Bete Mendes O Cão e a Rosa Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretor Financeiro e Administrativo Alexandre Alves Schneider   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Perfil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Revisão Andressa Veronesi Projeto Gráfico Revisão e Editoração Carlos Cirne Bete Mendes O Cão e a Rosa por Rogério Menezes Cultura Fundação Padre Anchieta São Paulo, 2004 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Menezes, Rogério Bete Mendes : o cão e a rosa / por Rogério Menezes. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura - Fundação Padre Anchieta, 2004. – – 272p.: il. - (Coleção aplauso. Série Perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-287-1 (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes de teatro - Biografia 2. Atores e atrizes de televisão - Biografia 3. Mendes, Bete I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. 04-5572 CDD-791.092 Índices para catálogo sistemático: 1. Atores brasileiros : Biografia : Representações públicas : Artes 91.092 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 2799-9800 Fax: (0xx11) 2799-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação Ao final de doze exaustivas horas de entrevistas realizadas na primeira semana de junho de 2004 em aconchegante apartamento da Rua Décio Villares, no bucólico Bairro Peixoto, milagrosamente encravado na caótica e nem sempre aconchegante Copacabana, no Rio de Janeiro, este jornalista-escritor chegou ao seguinte diagnóstico sobre a personagem que entrevistara: Sete (ou mais) em uma. Parodiando o título de minissérie em que atuou na Rede Globo em 2003 (A Casa das Sete Mulheres), poderíamos rotulá-la de a toca das sete (ou mais) mulheres. Assim é (ou são?) Bete Mendes. Nela, nessa toca, se ocultam (e se revelam): A guerrilheira, a atriz, a torturada, a deputada, a reivindicadora, a apaixonada (pelos homens e pela cultura que produzem) e a supermãe (que é, aliás, sem nunca ter sido). Bete Mendes não teve filhos. Mas, mesmo sem querer, mesmo sem perceber, acabou canalizando esse sentimento-maternal-não-utilizado para as pessoas com quem convive, o que a torna sempre protetora e sempre zelosa com todos que a cercam. Com os amigos. Com o marido Marco Antonio Fernandes Marques. Com o pequeno ator ou com a atriz iniciante com quem contracena. Com o porteiro do prédio. Com o lixeiro da rua onde mora, que a cumprimenta, sempre risonho e franco. Com este jornalista-escritor a quem nunca mais viu mais gordo, mas a quem tratou quase como se fosse alguém da família. Enfim, na medida do possível, com o resto da humanidade. Essa mulher, digamos, multifuncional, é, antes, de tudo, intensa. Nenhum adjetivo poderá defini-la melhor. Mergulha em tudo com muita paixão. Sem meios-tons. Sem defesas. Sem pejo. Sem medo. Como aquela trapezista que dispensa redes de proteção por mais complicadas que sejam as evoluções que fará no céu do circo. Foi assim, sempre corajosa, que a atriz Bete Mendes se comportou nas entrevistas que concedeu a este jornalista-escritor para a realização deste livro. Não à toa, ao final da primeira entrevista-maratona se queixou de dor de cabeça e ao final das entrevistas seguintes revelou-se muito cansada. Ou melhor, ao estilo sempre superlativo de Bete Mendes, cansadíssima. Quase todos os adjetivos que Bete Mendes utiliza ao falar são no superlativo. Para ela, não basta dizer lindo quando quer exaltar a beleza de uma pessoa, de uma paisagem, ou de um sentimento. Nesses casos a palavra certa será lindíssimo. Ao enfatizar alguma palavra ou frase, costuma repeti-la três vezes seguidas, como um personalíssimo mantra. Não bastará dizer chorei. Dirá sempre: chorei, chorei, chorei. Por falar em chorar, Bete Mendes é choroníssima. Foram várias as vezes que as entrevistas tiveram de ser interrompidas para que a atriz pudesse chorar. Esse choro fácil e incontido eventualmente a constrangeu e lhe motivou a pedir desculpas a este jornalista-escritor. Sem necessidade alguma. Chorar enobrece o homem. É, a essa altura do apocalipse, uma das poucas coisas que nos fazem diferentes do resto da matilha (até prova em contrário, o homem é o único animal que chora). Bete Mendes chora muito, mas também ri muito (outra coisa que nos faz diferentes do resto da matilha; até prova em contrário, o homem é o único animal que ri). Vai do choro convulsivo ao riso retumbante, com a velocidade de um corredor olímpico, numa mesma página, num mesmo capítulo, numa mesma cena, num mesmo quadro, num mesmo take. Isso, esse ir-e-vir constante entre o choro e o pranto, entre o quente e o frio, entre a água e o fogo, entre Deus e o diabo, a torna personagem dramático fascinante (Quem leu O Vermelho e o Negro, de Stendahl, sabe: o protagonista Julien Sorel é feito com esse mesmo, e volátil, barro). Não poderia ser de outra forma. Esse personagem fascinante reflete a vida fascinante que a atriz (a mulher que entre as muitas outras que habitam essa toca acabou de alguma forma prevalecendo, embora todas as outras possam ser, e são, eventualmente conclamadas) teve (e tem). Não será qualquer escritor vagabundo que criará personagem capaz de, ao mesmo tempo, ser a protagonista de uma novela de sucesso vista por milhões Brasil afora (Beto Rockfeller, em 1968) e a militante comunista que, com o nome de guerra Rosa (por causa de Rosa Luxemburgo), vivia na clandestinidade. Ou que precisaria abandonar no meio puerilíssima novela (Simplesmente Maria, 1970) porque ficaria presa por um mês nos porões da ditadura militar, sofrendo torturas tão horrendas que até hoje nenhuma das muitas mulheres que habitam a toca betemendesiana se dispôs a revelar detalhes desse momento de absoluto inferno pessoal. Sabe, caro leitor, aquela história de que a minha, ou a sua, vida daria um romance? O romance em torno da vida de Bete Mendes, como o leitor poderá perceber nas páginas a seguir, é um clássico. Nele se misturam ódios, paixões, angústias, reviravoltas, medos, coragens e, basicamente, muitas chances de refletir sobre o sentido da vida e sobre a condição humana (algo que todos os grandes clássicos da nossa grande literatura almejam englobar). Em vários momentos das entrevistas, Bete Mendes admitiu que nunca foi mulher fácil de ser, digamos, engolida, digerida pelo status quo vigente. Sempre ao fim de cada recordação, que dava conta do quanto foi rebelde e fora dos padrões femininos de antanho, afirmava: Eu era um cão àquela época. Resumo da ópera: Deus (ou quem de direito), o cara que arquitetou toda essa trama, eventualmente rocambolesca mas sempre arrebatadora, que marca a vida de Bete Mendes, estava em momento inspiradíssimo quando a criou. O que me levou, quando dei ponto final na edição deste livro-depoimento, a levantar-me da poltrona, como se faz ao final das récitas de grande dramaturgia, aplaudir entusiasticamente, e bradar: O autor, o autor! PS: Por falar em autor, o autor de novelas Dias Gomes registrou para a posteridade essa intensidade, essa rebeldia, da atriz Bete Mendes. Depois de atuar em Sinal de Alerta, a atriz ganhou do novelista o seguinte texto: Nenhuma emoção é mais gratificante para um autor do que ver uma personagem crescer, ganhar força e determinação própria e rebelar-se contra o destino que lhe traçamos. Voltar-se contra o seu criador e dizer-lhe: Olha, não aceito o que você vai fazer comigo, exijo que você me trate como mereço. E aí? Aí o autor nada mais pode fazer do que dobrar-se, humildemente, à exigência da personagem, e deixar-se conduzir por ela, dando-lhe a importância que ela lhe provou ter e o destino que ela exigiu para si mesma. Isto me aconteceu algumas vezes. Nunca, porém, de maneira tão eloqüente quanto na novela Sinal de Alerta, com Vera Bastos, personagem interpretado por Bete Mendes. Graças à verdade uterina com que Bete viveu este papel, confesso que de um momento em diante minha imaginação começou a ser guiada pela atriz, pelo que ela me sugeria em termos de interpretação, abrindo-me caminhos pelos quais eu era obrigado a conduzi-la, transformando-me assim, de autor, em mero escrivão a registrar o que me ditava a personagem. E nada de humilhante. Ao contrário, todo autor verdadeiro anseia por isso, ser envolvido e ser dominado pelas personagens que criou, passar de senhor a escravo de seus desejos. No caso, devo isso ao talento de uma atriz, Bete Mendes. Talento com o qual desde então anseio voltar a me encontrar, no palco, numa tela de cinema ou tevê, em qualquer parte onde se possa repetir o milagre. Dias Gomes À minha família e a todos os meus amigos, que poderiam encher mais muitas páginas deste livro Bete Mendes A Beatriz, sobrinha-neta que acabou de nascer A Bete Mendes, que mergulhou de cabeça, tronco e membros na garimpagem das lembranças, boas e más, que compõem este livro-depoimento Rogério Menezes Epígrafe Estava aqui pensando naquela minha convivência com os medos; eu estou com medo porque eu falei muita coisa pra você, eu me entreguei. Bete Mendes, ao encerrar, em 4 de junho de 2004, a série de depoimentos que compõem este livro. Capítulo I O Primeiro Dia (Rio de Janeiro, 1o de junho de 2004) A Descoberta do Mundo Sou filha de militar. Nasci em Santos, São Paulo. Meu pai era suboficial da Aeronáutica, e se chamava Osmar Pires de Oliveira. Minha mãe era, como se diz, do lar, e se chama Maria. Simplesmente Maria. Maria Mendes. Não existe, nem na parte materna nem na parte paterna de minha família, ninguém que tenha se dedicado à arte. Essa vocação artística surgiu, portanto, na minha vida assim meio do nada, mas surgiu muito cedo. Comecei a ler desde pequena, muito cedo, com três anos e meio, acho. Já era um diabinho nessa época, e lia muito. Primeiro li jornal, e depois passei e ler tudo que caía nas minhas mãos. Quando fui para o Jardim de Infância, comecei a gostar muito de cantar. O interessante era que meu pai gostava muito do cinema americano e eu ficava o tempo todo pedindo para ele me levar para ver os filmes. Então ele me levou para ver Lili, com a Leslie Caron e o Mel Ferrer. Fiquei completamente apaixonada. Aos cinco anos decorei a versão brasileira da canção Lili e cantei na festa do Jardim de Infância. Adorava tudo que fosse ligado a música. Lembro que meu pai era muito fã do Frank Sinatra e, mais ainda, do Bing Crosby. A minha mãe, doze anos mais jovem que meu pai, preferia o Elvis Presley. Eu gostava de todos eles. Aos sete anos, completamente apaixonada pela música, minha mãe me colocou numa escola de piano. Nessa época morávamos em Santos, mais exatamente na Vila Militar da Aeronáutica, que fica na ilha do Guarujá, num bairro chamado Itapema. A escola da professora de piano era próxima de casa. Como não tinha piano em casa, ia para a casa dela todos os dias, tocava durante uma hora, e treinava, treinava e treinava. Era impressionante como tinha facilidade em tocar. Tinha um dom, dizia a minha professora. Iniciei apenas realizando exercícios musicais, mas, em pouco tempo, já partia para os estudos facilitados de Bach, Chopin, Häendel. Tenho de cor até hoje essas músicas. Era completamente apaixonada por piano. Mas, nessa época, passei também a sonhar em ser bailarina. Fiquei então muito dividida entre a música e a dança. Ficava deitada na varanda de casa, fechava os olhos, e sonhava: me via bailando num palco com aquela roupa diáfana de bailarina, de sapatilha de ponta e tudo. Continuava a ler muito, e li então a biografia do Chopin, a biografia do Bach que a filha dele escreveu, li sofregamente. Foi então que meu pai se mudou para o Rio de Janeiro, foi transferido da Vila Militar de Santos, da Base Aérea de Santos, para a Base Aérea do Galeão. Já estava com doze, treze anos e fomos morar na Ilha do Governador, e eu fui estudar no Colégio Mendes de Moraes. Lili e a Baliza Voltando um pouquinho no tempo: ainda em Santos, cantava em todas as festas da escola. Cantava Lili, cantava hino, e desfilava de baliza na parada de Sete de Setembro. Sabia todos os hinos de cor, adorava cantar, fazia parte de todos os corais para os quais me convidavam. Estudei no Colégio Canadá e, além de cantar, era aluna aplicadíssima. Tanto que nem precisei fazer o exame de admissão, passei direto do curso primário para o ginasial com menos de onze anos. No ginásio era mais aplicada ainda, estudava muito, mas era, também, danada nos esportes. Adorava ginástica. Gostava muito de vôlei. Basquete eu nunca tive condição de jogar, o que me frustrava, por causa da altura. Tenho um metro e cinqüenta e oito, sou baixésima, morria de inveja das meninas mais altas. Era muito miúda, muito magrinha, muito magrinha, era um canicinho. Gostava muito de nadar, sou apaixonada pelo mar. Nadei desde muito pequena. A minha mãe me levava para a praia desde muito cedo, e aprendi a nadar com ela. Então natação para mim era tudo. Sempre gostei de fazer atividade física. Mas não abria mão de ser boa aluna e de me envolver com muitas atividades, quanto mais atividades melhor. Entrei no grêmio da escola e ajudava a promover muitas festas. Participava de todas as festas, não perdia uma, festa de São João, festa do Dia da Pátria, festa do Dia das Mães, festa do Dia dos Pais, festa de Fim de Ano. Adorava essas festas. Ao mesmo tempo já surgiam algumas ideinhas meio subversivas, já surgia uma reivindicadora dentro de mim. Era a primeira da classe e, também, um pouco a líder da turma. Meu pai foi transferido para o Rio, quando eu estava no terceiro ginasial. Mudando para o Rio Essa mudança para o Rio de Janeiro ocorreu no meio do ano, e isso fez com que fosse reprovada. Mas tudo bem. Como estava adiantada nos estudos, não fiquei muito chateada. Em pouco tempo fiz novos amigos, e o colégio era maravilhoso. Na época, os colégios públicos eram os melhores do País. Logo me integrei a um grupo de teatro criado pela professora de História, Regina Carvalhal. Também integravam o grupo pessoas que depois se tornariam atores, como a Ângela Leal, o Miguel Falabella e o Bemvindo Sequeira. Fazia teatro e já estava com a política na cabeça. Aliás, Bemvindo, a quem chamava companheiro-chefe, foi um dos responsáveis por esse meu envolvimento político precoce, porque na época, período próximo ao golpe militar de 1964, ele já estava envolvido com o Partido Comunista Brasileiro, e me levava para as reuniões. Já estava intrometida nessa história quando me mudei para a Vila Militar do Galeão e conheci um sargento da Aeronáutica que era comunista. Ele morava, com a família, perto de minha casa e fiquei muito amiga da filha dele. Tinha 14 anos; ela, 17. Foi por meio dela que conheci livros e gravações do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE. Li, e me encantei com os textos escritos por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, Paulo Pontes, Armando Costa e por toda aquela patota ligada à esquerda. Comecei também a ler peças do teatro grego, então li todos os trágicos. Nessa época lia numa sofreguidão fantástica. Minha família era muito simples, então freqüentava muito bibliotecas, e tomava emprestado muito livro de amigos e colegas. Também ganhava livros algumas vezes. Li toda a coleção de Monteiro Lobato muito criança. Com onze, doze anos já estava lendo Dostoievski e Tolstoi. Toda essa leitura fazia uma confusão na minha cabeça, mas era uma confusão legal. Lia, fazia teatro, e ainda conseguia ser uma das primeiras da turma, ir muito à praia e adorar as aulas de ginástica. Gostava de saltar a distância, saltava a uma distância boa. Não entendia por que tinha colegas que não gostavam de fazer ginástica. Nesse período aconteceu uma coisa interessante: escrevi uma peça para o Dia das Mães, e ainda escolhi o elenco e dirigi. Sei que contava a história da avó, da mãe e da filha, mas não me lembro mais do título. Era um pouco a minha história, a história da minha mãe e a história da minha avó, porque eu tinha uma ligação muito forte com a minha avó materna que já morreu, que era uma pessoa extraordinária. Fiz essa peça, e foi um sucesso. Fiquei toda prosa, toda metida, você não faz idéia de como era metida! Mas, ao mesmo tempo, era de uma timidez absurda. Entrava nos lugares olhando pelas frestas para ver se ninguém ia me maltratar, se eu não ia ser expulsa. Tinha muito medo quando chegava em algum lugar que não conhecia. Mas, depois que chegava, virava dona do pedaço, era uma contradição meio engraçada, mas era assim que eu era, metida e tímida ao mesmo tempo. Margô e O Pequeno Príncipe Lembro que, certa época, começamos a ensaiar a peça O Pequeno Príncipe, baseada no livro de Saint-Exupéry, dirigida pela professora Regina Carvalhal. Além de mim, estavam no elenco o Falabella, o Bemvindo, a Ângela e uma menina linda, linda, linda, que era minha amiga, e que se chamava Margô. Nunca mais voltei a ter contato com ela. Era loirinha, de cabelo compridinho, usava franjinha e tinha olhos verdes. Quando acabava o ensaio, voltava para casa triste porque tinha certeza que seria ela a escolhida para ser o Pequeno Príncipe. No meu imaginário o Pequeno Príncipe era ela. A Regina Carvalhal, a professora que dirigia a peça, era maravilhosa, a gente a amava muito, ensaiava a gente em grupo, e deixava que cada um fizesse um personagem diferente a cada ensaio. Então chegou o dia em que os papéis, quem representaria quem, seriam definidos. Estávamos todos muito nervosos, ansiosos. Eu, mais ainda. Até que, finalmente, a professora Regina falou: Bom, agora vamos escolher os personagens que vocês vão fazer. Margô, você é uma gracinha, você é o tipo do Pequeno Príncipe que a gente tem no imaginário, mas a Bete é o moleque de vocês todos e vai ser dela o papel do Pequeno Príncipe. Ai, ai, ai, estava me preparando para contar friamente essa história, sou emotiva feito o cão, mas, ai, que coisa!, acabei chorando. Você me dá um segundinho só pra eu enxugar o rosto lá dentro? Desculpe. É impressionante, mais de quarenta anos depois esse fato ainda me emociona muito. Porque achava, tinha certeza, que Margô é que faria o personagem, e a escolhida acabou sendo eu. Não podia haver coisa mais maravilhosa para acontecer a uma adolescente como eu. Fiquei que era uma felicidade só. A Ângela Leal foi escolhida para ser a raposa, e é interessante a nossa história, porque a gente é muito amiga até hoje. Nós nos afastamos e nos reencontramos de novo muitos anos depois. De vez em quando relembramos esse momento de nossa vida e especialmente aquela frase: Você é responsável pelas pessoas que cativa. Nós, eu e a Ângela nos cativamos, até hoje existe uma grande magia entre nós. A gente também fez teatro grego nessa época, lembro de Electra, Shakespeare, era maravilhoso, era genial, o nosso colégio era maravilhoso. Tinha também o envolvimento político, nessa época eu e o Bemvindo Sequeira já éramos da, como se dizia, área de influência do Partido Comunista Brasileiro. Levava tudo muito a sério. O Bemvindo até hoje brinca comigo. Diz que, naquelas reuniões que a gente fazia, havia um monte de rapazes e apenas eu de mulher, gostosinha, mas, segundo ele, ninguém chegava perto de mim, ou ousava me cortejar porque eu era companheira seriíssima que não dava bola para ninguém. Era muito compenetrada mesmo. A Onça, o Bode e a Vovozinha A minha avó materna era índia Guarani e se chamava Margarida. Era mulher muito bonita que tinha um cabelo muito espesso. Ela me contava histórias muito bonitas. Tem uma que nunca esqueci: O Bode e a Onça, que pertence ao folclore popular, mas que sempre associo à pessoa dela. Era pessoa boníssima, muito rica em termos espirituais. Sempre foi pobre, mas tinha um mundo de fantasia riquíssimo, que me fascinava. A gente morava numa casa em Santos que era cercada por muitas árvores, então ela ia a cada árvore, sentia o cheiro de cada folha, e me contava que a fruta daquela árvore era boa para curar isso e que aquela outra árvore era boa para curar aquilo. Que aquela folha servia para fazer chá que curava determinada doença. Tudo isso me encantava. Além do mais, contava várias histórias fantásticas pra gente dormir. Essa magia de minha avó me marcou profundamente. Outra mulher importante na minha formação foi minha madrinha, Jacira. Era tia de meu pai, morava em São Paulo, e também gostava muito de ler. Nossa relação era muito baseada no fato de ela gostar muito de livros, e eu também. Mas não a via com muita freqüência porque ela morava em São Paulo e eu, em Santos. Meus contatos com ela ocorriam mais durante as férias. Tenho a impressão de que foi a curiosidade e o bom senso da minha mãe e do meu pai que me botaram para aprender a ler muito cedo, que me levaram à paixão pelos livros. Desde pequena, ficava atazanando meus pais, querendo saber o que era isso e o que era aquilo. A minha professora, a mulher que me ensinou a ler, era uma negra, e acho que é daí que vem o meu anti-racismo, sou extremamente anti-racista. Eu me apeguei muito a ela, que me ensinou a ler e escrever desenhando. O básico, o bê-á-bá, aprendi com ela. Eu era de classe média baixa. Tinha geladeira em casa, mas máquina de lavar só depois de muito tempo. Máquina de lavar era um requinte naquela época. Telefone então nem se fala, era um luxésimo, nós não tínhamos. Mas sempre fui muito curiosa e sempre fui, em todos os colégios nos quais estudei, muito ávida por conhecimento. Isso me tornou aluna muito aplicada, o que fez com que as pessoas estivessem sempre dispostas a me sugerir novas leituras. Pessoas como as daquela família de vizinhos da Ilha do Governador, cujo chefe era comunista, e que me abriram um mundo que eu não conhecia, mas que, tinha certeza, queria conhecer. A primeira vez que fui ao teatro foi em Santos. Meu pai me levou a um show da Dercy Gonçalves. Adorei. Lembro que ela falava muitos palavrões, mas fiquei completamente encantada. Outra peça que me marcou, quando já morava no Rio de Janeiro e quando começava a me envolver com gente da União Nacional dos Estudantes, foi As Aventuras de Ripió Lacraia, de Chico de Assis, com Agildo Ribeiro. Saí do espetáculo completamente alucinada pelo teatro. Mas nessa época, acho que tinha 15 anos, ainda não pensava em ser atriz. Minha avó era essa pessoa que sabia os mistérios dos remédios, dos chás, das comidas. Fazia xampu de babosa. Colhia a babosa e fazia xampu. Amava lavar o cabelo com aquele xampu que ela preparava. Achava ela meio mágica. Era apaixonada por ela. Minha mãe tinha a magia da mulher muito bonita. Minha mãe era linda. Minha paixão por minha mãe tem relação com o mar. Ela nadava muito bem. Meu pai e minha mãe dançavam que era uma maravilha. Meu pai era o maior pé-de-valsa nos bailes. Adorava quando a gente morava na Ilha do Governador e ia aos bailes do Clube dos Sargentos. Eu e meu pai dávamos show dançando. Meu pai e minha mãe davam o show deles, e depois meu pai me tirava para dançar, e dávamos o nosso show particular. Adorava dançar com ele porque conduzia a dama muito bem, e era levíssimo. Na minha memória comparo-o às vezes com o Fred Astaire, a quem ele adorava. Entre dois Mundos A minha avó índia teve muitos filhos, casou três vezes, e sobreviveu aos três maridos. Não conheci meus avós paternos, nem meu avô materno. Conheci meus tios paternos. Minha maior amizade na família do meu pai era com minha madrinha Jacira, que era tia do meu pai. Era uma mulher finérrima. Tive relação maravilhosa com ela por causa dos livros, por causa da cultura dela, da formação dela, do comportamento dela. Era mulher muito fina, muito nobre. Tinha verdadeira paixão por ela. Quando me hospedava na casa dela nas férias, tudo me encantava: o jeito de servirem à mesa, o jeito de se comportarem à mesa. Toda aquele forma de viver, bem diferente do nosso jeito simples, informal e praiano de viver, me encantava. Minha madrinha era muito doce, muito carinhosa. Meus tios paternos todos moravam em São Paulo, então nas férias também ia muito à casa deles. Eles me recebiam muito bem, gostavam muito de mim, todos tinham um status superior ao nosso, ao da minha família, que era uma família muito simples. Quer dizer, vivia entre dois mundos diferentes. De um lado a minha avó com toda a magia dela, a índia, a mulher que morava numa casa simples, de uma forma rústica, mas sábia. Do outro, esse lado mais formal, mais burguês da minha madrinha e dos meus tios paternos. Vivia muito bem nesses dois ambientes. Todos gostavam de mim da mesma maneira. Curtia tudo que se me apresentava com muita sofreguidão. Adorava o mar, sempre tive forte ligação com o mar, e adorava estar com minha avó, com suas crendices e suas sabedorias. Adorava também ficar com minha madrinha, com aquelas coisas dos licores finos, das rendas finas, da mesa bem posta, das coisas delicadas. Achava tudo aquilo lindo. Com a minha avó índia a história era pegar no barro, cortar cana, tirar a casca da banana, comer banana tirada do pé, colher limão para fazer limonada, essas coisas simples, prazerosas e gostosas. Enfim, era como se estivesse numa balança, às vezes pendia pra um lado, às vezes pendia para o outro. No Mundo dos Porquês Da parte de meu pai, minha ascendência é portuguesa, mas meu tataravô era francês. Da parte de mãe, é índia, Guarani, e portuguesa. Minha avó era filha de índios. Mas o pai de minha mãe era português branco. Não o conheci. Também não conheci meus avós paternos. Meu pai falava muito da mãe dele, do pai dele, mas eu tinha preferência especial pela minha madrinha, que era tia dele. Minha mãe era mulher belíssima. É até hoje. Foi mulher liberta, livre, que não teve instrumental para desenvolver tudo que podia desenvolver. Sempre cuidou da casa e dos filhos, muito simples, muito, mas uma mulher sem fronteiras, uma mulher apaixonante. Estudou muito pouco, mas tem uma capacidade impressionante para se relacionar com as pessoas. Ela chega em um lugar e em dez minutos consegue fazer muitos amigos. Até hoje é assim. Tem uma magia extraordinária, aonde chega faz amizade. Adora festas, adora restaurante, adora escola de samba, adora tudo que seja alegre. Já meu pai era o oposto, era o contido, o formal, o militar. Mas, engraçado, na relação comigo não era assim. É gozado, comigo nunca foi um pai autoritário. Comigo não. Tinha esse comportamento severo perante a vida, tanto pela formação quanto pela opção de vida, mas comigo não tinha nada disso. Comigo tinha uma relação de parceria, nós éramos muito parceiros. Apesar de eu ter sido sempre muito autônoma, muito independente, muito dona do meu próprio nariz. Desde que me entendo por gente fui assim. Apesar disso, meu pai e minha mãe sempre tiveram uma relação comigo de carinho, de respeito. Acho que até mesmo de certo temor, porque eu era da pá virada. Estava sempre cheia dos argumentos, cheia de questionamentos, cheia de dúvidas. Minha mãe conta que teve época que eu era insuportável, era aquela época dos porquês, que toda criança tem quando está começando a entender as coisas do mundo. Só que, segundo minha mãe, comigo ninguém agüentava. Era por que, por que, por quê. Infernizava a vida dos meus pais com tantos por quês. Era, segundo me contaram, muito ciosa de minhas responsabilidades. Desde muito cedo. Mas questionava muito, era muito debatedora, rebatia as coisas, não aceitava a primeira explicação que me dessem. Por exemplo, digamos que minha mãe estivesse de mau humor e me impusesse um castigo qualquer sem motivo aparente, coitada! Passava a semana cobrando dela aquilo que me havia feito. Se meu pai chegasse amuado da Aeronáutica e, sem motivo, falasse rispidamente comigo, coitado! Passava os dias seguintes perguntando por que havia agido assim comigo. Até me submetia ao castigo, mas cobrava depois. Cobrava na discussão, no questionamento, sempre querendo saber o porquê disso e o porquê daquilo até eles gritarem chega. Quando diziam, depois de tantas perguntas, que não queriam mais conversar, perguntava de novo: Por quê? Por quê? Aí meu pai, perdendo a paciência, gritava: Porque sou seu pai, e pronto! Aí tinha de ouvir. Eu falava: Então tá, imponha a sua autoridade que eu respeito. Se não, não! O Deus Dentro de Nós Fui formada na religião católica. Amava ir à igreja. Decorei preces, fiz o catecismo, aquelas coisas todas. Decorava a Bíblia, decorava tudo. Adorava cantar no coral da igreja. A missa era celebração que me encantava, aquela coisa do rito me fascinava. Fiz a primeira comunhão coletivamente com sete ou oito anos. Tiraram uma fotografia linda em que estava vestida com roupa de fustão branco que minha mãe fez. Acreditava, acreditava piamente, que a hóstia era o corpo de Cristo. Foi quando vim pro Rio de Janeiro, já adolescente, que comecei a questionar tudo, inclusive, a igreja católica, e eu nunca mais fui à igreja, rompi completamente. Não que não seja pessoa religiosa. Não sou de ir à missa, mas acredito em ter uma religião, um Deus. A minha religião, o meu Deus, tem a ver com uma definição que ouvi uma vez de um menino na televisão. Conto sempre essa história, que essa história talvez seja a minha síntese religiosa. Uma vez, isso há bem mais de vinte anos, a Marília Gabriela, acho que no Globo Repórter, entrevistou um garoto lá do Nordeste. Fiquei impressionada com essa entrevista. Ela conversava com pessoal que plantava sempre-vivas no interior da Bahia para exportação. Aí Marília Gabriela foi lá e pegou um garoto mirradinho, raquítico mesmo, e perguntou quantos anos ele tinha. Ele falou que tinha 14 anos. Ela perguntou se ele ia à escola e tal e lembro que o menino falou algo assim: Quando dá. Quando o ônibus passa e dá pra gente ir à escola, a gente vai. Ela perguntou: Você ajuda seu pai, sua mãe, seus irmãos...?. Ele falou: É, a gente planta, colhe, e tal. Ela perguntou: Você sabe ler?. Ele falou: Não. Ela perguntou: Você acredita em Deus?. Ele disse: Acredito. Ela perguntou: O que é que é Deus pra você?. Ele disse: Deus é o bem que a gente tem dentro da gente. Isso pra mim foi uma revelação. É isso que acho de Deus. Desculpe, estou chorando de novo, mas é que fiquei impressionada com essa criança. Sempre questionei as religiões cheias de aparatos, de riquezas e daquelas coisas todas, e veio esse garoto e me deu a síntese do que é a minha crença hoje. Para mim, Deus é o bem que a gente tem dentro da gente. Mas continuo adorando entrar em igreja vazia, para me recarregar de boas energias. O Diabo São os Outros O diabo me marcou de maneira muito particular. Era muito aplicada, muito correta, muito boa filha, muito tudo. Mas comecei a ver muito cedo a injustiça, e isso me fez questionar precocemente, e seriamente, a maldade humana. Tinha medo do diabo, mas não sabia quem o diabo era. Até que a minha avó índia, sempre ela, me contou a história do bode e da onça, e isso me marcou para o resto da vida. É uma história tão linda, e ela contava de uma maneira tão linda, que isso me tirou todos os medos, inclusive o medo do diabo. A história era assim: O bode estava andando durante o dia, querendo achar lugar para construir casa. Então olhou para um lugar ao lado de uma bela árvore. Decidiu que ali era o lugar ideal e tal, limpou tudo, do jeitinho que queria, e falou para ele mesmo: É aqui que vou construir a minha casa. Falou isso e foi dormir em outro ponto, descansar. Aí veio a noite, e a onça apareceu para passear, e viu aquele lugar todo limpinho, todo arrumadinho, e pensou: Mas que lugar bom para morar, já tem lugarzinho descampado onde caberia direitinho a minha casa. Pois é aqui que vou construir a minha casa. O tempo foi passando. De dia, o bode acordava, plantava alicerce, construía parte da casa, e ia embora. À noite, a onça vinha e ficava surpresa com o fato de a casa dela estar cada vez mais ajeitada: Nossa, alguém está me ajudando a construir a minha casa, e eu não sei quem é. E acrescentava algo mais à casa que construía. De dia, o bode aparecia e via, surpreso, que a obra da casa avançara durante a noite, e pensava: Deus do céu, tem alguém me protegendo, deve ser alguém amigo, deve ser alguém do bem. E ia pondo as janelas, as portas. A minha avó contava essa história de um jeito extraordinário, fazendo mistério, fazendo suspense, deixando todos nós ansiosos e nos perguntando: Quando o bode encontrar com a onça, o que será que vai acontecer? O final da história era o seguinte: Um dia o bode estava muito cansado e desabou ao lado da casa que construía. Aí chegou a noite, a onça veio, e flagrou o bode dormindo ao lado da casa dela. O bode acordou assustado e perguntou para a onça: A senhora veio aqui na minha casa pra fazer o quê?. A onça retrucou: Como sua casa? Esta casa é minha. Os dois discutiram pelo resto da noite, mas finalmente concluíram: Por que nós vamos brigar, se fizemos a casa juntos? Vamos morar os dois aqui! Esta história é ma-ra-vi-lho-sa. Nunca a esqueci. Com ela aprendi que essa história de diabo é coisa que só existe na cabeça da gente, que a gente pode transformar qualquer um em diabo, é só querer transformar. Zero em Comportamento Sempre fui muito briguenta no colégio. Era danada. Brigava sempre contra o que achava ser injustiça. Só não tinha nota dez em Comportamento, porque eu era da pá virada. Se me provocassem, virava uma fera. Tirava dez em quase todas as matérias. Em Matemática eu era ótima. Adorava Português, História, Latim. Era fraca em Geografia, e em Desenho era um desastre, desenhava muito mal. Era aplicada, estudava muito, mas em Comportamento eu não era lá grande coisa. Tanto que meu pai teve alguns dissabores, ao ser convocado às pressas para tentar resolver alguma confusão que havia armado. Brigava muito com os colegas. Eram brigas bobas certamente motivadas por provocações bobas. Mas não brigava nunca dentro da sala de aula. Então, se estivesse discutindo dentro da classe, eu chamava o colega com quem discutia para o pátio, porque pra mim o pátio era a rua e pra mim na rua podia bater e apanhar. Dentro da classe não, porque a classe era sagrada. Chamava o oponente pra fora da sala e ficava provocando: Vem cá, vem cá, se você é mulher, se você é homem, pra brigar comigo... Não dava outra: meu pai era chamado para comparecer à escola. Não era briga verbal não, era briga de puxão de cabelo, troca de porrada, brigava muito mesmo, tanto com meninos quanto com meninas. Teve uma história uma vez que foi um absurdo: quebrei a cabeça, ou melhor, uma garota quebrou a minha cabeça. Foi o seguinte: eu estava com uma amiguinha dele, isso já não era na escola era na vila onde a gente morava, estava com a amiguinha e a irmã dele. Estava conversando e brincando no quintal dessa minha amiguinha e tal, aí ele falou pra irmã que não acreditasse em mim porque eu estava namorando o garoto que ela gostava. Uma intriga total. Fiquei zangadíssima, me virei e fui pra cima dele, chamei ele pra briga. A irmã dele tomou as dores do irmão e me puxou os cabelos, tinha cabelos muito compridos, me girou pelos cabelos e me jogou no meio-fio, bati a cabeça, aí minha cabeça abriu bem aqui na testa. A minha mãe não estava em casa, a empregada me levou para casa de um enfermeiro, mas o enfermeiro não estava, e acabaram improvisando curativo com um monte de pano e me levaram para casa. Quando meu pai chegou, a empregada me botou embaixo da mesa, e lhe pedi: Olha, fala com calma com ele, pra ele não ficar nervoso, pra ele não ficar preocupado. A empregada fez exatamente o contrário. Meu pai chegou e ela gritou, em pânico: Ai seu Osmar, a Bete quebrou a cabeça, está sangrando, vai morrer. Meu pai ficou aflito. Me botou na bicicleta, me levou para a Base Aérea de Santos. Era uma distância talvez de uns três quilômetros, ou quatro, por aí. Cheguei lá, o médico foi me dar os pontos sem anestesia, eu levei três pontos. Eles me amarraram e me seguraram. Eu berrava feito uma louca. Eu lembro que fiquei desesperada porque ia ter logo depois o desfile do Sete de Setembro e certamente meu pai não deixaria que eu desfilasse. Foi o que aconteceu. Meu pai não me deixou sair de baliza, e eu dizia: Mas é só um curativo, eu tou ótima! Ele gritava: Você está maluca, você está com a cabeça quebrada. Se sair de baliza, você vai virar de cabeça pra baixo toda hora. Não, não pode! Aí eu fiquei sentada na porta de casa chorando. Os colegas passavam para ir para o desfile e eu chorava, berrava: Meu pai não me deixou desfilar só porque quebrei a cabeça. Para mim aquilo tudo, brigar com meninos e meninas e quebrar a própria cabeça, era muito natural. Em Defesa de Josilda No Colégio Mendes de Moraes, na Ilha do Governador, era a primeira da turma, sentava nas primeiras carteiras da sala, mas era amiga da tropa da pesada que fazia esportes. Era meio contraditório, mas eu era meio contraditória mesmo. O pessoal que fazia esporte era mais legal; as meninas que sentavam na frente eram umas chatas. Então estudava com as meninas da frente, fazia grupo de estudo com as meninas da frente, mas fora da sala de aula me relacionava melhor com a tropa da pesada que fazia esportes, que era formada por meninos e meninas mais divertidos. Nessa época a minha maior amiga era Josilda, uma menina negra, filha de uma lavadeira, muito pobre, por quem tinha amizade muito grande. Uma vez falaram, na casa em que nós estávamos estudando, que ela não podia entrar pela porta da frente porque era negra. Esse gesto de preconceito racial me marcou fundo. Eu, que não tinha papas na língua, esbravejei: Aquela pessoa que não pode entrar pela porta da frente é a pessoa que mais amo no mundo. Vou tomar banho com ela, vou dormir com ela na minha cama, vou lhe dar de comer na boca. Essa pessoa que está ultrajando a minha amiga não merece nem olhar pra minha cara, nem olhar pra cara da minha amiga, e que a gente nunca mais vai voltar nessa casa, nem quero ver a cara dessa pessoa, e que essa pessoa não merece respeito porque está destratando um ser humano. Então rompi com aquela colega que não queria que minha amiga negra entrasse na casa dela pela porta da frente. Guerra Contra a Delação Outro episódio que me marcou muito nessa época: a gente estava fazendo uma prova de Latim, e uma amiga pediu cola. Falei baixinho que não estava dando para passar a cola. O professor ouviu, virou e falou: Quem é que está pedindo cola aí? Então uma menininha, filha de um coronel na casa de quem ia estudar em grupo de vez em quando, levantou e falou: Foi aquela menina lá de trás. O professor falou: Ela vai levantar, sair da sala, e tirar zero. Falei: Ela não vai sair. O senhor não pode estimular uma acusação, uma delação, como o senhor está fazendo. Ele falou: O que é isso? Falei: Isso é uma coisa errada que o senhor está fazendo. O senhor está estimulando a delação. Começou então o maior bate-boca na sala. O professor decidiu: Então a turma toda vai ser suspensa. Falei: Mas isso também o senhor não pode fazer. Deu o maior rebu, o maior bate-boca. O professor falou: Então tá bom, vocês ficam aqui que eu vou falar com a direção... E saiu da sala. Fui atrás dele, e falei: O senhor não tem autoridade, o senhor vai falar com a diretora, o senhor vai prejudicar nós todos, e o senhor vai se prejudicar suspendendo a turma. O senhor não tinha nada que se virar e perguntar quem estava pedindo cola. O senhor não podia ter feito isso. Então o professor falou: Então vamos comigo para a sala da direção. Chegamos na diretoria, a diretora considerou que o professor estava exagerando, e pediu que ele voltasse e que ele anulasse aquela prova, propusesse outra, e que não deixasse mais acontecer aquilo. Quando voltei pra sala, aconteceu uma coisa muito louca, a menina que eu tinha acusado de delatora estava chorando, e junto com ela ficaram aquelas que eu estava defendendo. Então ficou todo mundo contra mim. Fui para casa chorando. Defendi a turma toda, mas, no final, acabei levando o sarrafo porque dei uma endurecida com a menina que dedurou e ela ficou de coitadinha. As outras, as minhas colegas da farra, falaram: Você não podia ter feito isso com ela. Tenho um pouco de medo disso, dessa minha necessidade de ir fundo na verdade, de ir fundo na verdade com uma dureza muito grande. Acho que, naquele dia que apavorei a garota que dedurou a colega, talvez tenha sido muito violenta na defesa de minha posição. Marx, Engels e Peraltices Não sei por que sempre tive essa vontade de fazer justiça, só sei que tive uma idéia de justiça sempre muito presente em mim. Também teve a presença de meu pai, que sempre me ensinou o que era direito, o que era correto. Além disso, minha mãe sempre foi uma mulher muito sem preconceitos, muito aberta. Mais: sempre estudei em colégio público, que era uma grande mescla de gente de todas as classes sociais. Na praia, que eu ia muito, as pessoas se misturavam muito. Então acho que isso tudo sedimentou em mim essa coisa de igualdade e de justiça. Também já estava lendo aqueles malucos todos, o Karl Marx, o Engels, afinal de contas já pertencia à área de influência do Partido Comunista Brasileiro. Além do mais, tinha estudado a Revolução Francesa, e aquelas noções de igualdade, liberdade e fraternidade tinham me atraído muito. Gostava muito de brincar, mas na hora que tinha de ficar quieta queria impor disciplina a todo mundo, e na hora de brincar virava a maior baderneira. Um dia estava conversando com uma colega do meio de uma aula de Ciências. A professora ordenou: Bete, fique quieta. Mas parece que tinha um assunto muito importante, e continuei falando. Ela repetiu: Bete, fique quieta. Continuei a conversar. Ela falou: Bete, eu não posso suspender você de novo. Já havia sido tirada várias vezes da sala de aula por causa dessas atitudes. Então ela resolveu me botar de castigo: tive que ficar de pé, de frente para o quadro- negro, sobre praticável onde ficava a mesa dela. Nem assim fiquei quieta. Quando a professora não estava olhando, virava para os colegas e fazia muitas caretas. Não chegava a ser suspensa porque era, apesar do mau comportamento, aluna muito aplicada. Quando fazia peraltices em sala de aula, os professores costumavam me mandar passear, dar uma volta pelo colégio, para ver se me acalmava. Acostumei-me a ouvir: Saia da sala, vá embora. Eu era assim, tinha uma energia muito doida, tanto que eu adorava esporte, que era para onde na verdade tentava canalizar essa energia. Aos Mestres com Carinho Por incrível que pareça, também adorava Latim. Tive dois professores de Latim que me marcaram muito, não lembro mais os nomes deles, mas sei que um foi meu professor no Mendes de Moraes, na Ilha do Governador, e o outro, no Colégio Canadá, em Santos. Eram ambos, é o que ficou na minha memória, altos, compridos, magros e muito parecidos. A impressão que guardo deles hoje era como se fossem ambos muito antigos, como se os próprios romanos tivessem entrado no túnel do tempo e tivessem ido dar aulas de Latim pra gente. Ambos ótimos professores, mas ambos muito frágeis em termos de autoridade diante da classe: fazíamos a maior bagunça nas aulas deles. Uma época me apaixonei por um professor de português, que era muito bonito. Era apaixonada por ele, como noventa por cento das alunas de minha classe. Foi quando me chamaram para ser a oradora oficial da diplomação do curso ginasial. Tinha 15 anos, e era muito metida. Tão metida que não só aceitei ser a oradora oficial, como decidi que não escreveria nenhum discurso, que falaria de improviso. Meus colegas ficaram escandalizados, mas não me intimidei. Lembro que a solenidade de formatura foi num auditório grande no colégio. A diretora e os professores estavam todos lá sentados no fundo do palco, inclusive o professor de português bonitão. Na platéia os colegas e os nossos pais. Subi no palco toda prosa, cumprimentei a diretora, os professores. Recordo direitinho a síntese do discurso: falei que estávamos todos, alunos e pais, muito felizes, que estávamos encerrando uma etapa muito importante das nossas vidas, que tínhamos aprendido muito com nossos mestres, que agradecíamos aos nossos pais, aos nossos professores, à nossa diretora. Falei também da ótima qualidade do nosso colégio e daquele momento em que tínhamos, nós alunos, de nos separar para viver vidas diferentes, mas que tinha ficado em nós o conhecimento, a amizade e a constatação do quanto éramos competentes, valorosos e estudiosos. Ao final, fui aplaudida entusiasticamente. Melhor: o professor de português bonitão, por quem eu e noventa por cento de minhas colegas estávamos apaixonadas, veio me cumprimentar, me deu um beijo no rosto e falou, cheio de orgulho: Esta é a minha melhor aluna de português! Foi uma glória total para mim. Uma Professora em Cy Em seguida fui estudar o primeiro ano do Curso Clássico no Colégio Rivadávia Correia, na Av. Presidente Vargas, ao lado do Ministério da Guerra, do antigo Ministério da Guerra. Fiquei pouco tempo lá, porque meu pai foi novamente transferido para São Paulo e eu voltei para Santos. Nesse colégio, nessa época, aconteceu uma história que acho interessante contar, que tem a ver com minha vontade de escrever. Aliás, algum dia, quando tiver coragem, competência e disciplina, vou escrever alguma coisa sim, talvez crônicas, talvez memórias. Tínhamos aula de redação e minha professora era ninguém menos que a Cyva do Quarteto em Cy. Olha que doideira! Então a professora Cyva pediu pra gente uma redação sobre o que pretendíamos fazer na vida, que curso a gente queria seguir e coisa e tal. Lembro remotamente do que escrevi. Acho que falava da minha dúvida sobre qual carreira escolher, sobre qual era a situação que a gente encontrava ao escolher uma carreira. Desconfio que era uma redação mais filosófica, falando sobre a dificuldade de definir o nosso futuro, do que propriamente algo no estilo: eu quero seguir tal carreira. Na verdade, nessa época não pensava em ser atriz de jeito nenhum. O que imaginava querer fazer na época era Direito, mais exatamente ser promotora pública para arrebentar com as injustiças sociais em vigor no País. No dia de receber as redações corrigidas, com as respectivas notas, fiquei conversando com um namoradinho, perdi a hora, e cheguei atrasada na aula. Tive de ouvir um pito: não vou lhe dar presença porque você chegou atrasada, da professora Cyva, mas em seguida ela falou, e eu fiquei orgulhosíssima: Sua redação está muito boa, você recebeu nota 10, pelo argumento e pelo português. Vou mandar copiá-la para distribuir em todas as salas de aula do Rivadávia Correia. Três Peças de Guerrilha Nessa mesma época eu tinha uma amiga que morava perto da UNE, e resolvi ser escritora. Então inspirada naquelas tragédias gregas que havia lido escrevi três peças, e elas, e isso é mortal para mim, me foram retirados pela repressão militar quando fui presa alguns anos depois. Uma das histórias escrevi pensando muito na minha amiga negra Josilda: se passava em uma favela onde morava uma moça que estudava para ser professora, a luta dela para se formar, apesar das mazelas de morar em barracão e de ser extremamente pobre. Aí a polícia invade a favela e prende essa moça. A outra peça era uma alegoria de A Gata Borralheira. Só que, em vez de o príncipe chegar em abóbora que virava carruagem, o príncipe era um revolucionário que vinha salvar a moça pobre. A terceira contava a luta de favelados cariocas que iam ao Palácio Guanabara pra exigir do governador tratamento digno, casas dignas, trabalho digno. Como havia sido apresentada a Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, que era ligado ao Centro Popular de Cultura da UNE, entreguei-lhe essas peças escritas à mão para que fizesse algum tipo de avaliação. Ele foi delicadíssimo, não apenas leu como fez observações por escrito. Ao me passar essas observações, me falou: Bete, você escreve muito bem, mas não dá pra montar essas peças. Seremos presos assim que a peça estrear. Aconselhou-me também a pegar textos literários dos quais gostasse muito e fizesse adaptações, para ir treinando. Fiquei encantadíssma com a atenção que ele deu àquelas peças escritas por uma adolescente. Guardei aquilo tudo como se fosse um prêmio. Mas isso acabou indo parar no DOI-Codi quando fui presa e foi usado como prova contra mim. Que coisa ridícula! A Árvore Começa a Andar Por causa da nova transferência de meu pai para São Paulo, tive que voltar a morar em Santos, e voltei a estudar no Colégio Canadá. Nessa época meus pais estavam iniciando um processo de separação, o que aconteceria algum tempo depois. Então preferi estudar à noite, porque queria trabalhar durante o dia, estava louca pra trabalhar. Foi época muito interessante, em que conheci o Nuno Leal Maia, que estudava no Colégio Santista, e o Ney Latorraca, que estudou comigo no Colégio Canadá, e que depois comentaria sobre mim e sobre ele nessa época da seguinte forma: Já adorava plumas, paetês, luzes, microfones, e a Bete chegava e começava logo a falar dos nossos direitos, que tínhamos de discutir a relação professor/aluno, já estava assim alucinada nesse caminho engajado. Engajadíssimo. Fazia parte do grupo de teatro, do grupo das festas e do Grêmio. Além disso, ia à praia com a turma do Nuno Leal Maia e freqüentava toda a turma intelectual de Santos. Não parava. Ia também para o Clube de Xadrez de Santos aprender e jogar xadrez, ia ver as peças do Teatro Amador de Santos, ia assistir às Mostras de Cinema de Santos. Vivia numa atividade intensa. Como se não bastasse, comecei a fazer teatro infantil fora do colégio: fui a coelhinha Naná em A Árvore que Andava, de Oskar von Pfuhl, com direção de Chico Santa Rita. Foi uma glória, uma emoção imensa. Os meus pais adoraram. Fiquei novamente toda prosa. Mudando para São Paulo Cursava o terceiro ano Clássico no Colégio Canadá, quando meus pais se separaram. O fato me confundiu e eu, que já queria viver por minha própria conta, fui para São Paulo. Lá pedi apoio ao Carlos Silveira, com quem tinha trabalhado em A Árvore que Andava, e que agora estava no elenco de Marat-Sade, dirigida por Ademar Guerra. Ia quase toda noite assistir a Marat-Sade. Vi tantas vezes que já sabia o texto da peça de cor. Era um espetáculo, lindo, maravilhoso. Então descobri que, pelo fato de meu pai ter sido transferido do Rio para São Paulo, existia lei que determinava que o filho do militar transferido tem prioridade na colocação dos filhos em colégios públicos. Fui a quatro ou cinco colégios ver se tinha vaga para mim. O último foi o Colégio de Aplicação, que era um dos melhores colégios de São Paulo. Cheguei lá querendo falar com o diretor, a secretária pediu para eu esperar. Algum tempo depois, a secretária me deixou entrar para falar com ele. Inventei a seguinte história: que meu pai era da Aeronáutica, mas ele estava no, não lembro se falei Acre, Rondônia ou Guiana Inglesa, inventei um lugar longínquo onde meu pai não podia se comunicar, que então estava ali para pedir minha transferência em nome dele, e coisa e tal. Evidente que o diretor reparou que foi uma historinha, mas, mesmo assim, perguntava: Mas não dá para se comunicar? Eu dizia: Não, lá só com rádio, e o rádio quebra muito e não funciona. Inventei, inventei, folheei. Desesperada, né?, porque estava perdendo dias de aula, precisava voltar ao colégio, e não ia voltar para Santos porque eu estava brigada com a minha mãe. Então ele falou: Espera um momentinho. Fiquei do lado de fora esperando, aflita. Nos outros colégios não havia passado da secretaria, não tinham vaga, não atendiam. A secretária voltou e falou: Ele quer falar com você de novo. Entrei na sala e ele disse: Olha, tem uma vaga e três candidatos, mas acreditei na sua história, a vaga é sua. Tudo se Transforma Foi assim que entrei no Colégio de Aplicação, representando. A minha verve artística já estava toda ali. Era engraçado porque o colégio era maravilhoso, mais uma vez conseguia estudar num colégio maravilhoso. Havia trabalho de grupo, muita discussão, muito debate. Estava completando o terceiro ano Clássico e, a essa altura do campeonato já não queria mais fazer Direito. A bailarina havia ficado para trás. A pianista também. Estava então querendo fazer Filosofia. Lá no colégio lembro que, um dia, o Ademar Guerra foi participar de um debate sobre teatro. A gente se cruzou, e ele falou: Eu conheço você. Eu falei: Claro, estou quase todo dia no teatro assistindo à sua peça. Quer dizer, já estava fazendo contato com o pessoal de teatro. Mas aí o diretor, aquele que me deixou estudar no Aplicação, um cara progressista, bacana, foi demitido. No lugar dele entrou uma mulher super-reacionária. Então fui fazer piquete na porta do colégio, em greve, para que ninguém entrasse na escola enquanto o diretor que tinha sido demitido não fosse readmitido. Nessa época a barra já estava pesando pra valer, já era porrada pura. O dinheiro que recebia do meu pai, para me dar um apoio, era insuficiente, então estava procurando emprego. O problema era que o Aplicação tinha aulas à tarde. Em Santos já tinha trabalhado, por pouco tempo, mas trabalhado. Minha mãe me arranjou um trabalho como secretária de um advogado. Era muito chato. Ficava lá na sala do advogado sem fazer nada. Ganhava uma bobagenzinha, e aproveitava o tempo para ler e consertar velhos livros. Às vezes ia ao Fórum entregar documentos. Às vezes o advogado comentava alguns casos jurídicos comigo. Mas não gostei daquilo, e saí. Fiz então um curso de datilografia e arranjei emprego de datilógrafa no Sindicato dos Motoristas em Guindastes do Porto de Santos. Me assustava com aqueles homens imensos, brutais, que falavam grosso, com voz tonitruante, que gritavam. Eu ficava lá apavorada, errando tudo, sem nem saber como enfiar o papel carbono na máquina de escrever. Vez em quando alguém mais bem-educado pedia para os outros me respeitarem. Fiquei apenas um mês nesse sindicato. Uma vez, de férias na casa de minha madrinha em São Paulo, fui fazer teste em curso de programação de computador eletrônico da IBM. Passei, e comecei a fazer um curso que era de um mês, o curso inicial, pra depois você pegar o curso propriamente dito. Era de segunda a sábado, das sete da manhã a uma da tarde. Era eu e um monte de japonês na sala, porque a única mulher da turma era eu. A Sobrevivência na Selva Adorava o curso, mas acontece que nessa época já estava na gandaia, ia beber nos bares da Rua Maria Antonia direto com meu namorado. Morria de sono durante as aulas, e então não consegui passar para a segunda parte do curso. Mas fiquei encantada com aquele negócio dos computadores, que na época eram coisas imensas chamadas cérebros eletrônicos. Desde essa época já procurava ganhar meu próprio dinheiro, ter o meu próprio ganha-pão. Fiz de tudo para conseguir meus primeiros trocados. Já estudante do Aplicação, vendi até títulos da Vasconcelândia, que o comediante José Vasconcelos tentou construir no interior de São Paulo e que procurava ter certa similitude com a Disneylândia, mas nunca deu certo. Vendi apenas um título para o novo marido da minha mãe, outro para a minha madrinha e um terceiro para o meu pai. Mais nada. Era terrível, batia nas portas, a pessoa abria a porta, mas, quando percebia que estava tentando vender algo, batia a porta na minha cara. Com pouquíssimo dinheiro, falei com o Carlos Silveira, com quem participei da montagem de A Árvore que Andava em Santos, que estava precisando trabalhar desesperadamente. Foi quando ele me falou que a temporada de Marat-Sade, dirigida pelo Ademar Guerra, estava acabando e que Antunes Filho estava fazendo testes para uma peça que ia dirigir: A Cozinha, de Arnold Wesker. Nesse ínterim, só convivia no meu colégio com gente crânio, gente maravilhosa, gente inteligentíssima, gente de alta qualidade. Fome, Fome, Fome e A Cozinha Nessa época morava numa pensão que era um horror. Ficava, se não me engano, na Rua Marquês de Itu, no centro de São Paulo, e era terrível espelunca. Eram cinco camas por quarto, e minhas colegas de quarto eram empregadas domésticas, prostitutas, mulheres separadas, alcoólatras. Essa convivência, só percebi isso muito depois, foi muito enriquecedora em termos de observação da alma humana, mas nessa época estava era mesmo completamente apavorada em viver num lugar assim. O dinheiro era muito curto, quase nenhum, mal dava para comer e pagar condução. Foi um período muito pesado. Só comia melhor quando ia estudar na casa de alguma colega, e, às vezes, comia maravilhosamente bem. Também por isso quase sempre arranjava um jeito de estudar na casa de alguma amiga. Às vezes, na hora do lanche, ficava olhando, triste, os meus colegas comerem. Eu só podia olhar. Sempre algum colega perguntava: Quer um sanduíche? Aí me pagavam um sanduíche, mas eu ficava morta de vergonha. Mesmo com fome, estava lá em todos os piquetes, participando de todas as agitações que surgiam. Foi quando se abriu porta inesperada: fiz o teste para participar da montagem de A Cozinha, com direção de Antunes Filho, e passei. Foi a minha estréia profissional no teatro, registrada em carteira de trabalho, que me apresentava como comerciária. Na época, a profissão de atriz ainda não havia sido regulamentada. Queria fazer Filosofia, e tentei conciliar o final do curso Clássico com um curso intensivo de Filosofia num cursinho. Mas não tive fôlego por causa das dificuldades todas de moradia, de alimentação, de transporte, de tudo. Então fiquei só no Aplicação, fazendo greve, fazendo movimento, fazendo tudo. Mesmo assim acabei o curso, e prestei prova para ganhar uma bolsa integral no cursinho Equipe. Nessa época já queria cursar Sociologia. Fiz o teste, passei, ganhei a bolsa integral, e comecei a cursar o Equipe para prestar vestibular na USP, para Sociologia. Sandra e os Águias de Fogo Ainda no tempo do Colégio de Aplicação estreei no cinema. Meus colegas eram todos muito cultos, muito inteligentes. O namorado da Luiza, uma amiga minha, acho que era Marreco o nome dele, me chamou para fazer um filme. O título era Sandra, Sandra, e eu era a protagonista. O cara me chamou, gostei da idéia, e topei. Lembro que o Antonio Fagundes também estava no elenco. Era um longa-metragem e fazia o papel de uma revolucionária. Mas não ficou, acho, nenhum registro desse filme. Nem sei se o filme chegou a ser concluído, pois perdi completamente o contato com o diretor do filme e com essa minha amiga Luiza, que teve os pais exilados do País, porque a repressão militar contra quem lutava contra a ditadura já estava ficando pesadíssima. Ainda não me sentia atriz, mas com esse filme, Sandra, Sandra, comecei a achar que estava se abrindo um caminho novo. Além disso, alguém que me conhecia e que conhecia alguém na TV Tupi me convidou para participar de um seriado de aventuras, o Águias de Fogo. Era um negócio absurdo, fiz um episódio, mas ganhei um cachêzinho que ajudou a quebrar o galho. O programa não fez sucesso nenhum, era exibido no mesmo horário da novela Redenção, da TV Excelsior, um grande campeão de audiência daquela época. Odiei fazer, acho que não me ajudou em nada. Acabou sendo minha primeira experiência na TV, mas foi tão ruim que fiz questão de apagar de minha memória. Na verdade, detestei fazer aquilo, achei uma coisa completamente ridícula que não tinha nada a ver comigo. Afinal, já devorava autores como Karl Marx, Engels, Lênin, além de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Só topei fazer esse seriado vagabundo pelo dinheiro, pelo cachê vagabundo que me pagaram, mas que ajudava a agüentar a parada da falta de grana. O Milagre da Gripe Fui então fazer A Cozinha, com direção de Antunes. Passei a ganhar o salário mínimo da época, mas, durante os ensaios, a gente só recebia metade. Era pouco dinheiro, mas mesmo isso pra mim foi uma glória e me permitiu sair da pensão ordinária para um apartamento, uma quitinete na verdade, no bairro da Aclimação. Morei lá com mais três mulheres. Era um prédio tão bom que vez em quando o Bandido da Luz Vermelha se escondia lá, num dos apartamentos, com o bando dele. Era um pardieiro. Dormia no chão, num colchonete. Lembro uma história que me marcou muito quando morava nesse lugar. No apartamento ao lado do nosso moravam duas mulheres e, uma vez, fiquei sabendo que um médico visitou uma delas e fez um aborto. Fiquei muito chocada. Era um ambiente muito ruim. Estudava no Colégio Equipe e namorava um rapaz muito rico que tinha acabado de conhecer, quando comecei os ensaios de A Cozinha. No início me senti meio tímida, mas aos poucos fui conhecendo as pessoas. Era a minha primeira atuação profissional como atriz e não me importava muito em fazer o último papel da peça, quase uma mera figuração. Mas a peça era belíssima, isso é que importava, e acontecia em torno da cozinha de um restaurante, com cozinheiros, garçonetes e garçons. Nós atores tínhamos treinamento especializado para saber como andar com a bandeja na mão, em como servir os pratos, em como fazer isso, em como fazer aquilo. Não deu outra: comecei a me encantar com aquela coisa toda, com a magia do teatro. Além do mais, o Antunes Filho mandou a gente ler livros de esquerda como Princípios Fundamentais da Filosofia, de George Politzer, e eu achava tudo aquilo absolutamente genial. Meu papel era o de uma garçonete, sem fala nenhuma, que entrava muda e saía calada. No máximo, gritava alguma coisa de vez em quando, tipo pedir um prato em voz alta na cozinha. Mas aí, durante os ensaios, a menina que fazia o penúltimo papel da peça caiu doente, de hepatite, e eu ganhei o papel. Ganhei então uma barriga de grávida, algumas falas e ainda desmaiava em cena. Eu tinha melhorado um pouco de vida, mas continuava muito pobre. Já podia pagar o apartamento onde morava, mas comer bem era coisa difícil. Às vezes tinha que optar entre pagar o aluguel e comer; era tudo muito contadinho. Nessa penúria toda, acabei pegando uma gripe braba, que me fez cair de cama com 40 graus de febre. Foi quando a prima desse rapaz que namorava me levou para a casa dela, uma mansão superchique, imensa. Para mim foi um choque, mesmo que por poucos dias, trocar o apartamento ordinário por aquela mansão cinematográfica. Fui tratada como se fosse a rainha do mundo, e aquilo me fez um bem danado. A Palavra de Eva Muitíssimo bem-tratada pela família do meu namorado rico, voltei logo ao trabalho no teatro. Na véspera da estréia, Eva Wilma foi assistir aos ensaios e fez várias observações sobre a atuação do elenco de apoio, a minha atuação inclusive. Vivinha reuniu todo mundo, e falou: Você tem que mudar isso, você tem que corrigir aquilo. Aí ela olhou em seguida para mim, e falou assim: Você está pronta, você é uma atriz. Foi aí que aconteceu, descobri, enfim, graças a Eva Wilma, que era uma atriz. Era ainda uma garota, ela já era uma grande atriz, e ela teve essa gentileza, essa generosidade. Foi ela que me nomeou atriz. Desculpe, mas vou chorar de novo... A peça estreou, e foi um sucesso absoluto. Lotava o Teatro da Aliança Francesa todos os dias, e foi convidada para fazer temporada no Rio de Janeiro. Tive que sair da peça porque ia prestar vestibular na Universidade de São Paulo, para Sociologia, porque não tinha dinheiro para fazer faculdade paga, e não queria saber do dinheiro do meu namorado rico. Nesse ínterim, já tinha me mudado para um pequeno apartamento do lado do Teatro Oficina, na Rua Jaceguai. Ficava num prédio pequeno, tinha apenas uma salinha e um quartinho, era apenas um pouquinho melhor que o apartamento da Aclimação. Dividia o aluguel com uma companheira de organização, pois eu já integrava os quadros da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Minha vida virou uma loucura. Fazia tudo ao mesmo tempo. Estudava para o vestibular, atuava em A Cozinha e tinha meus compromissos com a VAR-Palmares. Mas prestei o vestibular, e passei. Aliás, passei muito bem colocada, me lembro que saiu a listagem dos aprovados e fui a décima primeira colocada entre 2 mil candidatos que disputavam 200 vagas. Foi um alívio. Lembro como se fosse hoje, eu na salinha, de madrugada, tomando café, nunca fui de tomar remédio e essas coisas para não dormir. Tomava café sem açúcar, e ficava estudando a matéria da prova do dia seguinte, porque não havia tido tempo de estudar durante o dia. Era muita coisa. A minha vida virou uma loucura completa. Trabalhava, atuava, estudava, fazia revolução – e tinha só 18 anos. Nasce uma Guerrilheira No início fui apenas simpatizante da VAR-Palmares, mas depois, pouco tempo depois, virei militante e direção estadual. Essa minha radicalização rumo à esquerda se intensificou durante minha passagem pelo Colégio de Aplicação. Tinha professores fantásticos lá, que promoviam debates quase diários sobre a situação social e política do Brasil. Então participava de todos os movimentos estudantis, participava de greve, participava de passeatas. Gostava muito de uma professora muito progressista que, quando me encontrava na rua, dizia assim: Finge que não está me vendo, finge que não me conhece, finge que nunca me viu. O meu dia-a-dia passou a ser correr da polícia, da cavalaria, pelas ruas de São Paulo, e entrar em bares e restaurantes e prédios para escapar da perseguição policial. A impressão que tinha era que todo mundo que conhecia estava envolvida em alguma atividade anti-regime. Não havia como não me envolver, como não me relacionar com pessoas que estavam ligadas a organizações guerrilheiras. No início fui cooptada como simpatizante e cada vez mais achava que aquele caminho, o da luta armada, era o mais apropriado. Vivíamos discutindo documentos, vivíamos discutindo a realidade do que estava acontecendo no País. As coisas então só se agravavam. A repressão militar se intensificava ainda mais. Foi um momento de muitas perdas. Muita gente foi presa. Mas estávamos sintonizados com o movimento estudantil no mundo inteiro, e continuávamos na luta. No Aplicação, os professores faziam mais comícios nas salas do que propriamente aulas. Fiquei lá apenas seis meses, mas foram meses que me marcaram muito. Além disso, tinha o pessoal do teatro, Ademar Guerra, Antunes Filho, todo mundo muito articulado politicamente. Saí da área de influência do Partido Comunista Brasileiro diretamente para a VAR-Palmares. Essa minha guinada refletia muito o momento que a gente vivia. A gente achava que a luta eleitoral tinha ido por água abaixo com o golpe militar, principalmente com o Ato Institucional número 5, que fechou tudo, que arrebentou tudo, que fechou o Congresso. A gente achava também que não dava mais para desenvolver luta político-partidária, que era a luta do Partido Comunista Brasileiro, de se infiltrar e agir dentro das próprias instituições democráticas. A idéia então era optar por uma postura de enfrentamento de guerra armada, de luta armada, tanto no campo quanto na cidade. Para se ter uma idéia de como a esquerda estava infiltrada nas escolas e colégios de São Paulo, a minha professora de Francês no Equipe era ninguém menos que Iara Iavelberg, que foi mulher do Lamarca. Ser aluna dela em Francês me seria muito útil quando fui fazer exame oral de Francês no vestibular. Na época podíamos optar por Francês ou Inglês, eu optei pelo Francês. Na prova oral de Francês teve sorteio entre vários autores, tinha Hegel, Marx, Descartes, Kant, o quinto não lembro mais. A prova constava de ler textos desses filósofos em Francês, interpretar o que tinham escrito, e responder uma série de questões que os professores faziam. No meu sorteio caiu Karl Marx. Então fui maravilhosamente bem na prova. Na verdade, nem era tão boa em Francês assim, falava até meio precariamente, mas no que era boa mesmo, e as aulas de Francês de Iara Iavelberg ajudaram nesse sentido, era em Karl Marx. Sabia tudo que estava escrito ali naquela prova, fosse em que língua fosse. Simplesmente Rosa Fui me aproximando aos poucos do pessoal da VAR-Palmares e quando entrei na Sociologia da USP, já não estudava, já não mais fazia movimento estudantil, eu já era uma guerrilheira. No início ainda freqüentei algumas aulas, mas não participava mais de nenhuma manifestação estudantil para não me expor. Na faculdade era discretíssima. Nesse momento já atuava na luta clandestina e já tinha adotado o codinome Rosa, eu já era Rosa. Fui eu que escolhi o nome. Era homenagem a Rosa Luxemburgo, cujos livros já tinha lido e adorado. Na VAR-Palmares tínhamos uma estrutura de funcionamento fechadíssima. Conhecia pouquíssima gente dos quadros da organização, e menos gente ainda da VAR sabia que eu pertencia à organização. Era mais arriscado me conhecerem e me delatarem do que eu conhecer e delatar alguém. Porque a maioria dos integrantes era formada por cidadãos comuns, e eu já era uma pessoa que estava começando a ficar conhecida por causa do trabalho no teatro e, logo depois, na televisão. Meu esquema era diretamente com os quadros principais da organização. Geralmente me encontrava com alguém em determinado lugar de São Paulo ou mesmo em minha casa. Quando virei militante, o meu namorado rico me propôs que eu mudasse para um apartamento melhor. Isso coincidiu com o fato de passar a ganhar um salário melhor na televisão. Foi quando consegui alugar um apartamento melhor, que o pai do meu namorado rico foi fiador. Ficava na Rua Bela Cintra, nos Jardins, em São Paulo. Era divino o apartamento, dois quartos, cozinha grande, área de serviço, aquecimento central, banheiro de empregada, era uma beleza. Foi lá que tive muitas reuniões com a direção estadual da VAR-Palmares. Capítulo II Pausa Dramática 1: Bete e o Mar Minha mãe conta que me levou para praia com um mês de idade, e me banhou na água do mar. Que, quando estava engatinhando, ia para a praia com ela todos os dias, e que ia de gatinhas em direção ao mar. Então minha relação com o mar é vital. Desde pequenininha comecei a nadar, estimulada por minha mãe. Por isso essa relação de absoluta paixão que tenho pelo mar, uma relação mágica, lúdica, temerosa, respeitosa. Quando morava na Ilha do Governador, gostava muito de conversar com os pescadores. Ia à praia todos os dias, fizesse sol ou chuva. Era uma necessidade que eu tinha. Ia a pé, ou de bicicleta. Ia mergulhar e me abençoar, pois sentia que tinha uma relação mística com o mar. Sempre tive essa relação. Era como se o mar me alimentasse, me acarinhasse, me recebesse, me apaziguasse, me abençoasse, me limpasse, me protegesse. Não morava perto do mar quando era criança. Quando era bem bebezinha, a gente morou perto do mar, em Santos e em São Vicente, foi aí que minha mãe me levou pro mar. Depois, já maiorzinha, morava nessa Base Aérea que era longe do mar. Mas quando viemos paro o Rio, voltei a morar perto do mar, então ia muito pro mar. Ia todo dia, todo dia. Era uma solitária de frente pro mar, e me chamavam de Iemanjá. No Galeão agora tem as passarelas pro aeroporto, não se tem mais a visibilidade que tinha antes. Mas tem uma ponte que ainda está lá, que é chamada Ponte dos Pescadores, onde tinha uma peixaria e onde os pescadores vinham trazer as pescarias. Então ia para essa ponte todos os dias. A pé pelas pedras, quando a maré estava baixa, ou a nado quando a maré estava alta. Ficava lá, mergulhava lá até cansar. Era lugar muito perigoso. Meu pai se desesperava com isso. Tinha medo que batesse minha cabeça nas pedras quando mergulhasse. Quando a maré estava baixa, as pedras apareciam, e uma vez raspei minha perna inteirinha nelas. Meu pai repetia: Você vai quebrar a cabeça de novo. Eu dizia: Não vou não, eu sei mergulhar. Porque eu mergulhava e livrava a cabeça, mas a perna ia raspando. Achava lindo ficar toda machucada pelas pedras do mar. Mergulhava sozinha, ou com os meninos que moravam numa instituição que havia no local. Mergulhava com eles, como se fosse um deles, e eles me respeitavam muito. Era impressionante. Minha relação com o mar era de vida, mesmo, de convivência profunda. Se estivesse triste, ia pro mar e mergulhava, se estivesse feliz eu ia pro mar e mergulhava. Precisava mergulhar no mar todo dia. Sempre gostei do mar, mas isso, essa paixão, se intensificou quando mudei para o Rio. Tive vários acidentes no mar quando era criança, fiquei mais temerosa, e ainda mais apaixonada. Um dia estava com minha mãe e uma amiga dela numa praia de Santos. Era uma praia muito calma porque era uma enseada fechada, mar de dentro como a gente chama. E eu com essa amiga de minha mãe estava indo mais para o fundo do mar, e lá havia um redemoinho. Estava com a amiga de minha mãe lá dentro, no meio do redemoinho. Não dava mais pé pra mim. Acho que, para ela, também não. E ela começou a afundar, e eu afundei com ela. Quando afundei, percebi que o redemoinho nascia deste tamanhinho e depois abria. Então pedi para ela afundar comigo, que a gente sairia por baixo, e ela estava se debatendo e quase se afogando. Quando olhei em direção à praia vi que minha mãe vinha vindo com dois salva-vidas. Então mergulhei, peguei a amiga de minha mãe pela mão, puxei, e conseguimos sair do redemoinho. Fiquei prosíssima porque eu descobri o segredo do redemoinho e porque salvei a amiga de minha mãe. Quando a maré estava alta eu sempre pulava dessa ponte dos Pescadores. Um dia foi uma turma grande comigo, inclusive uma adolescente imbecil que não sabia nadar, mas que a gente não sabia que ela não sabia nadar. A adolescente imbecil ficava dizendo: Quero pular, eu quero pular, mas tenho medo, tenho medo. A gente dizia, sem saber que ela não sabia nadar: Pula, que bobagem a sua, a maré está alta, não tem pedra, não tem nada, pula. E ela pulou. E, como não sabia nadar, começou a gritar: Estou me afogando, socorro, socorro. Caí na gargalhada, achei que era piada. Mas não era piada. Quando vi que a imbecil estava se afogando mesmo, mergulhei, puxei ela pelos cabelos, e falei: Vem. Fui puxando ela para fora da água e salvei a adolescente imbecil. Mas falei para ela: Você é maluca, é? E dei o maior esporro nela: Você não sabe nadar, por que então você mergulhou, hein? A minha avó falava muito do mar, sempre com cautela. Também ouvia muito os pescadores falarem do medo e do respeito que tinham pelo mar. Acho que o começo de minha paixão pelo mar estava em minha mãe, que sempre nadou lindamente. Minha mãe era uma sereia. Linda! Os Índios e os Bandidos Quando era criança e, claro, minha avó índia tem a ver com isso, eu não brincava de bandido e mocinho, brincava de índio e bandido, e os índios tinham que ganhar sempre. Quem estabelecia isso era eu, não tinha jeito. A gente morava na Vila Militar de Santos, a nossa casa tinha um quintal grande, tinha uma mata que acabava dando lá atrás no terreno onde guardavam o arsenal, e tinha uma montanha de pedra. Era lá que a gente brincava de índio e bandido. Sempre ganhava a batalha e prendia os bandidos, e matava os bandidos. Se houvesse alguma inversão, dava a maior briga porque eu dizia: Não pode mudar o resultado da batalha, bandido é mau e índio é bom. Era disso que gostava de brincar na minha infância. Lembro que, nessas batalhas, o meu irmão Marcos tinha uma pontaria extraordinária. Se praticasse ele seria campeão mundial. Era menorzinho, magrinho, às vezes fugia da raia, mas, com um estilingue e uma bolinha de gude, era capaz de acertar o adversário na cabeça. Dava esporro nele porque ele estava machucando o garoto, mas no fundo achava muito bom que tivesse acertado o adversário. Eu ia mesmo era no braço, meu negócio era ir no braço, cair no chão e brigar no braço mesmo, com menino, menina, fosse quem fosse. Também brigava muito com meu irmão. Uma vez, no Galeão, eu já adolescente, meu irmão ganhou num jogo de gude, ganhava sempre. Aí os garotos que perderam ficaram chateados, e deram porrada nele, e ele veio correndo pra casa. Lembro que ele pulou a cerca, eu estava na janela, e vieram três marmanjos correndo atrás. Pulei a janela, e falei assim: Vocês querem bater nele porque ele é menor, vem aqui, vem aqui, vem me enfrentar. Quero ver quem vem me enfrentar aqui, quem é de vocês o primeiro que vai levar porrada? Os garotos ficaram meio assim, meio assustados, e eu ameacei: Venham aqui, porque é com gente do tamanho de vocês que vocês têm de brigar, não é com meu irmão que é pequeno, não! Os meninos fugiram, e entrei em casa, peguei na orelha de meu irmão: Seu covarde de merda, você não pode fugir, você tem que enfrentar os caras! Tinha essa coisa com meu irmão, mas no fundo eu tinha dó, porque ele fugia, mas fugia porque era pequeno, miudinho. Era magra, muito magra, mas muito metida e, acho, meio maluca. A Mocinha e os Bandidos Quando estava fazendo A Cozinha, saía à noite do teatro achando que nada poderia me acontecer. Não havia nenhuma noção de perigo na minha cabeça. Lembro então que estava andando na Rua General Jardim, no centro de São Paulo, perto do Teatro Aliança Francesa. Era mais ou menos meia-noite e meia, uma da manhã, uma coisa assim, e eu estava andando, usava um jeans justo, uma camiseta, uma bolsa a tiracolo, e estava andando. De repente vieram três rapazes atléticos, e eu distraída, pensando na vida e andando para pegar uma condução de volta para casa. Eles cruzaram comigo, e um deles me beliscou na coxa. Encarei eles, parei, respirei fundo, e gritei: Qual é o primeiro filho da puta que vai apanhar? Eles se olharam, assustados, e fugiram correndo. Fiquei suando frio, me encostei numa parede para recompor as forças, e pensei: Porra, Bete, se esses caras tivessem a fim, eles tinham te matado! Mas, imediatamente, pensei, lá dentro de mim: Mas um eu quebrava, um eu quebrava. Fiquei tão ultrajada com aquilo, que iria parar num hospital, mas um eu levava comigo. Sabe aquela coisa da injustiça? Não podia deixar barato não. Luta Armada ao Som de Vivaldi Nunca fui de ler livros água-com-açúcar e odiava fotonovelas. Adorava os livros de Monteiro Lobato, meu pai me deu as obras completas dele de presente de aniversário ou de Natal, não lembro direito. Uma vez, já aqui no Rio de Janeiro, minha mãe comprou Maravilhas do Conto Universal. Não lembro se eram dez ou quinze livros, mas devorei um por dia. Depois teve de devolver a coleção porque não tinha dinheiro para pagar, mas eu já tinha lido tudo. Mas as pessoas foram muito generosas comigo e sempre me apresentavam um livro novo, um autor novo. Além disso, ia muito à biblioteca dos colégios onde estudei e descobri a Biblioteca Nacional, que é maravilhosa. Vinha mais cedo, ia para a Biblioteca Nacional e ficava lá lendo. Ou ouvindo. Lá havia uma discoteca maravilhosa e passava horas escutando Gershwin e Bach, por quem era apaixonada desde a infância, quando queria ser pianista. Na época da Jovem Guarda estava engajadíssima, e não liguei a mínima para o movimento. Meu negócio era Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Tom Jobim, por quem tinha, e tenho, paixão absoluta. Mesmo guerrilheira, não abria mão de ouvir música clássica. Lembro uma vez que fiz uma reunião da direção estadual do VAR-Palmares lá em casa. Preparei umas comidinhas, conversamos sobre a luta armada e tal, e botei na vitrola o grupo I Musici tocando as Quatro Estações, de Vivaldi. Depois um companheiro comentou: Nossa, como você é fina! Que música maravilhosa! Mesmo guerrilheira, curtia descobrir novos sons, novos músicos, tipo Chico Buarque, tipo Edu Lobo. Nunca esqueço o dia que fui assistir ao espetáculo Opinião, com Maria Bethânia, João do Vale e Zé Kéti, não era mais a Nara Leão, era com a Maria Bethânia. Nem o dia que vi Liberdade, Liberdade, dirigido pelo Flávio Rangel. Fiquei impressionada com o Paulo Autran, o Paulo Autran estava extraordinário. Nem o dia que fui ver o Baden Powell tocando com o Quarteto em Cy no Teatro Santa Rosa. Era sublime poder ver aquele monstro da música popular brasileira dedilhando aquele violão no palco. Também tinha paixão por Andrés Segovia e por Pablo Casals. Todas as Sessões de Cinema Quando voltei a Santos, antes de ir morar em São Paulo, virei rato de cinema, não perdia uma sessão de filme de arte no Cineclube de Santos, onde tive a experiência extraordinária de assistir a uma Mostra do Cinema Soviético e de descobrir, extasiada, os filmes de Serguei Eisenstein. Fiquei maluca com aquela cinematografia genial dele. Então virei cinéfila de carteirinha, curtia principalmente filmes de arte. Me apaixonei, por exemplo, pelo cinema do japonês Akira Kurosawa. Lembro uma vez que em São Paulo fui assistir Ralé (ou teria sido O Homem Mau Dorme Bem?). Gostei tanto do filme, que saí do cinema, fui até a bilheteria, e perguntei: Onde compro um cartaz desse filme? A menina entrou em pânico, não tinha a menor idéia. Fui então à moça que recebia os bilhetes, e ela também não sabia de nada. Procurei então o gerente do cinema e ele me deu o nome da distribuidora do filme, que ficava no bairro da Liberdade. Dia seguinte fui à Liberdade, subi até o décimo quinto, ou décimo oitavo andar de um edifício, entrei num escritório que só tinha japonês, e falei que queria comprar um cartaz daquele filme do Kurosawa. Eles riram, riram, riram, e disseram: Quantos cartazes de quantos filmes você quer? Queriam me dar todos os cartazes que tinham lá, ficaram impressionados com minha paixão pelo Kurosawa. Mas a minha paixão era a mesma também por François Truffaut e por Ingmar Bergman. Talvez nessa época procurasse me purgar da culpa de, quando mais jovem, ir ao cinema apenas para namorar, não para ver os filmes. Betão Bom de Bola Quando criança, tinha poucas amigas. Elas me enfastiavam, gostavam de ouvir e comentar novelas de rádio, que achava um saco. Gostava mesmo era de conversar com os meninos, e sobre futebol, sobre esquemas táticos. Quando o Nilton Santos morava na Ilha do Governador, ia com os meninos ouvi-lo contar as histórias da época em que jogava no Botafogo. Ficava apaixonada, porque sempre torci pelo Botafogo e, claro, pelo Santos que, além de ser o time da minha cidade, era, na época, o melhor time do mundo. Não só gostava de ver e de comentar futebol. Gostava de jogar também, adorava. Como não segui a carreira esportiva, que em certa época foi um dos meus projetos, sempre que podia jogava um futebolzinho. Aliás, tenho uma história engraçadíssima sobre isso. Nos idos dos anos 70, fui gravar a novela Sinhazinha Flô, em Conservatória, no interior do Estado do Rio. Era a protagonista. Gravava muitas horas por dia, andava a cavalo, passava o dia inteiro com roupas de época, à noite estava exausta, queria só relaxar. Como no hotel onde me hospedava era uma fofocaiada só, aqueles papos meio bobos que não curtia, eu fugia para o hotel onde estava o pessoal da pesada, o pessoal da técnica, jogava bilhar com eles, e me divertia horrores. Aí eles descobriram, na estrada que ligava o nosso hotel ao local da gravação, um lugar pra jogar pelada. Não pensei duas vezes: fui jogar futebol com eles. Lembro que vestia uma sunguinha chamada zazá, que era moda na época, botava uma camisetinha e, descalça, ia jogar futebol com a equipe técnica da novela. Era engraçadíssimo, porque eu entrava em campo e virava um petardo, dava porrada feito louca, gritava, dizia que podiam me bater no peito, mas na cabeça não, porque havia sofrido um acidente terrível algum tempo antes, xingava, esbravejava, brigava. Era maravilhoso, éramos todos homens jogando futebol, não tinha frescura nenhuma. Às vezes levava um tranco, aí eles se davam conta que era eu e que eu era mulher, e pediam desculpas. Tinha uma relação maravilhosa com eles. Na TV Bandeirantes também joguei futebol com o pessoal da equipe técnica, e na TV Cultura também. O tempo passou. Numa época que Marcos Paulo pensou em se candidatar à prefeitura de Búzios, ele me procurou. Como tinha sido deputada, queria saber como era essa história de fazer política, saber como é que era a campanha e tal. Estava no cafezinho da Globo, quando ainda era no Jardim Botânico, conversando com o Marcos, quando chegou um cara da técnica com quem havia jogado futebol em Sinhazinha Flô. Ele me abraçou, e falou para o Marcos Paulo: Esse aí é o Betão bom de bola. E saiu rindo. Marcos Paulo estranhou, não entendeu nada, e eu lhe expliquei: É o seguinte: é que virei Betão bom de bola para os meus amigos com quem eu jogava futebol nos tempos de Sinhazinha Flô. Achava uma delícia ser chamada de Betão bom de bola por essa galera. A Hora da não-Estrela Claro que de vez em quando me questionavam essas atitudes, esse meu jeito de ser. Alguns achavam que devia ser mais chique, que devia andar mais arrumada. Na época que protagonizava as novelas da Globo me questionavam o fato de eu não ser estrela, de não me comportar como estrela. Não agir como estrela. Mas fazer o quê? Invejo essas mulheres glamurosas que chegam e arrebentam. Não consigo, não sou assim. Só sei chegar devagarinho, discretamente. Até que já representei mulheres charmosas e sexys como a Sílvia, de O Rebu. Mas era o meu papel, o meu personagem, representava e caía fora. Sempre tive esse jeito informal e esse jeito moleque a vida inteira. Sempre gostei de brincar. Nessa época em que comecei a jogar bola com a equipe técnica, estava cansada de trabalhar, de decorar montanhas de texto, de interpretar muitas cenas, de ser aquela mocinha que sofria o tempo inteiro. Então à noite, achava ótimo cair na gandaia, em vez de ficar no hotel naquele clima de diz-que-me-diz-que, naquele clima de fazer fofoca, de falar mal da vida alheia. Uma Culpa por Isabel Nasci gêmea, mas minha irmãzinha Isabel faleceu com um mês de idade, de insuficiência cardíaca. Isso sempre me pesou muito. Senti muito a falta dela e me sentia meio culpada, eu nasci supersaudável e ela, muito fraquinha. Dava uma certa culpa achar que tinha roubado a energia dela. Quando penso sobre como ela seria se tivesse sobrevivido, acho que seria mais delicada do que eu. Tenho essa impressão, que ela seria muito mais delicada, mais feminina, mais clara. Minha mãe me conta que ela tinha uma pele branquinha. Sou mais ação, embora tenha um lado meu que seja muito frágil, muito emotivo. Eu me emociono muito, e assim sempre de uma maneira arrebatada. Sempre tive essa coisa de ser muito emotiva e muito suscetível. Esse meu jeito ativo de ser talvez seja uma maneira de me defender. Pecado Capital No meio artístico tenho uma relação muito boa com meus colegas, quando as coisas ficam no plano do intelecto e da emoção sincera. Agora não consigo fazer fofoquinha, de curtir certa maledicência que rola por aí. Não suporto fofoca. Na verdade, quando vim para a Globo e tive certa época de estrelato, aquilo tudo era muito delicado pra mim. Porque tinha, e tem, uma corrente muito forte de inveja, de puxar o tapete, via isso todo dia. Hoje, com a maturidade, vejo isso, essa maledicência, com mais tranqüilidade, mas ainda me incomoda muito. Acho isso muito pobre, muito pequeno, muito burro. Por que, em vez de puxar o tapete do outro, você não se soma com o outro? Isso me incomoda, sei que é uma coisa que faz parte da gente, mas me incomoda muito, não posso negar. Ator Pronto É Ator Morto O será que eu sou ou não sou atriz é questão que sempre me acompanhou. Teve muitos momentos em que me questionei por não estar sabendo ser ou fazer o que deveria fazer, não ter a grandiosidade da personagem, ou não saber transmitir aquele papel, aquele corpo. Talvez tenha mais consciência das minhas precariedades do que dos meus acertos. Uma vez me vi numa cena de Beto Rockfeller, e fiquei horrorizada comigo, com o meu desempenho. Acho que foi há muito pouco tempo que percebi que era mesmo uma atriz. Agora já me vejo na televisão e no cinema com certa satisfação. Quando a gente acha que já fez o melhor, a gente morreu. Não tem outro jeito de aprender: é se depurando aos poucos, erra, acerta, erra de novo, acerta de novo, volta, e vai fazendo. Coração Materno Nunca me casei formalmente, por vontade própria. Quando era criança, achava lindo me vestir de noiva. Depois, com as reviravoltas políticas e ideológicas que vivenciei, passei a achar uma bobagem. Depois, vendo os exemplos de pessoas que se casaram e tiveram separações traumáticas, decidi: É melhor não casar. Não casei nunca, nem em cartório, nada. Sempre vivi com pessoas. Nunca tive filhos, não pude ter. Sempre quis ter, mas não pude. Por viver sempre tão intensamente nesse agito, nunca considerei a possibilidade de adoção e poder assim me dedicar à maternidade. Agora o tempo passou, e acho que é tarde para isso. Mesmo não tendo filhos, e talvez exatamente por isso, sou muito amorosa, muito maternal, extremamente maternal. Transfiro esse sentimento maternal pra tudo, tudo, tudo, é impressionante. Quando trabalho, a minha relação com as crianças é absurda, parece que tem um ímã entre nós. Nessa novela que fiz recentemente no SBT, Seus Olhos, quando tinha criança em cena era incrível. É impressionante o magnetismo que há entre mim e as crianças, e com os jovens, e com as atrizes que são minhas filhas em novelas ou filmes. Sou muito maternal também na vida, com os amigos. Às vezes chego a exagerar. A ponto de os amigos eventualmente me dizerem: Calma aí, Bete! Capítulo III O Segundo Dia (Rio de Janeiro, 3 de junho de 2004) Irene, a Fada-Madrinha Não tive padrinho na carreira artística, tive madrinha: Irene Ravache. Foi ela que me indicou para a TV Tupi. A peça A Cozinha ia se apresentar no Rio de Janeiro, mas não pude ir, por causa do vestibular de Sociologia que faria na Universidade de São Paulo. Pedi para ser substituída, e conversei com a Irene Ravache, que também atuava no espetáculo, sobre a minha situação. Ela então disse que me apresentaria ao Cassiano Gabus Mendes, diretor de programação da Tupi, que havia acabado de assistir à peça em que participávamos e que era um dos mentores da idéia de fazer a novela Beto Rockfeller, ao lado de Luiz Gustavo e Bráulio Pedroso. Fui apresentada ao Cassiano e, em pouco tempo, fui contratada pela TV Tupi. Nessa época já era autônoma, meu pai não precisava mais ajudar, já tinha voltado às boas com meu pai e minha mãe, e comecei a atuar na novela. Era muito maluco conciliar trabalhar na tevê, estudar Sociologia na USP e fazer revolução, mas eu tentava fazer tudo da melhor maneira possível. Já morava num apartamento melhor na Rua Bela Cintra, mas pela manhã ia de ônibus para a TV Tupi, que ficava na Rua Alfonso Bovero, e à noite ia de ônibus para a Cidade Universitária, para onde os cursos de Ciências Humanas tinham acabado de se mudar. Não tinha jeito: acabava faltando muito às aulas, e eu pegava apenas as matérias que dava para fazer. Minha vida era assim: chegava de ônibus na Tupi, gravava o dia inteiro, saía correndo para a faculdade, ou, o que era mais freqüente, para as reuniões clandestinas da VAR-Palmares. Ninguém sabia nada de mim. Eu era aquela moça que entrou na novela para ser amiga da mocinha e o personagem foi crescendo. Ninguém esperava isso. Nem eu. Bete e os Lobos Foi assim: o Cassiano Gabus Mendes assistiu à peça e Irene Ravache me apresentou pra ele, e já marcou um horário com ele para me levar até a Tupi. Mas Irene falou: Você não vai sozinha não. Eu vou com você. Falei pra ela: Ah minha amiga, você é maravilhosa. Lembro que meu namorado rico tinha carro, me deixou na porta da Tupi, e ficou me esperando. Fui subindo as escadas até a sala do Cassiano, e os homens me olharam de um jeito que me intimidou. Tanto que voltei correndo pro carro do meu namorado. Aí falei: Não vou entrar, não gostei da cara desses caras. Meu namorado falou: Deixa de bobagem, vai lá, a Irene está te esperando lá dentro. Falei: Eu não vi a Irene, ela não está na porta, não vou entrar. Ele insistiu: Não, vai sim. Então fui. Finalmente encontrei a Irene, a Irene entrou comigo na sala do Cassiano. Estavam ele, o Walter Forster e um outro homem que não lembro mais quem era. Sentei na frente deles, e a Irene ficou do meu lado. Eles ficaram me olhando, de cima a baixo, me medindo mesmo. Lembro como se fosse hoje, um deles falou assim: Como está o seu lepômetro? Não tinha a menor idéia do que estavam falando. Só entendi quando acrescentaram, depois de olharem de novo de cima a baixo: É, os leps estão muito bons, todos, os leps de quadril, seios, cintura. Fiquei, claro, muito intimidada, mas a Irene Ravache se virou para eles, e falou assim: Vocês vão pra puta que os pariu. Porque ela é minha amiga, e ela vai ser contratada como atriz, como atriz, entenderam? E vocês vão pagar bem pra ela, e tratem de parar com essa sacanagem na frente dela, que a garota não é pra isso. Estava completamente apavorada, estava no maior pânico de entrar na televisão. Eles, na verdade, estavam fazendo um teste para ver o tipo de garota que eu era e que eles estavam levando para lá. Irene me salvou e saltou em minha defesa, porque já tinha uma experiência maior. Já era atriz profissional. Já conhecia todo mundo da tevê. Então a presença dela do meu lado naquela hora foi uma bênção maravilhosa. Uma Mulher como as Outras Nessa época o Stênio Garcia, que foi co-diretor de A Cozinha e que ficou meu amigo, me levou para assistir ao espetáculo Black-Out, com Eva Wilma e Regina Duarte. Fiquei impressionada com a Eva Wilma, que fazia o papel de uma cega, fiquei maravilhada com o espetáculo, porque tudo aquilo era para mim um mundo que eu não tinha planejado, que fui me aproximando sem ter noção, sem planejar nada. Sempre tive atração pelo palco, mas não tinha consciência de que era aquilo que eu queria mesmo. Antes quis ser pianista, bailarina, mas sempre tive uma relação muito desconfiada com a fama. Até hoje eu tenho isso. Com 36 anos de carreira, comecei no teatro profissional em junho de 1968, até hoje não sei muito bem lidar com a fama, com a notoriedade. Às vezes pessoas que não conheço me cumprimentam na rua, sou bem-recebida nos lugares, as pessoas sabem quem eu sou, e quando isso acontece levo um susto. Não tenho, e nunca tive, essa noção do alcance que eu tenho com o meu trabalho. Recentemente, por exemplo, fui fazer hidratação, pé e mão em cabeleireiro aqui perto de casa. Entrei, era um cabeleireiro normal, de classe média. Entrei, cumprimentei as moças que trabalham lá, disse bom-dia a uma funcionária que tenho mais intimidade. Uma senhora que estava lá se virou para mim, disse bom-dia, e me encarou como se quisesse lembrar de onde me conhecia. Comecei a rir. Achei estranho que me olhasse daquele jeito. Sempre quis ter uma vida normal, mesmo sabendo que aparecer na tevê nos faz íntimos de gente que nunca vi na vida, como essa senhora do cabeleireiro. Nunca abri mão, é uma necessidade minha, de ser dona-de-casa, de fazer todas as coisas que as pessoas comuns fazem, de ir ao supermercado, de ir à feira, de ter uma vida comum, enfim. Sempre tive receio do deslumbramento e da queda. Quanto maior o deslumbramento, maior a queda. Sempre tive muito medo da queda, tipo não ter condições de trabalhar, de interpretar um personagem que não funcione, tipo entrar em depressão por não se ser mais o que se foi. Mas isso, esse não-deslumbramento, foi coisa da qual fui me conscientizando com o decorrer do tempo. Também não me deslumbrei com o poder quando fui deputada e quando fui secretária de Cultura de São Paulo. Procurei ser a mesma Bete Mendes de sempre, uma mulher como outra qualquer. Anos Rebeldes Essa fase em que atuei em Beto Rockfeller e, ao mesmo tempo, tive vida clandestina como militante da VAR-Palmares foi muito maluca, muito maluca. Eu me reunia com dois ou três membros da organização guerrilheira, que sabiam que era uma pessoa que estava ficando famosa na tevê e que tomavam o maior cuidado para que outras pessoas da organização não soubessem de minha atividade profissional, porque isso tornaria o risco de denúncia contra mim muito alto, o que poderia trazer graves problemas de segurança para toda a VAR-Palmares. Hoje não sei explicar, não tenho idéia de como consegui fazer essa maluquice, de conciliar gravação de novela com fazer revolução armada. Era muito louco. Agora fico cansada só de pensar em como era difícil conciliar as coisas naquela época. Lembro de um dia muito doido que vivi em 1968, durante as manifestações de protesto contra a morte de um estudante pela polícia. Estava, com centenas de estudantes, subindo a Ladeira da Memória, quando a repressão chegou. Lembro que subia a escada correndo e, a dois degraus de mim, estava o José Dirceu, que hoje é ministro do governo Lula e na época era líder estudantil. Estava quase sem fôlego, tinha duas noites que eu não dormia, sempre fazendo agitação, quando cheguei no alto da escada e vi um caminhão cheio de polícia, bem assim em frente de onde eu estava. Foi uma loucura. Corri e entrei na primeira portaria de prédio que encontrei e subi cinco andares correndo. Cheguei em frente a uma porta, não tinha mais fôlego, e sabia que se os caras subissem atrás de mim, não tinha jeito, seria presa. Bati então na primeira porta que vi, abriram, e foi engraçadíssimo porque quando abriram a porta percebi que estava assim de estudantes fugindo da polícia lá dentro. Descansei um pouco, recuperei o fôlego, fiquei na janela espreitando, e vi um monte de gente sendo revistada, sendo farejada pelos cães pastores alemães, sendo presa. Ficamos esperando o tempo passar e fomos saindo vagarosamente no início da noite, um a um, pra não ser pego. Fui uma das últimas a sair, já de noite. Tinha muito medo. Mas ao mesmo tempo achava que tinha de fazer aquilo, tinha de lutar contra a ditadura militar. Na Augusta com Adamo Mas, por começar a ficar famosa interpretando a Renata em Beto Rockfeller, tive de recuar no movimento estudantil. Deixei de participar de manifestações de rua, porque seria muito delicado se me pegassem. Além do mais, o meu rosto passava a ser reconhecido em todo o País, por causa da novela. Enfim, recuei de minhas posições políticas no movimento estudantil. Então ficava quietinha na faculdade, não me envolvia mais com as questões universitárias, mas, clandestinamente, participava de reuniões para discutir as melhores maneiras de implantar a luta armada contra a ditadura militar no Brasil. Mas juntar as duas coisas, gravação de novela e fama e vida clandestina como guerrilheira não era fácil, era louco. Lembro de uma vez que entrei numa loja de discos na Rua Augusta, e passei o maior susto. Continuava com a minha vida normal, gravando novela, estudando, agitando e discutindo planos estratégicos para a revolução armada. Nessa época já integrava a direção regional da organização em São Paulo, e redigia documentos, discutia textos políticos com os companheiros de organização. Pois bem, uma vez eu estava na Rua Augusta, entrei numa loja de discos e percebi que começava a tocar F... Comme Femme, com o Adamo, que era o meu tema na novela Beto Rockfeller. Tomei o maior susto, e comecei a andar apressada para sair da loja. Foi quando ouvi um rapaz falando: Não. Não vá embora. Essa música é em sua homenagem. Então minha cabeça pirou, porque eu, a guerrilheira clandestina, eu, a atriz de novela, não tinha noção do alcance que a minha participação na novela começava a ter em todo o País. O Interrogatório O ambiente nas gravações de Beto Rockfeller era engraçadíssimo. A gente recebia os capítulos para decorar quase na hora de gravar. O Bráulio Pedroso escrevia o texto, a gente decorava, e gravava, geralmente de um dia para o outro ou, às vezes, no próprio dia. Mesmo assim, achava, e acho, que ele foi um grande autor de novelas, um extraordinário autor de novelas. Os diálogos que escrevia eram geniais e isso, com certeza, facilitava muito na hora de decorar, porque os diálogos dele eram muito precisos, não existiam sobras. Além do mais, era ótimo na construção de personagens femininos e, a partir de certo momento, começou a criar Renata baseado no meu jeito de ser, no meu jeito de falar, no meu jeito de agir. Voltando à minha entrada da TV Tupi: o Cassiano Gabus Mendes queria me contratar, mas antes quis que fizesse um teste com a Wanda Kosmos, uma grande atriz da época que sabia tudo sobre a interpretação na tevê. Eles me contrataram e agora queriam saber o que poderia render, que tipo de papel poderia interpretar, essas coisas. No dia do teste, fiquei desesperada de medo. Nunca tinha visto uma câmera de tevê na minha frente. Mesmo assim, fui fazer o teste. Lembro que usava um casaco de bolso daqueles tipo japona, bem comprida. Wanda Kosmos falou assim: Eu vou te fazer um interrogatório, e você vai responder olhando pra mim porque eu vou ficar do lado da câmera. Eu falei: Tá. Ela falou: Não olha pra câmera, olha pra mim. Eu balbuciei, inseguríssima: Mas eu estou com medo. Ela falou: Não, não tenha medo, vai apenas responder. Não quer ser atriz? Meio durona, mas tinha de ser assim, se não, não aconteceria nada, né? Falei: Quero. Aí ela ordenou: Então vai respondendo pra mim! Perguntou meu nome completo, o que é que eu gostava de fazer, o que eu não gostava, essas coisas. Enfiei as duas mãos nos bolsos, fiquei feito um soldadinho de chumbo, meio petrificada, respondendo tudo devagar, completamente apavorada. Fiquei de mão no bolso o tempo inteiro, me sentindo meio naquela situação nu com a mão no bolso, sabe? Até que finalmente acabou o teste, e ela não falou absolutamente nada. Meu pavor continuou. Fiquei pensando: Meu Deus, será que eles vão me aceitar, será que vão me contratar? Fui embora para casa completamente desesperada. Mas logo depois me chamaram para assinar o contrato e, melhor ainda, atuar na novela que iam começar a gravar. Na hora de assinar contrato, descobri que ganharia o dobro do que ganhava no teatro, e que no ano seguinte ganharia quatro vezes o que ganhava no teatro. Achei maravilhoso. Do Pavor ao Prazer Comecei a gravar, e eu estava simplesmente apavorada. Não era para menos. O elenco que contracenava comigo era tarimbadíssimo. Até mesmo Débora Duarte, mais ou menos da minha idade, já havia feito outras novelas e era filha de Lima Duarte, que dirigia a novela. Mas aconteceu uma coisa interessantíssima: todos eles me trataram muitíssimo bem, de uma maneira delicadíssima e o Lima Duarte era brilhante dirigindo. Depois Walter Avancini assumiu a direção da novela, mas no início foi o Lima. Beto Rockfeller durou um ano, um mês e treze dias que eu gravei na minha memória, e talvez na época não tivesse noção da maravilha que a novela era, embora gostasse muito de atuar e tal. Meus colegas todos foram de uma gentileza que me emociona sempre que lembro desse período. Até o Luiz Gustavo, que tinha fama de não decorar o texto nunca, decorava as cenas que gravaria comigo, numa deferência especial. Até Maria Della Costa, atriz maravilhosa e superprestigiada, fez amizade comigo. Não deu outra: em pouco tempo me integrei completamente e descobri que aquele era o meu ambiente. Contracenava muito com a Débora Duarte, a Maria Della Costa, o Walter Forster, o Rodrigo Santiago, a Marília Pêra, o Helio Souto. Meu personagem pertencia a uma família quatrocentona falida e é quem, logo no começo da novela, descobre que Beto não tinha nada de rico, era o maior bicão. Como Renata, a minha personagem, era uma nobre sem dinheiro, ela só comprava sapatos em lugares mais baratos. É numa dessas idas a uma dessas sapatarias baratas que descobre que Beto era vendedor de sapatos, e não o milionário bon vivant que apregoava ser. Então ele experimentava o sapato em mim, trocava uns olhares e coisa e tal. Depois eu ia a uma festa na casa da Maitê, que era Maria Della Costa, com a Lu, que era a Débora Duarte, e dava de cara com ele, e ele ficava com medo, mas eu entendia que não era pra dizer que ele era pobre. A Aflição do Primeiro Beijo Esse gancho era muito legal e fez o personagem crescer, e acabou virando o amor do Beto com a Renata, e acabei fazendo par romântico com o protagonista da novela. Lembro da primeira cena de beijo entre mim e Luiz Gustavo. Ele foi respeitosíssimo, e aconselhou, delicadamente: Não se aflija. Não adiantou: fiquei aflitíssima. Mas não era pra menos: tinha feito um pequeno papel em peça de teatro, tinha feito teatro infantil, e, meio que de repente, sou jogada num ambiente completamente novo e, de repente, tenho de fazer cena de beijo com o galã da novela. Era muito pra minha cabeça. Também tinha certo receio de ser usada, de não ser valorizada como atriz e sim como mulher bonita. Desde o início, me apavorei com aqueles homens me devorando com os olhos a primeira vez que entrei na TV Tupi. O que me importava era autovalorizar-me como pessoa inteligente, capaz, séria, responsável. Então não queria ser querida por causa do meu corpo, não queria ser conhecida como safada, ou como mulher-objeto. Queria ser mulher, não mulher-objeto. Além do mais, me choquei com aquela coisa, meio vaudeville mesmo, que via na televisão, aquela coisa de as mulheres sentando em colos de homens. A Tupi era um mundo na época, e tinha, percebi, de tudo por lá. Mas aí o Luiz Gustavo, o Tatá, me trata com essa delicadeza. Fiquei encantada. E não foi só ele. O Lima acabou ficando meu grande amigo, a Débora acabou ficando minha grande amiga, o Rodrigo Santiago acabou ficando meu grande amigo, acabei ficando grande amiga de todo mundo do elenco. Histórias Extraordinárias A melhor coisa que Beto Rockfeller me proporcionou não foi essa minha velocidade com que atingi o estrelato, foi o ambiente de trabalho e de companheirismo que começou a surgir entre todos nós. Entre cena e outra que gravávamos, Lima Duarte, Luiz Gustavo, Walter Forster e Helio Souto contavam histórias extraordinárias, apaixonantes, sobre o começo da televisão brasileira, da época em que os programas e as novelas eram feitos ao vivo. Histórias de rolar de rir. A gente gravava o dia inteiro, era aquela correria faculdade/Var-Palmares/TV Tupi, tudo ao mesmo tempo, mas já estava sendo seduzida pela magia da televisão. Fiquei muito amiga dos atores e dos diretores, do Lima Duarte, do Paulo Ubiratan. Na Tupi tinha uma barbearia, que só os homens freqüentavam, onde ia sempre conversar e ouvir histórias. Acabei ficando grande amiga do homem que tomava conta da barbearia, o Lau, que recentemente reencontrei quando fui gravar Seus Olhos, no SBT. Ia também para a padaria que ficava na esquina ao lado da Tupi, e que existe até hoje. Ficava lá sentada, tomando um café ou uma cachacinha com eles, ouvindo Adoniran Barbosa, que costumava aparecer por lá e fazer sambinha, batendo os dedos na caixa de fósforos. Ia para as corridas de cavalos com Lima Duarte. Ia passar o fim de semana na casa do pai do Paulo Ubiratan no Guarujá. Eu me divertia muito. Tive uma sorte infinita porque eles foram muito gentis e queridos comigo. Não teve aquele choque da novata, que chega e que não consegue se ambientar. Eles todos me adotaram, ficou uma relação muito bacana entre mim e o pessoal da tevê. Mas tinha um porém, sempre tem um porém: a situação financeira da TV Tupi já era meio precária, faltava dinheiro para produção, para tudo, mas o pessoal improvisava e as coisas acabavam dando certo. Atrasava também nossos salários: sempre recebíamos com 40 dias de atraso. Meu salário tinha subido, mas só recebia com 40 dias de atraso, sempre. A Guerrilheira Quer Ganhar Mais Ninguém, absolutamente ninguém, do meio artístico sabia da minha atuação política. Ninguém sabia nada. Nada. Era uma coisa maluca. Era estudante, eles sabiam que eu era estudante, mas não tinham a menor idéia de que eu fosse revolucionária, com toda uma vida clandestina paralela. A TV Tupi não tinha a menor idéia do que eu fazia. Para mim, o principal na época não era ficar ou não famosa, o principal era fazer a revolução. Por isso aquela falta de noção do sucesso. Não tinha e nem queria ter noção disso. Eu tinha outras prioridades. Não queria ser estrela, mas queria ganhar melhor, e aí era a guerrilheira falando. Então no meio da gravação de Beto Rockfeller o meu contrato, que era de seis meses, acabou. Percebi então que estava ganhando pouco para representar um papel que havia crescido tanto numa novela que fazia tanto sucesso. Aí a guerrilheira apareceu, e fui discutir com a direção da Tupi, e joguei duro: digamos que ganhava mil; pedi dez mil. A reação foi terrível. Disseram: Você é maluca? Quem você pensa que é? E pediram ao Bráulio Pedroso para tirar o meu personagem da novela, mas Bráulio Pedroso não topou. Resisti: Se não pagarem 10 mil eu não continuo. A conversa foi com o diretor orçamentário, aquele cara que cuida das finanças, até hoje tenho trauma de conversar com esses caras. Bati pé, briguei. A situação ficou insustentável. Foi mais ou menos um mês assim. Às vezes me perguntava se estava agindo corretamente. Mas o meu namorado rico me apoiava. Dizia: Vai lá, você está certa! O bacana nesse processo todo foi o apoio do meus colegas. Atores como Luiz Gustavo e outros chegavam para mim e diziam: Bete, fica firme. Nós estamos contigo, você está certa! Você está fazendo um papel bacana, você tem que ganhar mais. Valeu a pena bater o pé, resistir: tive um aumento de 450% para o primeiro ano de contrato, e de 600% para o segundo. A Bela e o Maquiador Adoro maquiagem. Queria ser bilionária apenas para ter uma casa imensa onde pudesse construir uma sala recheada só de perfumes e de artigos para maquiagem. Acho lindas as embalagens, os formatos dos frascos, os estojos, essas coisas. Agora, para usar, gosto de poucos perfumes; e maquiagem, não gosto de usar, não uso quase nunca. Para trabalhar então, uso o mínimo possível. Sempre foi assim. Pois bem, entrei no elenco de Beto Rockfeller e o então chefe da maquiagem da TV Tupi quis me maquiar do jeito dele. Foi aí que percebi que fazer televisão também tinha um lado sórdido. Então fui fazer o teste de maquiagem para o personagem. Sempre tive jeito muito peculiar de me embelezar. A minha mãe, por exemplo, se maquiava muito, adorava penteados complicados. Admirava a beleza dela, mas não curtia aquelas coisas que ela fazia. Sempre relacionei beleza com limpeza e perfume. Então acho que quando você está com aparência de frescor, de pele boa, e cabelo limpo, está ótimo. Não precisa mais nada. Quando cheguei na Tupi, tinha um cabelo muito comprido e liso, o que, aliás, na minha infância foi um trauma, um trauma, um trauma. Minha mãe vivia me fazendo permanente quando eu era pequena, e isso me desesperava porque meu cabelo era grosso e liso e o permanente não pegava, e eu ficava com uns cachinhos horrorosos. Voltando à minha chegada na Tupi: quando fui contratada, estava com o cabelo muito comprido, quase chegava à cintura. Meu grande prazer então era lavar o cabelo e penteá-lo ainda molhado. Quando secava ficava lindo. Então quando cheguei para o teste de maquiagem, o maquiador falou assim: Bom, vamos ter que fazer algo para acabar com essa testa imensa, vamos cortar uma franja. Além disso, suas sobrancelhas são horrorosas, vamos tirar as sobrancelhas. Reagi, indignada: Nem brincando você vai mexer em mim. Ele: O que é isso? Contra-ataquei: Não vou tirar sobrancelha e não vou pôr franja. Ele não desistiu: Não mesmo, a gente vai ter que cortar, que desfiar, que mudar tudo. Dei minha palavra final: Ah, mas não vai mesmo, não vai cortar, não vai desfiar, não vai fazer nada. Não, não e não! Foi uma cena! Então ele disparou: Então, está bom. Vou conversar com o diretor da novela, depois nós discutimos, vamos ver o que acontece. Voltei no dia seguinte, e ouvi: Tá bom, nós não vamos mexer no seu cabelo nem na sua sobrancelha, mas vamos fazer a maquiagem. Passou o delineador, botou cílio postiço. Agüentei. Estava mais maquiada do que eu queria, mas mantive o cabelo comprido, repartido no meio, largado e solto. O que aconteceu foi que o personagem funcionou, fez sucesso e virou moda. Intriga nos Bastidores O maquiador, como não fez o que queria com meu cabelo, resolveu me sacanear. Sempre que chegava para me maquiar, ele disparava: O seu padrinho dormiu bem ontem? Eu ficava gelada. Ele continuava: Sim, porque o Cassiano deve lhe tratar muito bem, porque você deve dormir muito bem. Ele te dá um bom café da manhã? Isso me martirizava, mas como isso me martirizava! Queria mandar o maquiador à puta que o pariu, mas não podia, não devia. Aquilo foi um trauma para mim e tomei horror daquele sujeito. Não, não fui assediada por nenhum colega de elenco do Beto Rockfeller. Se houve, não cheguei a perceber. Na verdade, durante muitos anos eu fui completamente ignorante nesse assunto, não tinha noção quando os homens estavam me assediando ou não. Além disso, estava claro para mim que não queria misturar relação de trabalho com relação pessoal. Tudo bem, podia acontecer uma paixão inesperada, mas sempre tive uma postura de defesa, e tinha muito essa coisa moral de não usar o fato de ser fêmea pra crescer profissionalmente. Sempre achei que tinha de ser valorizada pelo meu talento e pelo meu comportamento sempre correto. Achei um absurdo aquela insinuação do maquiador sobre estar me relacionando com o Cassiano Gabus Mendes para obter vantagens nas gravações de Beto Rockfeller. Guimarães Rosa & Billie Holliday Quero lembrar algumas coisas culturais que a minha amizade com Lima Duarte e com Rodrigo Santiago trouxe. Lima Duarte me ensinou, por exemplo, a gostar de tango, a amar o tango, e até hoje sou completamente apaixonada por esse gênero musical. Foi o Lima Duarte também quem me introduziu à literatura de Julio Cortázar, de quem li a obra inteira e por quem me apaixonei literariamente, e Guimarães Rosa, que virou quase uma tara literária, sou louca pela obra dele. Isso é muito bacana numa relação de amizade, poder acrescentar coisas, somar, enriquecer, provocar o outro. Com Lima Duarte era uma coisa deliciosa, jogávamos bilhar, íamos ao Jóquei, conversávamos sobre música, sobre literatura, sobre a vida, tínhamos uma confiança muito grande um no outro. Isso é muito bonito. O Rodrigo Santiago foi uma dádiva na minha vida, uma dádiva. Ele simplesmente me apresentou, na casa dele, enquanto almoçávamos, só nós dois, ele simplesmente me apresentou a música de Billie Holliday. Bastaria isso para lhe ser grata para sempre. Outro amigo que me marcou muito culturalmente foi Flávio Porto. Foi ele quem me ensinou, me deu de presente, essa coisa de apreciar as artes plásticas, a curtir a beleza de uma pintura. Um dia ele me disse: Bete, eu queria que você fosse ao Museu de Arte de São Paulo e que você contemplasse sem pressa uma tela de Modigliani que tem lá.Foi ele quem me revelou Rembrandt, Portinari, Modigliani e outros bambas da pintura. Uma Relação tão Delicada Minha relação com Rodrigo Santiago sempre foi de grande respeito um com o outro. Nunca houve qualquer interesse de minha parte em saber detalhes da vida pessoal dele. Sabia do que ele gostava, e isso era uma coisa muito natural, que não influía no jeito de amá-lo e de admirá-lo. Sempre curti esse tipo de relações entre as pessoas, essa coisa de respeitar o outro do jeito que ele é, essa coisa de se querer a pessoa do jeito que ela é, independentemente de padrões. Preservo muito a minha vida pessoal e a vida das pessoas com quem convivo. Aliás, sou muito rígida em relação a isso. Não admito nenhum tipo de invasão de privacidade, dessa coisa de as pessoas se aproveitarem das amizades para revelar coisas. Tenho horror à fofoca, mesmo sabendo que o ser humano é fofoqueiro por natureza, e a classe artística é a síntese disso tudo, né? A classe política também cultiva esse hábito da fofoca. Odeio isso. Crio, quando quero, uma verdadeira armadura ao redor de mim. Sempre foi assim. O maior exemplo foi a época em que fazia televisão e era guerrilheira, e ninguém da TV sabia sobre isso. Era discretíssima. Talvez por isso as pessoas, os colegas, sempre me respeitaram muito. Há algum tempo, fui gravar um especial de Natal com o Renato Aragão que o Lima Duarte dirigia. Aí o Lima Duarte comentou algo que ouvira do Luiz Gustavo: Nossa, mas a Bete era incrível, descia daquele ônibus, toda compenetrada. A gente ficava lá cheio de malícia, mas ela era tão menina, tão ingênua, que a gente nem se atrevia a mexer com ela. Esse respeito daqueles atores daquela época foi uma bênção, porque se alguém viesse muito pesado eu não sei o que teria acontecido comigo, talvez tivesse me desestruturado completamente. Luzes da Cidade Em Superplá, eu fazia o papel de uma ceguinha, e quis pesquisar para fazer melhor o personagem. Acho que foi aí que defini o meu parâmetro como atriz: só sei fazer um personagem se eu tiver como incorporá-lo, se eu puder dar a alma pra ele, se eu puder conhecer o universo em que vive, como se comporta, enfim, criar uma pessoa. Quando fui convidada para fazer a ceguinha, me lembrei que Eva Wilma havia feito Black-Out, que eu tinha visto e achado maravilhoso. Nessa época ela fazia Alô Doçura na TV Tupi, com o John Herbert. Fui, morta de medo, procurá-la no palco em que eles faziam as gravações do programa. Cheia de receio, pedi licença, e perguntei se ela poderia me orientar, se ela poderia me dizer onde eu conseguiria maiores informações sobre como criar o personagem. Ela me recebeu magnanimamente, e me deu o endereço da Fundação para o Livro do Cego no Brasil. Gentilíssima, ofereceu-se para me ajudar caso eu precisasse de mais elementos e mais informações. Fui até a Fundação para fazer pesquisa e tive experiência riquíssima. Ia lá vários dias da semana e treinava como andar com a bengala, como andar sem enxergar, com venda nos olhos, uma doideira. Um dia resolvi fazer um teste na rua, que foi uma coisa absolutamente desesperadora. Um dos instrutores se ofereceu para ir andar comigo, e fomos. Eu com os olhos vendados e de bengala, fazendo tudo o que um cego normalmente faz ao andar na rua. Foi aí que percebi o que significa termos todos os sentidos completamente à nossa disposição. Não demorou muito, e comecei a entrar em pânico. Achei que um ônibus que estava se aproximando me atropelaria. Achei que os barulhos pareciam maiores. Mas o instrutor me estimulava a continuar. Dizia: É assim mesmo, é assim mesmo, não tira a venda, não tira a venda. Dei uma circulada pela rua, e foi um trauma. Tive chance de sentir a vida do ponto de vista do cego e de constatar que havia cegueira em vários estágios. Então conheci um homem que estava perdendo a visão aos poucos. Era especialista em computação. Um dia me disse que estava indo ao centro da cidade, e perguntou se não gostaria de acompanhá-lo, para eu ver como é que era, sentir como é que era um cego andando na rua. Rapaz, esse dia foi uma loucura! Fui com ele para todos os lugares, pegamos ônibus, descemos escadas, tiramos dinheiro em banco. Foi quando aconteceu um fato que me deixou chocada, que me deixou traumatizada. Já estávamos indo para pegar o ônibus de volta, na Praça da República, quando um homem passou por nós, apressado, irritado, nervoso. Empurrou o cego que estava comigo, rispidamente, e esbravejou: Sai do meu caminho, porra de cego! Como se não bastasse, chutou a bengala do cego longe. Apavorada, comecei a chorar. Mas ai o cego pegou na minha mão e falou assim: Pra você ver como é que algumas pessoas nos tratam. Pulei o canteiro do jardim da praça, para pegar a bengala, e fomos embora. Interpretei o personagem e acabei fazendo leituras de livros para os cegos durante algum tempo. Durante a novela recebi um cumprimento que me deixou muito emocionada. Os cegos da Fundação me disseram que viam a novela e que achavam que eu estava muito legal sendo um deles. Fiquei muito feliz, pois quis realmente fazer um cego que não fosse um estereótipo, um cego que honrasse os cegos. Sob o Domínio do Medo Mais ou menos na época dessa história que acabei de contar, fui presa. Estava caindo todo mundo da organização, e eu também caí. A moça que morava comigo na Rua Jaceguai foi presa, o meu namorado rico estava se preparando para fugir do País, a maior doideira. Não tenho a menor idéia de como era minha saúde mental nesse período, não tenho muita noção de como as coisas funcionavam na minha cabeça naquela época. Só sei que sentia muito medo, muito medo, mas muito medo mesmo. Tinha medo, mas sabia que era uma militante e que militante não podia vacilar. Acho que via o fazer a novela como uma proteção contra a repressão militar, um álibi. Quem imaginaria que uma das principais atrizes de uma novela de sucesso fosse uma guerrilheira? Meus colegas não sabiam de minhas atividades clandestinas, nem eu tentava conscientizar ninguém. Só conversava política geral, coisas que se podia conversar em público, conversa normal. Mas jamais transpunha a fronteira da clandestinidade, nunca tentei atrair nenhum colega para atuar na organização, porque isso seria ainda mais perigoso. Sabia dos riscos que essas pessoas correriam, e não queria que ninguém fosse preso por minha culpa, por causa de alguma irresponsabilidade minha. Era assim: quem estava na organização estava, quem não estava não estava. Ninguém sabia de nada. Por isso o pânico geral na televisão quando fui presa. Soube depois, as pessoas se perguntavam: Quem? A Betinha, aquela gracinha, uma terrorista? Aquele docinho? Ninguém imaginava o que realmente tinha acontecido e o motivo real de eu ter sido presa. Dias a Água e Água Um pouco antes de isso acontecer, o meu namorado rico quis fugir para fora do País e me levar. Falei que não, que ele estava se acovardando, que a gente não poderia fazer isso. Mas ele insistia: Vamos, porque a barra esta ficando cada vez mais pesada. A análise dele era absolutamente lúcida, mas não queria sair do País de jeito nenhum, tinha o meu trabalho, meus amigos, minha revolução. Brigamos: ele saiu do País; eu fiquei. Olha que loucura, já estava fazendo a novela, já corria o risco de ser reconhecida na rua, mas não ia disfarçada aos meus encontros clandestinos. Fui presa duas vezes. Na primeira, fiquei apenas detida, durante quatro dias. Alguns integrantes da organização começaram a cair e uma pessoa, a qual não vou dizer o nome porque se trata de uma pessoa conhecida, me avisou que seria presa na primeira oportunidade que tivessem. Discutimos muito, alguns acharam que deveria me apresentar à polícia para dirimir dúvidas, outros achavam que deveria ir ao encontro dessa pessoa e saber mais detalhes sobre essa minha eventual prisão. Então fui ao encontro dessa pessoa, que fazia jogo duplo e trabalhava para a repressão, era um agente da repressão infiltrado no movimento estudantil da Universidade de São Paulo, e eles me pegaram. Fiquei presa numa solitária durante quatro dias, em plena época de gravação de Superplá. Eles não divulgaram para ninguém que havia sido detida. Fui acareada com a moça que morou comigo na Rua Jaceguai, e ela foi fantástica, não abriu nada. Confirmei que a gente não se conhecia, que não tinha a menor idéia de quem ela era, que era apenas estudante, que não me metia em baderna, que também era uma atriz que estava atuando na televisão, que eu era uma atriz e tal. Nessa primeira prisão não cheguei a ser torturada fisicamente, mas foi um interrogatório terrível, em que houve todas as ameaças que se puder imaginar. Mas a coisa ficou no nível da tortura psicológica. Fiquei quatro dias sem comer, apenas bebia água de vez em quando. Emagreci quatro quilos em quatro dias. Dama de Vermelho, Dias de Cão Saí da prisão, voltei para a TV, e o Cassiano Gabus Mendes me chamou para conversar. Perguntou: O que é que você andou aprontando? Eu: Nada. Ele: Como nada? Você some quatro dias. Foi presa!? Falei: Não, é que eu sou estudante da USP e os caras acham que eu sou guerrilheira. Não tenho nada a ver com isso. Minha vida é isso aqui, na gravação da novela, e na universidade. Só isso. Ele falou: Olha, Bete, você não vai aprontar nada pra gente não, vai? Falei: Não, fica tranqüilo, nunca mais vai acontecer isso, de jeito nenhum. O cerco estava se fechando, e eu não tinha nem uma amiga íntima para quem pudesse abrir esse jogo. Tenho uma disciplina de cão. Quando não quero falar sobre um assunto, eu seco, não tem jeito, não falo mesmo. Então ninguém do meio artístico sabia de minha vida dupla. Algum tempo depois tive um ponto com um companheiro da organização, e o vi sendo preso. Cheguei na rua e o vi, de longe, sendo preso. Era um bairro da periferia de São Paulo, mas não consigo lembrar que bairro era. Engraçado, lembro da rua, lembro do lugar, lembro da roupa que usava, lembro da polícia chegando e prendendo ele, mas não consigo lembrar o nome do bairro. Recordo que estava frio pra caramba e eu vestia um casaco vermelho. Não estava disfarçada, mas, lembro, estava muito bem-vestida. Quando vi o meu companheiro ser preso, percebi que não demoraria a ser presa também. Fui para casa às pressas e destruí todos os documentos que eu tinha da organização, e comecei a preparar a minha fuga. Liguei para o Walter Avancini, já era muito amiga dele e da família dele, passei na casa dele, e falei: Olha, estou numa situação muito barra-pesada. Abri o jogo, contei tudo para ele, e comuniquei: Vou ter que sair do País, vou ter que abandonar a novela. Ele se mostrou à disposição e perguntou se precisava de dinheiro. Falei que precisava. Nessa época estava começando a gravar a novela Simplesmente Maria. Sabia que nessa época a repressão exporia fotografias de terroristas procurados em cartazes colocados em aeroportos, bancos e outros lugares públicos. Foi uma época braba, não sei como não pirei, não sei como consegui manter a cabeça equilibrada. Afinal, sabia que estava sendo caçada, que se fechassem o cerco mais um pouco me pegariam. Era questão de dias, ou de horas. Então o Avancini ficou de marcar novo encontro para ver o que podia arranjar em termos de dinheiro. Liguei também para minha mãe, liguei para o meu irmão Marcos, falei sobre a situação, falei sobre o assunto, não escondi nada. Eles ficaram apavorados, mas entenderam. Pedi para tirarem dinheiro no banco pra mim, para fazerem um monte de coisas pra mim. Com o cerco se fechando brutalmente, tirei todos os móveis do apartamento da Rua Bela Cintra e mandei para um guarda-móveis. Mas, antes, conversei com o pai do meu namorado rico, que era o avalista, para rescindir o contrato. Decidi então sumir do mapa. Passei a morar em aparelhos, ia vendada para os lugares, não sabia onde dormia ou onde comia, entrei na clandestinidade total. Enquanto isso, preparavam a minha fuga do País. A idéia era fugir por terra, porque os aeroportos já estavam avisados, para o Chile e, depois, para Cuba. Alguns dias antes, o Avancini, maravilhoso, sugeriu: Se fosse você, iria para Paris. A Débora Duarte está lá, você é amiga dela, você é uma atriz de muito talento, você vai ter uma carreira maravilhosa, e tal. Marquei outro encontro, ele me emprestou um dinheiro. Agradeci. Disse que um dia pagaria. Ele falou que não me preocupasse. Aí aconteceu o esperado: estava num ponto, me pegaram. Mas, desculpe, não posso continuar conversando sobre isso: só posso dizer que fui presa, torturada e saí da prisão trinta dias depois completamente AR-RE-BEN-TA-DA! AR-RE-BEN-TA-DA! A Terapia da Laranja-Lima Saí muito mal da prisão, e descobri que haviam roubado todo o meu dinheiro, que roubaram muita coisa do guarda-móveis, coisas pessoais como aquelas peças que escrevi e que o Vianinha leu, livros, discos, perfumes, calçados, roupas, eles fizeram uma farra. Saí muito mal, mas tive, mais uma vez, um amparo maravilhoso dos meus colegas. Quando estava tentando escapar de ser presa, Walter Avancini, do jeito dele, chegou na TV Tupi, reuniu o elenco de Simplesmente Maria, disse que eu tinha de sair da novela porque estava com problema de saúde, e que meu personagem sairia do ar. Irene Ravache subiu nas tamancas, e partiu em minha defesa: Quem é você pra dizer que vai cortar a minha amiga da novela? Ela não tinha noção nenhuma do que estava acontecendo. Continuou: Porque a minha amiga não pode ser tratada assim, você está maluco de fazer isso com ela. Os dois bateram a maior boca. Isso ela me contou anos depois, e o Avancini também. Quebraram um pau firme, e ela falou que não ia admitir que me cortassem, que ela queria saber qual era a doença que eu tinha, queria saber para onde eu ia. Aí o Avancini usou o seu velho método de gritar, e berrou: Cala a boca, é isso, e não tem mais nada a ser conversado. Os atores contribuíram com o que puderam. Quando saí da prisão, procurei o Avancini para tentar ver uma forma de pagar a dívida que tinha com essas pessoas. Mas ele falou: Esquece, as pessoas deram o dinheiro para te ajudar. Falei: Não, mas eu tenho de pagar. Ele disse: De jeito nenhum. Agora você tem que reconstruir a sua vida. Estava péssima, muito mal, tanto física como psiquicamente, mal, muito, muito, muito, muito mal, e o Carlos Zara me chamou pra fazer uma novela. Mas a TV Tupi vetou a minha contratação. Mas o Carlos Zara quebrou um pau, um pau violento, rapaz! Conseguiu afinal impor o meu nome, e pude, logo depois de sair da prisão, voltar a fazer novela, atuando em Meu Pé de Laranja Lima, uma história delicada, doce. Foi uma terapia plena pra mim fazer essa novela, uma bênção. A Palavra de Eva, Outra Vez A Eva Wilma, que já gostava de mim, me adotou literalmente. Ia para a casa dela, ia passear com ela, ia para o teatro com ela. Ela não me abandonava porque sabia que eu estava no bagaço, e teve um momento extraordinário dela: estávamos gravando, ela fazia a Jandira, eu fazia a Godoia, com aqueles menininhos adoráveis, e tinha uma cena em que precisava chorar, e quem disse que conseguia chorar? Logo eu, essa chorona, não conseguia verter uma lágrima. No DOI-Codi, onde fiquei presa, a coisa foi tão violenta que eu sequei. Não saía uma lágrima sequer dos meus olhos. Fiquei apavorada, desesperada, nervosíssima, mas não conseguia chorar de jeito nenhum. Os colegas diziam: Põe colírio. E eu: Não, isso seria ultraje à minha honra como atriz. Já começava a achar que não conseguir voltar a ser atriz, voltou a velha insegurança de que não sabia interpretar, que não sabia fazer cena chorada, aquelas coisas, um inferno. Então Eva Wilma falou para o Carlos Zara, que dirigia a novela: Zara, me dá um tempo. Lembro que Eva se ajoelhou no chão, ao meu lado, e falou carinhosamente, cochichando no meu ouvido: Pensa na tortura, Bete, pensa na tortura. Rapaz, abriu uma cachoeira, mas uma cachoeira, que tiveram que suspender a gravação, tiveram que trazer água com açúcar pra mim, tiveram que me paparicar. Entrei em completa convulsão. Enfim, Eva Wilma me deu este presente, a possibilidade de chorar, porque ela foi de uma sensibilidade fantástica, porque ela viu que eu estava um trapinho, que eu precisava chorar, e fez com que desabasse tudo. A gravação teve de parar. No Limiar da Loucura Mesmo depois de retomar a carreira, continuei respondendo à Justiça Militar. Estava em liberdade condicional e, uma vez por semana, tinha de voltar ao DOI-Codi, onde havia sido torturada. Reencontrava torturadores por todo lado, foi um período terrível, os torturadores me cercavam, me seguiam. Vinham e falavam comigo na rua, em qualquer lugar, em qualquer situação. Não enlouqueci por pouco. Tanto que precisei ter algum apoio psicológico. Depois que saí da prisão, um médico me deu apoio gratuito durante alguns meses, quase um ano. Ele me ajudou muito, muito. Mas sempre mantive essa minha coisa de tentar resolver as coisas sem medicação, que herdei da minha avó, não gostava de tomar remédio. Não gostei nunca. Até hoje não gosto. Quando tenho que tomar medicação por alguma razão, preciso saber exatamente para que serve aquele remédio e os efeitos colaterais que aquele remédio provoca. Além desse apoio psicológico, meus colegas atores foram extraordinários comigo, principalmente a Eva Wilma e o Carlos Zara. Capítulo IV Pausa Dramática 2: Duas ou Três Coisas sobre Drogas, Cigarro e Homossexualismo Não tive embates e discussões morais com a VAR-Palmares, como toda a esquerda, acusada de ser extremamente moralista, pelo seguinte: primeiro, a gente não discutia as questões do meu trabalho na televisão. Nada disso. A gente discutia apenas as estratégias da guerrilha. Segundo, porque eu era muito moralista. Embora tivesse essa convivência e essa relação amena com todos, eu era moralista comigo própria. Comigo a moral era regra fundamental. Além dessa história de eu não querer ser mulher-objeto, eu era absolutamente contra as drogas ilegais, totalmente contra. Tive, inclusive, problemas com a classe artística, com algumas pessoas da classe artística, por causa disso. Até porque eu sofri dentro da prisão o revés do tráfico e do uso de drogas pelos torturadores antes de torturarem os presos. Vi os militares do exército que nos prenderam traficando drogas dentro do quartel em que éramos torturados, e eles torturando a gente sob efeito de drogas. Então saí da prisão muito violenta contra as drogas. Fumar, meu grande vício, tem, digamos, um grande culpado: o Bráulio Pedroso. Em Beto Rockfeller, o autor exigiu que a Renata, que era o meu personagem, fumasse, fumasse de piteira. Nunca tinha fumado antes. Para melhor interpretar o personagem, passei a fumar, gostei, e viciei. Tinha experimentado cigarro quando adolescente, achei um horror, tossi muito, e desisti. A primeira vez que fumei no estúdio, ouvi uma gargalhada geral do resto do elenco. Sem hábito, tossi muito. Fiquei possessa por ter virado motivo de chacota, de ser uma garota que não sabia fumar, e fiz questão de aprender a fumar direitinho para melhor interpretar a Renata. Pois bem, era muito moralista quando saí da prisão. Mas, mesmo antes da prisão, já tinha essa postura antidrogas. Tirei isso do meu ideário revolucionário, que era a coisa da moral da esquerda contra as drogas em geral. Até hoje eu sou a maior careta da história, inclusive fazem restrições a mim em alguns ambientes por causa disso. Mas muita gente me aceita como sou. Muitos até dizem que sou a careta mais viajada que conhecem. Hoje tenho uma relação legal, menos preconceituosa, com pessoas que usam drogas socialmente. Já fui mais radical, mas, com o tempo, fui ficando mais suave, mais compreensiva. Nessa minha postura o trauma da prisão pesou muito. Além daquele velho ideário antidrogas das esquerdas, associei, durante muito tempo, droga com repressão. Agora, engraçado, em relação ao homossexualismo não, nunca fui moralista. Não sei explicar bem por quê, mas em relação a isso nunca fui moralista. Talvez fosse o mesmo raciocínio que me levava a não ser racista que tenha me levado a ser tolerante com o homossexualismo. Tenho dentro de mim uma resistência a entender o universo da droga de uma maneira mais evoluída, porque isso foi marcado dentro de mim nesse momento da prisão. Agora a questão homossexual pra mim, embora a esquerda fosse extremamente conservadora em relação a essa questão, sempre foi assunto resolvido. Sempre achei, sempre foi uma coisa latente em mim, que as escolhas das pessoas em termos sexuais é algo absolutamente pessoal, a que não se pode ser contra ou a favor, apenas aceitar. Reconheço que fumar é um vício maldito e vivo querendo me livrar dele, porque tenho consciência que é uma dependência horrorosa. Questiono as drogas de uma maneira geral, tanto as drogas ilegais como as drogas medicinais utilizadas como remédios. Porque é da minha personalidade achar que a gente deve se bastar, que a gente deve estar de cara limpa para enfrentar as dificuldades da vida com as nossas próprias forças e as nossas próprias fraquezas, sem precisar nos apoiar em nada. Embora seja viciada em cigarro, me assusta a dependência de certas pessoas em relação a outras drogas. Conheci casos de pessoas que achavam que só ficavam inteligentes, ou bonitas, ou com uma interpretação melhor, quando estavam sob o efeito da droga. Acho isso um absurdo, e talvez ainda seja reacionária em relação a esse tema. Vivi, inclusive, uma situação em que sofri fisicamente, não porque a pessoa quisesse me agredir, mas porque estava sob efeito de drogas. A pessoa com quem contracenava tinha que, em determinada cena, ser violenta com o meu corpo. Esse gesto acabou sendo violento demais, porque a pessoa não tinha noção do que estava fazendo. Era um gesto de me puxar, e a pessoa me puxou de uma maneira que acabei tendo que fazer um tratamento fisioterápico depois – e isso me assustou. Também vivi situações de trabalho em que não podia se contar com a pessoa, se vinha ou não vinha, porque podia estar drogada em casa. Acho o trabalho sagrado. Não posso faltar. Não posso trabalhar, não posso representar, sob efeito de nenhuma droga. Não sou de usar, com exceção do cigarro, droga nenhuma. Mas uma coisa que herdei de minha avó índia, que mantenho até hoje, é tomar chá. Tinha às vezes problema de insônia. Tomo muito café, fumo muito. Não era aquela insônia de dormir e acordar e não conseguir mais dormir, era ter dificuldade para ir para a cama. Agora não tenho mais. Quando estou fazendo alguma atividade física como agora, é ótimo, durmo superbem. Mas, quando estou muito cansada e o sono não vem, costumo tomar chá de erva-cidreira, de camomila. Ou o Sleep Time que é um chá adorável. Essa coisa de tomar chá herdei da minha avó. Outra coisa que herdei dela: qualquer coisa que tenha de trauma físico e tal, tipo dor no pé, ligo pra minha mãe e peço para me passar alguma pastinha daquelas que minha avó fazia, e passo no lugar do machucado. Cura quase que imediatamente. Outro ritual que herdei de minha avó é a coisa do banho, sempre completo, sempre saboroso, sempre muito perfumado. Sempre lembro com emoção e saudade de quando minha avó, após o banho, penteava o meu cabelo e eu, o dela. Ela fazia trança em mim, eu fazia trança nela. Era bom demais. A Viúva de Che e de Ho Lembro de uma vez que entrei no ônibus com meu pai em São Paulo e ouvi um homem dizer que Che Guevara tinha morrido. Fiquei danada da vida, e esbravejei: Che Guevara não morreu. Todos os passageiros do ônibus olharam para mim, e meu pai falou: A minha filha é assim mesmo, ela é muito entusiasmada. Então, como se pode perceber, meu grande mito revolucionário foi Guevara. Mas também tinha adoração por Ho Chi Minh. Quando ele morreu estava atuando em Gota d’Água, e eu chorava a cântaros no camarim por causa da morte dele. As pessoas me perguntavam por que chorava tanto, e eu, entre soluços, dizia: O Ho Chi Minh morreu, o Ho Chi Minh morreu! As pessoas insistiam: Quem? Eu bradava: O Ho Chi Minh, o Ho Chi Minh! Escrevi um monte de cartas para os meus amigos lamentando a morte dele. Tinha um encanto imenso por ele, até porque descobri, lendo uma biografia dele, que trabalhou na cozinha do Restaurante Lamas, ele era marujo, passou pelo Rio e trabalhou na cozinha do Lamas, isso é incrível, incrível, incrível. Nos momentos de folga das gravações da novela O Rebu, eu li toda a história do Vietnã. Então me tornei vietnamita desde criancinha, sempre contra os imperialistas norte-americanos. Face a Face com o Algoz Só contei detalhes das torturas que sofri quando fui presa a pessoas muito íntimas, em circunstâncias muito raras, e com muita dor. Foi um trauma muito profundo, que me custa muito relembrar. Em público, nunca contei. Talvez revele esses detalhes se algum dia escrever as minhas memórias. Talvez. Mas em meados dos anos 80, não pude me calar. Acompanhava o então presidente Jose Sarney em sua primeira viagem internacional, ao Uruguai, e dei de cara com o Coronel Brilhante Ustra, um dos meus torturadores. Nessa época fui para o Congresso Nacional denunciá-lo. Era o meu dever, e as entrevistas sobre o assunto foram intensas em jornais e revistas de todo o País. Mas acho que, muito equilibradamente, não personalizei a questão: era uma representante do povo, eleita pelo povo, que estava denunciando um torturador. Se eu particularizasse a questão, correria o risco de tornar a questão algo pessoal, e não era o caso. Eu reconheci o Coronel Ustra como um dos meus torturadores, assim que o vi, na hora. Foi um choque terrível. Passei três dias num inferno. Fiquei paralisada ao vê-lo. Morri de medo, muito medo, mas muito medo mesmo. Voltou tudo na minha cabeça, tudo, tudo, tudo. Não dormi por três dias. Tomava banho gelado pra não dormir, porque tinha medo que ele me atacasse. Ou seja, voltaram os fantasmas todos. Fomos apresentados, cumprimentei-o, ele me apresentou à esposa dele, e eu gelei, percebi imediatamente de quem se tratava. Os deputados que estavam comigo perceberam o meu estado de choque, e me apoiaram. Resolvi que o denunciaria assim que voltasse ao Brasil. Não quis denunciá-lo lá porque poderia criar um problema enorme de relações diplomáticas na primeira viagem do presidente eleito pelo Congresso. O Sarney foi de uma integridade absoluta comigo. Só fiz a denúncia, só fiz a divulgação da denúncia, depois que recebi resposta do Sarney. Não o consultei, ou pedi autorização para fazer a denúncia, apenas enviei-lhe a denúncia. Foi engraçado porque nessa época estava gravando um Caso Verdade com direção da Denise Saraceni. Fazia o papel de uma freira que era seqüestrada por bandidos, e a gente estava gravando em Jacarepaguá, no meio do mato. Foi quando chegou alguém num carro da Presidência da República procurando por mim. Ficou todo mundo excitadíssimo. Até eu que sou contida, enlouqueci, e repetia para os colegas de elenco e para a equipe técnica: Eu denunciei o meu torturador para o Presidente da República, eu vou lá falar com ele. Ninguém entendia nada, só a Denise Saraceni entendia porque Denise era minha grande amiga, é minha grande amiga, e sabia o que estava acontecendo. Então me levaram para a Globo e liguei para o Sarney, que me perguntou por que não tinha falado com ele sobre o assunto durante a viagem. Expliquei que a viagem internacional dele era mais importante do que a minha denúncia, e que não queria atrapalhar a viagem dele ao Uruguai. Ele me agradeceu, e perguntou: Você passou por isso? Eu disse: Passei, Presidente. Então ele disse que minha denúncia não ficaria impune. Liguei pro meu gabinete em Brasília, e mandei divulgar o documento com a denúncia. Quando voltei para casa, encontrei a rua onde moro cheia de carros de reportagem e esta sala repleta de repórteres e fotógrafos, e distribuí a denúncia a todos os jornalistas. Uma semana depois, o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves declarou à imprensa que eu tinha mentido, que eu nunca havia sido torturada, que o coronel Brilhante Ustra não era o facínora que eu tinha dito. O Bom Cabrito Berra No dia em que resolvi fazer a denúncia, as gravações na Globo do Caso Especial que participava foram suspensas. Então fomos todos para o Restaurante Plataforma e a Denise Saraceni ponderava: Bete, você não acha que isso pode ser um novo caso Márcio Moreira Alves, que disso não pode resultar um golpe militar, ou coisa assim? Disse para ela: Estou entre a cruz e a caldeirinha, porque ou eu denuncio e corremos um risco que eu acho que não é de um novo golpe, ou eu me calo e eu sou conivente. Não tem alternativa, ou eu denuncio ou eu me calo. Quando a imprensa anunciou a resposta do ministro Leônidas Pires Gonçalves, liguei para ela e disse: Vou ter que ir para Brasília porque não posso deixar esse general falar isso sobre mim. Já no Congresso Nacional, dois ou três deputados pediram pra eu não tocar mais no assunto, que havia um risco muito grande e tal. Perguntei para eles: Vocês confiam em mim como deputada? Eles disseram: Claro! Eu disse: Então, a última palavra é do Legislativo, e jamais do Ministro do Exército. Eles concordaram, e fui para o Plenário ler a minha resposta ao que o ministro do Exército havia falado. Acho que fui muito competente no meu discurso. Disse que me causava muita estranheza que uma cidadã eleita por milhares de votos no Poder Legislativo, num processo democrático, fosse desmentida por um militar, chefe de um outro militar cuja vida se pautou pela morte, pela tortura, pela sevícia e pela violência. Falei que achava que a responsabilidade das Forças Armadas era a de proteger as fronteiras do Brasil e proteger a cidadania brasileira, jamais a de afrontar contra a vida humana e que o general estava dando ouvidos a um violento, a um homem que tinha, na sua história, só atos ignóbeis. Concluí afirmando que não admitia ser desmoralizada, que a última palavra que eu tinha a dizer sobre aquele assunto era aquela, que a última palavra era do Poder Legislativo e não do Ministro do Exército. O presidente Sarney cumpriu a palavra. O Brilhante Ustra estava indo para o generalato, na reserva, e o Sarney vetou. Houve uma pressão muito forte das Forças Armadas, e em vários anos ele voltou a estar no primeiro lugar da lista de promoções. Mas nunca foi para o generalato, ele foi para a Reserva como coronel. Foram dias e noites terríveis que vivi durante aquele período da denúncia. Lembro que estava dormindo ao lado do telefone, que tocou. Era o editor de uma revista ligando para mim, súplice. Dizia que me respeitava, que me entendia, mas que pelo menos uma tortura que eu houvesse sofrido ele gostaria de saber. Estava tão estafada que esbravejei: Eu não vou falar mais porra nenhuma. O Coronel e a Cunhada do Coronel Algum tempo depois, o Brilhante Ustra escreveu um livro que tem um título belíssimo: Rompendo o Silêncio. Distribuiu exemplares para todos os parlamentares do Congresso, inclusive aos parlamentares de esquerda, ex-guerrilheiros, menos para mim. O único gabinete que não recebeu o livro foi o meu. Resolvi não falar mais sobre o assunto, não tinha mais nada a falar, mas os jornalistas que foram me procurar no meu gabinete me falaram coisas terríveis. Primeiro me disseram que ele corria todas as manhãs com um colt 45 na cintura. Depois me falaram que ele havia dito que eu era apaixonada por ele e que, por isso, tinha inventado aquela maluquice. Era o cúmulo a que chegava esse tarado doente. Certa vez, alguns anos depois, estava em Brasília com uma amiga num restaurante. Estávamos esperando o Roberto Freire, quando chegou uma louca na minha mesa. Estava embriagada, drogada, sei lá, e falou tão alto que todo mundo ficou prestando atenção. Dizia que eu também a tinha torturado, porque ela era cunhada do Ustra e que ele sofrera uma tortura psicológica brutal com a denúncia que eu fiz, que tinha que ter noção do que eu tinha feito. Foi um mal-estar de cão. Mas uns rapazes que estavam com ela a levaram embora, e eu perguntava a minha amiga: O que é isso? O que está acontecendo? A Marca da Maldade Não, eu não lavei a alma com essa denúncia, a lembrança da tortura ainda me dói muito. É um processo maluco, sei, porque eu sabia que eu podia passar pelo que eu passei, sendo uma guerrilheira que lutava contra a ditadura. As marcas da tortura são indestrutíveis, são inesquecíveis. Sobrevivi, mas tenho que conviver com essa dor, a dor de ter sido torturada da maneira que eu fui, com essa dor até hoje. Tive muitos e terríveis pesadelos nesses anos todos. Afora perseguição formal a que fui submetida durante muitos anos, inclusive com telefones grampeados, ameaças e trotes. Passei por momentos absurdos. Até recentemente, coisa de quatro a cinco anos atrás, ligavam e perguntavam: Suas unhas estão inteiras? E desligavam. Até hoje ainda tenho muito medo, muito. Aprendi a conviver com o medo. Não, não sou paranóica. Acho que posso ser corajosa, acho que aprendi a conviver com o medo. Vou contar uma história que pode dar idéia de como esse trauma da tortura continua em mim até hoje. Estava gravando A Casa das Sete Mulheres, em 2003, e tinha uma cena, quase no final, em que as mulheres estavam sozinhas e as forças adversárias invadiam a casa. Nós, aprisionadas, ficávamos nos defendendo e atirando, cada uma em um ponto estratégico. Ensaiamos a cena, o diretor gritou gravando, começou a pipocar tiro de tudo quanto é lado, e lembrava do que o Jayme Monjardim havia me dito: Betinha, Ana Joaquina é muito religiosa, então vai rezando enquanto atira. Então comecei a rezar e a atirar, e comecei a ficar desesperada. A cada tiro, a cada explosão, rezava mais alto: Ave-Maria, cheia de graça, o senhor é convosco... Entrei no mais total desespero. Quando acabou a gravação, as minhas colegas diziam: Calma, calma! Foi então que Nívea Maria me abraçou, e falou, muito carinhosamente: Eu sei o que é. Me abraçou forte, e disse: Deixa, deixa... Então tomei um copo d’água, e me acalmei um pouco. Fé em Deus e Simpatia na Alma Rezo muito. No momento que estava na cadeia sendo torturada eu pensava em Deus. Não tenho raiva dos meus torturadores, eu tenho medo e tenho susto de ver o quanto o ser humano é capaz de ser mau. Mas a idéia de suicídio nunca me passou pela cabeça. Mesmo quando fiquei presa e ficava desesperada com a idéia de viver ali muito tempo. Mas acho que vivi dois momentos, dois trancos que sofri, que foram duas lições fantásticas que me forjaram, que me ajudaram a viver melhor. O primeiro foi a prisão e as torturas. O segundo foi um acidente de carro no qual sofri traumatismo craniano. Hoje sou uma pessoa absolutamente apaixonada pela vida e, sempre que posso, agradeço a Deus, ao meu Deus, por ter passado por isso e conseguido ir em frente. Apesar de tudo, minha esperança no ser humano é imensa. Tenho absoluta certeza de que o ser humano ainda tem salvação. Nessa salvação a gentileza, o ser gentil, importa pra caramba. Acho que a melhor forma de viver, e eu vivo dessa maneira, é tratando as pessoas com simpatia, com delicadeza. Preciso da simpatia e da delicadeza dos outros e preciso ser simpática e delicada com os outros. O dia começa e acaba de uma maneira muito mais agradável e você constrói muito mais se você tem esse tipo de relação com qualquer pessoa. Seja com um estranho na rua, com um colega, com a família, com todo mundo. Isso é uma coisa básica, que eu diria ser mais cultural do que política, embora, no final das contas, seja uma ação política também. Próximo sábado, por exemplo, vai haver uma festa dos porteiros na praça central aqui do bairro, e eu preciso passar lá para cumprimentá-los. No Teatro Rival, que é da Ângela Leal, minha querida e amada amiga, chego lá, e todos os funcionários, desde o porteiro até o pessoal da cozinha, passando pelas garçonetes do bar em frente e pelos vagabundos que se abrigam nas imediações, me tratam muito bem. É muito bom ser tratada assim. É adorável chegar nos lugares e estar bem com as pessoas. É muito bacana. Emoção à Flor da Pele Tenho que me equilibrar, tenho que me equilibrar, tenho que me equilibrar, se não vou ficar chorando feito uma louca neste depoimento. Eva Wilma desatou o nó do choro em Meu Pé de Laranja Lima, e desatou para o resto da vida. É loucura como me emociono com as coisas. Os meus amigos já me conhecem. Assisto a um show, e choro. Assisto a uma peça de teatro, e choro. Assisto a um filme, e choro. Já virei até motivo de piada entre os meus amigos. Pois bem, eu estava com Marco, Marco Antonio Fernandes Marques, o meu marido atual, estávamos entrando no Palácio dos Festivais, em Gramado, no Rio Grande do Sul, e aquela multidão que fica em volta do cinema esperando os artistas chegarem começou a gritar o meu nome e a me aplaudir. Comecei a chorar desbragadamente. Pensava: Eu não estou no ar, eu não estou em nenhum trabalho, e, mesmo assim, eles se lembram de mim. Fiquei feito uma barata tonta, chorando feito uma criança. O reconhecimento do público ao nosso trabalho me emociona muito. Tenho paixão pela cultura. Se existe uma solução de paz, harmonia e confiança entre os seres humanos, acho que essa solução passa pela cultura. Toda vez que as pessoas estão numa relação de afeto, de festa, de espetáculo, de confraternização, as coisas acontecem maravilhosamente bem. Então acho que é esse o caminho. O Réveillon aqui em Copacabana, por exemplo, não é extraordinário? Os jornais só falam da merda, essas coisas lindas que acontecem no Brasil e no mundo eles ignoram. Eu fui durante vários anos ao Réveillon de Copacabana, e fiquei sempre emocionadíssima. Muita gente reunida com fins pacíficos me arrebata, me emociona, me faz chorar a cântaros. Ou rir muito, de pura felicidade. Uma vez passei o carnaval em Recife e fui, com o meu marido e um grupo de amigos, assistir a uma cerimônia que chamam de a noite dos tambores silenciosos. Chegamos lá, no centro velho da cidade, e todas as luzes se apagaram. Então subimos numa carroceria de caminhão, que era meio um palquinho, e começaram a surgir o que me disseram ser várias nações africanas, cada uma cantando numa língua diferente, cada uma com as roupas mais lindas que as outras, cada uma cumprimentando pacificamente as outras. Quando você olhava mais atrás podia ver uma multidão infindável com tochas acesas. Era de arrepiar. Nessa noite aconteceu um fenômeno maluco. Foi o Marco, o meu marido, que começou a chorar, a chorar feito criança. Já eu, que sempre choro, comecei a rir, rir, rir, a gargalhar. Parecia uma criança que havia ganhado o maior brinquedo da vida. Na verdade, era uma sensação de felicidade plena que me invadiu, porque eles, milhares de pessoas, estavam falando de paz, convivendo em paz uns com os outros. Para me deixar ainda mais emocionada, quando íamos embora, paramos para tomar uma cerveja numa carrocinha, e o vendedor de cerveja me perguntou: Posso lhe dar um beijo? Disse que sim, ele veio e me deu um beijo. Aquilo teve um significado extraordinário para mim. Esse é o caminho, o caminho do afeto, do carinho, da gentileza. Esses pequenos gestos de gentileza, de afeto e de carinho do cotidiano são essenciais. Alguma Esperança no Ar A gente começou o século XXI com a elegia da violência, como nunca se viu antes. Evidentemente isso ocorre porque a gente tem hoje uma dinâmica nos meios de comunicação extraordinária, essa coisa da globalização da violência como espetáculo. Acho isso um absurdo. Além disso, existem chefes de Estado que estão fazendo tudo para que essa violência permaneça e se aprofunde. O Bush é o campeão, tão terrorista quanto todos os outros. Fico impressionada, chocada mesmo, com essa casta que decide quem deve viver e quem deve morrer, com essa malignidade que o ser humano está assumindo hoje em dia, com essa coisa de as pessoas irem para as favelas matando e atirando porque acham que todo mundo que está ali é bandido. A gente ainda tem parlamentar que se elege dizendo que bandido bom é bandido morto. É todo um segmento da população que pensa assim: Estou trancado na minha fortaleza e acho que todos aqueles que não passarem no teste de bons serviçais deverão ser mortos. A vida é muito mais do que isso. Ontem, por exemplo, teve feira livre aqui na praça do bairro. Não tive tempo de ir, mas passei por lá, e encontrei o rapaz da Comlurb, que varre as ruas daqui do bairro, e ele me cumprimentou todo sorridente. Retribuí o cumprimento e o sorriso. Uma delícia, isso é bom tanto para mim como para ele. Então lembrei do desfile das escolas de samba que assisti no sambódromo este ano, daquele personagem, aquele cara da Comlurb que faz alegorias extraordinárias com a vassoura. Um artista genial. Soube que ele foi com um grupo de brasileiros para o Canadá. Que coisa bonita! Então é isso, o lixeiro é digno, como eu também devo ser digna como atriz, devemos ser todos dignos, todos iguais. O mais bonito do Rio, o que deve ser manchete de jornal, é esse cara da Comlurb que é um artista genial e não os tiros que bandidos e não-bandidos estão dando por aí. Mas tenho esperança de que essas coisas mudem, tenho esperança. Tenho conversado com muitas pessoas e essas pessoas têm tido a mesma impressão que eu: que o mundo está procurando a sua identidade de novo, que a raça humana está se buscando de novo. Saudades da Bagunça Quando saí da prisão resolvi me ocupar, não podia ficar parada, senão enlouquecia. Então comecei a fazer aula de dança, aula de canto, a estudar e ler muito, a gravar os capítulos da novela Meu Pé de Laranja Lima. Resolvi concentrar o foco na interpretação, no meu lado atriz. Afinal de contas, tinha, e reconheci isso, perdido uma guerra e resolvi concentrar o foco na minha carreira como atriz. Por isso, por essa minha busca, acabou sendo um período muito produtivo de minha vida pessoal e profissional. A TV Tupi, apesar de tudo, era maravilhosa, tenho saudade daqueles tempos. Não é aquela saudade de querer tê-la de volta e de trabalhar nela hoje em dia, é aquela saudade de guardar as lembranças daquela época num cantinho especial do meu coração. Era tudo tão bagunçado, tão brasileiro, tão malfeito, que a gente podia fazer várias coisas ao mesmo tempo. A gente gravava das nove da manhã às nove da noite, mas ninguém gravava direto, o tempo todo. Às vezes tinha de participar da primeira cena do dia e só voltaria a gravar de novo a décima quinta cena. Então não ficava lá esperando. Dizia para o diretor de estúdio que estava saindo, e ia para as minhas aulas de canto e dança, e depois ainda dava tempo às vezes de assistir a um filme, e depois voltava a tempo de gravar a cena. Era incrível, dava tempo de fazer tudo. A Era do Bububu no Bobobó Nesse período, passei a ser chamada para atuar em alguns espetáculos, e recusei porque não achava que fossem grandes exercícios de interpretação. Também era muito convidada para fazer peças em que meu personagem ficava apenas na cama, e não fazia mais nada. Pensava: Não preciso ser atriz para ficar na cama mostrando o corpo e simulando cenas de sexo. Porque me chamavam para peça que era apenas transa pra lá transa pra cá, transa pra cá, transa pra lá. Era a época da censura braba, e da explosão das pornochanchadas e das peças eróticas. Eu nova, bonitinha e tal, todo mundo queria me colocar nua em filmes e peças. Mas eu não queria fazer e recusei muitos convites. Queria fazer coisas de qualidade, que fossem desafios para mim. Foi então que me convidaram para fazer Desgraças de uma Criança, teria que substituir Marieta Severo na temporada do espetáculo em São Paulo. O diretor era o Antonio Pedro e o elenco, formidável, tinha nomes como Wolf Maya, Eduardo Dusek, Marco Nanini, Camila Amado, Lafayete Galvão. Foi adorável fazer. Estreei em São Paulo no Teatro Anchieta, foi um sucesso maravilhoso. Ao mesmo tempo fazia televisão, trabalhava muito, levantava às sete da manhã, ia para a tevê, gravava até a noite e, de lá, ia para o teatro. Foi um período maravilhoso. Foi nessa época que decidi que não queria mais fazer revolução, queria fazer teatro. Minha revolução seria feita no teatro. Não tinha mais nenhuma perspectiva de participar de revolução nenhuma, queria me envolver apenas no plano cultural, que também era um jeito de ajudar a modificar o mundo de alguma forma. Fui absolvida no Superior Tribunal Militar, e isso me aliviou um pouco, embora meu nome tenha ficado marcado para sempre no Conselho de Segurança Nacional. A Cem Quilômetros por Hora Quando atuava em Desgraças de uma Criança, o Daniel Filho foi ver a peça, e, surpresa, me convidou para trabalhar na Globo. Estava no meio do contrato com a TV Tupi, e o convite me surpreendeu porque não tinha intenção nenhuma de morar no Rio de Janeiro naquele momento. Mas achei legal o convite, e ele disse que voltaria a conversar comigo sobre aquele assunto algum tempo depois, quando meu contrato com a Tupi acabasse. Nesse ínterim, a gente começou excursão do espetáculo pelo interior de São Paulo, e sofri terrível acidente de carro. A novela em que atuava na época era Divinas e Maravilhosas, em que interpretava personagem que era neta de Procópio Ferreira. O elenco, magistral, tinha ainda Natália Thimberg, Iolanda Cardoso e Nicette Bruno. Adorava fazer, era muito bacana trabalhar com aqueles craques, eu era protagonista, e eu estava uma gracinha, um chuchu. Fomos então excursionar com a peça pelo interior de São Paulo e quando estávamos viajando para Bauru, a primeira escala da excursão, sofri o acidente de carro. Quem dirigia o carro, um fusquinha que eu costumava dirigir sempre em alta velocidade, era eu. O Marco Nanini viajava ao meu lado e o Eduardo Dusek ia no banco de trás. Estava a cem quilômetros por hora quando o pneu estourou e o carro capotou. Estava sem cinto de segurança, fui ejetada, atravessei o vidro da frente e caí a alguns metros. O Nanini teve torção no pescoço. O Dusek não sofreu absolutamente nada. Eu tive traumatismo craniano. A Quase Morte, e a Reviravolta Era uma nova tragédia na minha vida. Fui levada para Pirajuí, depois fui levada para Bauru. Mas a classe artística foi extraordinária de novo nesse momento. Desculpe, mas vou ter que chorar de novo... O Adriano Stuart, meu querido amigo, ligou para um genial neurologista, o doutor Roberto Melaragno, que estava em férias numa fazenda em Goiás. Convencido a cuidar do meu caso, foi para Bauru, e vaticinou: Se ela ficar aqui, vai morrer. Vamos levá-la para São Paulo. Mas ela não pode viajar de avião, temos de levá-la de ambulância. Fui internada no Hospital da Beneficência Portuguesa, onde fui operada. O acidente foi no dia 4 de abril e eu fui operada no dia 11 de abril. Estava superdebilitada, magérrima, mas houve uma corrente formidável de amigos e de familiares que ficaram no hospital direto comigo, direto, direto. Fiquei em pré-coma. Antes de ser operada, rasparam a minha cabeça, e isso fez com que a lembrança da tortura, ainda muito recente, voltasse à tona. Depois de tomar um analgésico e de perceber que iam raspar a minha cabeça, passei a gritar feito uma louca: Façam o que vocês fizerem, seus filhos da puta, mas não vou falar nada. Os médicos entraram em pânico, mas as pessoas próximas tranqüilizaram-nos, disseram que eu havia passado por uma situação difícil. Resultado: tiveram que me botar uma camisa-de-força para rasparem minha cabeça, e poderem fazer a cirurgia. Fiz a cirurgia, e virei um talismã para os médicos, que me trataram com extremo carinho e cuidado. O doutor Melaragno, o neurologista que chefiou o meu tratamento, me disse, quando saí do hospital, que eu tinha uma saúde extraordinária e que ficaria boa logo. Tive alta e voltei para casa. Nessa época morava, no Itaim-Bibi, numa casa muito gostosa, com Dennis Carvalho, com quem estava casada desde a gravação da novela Meu Pé de Laranja Lima. Ainda estava em casa em processo de recuperação, quando a TV Globo me procurou de novo, e em agosto, quatro meses depois do acidente, me mudei para o Rio de Janeiro. Ainda não estava totalmente recuperada, meu tratamento durou nove meses, à base de medicação muito pesada, mas absolutamente correta, que meu neurologista me receitou. Segui o tratamento indicado por ele à risca. Antes do acidente já era magra, pesava 50 quilos, depois do acidente cheguei a 45. Estava sem eixo, sem nada, muito fraca, e esse tratamento me fez recuperar a energia e a saúde. Vim para o Rio de Janeiro e minha estréia na Globo foi em um Caso Especial da Leilah Assumpção chamado A Reviravolta. A Grande Virada A minha chegada ao Rio foi outro momento difícil. Ainda estava me recuperando, mas precisava voltar a trabalhar com urgência porque precisava pagar as minhas contas médicas que foram altíssimas. A TV Tupi não me apoiou em nada, quem pagou todo o meu tratamento fui eu. Lembro que fui conversar sobre minha situação com o Orlando Negrão, que era um dos diretores da emissora na época, e lhe disse que a Globo me oferecia X e pedi X igual para ficar na Tupi. Fui destratada, humilhada, não me deram apoio algum. Em compensação, os meus médicos foram geniais e pude pagar-lhes em parcelas. O doutor Roberto Melaragno não apenas me salvou a vida como só admitiu que eu lhe pagasse depois que pagasse todos os demais médicos. Além disso, não me cobrou nenhuma consulta, desde a época imediatamente posterior ao acidente até a minha liberação total, dez meses depois. Depois do Caso Especial da Leilah Assumpção, o Daniel Filho especulou a possibilidade de eu estrelar Gabriela, baseado no livro de Jorge Amado Mas a idéia não vingou. Ainda tinha o cabelo muito curto por causa da cirurgia que havia feito algum tempo antes. Mas esse fato de estar com o cabelo muito curto acabou sendo aproveitado quando fui chamada para interpretar Silvia, em O Rebu, uma novela que adorei fazer, foi uma sorte minha poder fazer uma novela como essa, maravilhosa, genial. Pena que a Globo tenha apagado essa novela, uma sacanagem, um crime de lesa-cultura, um absurdo total. Outra grande sorte minha: O Rebu era escrita por Bráulio, o mesmo autor de Beto Rockfeller, que havia marcado a minha estréia na TV. A Volta dos Anjos Lembro que, antes de a novela começar a ser gravada, fui conversar com o Bráulio Pedroso, e lhe disse: Parece que os anjos voltaram a nos ligar né? Estreei na Tupi com você e vou estrear na Globo com você. Minha personagem era inspirada na Regina Lecréry, que tinha morrido naquele acidente aéreo em Paris, e era uma mulher charmosa, sensual, maravilhosa. A direção, mais uma sorte minha, era de Walter Avancini, do querido amigo Walter Avancini. Foi genial fazer essa novela. Era aquilo que queria fazer na televisão, coisas de qualidade assim, e O Rebu, cada vez mais me convenço disso, foi uma novela extraordinária. Além disso, contracenava com Ziembinsky, com a Tereza Rachel, com a Maria Fernanda, e com a amada, amada, amada Isabel Ribeiro. Eu amava Isabel Ribeiro, ela era extraordinária, extraordinária, extraordinária. Todo o elenco de O Rebu era magistral. Fazer a cena da morte de Silvia na piscina foi uma delícia, eu adoro água, logo adorei fazer, e olha que aquela cena foi repetida inúmeras vezes. Adorei também os figurinos chiquérrimos de Marília Carneiro que, muitos e muitos anos depois, reencontrei, para sorte minha, novamente como figurinista, em A Casa das Sete Mulheres. Nunca gostei de maquiagem, mas nessa novela deixei o Eric Rzepecki tirar minha sobrancelha e fazer uma boquinha de coração inspirada em Theda Bara. Assassinato na Piscina A gente gravava a novela numa casa em Jacarepaguá e era muito bem-tratada por todos, principalmente pelas camareiras, que me adoravam. Naquela história de ser sempre gentil, tinha relações de trabalho muito amistosas com todo mundo. Nunca tive comportamento de primadona, porque ainda não tínhamos chegado a essa coisa hollywoodiana de hoje em dia e também porque esse nunca foi meu jeito, como também não é da amada Sonia Braga, que eu amo de paixão. Mesmo assim, tinha tratamento especial, as camareiras ficavam com roupões e toalhas nas mãos para me secarem sempre que fazia alguma cena dentro da piscina. Meus figurinos eram todos duplos, sapatos, vestidos, smokings. Na cena do assassinato de Sílvia, o diretor ordenava: Mergulha, prende a respiração. E eu mergulhava, e ficava lá de respiração presa, e fazia muito frio; as gravações eram sempre noturnas, de madrugada. Mas quando saía da piscina, um exército de camareiras me secava com toalhas, me vestia o roupão, e me dava um cálice de conhaque para beber. Tomava o conhaque e recomeçava tudo de novo, porque a gente precisava gravar aquela cena do assassinato dezenas de vezes. Durante grande parte das gravações de O Rebu continuei tomando a medicação receitada pelo doutor Roberto Melaragno. Tomava a medicação religiosamente, sempre na hora certa. Se estivesse em cena, pedia a alguma camareira para me lembrar e me levar o remédio. Até que um dia, após consulta com o Dr. Melaragno, ele me disse: Você está totalmente curada, não precisa mais tomar remédio. Foi por aí que a Regina Duarte me passou um apartamento que alugava em frente à Globo, ali no Jardim Botânico. Então passei a morar em frente do lugar onde trabalhava, onde gravava algumas cenas de O Rebu. A gravação começava às sete e meia, então levantava às seis e meia, tomava uma ducha, tomava café, atravessava a rua e estava no trabalho. Anos Dourados Depois de O Rebu fiz Bravo!, da Janete Clair. Quando fazia essa novela surgiu o convite para atuar em Gota d’Água. Foi mais ou menos nessa época que me separei do Dennis Carvalho. Ficamos cinco ou seis anos juntos, mas não estávamos nos entendendo mais. Trabalhar em Gota d’Água foi outra sorte minha. O espetáculo foi um sucesso extraordinário. Direção de Gianni Ratto, texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, que tinha como ponto de partida o clássico grego Medéia. Só tinha gente maravilhosa no elenco e na equipe técnica. Dori Caymmi, por exemplo, era o diretor musical do espetáculo. Às vezes eu e o Dori saíamos para conversar e lembro que um dia falamos de Frank Sinatra, que ele sempre adorou. Então disse para ele que meu pai também adorava o Frank Sinatra, e ele acabou me dando um disco muito especial do Frank Sinatra, um disco em que ele só canta músicas de fossa, apenas ele e o piano, é uma coisa linda. A gente mantinha essas relações de troca de informações culturais com as pessoas. Chico Buarque acompanhou a montagem, e ficamos muito amigos. Às vezes ia com ele para a Adega Pérola, que era um bar que ficava na Rua Siqueira Campos, bem perto do teatro. Ficávamos lá horas conversando e tomando uísque. Era uma delícia aquela época. Mais ou menos por essa época, encontrei minha turma no Rio de Janeiro, e fiquei amiga de muitos intelectuais que adorava. Foi quando criamos um grupo de estudos no Teatro Casa Grande, que ficava na Av. Afrânio de Melo Franco, no Leblon. Éramos eu, o Max e o Moisés, que eram produtores do Gota d’Água e também donos do Teatro Casa Grande, Chico Buarque, Paulo Pontes, Fernando Peixoto, Guguta e Darwin Brandão, Zuenir e Mary Ventura. Nos reuníamos todas as segundas ou terças-feiras para debater e conversar assuntos que tivessem a ver com cultura. Antonio Callado também entrou para o grupo um pouco depois. Me sentia o máximo, estava no meio da nata intelectual do Rio. Depois das discussões íamos para o Degrau, ou para o Alvaro’s, tomar um chopinho, comer um pastelzinho. Mas a coisa desandou quando Paulo Pontes teve câncer galopante, e morreu muito rapidamente. Ele, além de ser muito bem-informado intelectualmente, era um homem coordenado, articulado, então ele era meio o mestre de todos nós. Quando ele morreu nos dispersamos. Lembro que era engraçado porque eu era a mais nova da turma e, talvez por isso, sempre me encarregava de ir à Fundação Getúlio Vargas pegar xerox de material. Mas quando chegava na reunião, eu dizia: Tudo bem, vocês são doutores nos assuntos, mas eu gastei tanto de táxi e tal, gastei tanto disso, o xerox custou tanto, vamos repartir essas despesas. O Ataque da Censura e a Volta à Escola A censura era brutal naquela época. Quando fiz O Casarão, meu personagem, uma jornalista, ficava semanas sem aparecer no ar, porque cortavam todos os textos dela. Em Gota d’Água a gente fez um ensaio para a censura em que todo o elenco falava tudo muito pouco articuladamente, como se tivéssemos dicção precária. Era uma maneira de ludibriar os censores. Mesmo assim eles cismaram com os palavrões. Então na véspera da estréia, Paulo Pontes e Chico Buarque tentaram retirá-los, mas de forma que os versos continuassem se encaixando. Era uma coisa absolutamente ridícula. Nessa época do espetáculo e, depois, do grupo do Teatro Casa Grande, voltei a pensar em estudar. Certa vez fui assistir ao espetáculo Doces Bárbaros, e depois saímos para jantar, eu e a Guguta Brandão, com a Maria Bethânia. Aí no meio do jantar, estávamos conversando, eu dizendo que não sabia isso, não sabia aquilo, e a Guguta perguntou: Então por que você não volta para a faculdade? Aí a Bethânia falou: Volta sim. Acatei a sugestão delas e me inscrevi no curso de Sociologia da PUC. Morri de vergonha quando entrei na sala de aula, porque só tinha gente jovem, e eu me senti velhíssima. Fiquei pouco tempo no curso. Infelizmente tive de abandonar porque era impossível coordenar os estudos com os horários das gravações das novelas. O Sindicato e o Apê no Bairro Peixoto Comecei então a me envolver com o Sindicato dos Artistas. Sentia que a mulher política começava a ressurgir com força. Participei da briga pela regulamentação da profissão, da briga pelos direitos de imagem, e voltei a me engajar em alguns movimentos sociais. Mas precisava sobreviver, e aceitei o convite para fazer Sinhazinha Flô. Nessa época comprei um jipe. Depois do acidente os médicos me disseram que tinha de voltar a dirigir logo, senão ficaria com trauma. Às vezes ia para as gravações da novela em Conservatória, no interior do Estado do Rio, de jipe. Adorava andar de jipe pelas ruas do Rio, com a capota aberta no verão. Era uma farra. Cruzava com motoristas de ônibus, os caras me reconheciam, buzinavam, eu buzinava de volta, era incrível. Quando estava gravando Sinhazinha Flô, meus amigos começaram a me sugerir que eu comprasse um apartamento, que não tinha muito sentido eu morar de aluguel. Reagi, meio indignada: Vocês estão malucos, eu com essa minha vida instabilíssima, comprar um apartamento? Acabei, depois de muito pensar, aquela coisa muito taurina de pensar muito antes de tomar uma decisão, acabei comprando este apartamento em que moro até hoje, aqui no Bairro Peixoto, em Copacabana. Claro, comprei o imóvel superfinanciado, afinal de contas morria de medo da instabilidade de minha profissão. Mas fiz bem. Sinais de Alerta Em Sinal de Alerta, novela de Dias Gomes que tive a sorte de participar, voltei a ter problemas com maquiagem e com maquiadores. Um dia Eric Rzepecki me disse que tinha recebido uma queixa da direção da Globo. Alegavam que eu estava muito bonita para ser uma operária. Então o Eric falou que tinha que botar maquiagem para me enfear, que eu estava muito bonita e que isso, essa minha beleza, brigava com a história, que eu tinha de ter cara de pobre, enfim, aquelas coisas todas. Já estava cansada de brigas por essas coisas, então disse: Ah, é? Estão achando que estou muito bonita pra ser operária, que operária tem que ser feia, então tudo bem, pode me maquiar. Então deixei botarem vincos no meu rosto, e logo em seguida fui ao banheiro, lavei o rosto, e fui gravar. Fiz essa operação todo dia. Em Sinal de Alerta tinha uma cena belíssima, e fortíssima, entre mim e o Eduardo Conde. Tínhamos uma discussão muito séria. O diretor era de novo o querido Walter Avancini, sempre zeloso na sua maneira de incitar os atores aos gritos. Ele acreditava que o ator representava melhor se fosse incitado a fazê-lo. Então no meio da cena, o Avancini nos interrompeu e falou: Vocês estão parecendo dois imbecis fazendo a cena, a cena está mole, frouxa, vocês não têm o texto de cor, parecem não saber o que estão fazendo. Reagi, irritadíssima: Não é nada disso, porra! O Avancini aproveitou a deixa, e berrou: É isso aí, o clima é esse aí, vamos lá, vamos lá! Obedeci ao Avancini e fiz a cena com muita raiva, afinal era o momento em que meu personagem sabia que o personagem do Eduardo Conde estava de caso com a personagem interpretada por Renata Sorrah. Acabou ficando uma cena muito bacana. Quando acabou Sinal de Alerta, o Dias Gomes me convidou para assistir ao último capítulo na casa dele. Aceitei o convite, claro. Cheguei lá, tinha poucas pessoas. Assistimos à novela, nos confraternizamos, nos demos parabéns. Disse então ao Dias que me sentia muito feliz e orgulhosa de ter participado dessa novela e do presente que ele me deu, aquele personagem tão bacana. Aí ele falou: Não, eu que devo lhe agradecer pelo presente que você me deu, porque você mudou a personagem, ela não era para ter seguido esse caminho. Mas você, com seu talento, você mudou a personagem. Foi uma glória para mim ouvir aquilo. Mas nesse momento a minha vida começava a tomar novo rumo. Já estava tão intrometida, tão envolvida, com a luta dos atores pelos direitos de intérprete, com o Sindicato dos Artistas, que, ainda durante as gravações de Sinal de Alerta, fui chamada ao departamento de pessoal da Globo. Quando cheguei lá me disseram: Bete, seu contrato está acabando. Reagi: Como, está acabando? Só acaba no ano que vem. Eles disseram: Ah é? Nossa, que confusão da nossa parte... Achávamos que acabava agora. Isso me fez perceber que a minha barra estava pesando por causa da minha atividade sindical dentro da televisão. Logo depois do fim de Sinal de Alerta fui, de fato, demitida. Capítulo V O Terceiro Dia (Rio de Janeiro, 4 de junho de 2004) Nudez & Morte nas Telas O primeiro filme que fiz foi As Delícias da Vida, em 1973. Tinha direção de Maurício Rittner e era uma adaptação de uma peça de Antonio de Pádua, que se chamava Happy End e que havia sido premiada num concurso de teledramaturgia da TV Cultura de São Paulo. Também atuei em J. S. Brown, o Último Herói do Gibi, de José Frazão, que filmei na Bahia. Aparecia nua em ambos, e também em Eles não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman, que realizei algum tempo depois. Não conseguia escapar dos convites para aparecer nua no cinema, e brigava muito, discutia muito antes de aceitar a idéia. Era aquela velha briga contra a possibilidade de me tornar mulher-objeto. Em As Delícias da Vida fazia uma cena de cama com o Enio Carvalho, que depois abandonou a carreira. Foi uma cena delicada, muito discreta. Em J. S. Brown, o Último Herói do Gibi, ficava nua porque meu personagem morria e o corpo tinha que fazer autópsia no Instituto Médico Legal. Rapaz, foi brabo filmar aquilo, eu deitada nua na mesa onde faziam autópsias de verdade. Muitas vezes fiquei nua e muitas vezes morri em filmes e novelas que fiz. Morri a facadas em J. S. Brown, o Último Herói do Gibi. Morria jogada pela janela em O Rebu. Morri enforcada em Memorial de Maria Moura. E de peste, em Terra Nostra. Agora nessa novela, Seus Olhos, que fiz no SBT, morri de enfarte. No meu trabalho na Globo, no Caso Especial A Reviravolta, morria também, mas não era morte de verdade, era uma cena do tipo realismo fantástico. Mesmo assim, tive de gravar o dia inteiro dentro de um caixão. Era muito incômodo e muito desagradável. Mas nunca tive cisma, ou receio, de fazer esse tipo de cena. Sempre fiz na boa. Agora nesse dia que eu filmei no Instituto Médico Legal de Salvador foi horripilante. Primeiro, porque era no local onde realmente faziam autópsias, então deu um certo arrepio. Depois lembro que desci para trocar de roupa e passei por um lugar, por um porão onde se deixavam os demais restos humanos. Também fiquei tocada porque ao lado de onde fiz a minha cena ficava localizada a capela onde velavam as crianças mortas. Lembro que à noite, depois de fazer essas cenas, passei álcool em meu corpo todo, da cabeça aos pés, e depois tomei banho e fui ao cabeleireiro para secar meu cabelo, pentear e tudo, porque queria me limpar daquela mesa onde eu fiquei deitada, nua. Assim na Terra como no Mar Não tinha cisma de fazer essas cenas, mas a idéia de morte me assusta sim. Desejo morrer, se é que a gente pode escolher uma forma de morte, sem doença grave. Aquela coisa de morrer de repente, morrer num susto como diria Guimarães Rosa. Morrer sem perceber que se está morrendo. Mas, depois de ter vivido situações muito duras como a tortura e o acidente de carro, e ter sobrevivido sem mazelas graves, acredito muito numa energia positiva e peço sempre essa energia positiva por meio de orações, aquelas orações convencionais, tipo Ave-Maria e Pai-Nosso. A minha espiritualidade funciona assim baseada naquela relação energética, como a minha avó índia me mostrava, naquela relação com o mar, com a terra, com os outros seres vivos, sejam plantas, sejam bichos. Acredito que a gente tenha uma relação de harmonia com essa energia total com o universo. Vou pouco a missas. Só quando é por causa de algum movimento social ou de sétimo dia em memória de alguém muito querido. Mas gosto de entrar em igreja vazia para orar. O que me atrai é a possibilidade de usar o lugar como templo de oração. Mas também posso orar em qualquer outro lugar, em casa e de frente para o mar. Este é, aliás, o meu lugar preferido de oração, olhando para o infinito. Sem essa de Mulher-Objeto Fui chamada para posar nua por todas as revistas masculinas daquela época. Todas. Nunca topei, nunca, nunca, nunca, nunca. Uma das vezes foi delicado rejeitar a proposta. Era 1979, quando fui demitida da Globo e estava atuando na peça A Calça, de Carl Sternhein. Havia um momento do espetáculo em que ficava sozinha, usando apenas calcinha, blusinha, bota e meias, e me masturbava em cena. Meu personagem era casado com um homem mais velho que não a satisfazia sexualmente, e desejava um homem mais jovem. Alguém ligado a uma determinada revista foi assistir ao espetáculo e telefonou, me convidando para posar nua. Disse que seria uma grande divulgação para o meu espetáculo, que eu posaria apenas seminua, afirmou que respeitava muito as minhas posições políticas. Enfim, tentou me seduzir de todas as maneiras. Mas fui categórica, e falei: Não, não e não! O cara me ofereceu muito dinheiro, para a época era muito dinheiro, não lembro exatamente quanto. Era moralismo, acho. Lembro que, certa vez, o Mino Carta me convidou para uma entrevista na revista em que trabalhava, acho que era na Homem. Foi interessantíssimo. Fiquei toda prosa porque em vez de me convidarem para posar nua, me convidaram para falar vestida. Nessa entrevista lembro que falei sobre essa coisa de não querer posar nua. Afirmei que não tinha nada contra as minhas colegas atrizes que posavam nuas, que eu achava que era uma questão de foro íntimo, mas que eu não via essa possibilidade para mim. Disse que eu faria isso numa peça, num filme, numa novela, dentro de um personagem, dentro de uma trama que pressupunha a nudez, mas não numa revista. Claro, tinha também o lance do moralismo. Não conseguia me ver exposta nua numa revista à venda nas bancas de todo o País. Em outro momento, quando estava estrelando O Rebu, um editor da revista Manchete ligou para mim, e propôs: Bete, vamos fazer umas fotos bem sexy. Perguntei: O que é que você entende por sexy? Ele respondeu: Um peitinho, uma bundinha. Ah, rarará. Reagi: Não, não faço isso. Ele perguntou: Por quê? Mas você é uma mulher muito sensual e tal, deveria posar assim. Disse: Tudo bem, agradeço o cumprimento, e tal, mas não vou fazer. Aí ele perguntou: O que é que você tem contra? Em seguida começou a citar as atrizes que já tinham posado nua. Falei para ele, meio rispidamente: Rapaz, quem vende a sua revista é Bete Mendes, não é o peitinho nem a bundinha da Bete Mendes. Desliguei o telefone, irada. Algum tempo depois, o mesmo editor me ligou de novo e disse: Tudo bem, Bete, a gente faz uma foto como você quiser, mas como você está fazendo um personagem assim, mais sexy, as fotos têm que ser assim, mais sexy. Você vai poder ver as fotos e escolher as fotos. Pode ser assim? Então topei. Fiz as fotografias ali no prédio da Manchete, na Glória. Lembro que quando entrei na redação da revista para ver as fotos já reveladas, claro, foram apenas impressões, estava todo mundo cochichando, o ambiente, na minha impressão, estava um pouco avesso. Era como se escutasse os jornalistas dizendo uns para os outros: Olha a babaca da Bete Mendes, olha a metida da Bete Mendes entrando. Fui para a sala do editor, ele me mostrou o material e perguntou: Essas fotos não estão bonitas? Nesse exato momento entrou o Adolpho Bloch, e o Adolpho Bloch chegou e disse para mim: Vim aqui para cumprimentar a Bete Mendes. Queria cumprimentá-la pela excelente atriz e pela pessoa firme que você é. Quero convidá-la para almoçar comigo. Achei isso o maior barato. Quando Ela não Usou Black-tie Em Eles não Usam Black-Tie, discuti muito com o Leon Hirszman e com o Gianfrancesco Guarnieri. Discuti porque aquela cena de nudez que estavam me propondo não tinha nada a ver com a história. Mas acabou que eles conseguiram me convencer. Mas pedi que no set de filmagem ficasse só a equipe mínima, porque eu me sentia na época, não sei se pela imagem pública que havia adquirido na TV ou pelas fofocas que eu ouvia, muito vulnerável. Tinha também aquela coisa de temer que os homens não me respeitarem, afora aquela antiga idéia de defender o meu talento e a minha postura. Mas no final deu tudo certo, a filmagem da minha cena de sexo com Carlos Alberto Riccelli foi muito bonita, tudo feito com muito cuidado e bom gosto, e o resultado final, muito bacana. Em J. S. Brown, o Último Herói do Gibi eu estava filmando uma cena de transa entre mim e o ator Marcus Vinícius à noite na praia do Porto da Barra, em Salvador. Estava filmando dentro d’água quando vi um homem fotografando tudo com uma lente deste tamanho. Parei a filmagem e fiz um escândalo. Esbravejei: Se não tirarem aquele cara que está lá me fotografando eu não continuo a filmagem. O pessoal da técnica ponderou: Calma, Bete, é apenas um turista. Não quis saber, berrei: Ele vai me vender nua como propaganda do Brasil, e eu não quero que ele venda o meu corpo para fazer propaganda da Bahia e do Brasil. Então alguém da equipe técnica foi lá e pediu para o cara ir embora, e ele foi embora, e as filmagens puderam continuar em paz. As Tramas e Lamas da Fama Recebia muita carta de fã. Tinha até lances de quererem me agarrar, era uma loucura. Uma vez, ainda no Beto Rockfeller, fomos, eu e o Luiz Gustavo, fazer um baile de debutantes em Curitiba. Não esqueço nunca. Quando a gente chegou, tinha dezenas de batedores, entramos num carro chiquérrimo, acho que era uma limusine, fomos acompanhados por carros de segurança, aquela coisa toda. Já no aeroporto tinha uma multidão nos esperando. Foi meio assustador. Quando chegamos no baile, tinha dois seguranças que ficavam de plantão porque os caras queriam me tirar para dançar a qualquer custo, e os seguranças diziam: Ela não vai dançar com ninguém! Porque os caras estavam bebendo, jovens, né?, e eles tinham aquele cuidado comigo. Outra vez, fui ao Maracanã ver um jogo com vários amigos, o Lima Duarte, inclusive. Ficamos nas cadeiras. Foi na época de O Rebu. Quando o jogo acabou e estávamos saindo, surgiu uma mulher não sei de onde, puxou meu cabelo com força, e gritou: É ela mesmo! Aí apareceu uma outra mulher, e as duas me agarraram, me abraçaram, me puxaram. Essa certa histeria dos fãs me assustava um pouco. Eu me assustava muito com essa súbita fama. Hoje superei isso, trato o público com o maior carinho, com a maior emoção, sempre choro quando o público me reconhece e me acarinha. Mas durante um período muito grande, naquela história de querer ter uma vida normal, com o pé no chão, não me deslumbrar com o que acontecia, fiquei assustada. Mas procurava não levar isso muito a sério e continuava a fazer as coisas que todo mundo faz: ir ao mercado, à feira, ao banco. Entrava na fila e tudo. Aí as pessoas aos poucos começaram a se acostumar. Percebi que quando existia uma preparação para a chegada de uma atriz, de uma estrela, o povo ficava louco. Mas quando andava na rua normalmente, sem afetação, as pessoas achavam meio estranho, mas, aos poucos, se aproximavam calmamente, conversavam, pediam autógrafos. Hoje em dia adoro essa conversa com o público quando acontece. Lembro que alguns jornalistas escreveram muita coisa para mim nos jornais e revistas. Um deles chegou mesmo a escrever livros para mim e me enviou esses livros. Tinha também as cartas dos fãs, cartas apaixonadas, malucas, de homens e mulheres. O que mais me emocionava, e me doía muito recebê-las, era receber cartas que demonstravam a miséria de nosso povo. Porque mandavam cartas para mim pedindo dinheiro para o casamento da filha, para comprar dentaduras e cadeira de rodas. Também pediam empregos, e tinha muitas pessoas que pensavam que teria o poder de transformá-las em atores e atrizes, que acho que era o que mais me pediam. Isso era uma coisa maluca porque as pessoas imaginam que o ator vive num mundo fantasioso, maravilhoso, que a gente vive no Olimpo, que a gente ganha muito dinheiro, e aí as pessoas querem ter isso também. Até arrumei secretária para me ajudar a receber tanta carta e criamos uma carta padrão para tentar responder a todo mundo. Mas acabou não dando tempo de fazer isso, não tinha tanto tempo de orientar a minha secretária sobre como responder a essas pessoas todas, e desisti de tentar responder a todo mundo. Mas sempre tive a maior gratidão por esse afeto que as pessoas tinham comigo. Na época do acidente de carro que sofri traumatismo craniano foi impressionante. Não só a imprensa foi delicada comigo, como também os fãs. Recebi manifestações de carinho do Brasil inteiro, de gente que torcia pela minha recuperação. Chegavam também cartas de pessoas que faziam novenas e orações. Foi uma coisa extraordinária, e uma coisa que me impressionou muito na época. Sem falar na classe artística que foi me visitar em massa no hospital. Era uma farra no hospital porque a cada dia ia um artista diferente me visitar. Era uma coisa muito bonita, muito amorosa. Todos torciam pela minha recuperação. Até hoje me emociono ao lembrar esses momentos. Nunca Houve Mulher como Sílvia Na época de O Rebu, em que a personagem que interpretava, a Sílvia, era meio andrógina, as lésbicas me assediaram bastante. Na época ainda estava bastante fragilizada, trabalhava muito, e ainda estava sob aquela medicação intensa. Minha vida era trabalho-casa, casa-trabalho, e às vezes me convidavam para ir a algum bar, e invariavelmente dizia: Não dá, estou muito cansada. Houve até algumas reações de insatisfação de colegas de elenco, acho que me julgavam meio esnobe. Mas era só cansaço mesmo. Lembro que uma vez estava gravando em Jacarepaguá e uma pessoa me convidou para ir a um bar homossexual, e eu falei que não ia. Não porque fosse um bar homossexual, mas porque estava cansada. No dia seguinte, a pessoa que me havia feito o convite me falou meio agressivamente: Você é uma mulher muito careta, você não entende merda nenhuma. Tinha consciência de que o personagem que interpretava tinha a ver com esse, digamos, assédio. No carnaval de 1975, tive uma das maiores glórias de minha vida de celebridade. Os gays do Rio, 90%, se vestiram de Sílvia. Foi maravilhoso. Ia aos lugares e encontrava com gays travestidos da minha personagem, e eles me diziam: Sílvia é maravilhosa, Sílvia é genial. Eu dizia: Também acho, também acho. A gente se abraçava, se confraternizava, dançava um pouco com eles, era uma farra. Foi uma coisa deliciosa esse carnaval. Até que a Morte a Separe Casei três vezes, nunca com casamento formal. Fui casada com o Dennis Carvalho, com Antonio Carlos, um ex-parlamentar do Mato Grosso do Sul, e agora com o Marco, estamos juntos há 7 anos. Gosto de casamento, gosto de amar, de me apaixonar, de viver apaixonadamente. Tenho grande apreço pela convivência e pela vida familiar. Adoro poder compartilhar minha vida com alguém. Acho bacana viver junto com alguém, poder somar, compartilhar, apoiar e se sentir apoiada. Nunca me imaginei vivendo solitariamente. É uma coisa que nunca quis. Hoje em dia olho para o meu marido Marco e tenho certeza: quero ficar junto dele para sempre, que a gente vai ficar muito velhinho sempre um ao lado do outro. Deixando a Vida lhe Levar Pode-se perceber pela minha história que nunca programei muito minha vida. Nunca fui de decidir fazer alguma coisa e aquela coisa acontecer. Fui, como diz o Zeca Pagodinho, deixando a vida me levar. No cinema também foi sempre assim. Lembro que um dia o Leon Hirszman, que morou durante muito tempo em prédio aqui do lado do meu no Bairro Peixoto, e o Gianfrancesco Guarnieri me chamaram para conversar. No meio da conversa, abriram o roteiro de Eles não Usam Black-Tie, e me mostraram a cena em que determinada personagem, grávida, briga com outro personagem, recebe um soco dele, e lhe diz que o filho que espera não é dele e sim do avô dele. Era uma cena belíssima. Pois bem, eles me mostraram a cena e me perguntaram: Quer fazer? Falei: Vocês dois não prestam, né? me chamam para fazer e me mostram essa cena. Claro que quero fazer. Foi uma coisa muito bacana fazer esse filme, entre outras coisas porque, democraticamente, todo mundo recebeu o mesmo cachê. O Leon Hirszman era um diretor delicadíssimo, Para se ter uma idéia, ele e o Lauro Escorel, o diretor de fotografia, desenharam todos os planos, minuciosamente, antes da filmagem. Quando a gente chegava para filmar, todo o equipamento já estava devidamente montado, luzes, câmeras, tudo. Eu tive que passar boa parte do meu tempo em Vila Brasilândia, na periferia de São Paulo, onde o índice de criminalidade era muito alto. Teve uma vez que a gente foi filmar num bar, e tivemos que esperar até de madrugada porque a polícia baixou, houve tiro, socos, porrada, foi brabo. A gente filmava em locais reais, era tudo locação, pouca coisa foi filmada em estúdio, em ruas próximas às fábricas, era tudo muito realista. Para tornar tudo ainda mais encantador, o Leon Hirszman era de uma delicadeza que chegava a me emocionar. No meio da confusão toda das locações, chegava gentilíssimo, juntinho da gente, de cada ator, e falava bem baixinho o que queria. Que diretor, meu Deus, que sensibilidade! Sabia tudo o que queria de nós, em nenhum momento era autoritário, preparava tudo detalhadamente, de uma maneira fantástica. Aventuras do Mestre Zimba Contracenar com Ziembinsky em O Rebu foi genial, aprendi muito com ele. Também aprendi muito com Eva Wilma, com Lima Duarte. Não estudei em escola, mas essas pessoas funcionaram para mim como grandes professores, como grandes mestres. Ziembinsky tinha fama de temperamental, de mal-humorado, mas não era nada disso. Nós nos amávamos alucinadamente. Ele era disciplinadíssimo, era de uma pontualidade, digamos, polonesa, chegava para as gravações antes de todo mundo. Um dia ele me contou que, por causa da dificuldade dele de falar bem o português, passava as madrugadas repetindo as falas dele e as falas de quem contracenava com ele, e ouvia tudo aquilo depois. Então quando chegava para gravar, sabia o capítulo inteiro de cor. Como se não bastasse, ele pedia para passarmos o texto com ele, nos dava sugestões, perguntava nossas opiniões, perguntava o que a gente achava do jeito como estava interpretando o personagem. Ou seja, estudávamos muito a cena antes de gravá-la. Pensava: Meu Deus, que coisa genial, um homem com muito mais idade, com muito mais experiência que todos nós, com essa obsessão toda de representar da melhor maneira possível! Ele tinha essa paixão pela arte. Não importa que fosse na tevê ou no teatro, buscava sempre a perfeição. Mas um dia aconteceu algo muito curioso numa das gravações. Era uma cena em que eu, Ziembinsky e Buza Ferraz contracenávamos. Era uma cena difícil naquele triângulo amoroso difícil, ele já desconfiando de meu personagem ter um caso com o personagem do Buza Ferraz, que tinha um caso com o personagem do Ziembinsky. A cena era nós três discutindo, batendo boca, e tinha de ser uma cena exata, precisa. Fizemos os ensaios de câmera, tudo certo, o diretor gritou gravando e começamos a gravar. Eu falava, depois o Buza falava e o Zimba falava. Mas aconteceu o seguinte: O Ziembinsky começou, repentinamente, a falar em polonês, que era o idioma nativo dele. Buza falava, eu falava, corta pro Zimba e ele começou a falar em polonês. Olhei para o Buza, comecei a ficar nervosa, acabei tendo uma crise de riso. Desabei na risada. Tiveram que parar a gravação, e eu corri até o Zimba e lhe disse: Meu Deus, Zimba, me perdoa! Aí ele, com aquele sotaque simpático que tinha, me disse: ‘Betinha, que problema, voltei pra minha terra que estava nervoso com a cena. Olha que coisa linda. Houve então uma gargalhada geral, a gravação parou, e fomos tomar cafezinho e rir mais daquilo tudo. Quando a Arte não Imita a Vida Eu e Isabel Ribeiro fazíamos personagens que eram adversárias em O Rebu. Um dia tivemos que gravar cena em que nossos personagens se enfrentavam em discussão terrível, barra-pesada mesmo, tipo duas serpentes, uma tentando envenenar a outra. O problema era que, na vida real, éramos muito amigas e nos amávamos muito, foi assim meio amor à primeira vista. Quando soube que a gente ia representar uma cena assim, falei para ela: Vai ser difícil para nós, que somos tão amigas, fazer uma cena assim, cheia de raiva. Ela retrucou: Nem me fale, vai ser barra-pesadíssima. Fizemos ensaio para as câmeras, o diretor gritou gravando e começamos a nos enfrentar. Fizemos uma cena sibilina, pa, pa, pa, pa, pa, uma falava a outra respondia, em cima, uma maravilha. Quando acabou a cena, nós nos abraçamos e choramos muito. O elenco e a equipe técnica, todos, nos aplaudiram. Que atriz e que mulher extraordinária era a Isabel Ribeiro! Era linda, de uma personalidade fascinante. Senti muito quando ela se foi, ela era muito bacana. Uma Cena Parada no Ar Em Eles não Usam Black-Tie teve apenas uma coisa que me deixou triste, e eu tenho que revelar neste depoimento. Durante as filmagens fiz uma cena em que contracenava com Fernanda Montenegro, que talvez tenha sido uma das melhores que realizei em toda a minha vida. Eram apenas nossas duas personagens na cozinha da casa de uma delas, onde a personagem de Fernanda dizia para o meu personagem que sabia da gravidez do meu personagem. Era um clima quase de filme de Bergman. Era plano a plano em nós duas ali, a câmera ali colada em contraplano, uma maravilha. Ficamos de oito da manhã a uma da tarde fazendo essa cena, olho no olho, apenas nós duas. A hora que acabou, que o diretor se deu por satisfeito com a cena, Fernanda Montenegro segurou na minha mão, depois me abraçou, e falou: Contracenei com uma atriz. Fiquei toda prosa, mas, infelizmente, essa cena foi cortada na montagem final. O que o Leon Hirszman e Gianfranceso Guarnieri me explicaram na época é que, por causa do império das distribuidoras norte-americanas que não gostavam de filmes muito longos, e o filme já estava com duas horas, tiveram que cortar alguma coisa, essa cena teve de ser sacrificada. Fiquei triste, muito triste. Ofício Sagrado, Disciplina de Cão Todos esses grandes atores, esses mágicos, como Ziembinsky e Fernanda Montenegro, são todos de uma simplicidade e de uma generosidade absolutas. E mais: são profissionalíssimos, simplérrimos e muito discretos. Voltei a trabalhar com Fernanda Montenegro na novela Lua Cheia de Amor, e pude constatar o quanto era pontual, profissional, correta. Para atores assim representar é como se fosse algo sagrado, sem chilique, sem afetação. Veja o caso de Ziembinsky, generosíssimo comigo, que estava estreando na Globo e estava muito longe de ter a experiência dele. Também não posso esquecer Paulo Gracindo, com quem contracenei em O Casarão, sempre profissionalíssimo, sempre maravilhoso. A nossa profissão é muito idealizada. Talvez porque trabalhemos com emoções e com sentimentos, e seduzamos as pessoas com o nosso trabalho, as pessoas tendem a achar que vivemos num mundo especial, sem problemas, sem regras, sem rotinas. É engraçado. Ao mesmo tempo em que ainda existe uma certa discriminação em relação aos artistas, tipo dizerem que todo artista é puta, viado, louco ou drogado, as pessoas nos invejam por essa vida que levamos e que eles acham que é sempre libertária, prazerosa, um mar de rosas. Isso não tem nada a ver com a vida que, nós atores, realmente levamos. Nós atores temos, ao contrário do que possam pensar, uma disciplina do cão, em termos de sono, de alimentação, de memória, de chegar nos horários certos das gravações e das apresentações teatrais. Se estivermos de mau humor antes de entrar em cena, problema nosso. Temos que nos esforçar o máximo que pudermos para entrar em cena esfuziante, mesmo que, por dentro, estejamos dilaceradas e feridas por alguma questão pessoal não-resolvida. Às vezes pode acontecer o contrário: estamos felizes, satisfeitas, e temos de descobrir tristeza em algum lugar para interpretar um personagem triste e problemático. Lembro de novela que fazia na Tupi dirigida por Henrique Martins, acho que era Revolta dos Anjos. Fazia a mocinha que chorava muito, que sofria muito. Um dia cheguei ao estúdio super-alegre, descontraída, e o Henrique Martins me falou: Você parece que está feliz hoje. Estava mesmo. Aí ele falou: Esqueça essa felicidade toda porque você vai ter que chorar muito daqui a pouco. Não é uma loucura trabalhar com sentimentos tão contraditórios? Às vezes não dei conta de me abstrair de tudo e fazer a cena. Lembro que em O Rebu, ainda com a saúde abalada pelo acidente, frágil, e o velho José Lewgoy, que ficou meu amigo, a gente se curtia muito, se dava muito bem, chegou para gravar na maior crise de mau humor. Tínhamos uma cena, só nós dois, para gravar, e ele propôs que passássemos a cena. Topei. Mas, em vez de passarmos a cena, ele começou a falar mal da novela, da TV Globo, dos autores, dos diretores, da vida dele. Eu insistia: Vamos passar a cena. E ele, irritado: Não. Continuou reclamando, reclamando, reclamando. Um dos meus problemas nessa época era muita dor, aliás, toda essa medicação que continuava tomando era preventiva, contra eventuais dores que viesse a sentir por causa do traumatismo craniano. Chegou a hora de gravar a cena, e ele não tinha decorado o texto e continuou a esbravejar. Aquilo foi me deixando tão tensa, mas tão tensa, que comecei a passar mal. Minha cabeça estava quase explodindo de dor, e era uma dor desesperadora. Não consegui mais suportar e pedi ajuda. Então me levaram para casa, fui medicada, fiquei deitada no escuro, descansando, e só voltei a gravar no dia seguinte, com, claro, um José Lewgoy bem mais tranqüilo. Tieta do Congresso Teve outro momento que foi alucinante na minha vida: era deputada, e fui convidada pelo Paulo Ubiratan para fazer Tieta. Vim de Brasília para o Rio de Janeiro, conversei com os diretores da novela, expliquei que só poderia gravar nos dias em que não houvesse sessões no Congresso Nacional. Ou seja, só poderia gravar às sextas, sábados, domingos e segundas. Eles falaram que tudo bem e tal, dava para adequar e conciliar os horários. Achei ótimo, estava muito feliz em ser convidada, e fui fazer a tal novela. Foram nove meses da mais absoluta loucura. Hoje, pensando naqueles dias, me pergunto como consegui viver naquele ritmo alucinante. Tinha dia que acordava e não sabia onde estava, se em São Paulo, Rio ou Brasília. Vivia na ponte aérea direto, correndo entre os três lugares. Decorava os textos durante os vôos, gravava a novela, discursava no Plenário do Congresso Nacional, debatia os problemas nacionais nas Comissões. Foi uma doideira. A minha sorte é que fiz um personagem delicioso, Aída, casada com o Modesto Pires, interpretado pelo extraordinário Armando Bogus. Portugueses Atacam em Londres Outra sorte minha foi atuar em O Rei do Gado, que foi um dos trabalhos mais gratificantes da minha vida. Contracenava basicamente com Stênio Garcia, eu era a Donana e ele, o Zé do Araguaia, um ator espetacular, e só isso já me bastaria para estar feliz. Fizemos um trabalho de preparação para a criação dos personagens raro, que implicava muitas e muitas reuniões entre nós. Cismamos que um de nós tinha origem indígena, e fomos pesquisar tudo sobre a cultura indígena no Museu do Índio. Nos telefonávamos várias vezes ao dia para discutir mais detalhes que íamos definindo para os nossos personagens. Nos reuníamos com o diretor Carlos Araújo e ficávamos horas discutindo. Teve um momento então que exigimos que fôssemos passar um tempo nos locais onde os personagens viviam, e ficamos quinze dias hospedados numa fazenda de Goiás. Lá, andávamos pelo mato entre quinze e vinte quilômetros por dia e buscávamos mais elementos para enriquecer os nossos personagens. Foi bárbaro esse período de preparação. Além disso tudo, o Benedito Ruy Barbosa nos chamou para conversar e nos falou do carinho especial que tinha por nossos personagens. Foi maravilhoso. Parte da novela era gravada na fazenda do Roberto Marinho, para onde viajávamos a cada dois meses e ficávamos cerca de dez a quinze dias. Lembro então que um dia o diretor Luiz Fernando Carvalho veio conversar comigo e disse: É o seguinte, Bete, você está tão enturmada com o Araguaia e com esse lugar que eu acho que, mesmo que você não grave, você tem que ir sempre que uma parte do elenco for. Tudo bem? Falei: Ótimo! A partir daí, ia para a fazenda, mesmo que não tivessem nenhuma cena para gravar comigo. Ficamos lá andando de um lado para o outro, eu e o Stenio Garcia. Usávamos o gravador para gravar o jeito de falar do pessoal da região. Foi toda uma coisa construída, costurada. Valeu a pena todo esse investimento, a novela foi um sucesso estrondoso e nossos personagens também. Tive idéia desse sucesso muitos anos depois, quando ocorreu um fato que me envaideceu muito. Participei apenas do primeiro capítulo de Terra Nostra, mas fomos, eu e boa parte do elenco, filmar num navio em Southampton, na Inglaterra. Na volta para o Brasil, resolvi passar por Londres, e fomos, com o Marco, meu marido, que foi me encontrar lá, e com alguns integrantes do elenco, para o Palácio de Buckingham ver a cerimônia da troca de Guarda. Aí aconteceu uma coisa tão bonitinha! Estávamos eu, o Marco, o Paulo Figueiredo, Lu Grimaldi, Ana Paula Arósio, José Augusto Branco, e uns fãs portugueses enlouqueceram quando me viram. Começaram a gritar meu nome e a fazer um agito. Acabou que nós não vimos a troca da Guarda. Isso aconteceu sabe por quê? Por causa da novela O Rei do Gado, que então estava sendo exibida em Portugal. Era uma resposta magnífica e recompensadora a todo o trabalho que fizemos, eu e o Stênio Garcia, em O Rei do Gado. Diretores e Diretores Adoro o jeito carinhoso com que alguns diretores tratam a gente, prefiro muito mais esse tipo de direção, me assusto quando o diretor grita no meu ouvido. Digeri o berro do Walter Avancini, gostava muito dele e sabia que era o estilo dele, o jeito dele. Agora, recentemente, atuei no filme Vestido de Noiva, com direção de Jofre Rodrigues, que estava estreando como diretor, mas que é um ótimo diretor. Mas ele berra muito também. Teve um dia que foi engraçadíssimo, ele berrou: Atenção, ação! Vai Bete! Fiquei paralisada, e expliquei para ele: Você gritou, eu me assustei. Eu não consigo entrar em cena assim, sob pressão. Mas sei que essa maneira de dirigir dele era resultado do entusiasmo e da seriedade com que ele estava levando as filmagens. Ele é um homem forte, com voz tonitruante, tem voz de barítono, e gritava todo dia, e todo dia eu ficava assustada. A gente até brincou com isso, quando ele dava um berro, eu contava um, dois, três, parava para respirar, e depois entrava em cena. Cada diretor tem um estilo diferente de dirigir. O Luiz Fernando Carvalho é muito perfeccionista, acho isso maravilhoso, ele cuida muito de tudo, dos mínimos detalhes. O Jayme Monjardim tem uma concepção do que ele quer muito segura, meio assim como o Leon Hirszman. O Lima Duarte quando dirigia, há anos que não quer mais dirigir, era genial, era delicado, direto, brincava muito com o elenco. Outro que me dirigiu, e foi delicioso trabalhar com ele no teatro, foi Ítalo Rossi, uma figura fantástica. O Dennis Carvalho também costuma gritar com os atores. Quando a gente fez Anos Rebeldes, estava meio na penumbra esperando minha hora de gravar, e ouvi um berro. Era o Dennis Carvalho. Eu me assustei, e ele se justificou: Pois é, uma vez a Renata Sorrah pediu para eu não gritar porque eu a assustava. Então entrei no estúdio para gravar e comecei a falar baixinho. Sabe quem prestou atenção em mim, quem me obedeceu? Ninguém. Então tenho que berrar, não tem jeito. Caímos na gargalhada. Mas ele não faz o mesmo estilo do Avancini, é outro jeito. O Avancini berrava para exercer a autoridade dele, o Dennis berra mais para chamar a atenção, para ser ouvido. O Henrique Martins também berra às vezes, mas é mais na galhofa. O Jofre Rodrigues berra pelo entusiasmo. O Antunes Filho berrava, berrava, berrava o tempo todo. Era dificílimo trabalhar com ele, mas ele é genial, ele é um alucinado. Nunca perdi a paciência com nenhum diretor, que eu me lembre, nem com ator mal-humorado, a não ser naquela situação com o José Lewgoy que já contei. Mas ali estava sentindo muita dor. Eu me irrito muito quando o ator com quem contraceno erra o texto ou não decora o texto. Isso me tira do sério, mas fico na minha, não adianta esbravejar. Aliás, quanto mais subir a temperatura, pior. Outro ator muito esbravejador, que gosta muito de reclamar, é o Cláudio Correa e Castro, com quem tive o prazer de trabalhar várias vezes em novelas e no teatro. Em 1995 fiz com ele À Luz da Lua, dirigido pelo Ítalo Rossi e comigo, ele, Selton Mello, Rosita Tomaz Lopes e Roberto de Cleto no elenco. Aí estávamos ensaiando e chegava o Cláudio Correia e Castro esbravejando. A gente cochichava um com o outro: Qual terá sido o problema hoje? Ele ria, e falava: Vocês pensam o quê? Meu carro quebrou na ponte, estou pra lá de Niterói. Alguém brincava: Ah, foi mesmo? E ríamos todos, ele e nós, da história do dia. Fogo na Platéia & Baratas no Palco Quando encenávamos Gota d’Água teve um incidente que foi hilário, hilário. Apresentávamos a peça no Teatro Tereza Rachel antes da reforma, e o teatro era precaríssimo, não tinha ar condicionado, o que, no verão, era um verdadeiro horror. Nos bastidores deparávamos com ratos, baratas, escorpiões, tudo. No nosso camarim, meu e da Bibi Ferreira, que era um buraquinho do lado do palco, tinha um ratinho que a gente nomeou ele, chamava ele com um nominho lá, passou a ser nosso amiguinho, porque ele tava todo dia lá. Fumar no teatro ainda não era proibido, e as pessoas fumavam, comiam e bebiam na platéia. Um dia, um cara da platéia estava fumando, foi apagar o cigarro, mas não apagou direito, jogou o cigarro no chão, e começou a subir uma fumaça terrível. Então alguém gritou: Fogo na platéia! Foi uma loucura. Todo mundo saiu correndo, paramos o espetáculo, fechamos o pano, e alguém, enfim, teve a idéia de pegar o extintor de incêndio. Mas, para desespero nosso, o extintor não funcionava. O Geraldão, que era um figurante nosso amigo que fazia parte do elenco, tentou fazer com que o extintor funcionasse e saiu do bicho aquela espuma vermelha e, em vez de dirigir a fumaça vermelha para o lugar onde o cigarro fora jogado, jogou na direção do público. Acabou pintando parte do público de vermelho. O espetáculo só voltou a ser apresentado algum tempo depois, pois precisávamos sair da comédia do quase-incêndio para a tragédia de Medeia/Joana e esperar o público deixar de gargalhar. Teve outro episódio que foi brabo. Estava em cena, era no final do espetáculo, a hora que o Creonte mata a Joana, o Oswaldo Loureiro e a Bibi Ferreira representando magistralmente, eu e o Roberto Bonfim no mezanino, e, de repente, uma barata entrou em cena. O público percebeu e, claro, desviou todo o olhar para a barata. A barata chegou até perto do pé do Loureiro, o Loureiro fingiu que não estava acontecendo nada, continuou a cena. Em seguida, meio disfarçadamente, pisou na barata. A baratinha ficou meio zonza, mas não morreu de vez, e começou a andar meio tropegamente. A essa altura, o público, que acompanhava tudo, já estava às gargalhadas. E a danada da barata não morria. O espetáculo acabou, o pano desceu, e só aí se conseguiu tirar a barata semimorta de cena. Nunca Diga Nunca Não sou uma mulher de arrependimentos, até porque a gente vive as coisas querendo viver e nunca sabe antecipadamente, eu não sou oráculo, se deveria ou não fazer determinada coisa, assumir determinada atitude. Até me acho privilegiada porque pude fazer opções, tudo que eu fiz eu optei por fazer, eu quis entrar nos barcos, eu quis participar. Então tudo foi conseqüência de escolhas que fiz. Ultimamente não tenho aceitado cargos públicos. Já fui convidada para várias eleições, mas não quis. Não uso a palavra nunca porque acho palavra muito perigosa. A gente nunca sabe o dia de amanhã, o que pode acontecer conosco. Da mesma forma como acho perigoso o ator dizer que já sabe tudo. Essas coisas definitivas são muito perigosas. Essas coisas definitivas são só pra depois que a gente morreu. Portanto não diria nunca, mas, por enquanto, não tenho vontade de voltar a ser e não tenho saudade, nenhuma, dos meus tempos de parlamentar. Não que tenha me decepcionado com essa política parlamentar. Acho que apenas aprendi uma lição imensa, dura, a de que o Congresso Nacional é uma síntese do Brasil, com nossa conformidade os interesses múltiplos e confusos. Tanto no Legislativo, como deputada federal, como no Executivo, como secretária de Cultura de São Paulo, estive no centro do poder, convivi com o poder, então isso me acrescentou muito em termos de vida, em termos de consciência, em termos de experiência, em termos de conhecimento de como é que as coisas acontecem. Foi experiência riquíssima da qual não me arrependo. Então não há tristeza ou arrependimento, apenas acho que houve em mim uma mudança, um amadurecimento. Na verdade fui para o Congresso Nacional meio no entusiasmo, o hoje presidente Lula me convenceu a ser candidata a deputada federal. Mas não tinha idéia para onde eu estava indo, fui na tarefa da militância. Hoje acho, embora, claro, essa posição possa não ser para sempre, que não quero seguir a carreira política, quero seguir a carreira artística e cultural. Fazer, não apenas o trabalho de atriz, mas também o trabalho cultural. Também, admito, há certa comodidade nessa minha decisão. Agora quero viver minha vida, plenamente. Porque nessa história toda que vivi, posso me perguntar: Bete, que horas você tinha férias, que horas que você namorava, que horas que você caía na gandaia? Ok, até que tive férias, até que namorei, até que caí na gandaia, mas sempre foi tudo de uma maneira muito sôfrega. Agora, não sei se por causa da idade ou pelas muitas coisas que vivi, quero uma vida mais legal, mais maneira, em que possa participar, em que possa me envolver nas coisas que quero, mas sem a tensão constante de tudo que vivi até hoje. Uma vez disse que gostaria que, quando morresse, escrevessem na minha lápide: Aqui jaz uma pessoa apaixonada pela cultura. Ou seja, não vou conseguir ser nunca essa atriz que faz teatro, volta pra casa, e pronto, acabou. Por mais que queira que minha vida daqui por diante tenha um ritmo mais pianinho, nunca conseguiria me alienar das coisas que acontecem ao meu redor. Esse meu lado atriz é um lado muito mais querido, tenho de admitir. Mas a política é também uma paixão, mas é também uma guerra, uma luta duríssima. Faria Tudo Outra Vez Foi uma das minhas maiores tristezas do tempo em que fui parlamentar. Foi uma tristeza muito grande quando fui convidada a me desligar do PT quando votei em Tancredo Neves para Presidente da República em 1985. Era completamente apaixonada pelo Partido, que eu ajudei a fundar, fui fundadora, batalhei pelo Partido, foi extremamente doloroso para mim aquele momento. Hoje entendo melhor, porque era a posição do partido e eu a reneguei. Mas não voltaria atrás no que eu fiz, mantenho a minha decisão daquele momento, acho que essa ruptura teria que acontecer, não havia outro jeito. Isso poderia não ter ocorrido se o Partido tivesse outra visão, mas, repito, não voltaria atrás mesmo, não me arrependo. Antes de a expulsão acontecer, houve várias ameaças de que sofreria algum tipo de reprimenda se adotasse aquela atitude, de que o partido me convidaria a me desligar. Mas decidi: Não vou deixar de votar segundo a minha consciência. E minha consciência dizia que a atitude mais correta era votar em Tancredo Neves, e ponto final. Fiquei sem Partido por nove meses, um parto. Depois fui para o PMDB e me desencantei também. De Volta para a Lua Na disputa de um terceiro mandato já estava no PSDB, e não consegui me reeleger. Então, desisti. Já estava sem tesão, e sou política apaixonada, se não tiver tesão nada acontece. Fiz essa última campanha sem nenhum gás. Por outro lado, as campanhas foram ficando cada vez mais profissionais, mais industriais, mais ricas, e tenho orgulho de dizer que as minhas campanhas foram pobres. Depois da eleição, durante as apurações, preferi ficar em casa. Pois bem, estava em casa acompanhando a apuração pelo rádio e pela tevê e percebi que já não tinha mais nenhuma chance de reeleição. De repente, o telefone tocou. Era a Guta, a diretora de elenco da Globo e minha grande amiga. Ela falou: Parabéns, minha querida, você foi eleita. Falei: Não, não fui, Guta, já perdi. Ela retrucou: falou: Você foi eleita por nós, minha querida, queremos você de volta, o Roberto Talma quer você na novela Lua Cheia de Amor. Ela me deu o telefone do Talma, liguei pra ele e falei: Estou indo para um spa porque estou muito esgotada. Ele falou: Ok, vai para o spa, descansa, e depois vem. Olha que glória! Tenho ou não tenho muita sorte? A Cobra Fuma de Novo Quando fiz a narração do documentário A Cobra Fumou, de Vinicius Reis, tive, de novo, problemas com o meu torturador. Estava em casa certo dia, quando me ligou um repórter da revista Carta Capital. Dizia que o coronel Brilhante Ustra tinha reclamado junto ao ministro do Exército com relação à terrorista que estava narrando um filme sobre o Exército. Para se ter uma idéia de como essa história de ser torturada me marcou, isso ocorreu em 2002, mais de trinta anos depois de ter sido presa e torturada. Estranhei o que o repórter me dizia, e falei: Olha, só posso conversar com você se eu tiver esse material na minha mão. Ele passou o material pra mim por fax, dei a entrevista por telefone e eles fizeram uma matéria maravilhosa. Logo em seguida, o ministro do Exército afirmou que o Brilhante Ustra estava totalmente equivocado. Esse cara, aliás, em um site na Internet, em que vocifera contra os que chamam de terroristas estarem hoje ocupando cargos próximos ao poder. Esse cara é muito doido. Tenho muito orgulho de ter denunciado esse cara. Na verdade, nós, de esquerda, fomos todos identificados pela sociedade, mas o outro lado, o lado dos torturadores, não. Ninguém sabia quem eles eram, e pelo menos um teve sua cara e sua identidade reveladas. Mas, na verdade, o texto que lia nesse filme não tinha nada a ver com torturadores, nada. Apenas narrava um fato histórico, era um filme sobre a Força Expedicionária Brasileira, por sinal bonito pra caramba. Fiz, digamos, a narração emocional do filme, e esse cara achou que era desrespeitoso que eu narrasse um filme sobre o Exército. Dona do Próprio Nariz É aquela história, embarquei nessa história de denunciar meus torturadores, tenho de agüentar as conseqüências. Quem mandou? Podia ter ficado calada, quietinha, mas não. Então estou nisso, né? Logo, tenho de conviver com esses medos todos. Mas minha rotina continua a mesma coisa, não deixo de fazer nada, não tenho nenhum tipo de paranóia, nenhuma. Claro, de vez em quando acontecem episódios como aquele que vivi na gravação da minissérie A Casa das Sete Mulheres, em que o espectro da tortura volta a me rondar. Mas procuro sempre manter a calma. Quando tenho algum problema desse ou de qualquer outro tipo a melhor coisa a fazer é me recolher, fico quieta, em casa. Se tiver alguma obrigação de algum trabalho, de algum compromisso, respiro fundo, faço um raciocínio de vou ter que enfrentar aquela situação, e vou. Vaidade, Sim Sou vaidosa sim, mas não sou aquela vaidosa que faz o modelito perua. Essas coisas de fazer lipoaspiração e colocar botox não têm nada a ver comigo. Ao contrário. Quero continuar a envelhecer naturalmente, com orgulho das marcas que a vida me dá. Claro, tomando alguns cuidados básicos. Quero chegar aos 70 anos com a cara de uma mulher de 70 anos, mas uma bela senhora. Eu me cuido, faço hidroginástica, caminhada. Também quero diminuir o meu peso, porque a gula é o meu maior pecado. Sempre fui muito gulosa. Adoro o sabor da boa comida. Cozinho e gosto de cozinhar, mas não tenho muito tempo. Meu marido, Marco Antonio Fernandes Marques, adora as coisas que faço na cozinha, e é tão guloso como eu. Como meio sem culpa. Já levei muita bronca por estar acima do peso, até de diretores. Também amigos me recomendam que emagreça, até mesmo por causa de minha atividade como atriz, e eu concordei. Estou tentando me conter. Esses conselhos não me irritam, partem de pessoas de quem gosto muito, e que também gostam muito de mim. Felicidade, Sim A vida está muito boa para mim atualmente. Não tenho nada me afligindo. Sou uma mulher feliz. Tenho este apartamento onde moro, que eu acho que é o suficiente para mim. Nunca tive pretensões de riqueza. Minha grande riqueza é humana, tenho muitos amigos, eu tenho muita gente que gosta de mim. Tenho amigos em qualquer lugar, na Oropa, França e Bahia. Isso é importantíssimo para mim. Ou seja, o meu patrimônio imaterial é imenso. Gostaria de dirigir um curta-metragem. Às vezes sinto vontade de ser professora de interpretação. Também tenho um sonho: melhorar as condições de funcionamento da Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, que ainda não acabou, mas que sobrevive em condições muito precárias. É a mais antiga da América Latina. Formou Procópio Ferreira, formou Joana Fomm, formou um monte de gente importante, mas está em situação lamentável. Quero viver dessa forma o resto da minha vida, claro, trabalhando sempre, que é imprescindível. Mas quero continuar com esse meu jeito simples, sem sufoco de nenhum tipo, nem financeiro nem de qualquer outro tipo. Tenho uma vida agradável. Gosto, além de ouvir música, de ver espetáculos teatrais e musicais, de ir a cinema. Também quero filmar mais, trabalhar mais em teatro e em televisão, e viajar, viajar muito. Sonho meu, sonho meu Tenho muitos amigos ligados ao samba, ao chorinho, à música popular. Às vezes vou assistir a algum show deles e depois que o show acaba, vou para o microfone e canto com eles, e é a maior farra. Aliás, quando estiver mais velha, e com dinheiro, vou ser proprietária de um pub, um bar, onde vou cantar a hora que eu quiser. A hora que eu quiser. A Atriz Bete Mendes em Dados Nome completo: Elizabete Mendes de Oliveira Nascimento: 11 de maio de 1949 Novelas TV Tupi Beto Rockfeller – 1968/1969 Super-Plá – 1969/1970 Simplesmente Maria – 1970 Meu Pé de Laranja Lima – 1970/1971 Na Idade do Lobo – 1971 A Revolta dos Anjos – 1972/1973 A Volta de Beto Rockfeller – 1973 Divinas & Maravilhosas – 1973/1974 TV Globo O Rebu – 1974 Bravo! – 1975/1976 O Casarão – 1976 Sinhazinha Flô – 1977/1978 Sinal de Alerta – 1978/1979 De Quina pra Lua – 1985/1986 Tieta – 1989/1990 Lua Cheia de Amor – 1990/1991 O Mapa da Mina – 1993 Pátria Minha – 1994 Quatro por Quatro – 1995 O Rei do Gado – 1996/1997 Terra Nostra – 1999/2000 TV Bandeirantes Pé de Vento – 1980 Dulcinéia Vai à Guerra – 1980/1981 TV Cultura Floradas na Serra – 1981 TV Manchete Brida – 1998 SBT Seus Olhos – 2004 Minisséries TV Globo O Tempo e o Vento – 1985 Anos Rebeldes – 1992 Memorial de Maria Moura – 1994 Aquarela do Brasil – 2000 A Casa das Sete Mulheres – 2003 Filmes As Delícias da Vida Direção de Mauricio Rittner, 1974 Amantes da Chuva Direção de Roberto Santos, 1979 J. S. Brown, o Último Herói do Gibi Direção de José Frazão, 1980 Insônia Direção de Emanoel Cavalcanti, 1980 Eles não Usam Black-Tie Direção de Leon Hirszman, 1981 A Cobra Fumou Documentário de Vinícius Reis narração, 2001 Vestido de Noiva Direção de Jofre Rodrigues, 2004 Teatro A Cozinha de Arnold Wesker Direção de Antunes Filho, 1968 Desgraças de uma Criança de Martins Penna Direção de Antonio Pedro, 1974 Gota d’Água de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes Direção de Gianni Ratto, 1975 A Morte de Danton de George Büchner Direção de Aderbal Freire Filho, 1977 A Calça de Carl Sternhein Direção de Maurice Vaneau, 1979 Patética de João Ribeiro Chaves Neto Direção de Celso Nunes, 1981 Pegue e não Pague de Dario Fo Direção de Gianfrancesco Guarnieri e Renato Borghi, 1982 Ária de Serviço de Vitor Giudice Direção de M. A. Braz, 1991 As Primícias de Dias Gomes Direção coletiva, 1993 À Luz da Lua de Harold Pinter Direção de Ítalo Rossi, 1995 Momentos, Beijos de Nelson Rodrigues Direção de Nelson Rodrigues Filho, 2000 Bárbara do Crato de Heloneida Studart Direção de Wilma Ducetti, 2001 Crédito das fotografias pág. 166 / 167 / 240 - TV Globo pág. 93 / 201 / 233 / 265 - TV Globo / Nelson Di Rago pág. 240 / 266 - TV Globo / Jorge Baumann pág. 266 - TV Globo / Roberto Steinberger Demais fotografias do acervo pessoal de Bete Mendes Imprensa Oficial