Carla Camurati Luz Natural Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Perfil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne  Editoração Cláudia Rodrigues Assistente Operacional Andressa Veronesi Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Carla Camurati Luz Natural por Carlos Alberto Mattos Cultura Fundação Padre Anchieta Imprensa Oficial São Paulo - 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mattos, Carlos Alberto Carla Camurati : luz natural / por Carlos Alberto Mattos. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005. 312p.: il. - (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-347-9 (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes cinematográficos – Brasil – Crítica e interpretação 2. Camurati, Carla 3. Cineastas - Brasil 4. Cinema – Produtores e diretores – Brasil I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III.Série. 05-2906 CDD 791.430 280 922 81 Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Atores e produtores cinematográficos : Biografia e obra 791.430 280 922 81 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 2799-9800 Fax: (0xx11) 2799-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Para Antonio Carla Camurati A Sebastião Pinheiro (in memoriam) Carlos Alberto Mattos Apresentação Carla, Carlas... Entre a menina que provava os doces feitos pelo avô na cozinha do Copacabana Palace, a jovem e vacilante aluna de Biologia Marinha, a estrela loura que exibia o belo corpo nos filmes néon-realistas paulistas da década de 1980 e a diretora que se firmou como um nome de proa do cinema brasileiro após o sucesso de Carlota Joaquina – Princesa do Brazil, umas tantas mulheres diferentes parecem se suceder na trajetória de Carla Camurati. Da mesma forma, o ar de menina que ela conserva na maneira de se mover, menear a cabeça e adoçar o sorriso nem sempre permite adivinhar a profissional firme que não teme as decisões difíceis e sabe sustentá-las com persistência, sentido de realismo e lúcida autocrítica. Neste depoimento autobiográfico, Carla relata detalhadamente aqueles momentos delicados em que mudou radicalmente o curso de sua vida. Um deles foi a resolução, um tanto súbita, de trocar a faculdade de Biologia por um curso de teatro, que tomou durante uma pausa para café numa lanchonete de Ipanema. Outro foi a opção por abandonar o estrelato na televisão, no auge de uma fase de sucesso, a fim de se lançar como diretora de cinema. A aventura contada neste livro começa na Itália, com uma bela história de amor e gastro- nomia entre seus avós paternos, arrematada com a emigração para o Brasil. Carla viveu a infância entre Botafogo e Copacabana, descobriu cedo o prazer de trabalhar e o gosto pela independência. Descobriu também que a beleza podia ser uma desvantagem para quem deseja se estabelecer no mundo pela inteligência e pelo justo merecimento. Suas reações contra a imagem de bonitinha são de fazer cair o queixo – e marcaram a personalidade de Carla para o resto da vida. Na juventude, ela foi professora de arte para crianças, vendedora de butiques, recenseadora do IBGE, secretária de produtor cultural. Começou a fazer teatro no colégio. Continuou dividindo o palco com gente como Cazuza, Bebel Gilberto e Pedro Cardoso. Fez seis novelas, algumas minisséries e programas especiais na televisão, num período em que talvez tenha sofrido tanto quanto aprendeu e se divertiu. Posou aqui e ali como modelo, fez um certo número de fotonovelas, freqüentou com iguais desenvoltura e espontaneidade as capas de revistas femininas e os ensaios de nus da Playboy. Não se importava nem um pouco de ser musa sexual e namoradinha cult do Brasil. A desinibição com que participou dos filmes erótico-intelectuais de José Antonio Garcia e Ícaro Martins – O Olho Mágico do Amor, A Estrela Nua, Onda Nova – parecia selar o destino de uma atriz ousada, mas refém de papéis unidimensionais. Eis então que Carla ressurgia na pele de personagens densos e encantadoramente radicais, como a poeta Patrícia Galvão (Eternamente Pagu) e a guerrilheira Iara Iavelberg (Lamarca). A intérprete tinha uma bendita deformação profissional: observava atentamente o ofício dos diferentes diretores para os quais atuava. Nos trabalhos para a televisão, criticava – nem sempre silenciosamente – a dramaturgia em que a aprisionavam, assim como as opções de criação que lhe pareciam inadequadas. Os mais íntimos de seu convívio a estimulavam a assumir as rédeas de sua própria carreira, o que acabou acontecendo em 1987, com a direção do curta A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal. Naquela pequena fábula sobre os limites da fantasia, talvez estejam contidos todos os sinais mais importantes que caracterizariam a nova diretora: uma visão lúdica do mundo, a teatralização como forma de driblar as armadilhas do naturalismo, uma amável descrença nos mecanismos da ilusão, a aposta no poder das imagens em detrimento do discurso verbal. Também estão presentes ali algumas obsessões pelas quais é fácil reconhecer o seu estilo: o uso de sombras chinesas em algum momento do filme, um pendor para a extravagância nos figurinos e na caracterização corporal, a exploração da profundidade de campo para compensar a exigüidade dos espaços cênicos ou limitações de produção. Os filmes de Carla Camurati, mesmo os mais discretos, têm cometido uma ousadia atrás da outra. Carlota Joaquina atreveu-se a recontar a saga da Família Real portuguesa no Brasil do início do século 19 em tons de chanchada histórica. La Serva Padrona constituiu o primeiro filme-ópera jamais realizado no País, enfrentando com relativo sucesso toda uma tradição de indiferença pelo gênero. Copacabana desafiou a ditadura da juvenilidade com uma comédia doce-amarga sobre a velhice na grande cidade. Lançado no mercado de maneira pouco convencional, num momento de crise financeira, institucional e de auto-estima do cinema brasileiro, Carlota Joaquina foi o principal responsável pela virada do jogo. Carla passou a ser chamada de musa da retomada, cortejada como exemplo de determinação na reconquista de prestígio e viabilidade para seu ofício. Ela, mais uma vez, não se deixou cativar pelo canto das sereias, mas soube desdobrar os louros da vitória em benefício de uma atividade diversificada. Sua empresa, a Copacabana Filmes e Produções, formou uma equipe coesa e exercitou-se com êxito na distribuição do documentário Janela da Alma, assim como na produção de Espelho d’Água – Uma Viagem no Rio São Francisco e na realização de um festival internacional de cinema infantil. Projetos esses que partiram de escolhas pessoais de Carla, motivadas por um misto de afetividade e entusiasmo, que é o seu motor criativo. Elogios e reconhecimento fazem muito bem a ela, como a qualquer um, mas estão longe de alterar sua postura avessa a todo glamour e a toda presunção. A naturalidade com que Carla vê a si própria preside todas as suas relações. Ela é tida como uma companheira leal, uma amiga atenta e uma profissional notoriamente séria. Reconhece ser controladora e muito senhora de suas opiniões, pelo menos até que lhe convençam do contrário. Nas páginas seguintes, Carla Camurati brinda o leitor com um depoimento franco, onde não se exime de contar inseguranças, dilemas pessoais, casos amorosos. Repassa sua vida e carreira com um talento especial para pinçar na memória e contar saborosamente as histórias mais curiosas e significativas. Reflete sobre cinema, teatro, televisão, política, beleza, vida, envelhecimento e morte – com sinceridade sempre e com muito humor na maior parte do tempo. Sorrir parece ser o seu melhor cosmético, já que aos produtos químicos ela só recorre em último caso. Tudo o que é natural conta com o privilégio da sua preferência. Esse livro resulta de 20 horas de conversas gravadas, em oito encontros, no período de novembro de 2003 a março de 2004. Carla me recebia ora na sua produtora, ora em seu apartamento, ambos na Gávea, a poucos quarteirões de distância um do outro. Testemunha de vários desses momentos foi o pequeno Antonio, seu primeiro filho, que aos poucos meses de idade fazia questão de exibir um amplo e irresistível sorriso sempre que não estivesse entretido com a mamada ou com o incansável folhear de livrinhos coloridos. Alguns encontros foram adiados, desmarcados ou interrompidos em função das múltiplas ocupações de Carla. Além dos minuciosos cuidados maternais, ela preparava o lançamento de Espelho d’Água, que produziu, e a pré-produção de um novo filme – Quem Tem Medo de Irma Vap?, no qual retoma sua paixão pela comédia teatral O Mistério de Irma Vap, documentada 16 anos antes em seu curta Bastidores. No curso dessas entrevistas, aprendi como se constrói uma carreira mediante a força do desejo, a simplicidade diligente e a noção de compromisso. Percebi, na aparente contradição das várias Carlas contidas em sua biografia, a permanência de uma única mulher: livre, instintiva, desafetada. Compreendi, enfim, a opção de Carla Camurati por deixar de ser apenas uma estrela forjada pelos refletores para irradiar, ela mesma, a sua luz natural. Carlos Alberto Mattos Novembro de 2004 P.S. Meus agradecimentos especiais a Carla Camurati, Antonio Camurati Jardim, João Jardim, Maria do Rosário Caetano, Laís Rodrigues, Tathiana Mourão, José Antonio Garcia, Bia Lessa, Antonio Grassi, Julio César de Miranda (Polytheama Central de Vídeo), Paulo Victorino (Pitoresco.com.br) e Claudia Malta. A Rosane Nicolau, que colaborou em todo o processo e, principalmente, na pesquisa de dados da carreira de Carla Camurati e das fichas técnicas de seus trabalhos, meu reconhecimento mais carinhoso. Capítulo I Raízes Italianas Omegna é uma cidade pequena e calma, às margens do Lago d’Orta, no norte da Itália. No início do século 20, a família Camurati, se reunida, quase daria para encher a Piazza Beltrami, sem sobrar lugar para a feirinha tradicional. Enrico, meu avô paterno, tinha nove irmãos, se a memória não me estraga os números. Giovanni, o mais velho entre os homens, sempre trabalhara com cozinha. Enrico o observava, embevecido. Quando veio a I Guerra Mundial, a família já havia se mudado para Turim. Giovanni e outros irmãos foram convocados enquanto Enrico, pouco mais que um adolescente, ficava em casa para ajudar a família. Seu projeto de ordenar-se padre começou a desmoronar quando ele encontrou no jornal a notícia de um concurso de bolos. Havia um prêmio nada desprezível para o vencedor. Meu nonno fez sua inscrição e debruçou-se sobre os cadernos de Giovanni. Selecionou ingredientes, calculou proporções, definiu procedimentos... E acabou fazendo o melhor bolo de Turim. Foi uma revelação. Ou melhor, uma combinação de sorte, talento, desejo e força de vontade – essas coisas que a vida apronta. Além do dinheiro, Enrico ganhou um convite para trabalhar em um restaurante chique de Roma. Depois de mais seis meses de estudos nos cadernos do irmão, ele se mudava para a capital. O destino havia chutado a bola para o seu lado. Giovanni desmanchou-se de orgulho quando soube da história. Foi em Roma que Enrico conheceu minha avó Pierina. Ela nascera e se criara na Inglaterra, numa família de italianos. O seu colégio londrino costumava promover excursões a capitais do continente europeu. Durante um passeio a Roma, após a costumeira sessão de teatro, ela foi jantar no restaurante onde Enrico trabalhava. Havia então, entre os chefs, o costume de dirigir-se às mesas e perguntar se os clientes estavam apreciando a comida. Pierina elogiou os pratos, mas capitulou de verdade ao charme do cozinheiro. O nonno era mesmo muito bonito. Pelas noites seguintes da excursão, ela e sua amiga Violeta voltaram regularmente ao restaurante. Os jantares se transformaram numa paquera recíproca. Enrico a via chegar e contava os minutos até o momento de ir à mesa fazer a cortesia de praxe. No último dia, ela o convidou para jantar. Não se importou de esperar até a hora da saída dele. Sempre achei que Pierina se apaixonou mais por Enrico do que ele por ela. De família mais rica, ela podia viajar a Roma com a freqüência necessária para manter acesa a chama do romance. Ele seguia trabalhando e mandando dinheiro para a família em Turim. Quando Giovanni retornou da guerra, recebeu um convite para vir para o Brasil. O hotel Copacabana Palace requisitava um bom cozinheiro italiano. A saga brasileira dos Camurati se iniciava sob o signo da comida. Cerca de dois meses depois, Giovanni soube que o Hotel Glória precisava de alguém como ele e indicou o irmão. Enrico estabeleceu-se no Rio de Janeiro e escreveu uma carta a Pierina informando que a viagem não tinha volta. Seria o ponto final no namoro se ela não decidisse fazer as malas e vir juntar-se ao amado. Casaram-se no Rio. Filha única, sua atitude provocou uma comoção na família, que prontamente a deserdou. A nonna era uma moça finamente educada, poliglota. Passou a dar aulas de inglês e impunha, com certa tirania, o uso desse idioma no ambiente doméstico. Minha mãe tinha que conversar em inglês com a sogra dentro de casa, enquanto meu avô se expressava até o fim no seu português italianado. Quando pequeno, meu pai chegou a tomar aulas de esgrima para cultivar a fleuma britânica. Até Violeta, a amiga de colégio e paquera, acabaria vindo para o Rio, depois de também se casar com um italiano. Ela viria a ser madrinha do meu pai e deixou-lhe de herança um apartamento na Avenida Atlântica. O nonno não trabalhou mais que uns poucos meses no Hotel Glória. Logo assumiria o posto de chef patissier do Copa. Os Camurati detinham a mesa completa: Giovanni assinava os pratos salgados e Enrico, as sobremesas. A reputação da dupla cruzava fronteiras. Segundo uma lenda que ainda hoje circula na minha família, o nonno teria feito um bolo de aniversário para Winston Churchill, durante uma passagem do primeiro ministro inglês pelo Brasil. Consta que a célebre iguaria acabou sendo despachada para a Inglaterra. No meu terceiro longa-metragem, Copacabana, Enrico é um dos personagens, interpretado pelo ator Pietro Mário. Naturalmente, foi ele quem preparou o enorme bolo dos 90 anos de Alberto (Marco Nanini). Várias cenas de Copacabana transcorrem no mais famoso hotel do Rio, local onde passei momentos inesquecíveis da minha infância. Mais precisamente, na cozinha do Copa. Sábado era o grande dia. Eu e minha irmã Carina éramos enfiadas em vestidos rodados, sapatos de verniz, os cabelos tão repuxados em rabos-de-cavalo que nos deixavam com dor de cabeça e olhos de japonesas. Na vasta cozinha do hotel, preparava-se o grande chá de domingo. Ficávamos sentadas numa bancada alta de mármore, uma ao lado da outra, totalmente pimponas. Parecíamos dois bombons. Éramos as provadoras oficiais dos doces à medida que ficavam prontos. Lá vinham duas taças de sorvete. Dali a pouco os leques, as bombas de chocolate, os biscoitinhos de queijo... De uma hora para outra, tudo desaparecia. E era já o nonno me acordando, ainda abraçada com um guardanapo cheio de forminhas de doce, emborcada sobre o mármore. No ônibus, voltávamos felizes para casa, em Botafogo, cada uma com seu saquinho de guloseimas. Não nos era permitido circular livremente pelas dependências do Copa. Nossa visão do transetê limitava-se ao ponto de vista da cozinha: o peixe enorme que chegava do mercado, o bolo que o nonno terminava de confeitar e era levado para algum salão. Durante certo tempo, pudemos passear nas proximidades da piscina. Mas só até o dia em que resolvemos arriscar um pouco mais. Deitamo-nos na borda da piscina para molhar as mãos e iniciamos uma bagunça que nos deixou encharcadas. Depois disso, tivemos que nos restringir aos limites da cozinha. Vez por outra, o nonno nos levava a bailes infantis ou a eventos para os quais era convidado. Assim foi com a apresentação de Gene Barry, o ator que fazia Bat Masterson na famosa série de TV. Minha mãe jura que eu saí correndo dos braços dela para sentar-me no colo do Bat Masterson. Mas essa lembrança é só dela, não é minha. Não convivi com a nonna Pierina, que morreu quando eu tinha 2 anos. Mas de Enrico guardo muitas e boas recordações. Dormi muitas noites em sua cama, quando tinha entre 5 e 7 anos. Ele morava com meus pais no apartamento onde nasci, na Rua General Góis Monteiro, 88, edifício Marajá. Seu quarto era um escritório adaptado, cuja porta ficava ao final de uma longa parede de lambri. À noite, morrendo de medo, eu atravessava a sala escura, tateava a parede até encontrar a maçaneta e me aninhava em sua cama. De manhã, surpreendia-me ao acordar abraçada não a ele, mas à minha irmã. É que o nonno se esgueirava para o nosso quarto vazio quando via a Carina chegar e adormecer também. Apesar da origem de meus avós paternos, nossa casa não era marcada por hábitos europeus. Ninguém era muito apaixonado por cinema, música ou ópera. Mas no capítulo comida, havia muita variação, muita fantasia. Daí minha paixão por comidas. O nonno sempre podia sair da cozinha com alguma surpresa espetacular. Os doces eram maravilhosos, o marzipã era feito em casa. Comia-se muito macarrão, mas o prato mais esperado do ano era o risoto de funghi preparado pelo meu nonno. A Violeta é quem trazia aqueles pacotinhos de funghi para o momento sagrado da família. Fazia um silêncio solene na mesa e ouvia-se apenas o ruído do garfo amassando o arroz. Porque você não come risoto de funghi de qualquer maneira. Tem que abrir o risoto inteiro no prato e ir comendo pelas beiradas. Aguardávamos também com ansiedade a época da alcachofra, perto do final do ano. Meu maior problema era com as verduras. O mundo desabava quando tinha caldo verde. Meu pai não admitia minha recusa e me impedia de prosseguir no menu. Lá em casa era assim: se você não quisesse comer, não saía da frente do prato. Todo mundo passava ao prato principal, à sobremesa e ao café, enquanto eu ficava congelada diante do caldo verde. Eu era tinhosa, suicida. Um dia meu pai disse come! e eu respondi não como! Aí recebi um tapa. Comi uma colher e parei de novo. Outro tapa, outra colher, e foi assim até o final do prato. Até hoje não entendo a minha estupidez de não comer logo e me poupar de tantos bolachões. O italiano nunca foi praticado com rigor na casa dos meus pais. Eu, por exemplo, sempre compreendi bem o idioma, mas ao falar freqüentemente misturava com o espanhol. Nos anos 1980, tirei o meu passaporte italiano e logo em seguida fiz uma viagem à Suíça e à Itália, em companhia do Thales Pan Chacon, com quem estava casada. Resolvemos, então, conhecer Omegna. Eu sabia que lá morava uma prima distante, Nadia, proprietária de um salão de beleza. Não foi difícil, em cidade tão minúscula, localizar nosso objetivo. Mas o encontro foi um fiasco. Apresentei-me em italiano e rapidamente percebi uma inquietação em Nadia. O que você veio fazer aqui? Nós não temos nada... Não houve testamento..., era tudo o que ela queria dizer. Eu tentei explicar que não esperava nada deles, mas a conversa ficou horrorosa e eu comecei a misturar o italiano com o espanhol. Então resolvi falar em inglês, o que resfriou ainda mais o diálogo. Três minutos depois de entrar no salão, eu e Thales já saíamos, entre desajeitados molto piacere e a riverderci. Só queríamos nos afastar dali para soltar as gargalhadas. Terminava assim, em clima de sitcom, a viagem sentimental às minhas raízes italianas. Capítulo II Hormônios em Excesso Antes de existirem o Shopping Center Rio Sul e o Canecão, Botafogo era um bairro sossegado na década de 1960. A garagem do nosso prédio dava para o morro onde hoje fica o condomínio Morada do Sol. Era ali que brincávamos. Nunca gostei de boneca nem de pintar as unhas com esmalte, vestir roupinha cheia de fru-fru, botar bijuterias, etc. No máximo, brincava de comidinha nas escadas do edifício. Preferia subir em árvore e jogar bola. Eu era da turma dos meninos. Participava da seleção de futebol do prédio, primeiro como ponta-esquerda, depois como goleira. Quando meus peitos cresceram, comecei a fugir das bolas altas, fiquei medrosa. Os meninos me tiraram do time sem piedade. Foi uma depressão... Meu pai nos dava muitos brinquedos masculinos – autorama, trenzinhos. Acho que era uma maneira de ele também possuir aquelas traquitanas. Aos bichinhos de pelúcia, sempre preferi os de verdade. Uma vez adotei uma gata preta de peito branco, que encontrei no terreno baldio, e a deixava dormir dentro do Fusca da minha mãe. Ela pariu uma ninhada a bordo. Tive um pato e um pintinho, que, coitados, moravam na banheira. Por volta dos 8 anos, era apaixonada por cavalos. Meu pai comprou um apartamento na Barra da Tijuca e eu freqüentava o Clube Marapendi. Auxiliava os cavalariços na lavagem dos animais e, como recompensa, podia dar uma volta sem cela na montaria. Cavalgar o Guarani, meu preferido, significava ganhar o dia. Mais tarde, teria aulas de equitação para aprender os saltos. Em Botafogo, conhecia todo mundo: o quitandeiro, o pessoal da padaria, da papelaria. Nessa última, mandávamos fazer nossas molduras. Nunca esqueci o dia em que fomos buscar dois desenhos, meu e de Carina, que minha mãe tinha mandado enquadrar. O moldureiro, muito solícito, olhou para nós duas, avaliou os desenhos e entregou: Este é o da maiorzinha e este é o da pequenininha. Minha mãe fez cara de arrasada. Fiquei muito sem graça ao admitir que os quadros estavam trocados. Embora dois anos e meio mais velha, meu talento para o desenho já era flagrantemente inferior ao da minha irmã. Meu lado feminino talvez se manifestasse mais na iconografia religiosa. Eu adorava santinhos, estampas de anjinhos, etc. Tinha montanhas deles e ficava horas a admirá-los. Minha avó materna, Celima Andrade, é muito religiosa, embora não seja do tipo que coleciona santinhos. Acho que tudo o que ela pede, Deus faz. Mas não posso dizer que isso tenha marcado minha formação. Minha primeira comunhão foi pura ação espontânea. Eu estava louca para provar a hóstia. Simplesmente, fui lá e tomei. Minhas lembranças de igrejas são mais ligadas a aspectos paralelos. A caminho da Escola Municipal Augusto Paulino Filho, localizada onde hoje fica o Teatro Villa-Lobos, eu passava pela Igreja de Santa Teresinha, à entrada do Túnel Novo. Morria de pena dos mendigos que vendiam velas e sempre lhes dava um dinheirinho. Nos fins de semana, assistia às partidas de bocha que meu avô jogava no terreno de uma igreja da Rua Álvaro Ramos. Meus dois avôs exerciam profissões fascinantes. Se Enrico tinha uma cozinha, Laerte Andrade, meu avô materno, tinha um laboratório. Ele era cientista da Fundação Oswaldo Cruz. Ambos trabalhavam com pesquisa e experimentação. Meu avô Laerte era um homem sisudo, daqueles que passam a maior parte do tempo calados, mas quando falam é para valer. De suas tiradas espirituosas ou agudamente críticas, eu usei uma em diálogo de Copacabana: Fazer 90 anos, pelo visto, só eu e o Roberto Marinho. Os dois morreriam em 2003 – meu avô aos 93 anos e Roberto Marinho aos 98. Lembro-me dele concentrado por horas ao microscópio, caladíssimo, tomando notas de vez em quando. Eu admirava aqueles escritos misteriosos e ele me deixava olhar no microscópio. Era maravilhoso. Ali eu parecia ver o universo inteiro, enquanto no meu microscópio de brinquedo não enxergava patavina. A referência dos meus avós sempre foi muito forte em minha vida. Minha avó Celima é uma matriarca de bem com a vida. Ela é um sol, em torno do qual as pessoas giram facilmente. Alegre, positiva, gosta de viver e de se comunicar com as pessoas. Com ela tive conversas que nunca travei com minha mãe. Ver as rotativas do Jornal do Brasil em funcionamento era outra diversão inesquecível. Meu pai era chefe de circulação do jornal e eu às vezes o acompanhava quando ele tinha de supervisionar a rodagem atrasada de um caderno ou o conserto de alguma máquina no final de semana. Nossa casa tinha sempre muitas revistas. Meus quadrinhos prediletos eram os de Tintim, Batman, Fantasma, Riquinho e Brotoeja. Eu colecionava todos os álbuns de figurinhas que aparecessem no mercado. Meu pai nunca chegava em casa sem um maço de figurinhas, mesmo quando trocava os pés depois de umas tantas cervejas. Meu pai, Sérgio Antônio Camurati, era nessa época uma espécie de O Médico e o Monstro. Quando estava sóbrio, era afetuoso e cheio de atenções. Levava-nos ao jardim zoológico, à pescaria. Seu talento na aritmética era quase mágico. Podia responder, em segundos, quanto era, digamos, 5.982 divididos por 346 vírgula 30. Eu e Carina consumíamos pestanas e pontas de lápis durante 20 minutos para confirmar que o resultado estava invariavelmente correto. Mas a magia se transformava em pesadelo nas fases dominadas pelo álcool. Houve festas de aniversário arruinadas, muitas noites encerradas em desavenças domésticas. A geladeira abarrotada de cerveja nos causava arrepios. Eu e minha irmã costumávamos fazer uma corrente humana para desalojar as garrafas e derramar o conteúdo na pia. Eu ainda faria muita análise para conseguir lidar com aquela realidade. Foi numa noite muito louca, quando eu tinha 10 anos, que meus pais se separaram, em seguida a uma briga feia. Eu e Carina só compreendemos tudo no dia seguinte, quando vovô pela primeira vez nos levou ao colégio. Ele então nos explicou que papai e mamãe não morariam mais na mesma casa. Passamos um tempo na casa dos meus avós, na Rua São Clemente, até que minha mãe se reaprumasse na vida. Casamento desfeito, Ana Maria Manhães de Andrade estudou Direito e trabalhou pesado para nos sustentar. Minha educação começou em escolas públicas, e eu adoro isso. Fiz o jardim de infância na Escola Municipal Gabriela Mistral, na Praia Vermelha, que continua linda até hoje. As crianças fazem hortinha, há muito espaço, a vista é ótima. Depois fiz o curso primário na Augusto Paulino Filho. Nessa época, o ensino nas escolas públicas era muito bom. As pessoas que passaram por essa experiência olham a vida de maneira diferente, num certo sentido. Conviveram com todas as classes sociais, em vez de ficarem restritas a seu próprio universo. Pretendo botar meu filho numa escola pública em algum momento. Ele deve aprender a dimensionar o mundo direito, compreendendo a existência do diferente. * * * Houve uma época em que a pequena diferença de idade entre mim e a minha mãe causava um certo antagonismo. Ela estava somente com 17 anos quando eu nasci. Era muito menina e já havia outra menina para cuidar. Era tudo confuso. Ela cabia nas minhas roupas, o que para ela era motivo de orgulho. Cada vez que eu dizia essa é minha mãe, as pessoas quase caíam duras. Aí entra um sentido feminino meio competitivo. Tive namorado mais velho do que minha mãe e que podia ser namorado dela! O resultado é que minha avó, com 50 e poucos anos, fazia o papel de minha mãe. Não acredito nessa fantasia de que a mãe possa ter com a filha uma relação igual à de uma amiga. Acho que mãe é mãe, amiga é amiga. Os pais têm incumbências específicas, como dizer coisas que não se quer ouvir, discordar, delimitar espaços e preparar para o mundo. Você sempre vai estar fazendo companhia, mas ao seu pai e à sua mãe. Não pode achar que é igual. Seu filho é que vai escolher os amiguinhos dele. Eu me lembro de pensar: Vou ser mãe o mais tarde que puder. Acho que cumpri minha palavra. Hoje, com mais de 40 anos, tenho prazer em ser mãe. Já vivi minha vida, viajei e trabalhei o que quis. Quem tem esse anseio naturalmente dentro de si deve vivê-lo com intensidade antes de ter um filho. Das minhas amigas de adolescência, a única com quem me relaciono até hoje é a Renata Quinderé, dona da Academia da Cachaça. Conhecemo-nos numa viagem que fiz ao Maranhão, aos 14 anos. Lembro-me da Marcela e da Cássia, com quem dividia um privilégio esquisito no Colégio Stella Maris, minha primeira escola particular. O Stella Maris não tinha regime de semi-internato, mas foi criada uma exceção para nós três, cujos pais precisavam trabalhar. Nós tínhamos três mesinhas junto à entrada da clausura. Passado o horário das aulas, ficávamos ali a tarde inteira de favor, à mercê dos passantes, fazendo os deveres e conversando baixinho. Nicole foi talvez minha primeira grande amiga. Morava no prédio da Góis Monteiro em companhia de uma tia solteira, dona Salma (nome que me inspirou uma das personagens de Copacabana). Nicole era uma menina linda, doce, mas tinha uma vida muito triste, porque morava com uma senhora muito velha, que gemia o tempo todo. Nós brincávamos com aqueles gemidos sempre ao fundo, como um contracanto. Em companhia de Carina, via as sessões da tarde na TV. Carina preferia os desenhos animados, mas eu queria ver os filmes. A parada era decidida com alguns sopapos e a pobre irmãzinha oprimida tinha que ficar assistindo às evolções de Fred Astaire, aparentemente conformada com seu destino. Mas era só minha mãe botar a chave na porta, de volta do trabalho, e ela abria o berreiro. Parecia um despertador eletrônico. Eu dizia: Falsa! Você não estava chorando! E batia novamente. De alguma maneira, minha mãe sempre me flagrava estapeando a Carina. Minhas preferências televisivas incluíam A Feiticeira e Jeannie é um Gênio. Jeannie era a realização de tudo o que eu gostaria de ser na vida. Imagina você piscar um olho e uma coisa acontecer! Também adorava Batman. Brincava muito de Batman com o meu vizinho Ricardo. A gente dava beijo na boca porque eu era a Mulher-Gato, estava presa, etc. e tal... Minha mania de namorar, aliás, parece ter começado bem cedo, a crer numa foto em que eu estou beijando um garoto na boca, aos 3 ou 4 anos de idade. Foi num período de dois anos em que moramos em São Paulo, no bairro de Vila Helena, onde eu tinha um amiguinho de origem alemã. Um dia, minha mãe mandou que eu o beijasse para tirar uma foto. Eu agarrei o pescoço do alemãozinho e dei-lhe um beijo na boca. Namorei durante toda a adolescência. Sempre tinha alguém para eu me apaixonar. Nunca olhei o mundo e falei Ah, não tenho ninguém. Isso está longe de significar que minha adolescência foi um mar de rosas. Ao contrário, foi uma das piores fases da minha vida, tempos de muita angústia com as dúvidas sobre que rumo tomar, a situação de ser dependente e independente ao mesmo tempo. É ruim até fisicamente, com todo aquele excesso de hormônios entrando no sangue. De uma vez por todas, não gostaria de voltar aos meus 15 anos. Capítulo III Guerra à Beleza Sempre se falou muito que eu era bonita. Mas isso me provocava uma espécie de rejeição porque, da maneira como colocavam as coisas, a beleza não trazia nenhuma vantagem. Ao contrário, me tirava o mérito. Minha mãe me dizia coisas assim: Mas também com essa carinha, esses olhos, esse sorriso... Aquilo me soava depreciativo, até mesmo depressivo. A beleza parecia um defeito! Era como se ela substituísse todos os outros valores. E eu queria os outros valores! Queria que as pessoas me achassem inteligente, competente nas coisas que fazia. Ser bonita não era uma conquista, mas uma herança, e eu vivia em busca de conquistas. Nem me achava tão linda assim. Bonitas de verdade eram Greta Garbo, Vera Fischer. Eu sabia que não era feia, tinha um corpo direitinho, mas não a ponto de alguém achar que eu conseguia as coisas só por causa da beleza, e não pelo meu jeito de ser. Depois que minha mãe casou pela segunda vez, voltamos a morar no apartamento da General Góis Monteiro. Eu tinha 13 anos quando vivi uma grande crise por causa dessa história da carinha bonita. Um dia entrei no banheiro, tomei um barbeador do meu padrasto, raspei as sobrancelhas e piquei todo o cabelo diante do espelho. Não foi um atentado, mas uma busca de equilíbrio. Fui para a mesa do jantar parecendo um macaco. Conquistei um escândalo. Minha madrinha achou que estava mesmo na hora de me apresentar a um psicanalista. Lembro-me de ter afirmado, logo nas primeiras sessões de análise, que meu corpo era diferente do que eu era por dentro. Eu não sou isso, eu sou outra coisa, assegurei. Ao que o analista respondeu: Não, senhora. Você é isso que você está vendo. Eu tinha a nítida sensação de não combinar com a minha imagem. Sentia-me mais menino que menina. Minha imagem retratava uma feminilidade que eu não tinha na alma. A incongruência era visível. Eu era mais ativa, mais agressiva do que aquilo que aparecia no espelho. Nunca consegui usar salto alto, me emperiquitar, ficar pendurando jóias. Houve mesmo uma época em que, ao invés de me cuidar, eu vivia me descuidando. Não usava roupas claras, nem biquíni, nem decotes. Parecia um saco de batatas. Não sei se contei esse episódio ao José Antônio Garcia, porém minha personagem em A Estrela Nua decepa os cabelos de qualquer jeito diante de um espelho de banheiro e, em outra cena, apara pêlos pubianos para rechear um baseado. Minha capacidade de comunicação também me trouxe desvantagens na infância. Minha irmã era mais destra que eu, no entanto muito mais tímida. Eu chegava nos lugares e logo fazia amigos, entrava nas festas e já saía dançando. No dia em que pedi para estudar balé clássico e o dinheiro não era suficiente, minha mãe alegou: Você já sabe dançar, quem precisa de aulas de dança é sua irmã. Ela estava certa, como eu perceberia depois. Eu jamais teria a concentração e o afinco necessários para ser uma bailarina clássica. Mas naquela hora eu só podia me ver como vítima de mais essa vantagem. Ainda viria a tomar aulas de balé em outra fase da minha vida. Mas acho que foi só para restituir aquela fantasia infantil. Os palcos não perderam uma nova Márcia Haydée. * * * Talvez por essa necessidade inata de conquistar as coisas pelo esforço, a idéia do trabalho sempre foi forte em mim. Desde muito pequena procurei me virar. Botava banquinha para vender revistas na entrada do prédio. Aos nove anos, era entregadora de utensílios Tupperware nas redondezas. Uma vizinha vendia produtos importados e eu fazia entregas em troca de uma gorjeta. Foi na casa dessa vizinha que eu vi a primeira televisão em cores. Daquelas com um plástico colorido na frente e você via o Batman rosa, o Robin verde, etc. Era maravilhoso! Eu ainda tenho de colocar isso num filme... Naquela época não era tão perigoso sair sozinha pelas redondezas. Minha mãe tinha medo de atropelamento, mas ninguém temia assalto ou seqüestro. Ela morria era de vergonha, achava meu ofício humilhante. Mas meu pai permitia e eu seguia em frente, sentindo-me a rainha da independência, sem ter que dar satisfação a ninguém. Aos 13 anos, atuei como auxiliar de professora, em retribuição a um desconto nas prestações do colégio. Depois fui recenseadora do IBGE, trabalhei por curtos períodos na loja de roupas e jóias de Sonia Galotti e Antonio Bernardo e na Fiorucci da Praça General Osório, em Ipanema. Nunca tive vergonha de qualquer emprego, tal era a minha alegria de trabalhar. No final do curso científico, fui professora de arte para crianças. Na época da faculdade, trabalhei como secretária na empresa do produtor cultural Rodrigo Faria Lima. Ali, a maior diversão era ajudar os atores a passarem o texto. Mas não creio que deixei saudades. Podia ter muitos talentos, menos o de ser meticulosa. Devo ter sido a pior secretária do universo. Na infância, quem me perguntasse o que seria ao crescer, eu respondia: médica. O fascínio exercido pelo meu avô Laerte certamente contribuiu para que eu, mais tarde, mergulhasse no estudo de Biologia Marinha. Não sonhava em ser atriz. Via tantos filhos de artistas que pensava ser esse dom uma coisa herdada dos pais, junto como os genes e os bens. E eu não tinha de quem herdar o talento necessário. Além disso, à medida que crescia, tomava-me um certo pudor de aparecer, de ganhar papéis. De novo aquela história de obter as coisas por ser boa, não por ser bonitinha. Recusei vários convites para ser modelo, e não era por rejeição ao dinheiro. Eu não gostava do narcisismo que dominava a profissão. Queria ganhar dinheiro, mas não estava disposta a fazer qualquer coisa por ele. Da mesma maneira, eu não era tiete de artistas. Gostava de observar o movimento, mas não babava de admiração por ninguém. Lembro-me de visitar, ainda pequena, a cidade cenográfica onde gravavam a novela Irmãos Coragem, na Barra da Tijuca. Valia a pena caminhar um estirão a pé, através de um areal, com o sol a pino, só para ficar olhando aquela pracinha, a igreja, as fachadas sem nada atrás. Aquele mundo mágico me encantava. Gostava de ver o Tarcísio Meira, o Cláudio Cavalcanti e o Cláudio Marzo, mas nunca fui lá pedir um beijinho ou um autógrafo. Minha história de cinéfila começou com uma crise de choro no cinema Rian, em Copacabana. Não suportei ver a Dorothy desacordada em O Mágico de Oz, de Victor Fleming, e me pus a gritar para despertá-la. Jamais tinha visto imagens daquela violência, com aquelas cores. Era paixão e terror ao mesmo tempo. Tive de ser retirada do cinema. O dia estava chuvoso e eu fiquei sentada num banco diante de um mar cinzento como aquele do Carlota Joaquina. A bilheteira me dava um copo de água com açúcar, enquanto eu soluçava e perguntava o que havia acontecido com a menina. Não conseguia compreender que aquilo não fosse verdade. Durante vários dias só pensava na pobre Dorothy. Fiquei proibida de rever O Mágico de Oz por cerca de dois anos. * * * Uma das decisões mais sábias da minha vida foi tomada durante o curso ginasial, no Colégio Stella Maris. Havia duas aulas especiais entre as quais devíamos optar: culinária ou teatro. Meu notório espírito empreendedor levou-me a optar pelo teatro, já que podia depois copiar as receitas e ainda saboreava os quitutes preparados pela outra turma. Assim eu vivia o melhor de dois mundos. Atuei em montagens escolares de O Auto da Compadecida e Romeu e Julieta. Descobri, então, o prazer de representar. Eu percebo que gosto de fazer uma coisa quando o tempo passa e não me dou conta. No prazer, o tempo some. Mas, ao lado do prazer, eu também tinha vergonha. Entre uma coisa e outra, comecei a alimentar um desejo hesitante de me dedicar ao teatro. Outra decisão sábia foi tomada no interior da lanchonete Chaika, em Ipanema. Eu cursava o quarto período de Biologia na antiga Fefierj (Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro), que originou a atual Unirio. Embora gostasse da matéria, sentia que não iria longe com aquilo e estava profundamente infeliz. Havia algum tempo que eu pensava em trancar a matrícula ou simplesmente abandonar o curso. Vivia amargamente esse impasse quando naquele dia entrei na Chaika e pedi um café. Eu já havia conversado sobre isso com minha avó Celima. Ela me dava uma mesada destinada, teoricamente, a pagar a faculdade. Mas como esta era pública, o dinheiro servia para complementar minhas despesas. De maneira muito franca e virginiana, ela me estimulou a tentar. Você tem que ver se é capaz de fazer o que gosta, aconselhou. Não adianta só a gente gostar. É preciso ter aptidão. Pode ser que você tenha. Mas se não tiver, não deve insistir. E complementou, providencialmente: Não se preocupe que eu vou continuar lhe dando o dinheiro da faculdade. Ali estava eu, diante do meu café. Após algum tempo de reflexão, respirei fundo, caminhei até a calçada e depositei, não sem algum cuidado, todos os meus cadernos na lixeira pública. Voltei à mesa, pedi outro café e fiquei olhando a extremidade dos cadernos acima da borda da grande lixeira de arame. Teria coragem de ir embora e deixar um ano inteiro de Biologia para os caminhões da limpeza urbana? E se alguém jogasse um resto de sorvete em cima, estaria decidindo por mim? Como eu ficaria com meus cadernos tão bonitinhos emporcalhados de lixo? Fumei dois cigarros sem saber até que ponto tinha mesmo tomado uma decisão, ou se ainda estava apta a voltar atrás. Se quisermos ter algo além do que tínhamos antes, precisamos ir em frente nas decisões. Com toda nossa energia, devemos virar as costas para aquilo que não nos satisfaz e experimentar um caminho mais compensador. Naquela hora, eu não pensava tão claramente assim, mas aos poucos fui deixando de olhar para a lixeira. Passeei os olhos pelos cartazes e avisos na parede da lanchonete e fixei a atenção num cantinho onde havia um cartazete: Curso de Teatro de Férias – Gilda Guilhon e Buza Ferraz. Pedi a conta, passei direto pela lixeira da calçada, o coração aos pulos, e dobrei a esquina em direção à Faculdade Cândido Mendes. Em pouco mais de uma hora, havia mudado completamente a minha vida. Capítulo IV No País da Televisão Muita coisa aconteceu ao mesmo tempo, em fins da década de 1970. Enquanto iniciava minha carreira em teatro e televisão, vivi quatro anos com meu primeiro marido, o cantor e compositor Zé Renato, que integrava o grupo Cantares e depois formaria o Boca Livre, junto com Maurício Maestro, Cláudio Nucci e David Tygel. Fiquei amiga do Tom Jobim, do MPB-4 e de muita gente da música. Mas nunca pensei em tentar uma carreira de cantora, embora adore cantar. Nessa época, eu tinha um quê de pós-hippie, que se manifestava principalmente na maneira de me vestir, na descontração e na alimentação naturalista, da qual continuo adepta até hoje. Eu acho lindo que, depois do movimento hippie, o mundo nunca mais deixou de ter um viés hippie. Há sempre uma saia indiana passando, uma sandália de dedo, etc. Roupa, para mim, está ligada ao bem-estar e à expressão da minha personalidade. Não suporto sacrificar-me para ficar bonita. Nunca agüentei um salto alto por muito tempo, um vestido muito apertado ou um decote que faça o peito pular. Já havia saído de casa desde os 16 anos, quando não conseguia ter uma boa relação com o terceiro marido da minha mãe. Tinha ido morar com minha madrinha e nunca mais voltara para casa. Por volta dos 15 anos, tinha experimentado drogas pela primeira vez. Por indicação enfática de um coleguinha do prédio, eu e uma amiga compramos um vidro de Artane, medicamento contra a doença de Parkinson que era vendido facilmente em qualquer farmácia. Escondemos os comprimidos no interior da cabeça de uma boneca e experimentamos os primeiros. Fiquei sentada diante da televisão, à espera de que batesse. A certa altura, minha companheira de viagem foi-se embora e eu continuei à espera. E nada... De repente, ouvi a chave na porta. Era meu padrasto que chegava. Levantei-me para recebê-lo e o chão inteiro cedeu aos meus pés. O caminho até a porta era uma enorme rampa descendente. Pensei: estou roubada. E desviei para o quarto. À noite, eu via trilhas imensas de formigas cor-de- rosa subindo pelas paredes. Minha mãe e meu padrasto estavam sentados na cama tentando conversar comigo, mas eu não os ouvia porque as tanajuras de bundas grandes e rosadas faziam muito barulho ao marchar. Eu os alertava, freneticamente: Cuidado! Cuidado! Estão atrás de vocês! Abaixem a cabeça! E ria como louca. No fundo, me sentia muito bem. Só me incomodava a sensação de falta de controle. Depois eu provaria maconha e outras tantas drogas, mas nada me proporcionava real satisfação. A maconha só me dava muita fome e sono. Acho que ela causa mais danos sendo proibida do que liberada com restrições. De certa forma, a maconha acoberta drogas mais pesadas, como a cocaína e a heroína. Se ela estivesse fora disso, o combate às drogas seria mais fácil e o tráfico não teria tanto poder. Imagine o cacife dos traficantes se o álcool também fosse proibido... Hoje não abro mão dos meus cigarros indianos. São cigarros sem química, com um sabor mais natural, e que se apagam constantemente. Acabo fumando menos. Para mim, o fumo é mais um vício gestual e uma coisa de respiração. Tenho a teoria maluca, mas muito coerente, de que fumo para respirar, para encher mais os pulmões. Se paro de fumar, fico puxando ar. Tornei-me fumante por volta dos 15 anos, em meio a uma cilada armada por duas colegas de escola. Elas me ensinavam a fumar na hora do recreio quando fomos surpreendidas pela madre Camarão, uma freira gorducha de bochechas vermelhas. Eu estava com o cigarro na mão e as minhas amigas, mais espertas, apressaram-se a dizer que não fumavam. Eu, que apenas ensaiava o primeiro trago, fiquei sem texto. Como sempre nessas situações, disparei a rir. Sempre tive a noção de que só nos livramos dessas coisas até a página seis. Depois disso temos que assumir para não aumentar o vexame. Engoli em seco e levei a culpa para casa. Minha mãe foi notificada e me fez fumar um maço inteiro de Astória, o preferido do meu pai, cigarro após cigarro. Terminei a cena aos vômitos. Mas nunca parei de fumar. Durante a gravidez, apenas reduzi o número de cigarros. Não queria virar aquela pessoa descontrolada e ansiosa que fica lutando contra o cigarro. A saúde não é um conceito estreito, mas um estado de equilíbrio nas coisas que a gente consome. Bebidas alcoólicas, por exemplo, eu tomo quase como criança, pelo saborzinho misturado ao álcool. Gosto de bebidas como a margherita, o champagne, o vinho branco. O vinho tinto, se não for no frio, bate como um sonífero irresistível. Mas já gostei de poire, que é quase álcool puro. Em toda a vida, só tomei uns três porres memoráveis. Geralmente, é quando me meto a besta. Um deles foi na Inglaterra, nas águas pretas da cerveja Guinness, que eu amo. Jamais poderia ter sentado com um bando de irlandeses e escoceses para ficar bebendo naqueles copos grandes, animadamente. Sentei e passei muito mal, mas não cortei relações com a Guinness. * * * Cazuza, Bebel Gilberto, Rosane Goffman, Alice Andrade e Pedro Cardoso eram alguns dos meus colegas no curso de Buza Ferraz e Gilda Guilhon. Juntos, criamos a peça infantil Parabéns pra Você (Cazuza fazia o aniversariante) e encenamos alguns textos de Tchekov. Lembro-me da minha primeira estréia, em 1978, quando minha avó foi ao camarim e me abraçou cheia de orgulho, dizendo Você faz muito bem, minha filha. Aquilo foi uma aprovação muito importante, porque se tivesse achado ruim, ela certamente deixaria isso claro. A Celima não doura a pílula. A cor Laranja foi minha primeira personagem profissional, numa montagem de Flicts, a peça infantil de Ziraldo e Aderbal Jr. Laranja era a cor mais equilibrada, que fica entre o Vermelho e o Amarelo, sem grandes radicalismos. Mesmo assim, eu fiquei tão nervosa que temi morrer do coração ao pisar no palco do Teatro Princesa Isabel. Eu, com tão pouca estrada, ali estava com atores profissionais como a Elvira Rocha, a Lígia Diniz e o Cacá Silveira. De certa maneira, sentia-me uma impostora. Na verdade, estou sempre lutando contra a timidez. Sobretudo no teatro, onde a sensação é de ter um 220 plugado na veia. Não é como no cinema, onde eu sempre soube o enquadramento que me pegava e o set era um lugar concentrado e silencioso, onde eu podia errar. O cinema sempre me deixou mais à vontade que o teatro. Na época do Flicts, eu já havia feito o curso do Amir Haddad, que me passou as principais noções do que seja interpretar. Nunca tive fascínio pela fama. O que me seduzia era o prazer de representar. Eu busco o tempo inteiro não me afastar muito de mim mesma. O ator tem a tendência a ir se afastando, naturalmente, seja quando mente, seja quando se deixa dominar por um sentimento único. Mas na representação nem se pode estar incorporado, nem se deve ser totalmente técnico. Para mim, os melhores atores são os que têm absoluta noção de tudo o que estão fazendo. São intérpretes tão exímios do sentimento humano que têm a consciência de cada gesto, de cada ferramenta que usam. Eles provocam um sentimento na gente não porque estejam possuídos por alguma coisa, mas porque dominam uma técnica. A emoção pura e simples pode derrubar o ator. Eu sempre procurei definir o que precisava estudar para fazer um papel. É preciso estudar muito, pois se o ator conta somente com o seu frescor, seus trejeitos ou seu charme, vai ser aquele que repete sempre a mesma personagem. O fascinante é ser mimético. Em vez de interpretar a si mesmo muito bem, ou usar a própria personalidade para vestir toda e qualquer personagem que lhe caia às mãos, é importante construir personagens diferentes a cada dia. Existem atores que são maleáveis como massinha de modelar. Outros não mudam nunca. Quando fiz meu primeiro trabalho na televisão, a ingenuidade me pregou uma peça. Foi na gravação da minha primeira cena para o especial Gatinhas e Gatões, quinto episódio da série Amizade Colorida, com direção de Dennis Carvalho. Diante de mim estava o Antônio Fagundes, aquele ator maravilhoso com pleno domínio da câmera. Eu, toda bocó e idealista nos meus 20 anos, achando que representar é olhar no olho do parceiro, inflava o peito cheio de emoções verdadeiras. Mas o Fagundes, naturalmente, se esquivava para não ser coberto por minha cabeça no contracampo. Eu estava toda ligada nele e ele parecia conversar com a câmera! Estupidamente, não hesitei em parar a cena e consultar o diretor: Dennis, desculpe, mas eu devo olhar para ele ou para a câmera, como ele está fazendo?! Só me lembro do Fagundes, furioso, rebatendo: É esse tipo de menina que vocês põem aqui dentro? Façam-me o favor! O vexame me ajudou a compreender que a televisão era muito diferente do teatro – e que a emoção não ajuda muito quando a técnica falha. Relutei um pouco em fazer televisão. Temia entrar naquele mundo e não saber lidar com ele. Meu sonho era fazer teatro e cinema. A TV não era uma coisa bacana. Eu tinha um misto de medo e preconceito, no entanto ao mesmo tempo sentia uma certa atração. Mas, afinal, precisava de dinheiro. Foi quando o Paulo Afonso Grisolli me convidou, em 1979, para fazer um teste com vistas a um arquivo de jovens atores para minisséries. O pior momento do teste ocorreu quando a Graça Mota me pediu que cantasse alguma coisa. Eu sabia que ia desafinar e que seria gongada impiedosamente, pois sequer lembraria a letra de Atirei o Pau no Gato. Mas acabei cantando uma música do Boca Livre e fui selecionada. Fiz o Gatinhas e Gatões, que abriu uma grande polêmica com a história de um homem que se apaixonava pela filha da namorada e iam todos parar na delegacia. As Senhoras de Santana (SP) abriram um processo contra a Globo por atentado à moral, a série foi suspensa e o assunto parou nas capas dos jornais. Na minha primeira atuação, eu já estava nas manchetes! Tudo começou com um escândalo! Dois meses depois, passei por um vexame mais reservado ao fazer um teste com Daniel Filho para a novela Brilhante. Cada candidato escolheria seu texto. Eu selecionei algo totalmente incompatível com meu físico de menina lourinha, cabelo encaracolado na cintura: o monólogo de despedida de Jasão, da peça Gota d’Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque. Não havia sequer uma fala dramática de Joana, a Medéia brasileira, mas apenas o belo solilóquio do homem que a abandona. Ensaiei com minha avó Celima. No dia D, lá estavam também a Débora Bloch, a Fernanda Torres e a Andréa Beltrão. Havia todo um clima de isolamento e tensão. Depois que cada uma entrava na sala, era como se caísse num buraco negro. Ninguém sabia o que acontecia com a pessoa. Mas quando eu ia entrando, por alguma falha no sistema, cruzei com a Débora, que me sussurrou algo assim: Nossa, é horrível! Ele deixa a gente super-sem-graça... Eu entrei com esse tipo de estímulo. Sentei-me diante do verdugo e pensei: Não vou dar a menor pra esse cara, se ele está pensando que... – Tudo bem? Você é a Carla, né?, proferiu Daniel. – É. Carla Camurati. – Tudo bem, Carla. Vamos dar uma conversada antes de começar o teste. – Eu achava melhor a gente conversar depois do teste, se você quiser conversar comigo, porque eu não vou conversar direito com você. Eu vim aqui fazer um teste, se a gente conversar antes eu só vou pensar no teste que vim fazer... Antes que eu concluísse minha peroração, ele já acedia. Perguntou-me o que havia preparado. Disse que também gostava muito de Gota d’Água. Perguntou se eu queria fazer de pé ou sentada. Como você quiser, respondeu a dona da cocada preta. Comecei sentada, depois andei para lá e para cá, sentei de novo e, num dado momento, bati o olho no rosto do Daniel. Ele estava pasmo. Deve ter sido o teste mais escalafobético que ele presenciou na vida. Olhava-me de boca aberta, como se estivesse diante de uma foragida do manicômio. Era na hora em que Jasão falava: Ah, Joana, nossos filhos, nossa vida... Ah, Joana! Quando vi a expressão do Daniel, deu-me um daqueles brancos absolutos. Acho que repeti umas 15 vezes Ah, Joana... Nunca encontrei tantas inflexões diferentes para uma mesma fala. Derrotada, concluí bruscamente: Foi isso o que preparei. Ele me olhou, ainda em estado de choque: – Rã-rã... Uma pergunta: você decorou o Jasão? – Foi. Pra você tem algum problema? – Não, de jeito nenhum! É Carla, né? – É. Carla Camurati. – Foi um prazer, Carla. Quem sabe a gente se vê por aí. Saí da sala, entrei no caminhão da técnica e pedi para ver a gravação do teste. Estava lá curtindo a vergonha quando o Daniel entrou no caminhão e arrematou: – Se fodeu, hein, malandra? Ficou nervosa e esqueceu. – É. Deu pra ver, né? – Claro, não quis conversar... No fim das contas, as escolhidas foram Fernanda Torres e Neuzinha Caribé. Mas eu seria chamada para substituir a Nádia Lippi no papel de Soninha Newman, filha do personagem do Jardel Filho. Desde então, participei de seis telenovelas. Em algumas delas, assim como em filmes do início da minha carreira, meu sobrenome aparece como Camuratti. O t duplo foi uma sugestão do Daniel Filho, que achava assim mais charmoso. Cerca de quatro anos depois, voltei ao original. * * * Sempre mantive com a televisão uma relação dividida. Por um lado, eu criticava o resultado. Achava que podia ser melhor, dado o espectro tão grande de penetração do veículo. Por outro lado, convivia com pessoas ótimas, muito talentosas, o que era altamente estimulante. Já na época de Brilhante (1981), tive a felicidade de trabalhar com a Fernanda Montenegro. Ela tem uma visão de longo alcance das coisas. Tê-la conhecido naquele momento, em que eu vivia tantas ansiedades e inseguranças, foi da maior importância. Fernanda me ensinava a manter a serenidade quando os convites de trabalho escasseavam. Contava uma história do tempo em que ela e Paulo Autran ficavam desempregados, nutriam naquele tipo de ansiedade e sempre que o telefone tocava pensavam tratar-se de algum convite. Mas, invariavelmente, era o outro que chamava. Alguém te ligou?, um perguntava. Não, a última pessoa que ligou foi você, respondia o outro. É um duro aprendizado até nos desvencilharmos do ciúme, da inveja profissional, e construirmos um olhar sereno sobre nós mesmos. No set de Brilhante, eu vivia pisando em ovos. Sentia-me muito verde e morria de medo de levar uma das broncas públicas do Daniel Filho, célebres na época. Depois de Brilhante, fiz a Olívia, uma aeromoça em Sol de Verão (1982). Era uma novela engraçada. Eu e a Ísis de Oliveira fazíamos aquelas cenas de instruções de segurança dentro do avião. Todos os personagens moravam num mesmo prédio. Ali conheci o Tony Ramos, com quem trabalharia outras vezes. Até então, vivia mais de sofrimento que de prazer. Só a partir de Champagne (1983) é que aterrissei e comecei a desenhar de fato personagens na televisão. Era muito divertido trabalhar num triângulo amoroso com a Irene Ravache (minha irmã na trama) e o Antônio Fagundes. Nesse sentido, Livre para Voar (1984) também deixou boas memórias. O elenco era fantástico, e até hoje sou grande amiga da Laura Cardoso. Mas a novela me fez padecer um bocado. Minha personagem era Bebel, dona de uma fábrica de cristais em Poços de Caldas, que se disfarçava de Cristina, a moça que servia café, para investigar a morte de seu pai. Tony Ramos, no papel de Pardal, apaixonava-se por Cristina, mas quando descobria sua verdadeira identidade não queria saber mais dela. Pelo jeito, ninguém gostava de Bebel. Segundo o Ibope, o público adorava a operária e detestava a milionária. Então a Bebel tinha que ficar muito burra e ser muito humilhada para sustentar a novela. Investigava como uma cegueta, abria sempre as gavetas erradas, etc. Nesse tipo de trama, o problema da heroína é que ela tem que ser sofredora e constantemente burra. Eu não suportava ter que dar tantas gafes. Devo ter enlouquecido o autor, Walter Negrão. O Thales Pan Chacon, com quem eu vivia na época, cansou de me confortar: Não reclama. Você está fazendo o seu grande sucesso e isso vai ficar para a sua vida inteira. Ele tinha razão. Livre para Voar foi o meu maior êxito na televisão. Até hoje as pessoas me reconhecem por aquelas “duas” mulheres. Outro conflito curioso entre o meu tipo e minha personagem se deu na novela Fera Radical (1988). Eu fazia a Marília Orsini, uma dondoca que era antagonista da Malu Mader. O figurino esportivo ficou todo para a motoqueira vivida pela Malu, enquanto eu – logo eu! – tinha que ser a filhinha de papai rico, toda arrumadinha, que odiava o campo e calçava salto alto para andar no mato. Para mim era difícil construir esse papel no tempo veloz da televisão. Então eu ficava arrumando coisas que, sem invadir o figurino da Malu, quebrassem um pouco da frescura da Marília. Um dia consegui uma jaqueta de couro forrada com lã de carneiro e de gola peluda. Sempre que podia, enfiava a jaqueta para gravar, aproveitando que as cenas transcorriam no inverno. Mas o tempo passou, o verão chegou e eu não tirava a jaqueta peluda. O Paulo Ubiratan, diretor geral, teve que fazer sumir a peça de roupa, mesmo deixando a continuísta aos prantos. Mas pelo menos na capa do disco da novela estou eu lá, com minha jaqueta adorada. Eu tinha estigma de largadona dentro da Globo. O Paulo Ubiratan me acusava de vestir-me como um saco. Lembro que um dia o Paulo Autran me abordou com esse conselho paternal: Minha filha, você é tão talentosa, não pode ficar na novela com esse cabelo caindo pelo rosto, todo desgrenhado. Faça alguma coisa com ele. Corte, pinte, penteie, sei lá... Na verdade, eu tinha muito medo de criar uma falsa persona de perua para mim. Nem queria abraçar o sucesso como uma coisa minha. Isso pautava até as minhas ambições. Eu pensava: Quero seguir essa profissão, sim, mas não quero empenar o meu ego. Não quero criar outra pessoa dentro de mim. Eu pretendia muitas coisas, mas não queria perder o essencial da minha vida. Basta uma primeira novela para o ator começar a ser reconhecido na rua. Eu sempre lidei muito bem com isso. Parecia reproduzir uma sensação da infância, quando saía às ruas de Botafogo e conhecia quase todo mundo. Nunca tive chiliques por estar sendo incomodada. Como não criei qualquer glamour a meu respeito, a atenção que eu despertava era relativamente normal. As pessoas talvez não se achassem na presença excitante de uma megaestrela. Eu parecia mais humana, mesmo. Nunca desejei isolar-me da normalidade, criando um outro mundo que, na realidade, é um mundo distante, solitário e triste. Além do mais, a coisa mais sagrada que temos na vida é o tempo. Muito mais do que o dinheiro. Um exclui o outro, por isso dizem que tempo é dinheiro. Várias vezes na vida deixei de fazer coisas financeiramente interessantes para dispor melhor do meu tempo. Recusei novelas, bailes, apresentações, etc. Em início de carreira, é claro, somos mais ansiosos. Cheguei a fazer algumas fotonovelas, no início dos anos 1980. Eu levava as minhas próprias roupas para fotografar. Uma kombi vinha-me apanhar e eu saía com um cabide, rumo a um certo andar do prédio da Manchete. Era muito engraçado. O diretor, geralmente, montava a cena, arrumava o meu braço em cima da mesa, ajeitava a xícara de café, mandava cada um olhar para a orelha do outro, a fim de realçar os olhos, e então lia o texto do balão para nós fazermos as caras adequadas. Eu era muito debochada para aquele ritual. Tinha acessos de riso. Das fotonovelas que fiz, duas foram coloridas, para a revista Sétimo Céu. Chamavam-se Amor Inconseqüente e Escolha do Destino. Nessa última, a mais importante de todas, eu contracenava com o Fábio Junqueira e o cantor Bebeto. Fazíamos caras mais ou menos assim: Você não vai se arrepender de trocar um engenheiro rico por um cantor pobre? Não, meu bem, eu só quero ficar com você. * * * Minha paixão pelo Paulo José foi instantânea. Aconteceu num camarote do Teatro Municipal, durante a entrega de um prêmio de teatro. O Paulo entrou no camarote para cumprimentar a Fernanda Montenegro e, sem querer, encostou um copo gelado nas minhas costas. Eu tomei um susto, me virei e me deparei com aquele homem maravilhoso. Pensei imediatamente: tenho de arrumar um jeito de me aproximar dele. Dias depois, uma amiga pediu ajuda para conseguir um emprego na televisão e eu prontamente me dispus a colaborar. Tinha uma razão concreta para ir até o Paulo, que era o diretor-geral do Caso Verdade. Arrumei-me toda, botei perfume e, nervosíssima, fui entregar-lhe o currículo da minha amiga. Deixei meu telefone e esperei 24 horas, uma semana, um mês, e nada! Sequer cruzava com ele num corredor. Acho que minha amiga já havia até conseguido um emprego, enquanto eu ainda esperava um contato. Liguei para avivar sua memória e continuei esperando. Um dia, após pesada sessão de gravações, eu dormia num sofá e sonhava justamente com o Paulo, quando acordei com a mão dele batendo no meu ombro. Você não acredita! Eu estava sonhando com você agora!, entreguei. E antes que a coragem acabasse, emendei: Não quer ver o show da Rogéria e jantar comigo hoje? A noite foi uma delícia. O Paulo era mesmo o gentleman que eu imaginava – inteligente, educado, do tipo que abre a porta do carro para você e se desdobra em pequenas gentilezas. Eu já estava irrecuperavelmente apaixonada. E não costumo escamotear o clima de amor, quando ele existe. Mas nada de especial aconteceu naquela noite. No dia seguinte, fiquei um pouco frustrada porque ele não me ligou, mas quando saí da gravação encontrei um enorme buquê de flores no meu carro. E um convite para sairmos de novo. Vivemos entre três e quatro deliciosos anos juntos. Ele é uma pessoa iluminada no cotidiano e um talento fora do normal. Eu diria que o Paulo sabe quase tudo sobre quase tudo. Sabe poemas lindos de cor, conhece música, é engraçado e estimulante, embora sempre muito compulsivo no trabalho. Continuo tendo um imenso prazer em conversar com ele. Suas três filhas – Bel, Ana e Clara – tinham um quarto na minha casa e ainda hoje somos muito amigas. Trabalhamos pouco juntos. Na minissérie O Tempo e o Vento (1985), dirigida por ele, eu fazia o papel da Luzia. O Paulo, por também ser ator, é um diretor muito exigente, que se empolga com o que está fazendo. O seu set é animado, cheio de vida. Ele me estimulou a comprar os direitos de adaptação do filme A Malvada (All About Eve) para o teatro e se dispunha a dirigir a montagem. A Norma Bengell faria o papel correspondente ao da Bette Davis. Pensamos também em adaptar O Anjo Azul para o palco, vivendo nós mesmos os papéis da dançarina Lola Lola e do Professor Rath. Mas nenhum desses projetos foi adiante. Mais tarde, em 1997, quando realizei uma série de vídeos sobre língua portuguesa para um programa de capacitação de professores do governo de Minas Gerais, chamei o Paulo para ser o narrador. Ele amenizava o travo didático e, ainda por cima, não se poderia dizer que sua presença de galã desagradasse às professoras mineiras. * * * A última novela que fiz na Globo foi Pacto de Sangue (1989). Era uma história passada no século 19, em que um fazendeiro escravagista (Carlos Vereza) vivia um romance com minha personagem, a professora Aimée. A experiência de fazer novelas “fechadas”, inteiramente gravadas antes de começarem a ser transmitidas, não parece ter dado muito certo. Para mim, particularmente, deu tudo errado. A princípio, a Aimée era uma professora jovem com alunos crianças, entre eles uma sobrinha sua. Um dia, no teste de maquiagem, fui abordada por uma moça alta, toda bonita e gostosa, que seria a tal sobrinha. Diante do meu espanto, ela argumentou que eu não me preocupasse, que ela tinha um lado infantil enorme. Eu quase tive uma síncope. Com o penteado pela metade, saí à procura do diretor, Herval Rossano: - Pô, Herval, você vai botar aquela mulher enorme me chamando de tia na televisão?! É assim que acabam com a gente. Se aos 29 anos sou tia dela, antes dos 40 já vou estar de vovó! Depois de Pacto de Sangue, ainda fiz dois trabalhos no SBT – a novela Brasileiros e Brasileiras e o especial O Grande Pai –, a convite de Walter Avancini. Ele me chamou com grande urgência a São Paulo e, ao sentar-me diante dele, recebi logo uma estocada: Dizem que você é muito difícil, né?. Por sorte, ocorreu-me a melhor resposta para o momento: E o que você acha que dizem de você? Ele soltou uma gargalhada e o gelo se quebrou. Minha relação com o Avancini haveria de ser sempre assim: ele batia, eu respondia, ele batia de volta e invariavelmente acabávamos rindo. Lembro-me de uma sessão de gravação de O Grande Pai, em que ele me repreendeu seguidas vezes chamando-me de minha filha. Como eu fiquei muito irritada, ele passou a tratar-me de minha prima, o que soava muito engraçado. No fim das contas, foi muito bom realizar o sonho de trabalhar com o Avancini. Em Brasileiros e Brasileiras, eu fazia o inusitado papel de uma lutadora de luta livre. O SBT tinha um esquema de trabalho bem mais caseiro que o da Globo. As relações pessoais eram mais diretas. Passei lá um final de ano inesquecível, em que o próprio Silvio Santos convocou uma reunião de surpresa com todos os funcionários da empresa para entregar dois salários extras, além do décimo-terceiro, a título de repartição dos lucros. Não que a Globo não fosse generosa em muitas coisas, mas eu nunca havia testemunhado uma divisão de lucros tão explícita e direta, sem nenhuma propaganda externa, nenhuma contrapartida de marketing. Aquilo me impressionou profundamente. Capítulo V Loucas Noites Paulistanas Minha atração pelo cinema sempre foi mais forte do que qualquer outra coisa. A proporção da imagem na tela, a possibilidade de recortar o mundo mediante o enquadramento, o fascínio da relação de espectador, tudo criava em mim, desde pequena, uma fantasia muito saborosa. Comecei minha carreira pelo teatro, enveredei pela televisão, todavia meu horizonte era mesmo o cinema. Quis a sorte que a minha primeira proposta cinematográfica viesse não da minha própria cidade, mas do cinema paulista, que iniciava uma década de ouro em 1980. O José Antonio Garcia, curta-metragista recém-saído do curso de cinema da USP, estava escalando o elenco do seu primeiro longa-metragem, a ser dirigido em parceria com Ícaro Martins. Ele já havia atraído para o projeto o Adone Fragano, produtor de pornochanchadas da Boca do Lixo, e procurava uma atriz jovem para um dos papéis principais. Um dia, ele entrou na casa de sua mãe para pedir o carro emprestado e, enquanto esperava que ela apanhasse a chave, parou em frente à televisão onde passava Gatinhas e Gatões. Naquela hora mesmo, decidiu que eu seria a Vera Gatta. Quando recebi o roteiro de O Olho Mágico do Amor, achei tudo muito esquisito. Ao mesmo tempo que não era uma pornochanchada, havia um bocado de sexo e umas coisas loucas que tornavam interessante aquele universo da prostituição. Mas era um roteiro muito dúbio para eu topar fazer sem conhecer os diretores. Resolvi consultar a Tânia Alves, que fazia na época o espetáculo O Fado e a Sina de Mateus e Catirina, onde o Zé Renato tinha uma participação musical. Qual não foi minha surpresa ao saber que a própria Tânia, por quem eu tinha grande admiração e respeito profissional, seria a intérprete da prostituta Penélope no filme. Essa coincidência foi decisiva para que eu aceitasse correr os riscos. Fui para São Paulo conhecer meus diretores e topei no aeroporto com dois garotos nervosos, ansiosos, que me ofereceram um lugar de recheio de sanduíche numa moto. Seguimos direto para um bar antigo no centro de São Paulo, onde conheci o produtor e algumas locações já escolhidas na Boca do Lixo. A Vera Gatta, garotinha de classe média aparentemente angelical, mas cheia de fantasias eróticas, ganhou esse nome por causa da Vera Zimmerman, grande amiga do José Antonio e do Caetano Veloso. Minha maior preocupação, principalmente na fase de dublagem, foi evitar o sotaque carioca, que destoaria completamente num elenco tão paulista. A produção era totalmente doméstica. Eu usava minhas próprias roupas e a casa da minha família era a casa do José Antonio. As cenas do escritório da Sociedade dos Amigos da Ornitologia, onde Vera trabalhava e assistia às aventuras de Penélope através de um buraco na parede, foram filmadas no quartel-general do produtor, a Olympus Filmes. Eu estava na Boca do Lixo participando de um projeto ousado e picante, mas sabia que não havia uma associação direta com a pornochanchada. Aquelas pessoas jamais realizariam uma coisa grosseira como a transa entre uma mulher e um cavalo, atração de outro filme da época. Era cinema de arte arrojado, tanto que foi muito bem conceituado pela crítica. Não vou dizer que passei incólume pela experiência. Houve uma pré-estréia no Masp, onde cheguei atrasada, justo no momento em que a Vera Gatta transava com o namorado (José Antonio) dentro do carro, ao som de Mother de John Lennon. A câmera se erguia numa grua acima da minha bunda. Eu fiquei estatelada na porta do cinema abarrotado. Queria que o chão se abrisse e eu saísse em algum lugar da China, onde não houvesse salas de projeção. Em princípio, nunca tive problemas com relação ao nu ou a cenas de sexo. Nunca me arrependi de nada. Mas a primeira vez que você se vê na tela nessa situação de exposição é algo aterrador. Eu não ambicionava ser – nem me sentia como – um símbolo sexual. Muito pelo contrário. Agüentava bem o tranco porque não tinha nenhum desejo reprimido nesse sentido. Foi assim que encarei fotografar para a revista Playboy. Posei para dois ensaios de capa, em 1982 e 1983. Mas fiz questão de assinar o contrato somente depois de aprovar as fotos. Quando se aceita posar nu, se aceita para o resto da vida. Seu filho mais tarde vai ver aquilo. Você não pode fazer uma coisa pela qual vá envergonhar-se depois. Eu queria posar nua sem necessariamente fazer cara de tesão, empinar a bundinha, botar miniblusa, tênis e meia etc. Era para ficar nua como uma estátua nua, e pronto. A imagem do corpo nu, em si, é muito bonita. Em ambos os casos, eu escolhi a fotógrafa, Isabel Garcia, porque achava que entre duas mulheres seria mais fácil evitar o clima de sedução e sexualidade explícita. Nunca me preocupei com o fato de que as fotos de nu são feitas para consumo sexual. Se pensasse nisso, talvez nem tivesse feito. Pode soar ingênuo, mas acho que o importante não é o ato de fazer, porém a maneira como se faz. Eu procuro transcender o nível da mera curiosidade e faço disso uma ética pessoal. Ela é muito reconfortante internamente, pois fornece um limite constante na nossa relação com o mundo. * * * Ao contrário do que já se publicou em jornais, eu nunca assinei contrato para vários filmes com o José Antonio Garcia e o Ícaro Martins. Aconteceu que, a partir do nosso encontro em O Olho Mágico do Amor, eles passaram a escrever personagens para mim. O seguinte foi a Rita de Onda Nova, uma personagem que não tinha muito o que fazer no filme além de jogar futebol e perguntar pelo Walter Hugo Khouri. Não guardei boas memórias desse trabalho. Havia boas cenas malucas em torno do tema da inversão de gêneros; havia uma imagem delirante em que eu aparecia amarrada no fundo de uma piscina como Jesus Cristo... Mas o roteiro era muito desarticulado, com personagens sobrando. Eu e o José Antonio nos desentendemos. Ele se recuperava de um grave acidente de moto e passava por um momento muito odara. As cenas de futebol, por exemplo, não eram armadas. Então a gente entrava em campo para jogar contra o time da polícia feminina e ficava tomando um gol após o outro. Eu subia nas chuteiras com aquilo! Isso aconteceu no Onda Nova, mas não era regra entre nós. Os três tínhamos uma visão muito coesa das coisas. Líamos os roteiros juntos e o esquema de produção com pouco dinheiro favorecia uma criação em harmonia. O José Antonio e o Ícaro tinham um método curioso: cada um dirigia uma seqüência, enquanto o outro fazia assistência de direção. Ambos tinham voz ativa e escolhiam fraternalmente os trechos que caberiam a cada um dirigir. Nunca os vi brigar no set. Eles sempre me explicavam os detalhes técnicos e perguntavam minha opinião. Eu ficava muito solta porque eles queriam meus gestos e expressões mais naturais. Assim aprendi a fazer cinema com uma relação já muito apurada entre a emoção e a técnica. A minha empatia com o José Antonio foi tão forte que nós chegamos a ensaiar um namoro. Numa viagem à Europa, fizemos um belo ensaio fotográfico noir pelas ruas de Paris para um projeto de fotonovela satírica que ficou apenas na intenção. Tornamo-nos amigos para a vida inteira. Passávamos noites inteiras conversando, lendo Clarice Lispector e chorando juntos. Eu já gostava da Clarice, mas ele conhecia melhor a obra dela. Isso foi um dos nossos botões de sintonia. Existe todo um material de crônicas da Clarice que ficou à sombra de obras mais famosas e herméticas, e que é extremamente claro, transparente e agudo como observação da alma humana. Para mim, ela é a única escritora a conseguir ter um olhar crítico e generoso ao mesmo tempo. Ela não diminui nem faz piada com suas personagens, mas expõe seus defeitos de uma forma poética, quase lacônica, que as transforma um pouco em heróis. Eu e José Antonio chegamos a escrever um bonito argumento a quatro mãos sobre a vida da Clarice, que ele gostaria de me ver interpretando num filme. Quem sabe a gente ainda faça isso um dia. Colaborei, ainda, nos roteiros de O Corpo, que ele dirigiu em 1991, e Ele me Bebeu, projeto dos anos 1980 retomado em 2003, e que deve levar-me de volta à atuação em longa-metragem. A Estrela Nua, o filme que fizemos juntos em 1985, buscou inspiração tanto no universo da Clarice Lispector como no do Nelson Rodrigues. É um roteiro bonito, muito bem escrito, que se o José Antonio refilmasse hoje, o faria ainda melhor. A princípio, pensávamos que eu deveria fazer os dois papéis – da Ângela, a atriz que morre, e da Glorinha, a dubladora que vai gravar sua voz. Depois resolvemos chamar a Cristina Aché. Eu preferi fazer a dubladora, que era uma personagem mais à sombra, daquelas que precisam ser descobertas ao longo do filme, enquanto a atriz era mais emblemática. Fui muito exigida naquela atuação, por causa da loucura da personagem, dos sentimentos trocados, da questão de mimetizar a personalidade da outra. Era muito bonito ser a voz de alguém... Numa cena que ficou famosa, eu aparava os pêlos pubianos e fazia com eles um baseado. Tratava-se de uma citação de poema da Yoko Ono, em que ela diz algo mais ou menos assim: Se você não souber o que fazer, corte os seus pentelhos e fume. Era uma cena difícil, em que foi preciso deixar o pudor de lado. Eu a fiz da maneira mais minimalista possível, sem qualquer intencionalidade, quase como se estivesse ausente. Não precisava fazer cara de nada, pois o ato em si já era surpreendente. São vários os momentos de A Estrela Nua que me agradam especialmente. A seqüência em que eu corto os cabelos diante do espelho do banheiro, logo no início do filme, já constava do roteiro, mas para mim, intimamente, dialogava com a minha revolta de adolescente contra a beleza. Acho linda também a cena em que eu me deito numa banheira cercada de velas acesas. Os filmes que eu fiz com o José Antonio têm essa qualidade não convencional, trafegam assim entre o onírico e o surrealista. Eu adorava fazê-los. Vê-los, nem tanto. Descobri que existem dois tipos de atores: os que têm prazer em se ver e os que têm prazer em fazer. Eu jogo no segundo time. Fico tensa diante das cenas que fiz, recrimino-me quase o tempo todo, vejo mil defeitos, sou uma crítica muito crua de mim mesma. Nesse sentido, era mais feliz no teatro, onde, mesmo envergonhada, eu não estava me vendo junto com todo mundo. Só me restava seguir em frente e fazer a cena. Já ao me ver na tela, em movimento, agrava-se um sentimento que eu tinha desde criança, o de que a minha imagem é diferente do que eu sou. Isso talvez venha do fato de eu não me olhar muito no espelho. Como atriz, nunca ensaiei diante do espelho. Então, por vezes, acho que estou expressando um tal grau de tristeza, por exemplo, ou que a minha boca está sorrindo de uma determinada maneira, e quando vejo o resultado é outro, é algo que eu desconhecia ou não esperava de mim mesma. Por essas e outras, desde cedo rompi o medo de fazer, mas nunca o medo de ver. Esse, por sinal, foi um período em que estive absolutamente encantada por São Paulo. Cheguei à cidade aos 21 anos e achei que as pessoas e as coisas mais interessantes estavam ali. Além da relação com o José Antonio, conheci o pessoal da música por meio do Arrigo e do Paulinho Barnabé, da Cida Moreyra... Conheci o cartunista Angeli, o Zé Celso no teatro... Havia mil exposições, instalações, gente filmando. Era uma atmosfera das mais estimulantes. Eu vivia na Vila Madalena, onde aprendi tudo de cinema com o José Antonio, o fotógrafo José Roberto Eliézer (Zé Bob), etc. As pessoas em São Paulo me pareciam mais concentradas que no Rio, com um grau de amizade mais elevado. Era muito normal receber a visita de um amigo que passava por perto e resolvia subir para tomar um café rápido. Havia um clima de colaboração em que as pessoas davam o melhor de si para qualquer pequena participação no curta ou no show de um amigo. Freqüentávamos o Ritz, onde faziam uma frozen margherita deliciosa e podia-se encontrar todo mundo em algum horário da noite. Íamos com freqüência também ao Spot. Eu gostava de dançar, mas não de virar a noite até o dia nascer. Nesse ponto, sou muito libriana. Não me apetece bancar o Conde Drácula vendo os raios solares e dizendo: Caramba! O que é que estou fazendo acordada? Nos primeiros anos de vida paulista, fiquei com duas casas. Depois, aos poucos, fui-me instalando em São Paulo. Dividi apartamento com o José Antonio, morei sozinha e finalmente comprei um apartamento na cidade, o que considero minha mais explícita declaração de amor por São Paulo. E por falar em amor, durante pouco mais de um ano namorei o Angeli, com quem eu e José Antonio começamos a escrever uma história. Gostava de ficar no seu estúdio vendo-o desenhar até o sono bater. O humor e o traço dele são muito inteligentes. Sua personagem Mara Tara vestia-se exatamente como a Shirley Sombra, minha personagem em Cidade Oculta. O Spirit do Will Eisner está na base desse filme que fiz com o Chico Botelho. Era totalmente diferente de tudo o que eu tinha feito até então. Havia o sabor da aventura, do policial, um outro tipo de composição. Shirley Sombra era uma personagem de quadrinhos, com aquelas roupas de couro, o cabelo pintado de preto, a oportunidade de cantar e dançar. Meu número musical era inspirado no Cabaret do Bob Fosse. Tinha um tom de agressividade e sensualidade que minha timidez não permitia brotar espontaneamente. Então resolvi simplesmente imitar a professora de dança Rosane Maia, que me havia ensaiado. No set, eu lhe pedia que dançasse e copiava cada passo, como um espelho. E me sentia poderosa por fazer igualzinho. Anos depois, o Daniel Filho queria que eu repetisse aquele número para o Fantástico. Eu havia enganado muito bem naqueles cinco minutos, porém jamais conseguiria fazer de novo. A Shirley Sombra tinha um pouco da Mulher-Gato, o biótipo da bandida sensual. Meu script incluía dar tiro, sair correndo por dentro de uma balsa, pular sobre montes de ferro velho, cabos, etc. Durante a filmagem de uma dessas cenas, por um triz eu não despenquei dentro do Rio Tietê. O filme era todo dark, noturno. Foi um dos períodos mais estranhos da minha vida, em que trocávamos o dia pela noite e ficávamos praticamente sem ver a luz do sol. Em compensação, tínhamos uma estrutura de produção impecável, que se refletia desde a estética apurada até a alimentação de elenco e equipe. No meio da filmagem, numa noite fria, alguém vinha servir um chocolate quente, uma sopinha. Éramos muito bem tratados. Os sets ficavam lindos, mágicos. O Zé Bob tinha um carinho especial com a luz e usava a novidade, na época, dos refletores HME, que davam aquela tonalidade azulada da noite. O Chico Botelho era um diretor consciencioso, que não gostava de ensaiar muito para não perder o frescor dos atores. Isso causava certa insegurança no Arrigo, que não era ator, embora tenha se saído bem no papel do traficante Anjo. A atuação do Arrigo e de tantos outros músicos é sintomático do diálogo entre o cinema e a música no cinema paulista da década de 1980. Ao contrário do Rio, onde nessa época só havia trabalho para os diretores consagrados, em São Paulo uma geração de jovens cineastas realizava um filme após o outro: José Antonio e Ícaro, Chico Botelho, Wilson Barros, Guilherme de Almeida Prado. Meu primeiro curta, A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, também seria fruto desse momento. A onda de performances musicais me arrastaria ao topo de um piano em O Corpo, também dirigido por José Antonio Garcia. O Lennie Dale me ensaiou à sua maneira bem escrachada e energética, imitando uma prostituta com todas as caras e bocas. A Monique, minha personagem, era uma prostituta de peruca platinum blonde, deliciosamente desbocada, que a certa altura se apresenta numa boate, cantando e se contorcendo em cima de um piano. Primeiramente, pensamos em usar Makin’ Whoopee, mas acabamos optando por Lost Without You. No final da música, eu dava uma quebrada e caía bruscamente, naquele que me parecia o único movimento mais masculino de toda uma coreografia bastante sensual. Pouco depois das filmagens, em 1989, eu estava em Nova York e assisti a Susie e os Baker Boys (The Fabulous Baker Boys), em que a Michelle Pfeiffer tem performance quase idêntica, cantando justamente o Makin’ Whoopee. Era uma daquelas coincidências extraordinárias que, por pouco, não resultou fatal. Lembro-me de ter ligado de um orelhão a cobrar para o José Antonio, recomendando que lançasse o filme logo para evitar acusações de plágio. Mas O Corpo ficaria engavetado pelos produtores Adone Fragano e Aníbal Massaini Netto, sendo lançado somente cinco anos depois. Ganhou seis prêmios, inclusive o de melhor filme, no Festival de Brasília de 1991, e desbancou De Salto Alto, de Almodóvar, no Festival de Cartagena (Colômbia), onde também recebeu o prêmio principal. No entanto, quando estreou em 1996, parecia um filme já visto e teve bilheteria pífia. Essa tragédia foi um dos motivos pelos quais eu resolvi dirigir, produzir e lançar meus próprios filmes. Se tivesse de cometer algum equívoco, preferiria eu mesma fazê-lo, a ter de trabalhar loucamente e deixar o resultado nas mãos de alguém capaz de um erro tão grave quanto matar um filme no lançamento. Principalmente em se tratando de algo genial como O Corpo. Eu e o José Antonio escrevemos o primeiro tratamento do filme, que inicialmente seria de três episódios, todos baseados em contos de Clarice Lispector: Miss Algrave, Ele me Bebeu e A Via Crucis do Corpo. Adone Fragano sugeriu, em vez disso, escolhermos apenas uma das histórias para fazer o longa-metragem. O roteirista Alfredo Oroz foi chamado para desenvolver A Via Crucis do Corpo, juntamente com José Antonio, enquanto eu assinava uma colaboração no roteiro. A Monique é uma espécie de quarto mosqueteiro na equação montada por Clarice. O Xavier (Antônio Fagundes) casa-se com duas mulheres (Marieta Severo e Cláudia Jimenez), que são diferentes em tudo, mas ainda assim precisa de uma terceira para satisfazer seus desejos. É onde entra a Monique. O Xavier fica obcecado por ela, começa a ver seu rosto em outras mulheres, como uma garota que passa de bicicleta, que eu mesma fiz com o cabelo cacheado. Pelas intenções iniciais, eu interpretaria a parte de Miss Algrave e a Susana Vieira faria a Aurélia de Ele me Bebeu. Hoje, porém, eu já tenho a idade dessa última e pretendo interpretá-la no novo filme do José Antonio. A Aurélia é muito interessante – uma mulher vaidosa e fútil, separada do marido, louca para arrumar um homem. Ela trabalha numa agência de turismo e, já numa certa virada da vida, tem uma amizade divertida com um maquiador gay, o Serjoca. Eles brincam de construir tipos com perucas, roupas e maquiagem. De repente, os dois se apaixonam por um mesmo homem. E o Serjoca passa a eliminar a identidade dela por meio da maquiagem. Essa história da Clarice me parece linda porque toca num ponto delicado da relação com o feminino. A mulher às vezes precisa de muita máscara para expressar a sua feminilidade. As armas da sedução são muito cruéis. A mulher tende a se tornar dependente de uma imagem viçosa, colorida, que na verdade não possui. Ao perdê-la, entra em depressão. Por intermédio da Aurélia, a Clarice dá uma visão desse processo horroroso – ao qual, aliás, eu nunca quis submeter-me. A Clarice, aliás, me fez antecipar um pouco a volta à atuação. Dois dias antes de dar à luz o Antonio, filmei minhas cenas para o curta O Ovo, da Nicole Algranti, que é sobrinha da escritora. Foi uma delícia caminhar simplesmente por uma praia com aquele barrigão, sentindo o vento e pensando no texto da Clarice. Eu praticamente não fazia nada, mas era maravilhoso mesmo assim. Capítulo VI Todas Essas Mulheres Quando relembro minhas atuações nos primeiros filmes, reconheço trabalhos de composição mais esmerados em A Estrela Nua e Cidade Oculta, embora este último se trate de uma composição de personagem de quadrinhos. Mas a minha primeira composição dramática realista coincidiu com meu primeiro trabalho baseado em personagem real. Li alguns livros e muitas referências sobre Pagu (Patrícia Galvão) e os modernistas, estudei o material fotográfico sobre ela, embora nada existisse em imagens em movimento. Mas o que mais me ajudou em Eternamente Pagu foi mergulhar no universo emocional da heroína. Descobri que, se o ator precisa fazer uma personagem muito grande, que existiu de fato, a melhor coisa é deixá-la brotar de dentro de si. Melhor do que grifar uma composição no corpo é deixá-la transbordar na alma, guiando-se pela bússola da intuição. No filme, a Pagu era vista num ciclo que ia dos 14 aos mais de 40 anos, com um lado eufórico, e também com muito sofrimento. Eu só tinha uma leve ajuda da maquiagem, que ia escasseando à medida que a Pagu ia envelhecendo. Desde muito nova, ela se dispunha a viver tudo – do movimento modernista, em que foi uma espécie de mascote, a uma dramática experiência de relação a três, com Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. O filme não avança grandes informações sobre esse último aspecto, mas havia uma cena de beijo entre mim e a Esther Góes, que não sobreviveu à montagem. Procurei deixar a Pagu com o olhar meio perdido no final da vida. Observei que as pessoas que sofrem muito, que levam muita porrada, acabam ficando um pouco ausentes, como se se despregassem da Terra. No processo de envelhecimento, se a fisionomia da pessoa não muda muito, mudam a agilidade e a quantidade de gestos, o tom da voz. Tentei trazer todas essas observações para o papel, de maneira bem sutil e delicada. Era preciso afastar-me das composições de comédia e quadrinhos que vinha fazendo no cinema. Eu não fui a primeira escolha da Norma Bengell para o papel da Pagu. Mas quando entrei, acho que funcionei como uma espécie de talismã para o filme. A Norma tinha problemas com o roteiro e com o fechamento de cotas de patrocínio. De repente, as soluções começaram a aparecer como em passes de mágica. A produção transcorreu como um relógio bem azeitado. O elenco era muito entrosado, a Norma sabia exatamente o que queria fazer e deixava tudo muito claro. Por ser também atriz, ela sabia o que pedir de outra atriz. Em geral, pedia sentimentos, pois era desse universo que tratava por intermédio da Pagu. Juntas, criamos aquela coreografia a la Isadora Duncan com que Pagu se apresenta à sociedade paulista. Foi a primeira vez em que pisei no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e, embora estivesse num filme, fui tomada de grande emoção. Tenho um fascínio enorme por esse tipo de casa. Toda vez que subo ao palco do Municipal do Rio ou de São Paulo para ensaiar uma ópera, eu literalmente agradeço a Deus. É como se estivesse num templo, num espaço sagrado. * * * Detestei o Thales Pan Chacon, quando o conheci, num teste para o filme Eu Sei que Vou te Amar. O que eu mais queria fazer, em meados da década de 1980, era filmar com o Arnaldo Jabor. O Thales, já escolhido, estava fazendo sucessivos testes com atrizes diversas. Quando chegou a minha vez, eu olhei aquele cara grande, um pouco bonito demais, todo suado, e senti uma imediata antipatia. Além disso, eu estava muito crítica em relação ao teste. Talvez por uma insegurança traduzida em prepotência, achava o texto excessivo. Cheguei a perguntar se o Jabor ainda iria mexer no roteiro. Praticamente sabotei o meu próprio teste e, claro, não fui escolhida. Depois acharia o filme maravilhoso, assim como o Thales. Continuava a não gostar de certas passagens do texto, mas estavam tão bem encenadas, tão bem filmadas, que assumiam uma conotação diferente da que eu havia imaginado. Lembro-me de ter deixado um recado na secretária eletrônica do Jabor, como uma penitência secreta. Afinal, nunca trabalhei com ele, mas lhe devo, quando nada, a indicação de um excelente psicanalista. Foi nessa época que sugeri convidarem o Thales para a montagem de Drácula, no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, que marcou minha volta ao teatro desde o Flicts. Era 1986, eu vinha fazendo cinema e televisão em ritmo acelerado e sentia necessidade de me reenergizar no palco. Apesar de estar já nos seus 70 e poucos anos, o Gianni Ratto fazia em Drácula uma direção das mais estimulantes. Eu interpretava Miss Lucy, Thales era o meu noivo e Raul Cortez, o Conde Drácula. Usei um alongamento de cabelo até abaixo da cintura, técnica que então apenas despontava no mercado da beleza. Foi um trabalho divertido até pelos seus muitos efeitos cênicos especiais, que nem sempre davam certo. Morcegos já haviam rompido a corda e sobrevoado a platéia em polvorosa. Uma noite, estava eu recostada no récamier, dormindo envolta em minhas longas madeixas, aguardando que um dublê do Raul, portando uma máscara com as feições do conde, descesse preso ao urdimento com os dentes mirando minha garganta. Eu contava até 15 e ele encostava o pé no récamier e me cobria com a capa, que era a deixa para eu acordar e gritar, enquanto o Thales entrava em cena. Naquela noite, porém, minha contagem passou dos 20 e o morcegão não pousava. Eu não podia abrir os olhos sem estragar a cena. Entrei em pânico. Finalmente, ouvi umas vozes vindas da coxia: “Grita! Grita!” Achei que era comigo e levantei-me, gritando. Mas o horror logo se transformou em gargalhadas quando vi o dublê pendurado ao contrário, de costas para baixo. E, em seguida, sendo puxado de qualquer maneira, batendo-se contra as tapadeiras. Era o Drácula na pior situação possível – e o mais grave, com a cara do Raul Cortez. Para o público, o grande ator em pessoa acabava de viver uma chanchada involuntária. A partir dessa época, e pelos 12 anos seguintes, o Thales seria uma pessoa importantíssima na minha vida. Casamo-nos e fizemos muitas coisas juntos, sem distinguir totalmente entre o que era trabalho ou diversão. Minha carreira teatral prosseguiu em 1990, com Batom e Pára-quedas, em que eu fazia uma menina meio autista que se apaixonava por um caminhoneiro, vivido pelo Antonio Grassi. Era uma personagem muito bonita, assim como todo o resto: o texto, a encenação do Paulo Reis (do grupo Pessoal do Despertar), os cenários do Hélio Eichbauer. Fizemos o espetáculo no Rio, Brasília e Belo Horizonte. No ano seguinte, com Cartas Portuguesas, tive o que provavelmente foi a minha experiência mais bela e radical no teatro. A encenação da Bia Lessa para as cartas de amor atribuídas à Soror Mariana Alcanforado tinha uma construção extremamente difícil. Era impossível deter o controle técnico do espetáculo, num cenário que tinha água, terra, uma pequena floresta. Tudo era vivo e instável, alterando-se de uma semana para outra. Eu e a Luciana Braga entrávamos na água, cavávamos buracos, corríamos, pulávamos e caíamos em algum lugar que podia ou não estar molhado. Havia momentos em que uma corria e a outra dizia o texto. Subitamente, uma parava e a outra começava a correr, invertendo as posições. A Bia nos pedia que corrêssemos de verdade, em disparada, para colocar a energia necessária à cena. A emoção vinha da própria ação, da falta de ar, da taquicardia, do suor. Era muita energia física e ao mesmo tempo uma experiência apaixonante. Eu ficava tão feliz quando sentia que acertava uma pausa ou embargava a voz na medida justa para não soar piegas, mas apenas dar uma facadinha no coração das pessoas. Era necessário ter violência e também discrição no sentimento, o que se conseguia mediante sutis inflexões da voz e movimentos do corpo. Acho que nunca fiquei completamente feliz com minha atuação. Quando acertava uma coisa, ia juntar aquele acertozinho com outro que já havia conquistado, mas logo adiante perdia um que já parecia estar na mão. De qualquer forma, a busca desse apuro técnico me estimulava loucamente. No processo de elaboração, era impossível que eu e a Luciana não sentíssemos ciúmes uma da outra. Nós dividíamos a mesma personagem, como se fôssemos uma alma em dois corpos. Ficávamos sozinhas no palco e não contracenávamos. Nem havia propriamente uma divisão de texto. Fazíamos exercícios e improvisações em cima de trechos que a Bia indicava e, dependendo do resultado, cada uma ficava com uma parte. Às vezes, as porções se misturavam, e nós passávamos coisas de uma para a outra em plena cena. Para mim, foi um aprendizado importante no sentido de buscar a generosidade e evitar o comparativo direto – ou não ter medo dele. O texto era lindo, falava de um amor incomensurável. E trabalhar com a Bia é sempre um processo de crescimento. Ela é muito aguda e crítica, e o ator não pode ser bobo na mão dela. Seu trabalho é de uma total transparência, qualidade que eu adoro. * * * No mesmo ano de 1987 em que fiz Eternamente Pagu, rodei com Walter Salles o telefilme O Último Tiro, para a TV Manchete, que nunca seria editado ou exibido. Desconheço as razões desse ineditismo. O projeto me parecia bem interessante. João Moreira Salles foi um dos co-roteiristas, e o Edson Celulari fazia o personagem principal. Era uma história policial gravada, em parte, nos armazéns do cais do porto do Rio, e a ação se misturava com desenhos animados. Do meu papel, não recordo muita coisa além de que usava uma peruca e um disfarce. Em São Paulo, ainda na década de 1980, atuei no curta A Mulher do Atirador de Facas, de Nilson Villas Boas. O filme tinha uma base psicanalítica bem evidente. Eu gostava muito da relação íntima de amor e confiança existente entre minha personagem, a Violeta, e a do Ney Latorraca, o atirador de facas. Mas, na verdade, eu morria de medo de ficar ali com aquelas facas todas sendo cravadas ao redor do meu corpo. Além disso, a Violeta ficava grávida, punha um vestido vermelho e ia para o picadeiro. O marido ficava nervoso e errava a pontaria. Eu me lembro de que o filme mexeu muito com os meus medos, as inseguranças que eu tinha na época em relação à gravidez. Quando filmei com o Nilson, eu já havia dirigido o curta A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, que vou abordar em detalhes mais adiante. Já estava preparando a produção de Carlota Joaquina quando o Sérgio Rezende me convidou para fazer a Iara Iavelberg, em Lamarca. Eu simplesmente não podia recusar. O papel não era grande, mas a personagem o era. E, afinal, o cinema ainda não tinha tocado em momento tão importante do processo político brasileiro. Na época da ditadura, eu só sabia dessas coisas de ouvir conversas na família. O irmão de um tio meu tinha sido preso político, torturado e ficara desaparecido por um bom tempo. De algum modo, aquilo também me afetava diretamente. Não são muitas as personagens políticas que eu toparia fazer. Mas a Iara e a Olga Benário me interessavam. A Iara, sobretudo, por ser de um passado muito recente. Ela teve uma paixão pelo José Dirceu antes de se unir ao Lamarca. Estamos falando de pessoas que pertencem ao universo de hoje. A Iara bem poderia estar viva. Em setembro de 2003, a família exumou o seu corpo, tentando provar que ela fora morta pela polícia, em vez da versão oficial de suicídio. O Sérgio teve dúvidas sobre o desfecho que lhe caberia no filme, mas acabou optando pela versão oficial. Ao contrário de Pagu, não conversei com ninguém que tivesse conhecido a Iara. Limitei-me a estudar o material de pesquisa fornecido pelos produtores, inclusive de imagens. A produção era extremamente profissional. Tivemos aulas de tiro, o Paulo Betti emagreceu 13 quilos para se ajustar ao físico do capitão. Eu tinha sempre em mente o contexto apavorante da ditadura, a vigilância permanente, o cerco se fechando, a traição espreitando até entre os próprios companheiros – e a coragem necessária para quem fazia a opção pela luta clandestina. A disposição para colocar a vida em risco por uma causa social. Trata-se de um processo racional, intelectual mesmo, muito diferente de uma atitude de vingança ou do fanatismo religioso dos terroristas de hoje. Tentei botar a personagem num limite, com o emocional em pandarecos. O filme não era sobre a vida do Lamarca, mas sobre a morte dele. Os personagens já estavam no final, no auge da repressão. Na cena do suicídio, propus ao Sérgio que a Iara apontasse o revólver primeiro para a cabeça e depois mudasse de idéia, deslocando-a para a altura do coração. Eu queria deixar claro que ela se recusara a estourar a cabeça, como prefere todo suicida determinado, e apontara a arma para o coração, ou seja, o emocional. Na minha leitura, as falas de Iara, que podem soar um tanto declamatórias, eram naturais naquela dramaturgia, pois deixavam transparecer a consciência dessas pessoas que sabem que estão fazendo história. Assim como os reis, quando se correspondem, sabem que estão criando documentos. Para ela e seus companheiros, a luta armada e a revolução não eram uma saída como outras, mas a única, para transformar o País. A chance de eles envelhecerem era muito pequena frente ao risco que decidiram correr. Já me perguntaram de onde eu, uma mulher tão doce, tirava essas personagens impositivas, essas mulheres fodonas como Shirley Sombra, Pagu, Iara Iavelberg, etc. Costumo responder que não sou tão doce assim. Posso até ser violenta! Tenho sempre a sensação de que estou certa, pelo menos até que bons argumentos me convençam do contrário. Mas quando isso acontece, a mudança é instantânea. Tive de brigar muito por tudo na vida. Talvez por isso, ao delegar meus projetos à minha equipe, não consigo abandoná-los. Preciso ficar empurrando o barco junto. Felizmente, não tenho preguiça para nada – desde levantar para pegar um copo d’água até distribuir um filme pelo País afora. Tenho energia suficiente para trabalhar o dia inteiro e ainda chegar toda animada a uma reunião no turno da noite. Sou a última a me cansar, o que não é fácil para quem trabalha comigo. O fato de eu ser uma pessoa afetuosa não é incompatível com minha determinação. De alguma forma, todas essas mulheres moram dentro de mim. De todas essas mulheres, a televisão parecia ver apenas uma: a heroína mais frágil, mais boba, calcada na imagem-padrão da loura meiga de olhos azuis. Esse tipo de heroína, em geral, está fadada a sofrer, sempre com uma lágrima dependurada na pálpebra, por amor ou por qualquer outra coisa. Eu queria algo diferente, fosse no rumo da comédia ou da aventura, mas os papéis não caíam nas minhas mãos. Sentia que minha personalidade não se mostrava por inteiro dentro daqueles limites. Estava enredada em um estigma. O resultado é que, na segunda metade da década de 1980, eu já me sentia profundamente infeliz com a TV. No dia-a-dia das gravações, eu tinha uma voz crítica permanente. No set de Brasileiros e Brasileiras, por exemplo, não parava de apresentar idéias ao Walter Avancini. Achava isso, achava aquilo... A ponto de ele, um dia, apontar o meu lugar: Eu acho que você já achou demais hoje, agora pode deixar eu achar alguma coisa também? Eu sempre achei muito. Achava as cenas mal escritas, como uma de bar em O Grande Pai, quando eu resolvi falar de boca cheia para criticar a cena por dentro. Nos filmes, muitas vezes ficava frustrada com certas escolhas de edição que não me pareciam as melhores. O fato é que meu olhar nunca foi setorizado. Eu via o processo como um todo, o que me fazia extremamente crítica, mas também trazia sofrimento e uma tensão constante. Ao ver tudo, eu me via também, e ficava ainda mais dividida. O Paulo José presenciava isso e me estimulava a fazer direção. Chegamos a realizar um vídeo, que se perdeu, com uma adaptação de história do Stephen King, em que eu o dirigia. Além do Paulo, o meu analista também teve um papel decisivo em mais essa grande mudança na minha carreira. A cada vez que eu chegava angustiada ao consultório, ele me aconselhava a parar de criticar os ventos e assumir o leme do meu barco. Largar a televisão não é uma decisão fácil de tomar. É preciso renunciar ao salário fixo e a um certo padrão de vida para tornar-se independente, voltar a ser free-lancer, num certo sentido. Mas eu precisava fazê-lo para recobrar o prazer do trabalho. Embora viesse a atuar no meu primeiro curta, eu não estava interessada em simplesmente produzir minha própria carreira de atriz. Tanto que passei a escolher personagens que eu jamais poderia interpretar. Queria exercer a direção de fato e mudar o meu lugar dentro do sistema. Queria contar as histórias que achava importantes. Existem milhões de histórias passando o tempo todo, mas o diretor seleciona as que ele deseja contar. A pergunta é: o quê convém iluminar no mundo agora? Eu queria contar histórias em que o entretenimento aparecesse associado ao conhecimento. Alguma coisa que estivesse sendo descoberta e, ao mesmo tempo, divertindo as pessoas. O drama, em si, nem sempre me comove, por melhor que seja. Os dramas em que personagens são vítimas de problemas que elas mesmas criaram para si próprias geralmente me parecem frágeis, sem uma dimensão maior. A Morte do Caixeiro Viajante, a peça do Arthur Miller, é um tipo de drama que me agrada, porque se passa na plena dimensão da tragédia humana. A comédia, com seus elementos dramáticos inerentes, era o que mais me atraía naquele momento de transição – e continua a atrair. E para cruzar a linha perigosa, nada me parecia mais adequado do que a história de Passionella, dos quadrinhos de Jules Pfeiffer. Aquela fábula continha muito do que eu pensava e queria dizer sobre a televisão. Capítulo VII Primeiros Passos na Direção Como num passe de mágica, a pobre gari banguela é transformada pela fada moderna da televisão numa estrela loura, glamourosa e toda gostosa. Mas a fantasia só dura exatamente o tempo em que a TV está no ar. Mediante a fábula de Pfeiffer, eu queria falar sobre a efemeridade da fama e o mito da forma física. Muita gente entra na carreira artística pela porta da ilusão, reverenciando um arremedo de star system que é o brasileiro. Por outro lado, jogar todas as suas fichas na forma física é apostar num cavalo perdedor. É preciso fazer outro tipo de investimento, senão o prejuízo é líquido e certo. Enquanto preparava a produção, fui a Nova York para comprar alguns figurinos, que lá eram bem mais baratos, rodar algumas cenas em vídeo (das quais apenas um pequeno trecho foi incluído na ascensão da personagem ao estrelato) e – o principal – acertar com Jules Pfeiffer os direitos de adaptação. Como estes tinham sido vendidos para o Mike Nichols, não pude usar o título Passionella. Mas o próprio Pfeiffer me tranqüilizou: Bota outro título e diz que foi só inspirado na minha história. Seu curta nunca vai chegar por aqui mesmo... E se chegar, eu digo que não sabia. Voltei para o Brasil com esse incentivo um tanto duvidoso na cabeça e a mala cheia de roupas de brechó e negativos para a filmagem. Minha família paulistana compareceu em peso ao nascimento da nova cineasta: Chico Botelho fez a produção executiva, Zé Bob fotografou, Renata Bueno encarregou-se da pesquisa de locações por onde a lixeirinha passava com sua vassoura pela cidade, Thales Pan Chacon e Sérgio Mamberti integravam o elenco. Nessa época, eu era considerada tão paulista quanto o Viaduto do Chá. Prova disso é uma matéria da revista IstoÉ, de 1988, que se referia a mim como a paulista Carla Camurati. O título A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal foi sugerido pelo José Antonio Garcia, que escreveu comigo o roteiro. Quando eu começo a pensar uma história, ela geralmente me vem em forma de imagens, planos, situações visuais. Por isso, gosto de escrever o roteiro, antevendo já a edição do tempo, a decupagem da imagem junto com o texto. A Mulher Fatal tinha de ser um filme em quadrinhos e uma comédia muda. Os aspectos visuais, portanto, contavam mais que tudo. As cenas em preto e branco teriam que ser mais brilhantes e contrastadas que as coloridas, já que aquele seria o universo fake dela. Como não havia dinheiro para um glamour de verdade, optei pela estilização radical, uma coisa bem teatral, meio Flash Gordon. Os figurinos foram desenhados em Nova York pela Emilia Duncan, que havia concebido os fantásticos modelitos de Estrela Nua, e desenhados pelo Marcelo Pies. A Lalá Dehenzelin ajudava a nos coreografar. Nas externas, o grafismo ficava por conta das ruas e prédios. Este foi um filme que fiz com muita clareza de intenções e até facilidade, num certo sentido. O universo mais teatral, mais sedutor, sempre me atraiu. Gostei da experiência de dirigir e atuar ao mesmo tempo, sem me intimidar com o tom “acima” que imprimia ao filme. Eu mesma encerrava as cenas com a ordem de corta!, inclusive nas tomadas em que eu atuava. Na seqüência em que a lixeirinha é expulsa do restaurante com um safanão, eu me desequilibrava com a galocha e caía de verdade no chão, diante da equipe assustada. Deixei rolar e a queda acabou ficando inteira no filme. Ninguém sabia o que eu ia fazer ao final de cada tomada, pois o corte era meu. Esses meus primeiros passos como diretora foram testemunhados pelo Thales, que me incentivava muito e às vezes se espantava com a minha segurança no trato com a técnica. Lembro-me da festa de entrega do primeiro Prêmio Sharp de Música, em 1988, que fui convidada a dirigir. Foi meu batismo de fogo num palco. O evento era enorme, com mais de 100 pessoas na coxia. O Thales era um dos apresentadores, junto com o Raul Cortez. Na preparação do show, ele me via discutir com o maestro sobre os arranjos, o andamento das músicas, etc., e me questionava: Desde quando você entende disso? Ou seja, ele sabia que eu não sabia. E eu não sabia que sabia. Ficava surpresa, como freqüentemente acontece comigo. Ao ter de opinar sobre alguma coisa em que eu nunca havia pensado antes, acabo descobrindo que tenho, sim, uma opinião objetiva a respeito. Como se tivesse um arquivo guardado e o acessasse a cada vez que precisasse. Da mesma forma, ao ter que discutir decupagem, fotografia, etc., eu nunca ficava sem saber o que queria. O Thales acompanhava tudo isso, entre admirado, perplexo e cúmplice. Como ele era bailarino, criava sua performance no apartamento de Pinheiros onde morávamos, alugado pelo José Antonio. Todos os trejeitos do impagável Elvis Mambo nasceram de brincadeiras que inventávamos a dois, na véspera de cada dia de filmagem. Costumo gracejar que cada um de meus filmes foi feito por alguém de uma determinada idade. A Mulher Fatal foi dirigido por uma criança de 4 a 6 anos. O Carlota Joaquina é de alguém que tinha 10 para 12 anos. Já o Copacabana é o filme de um adolescente que começa a entender que o processo de envelhecimento existe. Para a criança, isso é uma mera abstração. Quando eu era pequena, achava que as pessoas velhas já haviam nascido assim. Ganhei vários prêmios por A Mulher Fatal Encontra o Homem Ideal, entre os quais um bocado de negativo e a respectiva revelação. Decidi, então, fazer um documentário sobre um espetáculo que achava absolutamente genial. Mais precisamente, sobre a linha que dividia o palco das coxias no hilariante O Mistério de Irma Vap. A comédia do norte-americano Charles Ludlam, dirigida por Marília Pêra, estreara em 1986 e era um enorme sucesso, que ficaria mais de 11 anos em cartaz, sempre com o mesmo elenco: Marco Nanini e Ney Latorraca. A peça em si era ótima, mas o que fascinava de verdade era o jogo teatral, a rapidez e precisão com que os atores se vestiam e se travestiam num piscar de olhos, por trás das tapadeiras. Eu adorava a composição deles, mergulho fundo na máscara do ator. Uma opção mais realista não me seduziria tanto quanto aquela performance saborosa de Marco e Ney. O mais bonito no Irma Vap era ver uma dinâmica teatral levada ao extremo. Na frente do público, aquela explosão do besteirol; atrás, a concentração e o silêncio mais absolutos. Em segundos, viajava-se de um universo a outro. O Nanini vestido de mulher saía com uma gargalhada e, ao cruzar a porta, por onde a luz penetrava naquele cubículo escuro, caía por um brevíssimo tempo no silêncio em que só se ouvia o fraaa... fraaa do velcro nas roupas. Sempre me intriguei, ao sair de cena no teatro, com o vácuo sonoro e emocional da passagem para as coxias. Era dessa fronteira entre dois mundos contíguos, mas tão diferentes, que eu queria tratar no curta Bastidores. Na época, o grau de amizade que existia entre mim, Nanini e Latorraca ainda não me permitia pedir uma apresentação especial para a filmagem. Eu tinha que me adequar, silenciosamente, às condições normais da temporada no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. E elas eram péssimas para mim. Eu não podia acender a luz, não podia me mexer. Foi então que compreendi: como diretora, eu preciso da composição das coisas, não consigo me satisfazer com o roubado. Naquele momento, pelo menos, eu não sabia aproveitar o roubado. Ou talvez não tenha mesmo uma autêntica alma de documentarista. Os melhores documentaristas são os que sabem aproveitar o que vem. Eu, pelo contrário, ficava tentando compor uma coisa que não estava sendo feita para mim. Gostaria de ter filmado a platéia de frente, do ponto de vista dos atores. Com um pouco mais de liberdade, teria conseguido passar o que pretendia. Acho que ficou um bom registro da peça, mas o documentário nem se realiza em relação ao espetáculo, nem é claro no que eu queria falar. Uma coisa maravilhosa aconteceu com relação ao som do filme. Quando estava fazendo a montagem, descobri que o áudio de várias cenas selecionadas não tinha boa qualidade. Uma dublagem seria impossível, até porque os atores já estavam fazendo a peça em Santos, quase um ano depois. Mas foi aí que encontrei a solução. Eu imaginava que o texto, àquela altura, era como uma partitura na cabeça deles. Então mandei um técnico a Santos para gravar o áudio da peça num DAT (fita de áudio digital), enquanto a montadora Sylvia Alencar pesquisava um manicômio simpático para me internar. Racionalmente, eu achava que não ia dar certo, mas a intuição me aconselhava a tentar. O resultado foi de cair para trás. Pelo menos 70% da peça estavam em perfeita sincronia, aí incluídos os trechos que precisávamos. A máquina dos atores era um relógio suíço. Quem vê o filme não pode imaginar que um ano se passou entre a imagem do ator que fala e o som da voz que se ouve. E Sylvia não falou mais em manicômios. Naquele final de década de 1980, eu não poderia imaginar que no futuro iria levar O Mistério de Irma Vap para o cinema, assim saldando minha dívida para com esse fenômeno do teatro de entretenimento. Meu aprendizado de direção foi o mais informal possível, baseado no binômio intuição-observação. A fase de atriz e co-roteirista no cinema paulista me deu intimidade com os procedimentos. De resto, admiro profundamente o trabalho de Fellini, Woody Allen, Frank Capra, Arnaldo Jabor, Hitchcock, Wim Wenders, Fassbinder, Carlos Manga, Orson Welles, Buñuel, Humberto Mauro, Mário Peixoto, Almodóvar, Hector Babenco, Walter Lima Jr., Joaquim Pedro de Andrade... Em fins de 1989 e início de 1990, passei quatro meses em Nova York fazendo um curso de inglês e assistindo como ouvinte a algumas aulas de interpretação em torno da peça Vestir os Nus, de Pirandello. Queria, se não soar como a Katharine Hepburn, pelo menos perder a consciência de que estava falando inglês muito mal. Mas o meu grande hit nova-iorquino foi um breve encontro com Woody Allen no set de Simplesmente Alice. Eu era fã do Woody a ponto de ir várias segundas-feiras ao Michael’s Pub para vê-lo tocar e, numa dessas noites, apanhar uma garrafa de soda que ele deixou na mesa enquanto subia ao palquinho com seu clarinete. Por intermédio de um amigo do Thales, conheci o Santo Loquasto, seu diretor de arte preferido. Assim fui levada ao estúdio Kaufman Astoria, no Queens, no dia da filmagem de uma festa na cobertura de Alice. Passeei pelos camarins, num dos quais a Mia Farrow se preparava, cercada de crianças e duas babás. Eu pensava comigo: Meu Deus, eles trazem as crianças todas para o set!. Era a coisa mais chique que eu já tinha visto. Num dado momento, o Loquasto me deixou num cantinho e foi checar a cenografia. Eu fiquei dali observando, até que entrou o Woody Allen. Ele deu good morning a todos e fixou um pouco o olhar em mim. Não me reconhecia, é claro. Começou a conversar com o diretor de fotografia Carlo Di Palma, mas de vez em quando lançava um olhar rápido para mim. Visivelmente, estava perturbado com a presença estranha. Começou a caminhar na minha direção e eu congelei, prevendo que seria expulsa sem conseguir balbuciar sequer uma frase em inglês inteligível. Foi quando o Loquasto chegou em meu socorro e fez as apresentações. Eu reuni todas as forças num exemplar Nice to meet you!. Da nossa curtíssima conversação só me recordo que ele brincou fazendo quatro ou cinco entonações diferentes para a palavra Brasil. Em cada uma, eu enxergava um estereótipo diferente: o País tropical maravilhoso, a terra de escândalos horrorosos, o lugar longe pra burro. Eu dei uma risada nervosa e ele se despediu com uma piscada de olho. Corta. Observei a confecção de um dos fantásticos planos-seqüência que ele costuma fazer, movimentando o carrinho em espaços às vezes muito exíguos e deslocando os atores ao mesmo tempo. Procurei ficar no eixo da câmera para entender exatamente o enquadramento. Passei dois dias nessa espécie de aula prática. O plano-seqüência me agrada mais que a edição, uma vez que ele confere ritmo à cena sem necessariamente criar uma interrupção no raciocínio do espectador. Assim eu posso criar imagens mais fluidas, sedutoras e mágicas. Nos filmes excessivamente decupados, o público tem que recodificar a imagem a cada corte. Capítulo VIII Brincando com a História Desde os tempos da escola, a História exerceu um grande fascínio sobre mim. Não a História como uma série de datas e acontecimentos políticos – a que muitas vezes se resume o ensino da matéria –, mas a História entendida pitorescamente, como alguma coisa que impregna o cotidiano de cada época. A guerra, o golpe, a revolução, o que seja, afeta o ambiente e a vida das pessoas. Isso é o que sempre me interessou. Quando criança, cada vez que ouvia a narração de um fato histórico, rapidamente fazia conexões com o presente. A Revolução Francesa, por exemplo, não era um fato estagnado na França do século 18, mas algo que invadia o mundo e os séculos futuros. Adoro pensar nas camadas de tempo e na maneira como a História ilumina a trajetória do homem. Os homens morrem, mas o Homem é imortal, eis a essência do que compreendo como História. Esse é o sentido do texto que abre Carlota Joaquina, Princesa do Brazil, dito por um marinheiro bêbado, em gravação feita por André Abujamra durante uma viagem à Espanha. Tomei já em 1991 a decisão de fazer um longa-metragem calcado na história do Brasil. Primeiro, pensei num filme sobre o descobrimento. Depois prossegui na pesquisa, em busca de outro momento que me interessasse. Quando cheguei no capítulo da família imperial, senti um clique. Um clique de comédia. Eu tinha crises de riso. Aquela era a hora em que acontecia um belo solavanco na História do Brasil. Os fatos passaram a conspirar a favor de Carlota. Viajei com José Antonio Garcia para o Festival de Cartagena, na Colômbia, acompanhando a exibição de O Corpo. Lá conheci o Angus Mitchell, jovem historiador escocês formado em Oxford e jornalista da revista Screen International. Tivemos uma paixão daquelas fulminantes. Em pouco tempo, eu seguia para uma semana santa ao seu lado em Madri e, dois meses depois, vinha ele passar uns dias no Rio. Trouxe na mala um exemplar de O Trono do Amazonas – A História dos Braganças no Brasil, de Betita Harding, um livro maravilhoso sobre esse período da história brasileira. Era uma forma de me instigar ainda mais no rumo do que eu já pretendia. O Angus acabou morando no Brasil durante cerca de seis anos. Aqui editou os textos e escreveu a introdução do livro The Amazon Journal of Roger Casement, sobre os polêmicos diários íntimos de um herói da independência irlandesa durante sua passagem pela Amazônia na época do ciclo da borracha. Como eu, Angus gostava de freqüentar sebos. Formamos uma pequena biblioteca sobre a História do Brasil. Ele tinha uma visão muito interessante das relações comerciais entre os países nesse período. A visão dele a respeito do Brasil, suas proporções e sua riqueza, era bem mais rica e respeitosa do que a minha, porque alheia ao desgaste que nós temos com relação ao nosso próprio país. Essa visão de estrangeiro acabou inspirando o olhar crítico que eu queria lançar sobre a História brasileira. Os escoceses, em particular, se situam à margem das tradicionais querelas entre ingleses, portugueses e espanhóis. São mais debochados, não competem por nenhuma hegemonia. Ficam ali tocando flauta, cantando, bebendo Guinness e whisky, contando piadas. Ao mesmo tempo, era bom trazer a ótica de um povo muito ligado à família, à terra e à cultura. Enfim, uma posição estratégica muito simpática para narrar uma história. Nunca foi minha intenção construir uma reprodução documental dos fatos, a ponto de despertar comentários do gênero: Puxa, a Carla conseguiu reconstituir como era um pentelho em 1800! Eu estava começando a fazer um filme sobre a imaginação de uma menina de 10 anos, com a liberdade que isso implica. Seria uma comédia, uma brincadeira acerca de um período muito anárquico mesmo, quando o mundo era governado por reis completamente loucos. No Carlota, não só o Brasil é criticado, mas também Portugal e Espanha. Cada um leva uma pisada no seu calo. Não me preocupei com possíveis reações negativas, como a que haveria depois por parte da Família Real. Meu compromisso não era com famílias, mas com o meu país. Aquele período em que a corte portuguesa se transferiu de mala e cuia para o Brasil é tão fascinante porque a herança deixada é tudo isso o que vivemos hoje, do ponto de vista social, comercial, etc. Toda essa vampirização política, essa mania de pilhar o País, de saquear o paraíso para levar para fora daqui, tudo isso estava contido naquele momento. Ali se solidificou essa carapuça de que o Brasil é terra de preguiçosos onde ninguém trabalha. Naturalmente, houve as coisas boas, como o Jardim Botânico, que está no filme. Faz pouco mais de 300 anos, o que é pouco na escala histórica, e as conseqüências estão bem visíveis hoje em dia. Corria o ano de 1993 e tudo o que eu queria era fazer cinema. Mas a hora era das piores. O cinema brasileiro estava desmontado, após a extinção da Embrafilme e de todos os mecanismos de estímulo à produção. O setor vivia uma de suas piores crises, alimentada pelo descrédito do público. Eu tinha feito dois curtas, mas aceitaria de bom grado um convite para atuar em filme alheio. Só que ninguém estava filmando. Uma corajosa exceção era o Sérgio Rezende, que me chamou para o Lamarca. Começou a bater um desespero ao ver que minha ocupação favorita estava morrendo diante dos meus olhos. A preparação do roteiro do Carlota foi norteada pela viabilidade de filmar. Eu sabia que havia uma linguagem e soluções de produção capazes de contar aquela história sem custos exorbitantes. O Angus não quis escrever comigo, alegando que sua área eram os livros. O primeiro tratamento de toda a parte da infância e juventude de Carlota foi escrito por mim, em cadernos em que esboços de storyboard se misturavam aos textos manuscritos em todas as variações possíveis entre o português, o espanhol e o inglês. É um material muito engraçado em si, algo que nunca mais repeti depois que comecei a digitar os roteiros em computador. O Angus colaborou diretamente nos textos do personagem escocês que fazem o fio de narração do filme. A partir da maioridade de Carlota, quando entra em cena a Marieta Severo, já contei com a participação da Melanie Dimantas, que desde então tem sido minhas terceira e quarta mãos na confecção de roteiros. Usamos uma grande variedade de fontes para contar a nossa versão pitoresca da História. Fiz uma ótima entrevista com o Darcy Ribeiro para recolher sua visão do período. A historiadora Anna María Parsons me apresentou os relatos de alguns viajantes que estiveram no Brasil àquela época. Essas coisas acrescentaram apenas indiretamente à visão que passo no filme. Li dos autores mais sérios aos adeptos da fofoca, como o livro de Don José Presas, secretário de Carlota que escreveu movido por sentimentos de vingança. Ele aparece no filme e deixa isso bem claro, contribuindo para o pitoresco. Já o assassinato da mulher do amante de Carlota, omitido na maioria dos livros, aparece em pelo menos duas fontes. Todas as vezes que eu me senti numa encruzilhada da história, tratei de citar a encruzilhada. Sobre a morte de D. João VI, por exemplo, existem as versões de doença e de envenenamento. Da Carlota alguns dizem que se matou, outros que ela teve um câncer de útero. Quando eu me defrontava com algo assim, deixava em aberto no filme. Uma das frases de que mais gosto é a resposta do escocês a uma pergunta da menina no final: Who knows, Yolanda? History is like that. The much you read, the less you know (Quem sabe, Yolanda? A História é assim. Quanto mais se lê, menos se sabe). O tom não realista do filme poupou o espectador de coisas que, se filmadas realisticamente, pareceriam ainda mais grotescas. D. João guardava suas coxinhas de frango nos bolsos, mas eu não explorei o lado higiênico disso. Não sublinhei a erisipela que ele tinha na perna. Nem dei ouvidos às versões mais fofoqueiras que atribuem sua indiferença à mulher a uma suposta homossexualidade. A Carlota, por sua vez, se fosse desenhada de maneira realista, seria muito mais gauche do que aparece na tela. Procurei passar os dados reais de maneira lúdica, ou seja, mais leve do que a verdade nua e crua dos fatos. Curiosamente, depois de lançado o filme, surgiria uma legião de defensores de D. João, questionando se ele arrotava mesmo daquele jeito, se era de fato um glutão, etc. Mas ninguém defendia a Carlota, mesmo ela matando o jardineiro, transando com milhões de pessoas e por aí afora. Ninguém criticou o bigode da rainha. Na verdade, a Carlota é uma personagem estigmatizada no nosso inconsciente histórico, principalmente por não querer levar nem o pó do Brasil nos seus sapatos. Somos indispostos contra ela desde os livros escolares. D. João, ao contrário, é tido como um grande estadista – e foi mesmo inteligente, até nas suas atitudes mais covardes. A saga de Carlota Joaquina começou de verdade no Maranhão. Tudo o que eu tinha ao final da pesquisa eram 100 mil reais de um prêmio de roteiro da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia). Um dia, participando de um programa de televisão, comentei as dificuldades que estava encontrando na pesquisa de locações, já que a memória arquitetônica do Rio de Janeiro tinha sido duramente violentada. Estávamos montando um verdadeiro quebra-cabeça para filmar um pouquinho aqui, um pouquinho ali. Ao meu lado estava o Secretário de Turismo do Maranhão, Fernando César Mesquita, que prontamente, no ar, ofereceu o lugar perfeito para você fazer seu filme. E mandou transmitirem as imagens que ele tinha levado para o programa: o centro histórico de São Luís, reconstruído em toda a sua beleza. Meu coração disparou. Só podia ser milagre ou conversa fiada. Ao fim da gravação, o Fernando me deu seu cartão e confirmou a oferta de apoio, agora longe das câmeras. Seu filme vai ser um sucesso, previu. Uma semana depois, embarquei com o cenógrafo Tadeu Burgos para São Luís. Passamos dois dias visitando o centro histórico, antes de bater à porta do nosso mecenas. Afinal de contas, não era conversa fiada. E alcançamos duas graças com um milagre só, pois no Maranhão filmaríamos Brasil e também Portugal. Abri uma conta no Banco do Estado do Maranhão e comprometi-me a gastar todo o dinheiro do Estado ali mesmo. Essa é uma postura ética que faço questão de manter, por mais ingênua que possa parecer: se Minas me dá dinheiro, o dinheiro volta para lá; se recebo patrocínio da Petrobras, só abasteço meu carro em postos Petrobras. Iniciadas as filmagens em São Luís, os outros patrocínios foram pingando: Embratel, Telemar, Petrobras. O Banco do Brasil negou três vezes antes de fechar sua participação. Eu estava certa de interessá-los, já que eles foram fundados justamente por Dom João. A cada rejeição, eu enviava o projeto de novo. Tive uma reunião com o pessoal do marketing, em Brasília, e os ameacei com uma praga peluda de Dom João. O banco tinha por norma não entrar na produção de cinema. Sugeriram-me fazer uma peça de teatro. Finalmente, consegui convencer a secretária do presidente do banco a conseguir uma audiência de cinco minutos, o tempo necessário para colocar uma cópia do projeto nas mãos dele e despejar uma falação sobre a importância de se abordar a História do Brasil naquele momento, o elenco fantástico que eu tinha, o dinheiro ridículo que estava pedindo, etc., etc. Começava, então, o dilema de esperar uma resposta. Não telefonava para o banco com medo de parecer chata, mas temia o risco de cair no esquecimento. Algumas semanas depois, eu e Bia Lessa comparecemos à solenidade de lançamento de uma moeda, no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio, a convite do diretor à época, Reinaldo Benjamim Ferreira. Havia pouco tínhamos feito ali a nossa bela temporada de Cartas Portuguesas. Entrei em taquicardia quando vi que o presidente do banco estava presente. Passei a esgueirar-me pelo salão, temendo que ele me visse e achasse que eu o estava perseguindo. Mas não consegui fugir por muito tempo. Ele topou comigo e disse que havia gostado muito do projeto. Assim conquistamos mais essa parceria. Submetemos a eles o roteiro da cena em que Dom João decide fundar o Banco do Brasil e titubeia entre vários nomes: Banco do Reino Unido de Portugal e Brasil, Banco Real do Brasil, Banco Dom João... Eles só pediram, mui justificadamente, que evitássemos a expressão Banco Real... De todo esse investimento que a Petrobras faz hoje no cinema brasileiro, orgulho-me de Carlota ter sido o primeiro. Na época, para conseguir meros 50 mil reais, eu tive que insistir um bocado, arrombando mais uma porta que estava fechada para o cinema. Ninguém queria saber desse assunto. O contrato, rigorosíssimo, teve como fiadora a minha avó. Mas a relação com a Petrobras foi, afinal, maravilhosa. Acabei usando várias imagens de mar e animais do arquivo da empresa. Além de São Luís, filmamos o Carlota em locações do Rio como o Jardim Botânico, o Solar da Marquesa, a ilha de Paquetá. A melancólica Escócia que abre o filme foi fotografada aqui mesmo, na praia da Joatinga, litoral do Rio. Com o Angus, eu havia visitado Portugal, Espanha e Escócia, sempre com a perspectiva de reunir dados emocionais que pudessem impregnar a estética do filme. Logo identificamos na Joatinga, com o mar em ressaca após um dia chuvoso, os cinzas e verdes fechados das nossas paisagens escocesas. Bastava arrumar um kilt e pronto. Isto é, precisávamos ainda de umas ovelhas sobre o rochedo para completar a cor local. Conseguimos alguns espécimes emprestados pelo Exército, que infelizmente se incompatibilizaram com o rústico cenário. Na verdade, as pobres ovelhinhas ficaram petrificadas de pavor diante dos precipícios e do mar. Eram ovelhas acostumadas com a estabilidade dos quartéis e o garbo tranqüilo das paradas militares. Uma delas teve um ataque do coração e precisou de socorro médico da equipe. No filme, em vez de passar naturalmente em frente à câmera, elas aparecem cravadas no chão, apavoradas. Não se moviam nem com a aproximação de pessoas, o que é regra entre as ovelhas. Com ou sem ovelhas, as cenas externas, como em todo filme de época, eram as mais difíceis de filmar. Os atores precisavam de mais tempo para se vestir e maquiar, era preciso evitar os vazamentos de som e imagem, o sol passava muito rápido... De qualquer forma, a Escócia está lá e enganou muita gente boa. Eu adoro no cinema essa mágica que nos permite convencer sem necessariamente usar a realidade. Carlota está cheio de exemplos como esse. O principal combustível da produção do Carlota foi a garra da turma. Não tínhamos dinheiro para quase nada. O catering (alimentação da equipe) era feito na produtora, sob o comando da Bel, uma empregada da minha casa que cozinhava muito bem. Eu e a produtora Bianca de Felippes nos encarregávamos de comprar os ingredientes da semana, o que fazíamos geralmente por volta de meia-noite, após um dia intenso de filmagem seguida de uma reunião de produção. Comprávamos caixas de legumes, frutas etc., invariavelmente às gargalhadas. Não éramos vítimas de um cinema pobre, mas personagens de uma comédia que entrava pela madrugada e nos deixava exaustas, mas felizes. Na hora do repasto, comida disputada a tapas, a prioridade era dada aos atores, depois à equipe técnica e só então chegava a nossa hora, da equipe de produção. Muitas vezes, tivemos de nos contentar com sanduíches, tal a fúria com que os precedentes atacavam o tempero irresistível da Bel. A produção era absolutamente comunista. O maior salário, de 500 reais por semana, era igual para mim, para o eletricista-chefe, o diretor de fotografia, etc. Marieta Severo e Marco Nanini receberam um cachê fixo, pulverizado ao longo de oito meses de filmagens interrompidas. Toda vez que eu procurava um deles para explicar algum atraso no pagamento, só ouvia coisas do tipo: Carla, não fale nisso agora. Com toda dificuldade financeira, eles nunca me criaram qualquer constrangimento. Quando acabaram as filmagens, eu devia cerca de 1.000 dólares a cada membro da equipe. Se pagasse a todos, não teria dinheiro para fazer as cópias. Chamei os mais íntimos e ofereci a cada um o percentual de 1% da renda do filme em lugar daquela quantia. Para minha decepção, só a Bianca topou. Aquilo configurava um descrédito nas possibilidades do filme, embora fosse compreensível pelo momento que o cinema brasileiro vivia e pelas necessidades imediatas de cada um. Felizmente, o sucesso viria e a Bianca lucraria bastante com sua decisão. Carlota foi filmado em diversas etapas, separadas por interrupções. Não foi assim por opção, mas devido ao parcelamento das verbas. Mas isso acabou revelando-se uma vantagem que eu iria incorporar ao meu método de produção. Nunca filmei oito semanas seguidas. Dirigir e produzir ao mesmo tempo é totalmente extenuante. Oito semanas seriam suficientes para fulminar o meu prazer de filmar e baixar os meus níveis de exigência. Além disso, trabalhando em etapas eu posso verificar os resultados parciais e fazer importantes correções de rumo. Um exemplo: nas primeiras cenas que rodamos com a Carlota, seu figurino estava bem mais harmônico – o que, somado à elegância natural da Marieta, fazia da personagem uma verdadeira princesa do Brasil. Ao ver isso na tela, concluímos que era preciso quebrar um pouco o figurino para dar espaço à espanhola arretada que queríamos mostrar. Foi aí que surgiu o bigode. O mesmo se deu com Dom João. A peruca do Nanini chegou da Inglaterra e não causou boa impressão à primeira vista. Ele a experimentou de diversas maneiras e, ao inverter a frente com a nuca, conferiu-lhe um movimento e uma verdade inesperados. É assim que ele a veste no filme. Economicamente, o método da filmagem em etapas também se revelou vantajoso. Eu reaproveitava muitos recursos de produção. Nada do que não fosse afetado pela continuidade se perdia, mas se transformava. Por fim, os últimos apoios já foram conquistados mediante a exibição de trechos prontos do filme. Com a Embratel foi assim. Quando tínhamos filmado apenas duas semanas no Maranhão, três minutos de material foram exibidos no Fantástico, quase contra a minha vontade. Depois disso, fechamos todos os apoios que faltavam. No total, rodamos seis semanas ao longo de oito meses. Só não perdemos elenco e equipe porque naquele momento não havia concorrentes no mercado cinematográfico. Tampouco descarto uma certa magia que cercava o filme. Era o meu primeiro longa, o primeiro longa fotografado pelo Breno Silveira, o primeiro personagem mais voluptuoso da Marieta, bem diferente dos tipos que ela vinha fazendo até então. As pessoas se sentiam conectadas por razões especiais. Gosto de comparar a realização do Carlota a um conto de fadas, com suas florestas perigosas, seus passes de mágica e seu final feliz. O Ziraldo é uma espécie de santo padroeiro dos meus primeiros passos. Comecei no teatro numa peça sua, Flicts. Mais de 20 anos depois, no momento em que estava preparando o primeiro take do meu primeiro longa, eis que surge o Ziraldo no set, de passagem por São Luís. Tão emocionado quanto eu, ele ficou ali, presenciando a fuga da Família Real. O making of não filmado de Carlota Joaquina é uma comédia épica. Ainda sinto arrepios ao recordar a filmagem dentro de uma passagem subterrânea no Maranhão, uma das mais difíceis e insalubres: faltava espaço, faltava ar, sobrava umidade. Quando a produção se transferiu para o Rio, montamos uma oficina na minha casa, em São Conrado. Roupas, sapatos, perucas, bijuterias, tudo era produzido ali e guardado numa barraca do Exército que montamos no jardim. As costureiras trabalhavam na sala, na varanda, de tal forma que, ao chegar em casa, até alcançar o meu quarto, eu ia passando pelo filme inteiro. Era delicioso ver aquele universo sendo construído de uma forma quase mágica. A figurinista Emília Duncan, que era minha amiga, não hesitava em servir-se do meu guarda-roupas para emendar e recombinar em peças maravilhosas para o filme. A desculpa era sempre essa: Você não usava aquilo mesmo... Aquela deliciosa confusão entre o privado e o cinematográfico virou uma marca das minhas produções. Passei também a reunir peças de figurino, chapéus, adereços e objetos de todos os meus filmes e montagens de ópera. Mandei construir um galpão no meu sítio especialmente para isso. Nessa coleção informal, estão peças ainda mais antigas, como uma camiseta da Vera Gatta de O Olho Mágico do Amor e a calça de couro da Shirley Sombra de Cidade Oculta. Se as personagens que fiz no cinema ainda são lembradas também pelos figurinos, em parte é porque sempre busquei essa experimentação. O figurino é importantíssimo para o ator. Pode montar o personagem ou destruí-lo. É muito difícil sobreviver a um mau figurino. Eu conheci a Emília e o Tadeu Burgos durante um raro desfile de que participei como modelo no Parque Laje, nos anos 1980. O Tadeu fazia sapatos e a Emília tinha a grife Transfigura, uma das minhas preferidas. O trabalho deles em Carlota, na fronteira da ilusão e da realidade, merece sempre mais elogios do que todos os que já foram feitos. Houve também a participação fundamental do Celestino Sobral e da Ana Maria Moraes. O Celestino fez todos os adereços e comidas cenográficas do Carlota e, desde então, os objetos de cena de La Serva Padrona, o bolo cenográfico de Copacabana, os adereços da ópera Madama Butterfly. A Ana Maria, uma artista plástica especializada em texturas, fazia as coisas mais ordinárias virarem ouro a borrifadas de colorgim. O dossel da cama da Carlota, feito à base de cera e colorgim dourado, era digno de uma superprodução. Ninguém chega à metade do que a Ana Maria pode fazer. Para uma cena de conversa conspiratória entre os ingleses, lancei mão do meu querido teatro de sombras. Na infância tive um tio com quem brincava de projetar sombras na parede. À parte um pequeno projetor de galalite, com desenhos em tiras de papel-manteiga, as sombras eram o meu cineminha predileto quando tinha entre 8 e 10 anos de idade. Não que isso tenha reverberado diretamente em vontade de fazer cinema, mas tinha lá o seu prazer. À exceção de Bastidores, há o momento-sombras em todos os meus filmes, assim como nas montagens de Madama Butterfly, Carmem e O Barbeiro de Sevilha. Gosto do Fellini quando ele diz que não fazia vários filmes, mas repetia sempre o mesmo, de uma forma diferente. Em todos os meus filmes, existe um raciocínio voltado para a cor e o que ela pode traduzir em termos de atmosfera e emoção. Esse é um dos elementos mais impactantes à disposição do cineasta, na medida em que ele restringe ou amplia o espectro de cores. A cor tem sido minha fiel aliada na luta contra a escassez de recursos. No caso do Carlota, eu tinha muito presente a idéia de um código cromático: os verdes, azuis e tons mais frios para a Escócia; os brancos e cinzas para Portugal, os vermelhos, dourados e pretos para a Espanha; e a palheta inteira para o Brasil, com isso expressando a riqueza do País e o caldeamento de culturas. Nossa concepção de luz era muito calcada na pintura espanhola, sobretudo Velásquez nos interiores e um pouco de Goya nos exteriores. Em matéria de cinema, as influências foram bem mais difusas. Eu sei que o Carlota pode ser considerado um filme felliniano, mas não que tenhamos usado qualquer obra do Fellini para exemplificar isso ou aquilo. Mas é claro que tenho, armazenadas no inconsciente, milhões de coisas dos diretores que admiro. Assistíamos, isto sim, a filmes de época sabidamente ruins, a fim de não repetir os erros mais comuns. Inspirar-se nos acertos alheios só faz limitar as suas próprias chances de acertar também. Localizar os erros me parece mais útil. Assim percebemos, por exemplo, que não podíamos ter sucessões de casas em tons pastéis. Verificamos que os diálogos não deveriam ter uma entonação pomposa de época. Não preciso dizer que o Breno Silveira é um dos melhores diretores de fotografia brasileiros. Sua importância na criação da estética do Carlota é fundamental. Devo muito a ele a idéia de decupar cenas em movimento constante, ampliando os espaços mediante cortes no preto, passando de um movimento para outro, ou interpondo objetos no primeiro plano para criar a impressão de profundidade e perspectiva em cenários reduzidos. Eu gosto de decupar as cenas junto com o fotógrafo, prevendo já o enquadramento e o tom adequados. O Breno salvou a seqüência final, dos sapatos pousando no fundo do mar. Eu adorava a idéia de terminar o filme daquela maneira, escrevi a cena, mas não tinha dinheiro para custear uma filmagem submarina. Foi quando ele saiu-se com a idéia de filmar num aquário. Fiquei estupefata. Tinha pensado em tudo, menos na solução mais fácil e barata. Tanto no Carlota como em La Serva Padrona, meu entendimento com o Breno era completo e imediato. Ele sabia a imagem que eu estava propondo e eu compreendia perfeitamente o plano que ele estava preparando. Parecia telepático. Tem sido assim: mal me acostumo a trabalhar com um fotógrafo, ele se torna inacessível. Adorei trabalhar com o José Roberto Eliézer em Cidade Oculta e A Mulher Fatal. Quando o chamei para fazer Carlota, ele não podia largar os comerciais. O Breno, por sua vez, passou a dirigir. Ainda continuo a procurar uma parceria como aquela. * * * O elenco do filme é uma tapeçaria de atores experientes e nomes desconhecidos. Isso dá frescor e propicia uma troca interessante entre o que uns fornecem em matéria de notoriedade e outros de veracidade. São graus diferentes de realidade colocados para contracenar, e não procuro dissimular esse abismo. Há também os tarimbados, mas não tão famosos. O Nanini atua ligado ao Aldo Leite, a Marieta à Eliana Fonseca, a Bel Kutner à novata Ludmila Dayer. Entre os figurantes, estão velhinhos maravilhosos que faziam aulas com a Cristina Pereira. A mistura ajuda a quebrar a composição às vezes excessiva dos atores. A Marieta é uma grande atriz que tem ótima perspectiva crítica do próprio trabalho. À medida que via os copiões, mais e mais ela saboreava a personagem, divertindo-se com o tom de comédia que imprimíamos aos gestos e às falas. Apaixonou-se tanto por seu bigode que um dia me assustei com o basto exemplar mexicano que ela envergava no camarim. Por um momento, pensei que tivesse entrado por engano numa filmagem do Pepe Legal. A Marieta e o Nanini se encontraram para sempre no Carlota. Desde então, têm feito diversos trabalhos juntos, no teatro e na TV. Assim como o bigode da Marieta e o colorgim da Ana Maria, o lápis preto teve um papel de destaque nos bastidores do filme. Tudo começou no dia em que a Maria Fernanda discordou da maquiagem de envelhecimento prevista para a cena em que D. Maria I enlouquece de vez durante uma procissão. Para contornar a situação, dispus-me a fazer, eu mesma, uma maquiagem alternativa. Tomei um lápis preto de olho e cavei umas olheiras enormes no rosto dela. Mais nada. É o que está no filme. O Nanini gostou tanto que passou a adotar o lápis preto para fazer olheiras, esfumaçados no rosto, etc. Virou uma piada da equipe: lápis preto para tudo e para todos. Entre as novidades do Carlota, uma das melhores foi a Ludmila Dayer, a então menina que fazia a Yolanda e a pequena Carlota. No princípio, o papel pertencia a outra garota, até o dia em que o pai dela, sempre presente aos ensaios, estrilou ao saber que a filha faria uma cena com um penico. Ainda tentei argumentar, sem medo do ridículo: Mas é um peniquinho real! Não adiantou. A um mês do início das filmagens, lá se foi minha Carlotinha. Não seria fácil substituí-la por outra que pudesse dançar à espanhola e ao mesmo tempo ser lourinha como uma escocesa. A Bianca de Felippes partiu com uma câmera de vídeo para locais onde havia curso de dança espanhola e, no final de apenas um dia de pesquisa, voltou com a solução. Há malas que vêm de trem, porque a Ludmila, além de tudo, tinha olhos azuis e uma incrível facilidade para reproduzir a melodia do que lhe era pedido. Em frente à câmera, ela não perdia nada do que somávamos nos ensaios. E se defendia de maneira muito esperta. Para as cenas da Escócia, eu queria seu rostinho de criança bem limpo, para contrastar com a maquiagem que ela usava como a Carlotinha. Percebi que ela não ficou muito satisfeita. Na manhã da filmagem, seus lábios estavam mais vermelhos que o normal. Passei o dedo e não saiu batom nenhum. Ela argumentou que era o frio. Só no final dos trabalhos, sua mãe me confidenciou o truque: Ludmila havia dormido de batom, a fim de que a tinta se impregnasse na pele sem deixar excesso perceptível. Capítulo IX As Peripécias de Carlota Não me lembro de nenhum outro momento em que eu esbanjasse tanta energia quanto na realização de Carlota Joaquina. Eu parecia um dínamo. Normalmente, o trabalho prazeroso me reabastece e, muitas vezes, eu só paro porque as outras pessoas já pararam. De qualquer maneira, acho que essa foi a fase mais obstinada da minha vida. Sou também muito controladora. Não houve um só pagamento que não tenha sido feito por mim. Até porque era constante o exercício de pesar e medir, a fim de viabilizar o filme com o pouco dinheiro que tínhamos. Em todos os meus filmes, eu participo decisivamente da produção. Minha parceria com a produtora Bianca de Felippes surgiu nessa época, por indicação da Emilia Duncan. A Bianca vinha do teatro. Não levantou nenhuma fortuna em espécie, mas obteve indiretamente tudo o que precisaríamos comprar com o dinheiro que não conseguiu. Carlota tem uma relação de empresas apoiadoras que só rivaliza com a lista de amantes de Don Giovanni. Além do mais, é um alívio trabalhar com uma co-produtora que confia inteiramente na minha intuição – e acredita nas minhas pragas peludas, aquelas de que você não se livra de jeito nenhum. Soou como praga peluda, aliás, a primeira vez que ouvimos o nome da nossa empresa produtora. Foi ainda na época da Globo, quando eu e o Thales resolvemos comprar uma firma do Armando Bogus para receber nossos salários. Mas só atentamos para o nome na hora de assinar a transferência: Elimar Produções. Quase caímos para trás. Usamos a Elimar com discrição até o dia em que ela ganhou o financiamento da Finep para fazer o Carlota. Tivemos que nos render. E não nos arrependemos, porque essa primeira produção nos deu tantas alegrias que o Thales queria tirar fotos posando de presidente da Elimar Produções, o grande sucesso de bilheteria do cinema brasileiro. Nas portas dos cinemas, ao lado das Columbias e Universais da vida, lá estava a Elimar orgulhosamente apresentando Carlota Joaquina. Na verdade, nunca mudei a razão social, agora oculta sob a marca fantasia da Copacabana Filmes e Produções. Toda a finalização do Carlota foi muito difícil. Mudei de montador duas vezes, à procura de alguém que entendesse a proposta farsesca do filme. Em compensação, adquiri prática em cortar na moviola, numa época em que a edição eletrônica ainda não tinha dominado a área. Na trilha sonora, lamento não ter contado mais com o talento do André Abujamra. Eu queria utilizar algumas músicas que já habitam o inconsciente das pessoas, como o Tico-Tico no Fubá e o España Cañi, em lugar de mandar compor assemelhados. O André se aborreceu e saiu do filme. Se tivesse ficado, certamente teria melhorado muito a concepção de trilha sonora que eu pretendia usar. Quando o filme ficou pronto, minha maior preocupação era cumprir todos os contratos, já que a imagem do cinema brasileiro estava muito desgastada nesse aspecto. Em novembro de 1994, resolvi fazer uma sessão para patrocinadores e equipe, a fim de mostrar que o serviço estava completo. Como não queria comprometer-me com nenhum distribuidor, aluguei para isso o cinema (hoje extinto) do Shopping da Gávea. A sessão foi um sucesso e a Márcia, dona do cinema, propôs que eu lançasse o filme ali mesmo. Combinei para janeiro, desde que ela me garantisse um mínimo de três semanas em cartaz. Seria uma sala apenas, com a única cópia que eu tinha. Eu estava disposta a me mudar para aquele cinema, levar minha cama, se preciso fosse – e viver à base de sanduíches –, grudada no projetor. Porque, diga-se de passagem, nunca consegui assistir ao Carlota inteiro quietinha no meio de uma platéia. A história começou a mudar quando Marcelo Mendes, do circuito Estação, ligou-me propondo um lançamento maior, com participação da Art Filmes. Eu tremia nas bases. Tantos bons filmes brasileiros naufragavam em estréias mal-feitas, saindo de cartaz após a primeira ou segunda semana de bilheterias murchas. Eu preferia começar pequeno, mas manter o filme em cartaz por mais tempo. Só fechei o acordo depois que o Estação me garantiu pelo menos duas semanas, e a Márcia concordou com a nova fórmula, encorajando-me assim: Carla, seu filme é bom. Pode passar em muitas salas! A imprensa foi muito generosa enquanto o filme estava sendo realizado, mas surpreendentemente arredia à época do lançamento. Liguei para os editores, mas os espaços estavam reservados para matérias ligadas à entrada do verão. Argumentei que o verão entra todo ano, ao contrário do meu filme. Mas o que salvou a pátria foi a permuta que a Bianca obteve com o Jornal do Brasil em troca de seis anúncios de um quarto de página. As melhores matérias viriam depois, a reboque do sucesso do filme. E assim foi lançado o Carlota: sem trailer, sem cartaz, sem destaque nos jornais. O filme entrou em quatro salas, na Zona Sul do Rio, Niterói e Barra da Tijuca. Desde o primeiro dia de exibição, adquiri o vício de controlar quantos espectadores eu tenho por sessão. Às 14h10, liguei para o Estação Botafogo e o Gávea. Havia, respectivamente, 73 e 92 pessoas assistindo ao filme. Passei por meia hora de depressão e fracasso antes que o Marcelo me ligasse, felicíssimo. Aqueles números, na primeira sessão de sexta-feira, eram indício de sucesso certo. Em poucas horas, a profecia se concretizava. Às 18 horas, os cinemas estavam lotados. As filas se espicharam pelo fim de semana. A sensação era indescritível, como se todo o cassino estivesse abrindo-se para mim. Na segunda-feira seguinte, o Ugo Sorrentino, diretor da Art Filmes, ligou-me para dar os parabéns e fechar o lançamento no Nordeste do País. Horas depois, era a vez de Luiz Severiano Ribeiro telefonar, pedindo-me para ver o filme. Marcamos uma reunião para a quarta-feira. Ele me recebeu tendo nas mãos um papel com os números do filme no fim de semana. Perguntou: – Por que você não trouxe seu filme para eu ver? – Porque me falaram que você não gosta de cinema brasileiro. – Eu não gosto é de filme ruim, seja lá de onde for. Esse negócio de lançar sem trailer foi uma estratégia, né? – Não. É que estávamos sem grana, mesmo. – O som do seu filme é dolby? – Não. É mono. Estava ruim? – Não, pelo contrário. Como você conseguiu fazer um som mono tão bom? Expliquei-lhe, então, como era primoroso o trabalho da Virgínia Flores, minha editora de som. Como tínhamos escolhido cada cachorro que latia, cada vento que soprava. Como tínhamos feito muitas pistas de som justamente para “enganar” o mono. Ele acabou fechando a exibição com o mesmo percentual dos outros cinemas: 50% e 50%. E ainda lançou o filme nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste. Três meses depois da estréia, já havia 12 cópias circulando no Rio. Em São Paulo, o filme sustentou filas durante quatro meses e manteve salas cheias por mais quatro. O Adhemar Oliveira dizia brincando que havia construído o Anexo do Espaço Unibanco com o dinheiro do Carlota. No Rio, depois que abriu para o circuito Severiano Ribeiro, meu sonho era exibir no Roxy, o cinema da minha infância. O Luiz lançou-me um desafio: se o filme resistisse por 12 semanas, ele me atenderia. Achei que era um golpe baixo, mas na 12a semana de sucesso ele me ligou pedindo uma cópia para o Roxy. A chamada repercussão boca-a-boca supriu todas as deficiências da mídia nas primeiras semanas. Nas minhas entradas e saídas nervosas da sala de projeção, muitas vezes me emocionei ao ver que o filme tinha empatia com as pessoas, até mesmo em detalhes muito sutis, que normalmente não causariam reação. Dava-se o efeito bola-de-neve: o sucesso gerava matérias e despertava mais curiosidade, fazendo com que os cinemas permanecessem lotados. O percurso do filme era surpreendente: cada relativa queda de público era logo seguida por outra elevação. Na época, o raciocínio de distribuição era diferente do que prevalece hoje. O cinema não vivia só de picos, em altíssima rotatividade, mas também das médias obtidas por uma determinada sala. Historicamente, o sucesso do Carlota não é fenomenal, se comparado com os 12 milhões de espectadores de filmes brasileiros do passado. Mas o fato de ter vendido 1,3 milhão de ingressos, num momento em que os filmes nacionais faziam, quando muito, 70 mil, foi digno de nota. Carlota rendeu 10 vezes o valor investido, que foi de aproximadamente 600 mil reais. Ficar um ano em cartaz é façanha que dificilmente se repetiria com o panorama de distribuição atual. Não botei o cavalo para correr em festivais competitivos. Normalmente, não gosto desse esporte, desde quando era atriz. Talvez por timidez, o fato é que não aprecio festivais. Não tenho nada contra prêmios em si, mas o ambiente de competição me desagrada. Já disse por aí que prefiro um cinema lotado a uma Palma de Ouro. De que adianta ganhar 500 prêmios se o filme não for visto por ninguém? Não tenho dúvidas de que cumpri meu objetivo de instigar uma reflexão sobre a História do Brasil. O filme foi um hit estudantil, suscitou teses universitárias e, durante três anos, havia perguntas no exame vestibular a ele relacionadas. Quando foi lançado em VHS, nossa meta de vender 7 mil cópias foi superada em pelo menos três vezes. A construção do Carlota foi voltada para o público interno, com um humor bem nosso, até certo ponto tributário das chanchadas da Atlântida. Não era um típico produto de exportação brasileiro, daí sua carreira relativamente modesta no exterior. Foi convidado para vários festivais. Guardo boas lembranças de exibi-lo na mostra Finestra sul’Imagine, do Festival de Veneza, e numa exótica mostra itinerante de filmes de mulheres ao longo do rio Danúbio. No Barbican Center de Londres, fez cerca de 10 mil espectadores em três semanas de exibição. Na Espanha, ganhou uma sessão especial para o Rei Juan Carlos. Mas nessa eu não estava presente, nem nunca soube o que Sua Majestade achou da minha visão da corte espanhola. Em Portugal, cheguei a apresentá-lo com sucesso num festival do Porto, mas, curiosamente, ninguém jamais se interessou em lançar essa grande pilhéria em torno da digníssima Família Real. A grande “saia justa” por que passei foi em Londres, quando o embaixador brasileiro convidou o seu colega português para uma sessão especial, sem o meu conhecimento. Eu gelei, temendo um incidente diplomático constrangedor. Durante a projeção, todos riam, exceto o embaixador português. Ao final, ele se limitou a me cumprimentar com um comentário educado: Pois é muito espirituoso o seu filme... A idéia um tanto heróica de que eu saía com as latas do Carlota debaixo do braço precisa ser devidamente matizada. Eu não ficava suplicando salas para colocar o filme. A verdade é que ele andava sozinho. E eu o seguia como a mãe superprotetora de um filho que ia criando o seu próprio caminho. Estive presente em cada novo passo de sua trajetória. Na maratona de pré-estréias pelo Brasil, eu costumava chegar de manhã, ia direto para o cinema testar a cópia, regular o som da sala, verificar a passagem de rolo etc. Em Salvador, descobri que faltava um rolo do filme, que só chegou 10 minutos antes da sessão de gala por uma brava intervenção do meu amigo Jorge Honório, que trabalhava numa companhia aérea. Nada disso era feito por sacrifício, mas pelo simples prazer de cuidar do filme. Por isso não me vergo ao peso do título de heroína da retomada que apareceu por aí. Sem dúvida, Carlota fez um movimento de virada, mas foi resultado de uma química coletiva, em que eu apenas segurava a bandeja. Nunca me senti responsável por nada além do próprio filme. Cuidei para que as minhas dificuldades na realização não vazassem para o público. Afinal, quem iria interessar-se pelo filme de uma chata que vivesse chorando suas mágoas nos jornais? Longe disso, eu procurava irradiar sempre uma atmosfera positiva, transformando a espera por patrocínio em tempo de maturação do projeto. Aos patrocinadores, eu não aparecia como uma artista parada, que dependia de um OK para sobreviver, mas como alguém que tinha uma ótima idéia e estava prestes a concretizá-la. Não estava mentindo, mas sendo fiel ao que realmente acreditava. Ora, tudo é difícil no Brasil, e não apenas fazer cinema. Já nos últimos tempos da Embrafilme, o que mais se via eram pessoas reclamando, ostentando seu sofrimento, ou xingando-se por intermédio da imprensa. Isso certamente ajudou a afastar o público dos filmes. Ninguém destrói uma atividade a não ser os que a exercem. Por outro lado, o Carlota foi o primeiro momento na minha carreira em que perdi o medo e as dúvidas sobre o que queria fazer. Lembro-me de que o Jabor me aconselhou, bem no início do processo, a não mexer nessa caixa de fracassos que era o filme histórico. De fato, aquele contexto era de total aversão do público ao filme de época brasileiro. Para muita gente, eu estava entrando numa cilada. O Jabor até hoje brinca comigo, dizendo que fez papel de tolo. Fiz o filme porque tinha uma equipe disposta a driblar os problemas de produção por meio da linguagem. Do primeiro ao último fotograma, tudo foi uma questão de encontrar soluções criativas e baratas. Eu sabia que havia uma forma prazerosa e despretensiosa de contar aquela história. Nunca previ o sucesso que viria, mas sabia que tocava em algo interessante para as pessoas. Capítulo X Patroa de Ópera, Serva da Música Embora venha de família italiana, não herdei qualquer iniciação especial no mundo da ópera. Nunca fui melômana a ponto de ficar comparando gravações, brigando por causa de preferências, essas coisas que fazem os apaixonados pela música lírica e os clássicos. Tampouco fiquei imune ao prazer de ouvir as grandes óperas, observar atentamente suas estruturas e apreciar as relações entre música e ação cênica. Isso sem contar o meu eterno fascínio pelos teatros de ópera. Muita gente reparou que Carlota Joaquina tinha algo de operístico em sua estética. Entre essa gente estava a diretora do Serviço Social da Indústria (Sesi) de Minas, Maria Alice Martins Alves Costa. Ela me convidou para dirigir a montagem de La Serva Padrona, em 1996, no Teatro Sesiminas, em Belo Horizonte. Assim eu fazia minha entrada em universo que por algum tempo já povoava minha imaginação. As proporções modestas da ópera de Giovanni Battista Pergolesi, apesar de sua enorme qualidade musical, certamente facilitaram esses primeiros contatos: três personagens, poucos cenários, curta duração. O saudoso maestro Silvio Magnani foi meu primeiro grande instrutor nos aspectos mais técnicos da música. No mais, era disponibilizar-se para o que a música exige. Em matéria de sintonia com os maestros, não tenho do que me queixar. Na ópera, a música e a cena são mundos em constante diálogo, daí a necessidade de uma interação cuidadosa. À exceção do Isaac Karabitchevsky, todos os meus maestros assistiam a ensaios de cena, onde eu já identificava os pontos cruciais para eles, suas necessidades em relação à performance dos cantores, como nos sextetos, nas árias mais complicadas, etc. Não compartilho o medo que existe por aí em relação às convenções da ópera. Objetivamente, elas hoje não existem mais. Você pode fazer tudo com um cantor, desde que não o atrapalhe de cantar. No fundo, o diretor ilumina a cena para o momento musical ser o melhor possível. Não há como fugir à evidência de que se está num palco, com um maestro, uma orquestra de dezenas de instrumentos e algumas vozes sem microfone. O diretor precisa ter a consciência de que está encenando e ao mesmo tempo servindo à música, que é o fundamental. Mesmo assim, há sempre espaço – e muito – para a autoralidade. Depois de La Serva Padrona, eu iria dirigir Madama Butterfly em São Paulo, Rio e Brasília, a partir de 1999. Esta ópera de Puccini é uma das mais freqüentemente montadas em todo o mundo. Em diversos vídeos a que assisti, reparei que a tragédia da Butterfly costumava ser conduzida não tragicamente, mas dramaticamente. Já na primeira cena a protagonista estava sofrendo como quem vai matar-se na última. Tratei de alterar completamente esse modo de interpretação. Minha Butterfly começa como uma gueixa cega de amor, plena de esperança de que aquele homem, o Tenente Pinkerton, vai realmente voltar. Para o espectador que já conhece a história, a dimensão trágica fica ainda mais evidente. Aos mais leigos, eu ofereço o prazer de descobrir o enredo, em vez de simplesmente conviver durante quase 3 horas com uma mulher à beira do suicídio. Com relação à Carmem, de Bizet, que dirigiria em 2001, eu não engolia aquela empregada de tabacaria posando sempre como diva fatal, vestida para matar em vermelho, saltos altos, etc. Eu compreendia a Carmem como dona de uma sensualidade moleque, cigana, descalça, eivada de traços masculinos e femininos ao mesmo tempo, o que é até mais atraente. Uma mulher que, 10 minutos depois de dar as caras, já está riscando com a navalha o rosto de uma colega e sendo arrastada para a prisão não podia ser tão chique como costumava aparecer. Já no final, quando ela se casa com o toureiro e fica muito rica, a embalagem chique não pode esconder totalmente a tabaqueira safada do início. Ela é a mesma mulher, só que mais arrumada. Esse é o tipo de intervenção a se fazer com os cantores e a caracterização. Nas quatro óperas que dirigi, trabalhei com cantores excelentes, brasileiros e internacionais. Profissionais dispostos a viver os papéis em profundidade e solidamente preparados para se movimentar bem, sem problemas com a ação associada ao canto. Dessa maneira, pode-se fazer coisas bárbaras. Antes de começar os ensaios com música, eu tenho por hábito fazer leituras de mesa com os cantores, quando afinamos nossos instrumentos no que toca aos sentimentos das personagens. Mas há também uma infinidade de recursos cênicos em que o diretor pode deixar sua marca. Na Butterfly, por exemplo, elegi o papel como referência para cenários, figurinos, perucas, etc. Tudo lembrava a consistência do papel. Esse é um dos elementos que mais aprecio na cultura japonesa. O papel é delicado, romântico e ao mesmo tempo prático, rápido e moderno. Minha relação com a luz cinematográfica influencia, é claro, algumas soluções que aplico à ópera. Ainda na Butterfly, por exemplo, na famosa cena da noite que antecede a chegada de Pinkerton, a do coro a bocca chiusa, fiz com que as luzes se apagassem, deixando apenas as silhuetas em sombra chinesa dentro da casinha, que aos poucos iam desaparecendo também para dar lugar à projeção de imagens do inconsciente da Butterfly: a tempestade, as ondas, o barco tão esperado. A questão da autoria em ópera é complicada. Na sua época áurea, os compositores tinham outra concepção de direitos autorais. Um pegava a música do outro, a transformava, incluía na sua ópera; emprestava-se, roubava-se, adaptava-se. Não se valorizava tanto a exclusividade. Por outro lado, quem trabalha com essas óperas hoje encontra ali uma partitura e um libreto dos quais não deve fugir. Certas gags e situações se repetem porque têm mesmo que se repetir. Estão escritas. Como encenadora, não fico angustiada para fazer diferente. Até certo ponto, acho que é para ser igual, mesmo. Acho que o essencial é integrar o espectador na emoção das personagens. Se pensarmos bem, estamos trabalhando com um repertório de sons que não existem mais no nosso cotidiano. Para absorvê-los na alma, em vez de rejeitá-los, precisamos estar confortavelmente entrosados na história. A ópera tem uma inequívoca vocação popular. Os libretos tratam de amor, disputas básicas, morte, etc. O espetáculo abrange música, dança, comédia, drama, tragédia, tudo com um colorido, uma intensidade e uma dinâmica que, digamos, não devem nada ao cinema. Bodas de Figaro ostenta mais agilidade do que qualquer corte de imagem. O corte, aliás, é um mero picote, se comparado ao rendilhado de vozes e instrumentos musicais de uma ópera, verdadeiros tecidos de sons. Portanto, não existe rejeição do público às óperas. O que existe são óperas mal montadas. Diversas razões me levaram a adaptar La Serva Padrona para o cinema. Primeiro, é claro, porque adorei a montagem. Depois porque a produção seria relativamente simples. Mas também achava que o filme poderia ser uma adequada e deliciosa introdução ao mundo lírico para crianças. Por fim, queria fazer um primeiro registro brasileiro de ópera em película de 35 milímetros. Muito antes de pensar em filmar ópera, eu já havia me deliciado com filmes como A Flauta Mágica, do Bergman, e principalmente com o deslumbrante La Tragédie de Carmen, do Peter Brook. Mas, ainda uma vez, não tomei nenhum filme-ópera como modelo. A idéia era filmar no próprio palco do Sesiminas, usando o cenário da versão teatral, que se restringia à cozinha onde se passa a maior parte da ação. As cenas do quarto do patrão Uberto seriam rodadas no Teatro João Caetano, no Rio, complementadas por umas poucas externas em Teresópolis. No Sesiminas, em alguns momentos, fechamos a quarta parede para dispor de uma perspectiva de 360 graus. Decupar o Serva foi um trabalho delicioso, que fiz com a Flávia Alfinito, minha diretora-assistente. Aliás, logo depois de filmar o Serva, eu atuaria no curta Antonio Carlos Gomes, dirigido pela Flávia. Eu fazia uma atriz italiana que chegava a Belém do Pará, local onde morreu Carlos Gomes, para participar de uma encenação dos últimos momentos do maestro. Uma das codificações básicas que estabeleci, junto com o Breno Silveira, foi rodar os recitativos com câmera parada, tripé e cortes secos, enquanto nas árias a câmera se deslocava, bailava, na mão ou em carrinhos. As pessoas podem não perceber isso, mas são embaladas por essa pontuação. Eu queria traduzir na imagem a respiração musical que a ópera tinha. Nesse ponto, acho que o filme ficou fechadinho como um ovo. La Serva Padrona é a clássica história do patrão que se apaixona pela empregada. No fundo, é uma ópera picante, com um subtexto sexual bastante claro. No filme, há um close da bunda da Serpina, o primeiro plano que eu mesma rodei na vida – depois de tudo preparado pelo Breno, é claro. Para ajudar na compreensão da história, criei subsídios de imagem como a abertura com o libreto animado, o prólogo em que Uberto tem um pesadelo com a Serpina e o interlúdio em que ele a imagina indo embora com uma trouxinha, encontrando o noivo, etc. Nas filmagens, os recitativos, acompanhados pelo cravo, foram rodados ao vivo, com som direto, enquanto as árias com orquestra eram feitas em playback. Nessas partes, o som original das cenas contém meus gritos de Canta! Não me enrola!, porque os cantores – sobretudo os que não estão acostumados com o playback – tendem a fazer a mímica sem o esforço correspondente, o que não apenas fica inconvincente, como também gera uma defasagem fatal no resultado. Eu os instigava sempre a cantar a plenos pulmões, como no palco. Tive a vantagem de trabalhar com José Carlos Leal e Silvia Klein, os mesmos que havia vivido os papéis no teatro. Eles renderam igualmente bem diante da câmera. Cantores de ópera, aliás, têm a virtude da obediência, adquirida no trabalho com a música. Eles escutam muito bem e se disponibilizam inteiramente para as orientações do diretor. A direção musical foi do maestro Silvio Viegas, ex-assistente do Silvio Magnani, com quem vim a estabelecer uma frutífera parceria nos anos seguintes. Minha irmã Carina fez a assistência de iluminação para o Breno, buscando um equilíbrio entre luz de teatro e luz de cinema. Ela estudou esse métier na França e tem ótimas idéias a respeito de luz, até mesmo em função de seu trabalho com a pintura e o desenho. Deixo o Thales Pan Chacon para um espaço especial adiante e passo ao elenco coadjuvante, formado na verdade por um único ator – que nem ator era. O cenógrafo Renato Theobaldo, com quem voltei a trabalhar em outras óperas, faz o pequeno papel do noivo da Serpina, substituindo um figurante que não apareceu. Ele tinha o tipo magrão de commedia dell’arte que eu procurava. Isso, aliás, já me havia acontecido de maneira ainda mais dramática no Carlota Joaquina. O ator que faria o papel do Padre José Maurício fez forfait e eu tive de apelar para a camareira Cacilda, mulata como o frade-compositor. Ela foi perfeita, tocando cravo com um delicioso aplomb de teatro infantil. Foi muito prazeroso propiciar a iniciação de vários membros da equipe no espírito da ópera – vê-los descobrir as relações entre imagem e música, ouvi-los decorando trechos das árias, etc. Um assistente de montagem chegou a memorizar a ópera inteira, entre comentários do tipo: Eu deixaria essa mulher fazer o que quisesse comigo, até gritar no meu ouvido. Cada um a sua maneira, todos ficaram encantados. A filmagem de La Serva Padrona não consumiu mais que oito dias. No quesito produção, eu sabia que estava tomando o caminho oposto ao do Carlota. Era mesmo o que eu pretendia. Não queria ter a sensação de perseguir o mesmo tipo de sucesso. Eu tinha plena consciência de que um filme de ópera não teria 1,3 milhão de espectadores. Seria um empreendimento pequeno, para ser tocado de maneira rápida e econômica. Foi muito fácil fechar os patrocínios da Telemig e da Volkswagen, além do próprio Sesi. Considero um mau passo a exibição em première na HBO, em parte devido à mentalidade dos exibidores na época. O Severiano Ribeiro fechou suas salas para o filme. Só consegui os meus 75 mil espectadores graças ao interesse do Cinemark e do circuito Unibanco, no Rio e em São Paulo. Tirei apenas sete cópias, que passaram também em Porto Alegre, Brasília e Belo Horizonte. O resultado não foi de todo mau para um filme do gênero, mas poderia ter sido um pouco melhor. Fui compensada com um bom aproveitamento no Projeto Escola, onde as crianças eram recebidas num minicenário de ópera por um cantor ou cantora que explicava a função do maestro, os tipos de voz, etc., antes de começar a exibição do filme. No Rio, eu vendia ingressos a 2 reais para alunos de escolas particulares e repassava a receita integral para o Cinemark, em troca de poder levar de graça o mesmo número de crianças de escolas públicas. A essas, eu pedia apenas que fizessem desenhos ou redações sobre a história da nossa querida serva patroa. La Serva Padrona foi o último filme do Thales. Ele já estava com Aids, mas guardamos o segredo entre nós, tamanho era o estigma da doença na época. As pessoas tinham que se esconder como se fossem ratos disseminadores de uma praga. Aquele segredo, aliás, ficou trancado dentro de mim, mas visível no corpo a ponto de ser notado pelo meu terapeuta de bioenergética. Ele um dia me questionou sobre algo que eu recusava a expor. Como eu continuasse fechada, ele propôs um exercício corporal que me provocou uma crise de choro por horas a fio. Já em casa, à noite, eu chegava a rir de tanto que chorava. Mas nunca abri a boca sobre o assunto. Eu e o Thales havíamos comprado o sítio de Teresópolis como um projeto de autoproteção, num pedaço de terra calmo e bonito. Eu sempre imaginei um sítio como um lugar para envelhecer. Não um condomínio pronto, mas um espaço livre onde eu pudesse produzir coisas – fosse plantar camomila, fosse montar um estúdio de cinema ou uma escola para crianças. Fomos muito felizes ali. No Serva, tanto no palco como no filme, ele fazia o criado Vespone, que se acumplicia a Serpina para extrair o matrimônio do patrão. Embora fosse mudo no teatro, eu achava que o Vespone cinematográfico precisava de um instrumento que o expressasse. Sugeri ao Silvio Viegas usar um fagote, em acréscimo musical composto especialmente para o filme. Vespone tem a marca da improvisação corporal e do talento cênico do Thales. Ele se divertiu a valer criando ações como a de tourear o patrão. A maior dificuldade era torná-lo feio o bastante para não fazer concorrência desleal ao José Carlos, que, afinal, era Leal até no nome. A tarefa era desafiadora porque o Thales tinha porte estelar e estampa de galã. Quando finalizamos o filme, ele já havia falecido. Resolvi prestar-lhe uma homenagem nos créditos finais. Botei um dublê em silhueta para reger a música. E uma dedicatória que inclui trecho do libreto de G.A. Federico: Thales meu lindo, per te io ho nel core il martellin d’amore. Para sempre, Carla. O piccolo maestro está regendo na lua. Era onde eu imaginava que o Thales estava. Capítulo XI Planeta Copacabana Oscar Wilde disse que o corpo nasce jovem e a alma, velha. Com o passar da idade, a alma fica jovem e o corpo envelhece. Para mim, a tragédia humana está aí. Todos temos que lidar com essa bipolaridade, o que requer um bocado de savoir faire. No meu caso, tento não levar a vida muito a sério. Sou uma pessoa ligada à comédia, adoro o viés anarquista das chanchadas. Chancho naturalmente em qualquer assunto. Levar a vida a sério é uma grande perda de tempo. É claro que não me refiro aos compromissos e à ética, que esses são sagrados, mas à relação dramática com as coisas. Afinal, a vida é tão efêmera, incontrolável e imprevisível que o melhor a fazer é saboreá-la. Envelhecer, para mim, é colocar a vida em luta contra a falência do corpo. Comecei a observar isso melhor num período dos anos 1990 em que dei assistência à madrinha do meu pai, Violeta, moradora de Copacabana. Foi quando percebi que Copacabana tinha se tornado um bairro de idosos convivendo com todas as loucuras e o cosmopolitismo do lugar. Essa coabitação aparentemente absurda tem um efeito dos mais saudáveis: tira a poeira do envelhecimento. Antes de lidar com isso, a terceira idade para mim era uma fase reclusa, boa para o alto de uma montanha. Hoje, pelo contrário, acho que um apartamento em Copacabana chega a ser um projeto atraente para o futuro... Daquela experiência nasceu a idéia de fazer um filme sobre a velhice e Copacabana. Como sempre, meu processo de criação começa pelo tema. A passagem à história vem numa segunda etapa. De saída, me coloquei o desafio de encontrar um tom alheio tanto à depressão que costuma acompanhar os assuntos velhice e morte, quanto às tolices que se cometem quando se quer fugir ao peso do emocional. Não, Carla, Copacabana não haveria de ser uma chanchada. Nada de velhinhos que tomam uma pílula e viram coelhinhos saltitantes. O filme trataria de um prédio cujos moradores eram amigos, mais ou menos como aquele em que morava a Violeta. Mas ainda faltava encontrar o núcleo central. Nem sempre as histórias chegam prontas à nossa cabeça. Elas às vezes ficam vagando, como almas penadas, até que a solução se apresente. A solução aqui foi um retrato do pintor francês Georges Braque pelo fotógrafo Paul Strand, que veio bater às minhas mãos. Aquele homem elegante, de postura e olhar firmes, pareceu-me a imagem do velho ideal. Eu tinha, então, a inspiração para o personagem de Alberto (Marco Nanini). Podia começar a escrever o roteiro. Gostei da Melanie Dimantas desde que a vi subir ao palco do Festival de Gramado, em 1991, para receber um prêmio como co-roteirista de Não Quero Falar Sobre Isso Agora. Ela brincou, oferecendo-se a quem quisesse convidá-la para trabalhar. Eu a convidei para o Carlota quando já estava com o roteiro pela metade. Desde então, sinto um enorme prazer em sentar-me com ela para escrever a quatro mãos. Nós literalmente pensamos juntas, fazemos a escaleta (esquematização das cenas) e escrevemos os diálogos. Minha escrita não é propriamente técnica, mas por impulsos. A Melanie é ótima para escrever comédias porque ela própria é muito crítica, muito cortante. No nosso processo, os diálogos tomam forma desde cedo. Um dos grandes segredos do roteiro está na melodia do diálogo. Como sou atriz, posso reproduzir na escrita a musicalidade e as intenções que aquilo pode ter. Considerando o timbre de cada ator, penso já numa forma de encaixar melhor as falas em sua boca. Em Copacabana, criamos os diálogos tendo em vista exatamente aqueles atores. Para ampliar ainda mais o leque de visões sobre a terceira idade, chamei a Yoya Würsch para auxiliar no roteiro. Se tenho alguma crítica ao Copacabana, é que eu quis falar de coisas demais. Tenho a sensação de que a grande quantidade de informações dissolve um pouco a relação entre as personagens. A pesquisa da Laís Rodrigues era tão saborosa que não queríamos perder nada. O desenvolvimento do roteiro foi muito pautado por essas informações: a história do bairro, a relação com a santa boliviana, os fatos marcantes ao longo da vida de Alberto, etc. A Laís tem um tino de pesquisa muito apurado e amplo. Ela descobriu o acervo do colecionador de filmes Manuel Melo Machado, com imagens de Copacabana em diversas épocas, que viraram a memória do protagonista. A memória deveria ser tratada como uma espécie de presença virtual, transporte mental para um universo paralelo onde Alberto não perdesse suas características físicas atuais. Ele não seria transportado, mas estaria no passado de visita. Como o azeite e o vinagre, que não se misturam mas dividem o mesmo espaço. Eu gostaria de ter sido mais radical na definição dos tons de cada época. Nas discussões iniciais, pensava em atribuir cores de aquarela ao início do século passado e, à medida que fôssemos entrando na atualidade, usar cores mais vibrantes e luminosas. Mas o diretor de fotografia Marcelo Durst e a Emília Duncan achavam que o preto-e-branco nos defenderia melhor de algum contratempo. Isso fez com que eu filmasse várias cenas duas vezes, em cor e em PB. A dúvida persiste em mim até hoje. O Alberto de Copacabana reúne um pouco da imagem do Braque de Paul Strand, um toque do sarcasmo do meu avô materno, que era médico, e muito da energia e do prazer de se divertir que são próprios da minha avó Celima. Do meu avô paterno há características espalhadas por várias personagens, entre elas o confeiteiro Enrico. As lembranças do nonno são tão vastas que poderiam inspirar um filme todo seu. As músicas que tocam no filme são as preferidas da minha avó, que foi uma espécie de diretora musical informal. A religiosidade do Alberto também é um traço da Celima. Lembro-me de uma vez, quando perdi um primo, em que ela brigou com Deus. Era horrível vê-la brigada, faltando à missa. Seu fervor é tanto que vez por outra eu lhe peço que faça alguma promessa por mim junto ao Sagrado Coração de Jesus. Pede aí, vó, que eu pago a promessa. Até hoje, não posso me queixar desse tráfico de graças. A Celima aparece no filme jogando cartas na rua. As irmãs Salma (Laura Cardoso) e Salete (Walderez de Barros) são inspiradas numa vizinha da minha infância, à qual já me referi. Mas o roteiro contempla também memórias familiares da Melanie e da Yoya. É uma tapeçaria de lembranças retrabalhadas, pesquisa e invenção. Tem alguma coisa do movimento das ondas na praia, levando e trazendo nossas aspirações e temores. Numa gag que atravessa o filme inteiro, dois porteiros ficam apostando sobre qual dos velhinhos vai morrer primeiro. No final, eles próprios acabam morrendo atropelados antes de todos. Essa ironia repercute um pensamento que vem da época da doença do Thales. Entre o dia em que soubemos que ele tinha Aids e o momento de sua morte, faleceu muita gente saudável. Para mim, isso sublinhava que a vida é um jogo alheio ao nosso controle. As pessoas se afastavam dos amigos, relegavam-nos à completa fragilidade, achando que com isso preservavam a sua própria vida. Mas não adianta preservar a vida a qualquer custo porque ela não nos pertence. O que importa é manter a dignidade. Se vamos morrer, façamo-lo dignamente. Para o elenco, nunca tive dúvidas quanto à escalação do Nanini. Um dos melhores atores do mundo, ele é do tipo que percorre integralmente todos os caminhos da fantasia que faz de cada personagem, o que lhe dá segurança para os papéis mais arriscados. É um ator concentrado, muito denso, mas também extremamente maleável, como se fosse de massa. No set, é uma das pessoas mais agradáveis que conheço, apesar de às vezes irritar-se com a algazarra e impor a ordem sem papas na língua. Sua preparação para Copacabana era muito delicada, em função das várias idades do Alberto. Enquanto as demais personagens tinham outros atores correspondentes na juventude, o Alberto era o único a ser interpretado sempre pelo Nanini. Há pessoas que se metamorfoseiam ao envelhecer – engordam, mudam de fisionomia, etc., como lagartas-borboletas. Outras conservam o mesmo formato, o que foi o caso do meu avô Laerte. Com isso eu queria expressar uma possibilidade da velhice, que é a pessoa se manter fiel a si própria, a toda uma estrutura e uma lógica que permanecem imunes ao tempo. O Nanini seria capaz de mudar o andar, o olhar, etc., para o passado e o futuro, sem deixar de ser a mesma pessoa. Foi uma pena ter-me deixado trair pela peruca, elemento que viria a ser criticado mais tarde. A primeira opção era tão ruim que acabei me satisfazendo com a segunda, apesar de não ser tão boa. Para que o Nanini suportasse as longas sessões de maquiagem, desde o Carlota Joaquina, eu lhe ministrava doses regulares de Florais de Bach contra a impaciência. Aos demais atores do elenco, nas horas difíceis do dia, eu dava florais contra o cansaço. O efeito é imediato e mágico. Mas – é bom que fique claro – ninguém é obrigado a tomar. Eu tomo há muitos anos e acredito que, se consumido em escala global, os florais poderiam mudar o mundo. Os amigos de Alberto são vividos por um time de atores maravilhosos como a Myriam Pires, o Luís de Lima, a Laura Cardoso, a Walderez de Barros, a Ida Gomes, a Ilka Soares, o Felipe Wagner, a Renata Fronzi, o Pietro Maria e o Leo Alberty. No prédio onde filmamos, tínhamos um apartamento alugado para eles e toda a parafernália da filmagem. A festa ali era permanente, da mesma forma como aparece no filme. Ao mesmo tempo, eram todos exemplarmente disciplinados, sempre presentes na hora marcada e com o texto pronto. O mais engraçado era na hora dos figurinos de praia, que ninguém queria usar, alegando celulite, barriga, perna fina, etc. Eu acho absurdo o tratamento geralmente dado aos atores idosos entre nós. O Brasil aposenta os seus atores cedo demais. É mais um sintoma de desvalorização da velhice, que precisamos combater. Na nossa febre de juventude, não vemos que as qualidades da interpretação só fazem melhorar com a idade. O ator mais velho já desenvolveu um conhecimento dos seus recursos, uma habilidade corporal, um domínio de voz que raramente se consegue em idade jovem. Por outro lado, são poucos os atores adolescentes realmente bons. A Rogéria é outra personagem que não podia faltar nesse pequeno painel de Copacabana. Ela é um ícone da diversidade sexual do bairro, uma pitada do humano pitoresco que faz parte do cartão-postal. Muito antes de eu sequer escrever o roteiro, ela já dava entrevistas contando que tinha sido convidada para participar do filme. No set, cuidava de todo mundo, supervisionava a maquiagem, ajudava a resolver imprevistos. Mesmo com um figurino apertadíssimo, ela achava tudo positivo, tudo maravilhoso. Rogéria total. Na seqüência da festa, procuro sintetizar Copacabana como o espaço da mistura, o bairro onde uma sóbria senhora de 90 anos mora ao lado de um travesti ou de uma jovem prostituta e faz amizade com eles. Personagens como o travesti e o menino engraxate vêm do universo paralelo que também está no filme, ligado à rua, à boate da Rogéria, às andanças do Alberto, o mais boêmio dos velhinhos. Alberto tem um pouco dessas pessoas que se sentam no bar ao lado da boate Help, na Avenida Atlântica, somente para ficar olhando o movimento, por puro voyeurismo. Na cena da dança do Danúbio Azul, aconteceu um desses momentos inesquecíveis de uma filmagem. O negativo acabou, mas meus gritos de Corta! foram abafados pelo som da música. Os atores e figurantes continuaram a valsar alegremente, só percebendo que não estavam mais sendo filmados quando viram a mim e à equipe deslizando também aos acordes de Strauss. * * * Se não contarmos o documentário Bastidores, nunca rodei um filme inteiramente falado em português. Quem Tem Medo de Irma Vap? será o primeiro. A Mulher Fatal... era uma comédia muda com intertítulos; Carlota era dialogado em português, espanhol e inglês; Copacabana tem suas seqüências bolivianas faladas em espanhol. No fundo, eu me divirto um bocado escrevendo em outra língua. Nossa intenção inicial era filmar toda a história da Nossa Senhora de Copacabana in loco na Bolívia. Fizemos três viagens de prospecção, mas mudamos de idéia em função dos custos e das distâncias. A relação com os índios bolivianos também não era muito fácil, uma vez que eles se sentem explorados e, em decorrência, exploram também. Além disso, quase todos tinham cabelos curtíssimos, dentes de ouro, etc., sem nada dos incas maravilhosos que procurávamos. Rodamos apenas a saída da procissão da catedral da santa, às margens do Lago Titicaca. Depois trouxemos as roupas e filmamos o resto aqui, com integrantes de um grupo boliviano. A conexão, a meu ver, ficou perfeita. A narração do episódio foi complementada com uma animação de sombras, bem ao meu estilo. Mergulhados em velhas revistas durante a fase de pesquisa, topamos com uma foto de procissão sul-americana em que o andor se assemelhava a um grande bolo. Emília foi quem teve o estalo de dar a mesma forma ao andor e ao bolo de aniversário do Alberto, como uma reverberação do histórico no pessoal. Os primeiros dez dias de filmagem foram no Copacabana Palace. Hospedei-me no anexo do hotel durante três meses de pré-produção, curtindo minha relação emocional com o lugar e preparando a locação. Eu tinha muito medo da experiência. Nunca tinha filmado ali, embora já tivesse me apresentado no teatro do hotel com Cartas Portuguesas. Ali filmamos a conversa no bar da pérgula e várias seqüências de baile, quando chegamos a ter mais de 150 pessoas envolvidas. O manager colocou todos os salões à nossa disposição, o que só aumentava a responsabilidade por não causar nenhum problema para o funcionamento do hotel. Controlávamos desde os trajes até o volume de voz da equipe, identificando a todos com camisetas da produção. Filmávamos sempre à noite e, ao final, saímos entre elogios ao nosso comportamento exemplar. Na cena do grande baile, quando Nanini e Fernanda Badauê dançam sob aqueles lustres maravilhosos, fiz um dos meus planos-seqüência preferidos. Não filmei na célebre cozinha onde meu avô trabalhava porque ela havia sido amplamente modificada. Mesmo assim, agradeço aos céus que aquele prédio magnífico não tenha jamais se convertido num shopping center. Nas areias da praia do Leme, construímos o set de um posto antigo que virou atração turística temporária. Era onde dispúnhamos de uma faixa mais larga de areia com uma boa perspectiva de Copacabana ao fundo. Cenas como o carnaval na praia, a corrida dos porcos e a passagem do elefante foram rodadas nessa minúscula Cinecittà à beira-mar. A travessia da pequena elefanta desde o circo do Beto Carrero, no Centro, até o Leme, escoltada por batedores, foi uma sensação à parte. Copacabana teve o planejamento e a produção mais complicados na minha carreira até então. E também a maior equipe, maior até do que a escala em que eu gosto de trabalhar. Com equipes grandes (e olha que não era nenhuma superprodução), temos que começar a delegar e acabamos perdendo em qualidade e agilidade. É muito ruim ter quatro caminhões atrás de você. Este foi o primeiro filme em que não tomei a dianteira da produção, mas continuei a me envolver a cada passo, a cada trombada, mantendo o controle em minhas mãos. Às vezes sinto vontade de sair por aí com duas ou três pessoas, leve e solta, para fazer um documentário... * * * Um dos planos que mais aprecio em Copacabana é o ponto de vista do caixão de Alberto em direção ao teto e ao rosto dos seus amigos. Ana Maria Moraes criou aquele fundo levemente envelhecido, com um padrão que lembrava uma espiral, a espiral do tempo. O conceito de fotografia que eu tinha desenvolvido, de maneira estimulante, com o Marcelo Durst foi parcialmente prejudicado por sua saída já na terceira semana de filmagem. O Marcelo é um grande fotógrafo, mas sou forçada a admitir que não tivemos um bom entendimento no cotidiano do set. A equipe para mim tem que ser um mar de soluções, em vez de uma fonte de problemas. O José Tadeu Ribeiro o substituiu sem muita preparação e, nessas condições, foi um grande parceiro. Na trilha sonora, além das músicas preexistentes, há duas composições originais do Dani Roland, inclusive o belíssimo tema da memória de Alberto, e a canção Planet Copacabana, da Bia Pontes. A Bia tinha lido uma entrevista em que eu falava do projeto e definia Copacabana como um planeta. Entregou a gravação à Yoya numa boate e, ao escutá-la, identificamos logo a cara da mistura moderna que tínhamos em mente. A Cássia Eller deixou uma gravação inédita da música, que não usamos por ter ficado excessivamente rascante para a proposta do filme. A grande questão durante a montagem de Copacabana dizia respeito à última cena. Durante muito tempo, ficou editado o final em que o Nanini retira a maquiagem, calmamente, num banco de praia. Fiz várias enquetes entre o pessoal da equipe. Minha intenção era, por um lado, assumir o truque cinematográfico, assim como em dado momento desmascaro as perucas de Salma e Salete; por outro lado, queria estabelecer uma metáfora sobre a necessidade de se tirar a velhice de cima, deixando a alma aparecer. Mas tudo isso soava frágil, além de arriscado na relação com o ilusionismo do público. E, afinal de contas, a velhice não é para ser removida, mas para se conviver com ela. Abandonei a idéia, mas deixei o final alternativo como extra do DVD, junto a outras cenas cortadas. A finalização eletrônica e a confecção extensiva de efeitos digitais consumiram oito meses, sob a supervisão da Bianca Costa. Nesse campo dos computadores, minhas aptidões não vão muito além do uso como eletrodoméstico. Copacabana fez 240 mil espectadores nos cinemas, número aquém de suas potencialidades. Lancei-o com 15 cópias, chegando depois a 30, o que foi pouco para o momento por que passava a distribuição no segundo semestre de 2001. Mas o que mais prejudicou o lançamento foi o fato de ser identificado como um filme sobre a velhice, assustando os espectadores mais jovens. O público de terceira idade, no entanto, mobilizou-se em peso. O filme rodou por várias cidades no projeto BR em Movimento. No debate após a exibição num asilo de doentes mentais em Porto Alegre, um dos assistentes elogiou o filme, porém me questionou na opção por um filme filosófico, em vez de ganhar dinheiro com um exemplar de ação e violência. Na certa, achava que eu era uma louca. Fui obrigada a explicar-lhe que eu jamais saberia fazer um filme de John Woo, ou mesmo de Beto Brant. Aí mesmo é que eu perderia dinheiro, pois ficaria um péssimo filme de ação e violência, argumentei do alto da minha sanidade. Capítulo XII Entre o Palco e a Câmera Depois de realizar dois curtas e três longas-metragens, posso afirmar que o trabalho de dirigir um filme situa-se em algum ponto entre o ofício de um maestro e o de uma bordadeira. Do lado do maestro, a necessidade de entender um pouco de cada área, já que só assim se consegue coordenar a equipe inteira no mesmo rumo e transformar o pensamento em cinema. Do lado da bordadeira, a aptidão para construir tudo ponto por ponto, amarrando as várias linhas que dão forma à figura. Não tenho um método de trabalho muito definido, mas posso dizer que tudo começa nas minhas anotações. Geralmente tenho um caderno mais íntimo, que não levo para o set, onde faço anotações gerais: idéias, desenhos, etc. Nas páginas do roteiro, rabisco um sem-número de marcações de cena, storyboards, acréscimos de última hora, aspectos para discutir com os atores e a equipe. Aquilo vira uma bíblia indispensável. Sempre faço leituras de mesa, seja em filmes ou em óperas. A leitura é muito importante para se ouvir o filme. Vejo o roteiro como uma partitura, onde a música dos diálogos tem um papel fundamental para o bom andamento do filme inteiro. Por ser atriz, costumo ter a consciência dessa musicalidade muito clara. Escrevo o roteiro falando alto, mastigando bem as palavras. Muitas vezes, no set, tenho de exemplificar o que estou pedindo com a minha própria voz. Não raro volto a cena por causa de uma única palavra, que precisa ser ajustada ao tom do que o outro vai responder. A melodia tem de ser encontrada no grupo. Diálogo errado põe qualquer filme a perder. Normalmente, sou a primeira a chegar no set e encontro os técnicos montando o cenário. Faço a checagem da cenografia e em seguida vou cuidar um pouco da fotografia. Quando os atores chegam, dirijo a eles minha atenção, supervisionando os figurinos e a maquiagem enquanto repassamos o que será filmado no dia. É a hora do ajuste fino, a partir do que me oferecem a cenografia, o figurino e a própria contribuição do elenco. Eu diria que cumpro, em média, 70 a 80% da decupagem que levo para o set. O restante resulta de alterações in loco e improvisações. Sou aberta à improvisação dos atores, mas reservo-me o direito de selecionar o que acho que serve ao filme. O Nanini, por exemplo, é mestre em trazer idéias brilhantes para a cena. No Carlota, por exemplo, ele trocou uma música que deveria cantarolar por uma espécie de balbucio melódico, sem letra nenhuma, que ficou muito superior à proposta original. A prática de dirigir certamente influencia o meu lado de atriz. A minha atriz aprende muito ao ver o Nanini, a Walderez ou a Marieta trabalharem. Enquanto os estou dirigindo, estou também observando o processo de grandes atores em ação. E não é a mesma observação de alguém com quem se contracena. Como resultado, quando volto à frente de uma câmera, sinto que já sou uma atriz diferente. Quando nada, bem menos insegura do que no passado. * * * Não fujo à praxe de que todo cineasta tem mais projetos sonhados que obras no currículo. Eu adoraria filmar um Dostoievski. Ficaria muito feliz fazendo um filme para crianças, como Meu Pé de Laranja Lima. E Clarice Lispector, é claro. Gostaria de dirigir uma biografia do Lula, assim como um documentário sobre as diversas formas de se falar a língua portuguesa, ou outro ainda sobre a moda no Brasil (projeto da Bia Lessa que eu pretendia produzir). Faria com prazer um filme de ficção que simplesmente seguisse uma pessoa no mundo do hip hop. Só não penso em fazer uma história de amor banal, mesmo que dramática ou perto da vida, como se costuma dizer. Acho que não existem histórias de gente comum, já que todas as histórias são ricas e fascinantes. Daí preferir sempre o reflexo que bate no mito, na comédia ou na loucura. Enquanto dava uma série de entrevistas para este livro, em fins de 2003 e início de 2004, eu preparava a transposição de O Mistério de Irma Vap para o cinema. Mais uma vez, eu me afastava de uma visão naturalista do mundo. A peça de Charles Ludlam é um clássico do teatro do ridículo, uma paródia do Rebecca. O mais interessante, porém, é como trabalha a questão do duplo. O tema da peça, no fundo, é o ator, este eterno duplo, a consagração do duplo. Fazer o papel do sexo oposto é um dos extremos da representação. É fascinante para qualquer ator ou atriz. Irma Vap tem algo a ver com o teatro grego, em que homens representavam personagens masculinos e femininos, mas tudo feito numa velocidade estonteante, que era um dos trunfos da peça. Desde as primeiras conversas com o Nanini e o produtor teatral Fernando Libonati, nos demos conta de que seria preciso achar um código para transformar em linguagem cinematográfica aquilo que funcionava tão bem no teatro, mas somente ali. Assim, eu e a Melanie Dimantas, com a entrada posterior da Adriana Falcão, escrevemos um roteiro que parte do enterro de um veterano produtor teatral. Seu filho e seu sócio decidem remontar o maior sucesso da vida dele, que foi Irma Vap. Mas querem escalar o mesmo elenco que fizera a peça há anos. O desafio, então, será reunir novamente os dois atores há muito afastados dos palcos, ainda que seja para dirigir a nova montagem. Um deles (Ney Latorraca) virou figura decadente que faz shows de cover numa boate gay e vive com a mãe (Ney também). O outro (Marco Nanini) tinha sofrido um acidente e mora com a irmã (Nanini, é claro). À paródia do Rebecca acrescentamos uma de O Que Terá Acontecido com Baby Jane? No mais, Quem Tem Medo de Irma Vap? é uma sucessão de qüiproquós envolvendo duas gerações de atores, gente trancada em armário, doses industriais de Dormonid e uma peça que está sendo encenada e precisa passar ao segundo ato de qualquer maneira. Em lugar do entra-e-sai atordoante da versão teatral, teremos o duplo acontecendo simultaneamente na tela. Tecnologia para isso não é problema, mas dependeremos de um planejamento milimétrico e de muito, muito ensaio. Se a interpretação não for altamente sofisticada, correremos o risco de cair no pastelão puro e simples. Incorporamos ao roteiro uma série de ecos da história de Irma Vap nos palcos brasileiros, como a busca do preparo físico pelos atores, a relação com os figurinos, etc. Basta lembrar que o Ney ficou louco quando viu as roupas cor-de-rosa, os laços e as perucas vermelhas e cacheadas do Nanini, enquanto ele teria que se contentar com sisudos vestidos pretos. De galhofa, anunciou que sairia do espetáculo. Conta a lenda, aliás, que o Ney passou 11 anos ameaçando abandonar o castelo de Lord Edgar e Lady Enid. A filmagem dos exteriores será em São Paulo porque eu vejo Quem Tem Medo de Irma Vap?, num certo sentido, como um filme paulista. Ele precisa da coisa urbana, daquele mundão que é São Paulo. Há muitas seqüências de rua e, mesmo nos interiores, quero que vaze para uma cidade grande. São Paulo é um lugar onde as pessoas se perdem de fato, ficam anos sem ver umas às outras. No Rio de Janeiro, mais concentrado, essa possibilidade é mínima. No primeiro restaurante onde você chega, está todo mundo lá. * * * A tentativa de conciliar teatro e cinema na minha carreira teve uma passagem interessante no ano de 1999, quando a Xuxa Lopes e o Hector Babenco me convidaram para dirigir a peça A Rainha da Beleza de Leenane, do inglês de ascendência irlandesa Martin McDonagh. É a história da difícil relação entre uma mãe possessiva e sua filha única, interpretadas respectivamente por Walderez de Barros e Xuxa Lopes. O texto é claustrofóbico, mas tem uma comicidade reprimida que procurei ressaltar na minha direção. O Babenco dizia que eu dei um toque napolitano à secura irlandesa do original. A crítica carioca foi menos receptiva que a paulista, mas o público das duas cidades adorou. Para mim, a experiência serviu para confirmar algumas intuições a respeito das duas linguagens. No cinema, por mais que a gente lide com a ilusão, o resultado está sempre mais próximo da realidade. Já o teatro, por seu caráter ao vivo, propõe um jogo de abstrações em que a mentira fica muito clara. Das coisas mais divertidas que dirigi no palco foi a montagem de O Barbeiro de Sevilha, de Gioacchino Rossini, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, em 2003. Sete anos antes, quando fiz La Serva Padrona, o maestro Silvio Viegas tinha me presenteado com um vídeo da ópera de Rossini, dizendo que um dia gostaria de fazê-la comigo. Realizamos, afinal, esse sonho em ótimas condições, com um elenco e uma equipe fantásticos. O Barbeiro é uma ópera bufa, em que se pode explorar bastante os aspectos cômicos das estripulias do Conde de Almaviva. Ela requer dos solistas uma representação muito aguda e uma compreensão profunda das personagens. Toda a montagem foi acompanhada por crianças carentes de Betim, da confecção dos cenários aos ensaios. Era a Oficina da Ópera. Depois dali, eles partiram para criar uma encenação própria, que apelidaram de O Barbeiro de Betim. * * * Talvez seja o amor pelo trabalho que já me levou a transformar algumas relações de trabalho em relações de amor. Aconteceu assim com o Marcus Vinícius Cezar, diretor de Espelho d’Água – Uma Viagem no Rio São Francisco. Conheci-o quando ele trabalhava no canal Multishow e me propôs produzir seu primeiro longa. Eu gostava do seu curta Meu Vizinho Comprou um Carro e era atraída pela experiência de produzir um novo diretor. O roteiro também me agradava, com sua história de amor ingênua e bonita, conduzida pelo curso do Rio São Francisco. Parecia-me absurdo que um rio tão importante como o Velho Chico ainda não tivesse uma imagem forte no cinema brasileiro. Espelho d’Àgua aproveitava bem o enredo para cumprir também essa função. Gosto da maneira como no filme convivem atores famosos (Fábio Assunção, Regina Dourado, Aramis Trindade), um ator de teatro pouco conhecido como o Francisco Carvalho e um elenco local que praticamente documenta a região. É a tal mistura que tanto me fascina. Nesse caso, não fui uma produtora de campo, mas uma produtora executiva. Contratei toda a equipe e acionei as turbinas da Copacabana Filmes para viabilizar a produção, embora sem poder participar diretamente das filmagens em locação. Tive que curtir o São Francisco de longe, por meio do material filmado. É estranha a sensação de produzir sem estar dirigindo ao mesmo tempo. Se por um lado, não detenho o controle completo do que está sendo feito, por outro, sinto que aumenta a minha responsabilidade. Na fase inicial de produção, eu e o Marcus tivemos um namoro, mas a separação não afetou em nada a nossa relação profissional, nem muito menos o resultado do trabalho. A experiência com a distribuição dos meus próprios filmes despertou o interesse de João Jardim e Walter Carvalho para que a Copacabana Filmes e Produções distribuísse também o documentário Janela da Alma. Aquele era um filme muito especial, que tratava de assunto complexo – a visão – numa perspectiva filosófica, humana e poética. Logo entendemos que nenhuma investida publicitária poderia render mais que uma boa repercussão boca-a-boca. A publicidade pode até atrair os primeiros espectadores, mas não basta para consolidar o sucesso de um filme como esse. Nossa estratégia, então, foi criar o maior número possível de pessoas falando bem do filme. Fizemos uma série de pré-estréias, sessões em festivais e universidades, às quais o João comparecia para debater. A melhor coisa que tínhamos na mão era o filme em si. Bastava mostrá-lo, evidenciar suas qualidades. Acabamos tendo mais de 160 mil espectadores nos cinemas, o que para um documentário brasileiro continua sendo uma cifra excepcional. Capítulo XIII Mãe e Cidadã Antes de ser Antonio, ele foi Bento, foi Nino. Mas eu e o João, com quem estou vivendo desde 2001, esperamos para tomar a decisão depois de ver suas feições, recém-nascido. E ele era grande, todo massinha e parrudo. Um verdadeiro Antonio Camurati Jardim. A resolução de ter um filho me chegou com calma, serena e maduramente. O desejo me acompanha desde os 30 e poucos anos, mas naquela época eu estava muito focada no trabalho e temia-me dividir. Hoje, depois de ter realizado muito do que almejava, consigo conciliar as coisas com mais plenitude. Por outro lado, não queria seguir o exemplo da minha mãe, que tivera filhos moça demais. De qualquer forma, sempre intuí que uma mulher alheia à experiência da maternidade está deixando de carimbar 50% do seu passaporte na vida. De uns tempos para cá, essa intuição evoluiu para uma imperiosa necessidade. Sem gerar um filho, eu me sentia quase um homem! A gravidez custou a dar o ar de sua graça. Tentei em vão por vários anos, fiz diversas inseminações artificiais que não deram certo, cogitei da adoção. Por fim, descobriu-se que o vilão era um pequeno mioma, devidamente extraído em 2002. Como num passe de mágica, o caminho se desobstruía exatamente no momento em que eu acabava de encontrar o João – a chamada pessoa certa no momento certo. Afinal, tive uma gestação bem mais tranqüila do que poderia supor. Viajamos para um festival de cinema na Índia, onde eu comia curry em praticamente todas as refeições e quem enjoava era o pai. Alimentava-me muito bem e reduzi o cigarro a quase nada, seguindo o conselho do meu médico no sentido de não largar completamente o cigarro se isso me causasse ansiedade ou angústia. O essencial era preservar o padrão de equilíbrio do meu organismo. Meus cuidados com o corpo limitavam-se a passar óleo de semente de uva e de amêndoas na barriga e fazer massagens de drenagem linfática nas pernas e pés. Eu e João fizemos um curso preparatório para o nascimento e primeiros cuidados com o bebê, com apostilas e tudo, coisa que recomendo a todos os pais. Nós nos organizamos para cuidar pessoalmente do Antonio em cada minuto dos seus três primeiros meses de vida. Sem aquela iniciação teórica, acho que teríamos sido devorados pelas mil paranóias dos pais neófitos. Antonio nasceu em maio de 2003. Taurino como meu querido nonno italiano, dois ex-maridos e minha co-roteirista de fé. Ou seja, tenho tudo para me dar bem com meu filho. Hoje sou a mesma Carla, só que mais feliz e segura. Quando o vejo sorrir e falar mamãe, agradeço à sorte não ter engravidado mais cedo. Do contrário, talvez não tivesse feito filme nenhum. Talvez tivesse me casado com um homem rico e ficado em casa tendo um filho após o outro para me divertir. Com poucos meses de idade, o Antonio já dava mostras de ser concentradíssimo e muito comunicativo, além de um precoce folheador de livros e revistas. Levei-o como estagiário lactente para todos os ensaios de O Barbeiro de Sevilha, em Belo Horizonte. É claro que gravamos muitos de seus melhores momentos com uma pequena câmera de vídeo digital. Não filmávamos gracinhas feitas para a câmera, mas apenas o espontâneo, até o momento em que ele nos percebia. Aos poucos, ele começou a olhar intrigado para o aparelho. Aos 6 meses, já abria um sorriso que deixava patente sua consciência do registro. Sabia que algo estava sendo esperado dele. Se eu já não acreditava muito na capacidade dos documentários de retratar uma realidade, o Antonio me fez duvidar ainda mais. A consciência da câmera altera o real e faz com que todo o esforço do cinema direto se limite, na verdade, a uma utopia. O documentário sempre opera uma intervenção – assim como a História, por ser escrita, é a mais brilhante ficção que o Homem inventou para falar de si mesmo. Bem antes do Antonio, eu já estava grávida da idéia de realizar um festival de cinema infantil. Fui fecundada em Estocolmo, durante uma mostra de filmes brasileiros, quando conheci um festival sueco para crianças. No Brasil, a falta de maior diversidade restringe muito as opções para essa faixa de mercado. Achei que devia trazer obras interessantes de várias partes do mundo. Meu sonho não era criar um gueto para filmes infantis, mas exibi-los num grande circuito de cinemas, bem no meio do mercado. O Cinemark comprou a idéia, a distribuidora da Petrobras fechou o patrocínio e fizemos a primeira edição do Festival Internacional BR de Cinema Infantil em agosto/setembro de 2003. Com ingressos a 3 reais e cessão de 10 mil entradas gratuitas para escolas públicas, lotamos salas no Rio, São Paulo, Brasília, Manaus, Campo Grande, Aracaju, Porto Alegre e diversas cidades paulistas. Foi, enfim, um festival peregrino, que atendeu a mais de 60 mil crianças. A edição de 2004, patrocinada pela Embratel e a Prefeitura do Rio, contou com o projeto Tela na Sala de Aula, levando filmes às escolas e associando seus temas com o currículo escolar, mediante um caderno especial criado para os professores. Para um evento como esse, não basta trazer os filmes, dublá-los e colocá-los nos cinemas. É preciso ir às escolas, motivar os professores, convencê-los sobre a qualidade do conteúdo dos filmes, promover oficinas de animação e laboratórios de criação de roteiros, oferecer refrigerante e pipoca... Uma pedreira! Pedreira adorável, é claro. Tenho um enorme prazer em trabalhar com crianças e pensar no que pode diverti-las. De certa forma, os meus filmes têm algo de infantil na sua essência lúdica. Com a possível exceção de Copacabana, os demais vêem o mundo pela ótica da brincadeira, da farsa. Nunca pretendem funcionar como um espelho da realidade, nem mesmo da realidade de uma história de amor. São obras de franco entretenimento, onde a ótica infantil é muito bem-vinda. * * * O patrocínio da Petrobras está na origem também da Academia Brasileira de Cinema, criada em maio de 2002 por iniciativa de um grupo de pessoas, a partir de uma idéia do Luís Antonio Viana, então presidente da distribuidora BR e um apaixonado por cinema. A empresa decidiu patrocinar o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro depois que o Ministério da Cultura o retirou de sua pauta. A Academia foi criada, em princípio, para administrar essa premiação. Mas no seu horizonte estavam a união e a valorização da classe cinematográfica. Assumindo o cargo de tesoureira, eu compartilhei o propósito de fazer da Academia não um foro de discussão política, mas um espaço de debate dos rumos do cinema brasileiro enquanto linguagem, estética e fato cultural. Além de manter vivo o prêmio, com maior ou menor glamour conforme as circunstâncias de cada temporada, queremos evoluir no sentido de realizar seminários, editar publicações, criar um portal de informações na internet, recuperar filmes, etc., como consta dos estatutos. A batalha pela viabilização do cinema enquanto negócio deve ser travada no seu campo específico. A nós, produtores, cabe demonstrar objetivamente que o cinema é um investimento lucrativo, que gera uma exposição imensa e desfruta hoje ótima relação com o público. Mas é preciso também educar os investidores para o fato de que isso tem um custo. As empresas gastam mundos e fundos com publicidade e certamente muitos milhões são jogados no ralo em ações que efetivamente não atraem clientes. A publicidade é hipervalorizada, numa distorção social impressionante. Quantas empresas usam carinhas de crianças para vender sua marca, sem contudo fazer nada por criança nenhuma? O poder econômico hoje é tão ou mais forte que o poder político. É justo esperar que as grandes empresas, detentoras desse poder, tenham uma parcela correspondente de responsabilidade social. Que invistam de fato no meio ambiente, nas populações carentes, em hospitais, na cultura, etc. Esse, a meu ver, seria o melhor conteúdo publicitário a seu favor. De minha parte, nunca usei a Lei do Audiovisual. Sobretudo nos primeiros tempos, ela onerava bastante o orçamento do filme com os gastos de captação, operações bancárias, etc. Não me parecia vantajosa. Além disso, tenho críticas de princípio a um instrumento que, além de dar 100% de isenção à empresa aplicadora, ainda lhe destina um certo percentual do filme. Ninguém aplica um centavo que não seja da isenção do imposto. Ora, numa relação de troca é importante que exista alguma aplicação real, sob pena de se depreciar a atividade. O privilégio excessivo vem educando mal os diretores de marketing, que vêem o cinema como alguma coisa em que só vale botar dinheiro se for em via de mão dupla. É como diz o ditado: de graça, até injeção na veia... e cinema. Por tudo isso, tenho trabalhado somente com a Lei Rouanet. Não por contingência, mas por opção. * * * Sou completamente favorável às exigências de contrapartida social, desde que isso não implique obrigar os artistas a abordarem este ou aquele assunto. Por ocasião da polêmica sobre dirigismo cultural, no início da gestão do Gilberto Gil no Ministério da Cultura, o que houve foi um grande susto, uma série de surpresas no processo de transição. A classe ficou um pouco desnorteada, mas a contrapartida social é boa e necessária. Não tenho nada contra a política de editais, contanto que eles sejam difundidos de maneira a favorecer todas as regiões do País. Para se levantar uma atividade como o cinema, não se pode ter a pretensão de apoiar apenas os filmes ótimos, simplesmente porque não se sabe, a priori, quais são os filmes ótimos. Na realidade, tem-se que produzir muito para fazer girar a roda dos investimentos. Admiro o pensamento político do Gil, assim como apreciei o desempenho do Antônio Grassi na Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Acho até que o Grassi poderia ter sido mais bem aproveitado no governo federal. Participei de várias reuniões para elaboração do plano de cultura do Partido dos Trabalhadores e, daquelas pessoas que lá estavam, praticamente nenhuma acabou fazendo parte efetiva do governo Lula. Às vezes tenho a impressão de que falta humildade ao governo para ouvir e acatar o que emana dos conselhos cuja formação ele próprio estimulou. Se não gostaria de ouvir certas coisas, então por que o governo pergunta? Nada disso significa, porém, que eu esteja arrependida de ter votado no Lula e apoiado a sua campanha mediante o comparecimento a encontros de intelectuais, a gravação de entrevistas e depoimentos. Eu diria que a honestidade está começando a entrar na moda no Brasil. Uma série de fiscalizações que antes eram feitas por mera amostragem agora estão sendo levadas a cabo com propriedade. Eu desejei muito esse momento e continuo gostando muito de ver o Lula na Presidência. Mas acho que ele não faz idéia de que algumas atitudes suas se transformam negativamente quando passam pelo terceiro escalão e chegam à sociedade. Vejo o governo ideal para o Brasil como um ponto de interseção entre as administrações do Fernando Henrique Cardoso, do Lula e também do Itamar Franco. Nunca vou esquecer da habilidade do Itamar em receber o País em pleno trauma pós-Collor e passá-lo estabilizado a Fernando Henrique, gozando de alto nível de popularidade. Se Deus é brasileiro, mostrou os documentos ao colocar o Itamar ali. A transição para o Lula, por sua vez, foi uma das melhores que já tivemos. Não nego que gostaria de estar numa posição capaz de influir nos assuntos executivos da Saúde, das Comunicações ou das Minas e Energia, por exemplo. Gosto de exercer o pensamento sobre regras e princípios, assim como focar prioridades e estabelecer parâmetros de harmonia. Pode não encontrar-se a solução perfeita para um problema, mas pode chegar-se a um equilíbrio tal em que as coisas convivam e sobrevivam harmonicamente. Até hoje não exerci nenhum cargo público porque, à exceção de um convite do Grassi para assumir o Theatro Municipal do Rio, nada de interessante me foi oferecido. Se fosse me candidatar, seria logo a presidente da República. Mas, meu Deus, como poderia concorrer com Lula?! A privatização me parece muito importante em áreas como as estradas, mas arriscadíssima em setores como o petróleo e as comunicações. A Vale do Rio Doce era um patrimônio que não devíamos ter perdido. Analisando historicamente, o Vargas, com toda a sua loucura, criou um lastro sem o qual o País não teria suportado tantas crises. Essas estruturas não deveriam jamais ser eliminadas, mas moralizadas e preservadas. Não se expulsa a filha de casa porque não se consegue controlar sua agenda de encontros. Nas comunicações, o Brasil vendeu tudo como se fossem abacaxis. Se eu tivesse dinheiro, teria comprado vários desses abacaxis. A terceirização da saúde sem nenhuma meta clara é outro erro grave, no meu entender. Os hospitais públicos quebraram, os planos de saúde pagam uma miséria aos médicos e nós pagamos uma fortuna a esses intermediários que arranjaram para nós. A telefonia privatizada virou um baile de carnaval em poços de dinheiro. Para enxugar a máquina estatal, vendeu-se barato, gastou-se o dinheiro e não se garantiu nenhum benefício social para o País. Sinto-me no dever de ajudar a fortalecer o Estado, que é o maior empregador do País e a quem cabe administrar esse território imenso e diversificado. A cada dia, tomo decisões que caminham nesse sentido, como manter minha conta no Banco do Brasil, abastecer meu carro nos postos da Petrobras, etc. A alguns pode parecer uma bobagem, uma contribuição ridícula, mas é parte de um raciocínio maior que rege minhas escolhas. Concordo plenamente com quem me chama de nacionalista. Eu nasci aqui, moro aqui, gosto daqui e das pessoas daqui – por que não haveria de ser nacionalista? O que nos atrapalha é a prática da corrupção, que leva as pessoas a acharem esse ou aquele país muito melhor que o Brasil. Somos tão corrompidos quanto tantos países que posam de escoteiros agitando suas bandeiras de valores morais. Nós, porém, declinamos das bandeiras. Somos os piores, e pronto. Curiosamente, cada brasileiro tem orgulho do seu Estado ou região, mas parece detestar essa coisa chamada Brasil. Talvez ainda predomine uma lógica de capitanias hereditárias. Nossa História está cheia de histórias de desrespeitos e saques. As pessoas vinham ao Brasil para pilhar nossas riquezas. De certa forma, nós aprendemos a má lição. Pilhamos a nós mesmos quando não cuidamos bem de nada. Com um pouquinho mais de consciência – nacionalista, vá lá – não estaríamos sempre aumentando o nosso próprio inferno. Considero-me uma pessoa de esquerda. Ao contrário do que pensava na adolescência, não acredito mais na utopia comunista de igualdade com qualidade para todos. Mas acho que o mundo de hoje precisa tomar uma posição mais à esquerda. A população cresceu demais e se não se chegar a uma convivência mais harmônica, restará o império da violência absoluta. Para os filósofos gregos, o fim da sociedade viria quando o dinheiro passasse a se multiplicar sozinho, à revelia do valor do trabalho. É o que está acontecendo hoje. Diante de tanto excesso e alienação, não dá para disfarçar a culpa diante das pessoas que não têm sequer o essencial para viver. Capítulo XIV Minhas Coisas Favoritas 1. O Homem dos Cachorros Certa vez fui chamada para apresentar meus lugares e personagens prediletos do Rio de Janeiro num programa de TV. Escolhi Copacabana, o Jardim Botânico, algumas ruas antigas do Centro, a Pedra da Gávea, as serras de Teresópolis e Petrópolis. Infelizmente, não consegui localizar o personagem que mais gostaria de apresentar: um maranhense chamado José de Ribamar, que andava com um carrinho de supermercado e um bando de cachorros pelo Aterro do Flamengo. Seu quartel-general situava-se num jardim próximo ao obelisco da Cinelândia. Já havíamos conversado, há anos. Ele dizia que viera para o Rio ainda antes da construção do aterro. Gostava de ficar naquele ponto, onde havia a murada que dava para o mar. Depois o mar foi para longe, mas ele mantinha a mesma referência, agora cercado pelas pistas de trânsito e pelos cães. Aquela fidelidade me comovia. Não o encontrei mais. 2. O Refúgio na Serra Tenho sete vira-latas e um punhado de galinhas poedeiras no meu sítio de Teresópolis. Ali planto de tudo: feijão, mandioca, hortaliças, ervas medicinais. Grande parte dos vegetais e dos ovos consumidos nas refeições da minha produtora vêm diretamente do sítio. É um lugar adorável, onde recobro minhas energias e conservo um bocado da minha memória pessoal e profissional. Lá estão meus livros raros, meus figurinos, meus objetos de estimação. 3. Opção pelos Naturais Se dependesse do meu consumo, a indústria farmacêutica seria massa falida. Meu organismo passa muito bem sem produtos químicos. A paixão pelas essências naturais e pela aromaterapia me levou a abrir, com mais três sócios, uma franquia da loja inglesa Neal’s Yard Remedies em São Paulo, em 1996. A Neal’s Yard combina farmácia e cosméticos naturais de uma forma realmente inovadora: não usa sintéticos nem conservantes de cosméticos, mas só ingredientes que se podem ingerir com segurança. Todos os produtos são fabricados na Inglaterra, das ervas, florais e óleos essenciais aos itens de homeopatia e aromaterapia. Mas não desisto do sonho de passar a produzir no Brasil. Por enquanto, limito-me a oferecer camomila, mudas de manjericão e outras ervas do meu sítio como brindes aos clientes. Apesar de não ser uma pessoa vaidosa, sou muito cuidadosa com tudo o que ponho no corpo, interna e externamente. Atribuo a essa seleção um papel definitivo na nossa vida. Eu optei pelos alimentos integrais desde os 17 anos de idade e há pelo menos 20 anos não misturo açúcares com gorduras. Da mesma forma, sempre tomei muito cuidado com tudo o que vejo. Não topo ficar seguidamente exposta a porcarias que me podem dessensibilizar. É normal – e mesmo inevitável – assistir a maus filmes e maus programas, ou ouvir músicas ruins, ainda que criticamente. Mas se não impusermos um limite, o senso crítico vai aos poucos desaparecendo e vamos tomando aquilo como normal. Conversar amiúde com gente cretina também nos faz perder os parâmetros. Por isso, procuro me cercar, na vida, como na carreira, de pessoas inteligentes, boas e agudas, às quais eu ouça com interesse e me façam crescer. 4. Tomatinhos Silvestres Herdei algumas veleidades culinárias da minha família, que pratico com parcimônia. De maneira geral, gosto de cozinha, feira e mercado. Faço bons risotos, cuscuz marroquino, sopas, saladas, massas e sanduíches. Tenho um chamego especial pelas massas com molho de tomatinhos silvestres e pesto de manjericão, plantados no sítio. A época dos doces ficou para trás. Tive a sorte de me casar sempre com ótimos cozinheiros. O Thales, em particular, pilotava divinamente um fogão. 5. Estudar Eis aí um prazer que às vezes só descobrimos tarde na vida. Admiro muito as pessoas mais idosas que continuam loucas para aprender novas coisas, tratando o ato de estudar como um estado permanente. Eu gostaria de organizar meu tempo de maneira a dedicar um mês por ano exclusivamente a algum estudo. Fotografia, por exemplo. Adoraria também fazer um curso de edição eletrônica. Não que eu pretenda fotografar ou montar meus filmes, mas quero ter sempre mais intimidade com esses processos. E quem sabe fazer um filme doméstico inteiramente meu. A satisfação com que acompanho as pesquisas para meus filmes é um sintoma desse prazer em estudar, que infelizmente não tenho exercitado tanto quanto gostaria. 6. O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes Esse livro do francês André Comte-Sponville, autor dedicado a levar a filosofia a um público mais amplo, me fascina com sua visão da construção do homem como um quebra-cabeça na relação com as qualidades morais. De sua leitura, depreende-se que é preciso esculpir nossas virtudes ao longo de toda a vida. O texto analisa 18 virtudes e põe em relevo a importância do olhar. Um mesmo instrumento em mãos diferentes assume usos diferentes. A faca na mão de um assassino não é a mesma faca na mão de um cozinheiro, e ainda assim é a mesma faca! Tenho sempre esse livro comigo e o cito com a mesma freqüência com que ele me vem ao pensamento. 7. Privacidade Procuro manter minha vida íntima à margem da exposição na mídia. Não gosto de ser fotografada na minha casa ou com minha família. Minhas relações pessoais não são objeto da curiosidade alheia ou de venda de revistas. Desde a época em que fui casada com o Zé Renato, tento evitar as reportagens de casal, salvo em ocasiões públicas como estréias, shows, etc. Por ocasião do nascimento do Antonio, fui obrigada a abrir uma exceção. No dia em que deixei a casa de saúde, um Dia das Mães, havia vários fotógrafos de revistas aguardando minha saída. Com o bebê nos braços, mais feliz do que nunca na vida, permiti algumas fotos para não bancar a prima donna. A revista Caras não estava lá e passou a me cobrar o precedente, pedindo uma matéria. Decidi, então, falar sobre a Shantala, uma massagem indiana feita pelas mães nos seus bebês. As fotos foram tomadas no Jardim Botânico, pois eu não queria violar a intimidade da minha casa, exibir o quartinho do Antonio, essas coisas. Além disso, aproveitei a oportunidade para passar conhecimentos importantes para outras mães. Essa não deixa de ser uma maneira de transformar as coisas, inclusive a nossa relação com a mídia. 8. Aceitar a Idéia da Morte Sou uma pessoa completamente esquadrinhada pela análise. Já freqüentei de psicólogo a psiquiatra, passando pela análise freudiana e estacionando na análise bioenergética. Esta é fabulosa porque encontra no corpo o espelhamento dos problemas que se traz na alma. No entanto, para a questão mais crucial de todas, que é o fim da vida, o meu maior aprendizado se deu na convivência com a perspectiva concreta da morte do Thales. Ao anunciar a morte, a Aids acaba com toda fantasia de imortalidade. Isso me ajudou a trabalhar idéias elementares, mas muito reais, como a de que ninguém jamais deixou de morrer. Nem de envelhecer. A regra do jogo é essa, e já estava valendo quando chegamos aqui. Então, de alguma maneira acabei desenvolvendo com relação à morte um sentimento mais filosófico que de sofrimento e perda. Se até Mozart se foi, então a morte não é uma coisa pessoal contra mim ou você. Enquanto estamos por aqui, o importante é que nosso desejo seja maior do que nós mesmos. É o que dá gosto em realizá-los. Passamos a vida dando nó na cauda do dragão, que é enorme e solta fogo pelas ventas. Só mesmo para a morte não há jeitinho. Para mim, a alma é uma energia, uma espécie de eletricidade pura, que entra no corpo para fabricar os sentidos. Depois que ela perde esse corpo, volta a virar fagulha de energia, como uma bola de fogo, uma estrela. Lembro-me bem de uma vez em que fui com o Thales a uma sessão de meditação na qual um grupo de pessoas dizia se comunicar com gente que já havia morrido. Havia lá um gravador surrado com as tais mensagens do além, uns sons que ninguém entendia, e o Thales me olhando, palhaço, com cara de que diabos estamos fazendo aqui? Apesar da comédia, tive uma meditação linda: eu e Thales voávamos sem corpo para bem longe da Terra, conversávamos sem voz, em meio às estrelas do universo. Quando voltei da meditação, o Thales estava sonolento e irritado ao meu lado, sem ter viajado para lugar nenhum. A líder do grupo pedia a cada um que relatasse o que havia visto em sua meditação. Uma mulher, por exemplo, contou que fora perseguida por um corpo peludo. A líder fazia, então, conexões estapafúrdias entre os vários relatos: Corpo peludo associado a ausência de corpo... Vocês estão vendo como a coisa está fechando? Saímos dali às gargalhadas. Mas nunca esqueci a minha jornada nas estrelas. Saboreei cada momento em que fui um espírito e nada mais. Carreira, Ano a Ano 1978 PARABÉNS PRA VOCÊ (diversos personagens) (Teatro – atriz) – Autoria: Coletiva – Direção: Buza Ferraz – Elenco: Cazuza, Bebel Gilberto, Rosane Gofman, Alice Andrade, Pedro Cardoso – Teatro: Cândido Mendes (RJ) 1980 FLICTS (Laranja) (Teatro – atriz) – Autoria: Ziraldo e Aderbal Jr. (Aderbal Freire-Filho) – Direção: José Roberto Mendes – Elenco: Alby Ramos, Lígia Diniz, Cacá Silveira, Elvira Rocha, Daniela Santi, Maria Gislene, Claudia Fares, Teresa Mascarenhas – Teatro: Princesa Isabel (RJ) 1981 GATINHAS E GATÕES (Bebel) (TV – episódio da minissérie Amizade Colorida – atriz) – Criação: Armando Costa, Bráulio Pedroso, Domingos Oliveira, Lenita Plonczinski – Direção geral: Dennis Carvalho – Elenco: Antônio Fagundes, Tamara Taxman – TV Globo BRILHANTE (Sonia Newman) (TV – novela – atriz) – Criação: Gilberto Braga – Direção geral: Daniel Filho – Elenco: Vera Fischer, José Wilker, Fernanda Montenegro, Tarcísio Meira, Renée de Vielmond, Renata Sorrah, Eloísa Mafalda, Dennis Carvalho – TV Globo, 20h O OLHO MÁGICO DO AMOR (Vera Gatta) (Cinema – atriz) – Direção e roteiro: Ícaro Martins e José Antonio Garcia – Elenco: Tânia Alves, Arrigo Barnabé, Sérgio Mamberti, Ênio Gonçalves, Cida Moreira – Prêmios: Melhor atriz coadjuvante no Festival de Gramado 1982 (ex-aecquo) e no Troféu Governo do Estado de São Paulo. 1982 SOL DE VERÃO (Olívia) (TV – novela – atriz) – Criação: Manoel Carlos e Lauro César Muniz – Direção geral: Roberto Talma – Elenco: Alcione Mazzeo, Beatriz Segall, Camilla Amado, Carlos Kroeber, Cecil Thiré, Débora Bloch, Gianfrancesco Guarnieri, Helber Rangel, Irene Ravache, Isabel Ribeiro, Isabela Garcia, Isis de Oliveira, Jardel Filho, Ivan Mesquita, Márcia Rodrigues, Mario Gomes, Miguel Falabella, Mônica Torres, Nelson Xavier, Paulo Figueiredo, Tony Ramos, Tânia Scher – TV Globo, 20h 1983 CHAMPAGNE (Bárbara) (TV – novela – atriz) – Criação: Cassiano Gabus Mendes – Direção geral: Paulo Ubiratan – Elenco: Antônio Fagundes, Antonio Pedro, Armando Bogus, Beatriz Segall, Beth Erthal, Carlos Augusto Strazzer, Carlos Kurt, Carlos Zara, Cecil Thiré, Cininha de Paula, Cláudio Corrêa e Castro, Cássio Gabus Mendes, Eloísa Mafalda, Eva Wilma, Francisco Milani, Henriqueta Brieba – TV Globo, 20h 1983 ONDA NOVA (Rita) (Cinema – atriz) – Direção, argumento e roteiro: José Antonio Garcia e Ícaro Martins – Elenco: Tânia Alves, Regina Casé, Vera Zimmermann, Cristina Mutarelli, Ênio Gonçalves, Cida Moreira, Patrício Bisso, Sérgio Hingst, Luiz Carlos Braga, Caetano Veloso, Osmar Santos, Casagrande e Wladimir. 1984 LIVRE PARA VOAR (Bebel e Cristina) (TV – novela) – Criação: Walter Negrão – Direção geral: Wolf Maya – Elenco: Alexandre Frota, Carlos Augusto Strazzer, Cássia Kiss, Cássio Gabus Mendes, Cláudio Corrêa e Castro, Denise Milfont, Ednei Giovenazzi, Laura Cardoso, Miguel Falabella, Nívea Maria, Rodolfo Bottino, Suzana Faini, Tony Ramos, Vera Gimenez – TV Globo, 18h OS BONS TEMPOS VOLTARAM – VAMOS GOZAR OUTRA VEZ (Soninha) Episódio SÁBADO QUENTE – Direção: Ivan Cardoso – Argumento: Daniel Más – Elenco: Paulo César Grande, Carina Cooper, Pedro Cardoso, José Lewgoy, Consuelo Leandro, Alexandre Frota, André Felipe Mauro, Maria Gladys, Leiloca, Zezé Macedo, Andréa Beltrão, Cláudia Lúcia, Colé Santana, Wilson Grey, João Florêncio, Tânia Boscoli, John Herbert. 1985 O TEMPO E O VENTO (Luzia) (TV – minissérie – atriz) – Criação: Doc Comparato, baseado em Érico Veríssimo – Direção: Paulo José – Elenco: Antônio Fagundes, Armando Bogus, Bete Mendes, Claudio Mamberti, Daniel Dantas, Eloísa Mafalda, Glória Pires, José de Abreu, José Lewgoy, Lélia Abramo, Lima Duarte, Lilian Lemmertz, Louise Cardoso, Mário Lago, Osvaldo Louzada, Paulo José, Tarcísio Meira – TV Globo 1985 A ESTRELA NUA (Glorinha) (Cinema – atriz) – Direção, argumento e roteiro: José Antonio Garcia e Ícaro Martins – Elenco: Cristina Aché, Ricardo Petraglia, Jardel Mello, Cida Moreyra, Selma Egrei, Patrício Bisso, Vera Zimmermann – Prêmios: Especial de atriz no Festival de Gramado 1985; Melhor atriz Prêmio Governador do Estado de SP 1985 1986 CIDADE OCULTA (Shirley Sombra) (Cinema – atriz) – Direção: Chico Botelho – Elenco: Arrigo Barnabé, Cláudio Mamberti, Celso Saiki, Jô Soares, Jayme del Cueto, Cristina Sano, Renata Giglioli, Manfredo Bahia, Chiquinho Brandão, Wilson Sampson, Raimundo Mattos, Tânia Celidônio. DRÁCULA (Lucy) (Teatro – atriz) – Autoria: Hamilton Deane e John L. Balderston, baseado em Bram Stocker – Direção: Gianni Ratto – Elenco: Raul Cortez, Thales Pan Chacon, Rodrigo Matheus – Teatro: Procópio Ferreira (SP) ARMAÇÃO ILIMITADA (Isabel – part. especial) (TV – episódio da série – atriz) – Criação: Euclydes Marinho, Patrícia Travassos, Nelson Motta, Antônio Calmon, Denise Bandeira – Direção: Antonio Calmon, Guel Arraes, Mário Márcio Bandarra, Ignácio Coqueiro, Jorge Fernando – Elenco: Kadu Moliterno, André De Biase, Andréa Beltrão – TV Globo 1987 O ÚLTIMO TIRO (TV – telefilme – atriz) – Direção: Walter Salles Elenco: Edson Celulari, Carla Camurati – Inédito ETERNAMENTE PAGU (Patrícia Galvão) (Cinema – atriz) – Direção: Norma Bengell – Elenco: Nina de Pádua, Antônio Fagundes, Esther Goés, Otávio Augusto, Paulo Villaça, Antonio Pitanga, Breno Moroni, Kito Junqueira, Suzana Faini, Maria Silvia, Breno Moroni, Beth Goulart, Marcelo Picchi, Carlos Gregório, Norma Bengell, Eduardo Lago, Ariel Coelho – Prêmio: Melhor atriz Festival de Natal 1988 A MULHER FATAL ENCONTRA O HOMEM IDEAL (Cinema – curta – direção) – Direção e roteiro: Carla Camurati – Produção executiva: Chico Botelho – Fotografia: José Roberto Eliézer – Montagem: Mirella Martinelli – Música: Fábio Iko Mota e Sergio González – Direção de arte: Renata Bueno e Tadeu Burgos – Figurinos: Emilia Duncan – Gestual e coreografia: Lalá Dehenzelin Elenco: Carla Camurati, Thales Pan Chacon, Norma Bengell, Sérgio Mamberti, Ariel Moshe, Lalá Dehenzelin, Bianca Byington, Marisa Orth, Natália Barros – Duração 13 min, colorido, 35mm Prêmios: Melhor Diretor no Festival de Brasília 1987; Prêmio Abraci no Festival de Brasília 1987; Melhor Curta – Júri Popular no Rio Cine 1987; Prêmio Leon Hirszman no Rio Cine 1987 1988 FERA RADICAL (Marília Orsini) (TV – novela – atriz) – Criação: Walther Negrão – Direção geral: Gonzaga Blota – Elenco: Alexandra Marzo, Carlos Kroeber, Cláudia Abreu, José Mayer, Laura Cardoso, Lícia Magna, Malu Mader, Milton Gonçalves, Older Cazarré, Paulo Goulart, Raul Gazolla, Reinaldo Gonzaga, Tato Gabus Mendes, Thales Pan Chacon, Yara Amaral – TV Globo, 18h BASTIDORES (Cinema – curta – direção) – Direção e roteiro: Carla Camurati – Produção: Sara Silveira – Fotografia: Antônio Meliande – Montagem: Sylvia Alencar – Som: Lia e Tid – Elenco: Marco Nanini e Ney Latorraca – Duração: 12 min, colorido, 35 mm A MULHER DO ATIRADOR DE FACAS (Violeta) (Cinema – curta – atriz) – Direção: Nilson Villas Boas – Elenco: Ney Latorraca, José Roberto Chachá, Mira Haar, Rosi Campos – Prêmio: Melhor Atriz no Festival de Gramado 1989 I PRÊMIO SHARP DE MÚSICA (Show – direção) – Teatro: Municipal RJ 1989 PACTO DE SANGUE (Aimée) (TV – novela – atriz) – Criação: Sérgio Marques – Direção: Herval Rossano – Elenco: Carlos Vereza, Cristina Aché, Edwin Luisi, Herval Rossano, Jayme Periard, Léa Garcia, Othon Bastos, Raul Gazolla, Ricardo Blat, Ricardo Petraglia, Rubens de Falco, Ruth de Souza, Sandra Bréa, Zezé Motta – TV Globo, 18h O CORPO (Monique) (Cinema – atriz e colaboradora no roteiro) – Direção: José Antonio Garcia – Elenco: Antônio Fagundes, Marieta Severo, Claudia Jimenez, Sergio Mamberti, Maria Alice Vergueiro, Ricardo Pettine, Lalá Dehenzelin, Guilherme de Almeida Prado, Carlos Reichenbach, Daniel Filho, Arrigo Barnabé 1990 BATOM E PÁRA-QUEDAS (The Woolgatherer) (Rose) (Teatro – atriz) – Autoria: William Mastrosimone Tradução e direção: Paulo Reis – Elenco: Antônio Grassi – Teatros: Apolo (Juiz de Fora-MG), Palácio das Artes (Belo Horizonte-MG), Governador Valadares-MG, Nacional (Brasília), Anápolis-GO, Goiânia (Goiânia-GO), Colatina-ES, Santa Isabel (Recife-PE), Mossoró-CE, Centro de Convenções (Fortaleza-CE), SESC Santos-SP BRASILEIROS E BRASILEIRAS (Catarina) (TV – novela – atriz) – Criação: Carlos Alberto Soffredini – Direção: Walter Avancini – Elenco: Edson Celulari, Isadora Ribeiro, Mário Cardoso, Paulo Autran, Rosi Campos – SBT (na época TVS) DELEGACIA DE MULHERES (TV – episódio da série – atriz) – Criação: Maria Carmen Barbosa – Direção: Wolf Maia – Elenco: Eloísa Mafalda, Lúcia Veríssimo, Suzana Vieira, Cininha de Paula, Zilda Cardoso, Stella Miranda, Susy Rego – TV Globo 1991 FRONTEIRAS DO DESCONHECIDO (TV – série – atriz) – Criação e direção: Augusto César Vannucci – Elenco: Angela Leal, Cristina Prochaska, Fátima Freire, Reynaldo Gonzaga, Cláudio Marzo, Cássia Kiss, Marcos Palmeira, Marcos Winter – TV Manchete CARTAS PORTUGUESAS (Mariana Alcoforado) (Teatro – atriz) – Autoria: atribuída à freira Mariana Alcoforado – Adaptação: Julio Bressane – Direção: Bia Lessa – Elenco: Luciana Braga Teatro: Centro Cultural Banco do Brasil (RJ) FLORESTA DA TIJUCA (Cinema – curta – atriz) – Direção: Sonia Nercessian – Elenco: Thales Pan Chacon, Rubens Correa, Norma Bengell 1991/1992 O GRANDE PAI (Priscila) (TV – minissérie – atriz) – Criação: Giusi, Gustavo Barrios, Ricardo Rodrigues – Adaptação: Clayton Sarzi – Direção: Walter Avancini – Elenco: Flávio Galvão, Débora Duarte, Patricia Lucchesi, Paloma Duarte, Vanessa Rubi, Ruy Minharro, Adriana Lopes, Luís Carlos Arutin – TV: SBT, 16h 1993 LAMARCA (Iara Iavelberg) (Cinema – atriz) – Direção: Sérgio Rezende – Elenco: Paulo Betti, José de Abreu, Deborah Evelyn, Eliézer de Almeida, Ernani de Morais, Roberto Bomtempo, Carlos Zara, Selton Mello, Patrícia Perroni, Nelson Dantas, Enrique Diaz, Orlando Vieira, Anna Cotrim, Camilo Bevilacqua, Marcelo Escorel, Luiz Maçãs, Nelson Xavier 1995 CARLOTA JOAQUINA, PRINCESA DO BRAZIL (Cinema – direção, roteiro, produção) – Direção: Carla Camurati – Argumento: Angus Mitchell e Carla Camurati – Roteiro: Carla Camurati e Melanie Dimantas – Produção: Bianca De Felippes, Carla Camurati e Richard Luiz – Fotografia: Breno Silveira – Montagem: Cézar Migliorin e Marta Luz - Música: André Abujamra e Armando Souza – Som: Aloysio Compasso – Direção de Arte: Tadeu Burgos e Emilia Duncan – Figurino: Tadeu Burgos, Marcelo Pies e Emilia Duncan – Edição de som: Virgínia Flores – Elenco: Marco Nanini, Marieta Severo, Ludmila Dayer, Antônio Abujamra, Maria Fernanda, Eliana Fonseca, Beth Goulart, Thales Pan Chacon, Brent Hieatt, Vera Holtz, Bel Kutner, Ney Latorraca, Aldo Leite, Norton Nascimento, Marcos Palmeira, Chris Hieatt, Carla Camurati, Eliana Fonseca, Maria Ceiça. Duração: 100 minutos, colorido, 35mm 1996 ANTONIO CARLOS GOMES (atriz italiana) (Cinema – curta – atriz) – Direção e roteiro: Flávia Alfinito – Elenco: José Carlos Gondim LA SERVA PADRONA (Ópera – direção) – Autoria: Giovanni Battista Pergolesi (música) e G. A. Federico (libreto) – Direção cênica: Carla Camurati – Regência: Sérgio Magnani – Orquestra de câmara Sesiminas – Arranjos e coordenação musical: Silvio Viegas – Cenários: Renato Theobaldo e Renata Bueno – Figurinos: Wanda Sgarbi – Elenco: José Carlos Leal, Silvia Klein, Thales Pan Chacon – Teatro: Sesi Minas (Belo Horizonte - MG) 1997 LINGUAGEM, CULTURA E COMUNICAÇÃO (Projeto PROCAP) (Vídeos – direção) – Direção: Carla Camurati – Produção: Proqualidade, Procap, Secretaria do Estado de Educação de MG Roteiro: Melanie Dimantas, Carla Camurati, Álvaro Goulart – Coordenação pedagógica: Gabriella Dias – Fotografia: André Horta – Cenografia: Renato Theobaldo – Consultoria de língua portuguesa: Nélida Piñon, Antonio Houaiss – Pesquisa de imagens: Laís Rodrigues – Editor: Leandro Egrejas – Som direto: Aloysio Compasso – Elenco: Paulo José, Eliana Fonseca, crianças da Agência Afro Brasil - Duração: 10 x 25 minutos, colorido, Betacam 1998 LA SERVA PADRONA (Cinema – direção e adaptação) – Direção e adaptação: Carla Camurati – Produção: Tatyana Rubin, Carla Camurati, Bianca De Felippes – Fotografia: Breno Silveira – Montagem: Sérgio Mekler e Renata Baldi – Diretora assistente: Flávia Alfinito – Edição de som: Ciclos Imagem e Som – Cenários, figurinos, direção musical e elenco: como na versão teatral de 1996 – Duração: 60 min, colorido, 35mm - Prêmio: HBO Brasil de Cinema 1999 A RAINHA DA BELEZA DE LEENANE (Teatro – direção) – Autoria: Martin McDonagh Direção: Carla Camurati – Produção: Xuxa Lopes, Hector Babenco, Francisco Ramalho – Cenários: Fernando Mello da Costa – Figurinos: Cica Modesto – Iluminação: Carina Camurati – Elenco: Xuxa Lopes, Walderez de Barros, Chico Diaz, Marcelo Médici – Teatros: Laura Alvim (RJ), Alfa (SP) 1999/2002 MADAMA BUTTERFLY (Ópera – direção) – Autoria: Giacomo Puccini (música), Luigi Illica e Giuseppe Giacosa (libreto) Direção musical e regência: Isaac Karabtchevsky (SP), Silvio Barbato (RJ) – Direção cênica: Carla Camurati – Cenários: Renato Theobaldo – Figurinos: Cica Modesto – Elenco: Gitta Maria Sjöberg, Eiko Senda, Eliane Coelho, Juremir Vieira, Marcos Paulo, Marcello Vanucci, Celine Imbert, Luiz Oréfice, Inacio de Nonno, Manuel Alvarez, Luciana Bueno – Teatros: Alfa (SP), Municipal (RJ), Nacional (DF) 2001 CARMEM (Ópera – direção) – Autoria: Georges Bizet (música), Henri Meilhac e Ludovic Halévy (libreto) – Direção cênica: Carla Camurati e Hamilton Vaz Pereira – Direção musical e regência: Jamil Maluf – Orquestra Experimental de Repertório, Coral Municipal e Coral Infantil Ecco – Cenários: J. C. Serroni – Figurinos: Fábio Namatame – Elenco: Luciana Bueno, Marcello Vanucci, Fernando De La Mora, Yunah Lee, Rita Medeiros, Paulo Szot, Guiomar Milan – Teatro: Municipal (RJ), Alfa e Municipal (SP) COPACABANA (Cinema – direção, roteiro e produção) – Direção: Carla Camurati – Roteiro: Carla Camurati, Melanie Dimantas e Yoya Würsch – Produção: Carla Camurati, Bianca de Felippes e Flávio Chaves – Fotografia: José Tadeu Ribeiro – Montagem: Sérgio Mekler – Produção musical: Dani Roland e Roberto Silva – Som: José Moreau Louzeiro – Supervisão e edição de som: Tom Paul – Pesquisa: Laís Rodrigues – Direção de arte e figurinos: Emilia Duncan – Coordenação de direção: Luiz Henrique Fonseca – Maquiagem: Martin Macias e Juliana Martins – Elenco: Marco Nanini, Laura Cardoso, Walderez – e Barros, Míriam Pires, Felipe Wagner, Ida Gomes, Renata Fronzi, Luís de Lima, Pietro Mário, Ilka Soares, Léo Alberty, Joana Fomm, Rogéria, Camila Amado, Tonico Pereira, Romeu Evaristo, Louise Cardoso, Ana Beatriz Nogueira, Débora Olivieri – Duração: 90 minutos, colorido, 35mm PRA VOCÊ EU DIGO SIM (Videoclipe – direção) – Direção: Carla Camurati – Música: Rita Lee – Elenco: Rita Lee e Reynaldo Gianecchini – Gravadora: Abril Music 2002 ESPELHO D’ÁGUA – Uma Viagem no Rio São Francisco (Cinema – produção executiva) – Direção: Marcus Vinicius Cezar – Produção executiva: Carla Camurati – Elenco: Fabio Assunção, Carla Regina, Francisco Carvalho, Charles Paraventi, Aramis Trindade, Regina Dourado – Duração: 105 minutos, colorido, 35 mm – Prêmios: Melhor fotografia, melhor som direto e Prêmio Orgulho de Ser Brasileiro no Festival de Cinema Brasileiro de Miami 2004 2003 O OVO (a mãe) (Cinema – curta – atriz) – Direção: Nicole Algranti – Elenco: Chico Diaz, Lucélia Santos, Claudio Perotto, Karla Martins, Louise Cardoso. O BARBEIRO DE SEVILHA (Ópera – direção) – Autoria: Gioacchino Rossini (música) e Cesare Sterbini (libreto) – Concepção e direção de cena: Carla Camurati – Direção musical e regência: Silvio Viegas – Orquestra Sinfônica e Coral Lírico de Minas Gerais – Cenários: Renato Theobaldo – Figurinos: Cica Modesto – Preparação corporal e coreografias: Arnaldo Alvarenga – Iluminação: Telma Fernandes – Elenco: Paulo Szot, Homero Velho, Eduardo Itaborahy, Marcos Liesenberg, Sylvia Klein, Rita Medeiros, Eduardo Amir, Sandro Bodilon, Stephen Bronk, Tereza Cançado, Ramiro Souza e Silva, Caíque Cerri, Marcelo Cordeiro – Teatro: Palácio das Artes (Belo Horizonte, MG) 2004 QUEM TEM MEDO DE IRMA VAP? (Cinema – direção, roteiro e produção) Créditos de pré-produção Direção: Carla Camurati – Roteiro: Melanie Dimantas, Carla Camurati e Adriana Falcão, baseado livremente na peça de Charles Ludlam – Produção: Fernando Libonati, Carla Camurati, Bianca Costa – Fotografia: Lauro Escorel Filho – Direção de arte: Marcos Flaksman – Figurinos: Cao Albuquerque – Som: Valéria Ferro – Preparação corporal: Deborah Colker – Pesquisa: Laís Rodrigues – Elenco: Marco Nanini, Ney Latorraca Créditos das fotografias: pág.76 – D. Gusttinni pág.90 – Hércules Barbosa pág.95 / 96 / 98 – José Antonio Garcia pág.100 / 101 / 104 / 105 – José do Amaral pág.121 / 122 – Vera Baumgarten pág.206 / 207 – Angus Mitchell pág.223 – Ana Valadares pág.227 – Paul Strand pág.232 / 233 – Vantoen Pereira Jr. pág.257 – Dadá Cardoso Demais fotos: acervo pessoal de Carla Camurati A Coleção Aplauso, concebida e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, se tornou um sucesso de venda e de repercussão cultural. Coordenada pelo crítico Rubens Ewald Filho, a Coleção resgata, para um público amplo, a vida e a carreira de grandes intérpretes, diretores e roteiristas do cinema, do teatro e da televisão brasileira. Vários fatores se somam para explicar a gratificante aceitação. São escritos, em sua maioria, por jornalistas especializados, que se baseiam depoimentos dos próprios biografados, resultando em textos diretos, fluentes, entremeados de episódios divertidos. Publicados em formato de bolso e com adequado projeto gráfico, os livros trazem fotos inéditas do acervo pessoal de cada biografado de relevante interesse artístico e histórico. A escolha dos biografados representa outro fator decisivo para o interesse despertado pela Coleção. São personalidades representativas rememorando suas trajetórias de vida, sua formação prática e teórica, seus métodos de trabalho, suas realizações e – em alguns casos – suas frustrações, recuperando assim a própria história acidentada do cinema, do teatro e da televisão em nosso país. A Coleção, que tende a ultrapassar os cem títulos, já se afirma e reúne um time ilustre e variado, de dar orgulho a qualquer brasileiro. São atores e atrizes, como Bete Mendes, Cleyde Yaconis, David Cardoso, Etty Fraser, Gianfrancesco Guarnieri, Irene Ravache, John Herbert, Luís Alberto de Abreu, Nicette Bruno e Paulo Goulart, Niza de Castro Tank, Paulo José, Reginaldo Faria, Ruth de Souza, Sérgio Viotti, Walderez de Barros. Diretores, como Carlos Coimbra, Carlos Reichenbach, Helvécio Ratton, João Batista de Andrade, Rodolfo Nanni e Ugo Giorgetti. Atores que também se tornaram diretores, como Anselmo Duarte, o único brasileiro a arrebatar até hoje a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção, ela inclui projetos especiais, com formatos e características distintos, como as excepcionais pesquisas iconográficas sobre Maria Della Costa, Ney Latorraca e Sérgio Cardoso. Publicamos, também, roteiros históricos, como O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil para ser filmado, ao lado de roteiros mais recentes, como O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé. Destaca-se a excepcional obra Gloria in Excelsior, organizada por Álvaro de Moya, sobre a ascensão, apogeu e queda da TV Excelsior, que mudou o jeito de fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão quando descobrirem que vários dos diretores, autores e atores que promoveram o crescimento da TV Globo, nos anos 70, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Nesse sentido, a obra de Moya acaba retratando mais do que a trajetória de uma rede de televisão, uma época histórica do País. Contudo, se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. Precisa apenas dispor de fontes de informação atraentes e acessíveis. É isso que a Imprensa Oficial propiciou ao criar a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que toda nação que esquece sua história cultural, fica mais pobre espiritualmente, arriscando-se a perder sua identidade. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Títulos da Coleção Aplauso Perfil Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Cinema Brasil De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Cabra-Cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero Dois Córregos Carlos Reichenbach Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu O Caso dos Irmãos Naves Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet Casa de Meninas Inácio Araújo O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Teatro Brasil Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce - Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso - Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Ciência e Tecnologia Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Especial Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Gloria in Excelsior - Ascenção, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Imprensa Oficial