era um evento, tinha aplausos em cena aberta, uma vez eu cheguei a contar 15! A Lília Cabral arrasava, um grande desempenho, o Marcos Frota estava incrível. A Cristiane Rando era uma graça em cena. O Kaloy parecia o Mick Jagger, a Denise fazia a mãe do Marcelo, a Eunice, com maestria e emoção e o Adilson se superava em diversos personagens, entre eles o do deputado Rubens Paiva. Era muito dramático e muito engraçado ao mesmo tempo. E o Marcelo Paiva passa a ser uma figura muito presente na minha vida a partir do Feliz Ano Velho, não só por causa da peça, mas porque desenvolvemos uma amizade muito grande. É hoje um dos meus melhores amigos. Ele foi junto com a gente apresentar a peça em Cuba, depois fomos pra Nova York e para a cidade do México. E eu sempre ficava pensando na história dele, na história do pai dele (o ex-deputado Rubens Paiva, que foi preso, torturado e morto pela ditadura militar). O Marcelo é um exemplo para qualquer um, ele é tão animado, tão cheio de vida, não deixa a deficiência física ser desculpa pra nada. Um dos momentos mais emocionantes de Feliz Ano Velho foi a entrada do Marcelo no palco do Teatro Karl Marx, em Havana, após a apresentação do espetáculo. Três mil pessoas aplaudindo em pé, foi lindo! Feliz Ano Velho fez um grande sucesso, ficou muito tempo em cartaz, mas daí estilhaçou o grupo. O Marcos foi para a televisão, a Lília foi para a televisão, eu também fui pra Globo e o Adilson ficou na Unicamp, querendo segurar o Pessoal do Victor como grupo, mas não teve jeito. O Adílson tinha um sentido de organização e de luta muito forte. Ele era meu grande amigo desde Sorocaba. Quando eu vim para a EAD o Adílson ficou em Sorocaba no teatro amador. Nós tínhamos feito O Pagador de Promessas juntos - a peça que me deu impulso para ir para São Paulo. Quando eu fui para a capital o Adilson me deu uma bolsa redonda, cilíndrica, de borracha, escrito Faculdade de Direito de Sorocaba, onde ele tinha se formado. Eu punha a chave da pensão, que parecia uma chave de cadeia, bem grande, amarrada no cordão da bolsa e ia para a EAD, que não era curso superior, era um curso técnico dentro da USP. Eu já tinha feito o científico em Sorocaba e a EAD era outro curso técnico que eu estava fazendo, e isso me incomodava um pouco. Queria ter um curso universitário, e às vezes sentia que estava fazendo o colegial de novo. E aquela bolsa me dava uma bossa de estudante universitário. Olha que bobagem, a EAD era um curso maravilhoso. Assim É Se Lhe Parece Logo depois de Feliz Ano Velho fui convidado pelo Sérgio Brito para dirigir a peça do escritor italiano Luigi Pirandello, no Teatro dos Quatro, que na época fazia as produções mais conceituadas do Rio de Janeiro. Os figurinos eram da Mimina Roveda e o cenário do Paulo Mamede, sócios do Sérgio e donos do teatro. O elenco era inacreditável: Nathalia Timberg, Henriqueta Brieba, Yara Amaral, Ary Fontoura, José Wilker, Vic Militello, Cristina Pereira, Mário César Camargo, Lícia Magna, Alexandre Zachia, Nildo Parente, Márcia Rodrigues, Sérgio Brito... A peça é maravilhosa e fui absolutamente fiel ao texto e procurei contar a história simplesmente, valorizando mais o enredo do que as elucubrações filosóficas do autor italiano que eu adoro. O espetáculo foi um sucesso estrondoso, lotou o teatro todas as noites. Está aí uma fórmula difícil de dar errado: uma boa peça, um elenco excelente e respeito ao texto. Ação entre Amigos Como toda regra, existem exceções. E a montagem de Ação entre Amigos é a exceção que confirma a regra. Eu tinha sido convidado para dirigir a peça Sábado, Domingo e Segunda (do dramaturgo italiano Eduardo De Filippo), e não quis fazer, passei a direção para o Wilker. Eu queria uma peça brasileira que tivesse mais características de teatro de grupo. Aí montei Ação entre Amigos, do Márcio de Souza, que foi um puta fracasso. O texto é maravilhoso, o elenco tinha atores maravilhosos, como Andréa Beltrão, Eliane Giardini, Luiz Carlos Arutin, Mário César Camargo, Vinícius Salvatore, Telmo Faria, e foi um fracasso. Durante os ensaios morreu a querida Lilian Lemmertz, que estava no elenco original e foi substituída pela Jaqueline Laurence. Fizemos um ensaio geral maravilhoso e a estréia foi horrível. Deu tudo errado. Márcio e eu íamos todos os dias ao Teatro Ipanema, onde a peça estava em cartaz, para tentar entender o que estava errado. A gente ficava sentado na platéia assistindo à peça e tentando entender. Devíamos ter desistido quando a Lilian morreu. Feliz Ano Velho de Novo A remontagem de Feliz Ano Velho recebeu excelentes críticas de novo, tudo favorável, o público adorou ver e rever a peça, acho que a gente fez um trabalho muito bonito, muito forte, caprichado, com músicas novas lindas que André Frateschi compôs, mas preservando a mesma trilha sonora genial da Tunika. Colocamos também alguns vídeos filmados pelo João Jardim e material de arquivo que mostrava cenas de estudantes na rua e momentos do golpe militar com tanques, etc. Aproveitamos a mesma concepção cenográfica da primeira montagem e entrou um time de atores novos que injetaram muita garra no espetáculo. A Maria Ribeiro estava ótima no papel que tinha sido da Lília Cabral, a Márcia Brasil fazia com brilho o papel que era da Cristiane Rando e o André Frateschi cantava e representava lindamente, no lugar que tinha sido do Kaloy. A minha filha Juliana substituiu a Maria em algumas cidades da excursão revelando talento e profissionalismo, sendo aplaudida em cena aberta, para minha completa felicidade. Denise Del Vecchio estava de novo na montagem e conseguiu fazer um trabalho ainda melhor do que o da primeira versão da peça. O Genésio Barros, que é um ator maravilhoso, entrou no lugar do Adilson e o Marcos Frota conseguiu a façanha de fazer o Marcelo Paiva com o mesmo frescor da versão que ele tinha criado originalmente 15 anos antes. Depois foi substituído com categoria pelo Cláudio Fontana e eu entrei no papel do Rubens Paiva na temporada carioca, fazendo par com a Suzana Faini, que substituiu a Denise. Foi muito emocionante fazer o papel que originalmente tinha sido criado pelo Adilson Barros. Às vezes eu me surpreendia repetindo seus gestos de uma forma tão automática que era como se ele tivesse baixado em mim, era assustador. E tinha um travo na peça, eu aprendi que não dá para voltar no tempo. E é difícil mesmo refazer as coisas, sei lá, foi meio dolorido. A gente ficou mais tempo do que deveria ter ficado em cartaz. Se tivéssemos ficado só três meses no Tuca, teria sido um sucesso, maravilhoso. Mas ficamos seis meses, aí deu prejuízo. Eu não esperava aquele sucesso todo de novo, mas ter prejuízo é demais, né? O ator José Rubens Chachá disse que quando a peça entrou em cartaz pela primeira vez era um fenômeno, na segunda vez, virou uma peça de teatro. Não quero mais remontar minhas peças. Agora só quero andar para a frente. Se fosse no cinema, seria uma releitura, aí ficaria estimulante de novo. Mas, no teatro, fazer tudo igual, é difícil. Não quero, não. E agora estou cada vez com mais vontade de dirigir filmes, bem mais do que dirigir peças. Capítulo XVII Adilson Barros e Chiquinho Brandão Lamento muito a morte prematura do Adilson, um ator excepcional e grande amigo. E também a do Chiquinho Brandão. Foram duas pessoas muito marcantes pra mim, como artistas e como amigos. Exemplos de coragem e determinação. O Adilson foi um irmão. Do Chiquinho sou compadre póstumo, batizei seu filho Diogo, que é a cara do pai e herdou seu talento. Adoro imitar o Chiquinho, sua forma de falar, suas tiradas. Uma das melhores dele é quando perguntava numa roda de amigos: Estou falando muito? Estou monopolizando? Muito bem, falem-me um pouco de vocês. O que vocês acham... de mim? Outra maravilhosa do Chiquinho foi durante nossos ensaios do Amigo da Onça, peça que o cartunista Chico Caruso escreveu e eu dirigi. O elenco era fabuloso, Andréa Beltrão, Cristina Pereira, Eliane Giardini, Sérgio Mamberti, Antonio Grassi, Rafael Ponzi, Marcos Breda e o Chiquinho. Todos faziam tudo. Durante quase um ano freqüentamos a Biblioteca Nacional fazendo pesquisas. À noite nos reuníamos na casa da Andréa e passávamos tudo para o Chico Caruso. No outro dia ele trazia o texto: uma frase! O Chico Caruso, cartunista, tinha o poder da síntese. Nós queríamos textos, bifes para falar. Aos poucos o Chico foi se soltando e escreveu uma peça linda. Mas, voltando ao Chiquinho. Como todo mundo fazia diversas atividades relacionadas com a produção, os percentuais que combinamos eram diferentes para cada pessoa, com variações mínimas de acordo com as funções extras de cada um. Ainda não tínhamos recebido nada, mas um dia o Chiquinho quis falar sobre a injustiça que era ele ganhar menos. Alguém falou: Mas você não produz nada, Chiquinho. Ele profundamente indignado retrucou: Como não? Eu produzo esperança, eu produzo alegria. Todo mundo caiu na gargalhada, concordando. Ele era genial. Capítulo XVIII Televisão Já na época do Na Carrêra, a Eliane começou a fazer a novela Ninho da Serpente, da Bandeirantes. Eu ia lá buscá-la e um dia o (ator e diretor) Antônio Abujamra me viu e disse: Você também é ator? Eu falei que sim e ele me perguntou se eu não queria fazer novela. Até aquele momento a única oportunidade que eu tinha tido de fazer televisão tinha sido com o Antunes Filho, que fazia uns programas dramatúrgicos usando peças de teatro na TV Cultura, e daí fui lá fazer uns testes. Fiz um teste esquisito e não peguei nenhum papel legal, mas foi a primeira vez, uma ponta em Chapetuba Futebol Clube, acho que nem tinha fala. Novela era uma coisa distante, eu não achava que fosse possível fazer novela, era de teatro, era outro mundo. Novela ficava lá longe. O Adílson não pensava assim. De vez em quando ele chegava cantando: Hoje é um novo dia, de um novo tempo... sugerindo que poderíamos um dia estar lá. Mas aí o Abujamra me botou no elenco de Como Salvar Meu Casamento, de Edy Lima e Carlos Lombardi na TV Tupi, e, depois, em Os Imigrantes, do Benedito Ruy Barbosa. Na época já não era mais escrita pelo Benedito e sim pela dramaturga e poeta Renata Pallottini, que tinha sido minha professora na EAD. E eu estreei na novela. Foi engraçada a minha estréia. Eu tinha acabado de fazer Na Carrêra do Divino. O Naum (Alves de Souza) convidou a Eliane para fazer uma peça e eu fui lá, junto com ela, e entrei no elenco. Era A Aurora da Minha Vida. Na peça eu fazia o louco. Nós ensaiamos quase um ano, levantando reminiscências do tempo da escola, cadernos e cartilhas escolares, e o Naum escreveu o texto que ia trazendo em pedaços para a gente. Uma cena hoje, outra cena amanhã, e a gente ia testando nos ensaios. O resultado foi um espetáculo emocionante, com a Cristina Pereira, a Eliane, a Maria do Carmo Sodré, Roberto Aduim, o Tacus, que é filho do Dionísio de Azevedo e da Flora Geny, o J.C. Viola e a Isa Kopelman. A Isa é uma atriz que precisa ser destacada, é uma das atrizes que eu conheci que mais contribuem com o trabalho da direção. Ela é tão instigante, tão provocativa, ela é maravilhosa. Ela fez a protagonista de outra peça do Naum, No Natal a Gente Vem te Buscar. Ela fez Macunaíma, com o Antunes; fez uma montagem genial de O Dibuk, com direção do Iacov Hillel. Fez um monte de coisas boas. A Isa Kopelman é uma atriz especialíssima. Mas, enfim, assim que a peça estreou eu fui escalado para a novela. E o meu personagem tinha que ser louro. O Abujamra disse que o cabelo preto não fotografava legal, que eu tinha que ser louro, que eu tinha que tingir em um salão chique nos Jardins. Puta, que sofrimento! A tinta não pegava de jeito nenhum, aí no primeiro dia eu fui fazer a peça com o cabelo vermelho, eu fiquei ruivo. Os atores morreram de rir em cena quando eu entrei como padre. Tive de passar o sábado inteiro tingindo, perdi cabelo, fiquei com feridas na cabeça por causa de tanta química, mas na segunda-feira estreei louro. Eu era namorado da Lúcia Veríssimo na novela. Capítulo XIX Entrada na Globo e Casa da Gávea Eu me dei muito bem em novelas, a Globo me contratou pela primeira vez em 1984 e eu fiquei contratado um tempão. Fui parar na Globo a convite do José Wilker, que me chamou, junto com o Paulo Ubiratan, para fazer uma novela do Lauro César Muniz, Transas e Caretas. Foi muito curioso porque, quando eu fui para a Globo, já tinha ganhado dois Molière como diretor de teatro, um por Na Carrêra do Divino e outro por Feliz Ano Velho, e já tinha um monte de outros prêmios da crítica. E o Paulo Ubiratan, que era um dos diretores mais poderosos da Globo na época, falou assim: Você acha que você foi convidado para fazer novela por causa dos prêmios que você tem do teatro? Não, não, não. Você foi convidado por causa de um comercial de pasta de dente que você fez. Você tem uns dentes muito bonitos. Quer dizer, ter mamado até os sete anos de idade me ajudou a ter bons dentes e a ir para a Globo. E eu não fui muito de quatro para a Globo, não. Nunca fiz uma novela aflito com o resultado do Ibope, é claro que quero que dê certo, mas não acho que deva ser preocupação minha, quero fazer sem esse compromisso. Por isso sempre estou fazendo duas ou três coisas. Estou numa peça de teatro, estou na Casa da Gávea, estou no Instituto que montei em Sorocaba. Nessa primeira novela, eles me convidaram para uma reunião no Rio de Janeiro, eu morava em São Paulo, mas fui, aí me ofereceram um papel pequeno e eu disse que não ia fazer. Aí saí da sala, desci de elevador até o térreo e o Wilker tinha descido pela escada, para me encontrar, e disse A gente quer você, a gente tem outro papel para você e me ofereceu um outro papel. Aí era o Dirceu Valente, que era um pintor, bem cafajeste, que namorava a Natália do Valle. Foi nessa novela que eu inaugurei uma boa e intensa relação com o Wilker. Eu o dirigi no Assim é, se lhe parece, ele me dirigiu nessa novela, depois ele me dirigiu num especial que escreveu pra Manchete, o Cinderela, que tinha o Grande Otelo. Daí viramos sócios na Casa da Gávea. Fundamos a Casa da Gávea junto com o Rafael Ponzi e a Cristina Pereira, o Antonio Grassi, a Eliane Giardini, a Vera Fajardo. Eu é que cutucava todo mundo para entrar com o dinheiro. O Wilker tinha, mas o Rafael fazia verdadeiros sacrifícios para inteirar sua cota igual à de todos. O Rafael foi heróico na criação da Casa da Gávea, nossa trincheira, centro cultural, produtora e escola no Rio. A Cristina Pereira, além de ser uma parceira constante, é uma atriz maravilhosa e que tem uma enorme dedicação a causas sociais. Foi uma das maiores batalhadoras para que a Casa da Gávea desse certo e até hoje está lá, lutando. A televisão me absorveu logo de cara. Absorveu mesmo, eu gostei da brincadeira. Fiz uma novela atrás de outra, depois apresentei o Vídeo Show durante um ano, ao lado da Miriam Rios. No começo eu vinha para o Rio de Janeiro de ônibus, meu primeiro contrato não tinha passagem de avião. Mas quando a novela entrou no ar já não dava mais para vir de ônibus, era impossível, eu já era muito reconhecido. Eu gostava de viajar de ônibus, porque além de ser mais econômico era o melhor momento pra ler. Eu chegava na rodoviária, comprava a passagem e ficava meio disfarçado na banca de jornal, até o momento que o ônibus ia sair, pois não queria ser incomodado. Mas às vezes, entrava no ônibus e ouvia alguém lá no fundo gritar o meu nome. Era o querido Luis Carlos Arutin, que também morava em São Paulo e trabalhava no Rio. Aí viajávamos batendo papo. Capítulo XX Trabalhar na TV O gostoso da televisão é quando você percebe que o ator com quem está contracenando está batendo bola comigo, está se esforçando para fazer a cena bem. É muito ruim quando o ator está fazendo aquilo sem se divertir, sem curtir. E isso acontece em todos os lugares. Quando acontece no teatro de você estar infeliz no trabalho é uma barra pesada, porque teatro exige uma convivência muito grande, então fica muito chato. Eu gosto de pensar que onde eu estou, o ambiente está nota dez. Se o ambiente está mais ou menos, eu cheguei, ele vai ficar dez. Eu sou bastante pretensioso nesse sentido. E me dou muito bem com as pessoas, adoro os atores e tenho a pretensão de ser muito querido pelos meus colegas. Eu seria um bom presidente de sindicato de artistas, me preocupo com os atores mais velhos, adoro os atores mais velhos. Isso me deslumbrou quando cheguei à televisão, eu me via na mesma sala com a Fernanda Montenegro, com o Rubens Correa, com o Ivan de Albuquerque, com o Cláudio Correa e Castro, a Marília Pêra, o Walmor Chagas, o Gianfrancesco Guarnieri, o Paulo José. Pô, o Paulo José é muito legal, né? Logo que eu entrei para a televisão o Paulo Autran estava fazendo uma novela. Um dia encontrei com ele no corredor, e perguntei: O que é que eu faço? Ele falou assim: Bote logo um tapa-olho, uma coisa assim, e faça uma coisa muito estranha para aparecer bastante. E depois eu encontrei a Fernanda Montenegro, que fazia a novela com o Paulo Autran, e fiz a mesma pergunta, e ela disse: Fique neutro, discretíssimo. Eu me divirto fazendo novela e adoro estar empregado, saber que naquele dia eu ganhei meu dinheirinho. Parece simples demais, mas é assim mesmo. No estúdio faço piadas, fico fazendo aquelas locuções de O Mundo dos Animais, me entroso com os câmeras, fico amigo de todo mundo. Nunca penso na criação do personagem. Eu crio tipos por acaso, assim, vai saindo, vou lá, já estou feliz para caramba, estou empregado, tenho seguro-saúde, tenho alimento, enfim, estou ganhando bem, as pessoas me acolhem, aí deixo que brote um personagem. Dou um pulo no escuro e faço o que acontecer na hora, não fico preparando nada. Quando eu gosto de um trabalho, é porque durante as filmagens foi agradável. Aí o resultado é bom. As duas coisas se juntam. As duas coisas são uma só. O nível das pessoas que fizeram, o nível de satisfação e inteligência que eu achei que tinha no set. Por exemplo, quase todos os trabalhos que fiz com o Guel Arraes e com o Jorge Furtado na televisão eu pensava assim enquanto estava fazendo: A gente está fazendo isso aqui na televisão, a gente devia fazer no cinema. De tão bom que era, eu achava que o registro em vídeo era insuficiente, que aquilo deveria ser registrado em película. Bobagem minha, tava bom porque era na TV mesmo. Fazer Vereda Tropical, com o Guel Arraes e o Jorge Fernando, que é divertidíssimo e hipertalentoso, foi uma maravilha. O meu personagem era o Marcão, que era irmão da família do Mário Gomes e do Paulo Guarnieri, nós éramos os três filhos da Geórgia Gomide. Era uma família de italianos, donos de uma cantina. O Guel me convidou para dirigir com ele seu próximo trabalho, que seria Armação Ilimitada, e talvez ali fosse o momento de aprender a dirigir televisão, mas fiquei com medo de não ser competente para dirigir, para falar a verdade. Eu tinha presenciado um episódio, certa vez, que me marcou muito: o diretor principal mandou o assistente ir fazer uma cena externa e quando ele voltou disse que não tinha ficado bom e que tinha que fazer de novo. Achei que não ia agüentar uma coisa assim, de trazer um trabalho que eu tinha feito e alguém falar: Não está bom, eu vou fazer de novo o seu trabalho porque você não fez direito. Mas amo ser dirigido pelo Guel. Ele vem para a gravação superpreparado. Com sua sandália e bolsona de couro nordestina, ele tem uma sofisticação e um conhecimento de câmera que eu nunca vi. Ele traz o texto todo marcado, embaixo de cada fala a ação que o personagem vai desenvolver. E tome ação! Enquanto assobia você tem que chupar cana, acender o cigarro, pegar as cartas do baralho e falar ao telefone. Isso tudo dá aquele ritmo ágil e delicioso de assistir. E ele Guel entende tudo de eixo, que é uma das coisas que os cineastas mais discutem no set. Se você errar o eixo da câmera, num diálogo, por exemplo, os dois atores aparecerão olhando cada um para um lado. O Guel manda colocar a câmera num lugar esquisito e acaba sempre dando certo. E nunca joga um plano fora. Se você fica esperando para gravar uma cena pode ter certeza que ela vai ser aproveitada na edição final. Ele não fica cobrindo todos os lados com medo da edição, ele faz o que é preciso. Um grande diretor. Eu gosto de ser dirigido na televisão, tem uns diretores com quem eu adoro trabalhar, como o Wolf Maia, que nasceu no mesmo dia, mês e ano que eu, o Jorge Fernando, o Dênis Carvalho, o Maurinho Mendonça, o Maurício Farias, o Carlinhos Araújo, o Reinaldo Boury, o Mário Márcio Bandarra; o Jayme Monjardim também é um cara que eu gosto muito. Trabalhei muitas vezes com o diretor Paulo Ubiratan. Com o Guel Arraes também, fiz diversas Comédias da Vida Privada, e especiais como O Coronel e o Lobisomem, O Engraçado Arrependido. Trabalhei com o Wolf Maia, com o Ricardo Waddington, eu acho que estava na primeira cena que o Ricardo Waddington dirigiu na vida. Adoro trabalhar também com o Marcos Paulo, que é também ator e sabe como são as coisas pro nosso lado. Também fiz muita coisa com o Luís Fernando Carvalho, Os Maias, Pedra Sobre Pedra, Tieta, Os Homens Querem Paz e Carmen, essa na TV Manchete. O autor com quem eu mais trabalhei na televisão foi o Aguinaldo Silva. Fiz quatro novelas do Aguinaldo. Também fiz novela do Gilberto Braga, A Força de um Desejo, que era escrita em dupla com o Alcides Nogueira, Vereda Tropical e A Próxima Vítima, as duas do Silvio de Abreu. É impressionante a importância que tem a novela na nossa cultura. E eu tive muita sorte na TV, só trabalhei com feras, grandes autores, grandes diretores, grandes colegas. Outro diretor impressionante com quem trabalhei bastante na televisão é o Luís Fernando Carvalho. O Luís sempre desafia todo mundo a fazer o seu melhor trabalho. Instaura um clima de concentração e dedicação e lança desafios a todo o momento, sempre pedindo mais. O Luís tem um jeitão romântico, parece aqueles malucos que morriam tuberculosos. Ele faz todo mundo sentir que está fazendo uma coisa especial, um trabalho único. É bom sentir isso no set. Eu estava fora da Globo depois da campanha Lula x Collor. Quem me botou lá de novo foi o Luís. Ele tem coragem. Chamou-me para fazer Os Homens Querem Paz. Gravamos num lugar chamado Canindé, perto de Fortaleza. Foi o primeiro trabalho da Letícia Sabatella. Com o Luís eu também trabalhei em Carmen, novela da Manchete, escrita pela Glória Perez. Fomos juntos para Machu Picchu, com a Lucélia Santos, o Roberto Bonfim e o grande fotógrafo Walter Carvalho. Sempre perguntam qual a diferença de televisão, cinema e teatro. Não acho que tenha muita diferença. Quando é chato, tanto faz ser na TV ou no teatro ou no cinema. Na televisão, como eu sou uma pessoa que adora estar empregado e gosto de me sentir assalariado e tal, se está chato eu penso Ah! eu tenho o meu salário, meu plano de saúde, vou me divertir com meus colegas, tudo bem, no fim do ano eu vou ganhar o peru da Globo. O cinema é legal porque você vai para o set, é aquela emoção, você sente que estão caprichando, que tudo vai ser muito bem feito, vai ser um registro eterno, perene, mas às vezes fica superchato, se instala uma caretice, um predomínio absurdo da técnica, aquelas marcações de luz que nunca terminam e aí a solução é encontrar um cantinho e dormir; no teatro você é o dono do negócio, você é o dono daquela lojinha, você que inventou de fazer aquela peça, é produtor também e tal, e sempre tem o aplauso do público no final. O mais complicado no teatro é quando o público não aparece. Um exercício de humildade sem fim. Capítulo XXI Tieta e os melhores trabalhos na TV Em Tieta eu tinha uns cinco bordões na novela, coisas que eu falava e repetia e as pessoas do Brasil inteiro imitavam. Tinha um que era assim: Di jeitu ninhúm, com acento. Tinha: Éliiisa, puxando o é, o Brasil inteiro falava Éliiisa. Quem fazia a Elisa, com muito talento, era a querida Tássia Camargo. Tinha outros bordões: Nos trinques, que era com um gesto, todo mundo fazia nos trinques. Eu falava Sum Paulo e todo mundo falava Sum Paulo. As coisas eram do texto, o texto maravilhoso do Aguinaldo Silva, mas parecia que eu é que estava inventando, é uma coisa que não dá muito para explicar. Foi com certeza o meu maior sucesso, a televisão é assim, tem momentos. Esse foi um grande momento. Eu fazia a novela, uma peça de teatro, Perversidade Sexual em Chicago, e a campanha do Lula contra o Collor. Ia a todos os comícios, estava com a macaca, uma energia incrível, isso devia passar em cena. Teve outro bom momento que foi a novela A Indomada. Meu personagem era o Ipiranga Pitiguari, que era uma mistura de diversos políticos corruptos e medíocres. Eu queria tirar um sarro dos políticos daquele momento. Mais uma vez o texto do Aguinaldo. Meu personagem era prefeito de uma cidade, Greenville, que queria ser inglês, totalmente colonizado, então ela mudava a mão de direção da cidade como na Inglaterra e causava a maior confusão. Eu adorava fazer os discursos políticos, era muito divertido. A Comédia da Vida Privada também faz sucesso até hoje, as pessoas alugam o DVD e assistem. Fiz o primeiro programa e mais uns dois depois. Os textos eram sempre muito bons, baseados na obra do Luís Fernando Veríssimo, que tive o prazer de conhecer pessoalmente em visitas à casa de sua mãe, Mafalda, em Porto Alegre. Outra novela que marcou muito foi A próxima Vitima, fiz o investigador Olavo, que desvendava o crime. O último capítulo parou o País. E foi gravado no mesmo dia, na mesma tarde, e à noite o Brasil ficou sabendo quem era o assassino. Acho que todos os aparelhos estavam ligados naquela novela do Sílvio de Abreu. Um dos meus melhores trabalhos na TV foi o juiz Odorico Quintela, que fiz na minissérie Engraçadinha, dirigida pelo Carlos Manga e pela Denise Sarraceni. O roteiro do Leopoldo Serran era perfeito. Acho que ele foi sábio seguindo as orientações precisas do romance de Nelson Rodrigues. Fui comparando o roteiro com os dois volumes do Nelson Rodrigues. Ele era um escritor tão genial que previa até as cenas dos próximos capítulos. O juiz era uma figura patética que sonhava com a Engraçadinha interpretada pela Cláudia Raia, mas nunca chegava a conquistá-la. Era muito divertido. Ele aumentava ou diminuía o tamanho da geladeira que daria para a amada de acordo com os favores que dela recebia. Capítulo XXII Luna Caliente Luna Caliente me deu a oportunidade de trabalhar com dois gaúchos de primeiro time, Jorge Furtado e Paulo José. O Jorge fez um discurso gauchesco hilário no primeiro dia de filmagem. Além de ser um talento extraordinário, tem um caráter maravilhoso. E uma equipe excelente que trabalha junto há muito tempo, a Rô Cortinhas, o Fiapo Barth, a Nora, o Gerbase, a Luli, o Giba, a Ana Azevedo, são todos incríveis, talentosos e bons de trabalhar. Eu já havia sido dirigido pelo Paulo José em Incidente em Antares, mas em Luna ele estava como ator. As filmagens aconteciam pertinho do lugar onde ele tinha nascido, ele voltava de visitas que fazia ao pai e à mãe completamente iluminado. E a gente caminhava pelos pampas, o Paulo falando de cada cantinho, da vegetação, respirava aquele ar com entusiasmo. Vamos mijar ali naquela moita, aquela moita é boa pra mijar. Nunca conheci um ator tão especial quanto o Paulo José. Um dia ele foi ver o ensaio de O Inimigo do Povo, uma peça que eu estava dirigindo, e quando acabou, ele conversou com o elenco e deu milhares de orientações. Uma nunca mais esqueci. Ele falou pra atuar como se tivesse um pequeno refletor no peito, e esse refletor deveria estar sempre apontado para o rosto do colega com quem estava contracenando. Experimente fazer isso e veja como melhora sua interpretação e postura em cena. E as mãos do Paulo, como são expressivas. O Paulo José dirigiu Incidente em Antares, uma minissérie da Globo, tem uma história que eu gosto de lembrar. Estava combinado que iam passar na minha casa para me pegar para a gravação. Quando chegou a condução para o primeiro dia de filmagem e eu entrei, quase caí para trás! Estava todo mundo dentro do carro, Guarnieri, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Ruy Rezende e Diogo Vilella. É a televisão: quem mais consegue juntar um time como esse? Capítulo XXIII Metamorphoses Eu recebi um convite de uma produtora de São Paulo que não se identificou, mas queria saber se eu iria para São Paulo se pintasse uma novela para fazer com uma produtora independente. Eu falei: Claro que faço. Era para Metamorphoses, com a Tizuka Yamazaki, que é uma diretora que eu admiro, texto do Mário Prata, de quem sou fã desde Cordão Umbilical, no teatro, e Estúpido Cupido, na TV, além de brilhante escritor, que leio sempre com prazer. E era uma produção independente, talvez o motivo mais forte para correr o risco. E com um tratamento diferenciado, uma sinopse muito interessante e a oportunidade de ampliar o mercado de trabalho. E que elenco: Suely Franco, Gianfrancesco Guarnieri, Myriam Muniz, Joana Fomm, Zezé Motta, Lúcia Alves, Ilana Kaplan... Dois excelentes diretores de fotografia: Edgar Moura e Carlos Ebert. Poderia ter sido uma ótima novela. É assim mesmo, entre o fracasso e o sucesso há uma linha muito tênue. Novela é autor. Nós tínhamos um ótimo, mas logo no começo ele saiu, porque interferiam muito no seu texto. Se um ótimo diretor receber um texto ruim ele não vai fazer uma grande novela, não tem jeito, você não salva uma novela com texto ruim. Mas adorei ter tentado, porque era a abertura de um mercado, me sinto orgulhoso de ter topado fazer Metamorphoses. A gente tem que acreditar em propostas novas, mesmo que seja para bater cabeça, para fracassar. E agora tem uma novela lá na Record fazendo sucesso: o remake de Escrava Isaura. Tem aí uns 20, 30 grandes autores que a Globo não deixa sair de lá de jeito nenhum. Eles sabem o que fazem. Tem um autor de teatro paulista chamado Mauro Chaves, que também trabalha no Estadão, que escreveu uma peça muito boa chamada Cabeça e Corpo. Um dia, depois da apresentação, fui jantar com o Chaves e fiquei a noite inteira discutindo com ele que a principal figura do teatro era o ator. Mas hoje em dia acho que até no teatro o autor é o principal. Outro dia, depois de Metamorphoses, eu estava andando na rua e vi passar o Mauro Chaves. Aí eu gritei: Mauro, Mauro Chaves, ele olhou pra mim, me reconheceu, me deu um abraço, e eu disse: Lembra daquela discussão de 20 anos atrás? Você é que estava certo. Sem um bom texto, não dá para fazer nada. Ele ficou emocionado. Capítulo XXIV Mais Teatro Perversidade Sexual em Chicago Quando fiz Perversidade Sexual em Chicago, do David Mamet, com direção do José Wilker, com o José Mayer, Eliane Giardini, eu e Vera Fajardo, eu estava no maior pique de popularidade, por causa da novela Tieta. Nessa peça aprendi muito com o Mayer, aprendi que eu não precisava correr de um lado pro outro para ocupar um lugar em cena. José Mayer é um ator econômico, inteligente e requintado. Só faz o essencial. Foi uma grande experiência poder dividir o palco com ele. Aproveitei a excursão dessa peça para fazer uma imensa campanha de elucidação da importância política e social da televisão, da democracia nos meios de comunicação, etc. Talvez uma das coisas mais importantes que eu fiz na minha vida. A gente chegava nas cidades na segunda-feira. Na coletiva de imprensa o Mayer falava da peça e eu convocava o pessoal para uma reunião no sábado, para falarmos sobre o processo eleitoral. A reunião de sábado ia sendo divulgada durante a semana e virava uma coisa muito importante. Em alguns lugares, como Recife, chegamos a juntar quase mil pessoas. Mil pessoas para discutir televisão, logo depois da eleição do Collor, e toda a importância que a televisão tinha tido. Acho que conseguimos fazer alguma coisa para a democratização da televisão naquele momento. Foram 22 capitais! A Fera na Selva Montar essa peça foi uma idéia da Eliane, que leu a novela do Henry James e achou que daria uma peça linda. Descobrimos que a Marguerite Duras tinha escrito a adaptação. Eu fiquei como produtor e convidamos o Wilker para dirigir e o Carlos Augusto Strazzer, um ator excepcional, para fazer par com a Eliane. Durante os ensaios o Strazzer ficou doente. A Eliane tinha percebido uma febre que ele tinha quando apoiou a cabeça no seu colo para as fotografias da divulgação. Ele estava muito quente. Um dia ele nos disse que estava muito mal. Ele acabou morrendo logo depois, sem fazer drama. Desistimos de fazer a peça da Duras. O Wilker foi para Portugal e começou a bolar um filme com o Paulo Branco, produtor do grande diretor Manoel de Oliveira. A Eliane faria o papel junto com um ator interessantíssimo que fazia A Bela da Tarde, do Buñuel, o Pierre Clementi, já falecido. Os portugueses entrariam com uma grana e eu deveria conseguir 100 mil dólares no Brasil. Não consegui o dinheiro, desistimos da Fera no cinema. Anos depois resolvemos fazê-la no teatro e entrei como ator. Chamamos o Luiz Arthur Nunes para dirigir e fazer uma adaptação nova. Ele fez um trabalho excelente. Ganhei o Prêmio Shell de ator com a peça. A Eliane teve um desempenho primoroso, mas pouca gente percebeu porque ela ainda não tinha estourado nas novelas. O trabalho dela era sutil, extraordinário. Agora estou obcecado pela idéia de fazer o filme sobre A Fera. Viagem a Forli Essa peça fiz com o Mauro Rasi, que escreveu e dirigiu e foi uma experiência muito boa. No elenco estavam a Nathalia Timberg, o Antônio Petrin e o Emílio de Mello. O Mauro Rasi tinha um jeito todo particular de fazer teatro, ele escrevia sobre suas experiências e sobre sua crença na reencarnação, aí transpunha isso para o palco. Eu fazia o papel do Mauro, aos 50 anos, viajando em direção a Forli, que era onde tinham nascido os antepassados dele. Na viagem, passava pela Áustria e revia o passado de colaboracionista nazista. Até hoje não entendo quase nada da peça. Tinha um monólogo enorme que eu falava vestido com um pijama de campo de concentração, aqueles listrados, eu falava aquilo tudo muito emocionado e não tinha a menor noção do que estava dizendo ou do que aquilo significava. A Camila Amado, que é uma atriz e professora genial, diz que ator não precisa sempre entender o que faz, não, às vezes o necessário é se entregar intuitivamente e isso basta. Claro que sei o que significa a peça, mas o que sentia aquele homem que era a reencarnação do Mauro, nunca entendi, só sabia que ele sofria, e eu fazia a peça com gosto. Era um espetáculo muito bonito, foi apresentado no Teatro Copacabana. Tinha um DKW no palco giratório, no cenário criado pelo Hélio Eichbauer. Começava com um monólogo rememorativo de meu personagem, o palco girava e lá estava eu, na marca, o palco deveria parar exatamente numa marca de luz. Todo dia era uma aventura, porque sabe como são essas coisas de palco giratório, nunca funcionam direito no Brasil. Foi muito instigante minha colaboração com o Mauro. Às vezes discordávamos politicamente, mas nos respeitávamos muito. Como eu, ele também nasceu no interior, em Bauru. Logo depois de Viagem a Forli ele escreveria aquela que viria ser sua obra-prima: Pérola. Inimigo do Povo A peça do Ibsen foi um trabalho emocionante. Apaixonei-me pelo personagem Dr. Stockman e seu idealismo quase irresponsável. Domingos Oliveira adaptou o texto mantendo sua essência. Uma adaptação muito boa. Domingos é um grande autor, além de diretor e ator de talento excepcional. Um grande companheiro. Domingos é um príncipe, um homem íntegro, idealista, desses que você só encontra nas páginas de um romance (de autor russo Leon Tolstoi). Nossa montagem era um faroeste. De um lado o Dr. Stockman e sua verdade, de outro seu irmão pusilânime. Funcionava maravilhosamente bem. Viajamos pelo Brasil inteiro e ficou a vontade de fazer a peça novamente, agora na íntegra. Conheci o Domingos Oliveira numa circunstância muito engraçada. Agora, depois de tanto tempo, ele me chamou para meu primeiro trabalho na Globo. Viu Na Carrêra do Divino e me chamou para declamar poemas na rua, em pleno Viaduto do Chá, em São Paulo. Lá estávamos com todo aquele aparato da Globo, quando, na hora de começarmos a gravar, o Domingos teve uma crise renal e caiu no chão tamanha a dor que sentia. Rapidamente ele foi recolhido e colocado dentro de um carro prateado e levado para um hospital. Fiquei com aquela imagem de sua fragilidade, caído no chão, contorcendo de dor. Ele, que naquele momento era um dos grandes nomes da dramaturgia da emissora, responsável por alguns dos melhores programas da Globo, como a série de peças encenadas na TV, Aplauso, além do diretor do mitológico filme Todas as Mulheres do Mundo. Até hoje quando o ouço falar com sabedoria e humor, quando vejo suas atuações geniais no teatro e no cinema, e quando desfruto da sua companhia de amigo querido, lembro sempre desse nosso primeiro encontro. Essa lembrança de sua dor naquele momento o torna ainda mais humano e me faz gostar ainda mais do Domingos, uma pessoa que é extremamente leal aos amigos que tem. O Homem Que Viu o Disco Voador A peça do (dramaturgo e jornalista) Flávio Márcio era paixão de minha querida sócia Vera Fajardo. Vera tem uma verdadeira e autêntica devoção pelo teatro nacional. Está sempre à procura de peças inéditas brasileiras. Ela desenvolve brilhantemente o Ciclo de Leituras da Casa da Gávea, há 13 anos. Foi ali que apareceu a peça inédita do Flávio Márcio, um autor que poderia ter tido um futuro maravilhoso, mas que morreu jovem, de maneira trágica. Ele tinha acabado de fazer uma operação para retirar as amídalas e não deveria fazer muito esforço. Mas desrespeitou a ordem médica e foi subir uma escada, aí rompeu um ponto, que provocou uma hemorragia que o afogou. Montamos a peça em 2001, o diretor foi o Aderbal Freire Filho, um dos melhores com quem trabalhei. O Aderbal tem um dom incrível para falar e estimular poeticamente os atores, quando você percebe, o trabalho está pronto, o personagem está desenhado, você está na cara do gol. Um homem de teatro, completo, inspirador. Os ensaios com Aderbal são gloriosos. Fizemos uma bela carreira com a peça no Rio de Janeiro e em São Paulo. O elenco era maravilhoso. Além da Vera, Hebe Cabral, Paulo Giardini e Rodolfo Mesquita. A Vera tinha uma atuação maravilhosa, fazíamos o jogo com grande prazer e alegria. Fui indicado para receber o prêmio de melhor ator no Rio de Janeiro e fiquei todo orgulhoso. Como Eu Aprendi a Dirigir um Carro Essa foi a última peça que fiz como ator (até a edição deste livro, em maio de 2005). É um texto norte-americano que ganhou o prêmio Pulitzer de 2001. Projeto do diretor Felipe Hirsch, com a Andréa Beltrão, querida companheira de outras viagens. Foi um reencontro adorável. A Andréa é uma atriz instigante, certamente uma das melhores com quem trabalhei, muito talentosa, e gosta de ensaiar como ninguém. Quando você acaba de fazer uma passada corrida da peça, a Andréa quer logo emendar outra, é incansável, disciplinada, ela passa a peça toda todo dia antes de fazer. Uma escola. Aprendi muito nesse reencontro com a Andréa. E de quebra ainda trabalhava na peça minha amiga Stella Freitas, que fez parte do Pessoal do Victor numa época. Outro reencontro importante na minha vida. Stella tem um humor ferino, morríamos de rir nos bastidores quando ela, brincando, falava da ginasta russa Vagina Seminova. O elenco todo era maravilhoso. Tinha o Mário Borges, que, além de excelente ator, é um grande companheiro no teatro. A Ivone Hoffman, uma atriz poderosa, que eu admirava desde que tinha visto a montagem de Hair, e o jovem e talentoso Felipe Koury. O Felipe Hirsh é um diretor extraordinário, é moderno mas tem estilo próprio, sabe o que quer e como conduzir um espetáculo, e é bamba em trilha sonora. Ele tem um grupo de amigos lá em Curitiba que fica baixando música 24 horas por dia na Internet. A trilha de Como Eu Aprendi... era tão boa que ainda é uma das que mais roda em meu carro. Capítulo XXV Cinema O cinema é uma vontade que eu tinha desde os tempos de teatro amador, com o Roberto Gil Camargo, diretor lá do Grupo Artes, hoje casado com a Janice Vieira, bailarina que também teve muita influência na minha carreira. Quando a gente começou a fazer teatro, ele tinha uma câmera de 16 mm, daquelas de dar corda, bem arcaica. A gente fazia umas filmagens, brincava um pouco, fazia umas projeções. Mas cinema é uma coisa de rico. Não é uma coisa de pobre. Precisa ter dinheiro, precisa ganhar uma câmera Super-8 aos 14, 15 anos, para você poder começar a pensar em fazer filmes. Acho que eu tenho no máximo umas três fotos minhas até os 10 anos de idade! Nunca tinha nem visto uma câmera de cinema na minha frente até muito mais tarde na vida. Para fazer cinema você tem que fotografar, isso custa dinheiro. Quando eu saí da EAD e fui para a Unicamp, fiz um filme com o Nuno César de Abreu, que é diretor de cinema e professor da Unicamp (ele dirigiu um filme sensacional chamado Corpo em Delito, com o Lima Duarte) – e a vontade ficou mais forte. Aí, antes da Globo, fiz um filme com o Ugo Giorgetti, que foi o Jogo Duro. O Ugo é um diretor maravilhoso. Eu já havia feito diversos comerciais com ele. Ele tem muita experiência, exatamente por causa da prática em comerciais. E fui fazendo mais filmes, junto à televisão e ao teatro, sempre que me chamavam. O problema de fazer cinema é depois ter que se assistir na estréia. É terrível, porque quando você vê o filme já faz tempo que filmou, então fica prestando atenção no que poderia ter sido diferente. E você não está suando para fazer aquilo. No teatro você acaba de fazer sua peça e encara o público: Fiz, vocês viram? Suei a camisa para fazer essa porra aí! No cinema não, você está sentadinho ali, todo bonitinho, já passou quase um ano, dois anos que você fez aquele trabalho, e aí você fica olhando, fica vendo os defeitos, é muito difícil de assistir aos filmes. Não é você, é sua imagem. Depois de um bom tempo, quando eu o vejo numa sessão noturna no Canal Brasil, acho ótimo! Aí penso: Até que eu fiz tudo direitinho! Esqueço que tinha aquelas intenções que eu não consegui dar, aquilo tudo que eu não consegui fazer, aquela esfriada que a dublagem deu naquela cena, eu esqueço. Cinema é muito gostoso, muito luxuoso, eles vão buscar você no hotel, você está em locação, que é a coisa mais gostosa do cinema, as pessoas tratam você superbem. Quando acaba o filme é bem capaz de esquecerem você lá no set, mas até você fazer a sua participação é muito gostoso. E não precisa decorar texto, porque na televisão é uma pauleira, você decora capítulos e capítulos, é muito cansativo. No cinema não precisa decorar, porque você tem tempo, entre mudar a câmera para um lado e para o outro, você vai decorando a cena. O Jorge Saldanha, que é um grande engenheiro de som com quem trabalhei diversas vezes, costuma dizer que você percebe que o filme acabou quando chega em casa e fala: Aquela janela está aberta, e sua mulher diz: Vai lá você mesmo e fecha. No cinema vai ter sempre alguém para fechar. Lamarca e Parcerias com Sérgio Rezende Eu passei três aniversários no sertão da Bahia, fazendo filmes com o Sérgio Rezende. Fiz quatro filmes com ele, e só um, o Barão de Mauá, não foi no sertão da Bahia. Doida Demais foi o primeiro; depois eu fiz Lamarca, depois Guerra de Canudos. O Sérgio Rezende e a Marisa Leão, mulher dele e produtora dos filmes, são duas pessoas especialíssimas para mim. Acho incrível a tranqüilidade do Sérgio no set de filmagem. E a confiança que ele e a Marisa transmitem aos atores. Você sabe que aquele filme vai sair. Quando você olha a obra do Sérgio em perspectiva você vê uma coerência impressionante. Ele é absolutamente honesto nas propostas dele. Os filmes refletem isso. A franqueza de propósito, a clareza. Ele se apaixona pelos personagens que filma, gosta dos atores, tem um relacionamento de amizade e respeito com eles. E sabe filmar como ninguém, além de ser um companheiro adorável de viagem. Sinto-me em casa quando estou filmando com o Sérgio. Com poucas palavras ele transmite o que quer da cena, ele sabe sempre o que quer da cena. A Marisa é um dínamo, organizada, criativa, afetiva, a produtora ideal. Imagine que ela precisou a data que começariam as filmagens de Guerra de Canudos um ano antes! E conseguiu, sem nenhum atraso. Um filme daquele tamanho. O entusiasmo que a Marisa coloca no trabalho contagia. Aprendi muito do pouco que sei de cinema com esses dois amigos. O meu primeiro protagonista no cinema foi o Lamarca, que foi o papel em que eu mais me empenhei na vida. Eu tinha uma pálida noção de quem era o Lamarca antes do filme, embora eu fosse muito envolvido com política. Sabia mais sobre o Marighella. Quando fui convidado para fazer o papel, estava na peça Viagem a Forli, do Mauro Rasi. Quando cheguei no teatro à noite, o Mauro, que tinha lido no jornal, me disse pra ficar à vontade para sair da peça, pois o papel era irrecusável. Comecei a perceber o mito que era o Lamarca e conforme fui estudando, fui ficando cada vez mais admirado. Foi um homem que se imolou por uma causa, alguém que buscava uma santidade de alguma forma. O Lamarca me parece um homem desses que tocam fogo no próprio corpo por uma causa, uma espécie de mártir. E eu queria fazer jus a aquele homem. Eu conheci a mulher dele, os filhos, vi as fotos, o que ele lia, tive acesso às cartas dele, aprendi a escrever cartas como o Lamarca. Eu peguei a letra dele. Escrevia cartas para os meus amigos com a letra do Lamarca. Tinha uma foto que a mulher dele me deu, em que ele aparecia de pijama no alojamento de um quartel lendo Guerra e Paz, do Tolstoi. Consegui a mesma edição e li durante as filmagens. Ajudou-me muito a entender o Lamarca. Ele não deve ter passado ileso por aquele romance tão poderoso. Fiquei apaixonado pelo livro que passou a ser uma referência forte para mim. Sempre que posso volto a esse romance. Os personagens sempre acabam trazendo muitas boas coisas para os atores, ainda mais quando é um que existiu de verdade e que tinha uma opção clara como o Lamarca. As pessoas passam a ver você como aquele personagem. Um general, que era deputado estadual no Rio de Janeiro e foi um dos homens que esteve na operação que acabou matando o Lamarca, ficou irritado comigo. Chegou a dar entrevista e referia-se a mim como o Lamarca. Confundiu o personagem com a pessoa. Acho que a minha devoção ao mito incomodou muita gente, porque era, realmente, uma devoção à pessoa do Lamarca, todo mundo percebeu isso. Como esse menino, o Daniel Oliveira, que fez o Cazuza agora no filme da Sandra Werneck e do Walter Carvalho. Não sei se minha interpretação do Lamarca foi tão boa quanto à desse menino, mas a entrega foi muito parecida. Ele emagreceu, eu também emagreci 15 quilos para fazer a parte final do filme. O Lamarca morreu com 47 quilos. Foi um mergulho muito fundo e talvez por isso mesmo esse seja o papel que eu fiz que mais me orgulha no cinema. E é claro que eu tenho esse lado político que as pessoas associaram com a minha entrega ao personagem. E nem sei se fui escolhido por causa disso, o Sérgio Rezende é quem sabe, mas acho que me pareço um pouco fisicamente com o Lamarca, temos a mesma estatura, o mesmo corpo. Mas também precisava ter certa chama revolucionária para fazer esse filme, tinha que ter uma vontade, um desejo de mudar as coisas. Pensei muito, na época do filme, se eu teria feito a mesma coisa que o Lamarca fez se estivesse naquela mesma situação e cheguei à conclusão que não. Eu teria sido mais pragmático, não seria o herói que ele foi. Eu não sou um herói, definitivamente. Eu acho que quando ele foi fazer a guerrilha na parte final de sua vida, ele não sabia que não havia estrutura para isso no Nordeste. Ele contava que havia pelo menos umas três mil pessoas lá, sendo treinadas e se preparando para a guerrilha. Disseram isso para ele, prometeram isso para ele. Então, pensando bem, talvez eu fizesse a mesma coisa que ele, sim, de boa-fé. É como quando você vai fazer uma excursão de uma peça e alguém fala que está tudo armado, o teatro, as acomodações, você vai, você acredita no produtor local. E isso aconteceu com ele na milícia, quando ele chegou lá, não havia mais a possibilidade de voltar. Acho que pensando bem eu faria a mesma coisa que o Lamarca, sim. Fiquei absolutamente apaixonado pelo personagem. Lendo o atestado de óbito do Lamarca fiquei ainda mais impressionado. Lá estava escrito que ele deixava mulher e filhos e não deixava bens. Lembrei do atestado de óbito de meu avô João, onde estava escrito a mesma coisa. Carreguei durante toda a filmagem um cachimbo de meu avô. Sempre ao lado do revólver do capitão, em todas as fotos do filme, está o cachimbo de meu avô. Eu gosto muito desse filme. Eu acho esse filme muito honesto, cheio de emoção, conta, com poucos recursos de produção, um momento importante da história recente de nosso país. E foi filmado num momento muito difícil da história do nosso cinema, quando o governo Collor tinha arrasado toda a estrutura do nosso cinema. Quando estávamos filmando, nossa produção era a única que estava sendo rodada no Brasil naquele momento. Nos sentíamos muito responsáveis por isso também. Lamarca foi, realmente, o filme da retomada do cinema brasileiro. Depois veio a Carla Camurati com Carlota Joaquina. E ela estava no nosso filme como atriz, fez o papel da Yara Iavelberg, companheira de Lamarca. Nos intervalos das filmagens ela tocava a produção de Carlota, que rodou logo depois. Guerra de Canudos Guerra de Canudos também é um grande filme. Um esforço de produção impressionante, um filmaço. Um trabalho de muito fôlego. Nesse épico, meu personagem, o Zé Lucena, era totalmente ficcional. Não existia no livro do Euclides da Cunha, no qual o Sérgio Rezende e o Paulo Halm se basearam para escrever o roteiro do filme. Não pensei em nada para construir o personagem, apenas vesti a roupa de couro e me misturei com os figurantes. Em pouco tempo estava parecido com eles. Fiquei morando em Juazeiro, na Bahia, por quatro meses. Até comprei um terreno lá, na beira do Rio São Francisco. Fiz amigos entre os atores locais, um deles o poeta Manuca Almeida, letrista de mão-cheia. Conheci toda a família, a Lucélia, as filhas, o irmão Armando, ficamos superamigos, até hoje nos falamos e nos encontramos. O personagem foi criado inteiramente na intuição e na vivência. Percebi depois que o meu sotaque era o mesmo que usei em O Pagador de Promessas, quando ainda estava em Sorocaba, 25 anos antes. Adoro minha participação nesse filme. Minha mulher era a Marieta Severo. Todo dia acordava de madrugada e íamos de carro, conversando, para o set de filmagens no meio do sertão. Marieta foi uma companheira e tanto. Nunca conheci alguém que soubesse escutar tanto quanto ela. Um dia, fui sozinho. Sentei-me no banco da frente. Geralmente deixava esse lugar para a Marieta. O carro capotou três vezes! O motorista dormiu em uma reta no meio do sertão. O carro ficou virado com as rodas para cima. Uma pedra entrou pelo banco de trás, se eu estivesse ali teria morrido. Não sofri um arranhão, graças a Deus. O motorista se feriu um pouco, mas nada de grave. Eu saí do carro e fiz uma foto do acidente. Naquela época eu andava sempre com uma máquina fotográfica. A equipe que vinha atrás estava lívida de susto. Eles viram tudo. O carro estava totalmente destruído. Fomos para a locação mesmo assim e filmamos o dia inteiro. Mauá Outro filme que eu adoro e que fiz com o Sérgio foi Mauá. Com produção do Joaquim Vaz de Carvalho. Toda hora encontro alguém que viu o filme. Quando passou na televisão foi uma comoção. Ninguém conhecia o homem Mauá. Ficaram surpresos com a história daquele visionário. O rapaz que cuida do estacionamento dos carros na frente da Casa da Gávea veio me cumprimentar de forma diferente. É interessante que quando um filme passa na televisão as pessoas mais simples percebem a diferença. A temática é diferente também, não só a imagem. Cinema provoca uma fascinação diferente no espectador, mesmo quando passa na televisão. O guardador dos carros havia sido tocado profundamente pela história. Ele tinha ficado emocionado com a cena em que o barão vai visitar o negro, seu grande amigo, que está para morrer, e os dois tomam uma cachaça juntos. Minha esposa nesse filme era a Malu Mader. O elenco todo é fabuloso: Hugo Carvana, Antônio Pitanga, Othon Bastos, Carlos Gregório, Rodrigo Penna, Roberto Bontempo, Rogério Fróes, Cláudio Correa e Castro. O Sérgio é um diretor que serve aos filmes que ele faz. Nos Estados Unidos há muitos diretores assim, que são considerados maravilhosos. Como o Sidney Lumet (de Sérpico, Um Dia De Cão, Negócios de Família). No Brasil, o cara precisa ser um gênio. Fazer pose de gênio. O Sérgio não se considera um gênio, ele se considera um diretor de cinema. Outro diretor com quem trabalhei e que não tinha nenhum estrelismo foi o Roberto Pires. Com ele fiz Césio 137, em 1990. Um filme sobre o acidente nuclear em Goiânia. Roberto tem seu nome garantido na história do cinema brasileiro como o autor de A Grande Feira e também como produtor de Glauber Rocha e inventor de maravilhosas traquitanas cinematográficas. Ele ia buscar a gente no aeroporto com uma kombi. Pegava a peça de césio de 70 quilos, arrastava de um lado para o outro no set sem o menor problema. Doida Demais Com o Sérgio Rezende fiz o meu filme mais sensual, Doida Demais. Foi uma delícia fazer esse filme, me dei superbem com a Vera Fischer. O Sérgio me mandava malhar, para ficar forte, eu achava aquilo tão engraçado. Mas fazia, eu sempre faço o que os diretores pedem. E agora fui ver umas fotos desse filme e não é que eu me achei bem bonitão? Na época eu não sabia que eu era bonito, mas agora, vendo as fotos, me achei o maior galã. A cena que mais gosto nesse filme é a do sarro na Rural. É impressionante como o Sérgio filmou bem aquela cena e o clima de sensualidade que ela transpira. E a Vera está deslumbrante. Ela, o Wilker e eu fazíamos um triângulo amoroso. E tinha também o Ítalo Rossi e o Carlos Gregório. Doida Demais, foi o primeiro trabalho que fiz com o Sérgio. Eu fazia um piloto de avião, desses que sobrevoam a floresta amazônica trabalhando nos garimpos. Fiz muitas aulas para aprender a pilotar um pequeno avião com apenas uma hélice. E filmamos naquela imensidão amazônica. Claro que eu não pilotava, mas é impressionante como não temos medo quando estamos trabalhando. Pegávamos temporais lá no alto, o Antônio Luis, que era o câmera, o assistente dele, o piloto e eu. Era um aviãozinho de quatro lugares, com a câmera e equipamento pesado dentro. Uma aventura. Quando cheguei com a equipe no pequeno aeroporto de Barreiras, um cara de calção e sandália de dedo se aproximou e falou: Você é que vai fazer o papel do piloto? Então vem cá. Eu fui. Pensei que era alguém da produção. Ele me disse para entrar num aviãozinho como aquele que eu estava treinando para pilotar. Entrei. Ele decolou e logo depois desceu na rua de terra em frente ao hotel. Há pouco tempo voltei a Barreiras e quando estava me aproximando do aeroporto comentei com o piloto do avião esse fato. Ele me disse: Eu conheço esse piloto. Ele atropelou e matou um homem com um avião na frente desse hotel. Quando cheguei no hotel, lá estava meu amigo piloto me esperando. Mas ele não tinha mais um avião. Ed Mort Foi muito divertido filmar o Ed Mort, com o Alain Fresnot, em 1997. Eu conhecia o Alain desde que ele era ator no grupo Ornitorrinco e se apresentava no Teatro Lira Paulistana. Ele tem um humor peculiar, e ríamos o tempo todo durante as filmagens. Alain é um excelente diretor e montou uma equipe maravilhosa para o filme, com o câmera Pedro Farkas, parceiro constante de Alain e os atores todos. O clima era sempre superestimulante durante o trabalho. Contracenei com Cauby Peixoto nesse filme, e também com o Chico Buarque, com a Cláudia Abreu, com o José Rubens Chasseraux (o Chachá), o engraçadíssimo Ary França. Olha que maravilha que é fazer cinema! Ed Mort é muito engraçado. Nele eu tento homenagear meu querido amigo Chiquinho Brandão e seu humor irresistível. Filmamos em locações na cidade de São Paulo. Um dia, durante a espera para as filmagens, dormi num colchonete no chão das Grandes Galerias. Quando acordei tinha umas cem pessoas paradas olhando meu sono, respeitosamente. Senti-me o próprio faquir que ficava bem ali na frente no Largo do Paissandu. O Toque do Oboé Esse é um filme que eu fiz e quase ninguém viu, mas que eu adoro, de 1998. Filmamos no Paraguai, é um trabalho do Cláudio MacDowel. O Cláudio é um diretor supertalentoso e tem um carinho imenso no trato com os atores. Foi professor na escola de cinema de Havana e escreveu um roteiro maravilhoso. O meu personagem é um cara que toca o oboé numa orquestra e que está com uma doença terminal e vai morrer numa pequena cidade do Paraguai. Sempre quis conhecer o Paraguai. Sempre me impressionou a crueldade da guerra contra o Paraguai. Li tudo sobre a guerra do Paraguai, o que o Brasil fez com eles foi uma grande sacanagem. Eu andava pelas ruas de Peribebuy, pequeno vilarejo onde filmamos, e parecia reviver toda a história. Os lugares tinham nomes das ruas de minha infância, Voluntários da Pátria, Aquidaban. Adoro guarânias. Esse negócio de voluntários da pátria foi a maior balela. Quem possuía escravos, mandava os coitados como voluntários para a guerra, assim evitavam enviar os próprios filhos. E teve o Conde D’Eu, esposo da Princesa Isabel, que foi de uma violência extrema nesse combate, chegando a incendiar hospitais. E o nosso grande Duque de Caxias também não teve um comportamento nada exemplar nessa batalha, usando de métodos não convencionais, como a guerra bacteriológica. Ele jogava cadáveres no rio para que infestassem as águas do lado paraguaio, levando epidemias e morte. Conheço histórias terríveis da covardia que foi essa guerra e que estavam muito presentes no cotidiano do povo paraguaio, e que permearam toda a filmagem da melancólica história do músico que vai morrer por lá. Oriundi e Anthony Quinn Outro momento de cinema que eu gosto de lembrar é o das filmagens de Oriundi, em 1999, do Ricardo Bravo, com produção da Virgínia Moraes e do Rubens Gennaro, meus parceiros em Cafundó. O ator principal era o Anthony Quinn, que tinha aceitado fazer o papel do meu pai no filme. Quando cheguei em Curitiba para as filmagens todo mundo só falava no Anthony Quinn, que ele estava bravo, que ele tinha dado um esporro em alguém, que o trailer tinha sido mudado, que ele reclamava muito, etc. Fiquei na minha. Pensei levianamente, a bola é redonda, quando tivermos que batê-la vamos fazer sem problemas, afinal, interpretar é um jogo e a bola é igual no mundo inteiro. Eu tinha visto muitos filmes do homem e tinha a maior curiosidade em conhecê-lo, mas segurei minha onda e não fui procurá-lo no set enquanto ele filmava com o Paulo Autran. Acho que eu ficaria até mais tenso filmando com o Paulo Autran, que faz mais parte de minha vida, do que com o Anthony; e é um ator tão soberbo quanto. Aliás, outro dia, quando estava fazendo a peça Como Eu Aprendi a Dirigir um Carro, percebi que o Paulo estava na platéia e quase perdi o fôlego. Depois ele foi supergeneroso, falou bem do espetáculo e tal. Tenho o Paulo muito mais presente, lembro de suas falas em Equus, lembro como ele começava, com o tom de sua voz vibrando ainda hoje: Ele está abraçando um cavalo... Tenho mais admiração pelo Paulo Autran do que pelo Anthony Quinn, mas o peso de dois Oscar, da carreira excepcional em Hollywood, de ter feito La Strada, Zorba, O Grego, Lawrence da Arábia e tantos outros coloca o ator mexicano num outro tipo de pedestal. Ele é um mito da história do cinema e estava ali, filmando em Curitiba, e tínhamos algumas boas cenas para fazer juntos. Eu sabia que era importante, um momento raro, excepcional, da minha carreira. E a sorte, mais uma vez, me ajudou. Eu adoro sebos. E Curitiba tem alguns ótimos. E lá estava eu fuçando num sebo quando, sem querer, encontro um antigo e lindo álbum de figurinhas com atores de cinema. Anthony Quinn, é claro, estava lá. Levei o álbum para ele e no nosso primeiro encontro pedi um autógrafo na figurinha dele. Mostrei ao Quinn como se jogava bafo e contei a ele umas histórias da minha infância. Ele adorou ver sua foto naquele álbum, adorou as histórias e ficou bem próximo de mim. Eu também relaxei e o vi parecido com meu pai. Um homem comum, de carne e osso. Nos ensaios ele mudava o texto constantemente, e alternava falando em inglês, italiano e espanhol, conforme o estado emocional e a cara que eu fazia de entendimento ou não. Nas filmagens ele improvisava e era supergeneroso. Quando a câmera estava no outro ator, ele ficava atrás, dando referência para que o olhar encontrasse o dele e não se perdesse no vazio. Não é todo mundo que faz isso. Ele tinha uma noção da gravidade do ato de filmar, sabia que aquele registro é perene. Não admitia ninguém na linha de visão dele porque atrapalhava, era superatento e cuidadoso. No final nos entendemos bem e ele me convidou para fazer seu próximo projeto, que seria Os Velhos Marinheiros, baseado na obra do Jorge Amado, que acabou não acontecendo. Capítulo XXVI Por Trás das Câmeras Sempre que fiz cinema como ator, ficava querendo saber tudo no set. O que era uma coisa, o que era outra, o que as pessoas estavam fazendo. Eu sempre fotografei muito o set, sempre quis saber como é que era por trás das câmeras. E você passa sempre muito tempo esperando no set de cinema, então dá para aprender um monte de coisas. Apesar de aprender no cinema, pra valer, eu vim a aprender mesmo agora, com meu parceiro, o Clóvis Bueno. Ele também não era diretor, mas a gente se complementava em nossa experiência na direção. Eu tinha dirigido teatro, muito, e o Clóvis tinha trabalhado muito como diretor de arte, além de também ter sido diretor de teatro. Daí a gente juntou tudo, e saiu um diretor de cinema. Trabalhei com o Clóvis antes, em Doida Demais e em Lamarca, onde ele foi diretor de arte. Clóvis também foi meu cenógrafo quando dirigi O Amigo da Onça. Nos entendemos superbem quando trabalhamos no roteiro durante anos e quando preparamos a filmagem do Cafundó. No set a experiência foi mais árdua, sempre um de nós tinha que abrir mão de alguma coisa, às vezes brigávamos, tínhamos noções diferentes do ritmo que algumas cenas deveriam ter, coisas assim, mas conseguimos manter a paixão pela criação acima de tudo. E tínhamos a história de Nhô João de Camargo, um exemplo de humildade que se impunha e nos orientava. O tempo enorme que levamos construindo o roteiro e preparando o projeto, quase uns sete anos, fez com que chegássemos ao set com poucas dúvidas e muito afinados sobre o que queríamos e isso ajudou bastante. Além de dividir o trabalho com o Clóvis, tive grandes parceiros nesse filme. Certamente os principais foram a Virgínia Moraes e o Rubens Gennaro, que assumiram a produção comigo, dividindo as responsabilidades, as angústias, as frustrações e também as muitas alegrias. Eles foram os produtores do filme Oriundi, e foi durante essa filmagem que aprendi a gostar do jeito de trabalhar desses paranaenses. É impossível fazer cinema sem produtores. A Virgínia e o Gennaro amam o que fazem, são persistentes, competentes, sem eles Cafundó não existiria. Quando a gente dava uma desanimada, lá estavam eles para levantar o astral, para dizer que era assim mesmo, que não podíamos desistir. Outra participação importantíssima foi a da Ângela Kucek na gerência administrativa. E tive sorte também com o diretor de fotografia, José Roberto Eliezer, a Vera Hambúrguer, diretora de arte, a experiência e competência dos irmãos Gullane, o Caio e o Fabiano, e, principalmente, os assistentes César Rodrigues e Luciana Batista, além do maravilhoso diretor de som Márcio Câmara, sobrinho do Dom Hélder Câmara. Foram companheiros de verdade durante as filmagens. E os atores! Mas esses eu sempre soube que entrariam com tudo no filme. Ator sempre é muito disponível, quer colaborar, quer ver o filme dar certo. E Cafundó é um projeto de um ator. Meus amigos foram supergenerosos. O Francisco Cuoco, Renato Consorte, Abrahão Farc, Renato Dobal, Luís Mello, Ernani Moraes, Chica Lopes, Flávio Bauraqui, Edson Rocha, Geisa Costa, todos. A maravilhosa Leona Cavalli, que além de ser uma grande atriz é uma pessoa doce, que faz tudo pelo filme que está fazendo. Mas nossa sorte grande foi ter o Lázaro Ramos. Quando eu vi o Lázaro na peça A Máquina, do João Falcão, tive a certeza de que o papel seria dele. Até aquele momento, na minha cabeça o papel principal seria do Itamar Assumpção, mas assim que vi o Lázaro em cena desloquei mentalmente o Itamar para outro papel. E, pena, durante as filmagens ele não pode estar presente, pois já estava muito doente. Ele morreu durante as filmagens, e no dia de seu enterro filmamos por coincidência uma das cenas mais fortes de Cafundó, que é quando Lázaro, completamente nu, enterra suas roupas, deixando para trás a vida antiga. O Lázaro é um ator excepcional. Ninguém acredita que seja tão jovem. Tem muita vivência. Ficou apaixonado pelo papel e foi peça-chave no processo de filmagem, não só porque fazia o protagonista, mas porque conseguia conciliar as orientações que vinham do Clóvis e as minhas, sempre generosamente procurando manter um clima amistoso, amoroso, que foi a característica principal das filmagens do Cafundó. O Leandro Firmino foi outro que ajudou muito. Levei o Leandro e o Lázaro num sítio na periferia do Rio de Janeiro para aprender a andar a cavalo. Nunca vi ninguém tão satisfeito quanto o Leandro quando ele sentiu que podia aprender, podia dominar o bicho. Durante as filmagens ele ficava o tempo todo em cima de sua mula, brincando, parecia um menino. O resultado foi que um garoto criado numa favela do Rio de Janeiro, que nunca tinha montado em um cavalo na vida, revela a intimidade de um tropeiro no trato com os animais no filme. Aprendi muito no set filmando, mas muito mais na mesa de edição. Agora eu acho que sei como é dirigir um filme, depois de ter montado. A montagem é fundamental. É incrível! Você pensa Por que é que não fizemos isso? Por que não pusemos a câmera um pouco mais pra cá? Você sente falta do material que poderia ter feito e não fez. Mas o trabalho é tão intenso, a filmagem é um tempo que não dá para pensar em nada. São dois meses de mergulho absurdo. Se chover, acabou seu filme. Então, não tem muito que pensar, não tem muita reflexão, não, é chegar lá e fazer. É um bando de gente enlouquecida, com os egos elevados a uma potência extraordinária, fazendo um filme. Cinema é muito complicado, você não pode pensar muito na hora, não. Você tem que cumprir os planos que estabeleceu previamente, e é isso. E lembro quando fazia filmes como ator, eu sempre tinha a impressão de que, se descesse um disco voador num set de filmagem, a produção não mudava o plano para filmar o disco voador. E realmente a gente não muda. Se descer um disco voador a câmera não sai da filmagem para filmar o disco voador. Os marcianos podem descer, fazer um show ali, e ninguém vai filmar porque tem que cumprir o plano de filmagem. É uma loucura a obsessão de cumprir o plano, não há um pingo de relaxamento no set de filmagem. Uma adrenalina incrível. Outra parte deliciosa do processo de trabalho é a mixagem. Ali se junta o trabalho de sonorização com a música. Uma delícia! Você vê o filme crescendo, sendo aquecido. O som é 50% de um filme! E o Beto Ferraz, o André Abujamra e a equipe do Sasso fizeram um trabalho incrível. Conheci o Zé Luís Sasso quando fazia dublagem na Álamo, em São Paulo em 1977. Um dos meus primeiros empregos. Quando o encontrei na mixagem fiquei superfeliz. Ele é um dos melhores e nossa antiga cumplicidade veio à tona imediatamente. Capítulo XXVII Cafundó e a Relação com Sorocaba Essa história do filme é uma obsessão minha, da vida inteira. Quando eu era pequeno e ia na roça do meu avô, lá em Sorocaba, no caminho tinha a igrejinha do João de Camargo. E eu contei que a roça era de um fazendeiro negro, né? Então isso ajudava a ter aquele mistério, a história da igrejinha do João de Camargo, que era negro. Eu tentei de todo jeito botar essa história na peça Na Carrêra do Divino, em 1979, mas na época não tinha nenhum negro no Pessoal do Victor, o Waterloo se desligou do grupo naquele momento, então não entrou o João de Camargo. Aí, quando eu fui cumprir a bolsa nos Estados Unidos, da Fulbright, eu vi muito documentário, e vi que as pessoas documentavam as questões familiares, que elas conheciam intimamente. E durante dez anos escrevi semanalmente uma coluna para o jornal O Cruzeiro, de Sorocaba, comecei lá nos Estados Unidos. Eu adorava escrever, registrava tudo o que estava acontecendo na minha vida, mas também pesquisava, lia, era o meu blog. E isso me manteve muito ligado com a cidade, e comecei a ter vontade de fazer um documentário, um depoimento sobre minha mãe, que tinha tido 15 filhos. Então arrumei uma equipe e fui para Sorocaba, com a idéia de fazer um documentário sobre ela. Mas na hora deu um certo pudor bobo de levar aquela equipe para registrar minha mãe, e como era Dia de Finados e ela adorava ir ao cemitério, achei que deveria começar filmando o túmulo de Nhô João e a visitação dos fiéis. Ficaram muito interessantes essas filmagens. Quando eu voltei para a casa, filmei minha mãe, ela falou do João de Camargo e eu decidi que o documentário seria sobre Nhô João e que minha mãe faria parte dele. À tarde nós sentamos num banquinho de cimento na frente de casa, minha mãe e eu. Era fim de tarde, estava um calorzinho gostoso, as pessoas passavam, cumprimentavam. Lembro que sentado nesse banquinho eu acabei concluindo emocionado que meu pai talvez não tivesse sido infeliz. Porque eu sempre achei que meu pai tinha sido infeliz por causa dos problemas mentais que ele tinha. Eu tive a sensação que ele ficava sentado ali naquele banquinho vendo o mundo em cinemascope e que aquilo devia ser muito prazeroso. Mas, enfim, chegou o Adilson Barros com a mãe dele, e eu estava todo feliz porque tinha começado o meu documentário sobre o João de Camargo e estava ali com a minha mãe. Aí falei: Pô, Adilson, comecei um documentário em vídeo sobre o João de Camargo. E o Adilson: Que pobreza, que coisa mixa. Isso é mixo. O João de Camargo é um longa-metragem, não é um documentário, é um longa, uma coisa maravilhosa. E isso fez todo o sentido para mim, comecei a pensar isso tem que ser um longa, tem que ser um longa. Naquela mesma noite o Adilson falou que tinha um trabalho do Florestan Fernandes sobre o João de Camargo, aí ficou dizendo que o João de Camargo era um tema do caralho para um filme, que eu tinha que correr atrás disso e tal. No dia seguinte eu já fui atrás do Florestan com uma câmera e peguei um depoimento. Conheci o Florestan Fernandes de uma maneira engraçada. Ele me parou na rua um dia, perto da PUC em São Paulo, para me dizer que via a novela Os Imigrantes que eu fazia na TV Bandeirantes. Depois nos encontramos em muitos palanques do PT, quando ele foi deputado. O estudo sobre João de Camargo foi o primeiro trabalho de campo do professor Florestan Fernandes na questão do negro, quando ele tinha 22 anos. Ele chamava Sorocaba de abacoros, que é o nome da cidade lido de trás pra frente. O fato de um grande mestre como ele ter interesse no tema reforçou ainda mais minha convicção de que ali estava um assunto fascinante. Aí o Adilson me falava: Procura o Sérgio Motta, vai pedir verba pro Serjão, que na época era Ministro das Comunicações do Fernando Henrique. Mas eu era PT, né? O Adilson era PMDB, era Quércia. E ele me falava: Pô, cara, você fica enchendo o saco por causa da aposentadoria do Franco Montoro. Deixa o Franco Montoro com a aposentadoria dele, é um homem maravilhoso, tem que ter aposentadoria. Você também não quer aposentadoria? Eu quero aposentadoria! A última vez que encontrei o Adilson, a última vez que o vi vivo, já muito magro, abatido pela Aids, foi em 1997. Eu estava excursionando com a peça O Inimigo do Povo, que passou por Campinas e ele foi ver. Perguntei o que ele tinha achado da peça e ele disse: é um Velho Barreiro, comentário engraçado, bem do Adilson. Alguém se lembra do desenho da embalagem dessa pinga? Na hora de se despedir ele falou no meu ouvido: Procura o Sérgio Motta, depois foi embora. Depois de Campinas a peça foi para Brasília, e lá, no primeiro dia, fui jantar na permuta do teatro e na frente tinha uma boate, Gates, que estava apresentando o Itamar Assumpção . Fui ver o show e dei de cara com o Sérgio Motta. Naquela época eu queria o Itamar Assumpção no papel do João Camargo, e o Serjão era fã do Itamar. Ele disse que se eu fizesse um filme com o Itamar ele patrocinava. A gente tirou uma foto. Itamar, Sérgio Motta e eu saímos na Isto É e no Correio Brasiliense. Imediatamente eu fiz um bom projeto, mas quando fui levar para o Sérgio Motta, ele ficou doente, estava internado no hospital e nunca mais saiu. Perdi o patrocínio dele e começou tudo do zero de novo. Hoje eu acho que ele foi uma figura incrível, fez boas coisas, o Sérgio Motta pensava longe. Naquela época eu era mais opositor a ele. Hoje eu compreendo muito mais a sua importância. Capítulo XXVIII Morte da Mãe Esse período que vai da conclusão de que Cafundó deveria ser um longa-metragem, em 1993, até começarem as filmagens, foi de dez anos! Nesse tempo minha mãe ficou três anos em coma profundo. Lembro do momento em que ela teve a crise. Ela saiu da UTI do Hospital Samaritano, em Sorocaba, muito inchada pelos medicamentos. O médico receitou um remédio que deveria fazê-la desinchar. Houve um choque. Ela entrou numa euforia. Deitada na cama do hospital, imóvel, falava com excitação dos bailes da juventude, dos pretendentes, de como tinha sido cortejada quando era jovem, de um namorico com um preto. E ria, divertida. Aos poucos foi cambiando para uma aflição, onde me recomendava comprar as galinhas, comprar um terreno. Fui vendo um desespero em seus olhos, como se ela estivesse caindo de uma grande altura, e foi o fim. Minha irmã Cida, que foi enfermeira, percebeu o que tinha acontecido, e de certa maneira previu que o final poderia ser muito demorado. O médico-chefe do hospital, dr. Espartacus, disse que ela não duraria muito. Minha irmã, Cida, duvidou. Ela levou nossa mãe para casa e cuidou dela com carinho e profissionalismo. Um dia recebemos a notícia de que dr. Espartacus havia morrido. Minha irmã e eu não pudemos deixar de rir da ironia. Três anos é muito tempo! Minha mãe ficou muito magrinha, poderia ter tido escaras e muito mais sofrimento se não fosse a dedicação e o desvelo que minha irmã teve para cuidar dela. Era impressionante o cuidado e como a vida conseguia seguir normalmente com a mãe ali, vegetando durante tanto tempo. Lembro das crianças brincando no quintal, os pássaros cantando nas gaiolas. As crianças paravam de brincar e iam colocar a comida no tubo que alimentava a bisavó que estava ali, demorando a morrer. À noite eu dormia na cama ao lado daquela onde minha mãe jazia. Antes eu ia para a casa do José Carlos de Campos Sobrinho e da Cleide Riva Campello, comíamos, bebíamos maravilhosamente, a Cleide é grande anfitriã, e conversávamos sobre o livro que o Zeca escrevia sobre João de Camargo. A idéia do livro surgiu quando decidi fazer o filme. Zeca, que é médico de formação, resolveu escrever um livro, que seria útil também para a pesquisa que eu teria que fazer para o filme. Ele convidou o historiador Adolfo Friolli e começaram o trabalho. O livro foi lançado três anos antes de começarem as filmagens. Consegui uma editora e participei do processo todo da busca de material, bem como do lançamento do livro em Sorocaba, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Sempre levávamos a Banda do Conservatório Dramático e Musical de Tatuí, que, sob a batuta do maestro Pereira, tocava as partituras originais da Banda de Nhô João, a Número 5! Eu aproveitava a ocasião e declamava o poema Pitoco, um clássico da cultura caipira. Assim foram os três anos de agonia de minha mãe. Eu ia para Sorocaba, ia pra casa do Zeca e da Cleide, jantávamos, conversávamos, sonhávamos o livro e o filme e depois eu ia dormir com minha mãe agonizante. Isso deve estar no filme, de alguma maneira. Capítulo XXIX Captação de Recursos – Um Drama A captação de recursos para o filme demorou dez anos. Nem sei porque foi assim, mas foi assim. Eu acreditei em todas as perspectivas, tanto a do Serjão, quanto em várias outras que surgiram no percurso. Vou contar uma historinha de captação de recursos para o filme para você ver como é difícil conseguir o dinheiro. Um amigo meu de Sorocaba, o professor Marins, que é um antropólogo e palestrante famoso em todo o Brasil, me falou: Vai procurar o Júlio Bierrenbach, presidente do Seguro Real. Ele tem a ver com esse filme, vai gostar da idéia, procura ele. Eu fui, vesti um terno – naquela época eu ia de terno, achava que dava mais credibilidade –, marquei o encontro, cheguei, mostrei o projeto e ele achou lindo. Eu levava de tudo para os empresários e possíveis patrocinadores verem, muito fato, muita pesquisa, era uma demonstração mesmo. Acabou, ele falou: Essa história é do caramba! Mas eu preciso falar com o meu pai. No outro dia ele me ligou, e falou: Senta que eu vou te contar uma história. Falei com o meu pai, que é o almirante Bierrenbach – o almirante Bierrenbach é o homem que votou a favor da abertura do processo Riocentro, é uma pessoa especial dentro das Forças Armadas –, ele lê a tua coluna no jornal de Sorocaba. Quando eu era garoto nós tínhamos medo que as barragens da represa de Itupararanga arrebentassem, a gente achava que a cidade seria coberta de água – era uma lenda. E eu escrevi sobre isso na coluna quando descobri que a Marinha brasileira estava fazendo em Sorocaba o Projeto Aramar, que era o projeto secreto de um submarino atômico. Por que um submarino a 300 quilômetros do mar? Eu falei isso na coluna e também do medo da energia atômica, e o almirante leu porque dizia respeito às preocupações dele, né? O almirante também conhecia muito a história do João de Camargo, porque o pai dele, avô do Júlio Bierrenbach, tinha feito o desenho do arruamento em torno da igreja do místico, a pedido do Nhô João. Antigamente era assim, cada um fazia o seu próprio arruamento, é por isso que as cidades não são nada planejadas. Mas, enfim, o avô do Júlio, pai do almirante, que era engenheiro, fez o arruamento e não recebeu nenhum dinheiro por isso. Uns seis meses depois, ele não estava muito bem financeiramente e chegou um envelope lacrado para ele, ele abriu e tinha cinco contos de réis dentro do envelope, e quem tinha mandado era o taumaturgo. Eu não acreditei quando o Júlio me contou, fiquei maravilhado e falei: O seu avô recebeu cinco contos de réis do preto velho, bom, está estabelecido com quanto que o Seguro Real vai entrar nesse filme. Corrige cinco contos de réis em 84 anos e vê o que dá. Vai ser o patrocínio mais orgânico e miraculoso da história, né? Bom, aí entrou o gerente de marketing na área, um monte de outras reuniões, ternos, viagens de avião, e o resultado é que o Banco Real não deu um tostão para o filme. Não foi nem calculado quanto daria os cinco contos de réis do preto velho. Pobre do Júlio! Eu sei que ele tentou tudo o que pôde, mas bancos não costumam honrar dívidas de bigode dos avós de seus diretores. E assim por diante, foram mil histórias, mil reuniões. Teve outro banco que eu senti que tinha interesse nas terras do Cafundó, eles me chamaram, me atenderam, me receberam, mas só para ver que filme era aquele, porque acho que um dos diretores estava grilando as terras do Cafundó. O filme não tem a ver com essas terras, mas o nome do filme sugere que tenha. Enfim, eu acho que a busca do patrocínio foi o período mais desgastante. Eu poderia ter feito outras coisas que não fiz por causa disso. Eu não desisti por causa da frase do João Guimarães Rosa, o real está na travessia, e por minha fé em Nhô João, eu sempre achei que devia essa homenagem a ele. Eu tinha a ilusão de que seria mais fácil produzir o filme. Que alguns grandes empresários da cidade se juntariam e bancariam a empreitada, usando a lei, sem tirar dinheiro do bolso, aproveitando a renúncia fiscal. O custo do projeto foi de três milhões e meio de reais. E olha que eu batalhei para isso. Escrevi uma coluna durante dez anos explicando como faria o filme e qual sua importância. Hoje imagino até que esse excesso de transparência que a coluna propunha, explicando, reivindicando, esclarecendo, tudo isso tenha atrapalhado, tenha assustado as pessoas. Eu mantive durante dez anos os leitores numa expectativa, contando todos os passos que estava dando para produzir o filme. Eu escrevia: Ontem eu fui conversar com o Fernando Henrique Cardoso, conversei também com o governador Olívio Dutra do Rio Grande do Sul e com o ministro tal e tal, eu escrevia tudo na coluna. Quando finalmente fui rodar o filme o jornal Cruzeiro do Sul, atravessando dificuldades financeiras e conseqüente falta de espaço, resolveu cancelar minha colaboração, me dispensou. Uma pena. Imagine como seria bacana escrever no jornal durante as filmagens? Contar tudo que estava acontecendo. Tá tudo lá nos arquivos. Capítulo XXX Luta de Classes e Poder O tempo longo de desenvolvimento da empreitada e as dificuldades criaram diversas paranóias. Uma que alimentei durante muito tempo foi a de que havia um complô, uma organização de pensamentos reacionários que queriam impedir o filme, numa mistura de racismo, reação política e luta de classes. O cinema, além da imaginação, também tem uma relação muito forte com o poder, e aí, nessa paranóia, comecei a achar que parte da cidade certamente não queria, talvez até inconscientemente, me dar esse poder, de comandar uma produção grande, que mexe com a cabeça das pessoas como o cinema. Na minha obsessão eu imaginava os poderosos da cidade pensando: Como é que nós vamos dar a esse cara o poder de fazer isso? E ele ainda escreve uma coluna dizendo que é o Tarzan em Nova Iorque! Era esse o nome da coluna quando comecei a escrevê-la. Eu fantasiava que eles estavam incomodados com o fato de eu ter conseguido o dinheiro para fazer o filme, sem eles. Comecei a ficar obcecado com a idéia de que tinha vindo de uma classe social que não pode fazer cinema. Que se fosse o filho do empresário, do doutor não sei o quê, talvez, mas filho de uma empregada doméstica e de um servente de pedreiro, irmão do sapateiro da praça. A dificuldade de conseguir o dinheiro e alguns episódios chocantes faziam com que meus delírios persecutórios parecessem reais, por exemplo: eu faço parte do Instituto Cultural Vila Leão, em Sorocaba, eu tenho a casa que era da minha família durante 40 anos, onde funciona esse Instituto, eu tenho a minha vida inteira lá e quando fui pedir verba na lei de cultura local os jurados negaram dizendo que eu não era de lá! E quando, finalmente, depois de três tentativas, eu consegui legalmente ter direito à verba, uma verba que se não viesse para o filme não iria pra projeto cultural nenhum, seria devolvida para os cofres públicos, uma vereadora do PT(?!) entrou com um requerimento no Ministério Público para bloquear o dinheiro. Esse tipo de perseguição justificava a minha paranóia. Foi tudo muito complicado, mas tudo muito verdadeiro e acho que saí dessa história entendendo muito mais da natureza humana. A inveja é uma merda, como está escrito nos pára-choques de caminhão. E é claro, tem o tema do filme, a história de um escravo, uma história religiosa, que mistura umbanda, espiritismo e catolicismo. É um tema muito difícil de ser engolido. Alguém, um provável patrocinador, falou: Por que a história de Nhô João?, Por que você não conta a história do cel. Fernando Prestes? Eu respondi: Porque ele não criou uma religião e não tinha uma igrejinha para ele no caminho da roça de meu avô!. Eu caminhava pelas ruas de Sorocaba e todo mundo, nos bares, nas esquinas, perguntavam: E o filme? Cadê o filme? Até uma escola de samba de São Paulo, a Império de Casa Verde, do Grupo Especial, saiu com João de Camargo como tema de seu enredo. Eu tinha a ilusão de que todo mundo só pensava no filme, que Sorocaba estava vidrada no filme, contra e a favor. Que bobagem! As pessoas estavam informadas sim, mas cada um mais preocupado em tocar sua vida e quando o filme passar irão vê-lo no cinema, ou então esperar sair em DVD ou passar na televisão. Só eu, em meus delírios, pensava que tudo tinha que parar porque eu tinha inventado de construir uma catedral de celulóide. Meu conterrâneo de Capivari, o Amadeu Amaral, escreveu no seu livro A Pulseira de Ferro: Toda pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem-sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade número incontável de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe são absolutamente estranhos, não se tratando já de oficiais no mesmo ofício, conhecidíssimos como inimigos natos. Eu devia ter lido esse livro antes! A Crítica Antecipada A coisa mais tocante que aconteceu foi receber o jornal da Associação Protetora dos Insanos - hoje eles têm jornal, as coisas mudaram no hospital que trata os doentes mentais onde meu pai ficava internado. Pois bem, recebi um jornalzinho em que um paciente escrevia a crítica do filme, que ainda nem tinha sido filmado! Ele imaginou e escreveu que o filme tinha sido maravilhoso, que ia ser um sucesso incrível. Com charge e tudo! Lindo. Patrocinadores No final das contas, o filme aconteceu porque entrou a BR Distribuidora. O Luiz Antônio Viana, seu presidente na época, numa reunião de meia hora, entendeu a importância do projeto e botou um milhão da BR Distribuidora no filme. O contrato com a BR deu firmeza, garantia, foi ótimo para levar para as outras empresas verem que tudo estava no caminho certo. Entraram também a Eletrobrás e o BNDES. De Sorocaba, a primeira a acreditar foi a Iharabrás, graças à sensibilidade do Antônio Amadeu Andreosi; depois vieram a Construbase, a Coopertools via Duílio Justi, a Luk via Romeu Massoneto Jr., e entrou a Lei de Incentivo do município de Sorocaba, por iniciativa do prefeito Renato Amary e seu secretário Carlos Maria. E teve também o Laércio Pereira, que entrou generosamente, sem fazer uso de nenhuma lei de incentivo! Tive muito apoio da Rede Globo de Sorocaba, que agora se chama TV Tem, e outros, Correios, Banco Safra, Nossa Caixa, Banespa-Santander. Visitei umas 400 empresas. Fui e acreditei em todas as perspectivas e achei que isso me deu uma grande experiência. Muita gente ajudou, marcou encontros, agendou, seria injusto se não falasse de Oswaldo Daniel, Hugo Rothschild, Maria Isabel Monteiro, Maria Cassiane Souza, professor Marins que deu boas dicas, Túlio Marins que nos mandou as mulas que usei nas filmagens e muitos outros. Capítulo XXXI Dez Anos Eu não fiquei dez anos fazendo só isso, só correndo atrás de verba para o filme. Se fosse assim, acho que teria enlouquecido, além de falido. Fiz teatro, televisão, cinema. O filme ficou germinado e sendo trabalhado o tempo todo. Mas minha carreira não parou. Eu sempre acho que alguma coisa a gente aprende em tudo e acho que conheci muita gente boa nesse trajeto. Quando você faz um filme que envolve valores altos, três milhões de reais, é um milhão de dólares, né? Isso desperta uma ambição nas pessoas, foi uma experiência de vida muito forte e definitiva pra mim. Hoje sei muito mais da natureza humana. Quando entrou o dinheiro eu peguei e botei na mão dos produtores, da parte executiva. Eu não assinei um cheque no set de filmagem. Eles é que articularam o dinheiro e me pagaram o que acharam que deviam me pagar, como diretor do filme e como produtor do filme. Eles calcularam, e decidiram o que é que eu ia receber dentro disso. Não fui eu que decidi. E eu entendo de dinheiro, eu saco muito de dinheiro. Interesso-me pelo assunto, leio a seção de economia dos jornais, eu sei cotação do dólar, eu sei de Bolsa. Minha mãe era analfabeta, mas sabia contar dinheiro. Eu gosto de dinheiro, tenho sangue árabe, sou descendente de italianos, mas gosto de fazer negócio, eu gosto de pagar, gosto de receber, gosto de negociar. Eu adoro isso! Não tenho problema com dinheiro, mas eu queria ficar mais tranqüilo durante as filmagens e não ficar assinando cheques. Capítulo XXXII Chatô O orçamento de um filme é quase uma abstração, mas precisa virar uma coisa concreta, né? É difícil vender a idéia de um filme num país como o nosso, com tantos problemas sociais. Um filme é como uma catedral, construída sem estruturas, de pedra e concreto. Engraçado que, quando fui falar a primeira vez com o prefeito de Sorocaba sobre o filme, ele comentou: Você viu quem acabou de sair da minha sala? Um padre. Sabe o que ele veio fazer? Falar da construção de uma nova catedral que custa o mesmo valor de seu filme! Se der uma zebra, se São Pedro não colabora, se acontece algum imprevisto e você perde o controle do caixa, você dança. E é isso que eu acho que aconteceu em Chatô. Quando o Guilherme Fontes trouxe o cineasta Francis Ford Copolla, todo mundo achou isso o máximo. Ele gastou 100 mil dólares para trazer o Copolla, segundo dizem. E todo o mundo adorou, todo o mundo achou genial, maravilhoso, o Copolla veio aqui, ficou dando canja, namorou, foi dançar Carnaval, a imprensa amou. Depois todo o mundo disse que foi uma besteira o Guilherme ter trazido o Copolla, mas naquele momento ele parecia certíssimo. Parecia que ele estava agregando um valor ao filme, a opinião e o apadrinhamento do Copolla. O resto eu não sei, ele tentou fazer o filme e deu no que deu. Eu não sei para onde foi o dinheiro, eu acho que foi para o filme. Espero que tenha ido para o filme, mas eu não posso riscar nenhuma alternativa, porque um filme pode custar x ou pode custar y, depende. Quando nós fazíamos Chatô, eu estava lá como ator, filmávamos no Palácio do Catete, tinha ar condicionado durante as filmagens. E quer saber? Eu acho que é bom que tenha ar condicionado nas filmagens. Você vestido com roupas de época, aquele calor imenso, era legal, entravam uns tubos enormes de ar condicionado, ficava fresquinho e a gente filmava. Depois disseram que isso era desperdício incrível de dinheiro, mas durante as filmagens eu achava muito legal. E nunca vi nada que parecesse desonesto. O que eu vi no set me deu a impressão de que estava sendo feito um filme caprichado, com idéias muito bacanas, o Guilherme dirigindo direitinho, estava superbacana. Mas eu não trabalharia de novo com o Guilherme, não. Eu defendi o Guilherme até o penúltimo momento, mas no último momento eu me estressei. Quando eu raspei meu cabelo pela segunda vez, para fazer a continuação da filmagem – teve até uma terceira – o Guilherme acho que percebeu que eu estava fazendo muito pelo filme, então ele me disse: Paulo, o filme tem todos esses figurinos, quando você for fazer o seu filme, se você precisar de figurino, eu te empresto. Tinha muita coisa de época, uns ternos anos 40, e quando eu fui fazer o meu filme, precisava de muitos ternos desse estilo para filmar um enterro e a figurinista reclamou que tinha pouco dinheiro. Me lembrei da oferta do Guilherme, pedi os figurinos emprestados e ele negou, não emprestou. Fiquei muito grilado com ele nesse último momento. Eu me lembrei muito daquela história do escorpião que vai atravessar o rio nas costas de um sapo, de favor e quase chegando na outra borda dá uma ferroada no sapo, porque essa é a natureza dele. E o Guilherme foi assim comigo, na hora que eu precisava que ele fosse generoso, ele foi mesquinho, tacanho. Eu já disse isso tudo para ele. Mas quando o filme estrear eu vou assistir, claro, vou adorar, tomara que seja maravilhoso, eu vou querer que seja maravilhoso. O cinema é mais importante que questões pessoais. E acho que eu tenho um papel muito bonito no filme. Eu faço o Getúlio Vargas, e acabei fazendo no cinema o Lamarca, o Getúlio e o Mauá, três grandes personalidades da história do Brasil, né? Capítulo XXXIII Ser Ator II O ator usa o seu próprio corpo, o ator é o seu próprio instrumento. É uma profissão meio esquisita essa. Quando você entra em cena é julgado em parâmetros que são muito subjetivos. Alguém entra em cena e diz: Nossa! Como ele é simpático! Olha que carisma ele tem! São essas palavras, né? Talento, carisma, simpatia. Você é julgado por esses parâmetros, e eles não podem ser medidos cientificamente, tudo depende de quem vê. Isso tudo deixa o ator muito inseguro. O Plínio Marcos dizia que ator agarra até em fio desencapado para poder representar o papel bem e agradar o público. A formação que eu tive na EAD era a básica do teatro ocidental, de uma forma bem substancial, o teatro do (dramaturgo francês) Molière, do (dramaturgo inglês William) Shakespeare e tal. E do ponto de vista da formação técnico-emocional do ator a gente tinha a escola do (ator, diretor e crítico de teatro russo Konstantin) Stanislawski. Nós aprendíamos técnica vocal, esgrima e muitas coisas mais, mas basicamente procurava a verdade do ponto de vista emotivo em cada cena. Trocando em miúdos, a cada empreitada, a gente tenta se ligar ao personagem da forma mais honesta possível: Eu não sou aquela pessoa, mas eu vivo diante de circunstâncias propostas que me levam a ser o mais parecido possível com aquela pessoa que foi criada por um escritor não sei onde. Enfim, esse é um jeito stanislawskiano de abordar uma pessoa fictícia, de ter o máximo da vivência dela. Claro que você não vai ser aquela figura humana imaginada, mas acaba incorporando algumas coisas, se preparando para sentir aquilo que ela hipoteticamente sente. Tem também o método inspirado no Bertolt Brecht, então você pode submergir na personagem, naquela abstração, mas ao mesmo tempo deve ficar a uma certa distância dela para poder criticá-la. Eu fiquei apaixonado pelo teatro do Brecht, por seu caráter político, pelo seu aspecto revolucionário. Uso as ferramentas que a EAD me deu de como abordar um personagem até hoje, talvez agora de um jeito mais diluído, mas a base é sempre a mesma. Eu não gosto de ficar muito tempo me angustiando antes de entrar em cena. Eu gosto de fazer a minha maquiagem em dez minutos mais ou menos, pelo menos nessas peças realistas que não exigem uma maquiagem especial, e estou pronto para começar. Uma curiosidade: quando eu chego no teatro depois de uma viagem de avião, acabo fazendo melhor a peça. Acho que aquele pequeno tremor do avião funciona como um relaxante muscular de primeira para mim. É muito bom. Chego cansado, mas me ajuda. Por outro lado, uma coisa que me atrapalha muito é saber quem está na platéia. Qualquer pessoa que eu saiba que está na platéia me atrapalha, eu fico pensando naquela pessoa, fico querendo fazer para aquela pessoa, fico achando que aquela pessoa não está gostando, não está entendendo, e que se eu fizer de um outro jeito ela vai gostar mais e aquilo me atrapalha muito. Eu acabo sendo dominado pela pessoa. Não pela platéia, pela pessoa. A quantidade de público não interfere muito. Às vezes você está fazendo uma peça que não lota nunca, aí, na noite que lota você acha que vai fazer um belo espetáculo, mas a platéia, apesar de numerosa, é ruim, e sai uma droga. E outras vezes, na noite em que tem menos gente você faz o melhor. Muitas das melhores apresentações que eu fiz foram para pouco público, aquele dia em que tinha menos gente na platéia, mas que era um bom público, atento, sensível, inteligente. O público é sempre a coisa mais importante, e a mais imprevisível. Tudo o que os atores falam quando saem de cena é sobre o público. Pelo menos nas peças que eu participei, a conversa sempre girava em torno da platéia, se eles eram bons, se estavam gostando, se eram talentosos, se estavam se divertindo, é sempre isso. As apresentações são absolutamente diferentes a cada noite. Você faz tudo igual, mas a química, a reação da platéia é diversa. É uma coisa sutil, só quem percebe são os atores. Até mesmo o diretor às vezes não percebe. E então acontece de você fazer excelentes apresentações e o mesmo espetáculo às vezes sair péssimo. Depende do talento da platéia, do humor, do jeito como eles percebem o que os atores estão fazendo. E o público é um coletivo que está sempre sujeito a tudo, ao clima, às notícias do dia, a uma porção de fatores. Tudo interfere no meu desempenho em cena, a vida pessoal, uma briga em casa, tudo. Mas geralmente eu saio das peças bem, melhor do que quando eu chego no teatro. Ele sempre teve pra mim o poder de me curar de uma certa maneira, sempre me fez bem. Sinto um cansaço bom, saio achando que foi legal, saio revigorado do teatro. E sou um ótimo público. Eu adoro ver teatro, sou desarmado, não fico pensando em como eu faria. Depois, sim. Mas durante eu sou surpreendido pelos golpes, eu gosto de quando apaga a luz e começa a acender os refletores, eu gosto de peças que têm mais atores, não gosto muito de monólogo, eu gosto de peças que eu sei que vai entrar um ator diferente, daqui a pouco vai entrar outro, eu gosto muito de teatro, eu gosto como espectador mesmo. Eu ganhei muitos papéis bons nas montagens curriculares da EAD porque eu tenho muita facilidade para ler. Então eu me aproximo dos personagens rapidamente, na leitura. Isso era até meio condenável na escola. A gente não podia ler logo de cara com intenção. O método dizia que você devia fazer neutro para depois chegar na intenção do personagem, da cena. E eu nunca fiz assim, já queria ir logo para o personagem. Isso sempre me fez ter a sensação de ser mau ator. Eu passei muito tempo me achando bastante canastrão. Eu ouvia essas opiniões de que me aproximava muito rapidamente dos personagens, e como também não gostava muito de me concentrar para entrar em cena, fiquei achando que era realmente um péssimo ator e sofria muito com isso. Mesmo assim, acho que na essência, sou ator. Comecei como ator, fiz uma escola de formação de ator. Depois eu comecei a dirigir. Mas, entre a direção e a atuação, o que mais me rendeu prêmios, reconhecimento da crítica, foi a direção. Se fosse avaliar pelos prêmios, eu devia ser só diretor. Tenho uns 17 prêmios como diretor e não tenho cinco prêmios como ator. Eu não me julgo muito talentoso. Eu não sou um talento natural para a representação, ou para a direção, não sou criativo, mas me informo, leio, estudo, trabalho, me esforço. Capítulo XXXIV Assédio Eu não me incomodo com o assédio, muito pelo contrário. Gosto disso, de ser reconhecido, tenho um desejo muito grande de agradar as pessoas, de retribuir, de corresponder, gosto de dar autógrafos, gosto que a pessoa leve aquilo para casa. Gosto que falem que me viram e que cheguem em casa e contem para os outros, gosto de pensar que isso dá uma alegria e eu sei que dá. Lembro de uma vez que vi a Bruna Lombardi na rua e cheguei em casa feliz – já era ator – e contei na mesa de jantar da minha casa e senti que aquilo transmitia uma alegria. Um amigo meu que é poeta e mora em Curitiba, o Zé Carlos Corrêa Leite, me disse: Paulo, quando você era ator em Sorocaba e eu trabalhava na tecelagem, eu via você na rua e isso me dava a maior alegria, você era o artista que eu tinha visto na rua. Eu não sabia disso na época, mas adorei quando ele me contou. Eu me lembro também que vi uma vez o Carlos Drummond de Andrade, comparação pretensiosa, não? É sempre especial ver alguém que você gosta, que você admira, andando na rua. Você pega um pouco da luz daquela pessoa e leva com você. Alegra-me dar essa alegria para as pessoas. Eu sei que isso faz bem, eu sei que isso agrada, por um momento ela está ali no mesmo lugar que o artista, então, ser reconhecido, dar autógrafo, não me aborrece nunca. Antigamente eu escrevia assim: Um beijo, quando era mulher e Um abraço, quando era homem. Mas um dia uma mulher chegou e começou a tirar uns papéis da bolsa procurando onde eu podia escrever, aí me deu um papel e eu: Um beijo, e tasquei meu nome. Daí eu abri o papel e era uma receita médica, escrita assim: Para uso interno na vagina. Aí parei de escrever Um beijo, agora escrevo Tudo de Bom, que é como minha mãe me dispensava quando eu estava enchendo muito o saco, às vezes no telefone ela dizia: Tudo de bom! Quando ela queria me interromper, dizia: Tudo de Bom, bem rápido, para não dar tempo de eu falar mais nada. Capítulo XXXV A Crítica Acho que o fracasso ensina muito. E não sofro muito quando um trabalho não dá certo, não. Uma vez, na escola de teatro, um professor chegou para mim e disse: 50% das pessoas vão gostar de você, vão gostar do que você faz, e outras 50% não vão, acho que foi o Jonas Bloch, ou o Sílvio Zylber. E é assim mesmo, de graça, você gosta ou não gosta de um ator, e os motivos não são conhecidos, não dá para listar, é uma espécie de química, bate ou não bate. Já fui criticado por quase todos os críticos que estão por aí, e por muitos que já não escrevem mais. Já falaram bem e mal de mim, todos. E eu leio, leio tudo, presto atenção, eu respeito os críticos. Apesar de não conseguir entender como alguém possa escolher como meio de vida julgar os outros, o trabalho dos outros, eu acho que é um trabalho muito importante o ofício do crítico. É difícil você ter que dizer o que achou de determinado trabalho, e escrever a sua opinião no jornal, não é fácil ser crítico. Eu comecei a ler jornal com uns 14 anos de idade. No bairro onde eu morava as ruas eram de terra e entrava uma única assinatura do Estadão lá. Era a minha. Lia o Suplemento Literário do Estadão, e eu não conhecia os atores e não assistia às peças porque estava lá no cafundozinho da Vila Leão, mas sabia quem eram os atores respeitados, tinha admiração por alguns que eu nunca tinha visto trabalhar. Então acho a cobertura dos jornais, a crítica, muito importante. Uma peça estréia, e a gente só contabiliza o público que foi ver a peça. E o povo que quis ir ver e não pôde? Tudo isso faz parte do fenômeno teatral e isso tudo está na mão do crítico, do editor, do articulista do jornal, do cara que escolheu a foto. Acho que as piores apresentações que fiz sempre foram para os críticos, porque sempre dão um jeito de me avisar que eles estão lá, eu tento proibir os produtores de me avisar, mas eles sempre dão um jeito. É uma sacanagem, vem sempre alguém com um pequeno sorriso falando assim: Hoje tem alguém. E eu sempre aviso 200 mil vezes que não me digam. E têm uns críticos que tomam nota, então aí é terrível. Ainda mais quando estou fazendo peça em teatro pequeno, como o da Casa da Gávea, aí vejo a pessoa anotando, aquilo acaba comigo. Capítulo XXXVI Dirigir Esse negócio de dirigir é uma coisa que sai meio assim, eu vou deixando fazerem, deixando contribuírem, incentivando. Sou bom de organizar, fazer as pessoas ficarem juntas, evitar que elas briguem, fazer com que rendam o máximo delas próprias, que dêem tudo de bom para aquele projeto. Isso eu acho que sei fazer. Gosto de ter a palavra final, gosto de apontar a direção, embora muitas vezes eu não saiba para onde ir, então junto todo mundo para decidir. Todas as vezes que eu dirigi uma peça foi um trabalho de muita colaboração. A minha maneira de trabalhar é assim, eu não chego para dirigir um espetáculo com a concepção inteira na cabeça. A concepção nasce junto dos atores, da equipe. Eu dirigi Assim é, se lhe parece, eram 15 atores do primeiro time, fez um sucesso estrondoso. Mas me incomodava um pouco o fato de que depois da estréia, durante a temporada, quando acabava a sessão todo mundo ia embora, cada um para o seu canto. Era impossível segurar os atores. Eu queria falar com eles, eu gosto de acompanhar as peças que eu dirijo, gosto de assistir no fundo do teatro e depois chegar para o elenco e dar pequenos toques, para fazer a peça ir engrenando, para que ela permaneça viva. No Feliz Ano Velho eu fiquei 150 apresentações operando a luz quando o Carlinhos, que era o nosso iluminador, caiu de uma escada depois da estréia e se machucou. Ele foi dar uma afinadinha na luz, caiu e quebrou a bacia, ficou dois meses no hospital - e eu fiquei operando a luz. O Feliz Ano Velho ganhou muito ritmo com isso, porque eu ia interferindo no espetáculo diariamente, a luz é uma edição, não é? Você apaga, a cena tem que mudar. O que me apavora quando estou dirigindo é a impressão de que os atores estão todos a ponto de saírem para ir fazer uma novela, ou um filme. Está todo mundo esperando um chamado para uma novela e eles vão largar a peça se forem chamados. Então, você tem um bom ator fazendo um bom trabalho, mas está arriscado a perder esse cara daqui a uma semana. O Marcos Frota foi chamado pra fazer uma novela às vésperas da estréia do Feliz Ano Velho e ele não foi. Foi muito bom pra ele, mas é muito difícil de isso acontecer. Os atores precisam se dividir entre o teatro e a televisão. Por que as peças de teatro começam as nove e meia, no Rio de Janeiro? Porque o horário de gravação das novelas acaba às nove. O horário de teatro no Brasil seria melhor se fosse às 8 horas, como é na Europa, como é nos Estados Unidos. Mas o teatro no Brasil tem que obedecer aos horários dos estúdios de gravação. Eu tenho uma certa nostalgia do tempo em que trabalhávamos completamente distantes da possibilidade da televisão. Os ensaios não tinham hora para começar nem para acabar, era uma delícia. Era uma coisa bem amadora, no melhor sentido. Já dirigi atores talentosíssimos. E para dirigir um ator muito especial você tem que gostar dele, não procurar modificá-lo. Aceitá-lo. Quando a gente dirige, a gente tem a pretensão de querer modificar a pessoa. Pode até conseguir modificar um pouco a interpretação do ator, mas tem que fazer isso com carinho, porque você vai ter que moldá-lo, vai ter que mexer com a insegurança dele, então o negócio é pegar leve, com cuidado. Para não agredir. Capítulo XXXVII Instituto Cultural Vila Leão O Instituto fica na casa onde passei a minha infância e na cidade onde estão todos os meus irmãos, a minha família. Quando fomos inaugurá-lo, chamei o padre Martini, o padre da minha infância, que foi muito importante para mim, para ir lá fazer uma bênção. Aí ele citou Camões nessa bênção: Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando. Quer dizer, de uma certa maneira a gente faz essas coisas todas para fugir da morte. Naquele dia eu fiquei olhando para o quintal lá da casa onde fui criado, onde a minha avó matava porco com uma faca e me obrigava a segurar a pata do bicho. E naquele exato lugar estava acontecendo uma peça do Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, com os alunos do Instituto. Bem no meio do quintal, onde tinha um pé de café, um ipê, um pé de romã, ali no meio daquilo tudo estavam as ninfas do Sonho de uma Noite de Verão. Foi muito bonito, muito emocionante. O Instituto tem dado alegrias e muitas dores de cabeça também. Não estaria em pé até hoje se não tivesse o trabalho abnegado de professores como a Fernanda Maia, o Heitor Saraiva, Elvira e Ila Gentil, além dos verdadeiros esteios que são a Cassiane Maria, a Isabel Monteiro e o Pedro Courbassier. Capítulo XXXVIII Política No começo da minha carreira profissional o ambiente era de muita censura e patrulha ideológica. Quando a gente levou o Cerimônia por um Negro Assassinado para o Rio de Janeiro, depois de uma temporada de muito sucesso em São Paulo, uma jornalista cobrou: Mas como é que vocês resolvem fazer uma peça poética nos dias de hoje? Não é muita alienação? Eu nunca achei que o teatro devia servir à ideologia política. Eu sempre me expressei bastante politicamente, eu era filho de camponeses, de lavradores, e estudava na USP, na época os alunos eram revistados na entrada e às vezes na saída, era um momento de repressão, e claro que eu achava tudo aquilo um absurdo, vivia participando de assembléias para discutir isso e aquilo. Mas eu não queria levar essas questões para o teatro, obrigatoriamente. O teatro tinha que ser livre, não podia ser uma manifestação atrelada, parametrada pela questão política. No meio do caos e da escuridão política, em 1975, a gente montou uma peça surrealista. Victor ou as Crianças no Poder é um libelo surrealista do Roger Vitrac e era nisso que a gente estava ligado, no surrealismo, a gente não estava ligado em (Bertolt) Brecht, seria até bacana se estivesse, mas não estava. Fazia-se na USP um teatro muito engajado nessa época, eu me lembro de grupos muito mais politizados que o nosso, porque na EAD nós éramos até pouco politizados em relação ao resto da universidade. A nossa formação era mais teatral. Gostávamos de política, mas gostávamos mais de teatro. Fazíamos aulas de expressão corporal, de esgrima, de maquiagem. Na época, talvez, a formação política fosse mais ligada ao Departamento de Sociologia, de Ciências Sociais, mas na EAD nós éramos atores, né? Capítulo XXXIX Militância Eu sempre fui muito crítico, sindicalista, cooperativista, filiado ao PT e tal. Hoje em dia gosto mais de exercitar a política no meu trabalho pessoal, quer dizer, eu faço contrapartida social há muito tempo, dou aulas, monto escolas, institutos, esse é o meu interesse. Eu não tenho mais uma crença partidária tão arraigada, continuo simpatizante do PT, até militante, mas dedico menos tempo a isso. E continuo pensando que devemos tentar corrigir o mundo. O ser humano precisa ser corrigido em alguns de seus instintos primários. Ele é naturalmente agressivo e competitivo. Meu pensamento é cristão também, acho mesmo que tem que sacrificar o conjunto pela ovelha desgarrada. Não acho que se 70 mil pessoas estão bem, ninguém precisa se preocupar com aquelas 15 que estão mal. Eu acho que é para elas que se tem que olhar. Eu comecei a arrefecer meu lado de militante partidário aos poucos a partir de 1989, quando o Lula não se elegeu. Na época, fiz uma excursão nacional com a peça Perversidade Sexual em Chicago. Fui a todas as capitais do Brasil e aproveitava para fazer campanha, falava sobre a democratização das redes de televisão, sobre televisão regional e visitava cada diretório do Partido dos Trabalhadores, querendo fazer de cada um também um núcleo de educação e cultura. Então eu entendi que não havia nenhuma intenção dos diretórios de se tornarem núcleos de educação e cultura. O pessoal estava mais preocupado com questões que achavam mais emergentes, como reforma agrária, etc. Talvez eles tivessem razão, sei lá, mas eu sempre achei a arte fundamental, ela teve na minha vida uma função muito forte, fui resgatado pela arte, não existiria sem ela. Eu me cansei um pouco de sempre os políticos pedirem para nós artistas desenvolvermos um projeto e depois esse projeto ser colocado de lado. Havia uma intenção de chegar ao poder, mas a cultura não era a coisa principal, não estava nem entre as dez prioridades do partido. E foi o que aconteceu, foi o que a gente viu, o PT não tinha pensado em projeto de cultura. Aos poucos fui entendendo que queria ficar mais independente de partido. Mas sempre com a maior simpatia pelo PT. Eu percebi que sendo artista, a política deve estar a serviço da arte, mas não a arte a serviço da política. Eu entendi também que preferia ser artista a ser político, que só teria uma forma de apitar politicamente, de ter influência política, se eu fosse político, e isso eu não queria ser. Tem até uma passagem que eu acho engraçada e que foi muito reveladora para mim. Aconteceu logo depois da eleição de 89. Eu fui lançado experimentalmente pelo PT como candidato a deputado federal. Eu nem sabia, era uma experiência do partido, mas minha foto saiu no jornal como candidato. Todo dia eu ia de bicicleta fazer ginástica numa academia e passava por uma passarela onde tinha um peixeiro. Eu sempre cumprimentava o peixeiro, mas naquele dia eu já estava candidato, já tinha sido picado pela mosca azul. Desci e abracei o peixeiro. No abraço meu espírito crítico se manifestou. Vi como aquilo era ridículo e populista. Definitivamente levava todo jeito para ser político profissional, mas tinha autocrítica para não sê-lo. Eu batalhei para eleger a Erundina à prefeitura de São Paulo, fiz mais de 15 chamadas na televisão, as mais agressivas, eu falava o que nenhum colega meu queria falar, batendo duro nos adversários e, depois que ela foi eleita, a gente fez um jantar e ela estava presente, e o meu amigo Rafael Ponzi perguntou: E a cultura, prefeita? Ela disse: Olha, a cultura não é a minha prioridade. Eu fiquei chocado com aquilo. E percebi que na relação do artista com o político você é manipulado, não tem jeito de fugir do esqueminha de apenas servir ao candidato na eleição. Depois, na eleição presidencial de 1994 eu ainda fiz campanha, mas já com essa noção. Em 1998 eu já não fiz mais campanha. Então, todo mundo sabia e todas as instâncias do PT sabiam que eu era um cara insatisfeito, porque o Lula nunca tinha ido ver uma peça de teatro. Não era só eu, o Antônio Fagundes, outros atores, a gente reclamava isso o tempo todo, a gente falava: Se ele não vem ver a gente no teatro nunca vai entender e gostar do que fazemos, nunca vai nos respeitar de verdade. A gente queria ver o Lula se ilustrando, crescendo, sendo mais culto. Eu tenho 15 irmãos também, sou o décimo quinto filho, não sou um cara nem classe média. E a arte serviu para mim, o teatro serviu para mim como um resgate de condição social e tudo o mais, eu tenho essa semelhança de origem humilde que me dá o direito de falar isso. Eu acho que posso falar isso para o Lula, mesmo agora que ele é presidente. Outra coisa que me marcou muito aconteceu durante a campanha presidencial de 1989, no debate final. Durante uma viagem num jatinho (pois é, o Lula tinha um jatinho no segundo turno) eu tinha falado longamente com o Lula sobre o debate. O Lula abriria e encerraria o debate por sorteio. Quer dizer, ele tinha um gol garantido no primeiro e no último minuto. Dei a ele uma idéia que um metalúrgico de Nova Iguaçu tinha passado pra mim: ele deveria tirar do bolso do paletó a carteira profissional no último minuto e mostrá-la para o Collor e depois jogaria no ar que o Collor nunca tinha tido uma carteira, porque nunca tinha trabalhado, e tudo isso mostrando para os espectadores a carteira azul, aquela que está no inconsciente coletivo dos trabalhadores, aquela que não permite que o cara seja preso porque está trabalhando, está empregado, aquela que todo o mundo guarda com o maior carinho. No dia do debate, uma quinta-feira, estávamos praticamente de joelhos na casa do Adair Rocha, ao meu lado estava Dom Mauro Morelli, que fumava nervosamente. Lula estava mal no debate, mas a gente contava com aquele pênalti no último minuto. Lembram o que ele falou? Aquela história do caçador de maracujás. Chutou o pênalti para fora. Por quê? Acho que porque, no fundo, ele não confiou na dica de um ator. Capítulo XL Briga com Lula Quando eu fui para a inauguração daquela fábrica em Sorocaba, e falei que o Lula não ia ao teatro, numa entrevista, virou um escândalo, um jornal botou uma foto minha com a boca torta, o vira-casaca, aquela coisa, foi um terror. Uma colunista social deu meu e-mail particular na coluna dela, para quem quisesse me escrever sobre o que achava da minha atitude. Minha vida virou um inferno, porque eu passei a ser visto como um cara antiético, porque eu tinha traído o Lula, né? O meu deslize foi ter falado do Lula naquela ocasião, quando eu estava ao lado do Fernando Henrique, que estava lá pra inaugurar uma fábrica, mas o que eu falei do Lula eu já pensava há muito tempo e nunca tinha falado em público, e acabei falando na hora errada. Perguntaram, Mas como é que você está aqui, pedindo dinheiro para o Fernando Henrique Cardoso? E eu respondi: Eu estou aqui pedindo para o Fernando Henrique ajudar meu filme, junto aos empresários de Sorocaba, porque eu estou tendo dificuldades para captar recursos por causa do meu trabalho para o PT durante esses anos todos, e também quero entregar ao presidente uma carta da Fundação Palmares para que se resolva o problema da posse da terra do Quilombo Cafundó. Mostrei para todos os jornais o documento do cartório, mas nenhum publicou nada disso. Eu estava meio entalado com o PT que não me ajudava a tocar o projeto do meu filme. A Secretaria de Cultura do Olívio Dutra, que era governador do Rio Grande do Sul, negou duas vezes autorização para eu captar recursos na lei do Estado. Isso depois de eu aparecer na campanha política dele na televisão e aparecer em público em palanques dele em diversas ocasiões. E o filme poderia começar lá, com a partida das tropas, tinha tudo a ver ele apoiar o filme, mas não o fez. Eu pensei que o Fernando Henrique, como um intelectual que era, e sendo amigo do Florestan, discípulo do Florestan, poderia apontar para essa viabilidade do filme. Um aceno dele e os empresários entrariam. E ele não fez isso lá em Sorocaba. Ele falou: Paulo, você é adepto de uma estranha religião. Referindo-se equivocadamente ao tema do filme. Eu falei essa religião é o cinema brasileiro presidente. Isso não saiu em jornal nenhum. Eu tinha encontrado três vezes com o presidente Fernando Henrique em Brasilia. Uma delas com o Anthony Quinn. Ele sabia do projeto e das dificuldades. Fiquei meio chateado dele ter reduzido tudo daquela maneira. Uma compreensão estreita essa de religião estranha, principalmente para quem trabalhou tanto na questão do negro, não é? Mas Fernando Henrique é um homem culto e respeito o trabalho que ele fez na presidência, apesar de muitos erros crassos como o processo de privatização das companhias elétricas como um exemplo. Uma vez vi uma foto dele num museu na Rússia e ele estava na frente de um quadro que retratava o General Kutuzov, ele sabia quem era, achei legal. São coisas simples, mas que marcam. É claro que me sinto muito mais próximo do Lula, a ponto de querer poder falar com ele o que eu quiser. Eu tinha vontade de ser um assessor especial do Lula na área do teatro, da cultura. Dar pitacos, quem não queria? O meu desejo mais profundo era que ele entendesse de teatro, que ele gostasse, que ele fosse um especialista em teatro. É um desejo de irmão, eu queria que ele curtisse isso. Eu queria que ele se interessasse por isso, porque é do que eu mais gosto de falar e então teríamos muito assunto para conversar. Na campanha de 1994 o Lula foi visitar meu irmão Zé , lá em Sorocaba, na sapataria. Tenho a foto dele com o Zé no meu escritório, tenho muito orgulho dela. A primeira reunião do Lula com os artistas, nessa eleição de 2002, foi na Casa da Gávea. O ministro Gilberto Gil quer fazer vários centros culturais em diversos lugares do Brasil. É aquela idéia dos centros culturais vingando. Acho que o trabalho que fiz em 90 não foi em vão. Quando eu me encontrei com o Lula em Brasília, depois de ele ter sido eleito, foi a maior emoção. Eu levei para ele a autobiografia do Lawrence Olivier, em que o ator conta como conheceu Churchil. Num intervalo da representação de Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, o grande estadista entrou sem querer no camarim do ator procurando a toalete. Olivier levou-o de volta a seu assento. Churchil costumava comprar três lugares, um para ele, outro para a filha e outro para colocar o sobretudo e o chapéu. Não é lindo? Como gostaria de ver o Lula fazendo isso com a Marisa. Aposto que ela ia gostar. O projeto Lula no poder foi um sonho meu a minha vida toda. Esse foi sempre o meu projeto e agora é, existe, eu quero muito que o Lula dê certo. Capítulo XLI Maria Ribeiro No O Inimigo do Povo, tive a felicidade de conhecer a Maria Ribeiro. Era 1997, ela tinha 21 anos, eu, mais de 40. Eu já estava separado da Eliane, e com a Maria foi amor à primeira vista. Ela fazia o papel de minha filha na peça. Fiquei apaixonado e logo de cara tive a certeza de que não era coisa passageira. A personalidade da Maria foi o que primeiro me atraiu. Além de linda, estudiosa, inteligente, responsável ela é ultratalentosa. É formada em jornalismo na PUC. Não tinha nada a ver com a minha vida passada, é carioca, de uma classe social completamente diferente da minha, vivência completamente diferente. A curiosidade era total. No começo eu morria de vergonha de sair na rua com ela, me sentia muito velho, mas aos poucos fui relaxando. Estamos juntos há quase sete anos. Estou aprendendo com ela a cada minuto. A Maria tem uma integridade, uma clareza a respeito do que quer e do que não quer impressionante. Está cada vez melhor como atriz, cada vez dominando mais seus recursos, a emoção, cada vez mergulhando mais nos personagens, além de ser também uma mãe dedicada e muito amorosa. Uma nova vida se abriu para mim. A separação da Eliana tinha me deixado escalavrado, foram muitos anos, muitas coisas juntos, duas filhas. Só mesmo uma pessoa especial para me fazer acreditar de novo no amor, na vida. Maria fez isso por mim e muito mais. Deu-me o João, que tem dois anos agora. Um menino lindo, inteligente, levo ele todo dia no Jardim Botânico. É uma maravilha ter um filho nessa idade. E tenho uma companheira que me instiga, me critica, me dá força. Acho que tenho tido muita sorte com as mulheres da minha vida. Capítulo XLII Personalidade Eu sou um cara meio bipolar, sabe? Nos ensaios de teatro eu acho que um dia é maravilhoso, no outro dia eu acho que é uma merda, no outro dia eu acho tudo maravilhoso, no outro dia eu acho tudo uma merda e fico eufórico e fico deprimido, fico eufórico e fico deprimido. Às vezes acho que sou muito difícil de se suportar, sou muito instável. Eu gosto de algumas frases, citações, e escolhi algumas para colocar neste livro, e a permanência delas em minha vida acho que quer dizer alguma coisa sobre mim. Tem uma do Guimarães Rosa, em Grande Sertão, Veredas, que é assim: O real não está nem na saída nem na chegada. Ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Tem uma outra do (poeta francês Arthur Rimbaud) que ficou bastante tempo me perseguindo: Contra a angústia, marchas forçadas. Não sei direito por que essas frases me perseguem, mas elas estão sempre presentes na minha vida. Acho que elas têm alguma coisa em comum, um sentido de esforço, de batalha, de luta. Talvez tenha alguma coisa a ver com o meu santo no candomblé que é um santo guerreiro. Meu amigos sempre me dizem isso, que uma das minhas principais características é a de ser lutador, eu fico tentando abrir portas o tempo todo. Às vezes até me questiono se eu não deveria ficar numa coisa só de cada vez, seguindo um caminho só, mas pode também ser medo de não ser chamado, ou não ser convocado, ou não ser escalado, então eu fico criando as minhas próprias alternativas. Dizem que as pessoas têm mais medo de ficar desempregado do que da morte. Como eu entendo isso. Na minha infância só se falava no corte nas fábricas. Minhas irmãs e irmãos trabalhavam nas fábricas de Votorantim e o corte era o pesadelo que rondava minha vida. Esse meu medo do desemprego deve ser uma coisa relacionada a esse meu passado, com a minha infância, com a obrigação de ganhar o sustento, de poder pagar as contas no fim do mês. Acho que eu sou exageradamente preocupado com isso. Um medo que não tenho é de falar em público. Eu já fiz loucuras falando para platéias. Uma vez fui para Portugal fazer um trabalho numa feira perto de Lisboa que chamava Próximo Milênio. Eu tinha feito uma minissérie na Globo, O Fim do Mundo, esse trabalho passou lá e eles gostaram do meu personagem, o Joãozinho de Dagmar, e me chamaram para anunciar a Feira do Município de Oeiras, que ia mostrar como a cidade estava se preparando para o futuro. Oeiras é uma cidadezinha ao lado de Lisboa. Eu fui achando que ia ter uma tarde de autógrafos, mas cheguei lá e estava anunciada uma palestra minha sobre o futuro. Pensei, vou contar umas histórias da minha profissão e pronto. Mas aí, vi aquela mesa toda preparada, com guirlanda de flores, uma garrafa d’água, um monte de gente na platéia. Comecei dizendo assim: O futuro está nos ovos. Esse é o título de uma peça do (dramaturgo francês Eugéne) Ionesco. Daí eu expliquei que era uma peça e tal e acabei falando horas sem parar sobre diversos assuntos e deu tudo certo. Eu não tenho esse medo. Eu tenho medo mesmo é de ficar desempregado. Da morte também não tenho muito medo, mas à medida que o tempo passa você acaba cada vez mais pensando nela. Eu me lembro de um professor meu, o Paulo Mendonça, que disse assim numa entrevista: Hoje em dia, de cada três pensamentos meus, dois são para a morte. Eu acho que a idade leva a gente a isso. Também sempre fui muito preocupado em documentar as coisas, quero segurar de alguma maneira os momentos. Eu nunca fui muito desprendido, e o teatro é muito fugaz. Sou muito trabalhador e isso já me trouxe muita coisa boa. Dizem que quem faz o dever de casa brinca melhor. Ganhei uma vez uma bolsa de estudos para fazer um curso em Nova York, da Fulbright. Na verdade era um prêmio: O Distinguished Artist Fellowship Fulbright. Quando foram abertas as inscrições para a bolsa-prêmio eu estava fazendo a novela Tieta, que exigia muito trabalho, eu fazia um personagem que gravava muito no Tieta, o Timóteo. E estava em cartaz com a peça Perversidade Sexual em Chicago. Ao mesmo tempo, era a época da campanha presidencial do Lula, em 1989, e acho que eu fui um dos artistas mais atuantes, foi a campanha do Lula-lá. Então eu viajava com o Lula para fazer comícios. E a inscrição pra bolsa da Fulbright não era uma coisa fácil, tinha que fazer um exame de inglês, o Toefl, e tinha que fazer um portfólio. Quando eu fui fazer o portfólio percebi que estava muito organizado, eu tinha tudo de que precisava guardado em caixas. Aí peguei as coisas e pedi para um amigo meu, o produtor Guilherme Abrahão, fazer para mim a parte gráfica e eu acabei conseguindo a bolsa no meio dessa loucura que estava a minha vida. Eu cumpri a bolsa acordando cedo, tirando neve de cima do carro, aquele ano o inverno foi super-rigoroso. Trabalhava para valer. Andava de metrô o dia todo, para cima e para baixo. De manhã ia para um curso de inglês na ONU com a minha querida amiga Vera Setta como companhia. O curso era uma delícia. A maioria dos alunos era mulheres, esposas de diplomatas, e basicamente, todo dia era dedicado à cozinha dos mais diversos países. Durante a aula elas explicavam como se fazia a comida típica de sua terra. No final comíamos o resultado da aula. Eu assisti a todas as peças, vi todos os vídeos no Lincoln Center, visitei diretores de teatro como Richard Foreman e Bob Wilson (que por sinal achei meio esnobes, mas na realidade acho que eles não estavam com saco para aquele brasileiro que falava de política o tempo todo, de televisão e do Brasil). O mais importante acontecimento dessa estada nos EUA foi ter conhecido o grande documentarista George Stoney que me admitiu como ouvinte de seu curso na NYU, além de me aceitar também na convivência com sua família. George havia estado no Brasil e tem um interesse autêntico e generoso por nossos problemas. Com mais de 80 anos subia os nove andares que levavam ao seu escritório na escola, na Quinta Avenida, sem esfolegar. Vendo aquele homem e sua extraordinária forma física, adquiri a mania salutar de subir escadas. George foi o criador do conceito de TV de Público Acesso nos EUA, uma conquista democrática que de alguma forma acabou vindo também para o Brasil. É só ver os canais comunitários, legislativos e universitários que temos em nossa TV a cabo para compreender a importância das conquistas de Stoney. Andei a pé pela cidade, lia o The New York Times todo dia, comi pizzas nas esquinas, tomei suco de cenoura, ia almoçar na ONU com meu amigo, o repórter Chaim Litewski. Comemorei o Thanksgiving, aquele feriado importante que acontece antes do Natal e é sempre comemorado em família, com os norte-americanos comendo peru recheado e purê de abóbora. E eu sempre achava que não estava fazendo tudo que podia. Quando a Fulbright fez 50 anos publicou uma lista com os Fulbrighters mais famosos no mundo. Meu nome está lá, abrindo a lista, mas só porque meu sobrenome começa com B e estou na categoria artist, que começa com A. Tive sorte por causa da ordem alfabética dessa vez. Sabe quem eram os outros da lista? Umberto Eco, John Updike, Philip Glass, Aaron Copland, e mais um monte de presidentes e prêmios Nobel. Olha aí o Tarzan em Nova Iorque! Não sou exatamente um workaholic, mas eu trabalho bastante. E nunca consegui pensar nas coisas que eu faço com o trabalho, a não ser comercial de televisão. Gravação de comercial me cansa mais e eu sinto que estou trabalhando, é a única situação em que eu penso: Eu preciso parar isso para descansar. Mas os ensaios de teatro, gravação de novela, representações de peças de teatro e cinema, eu nunca penso naquilo como um trabalho. Na televisão às vezes o dia fica muito longo e daí eu canso também, mas eu me divirto muito. Eu estou sempre ligado, sou um cara que fica lendo um livro sempre tomando nota, não sei ler um livro só por ler. Eu sempre risco os livros, tomo nota, tenho um monte de caderninhos em tudo quanto é lugar, pilhas de papéis, sou um pouco neurótico. Não gosto de ficar um tempão numa praia descansando, me entedio, levo 200 livros para a praia e geralmente é isso que eu fico fazendo, fico lendo, correndo, lendo, correndo. Entro na Internet umas três a quatro vezes por dia, fico aflito quando não me respondem os e-mails, fico ansioso também em responder rapidamente os e-mails que eu recebo, qualquer telefonema eu quero dar resposta, não deixo cair na secretária eletrônica, atendo todos os telefones que estão na minha frente. E tenho pelo menos uns 20 projetos de coisas que eu gostaria de fazer sendo meio tocados, ou pelo menos pensados de cada vez. Eu morro de medo de não ter trabalho, mas se todos os projetos que eu tenho derem certo eu tenho trabalho garantido para os próximos 50 anos. Só com os projetos que eu já quero, sem entrar mais nada. Capítulo XLIII Terceiro Ato Nesses últimos dez anos morreu o meu pai, morreu a minha mãe e isso foi muito forte para mim, como experiência. Eu senti que as coisas acabam. E que um dia eu também vou morrer. E agora, de vez em quando, eu penso nisso. Então há três anos comecei a fazer análise para poder entender melhor as coisas, para ver se fico mais suportável para as pessoas. Meu filho João tem dois anos. Ele é uma bênção, foi um prêmio que eu ganhei, mas ele me mostra mais a minha idade do que qualquer outra coisa. Ele não me faz sentir mais jovem, ao contrário, ele me faz ter a idade que eu tenho mesmo. Tem gente que pergunta: É seu neto? Tem gente que diz: Está curtindo uma de pai-avô? Não tem nada de mais nisso, mas é um fato. Quero ver meu filho crescer, mas isso também me dá uma certa ansiedade, espero merecer ver meus filhos sendo felizes e crescendo e fazendo suas vidas. Espero que eu tenha o reconhecimento pelos meus méritos em todos os níveis. Isso é bastante cristão, mas é assim que eu penso. Eu tenho muita religiosidade, mas ao mesmo tempo sou absolutamente materialista. Sou um materialista que reza. Acho que nada substitui a reza. Ave Maria, Pai Nosso, Salve Rainha. São as rezas católicas que eu aprendi, que, se eu tivesse sido budista, seriam budistas, eu não preciso mudar isso. Quando o desespero baixa, não tem razão que segure, você precisa rezar, porque você não tem mais nada a fazer. Também acho que é muito mais interessante pensar que vai haver um lugar aonde nós vamos nos encontrar todos depois e onde eu vou rever meus antepassados. Por que não? Eu sei que nós somos matéria que se dissolve no ar, mas e daí? Esses átomos podem se encontrar numa outra dimensão. E eu chamo todo mundo, meu preto velho, todos os santos, meu pai, minha mãe, minha avó, meu avô, meus irmãos que já foram, até o Adilson, o Chiquinho Brandão, eles também podem me auxiliar de alguma maneira. Adoro aquela canção que cantava na igreja: Com minha mãe estarei, na santa glória um dia, junto da Virgem Maria, no céu triunfarei, nó céu, no céu, com minha mãe estarei... Quer coisa melhor? Eu acho que cultuar a memória das pessoas é muito importante, eu sou o guerreiro que quer o reconhecimento de sua tribo, que vai e faz conquistas, mas depois volta e quer ser reconhecido. Eu sou assim. Uma vez eu quis fazer uma praça em Sorocaba para o diretor de teatro Adhemar Guerra (a pracinha está lá, quase na frente da igreja de Nhô João), e um jornalista da cidade escreveu uma matéria dizendo: Que cara estranho! O que é que ele quer? Só fazer uma praça para o Adhemar Guerra? Talvez ele esteja também querendo garantir uma praça para ele. E eu pensei: É isso mesmo. Ele pensou que me ofendeu, mas não, ele conseguiu ver além. FIM Cronologia TV Novelas 1977 • Os Imigrantes de Benedito Ruy Barbosa e Renata Pallotini - TV Bandeirantes 1979 • Como Salvar Meu Casamento de Edy Lima e Carlos Lombardi – TV Tupi 1983 • Maçã do Amor de Wilson Filho – TV Bandeirantes 1986 • Carmem de Gloria Perez - Rede Manchete 1984 • Transas e Caretas de Lauro Cesar Muniz - TV Globo • Vereda Tropical de Silvio de Abreu - TV Globo 1985 • De Quina Pra Lua de Alcides Nogueira - TV Globo 1986 • Hipertensão de Ivani Ribeiro – TV Globo 1989 • Tieta de Dias Gomes e Aguinaldo Silva - TV Globo 1992 • Pedra Sobre Pedra de Aguinaldo Silva - TV Globo 1993 • Mulheres de Areia de Ivani Ribeiro – TV Globo 1995 • A Próxima Vitima de Silvio de Abreu – TV Globo 1996 • O Fim do Mundo de Dias Gomes - TV Globo 1997 • A Indomada de Aguinaldo Silva - TV Globo 1999 • Força de Um Desejo de Gilberto Braga e Alcides Nogueira - Globo 2001 • O Clone de Glória Perez – TV Globo 2002 • Desejos de Mulher de Euclydes Marinho – TV Globo 2004 • Metamorphoses produção Casablanca – TV Record Minisséries 1994 • Incidente em Antares de Erico Veríssimo - TV Globo 1995 • Engraçadinha de Nelson Rodrigues - TV Globo • Malhação – TV Globo 1999 • Luna Caliente de Jorge Furtado - TV Globo • Chiquinha Gonzaga de Lauro Cesar Muniz - TV Globo 2001 • Os Maias de Eça de Queiroz, adaptação de Maria Adelaide Amaral - TV Globo Especiais de TV 1991 • Os Homens Querem Paz TV Globo 1994 • O Coronel e O Lobisomem José Candido de Carvalho - TV Globo • A Comédia da Vida Privada de Luis Fernando Veríssimo - TV Globo 1995 • O Engraçado Arrependido de Guel Arraes - TV Globo 2000 • Brava Gente Diversos - TV Globo • Um Anjo Trapalhão de Renato Aragão – TV Globo 2001 Teatro Ator em Peças Teatrais 1968 • O Rapto das Cebolinhas de Maria Clara Machado - direção de Rubens Falcone • Baco e a Orgia dos Tempos de Roberto Gil Camargo 1969 • Os Tambores de Roberto Gil Camargo • Os Servos da Gleba de Roberto Gil Camargo 1970 • A Entrevista de Jean Claude Von Italy - direção Elvira Gentil 1971 • O Pagador de Promessas de Dias Gomes - direção de Cesar Oliveira 1972 • O Boca de Ouro de Nelson Rodrigues - direção de Emilio di Biasi • Nossa Cidade de Thornton Wilder - direção de Silney Siqueira 1973 • O Inspetor Geral de Nicolai Gogol - direção Myrian Muniz e Silvio Zilber • Rasto Atrás de Jorge Andrade - direção Jonas Bloch 1974 • O Doente Imaginário de Molière - direção Antonio Mercado Netto • Fora , Diante da Porta de Wolfgang Borchert - direção Fausto Fuser • Victor, ou As Crianças no Poder de Roger Vitrac - direção de Celso Nunes 1977 • Os Iks de Peter Brook e Jean Claude Carriere – direção de Celso Nunes 1978 • O Processo de Franz Kafka - direção de Celso Nunes 1979 • A Vida é Sonho de Calderón de La Barca - direção Celso Nunes 1989 • Aurora da Minha Vida de Naum Alves de Souza 1992 • A Fera Na Selva de Henry James - direção Luiz Arthur Nunes 1993 • Viagem a Forli de Mauro Rasi 1998 • O Inimigo do Povo de Henrik Ibsen - dir. Domingos de Oliveira 2001 • O Homem Que Viu o Disco Voador de Flávio Márcio - direção Aderbal Freire-Filho 2004 • Como Aprendi a Dirigir um Carro de Paula Voguel - direção de Felipe Hirsh Diretor de peças teatrais 1977 • Cerimônia Para um Negro Assassinado de Fernando Arrabal 1979 • Na Carrêra do Divino de Carlos Alberto Soffredini 1978 • Strip-Tease de Slavomir Mrozek • O Anti-Nelson Rodrigues de Nelson Rodrigues 1984 • Feliz Ano Velho de Alcides Nogueira 1985 • Assim é, se lhe Parece de Luigi Pirandello 1989 • O Amigo da Onça de Chico Caruso 1998 • Três Maneiras de se Dançar o Tango de Denise Bandeira 2004 • Porque você nunca disse que me amava? de Vera Karan • A Grande Familia - TV Globo Cinema Ator em filmes 1977 • Revolução de 1932 de Nuno Cesar de Abreu 1978 • Jogo Duro de Ugo Giorgetti 1985 • Fonte da Saudade de Marco Altberg 1986 • Dedé Mamata de Dodô Brandão 1987 • Besame Mucho de Francisco Ramalho Jr. 1989 • Doida Demais de Sérgio Rezende 1990 • Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia de Roberto Pires 1993 • Lamarca de Sérgio Rezende 1997 • O Amor Está No Ar de Hamilton de Almeida 1999 • Guerra de Canudos de Sérgio Rezende 1999 • Oriundi de Ricardo Bravo • Quem Matou Pixote de Jose Joffily 2000 • Mauá, O Imperador e O Rei de Sérgio Rezende • Ed Mort de Alain Fresnot • O Toque do Oboé de Claudio MacDowel 2002 • Querido Estranho de Ricardo Pinto e Silva 2003 • Chatô, o Rei do Brasil de Guilherme Leme (inédito) Co-Diretor e produtor de cinema: 2003 • Cafundó (inédito) Prêmios 1971 • Prêmio Governador do Estado de Melhor Ator Teatral - SP 1975 e 1984 • Prêmio Governador do Estado de Melhor Diretor Teatral - SP 1977, 1979 e 1983 • Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de Melhor Diretor Teatral - SP   1977, 1980 e 1983 • Prêmio Mambembe de Melhor Diretor Teatral - SP 1984 • Prêmio da Associação Paulista de Produtores Teatrais de Melhor Diretor e Melhor Iluminador – SP 1991 • Prêmio Shell de Melhor Ator Teatral - RJ 1979 e 1983 • Prêmio Molière de Melhor Diretor Teatral - SP 1993 • Prêmio Cidade de São Paulo de Melhor Ator de Cinema – SP 1997 • Prêmio Contigo de Melhor Ator Cômico de Novela – SP 1997 • Prêmio Oscarito do Sindicato dos Artistas de Melhor Ator – SP Índice Apresentação - Hubert Alquéres 5 Introdução - Teté Ribeiro 15 Ser Ator 21 Família 25 Gente Humilde 39 Vila Leão 47 Formação 53 Origem do Ator 59 Influências 63 Primeiros Trabalhos 77 Eliane Giardini 79 Filhas 83 Ida a São Paulo 87 EAD 91 Pessoal do Victor 95 Os Iks 99 Cerimônia por um Negro Assassinado 103 Teatro Profissional 107 Adilson Barros e Chiquinho Brandão 133 Televisão 137 Entrada na Globo e Casa da Gávea 143 Trabalhar na TV 147 Tieta e os Melhores Trabalhos na TV 157 Luna Caliente 161 Metamorphoses 163 Mais Teatro 167 Cinema 181 Por Trás das Câmeras 209 Cafundó e a Relação com Sorocaba 217 Morte da Mãe 223 Captação de Recursos - Um Drama 227 Luta de Classes e Poder 233 Dez Anos 239 Chatô 241 Ser Ator II 245 Assédio 253 A crítica 255 Dirigir 259 Instituto Cultural Vila Leão 263 Política 265 Militância 267 Briga com Lula 273 Maria Ribeiro 279 Personalidade 281 Terceiro Ato 291 Cronologia 295 Créditos das fotografias O Estado de São Paulo 81 Guga Melgar 132, 135 Paulo Giandalia 139 Silvio Pozatto 172, 175 Luciana da Justa 186, 192 Europa Filmes 193, 194 Giselle Chamma 197, 198 Luciana de Francesco 294 Demais fotografias: Acervo Paulo Betti Coleção Aplauso Perfil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Especial Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Gloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Cinema Brasil Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Cabra-Cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Casa de Meninas Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Dois Córregos Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Teatro Brasil Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce - Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso - Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Ciência e Tecnologia Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Os livros da coleção Aplauso podem ser encontrados nas livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual Imprensa Oficial