CACILDA BECKER Maria Thereza Vargas Uma mulher de muita importância Para Maria Clara e Luiz Carlos (Cuca) Sumário Prólogo 13 Introdução 17 Uma Longa Caminhada 19 Na Infância, era Dança 21 A Opção pelo Teatro 35 A Companhia de Bibi Ferreira 43 Do Rádio para o Cinema 45 Encontra “Seu” Ziembinski 47 Uma parada na Fazenda Santa Cruz 55 A Escola de Arte Dramática 57 Uma Atriz Paulista 61 O TBC que conheci 67 O Teatro de Cacilda Becker 91 Salvador, Recife e Europa 103 De Volta ao Brasil 115 Quem tem Medo de Virgínia Woolf? 123 Comovente no Drama e Espirituosa na Comédia 125 Estreias na Tv e no Cinema 133 Por um Teatro Livre 141 Preciso ver tudo | Última entrevista de Cacilda Becker concedida à Daisy Fonseca 145 Cronologia Teatro | Cinema | Rádio | Televisão 149 Créditos das Imagens 155 Agradecimentos 156 PRÓLOGO Muita gente já escreveu, escreve e escreverá sobre Cacilda Becker; não só por ela ter sido a maior atriz de uma época, mas pela sua personalidade marcante. Era uma tigresa, uma leoa quando lutava em defesa de suas crenças, seus amigos, seus filhos e, acima de tudo, seu Teatro. O Teatro Brasileiro de Comédia não foi somente uma oportunidade ímpar que ela anteviu para sua carreira, não: o TBC foi cria sua. Quem se aproximasse dele com más intenções deparava-se com uma fera rosnando, preparada para atacar. Quem chegasse com carinho e amizade encontrava uma gatinha ronronando, grata pelas carícias, pronta para brincar. Foram dez anos da minha vida dedicados a ele, TBC. Deu-me muito e eu a ele me dei integralmente.1 Foi uma colega pronta a ajudar jovens atores meio perdidos em cena; não regateava conselhos ou demonstrações práticas. Mesmo cansada, depois de ensaios exaustivos que duravam até oito ou nove horas, dispunha-se a ficar mais um tempo para ajudar alguém desesperado que não encontrava a inflexão certa, ou não conseguia realizar a marcação pedida pelo diretor. Não se importava em perder horas de sono para que a peça ficasse melhor. A peça era mais importante do que ela mesma e era preciso que todos estivessem bem. Não tinha medo de concorrência, mas ai de quem pensasse em tomar-lhe o lugar! Ela era a primeira atriz do TBC! Todos nós sabíamos disso e respeitávamos o maior conhecimento de teatro e os anos que ela já trabalhara como atriz profissional. Todos que conviveram com Cacilda têm algo interessante para acrescentar à sua biografia, mas ninguém mais que Maria Thereza Vargas tem o direito, adquirido por longa amizade e convivência nos momentos mais cruciais, de escrever sobre sua vida. E o faz com isenção de ânimo e objetividade. 1BECKER, Cacilda. Amo o TBC mais do que ninguém. Folha da Noite, São Paulo, 20.11.1958. Sabemos de longa data o profundo conhecimento que a autora possui a respeito do teatro brasileiro e principalmente paulista. Desde jovem acompanhou com profundo interesse o nascer dessa nova maneira de fazer teatro, capitaneada por Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Abílio Pereira de Almeida, e tantos outros depois deles. Colaborou com a Escola de Arte Dramática, escreveu livros em parceria com Sábato Magaldi, é ponto de referência para escritores e estudiosos da arte teatral. Enfim, ao ler este seu trabalho pode-se ter certeza de que tudo o que está escrito foi verificado e comprovado. Nada é fruto da imaginação, nem se baseia em comentários levianos ou apressados. Thereza titubeou muito antes de escrevê-lo; foi preciso a insistência dos amigos para que aceitasse esta incumbência. Felizmente para todos os que tiverem o prazer de lê-lo. Nydia Licia INTRODUÇÃO Cacilda não diz: Eu sou – Diz: Eu tenho sido. Eu vou ser – infinita. (Álvaro Moreyra) “Todos os Teatros são o meu Teatro”, assim falou Cacilda Becker, ao visitar o Teatro Ruth Escobar, após o atentado do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ao espetáculo Roda viva. Muito tempo havia passado, muita água havia corrido até que a atriz, ciosa de seus direitos, abrindo a tapa o seu caminho, conseguisse despojar-se de todo o encanto por si mesma e incorporar com fé, toda uma categoria. Nelson Rodrigues, que nunca a perdoou por não ter lutado para que Senhora dos afogados fosse montada no Teatro Brasileiro de Comédia, chamou-a, nos anos terríveis da ditadura militar de “A Passeata”, despersonalizando-a em tom de piada ou ironia. Mesmo que tenha sido essa a sua intenção, a declaração nunca seria uma ofensa. As agruras da profissão (“a melancolia dos que são obrigados a transigir com os próprios sonhos”, como lembrava Maria Jacintha) desafiaram-na, pouco a pouco, a enfrentar com todas as forças, tanto a vida quanto o palco, e num certo sentido, assumi-lo em toda sua plenitude. No decorrer da vida percebeu-se presente naqueles que com ela começaram e nos que a acompanharam. Sua arte fizera-se com seus companheiros ( a maioria mostrada neste livro, através de fotos, gentilmente cedidas). Compreendera-os. Sentindo-se pessoa responsável, nunca se omitiu, nem mesmo traiu sua classe. Ao contrário, sempre a defendeu com unhas e dentes, até mesmo suas personagens, esgarçadas a partir de 1968. “Não sei onde o teatro vai parar. É estarrecedor!”disse, ao confrontar-se com o Dionysus in 69 de Richard Schechner, em Nova York. Também assustou-se com o Living Theatre. Pena, porque com um pouco mais de calma teria tido com os Beck inolvidáveis conversas. Em verdade, Alma, Antígone, Marta, Maria Stuart, grudaram-se em sua vida. Destruí-las, seria destruir-se. E seus instrumentos de trabalho: técnica apurada, cultura, voz, adestramento psicológico, emoção estavam em perigo. Em tão pouco tempo assistiu a nova geração interessar-se por Stanislavski, confrontar-se com questões sociais, impor Brecht e Roger Planchon e impressionar-se com o “grande medo metafísico” de Antonin Artaud. Lembremo-nos que ao maldito Artaud, até que, por vias transversas, de uma certa forma, não deixou de responder, tragicamente, em Esperando Godot. No entanto, sua estada em Nova York em 1968 foi proveitosa. Viu em pequenos estúdios, atores levarem horas para resolver uma cena. Invejou a calma e a paciência dos intérpretes. E mais do que tudo, “deixou-se viver”, anonimamente, caminhando longas horas entre jovens e velhos, percebendo “a maravilha que é viver simplesmente”. Haveria tempo para uma etapa síntese do que aprendeu no Teatro do Estudante, nas Companhias de Roulien, Bibi Ferreira, no Grupo Universitário de Teatro, no Os Comediantes, no Teatro Brasileiro de Comédia e no Teatro Cacilda Becker? Esperavam-na Arkadina, de A gaivota, ou a rainha Gertrudes, de Hamlet? Decidiu-se por Esperando Godot, o mesmo que, quando levado em 1955, pela Escola de Arte Dramática de São Paulo deixou-a tão perplexa quanto o Dionysus de Schechner... Pelo que foi, pelo que teria sido, mereceu o que disse o historiador Francisco Iglesias, no jornal O Estado de Minas Gerais, em 10 de maio de 1969: “Cacilda Becker é a maior figura que o teatro produziu no Brasil”. Maria Thereza Vargas Carta de Cacilda Becker para Maria Thereza Vargas Vôo 114 – New York – Paris – 26-12-68. Minha querida comadre Não te escrevi não por ser uma ingrata, mas é que não dá !, ou melhor nem deu. Foi uma dureza aguentar o tirão de conhecer a cidade, vêr cousas e gentes, gostei minha querida, muito. Foi, ou melhor, tem sido uma experiência importantíssima. Vi duas cousas graves em teatro; o Living Theater e o Dionizios! Quanto ao Living – capítulo para 3 horas de conversa. Tu sabes que não como gato por lebre...Hay de discutir e mucho! Quanto ao Dionizios é estarrecedor, não sei onde é que o teatro vae parar, não sei. Não se pode nem pensar em fazer, claro! Nudez completa é o minimum... Nunca vi, sem pecado, tanto sexo masculino. Só que muito caro! dez dólares! Outro capítulo de mais algumas horas de conversa. UMA LONGA CAMINHADA Não deixa de ser um tanto melancólico que uma atriz de teatro seja lembrada em suas criações através de imagens fotográficas, formas fixas que agitam a memória dos que a viram representar e exigem certa imaginação dos que não a conheceram. Máscaras? Próxima da arte do ator, a palavra máscara ainda que traga seus mistérios, assume ares quase depreciativos. Lembram uma imobilidade que de forma alguma informam inteiramente uma atriz. Notadamente quando relembram uma personalidade tão singular, como Cacilda Becker. Máscara religiosa para Antígone ou de trágico-deboche para Marta? Outra de vingança para Clara Zahanassian? E ainda uma, de sofrimento para o pequeno Francisco? As palavras rosto ou face conviriam mais. Provavelmente ajudariam a penetrarmos melhor no que teria sido a criação do artista. Rostos e gestos bem registrados por um bom fotógrafo conseguem ainda que palidamente que nos aproximemos do que foram os dias de estudo em profundidade, a preocupação com a voz e o corpo, o desenvolvimento passo a passo de uma técnica a serviço de um espetáculo que deseja ser perfeito. Na verdade, preparos indispensáveis para uma personagem habitando um corpo. Um corpo que também tem a sua história que, por mais que apagada pela invasão da ficção, insinua-se de leve, lembrando que por detrás de uma criação, encontra-se, imperceptível para os olhos do espectador, a trajetória de uma vida traduzida em um tríptico: experiências de infância, adolescência e maturidade. A estória, ou melhor dizendo, a história de Cacilda não é simples. É um traçado firme, conseguido a golpes rudes. É um caminho à genialidade. É uma consciência alerta exigindo escolhas certas. É uma batalha contra a miséria. É uma longa caminhada, perseguindo o que sempre desejou do fundo da alma: tornar-se gente, no sentido que nos dá o Novo Dicionário Aurélio: ser um ente humano, considerado segundo o conceito de valores de uma pessoa, de um grupo social — Ela é gente a valer. NA INfâNCIA, ERA DANÇA Iniciando seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som, em 1967, Cacilda declara com voz firme: nasci em Pirassununga, estado de São Paulo, em 6 de abril de 1921. Sou filha de Radamés Yáconis e de Alzira Leonor Becker (...) A primeira vez que pisei num palco como artista foi em Pirassununga, num velho teatro chamado Polytheama, dançando. Tínhamos chegado de São Paulo, eu, Dirce Cleyde e mamãe para morarmos na casa de vovô. Papai e mamãe tinham se separado. Mamãe era linda e nos amava muito, como sempre amou. Meu pai... o que dizer dele? Vivemos juntos muito pouco tempo. Houvera alguma coisa errada entre papai e mamãe. Nós sofríamos muito, todos os sofrimentos. Era uma vida cheia de mentiras e que anteciparam meu amadurecimento. (...) os crentes protestantes, a escola dominical e o lanche de domingo. O amanhecer de vovô e vovó lendo em voz alta, à mesa do café, os capítulos da Bíblia, o pecado. A amarelinha na calçada. Ah!, as chuvas nas tardes quentes, furando a rua de terra batida e o cheiro que exalava (é um cheiro que nunca me esquecerei na vida). Mamãe, como professora, lecionava em escolas rurais, em fazendas. Isso fez com que, durante os primeiros cinco anos da minha vida, vivêssemos mudando de casa e de cidade. Não fixávamos residência, e eu acredito que este fato tenha trazido para o meu trabalho uma riqueza de contatos com gente e com coisas constantemente diferentes. Fotos de família tiradas na época mostram-na uma menina viva, independente, capaz, refletindo seus grandes sonhos de criança, narrados várias vezes em entrevistas: ser um dia presidente da Standard Oil e mudar-se do interior para uma cidade com maiores possibilidades de desenvolvimento. Assim foi. Não chegou a ser presidente da Standard Oil, mas Santos a acolheu com ricas informações, e acompanhou com interesse, já na mocidade, seus exuberantes passos de dança, sequência dos movimentos praticados ainda bem pequena, seguindo as oscilações de uma fita que sua mãe movimentava. Na Associação Instructiva José Bonifácio, colégio onde viria a se formar em primeiro lugar, como Normalista, seu professor de latim, Rafael De Lossio, apaixonado pela dança e pelo teatro, foi a primeira pessoa a lhe falar da vida e das concepções modernas de Isadora Duncan. E assim, a futura atriz – dançando pelas praias, rochedos e mar – ia tomando como suas as temerosas palavras de Isadora: desde o início, nada mais fiz do que dançar a vida (...) apreensão de sua brutalidade implacável e da sua marcha esmagadora. 2 Em Pirassununga, quando dançou em público pela primeira vez, executou cheia de medo o bailado de invenção própria ao som de uma valsa e de um foxtrote. Seus avós protestantes hostilizavam-na, acreditando e fazendo-a crer que a dança era coisa do demônio. Mas, em Santos, em um festival beneficente, teve um momento de alegria. Um dos espectadores, Dom Paulo de Tarso, fez questão de cumprimentá-la, louvando seus dotes, e dizendo que a dança que praticava era um dom divino, um reflexo da divindade. Deveria deixar de lado seus temores. O que fazia não era, de forma alguma, um pecado. Por que não se aproximava do catolicismo, mais pródigo em perdoar? E Cacilda foi batizada em 23 de outubro de 1938, na capela do Palácio Episcopal, pelo próprio bispo da Diocese. Outro espectador, agora um leigo, o santista Miroel Silveira, também a viu dançar, executando o balé de sua criação, A lenda de um beijo e a entrevistou para O Diário, um dos jornais da cidade. Um recorte de jornal, sem referência alguma, traz respostas esclarecedoras. Teria sido essa a entrevista dada a Miroel? Pergunta o repórter: que gênero pretende interpretar? E ela discorre com a convicção de quem havia ouvido falar sobre o estilo isadoriano: motivos primitivos me impelem: as florestas, as grutas, os naufrágios, as vinganças e outras violências (...) fecho os olhos e vejo. Levada pelas ondas sonoras e abro e fecho os cenários, acompanhando as personagens que minha imaginação colocou no palco e, dentro de poucos instantes, surge outra Cacilda resumindo em ritmos e passos tudo o que me impressionou... O certo é que movido por uma intensa admiração, o letrado Miroel Silveira iria se tornar o mentor de seus primeiros passos na arte. Levando-a a conhecer o círculo de artistas santistas e paulistas que seu pai, o contista Valdomiro Silveira, recebia em sua casa, Miroel abriu para ela um mundo novo. Humilhações, tristezas, dificuldades de vida foram matizadas com o encantamento das conversas, discussões e muita música. Lavínia Viotti, Quirino da Silva, Flávio de Carvalho, Guiomar Fagundes, Edgard Cavalheiro, Oswaldo Motta completavam com o interesse artístico o que aprendera com os professores que a impressionavam no José Bonifácio: Amazonas Duarte, Oraida Amaral, Aristóteles Menezes. Um novo admirador, Flávio de Carvalho, falou-lhe de Stravinsky, e Guiomar Fagundes apresentou-a a Brailowsky. 2DUNCAN, Isadora. Minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. A OPÇÃO PELO TEATRO Se o conhecimento crescera, a dança praticamente estagnara. Não havia condições no momento, para aperfeiçoá-la, e, evidentemente, a dançarina almejava uma vida profissional. Percebendo isso, Miroel Silveira aconselhou-a a tentar o teatro, deixando a dança para mais tarde. Encaminhou-a a Maria Jacintha, na ocasião dirigindo o Teatro do Estudante do Brasil, no Rio de Janeiro. Com Maria Jacintha, como diretora artística, e com Esther Leão, ensaiadora, principiaria no teatro, recebendo os primeiros ensinamentos e cercada de estudantes devotados à arte. Cacilda, ao chegar para um teste na Casa do Estudante, chamou logo a atenção pela beleza e pelo talento que insinuava. Era o seu primeiro grande passo. Temerosa, escreve à mãe e às irmãs, Dirce e Cleyde. Saí daí com a voz embargada e fazendo uma força incrível para não chorar. Fui de uma coragem tão grande que só mesmo por um grande ideal eu teria. Tenho a impressão que sou uma planta. Separei-me de minhas raízes. Logo estarei junto da seiva que me é necessária, mas como me alimentarei dela sem raízes?3 O certo é que iniciara seus caminhos. Deixou para trás os amigos de Santos, namorados e professores. Distanciara-se do chalé, com buracos no assoalho, tapados com tapetes de estopa, bordados à mão e do vasto pé de maracujá que cobria toda a casa. Estava agora entre jovens que haviam se apaixonado pelo teatro. A diretora pedia que falasse mais alto, e o colega Athayde Ribeiro explicava-lhe como entender aqueles textos recortados, só com as últimas falas dos colegas escritas em vermelho e as suas em negro. Amedronta-se com esse texto todo fragmentado, uma vez que na dança havia um fraseado musical completo que queria dizer alguma coisa. Era necessário substituir uma estudante que não poderia atuar naquele dia? Ela o faria (pela vida afora, substituir alguém seria sempre um fator de sorte) e já se sentindo parte daquele modesto universo teatral, manda outra carta para as três: cheguei agora do Teatro do Estudante, onde fui assistir à peça que levaram, Dias Felizes. Que maravilha! Isto é que é teatro! Agora mais do que nunca sinto-me feliz com minha vinda para o Rio. Este é o verdadeiro teatro. É arte, arte pura. Saí de lá com os olhos banhados de lágrimas. Verifiquei que é esta a terra cheia de seiva que eu preciso para viver.4 3BECKER, Cacilda. Em carta à família. Rio de Janeiro, 16.3.1941. 4BECKER, Cacilda. Em carta à família. Rio de Janeiro, 6.4.1941. A carta foi escrita entre 5 e 6 de abril. Alegre no dia 5, melancólica no dia 6, dia de seu aniversário. Completava 20 anos, sozinha, em uma cidade quase desconhecida. Mais um ano! Como temo a vida! Temendo ou não a vida, o ímpeto juvenil é bastante forte para fazê-la ir em frente. O seu Teatro do Estudante entrara em nova fase. Abandonara os clássicos e os românticos tão a gosto de Paschoal Carlos Magno. Maria Jacintha os enterrara definitivamente, preferindo aproximar os atores de personagens que, de certa forma, eram seus iguais. Um repertório formado por peças contemporâneas e tendo jovens como personagens, é evidente que responderia mais aos interesses de uma plateia de gente moça. Além disso, o trabalho interpretativo seria mais fácil de chegar a bom termo, uma vez que situações e reações não lhes eram de todo desconhecidas. O que pôde tirar de si mesma, referente a Zizi e Mariana5 acrescentando ao que exigiam dela (falar mais alto, observar e executar as marcações) foi suficiente para torná-la uma grande esperança. Nos intervalos dos ensaios na Casa do Estudante, passeia com amigos paulistas. O Rio de Janeiro a encanta. Apaixona-se pelas ondas furiosas, percorre a longínqua avenida Niemeyer e come frutos de sua infância. Na peça 3.200 metros de altitude, de Julien Luchaire, sua estreia oficial, tem um bom papel. Tem certeza que se sairá bem. Assinada por “R”. no Jornal do Comércio, em 13 de abril de 1941, sai a primeira crítica sobre seu trabalho em teatro: Cacilda Becker faz uma garota endiabrada, como devem ser as garotas endiabradas. Imodesta, acha-se a mais talentosa dos estudantes e confessa que seus dois galãs já andam levando o flerte a sério, para fora da peça. Ficou muito pouco com o Teatro do Estudante. Raul Roulien, famoso cançonetista e ator nos anos 1930, com passagem por Hollywood (encantara as mocinhas cantando tangos e foxtrotes) procurava atores jovens para um elenco que havia formado. Dario Niccodemi seria o dramaturgo da estreia e peças de boulevard, com alguma qualidade artística, completariam o repertório. Além disso, promessas de certo bom gosto nas encenações era o que Roulien prometia aos noticiaristas e ao público. Como ensaiador, convidara o experiente Sadi Cabral; como cenógrafo, o jovem promissor Oswaldo Sampaio; e como atriz principal, a elegante e boa atriz, Laura Suarez. Cacilda Becker e Milton Carneiro, representando o ímpeto renovador, foram os escolhidos do Teatro do Estudante. 5Zizi e Mariana personagens, respectivamente de 3.200 metros de altitude e de Dias felizes, textos interpretados por Cacilda, em sua estreia no Teatro do Estudante do Brasil. Nunca é demais nos lembrarmos que moços e moças mais informados começam a ser procurados pelas companhias de fama. O elenco de apoio sustentado em figuras mais velhas de atores portugueses ou brasileiros ressentia-se de figuras mais jovens. Os grupos estudantis atenderam de pronto: Sandro Polloni está no elenco de Jayme Costa, Paulo Porto no de Procópio Ferreira, Danilo Ramires, Ribeiro Fortes e Sônia Oiticica foram contratados por Luís Iglezias e por um breve instante Dulcina pensou em Cacilda, para Nunca me deixarás, de Margareth Kennedy. Curiosamente, portanto, a primeira contribuição do Teatro do Estudante do Brasil ao teatro brasileiro foi a de poder colocar uma juventude com mais estudo nos quadros profissionais e banir para sempre a ideia de que ser atriz ou ator não significava uma adesão à marginalidade. Eram, na verdade, os amadores (afinal de contas, eles poderiam ousar porque pouco dependiam das bilheterias) que davam os primeiros sinais de renovação. No mesmo ano em que Paschoal Carlos Magno convocava, através da Casa do Estudante, gente moça para o teatro, a Associação dos Artistas Brasileiros, também no Rio de Janeiro, acolhia intelectuais e artistas plásticos interessados em teatro. Nascia a célula mater de Os Comediantes. Quais seriam as feições que iam se delineando, no teatro profissional, quando Cacilda chegou ao Rio, em março de 1941? – Estávamos no auge do Estado Novo e sabe-se que a imposição de uma visão progressista e ufanista permeia todo um ideário totalitário. Para nossa felicidade, um homem inteligente, culto e sensível, Gustavo Capanema, regia os destinos do Ministério da Educação e Saúde, tendo como chefe de gabinete o poeta Drummond, o que garantia em suas ações no campo cultural aspectos modernos e contestatórios. Jovens amadores e mesmo profissionais desejosos de mudança tinham amparo direto do Ministério enfatizando o aspecto cultural que também agradava o programa do governo. Assim aconteceu com o incentivo aos Comediantes, e a futura Temporada de Arte, de Dulcina de Moraes. Ainda que percebessem no ar exigências de mudança, a grande maioria das gerações mais velhas fincava-se em compromissos com a graça já então mais frágil das comédias de costumes ou então tentavam renovar-se, a seu modo, aderindo, ao ufanismo, também em vigor, programando dramas e comédias patrióticas, exaltando glórias passadas da nacionalidade. Incentivados pelo Serviço Nacional de Teatro surgiam enredos históricos, encenados desde o fim da década de 1930 e que iam se repetindo, até meados de 1940: Yayá Boneca, Sinhá-moça chorou, ambas de Ernani Fornari; Nossa gente é assim, de Melo Nóbrega; O Caçador de esmeraldas, de Viriato Correa. Nesse ecletismo involuntário, conviviam não sem pequenas rusgas, amadores e profissionais, ambos muito firmes em suas certezas. Mas o clima da época não deixava de ter certo encanto e euforia. Nossos costumeiros contrastes e rompantes fizeram com que, surpreendentemente, entre 1940 e 1941, Procópio Ferreira, a figura masculina mais importante do teatro profissional, mostrasse interesse em encenar Molière e Goldoni, percebendo acenos de mudança no gosto do público. Acrescente-se que jovens e seus mentores intelectuais e artistas entusiasmaram-se com a presença de Louis Jouvet, saindo da França em plena guerra mundial e aqui fazendo longa temporada, a partir de julho de 1941. Um repertório praticamente inédito e encenações harmoniosas e cheias de beleza tocaram na sensibilidade de muitos. Jouvet era bem o representante das ideias que modernizaram o teatro francês e que eram naquele momento, aqui, repetidas pelos vanguardistas. Procópio Ferreira, humildemente procurou-o, aceitando e discutindo sugestões para o seu Avarento. Foi tal o entrosamento que Luiza Barreto Leite, em nome dos amadores, pediu a Jouvet que, de certa forma, viesse a orientar Os Comediantes e, consequentemente, o teatro brasileiro. A resposta soava estranha para as novas diretrizes em ascensão no teatro: nem eu nem qualquer outro europeu poderá fazer coisa alguma pelo teatro brasileiro. Esse teatro deverá ser realizado por vós mesmos, com a vossa sensibilidade, a vossa inteligência, a vossa experiência (...). Dessa juventude espiritual, dessa arte sem requinte, dessas lendas e tradições é que deve sair o vosso teatro.6 6VANORDEN SHAW, Paul. O Teatro Brasileiro. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17. 6.1947. Em meio a esse ambiente preparatório aos novos caminhos é que estreia Acidalia, de Dario Niccodemi, traduzida por Prometo ser infiel com Roulien e sua Companhia de Comédia, em 14 de agosto de 1941, no Teatro-Cassino Copacabana. Cacilda é toda entusiasmo pela nova profissão. Dizia ela que foi a última artista de teatro a tentar comprar galharufas (invenção, peça pregada ao artista estreante). Mas segundo ela mesma, mais tarde em conversas e depoimentos naquela primeira temporada no Rio, ainda encarava o teatro como uma diversão, um meio de sobrevivência. Impressiona-a o ainda belo galã, Roulien, e sua fama. Concentrada em Niccodemi, nos ensaios diários (embora possibilitassem escapadelas para namorar o pianista Eddy Duchin em temporada no Grill Room do Copacabana) e no belo teatro que seria seu local de trabalho, na certa pouco viveu a incandescência daqueles meses. Teria tido notícias de Procópio, de Os Comediantes, ou de um jovem autor que batia de porta em porta com seus originais atrevidos? Alguém lhe contara que Ondine, de Jean Giraudoux, encenada por Louis Jouvet, era a coisa mais bela que o público brasileiro havia visto até então? Ela estaria bem longe, quando aquela mesma retrógrada Comédia Brasileira, apresentou, em 1942, A Mulher sem pecado, do atrevido Nelson Rodrigues, classificada pela crítica como palavrosa, de difícil compreensão, cheia de símbolos ou de imagens sem explicação imediata. Não que a Companhia de Roulien, em meio àquilo tudo, fosse uma companhia rançosa. Ligava-se, de certa forma, às tímidas realizações dos profissionais reformadores. Dizia-se uma companhia sobretudo elegante em seu visual. Roupas compradas pelos atores, mas supervisionadas pelo diretor artístico e pelo jovem cenógrafo de gosto apurado. Não era, de certa forma, um elenco improvisado. No entanto, seus métodos de trabalho pouco fugiam dos mais antiquados. A principal figura masculina pouco estava presente aos ensaios, adaptara alguns textos estrangeiros para o Rio de Janeiro e embora Sadi Cabral – no programa designado como diretor de cena – fosse um estudioso de teatro, imagina-se que era obrigado a usar velhas práticas e velhos termos. Cacilda ouviu atenta: a cena é dividida em três planos: inferior, médio e superior. As laterais do primeiro plano são chamadas direita baixa e esquerda baixa; as do meio: esquerda ou direita meio; as laterais do terceiro plano são: direita alta e esquerda alta. E para o fundo da cena, as mesmas designações: fundo à direita, ao centro, à esquerda. Competia ao diretor de cena a movimentação dos atores dentro dessa divisão e a cada ator de papel na mão, com suas deixas e falas, anotar suas posições. Ainda existia o ponto que devia na certa dar segurança a uma atriz estreante. Acomodado em sua caixa em frente à cena, sua função era seguir o texto. Era tão primordial a presença dele na velha escola e foi tão tardio o seu desaparecimento que, ainda em 1945, Álvaro Pires, veterano ator e agora em funções administrativas declarava: um espetáculo depende do ponto como a fertilidade da terra depende do sol. Foram três os textos apresentados, na primeira temporada de Raul Roulien. Sucederam a Niccodemi Alberto de Castro (O patinho de ouro) e Alfred Savoir (Garçon). Seguindo as datas de estreia percebemos que as peças fizeram sucesso, uma vez que permaneceram mais de cinco dias em cartaz, duração de costume. Acomodadas, como se dizia no teatro antigo, ao Brasil, a interpretação da jovem com quatro meses de teatro não deveria exigir muito dos tipos criados. Apoiava-se, evidentemente, nas situações, mas seu instinto de artista percebia que deveria haver muito mais em uma composição. Foi bem no 1º ato, nas pequenas frases, nos pequenos gestos femininos e significativos, escreve x, y, z em O Jornal, referindo-se à peça de estreia. Mário Nunes, o mais conceituado crítico da época, completa: Cacilda Becker portou-se também com surpreendente virtuosidade para uma estreante, terá quando muito de cuidar da dicção, uniformizando o tom da voz, sem prejuízo da expressão, pois que, por vezes, as palavras se perdem. Diz com sinceridade, todavia e do mesmo modo se move em cena e representa, devendo fazer, consequentemente, brilhante carreira.7 Muitos anos depois, em Confissões de Cacilda Becker, publicada em julho de 1959 na revista A Cigarra, reflete, junto a Sábato Magaldi: ...até então, havia dançado muito. Estava acostumada ao gesto. A palavra ainda não adquirira significado. No colégio não consegui nunca dizer um soneto. Minha dificuldade era a de enfrentar a palavra. Não me parecia problema o domínio corporal. A palavra e a voz foram uma conquista árdua em meu caminho.8 No segundo espetáculo, a própria atriz se entusiasma. O depoimento é dirigido, como sempre, à mãe e às duas irmãs: Abracem-me também! Hoje foi o meu dia! Meu trabalho foi, sem convencimento, posto ao lado do de Roulien. Todo mundo diz que na peça só existiam duas pessoas — Ele e Eu. Roulien esteve magistral! Magistral!9 E passa a relatar não as agruras de intérprete, mas a história de um négligé que mandara fazer na Exposição e que na última hora não ficara pronto. As atitudes tão domésticas de entusiasmo pelo patrão e problemas com vestuário não impedem que alguma coisa mais importante seja notada pelo crítico interino do Diário de Notícias: na interpretação impõe-se Cacilda Becker, que estreou ontem e já chama a atenção do público para a sua pessoa. 10 Quando estreiam em São Paulo, a crítica aprecia suas qualidades, mas a vê ainda como uma esperança. Sabe-se que vinha do Teatro do Estudante e que fazia parte de uma juventude muito especial, mais qualificada e que, na certa, iria acrescentar qualidade ao teatro que se modernizava. Na volta ao Rio, em 1942, a crítica percebe que o trabalho constante a havia quase amadurecido. Já não era uma simples esperança. Quanto à Companhia, parece que perdeu um pouco da modesta seriedade. Não estão em Copacabana, mas na Cinelândia onde o público, portanto, deveria ser muito variado. Devido a isso, sem dúvida, a peça de Raymundo Magalhães Júnior, Trio em lá menor, estreada em São Paulo, passa a se chamar Sururu aqui é mato. 7 NUNES, Mário. Teatro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15.3.1941. 8MAGALDI, Sábato. Confissões de Cacilda Becker. A Cigarra Magazine, Rio de Janeiro, 45 (7): 64-69, 7. 1959. 9 BECKER, Cacilda. Em carta à família. Rio de Janeiro, 26.8.1941. 10 INTERINO. Teatro. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 28.8.1941. A peça é ruim, mas foi escrita por um homem de teatro que empregou em seu texto uma carpintaria teatral satisfatória que, sem dúvida, pode ajudar a estreante em mais justas disposições das cenas e rápidos e mais vivos diálogos. Uma briga feroz entre Laura Suarez e Cacilda Becker era o ponto alto do espetáculo. De qualquer forma, sob um título de raro mau gosto, com um elenco já em frangalhos, a atriz apega-se com vigor ao que lhe aparece pela frente. O Jornal do Brasil, tendo agora como crítico Augusto Maurício, escreve: Cacilda Becker faz uma mulher fatal e exótica... Principiante em teatro, encarregando-se agora de trabalho de maior marcação, confessamos a nossa admiração pelo rápido progresso que vem fazendo. Deu-nos uma Belkiss bastante razoável.11 Se Rio e São Paulo, pelas excelentes qualidades eram praças agradáveis, o verdadeiro batismo de fogo de uma principiante ia começar em Petrópolis, Campos, Barra Mansa. O que significava para o intérprete em excursões trocar rapidamente os textos, está bem explicado por Sadi Cabral que continuava como ensaiador da trupe de Roulien: fizemos uma temporada em Petrópolis – diz Sadi –, levando uma peça por noite. Uma vez terminada a sessão, pegava-se a peça do dia seguinte, batia-se o 1º ato, marcava-se e começava-se a ensaiar o 2º ato. No dia seguinte, às 9 ou 10 horas da manhã, a gente se levantava, ia para o teatro, trabalhava até o meio-dia o 1º e o 2º atos. Continuava marcando e estudando. Almoçávamos e depois pegávamos o 3º ato e então passávamos a peça toda, até a hora do espetáculo. Não se tinha tempo às vezes de mudar, de fazer uma caracterização para entrar em cena.12 Em Campos, pode realizar o que intuía ser uma maneira certa de trabalhar: rouba o texto do diretor e lê a peça completa. Na certa compreendeu mais o enredo, as situações e a própria personagem. Terminado o espetáculo, Roulien observou: deu o estalo! 11 MAURÍCIO, Augusto. Teatro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22.3.1942. 12 FERNANDES, Nanci, VARGAS, Maria Thereza. Uma atriz: Cacilda Becker. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. p.110. A COMPANHIA DE BIBI fERREIRA Terminada a companhia de Roulien, o próximo passo profissional é a Companhia de Comédias Bibi Ferreira, em 1944, onde com direito ao vestuário, passa a ganhar Cr$3.500,00 mensais, como segunda ingênua.13 Exercita-se com Noel Coward, Niccodemi, Alejandro Casona, Joaquim Manoel de Macedo / Miroel Silveira e Giacoeche e Cardone. Estilos diferentes e ela os percebe, mas é preciso atender ao público com novidades. A troca rápida dos textos – embora lhe ofereça um exercício prático de domínio de palco, uma desenvoltura cênica – não facilita um estudo, uma reflexão sobre sutilezas de cada uma daquelas personagens como sua intuição de artista supõe. 13 No teatro é a atriz que desempenha o papel de moça inocente ou de pouca idade. A companhia de Bibi está alguns degraus acima da companhia de Raul Roulien, mas a estreia de Cacilda, no elenco, substituindo duas horas antes do espetáculo a principal figura feminina, apoia-se inteiramente no sistema antigo. É auxiliada pelo ponto. Acende lentamente cigarros para ouvi-lo e a Chole, de É proibido suicidar-se na primavera, limita-se a falar alto e claramente e a seguir com desenvoltura as marcações, também elas, indicadas pelo Ponto, companheiro insubstituível. Antes disso, em São Paulo, Cacilda está entre os Universitários, do grupo dirigido por Décio de Almeida Prado, patrocinado pela Reitoria da Universidade de São Paulo. É uma volta ao amadorismo, mas nunca um retrocesso. O Grupo Universitário de Teatro foi criado em tempos da Segunda Guerra Mundial e sua finalidade, segundo o noticiário, era colaborar com os Fundos Universitários de Pesquisa para a Defesa Nacional e, está claro, difundir o teatro clássico, romântico e atual em língua portuguesa. Os atores eram universitários, ou recém-formados. Cacilda junta-se a Waldemar Wey, Caio Eduardo Cayubi, Delmiro Gonçalves, Maria José de Carvalho, Miriam Lifchitz, Carlos Falbo, Salim Belfort, todos eles empenhados em representar na capital e em cidades do interior. Os três textos apresentados na estreia em São Carlos, em 24 de julho de 1943, fizeram-na enfrentar três estilos: Auto da barca do inferno, de Gil Vicente; Os Irmãos das almas, de Martins Pena; e Pequenos serviços em casa de casal, de Mário Neme. Orientada mais em teoria (Décio o confessava) do que na prática do métier, pelo diretor e por Lourival Gomes Machado, a atriz profissional, com apenas dois anos de carreira, surpreende o grupo intelectualizado, na Brízida Vaz, do Auto da barca do inferno. Envelhecida pela maquiagem, não era apenas a luxúria que procurava passar em cena. Aprendera a aproximar-se do interno da personagem, juntava malícia e desesperança na procura de ser salva: barqueiro, anjo, meus olhos, / prancha à Brizida Vaz./... / Passai-me por vossa fé, / meu amor, minhas boninas,/ olhos de perlinhas finas/ Que eu sou muito doutrinada,/ devota e martirizada,/ e fiz obras mui divinas. / Santa Úrsula não converteu/ tantas cachopas como eu... (...) ponde a prancha, que eis me vou; / e tal fada me fadou, / que pareço mal cá fora. Com Farsa de Inês Pereira e apenas em ensaios e pouca aparição em público em O baile dos ladrões, de Jean Anouilh, terminou seu aprendizado com Décio de Almeida Prado. Soube reunir, com inteligência e perseverança, o aprendizado teórico, com a observância de um comportamento cênico em tom coloquial, próximo ao comportamento cotidiano que herdara de Raul Roulien, Sadi Cabral, Laura Suarez e, sobretudo, Bibi Ferreira, que, embora longe de um repertório mais exigente, traziam para a cena segredos de uma interpretação moderna, pouco conhecida e praticada em nossos palcos. Em conversa com Alfredo Souto de Almeida, em 1966, na Rádio Ministério da Educação e Cultura, do Rio, Cacilda vai mais longe, aprofundando o significado do encontro com Décio, Lourival Gomes Machado, Clóvis Graciano, Waldemar Wey e Caio Cayubi: ... eu não tinha a menor afinidade com o Teatro (...) não tinha frequentado teatro (...) Não compreendia a arte (...) voltei para São Paulo e então involuntariamente continuei ligada ao teatro amador. E comecei a fazer teatro clássico, o Gil Vicente, o teatro brasileiro. E foi ali que eu comecei a perceber o encanto da arte e que sofri menos por ter abandonado a dança.14 14 Depoimento dado a Alfredo Souto de Almeida. Programa: Cenas e bastidores. Rádio Ministério da Educação, Rio de Janeiro, 1966. DO RáDIO PARA O CINEMA O rádio era uma atividade compensadora. Uma espécie de bom porto tanto para iniciantes de talento quanto para veteranos que não mais faziam teatro e viviam os dias gloriosos das novelas radiofônicas. Cacilda fez rádio, ainda em Santos, e em São Paulo, em 1943, é contratada pela antiga Rádio Cultura como locutora, apresentando o cantor Jean Sablon. Tinha o que se chamava uma voz radiofônica e, portanto, não era difícil apelar para o rádio em momentos difíceis. Quando é contratada, juntamente com Tito Fleury, para a companhia de Bibi Ferreira, o Diário, de Santos, noticia em 16 de setembro de 1944: cedidos pelas Emissoras Associadas para atuarem na Cia. Bibi Ferreira seguiram hoje para o Rio os artistas de rádio Tito Fleury e Cacilda Becker, conhecida artista de Santos, ambos locutores da Rádio Tupi. Cacilda, pela inteligência e vivacidade, foi mais do que uma simples locutora, auxiliada pela bonita voz e dicção perfeita. Nas Associadas, de onde saiu para a terceira volta ao teatro, participou de muitas e variadas apresentações: Bocado de amor, às 13h30; Instantâneos sinfônicos Schenley, às 21h30; Inspiração, às 22 horas; Teatro Ivany, às 17 horas; Grande teatro, às 21 horas; Cinema em casa, às 21 horas; Programa Valéry, às 16h30 (quiromancia – lia a mão das ouvintes!). E pela sua voz radiofônica e dramaticidade foi escolhida para dizer em primeira mão, pelo rádio, os versos de Guilherme de Almeida para a Canção do expedicionário, dedicada às tropas brasileiras em luta na Itália, na Segunda Guerra Mundial. Daisy Fonseca, sua colega na Rádio Tupi, não esquece aquela noite. A transmissão foi feita no auditório. Cacilda deveria aparentar a Estátua da Liberdade. Eu, auxiliada por minha mãe, enquanto Cacilda estudava os versos, saímos para comprar alguns metros de gaze branca e, às pressas, confeccionamos a vestimenta.15 15 FONSECA, Daisy. Depoimento à autora, em 17.12.2010. Muitas vezes rádio e teatro ocupam simultaneamente sua vida artística. Em atuações com o Grupo Universitário de Teatro entremeia programas na Rádio América. É contratada não mais como locutora simplesmente, mas como redatora e produtora. Como radioatriz faz mesmo, com bastante destaque, a novela Caminho do céu, de José Roberto Penteado. Não deixam de ser curiosos os títulos dos programas sob sua responsabilidade: Consultório amoroso, Fantasia (programa infantil), Joias da literatura universal (dramatiza contos). Ainda nesse período redige À noite sonhamos, transmitida pela cadeia brasileira de radiodifusão (PRG 5, PRC9, PRE7). O Rádio e as apresentações no Grupo de Teatro são abandonados para seguir para o Rio de Janeiro a fim de começar as filmagens de Luz dos meus olhos, na Atlântida. Esta companhia cinematográfica, fundada em 1943 por José Carlos Burle e Moacyr Fenelon, tinha como meta filmes, cuja preocupação primeira era o lado social. Alguma coisa mais do que um simples divertimento deveria ser passado ao público. Ao lado do romantismo da história criada por Alinor Azevedo percebiam-se lições de solidariedade dada pelo pequeno guia do pianista cego e pelo pretendente da principal figura feminina. Quem se destaca no filme é Grande Otelo, como o guia do cego-galã. Isso foi percebido por Cacilda que não escondeu certa decepção com sua estreia no cinema. Seria pelo seu físico não muito apropriado ao tipo comum, na época, das atrizes americanas? Fui considerada – diz ela – pessoa não feita para o cinema, antifotogênica. Um dado positivo: ter sido fotografada belamente (hoje se percebe) por Edgar Brasil. ENCONTRA “SEU” ZIEMBINSKI A ida ao Rio e a passagem pelo cinema iriam proporcionar à atriz o salto para sua plena realização artística. E, curiosamente, pela terceira vez (a segunda foi a contratação para a companhia de Bibi) quem a ajuda é Miroel Silveira, que está à frente do grupo Os Comediantes, agora acrescido por um inexplicável V. Foi nessa ocasião que se deu o encontro de Cacilda com seu Ziembinski – como então, cerimoniosamente, se referia a ele. O que representou para os intérpretes amadores cariocas a presença do refugiado de guerra, o polonês Zbigniew Ziembinski? Escreve Gustavo Dória, na revista Dionysos, em número dedicado a Os Comediantes: jamais assistíramos a qualquer ensaiador dissecar um texto do modo o qual Ziembinski fazia. Como ele sabia justificar uma fala, aparentemente sem qualquer intenção, em função de uma cena posterior. Se aos componentes do elenco de Os Comediantes faltavam certos conhecimentos de teatro, estes, em parte, eram supridos pelas verdadeiras aulas que o polonês oferecia durante os ensaios, que nunca duravam menos de cinco ou seis horas e por vezes até doze. Era todo um sistema novo de trabalho que jamais tínhamos visto.16 Era o que Cacilda e sua intuição de futura grande intérprete estavam à espera. Necessitava de um mestre. E ele o foi em Vestido de noiva, seu primeiro encontro verdadeiro com Ziembinski e com Os Comediantes (dizem que Cacilda já havia feito uma figuração em Desejo). Intelectualmente aprendera o que pôde com Décio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado e agora seu novo diretor fala ao elenco das armadilhas do inconsciente, da realidade, da morte, do sonho, da fantasia, da comédia e do drama, em um entrelaçamento muito original que adentrava a incipiente dramaturgia brasileira. Mais uma vez Cacilda segue atenta ao que lhe diz o diretor e observa as interpretações de duas companheiras de elenco: Rosa Turkow (Mãe do namorado) e Olga Navarro (Madame Clessy), ambas mais experientes do que ela nos segredos de interpretação e de palco. 16 DÓRIA, Gustavo. Os Comediantes. Dionysos, Rio de Janeiro, XXIV(22): 5-30.12.1975. Zbigniew Ziembinski desembarcara no Rio de Janeiro em 6 de julho de 1941, um mês e poucos dias antes de Cacilda estrear no teatro profissional. Eu não vim para cá dizendo vou revolucionar o teatro deste país (...) queria era fazer teatro (...) fazer como eu sabia. (...) eu trouxe a consciência do texto. Mostrei o que era preciso saber e o que queria dizer um texto teatral. Saber até onde ele vai. Eram horas e horas de estudo, muitas vezes em torno de uma fala, de uma cena (...) Outra coisa que eu trouxe foi a determinação do que é interpretar. A consciência de se ver o ator como uma espécie de oficina, um conjunto que emprega seus valores individuais, tanto físicos quanto intelectuais e emocionais, na construção do personagem, da figura que vive, que representa determinada coisa, ocupando lugar dentro desse contexto que é a peça. Logicamente que isso implica várias questões técnicas da arte de interpretar. Problemas de dicção, respiração, colocação de gestos no palco, problemas de marcação, enfim, tudo o que compõe uma figura e o conjunto cênico em que ela se insere, resultando naquilo que nós entendemos como mensagem da peça transposta em uma forma plástica definida. O que eu trouxe mais foi a consciência do terreno cênico.17 Para os intérpretes, no início dos anos 1940, isso era novo. Talvez até em teoria soubessem, mas por razões outras, era difícil colocar em prática. Imaginemos como esses métodos entusiasmaram a atriz, nessa altura plenamente consciente de uma vocação a ser cumprida e certa de que um desenvolvimento pleno do trabalho interpretativo poderia transformar certas interpretações pragmáticas em obras de arte. Mas para isso era necessário trabalho sistemático. E ela o teve em Os Comediantes. Décio de Almeida Prado, observando-a em Vestido de noiva, encenada em São Paulo, em 1947, nota quanto a aproximação com o grupo carioca lhe foi benéfica. Surpreende-se com sua atuação segura e tem a certeza de que será uma das grandes atrizes do amanhã. Realmente o trabalho que teve ocasião de desenvolver sob a orientação de Ziembinski e de Zygmunt Turkow, também um refugiado, abre-lhe um caminho que surpreende críticos e até mesmo ela própria, que se espanta quando o historiador de teatro, o grande teórico italiano, Silvio D’Amico, presente na última temporada de Os Comediantes, no Rio cumprimenta-a na frente do elenco dizendo-lhe que era uma das atrizes mais naturais que ele tinha conhecido. E, segundo Paschoal Carlos Magno, D’Amico ainda lhe disse, dias depois: Mme. Becker é um assombro! Até então, com seis anos de carreira, só tivera a oportunidade de uma única grande criação: a Brizida Vaz, do Auto da barca do inferno. Criação no sentido mais profundo: tirar de dentro de si traços de conhecimento das fraquezas e culpas do gênero humano, absorvê-las em seu corpo deixando de lado a parte mais frágil, da pessoa Cacilda, para que do seu interior surgisse o que de melhor tivesse para dar, provocando o mistério da transmutação, vivificando a escrita poética. 17 ZIEMBINSKI, Zibgniew. Depoimentos VI. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Secretaria de Cultura. Serviço Nacional de Teatro, 1982. p. 179. UMA PARADA NA fAZENDA SANTA CRUZ Em contraste com a ascensão artística de Cacilda, Os Comediantes, muito pouco tempo depois, endividados, despedem-se do teatro que haviam ajudado a prosperar e que tanto havia significado para o desenvolvimento do teatro brasileiro. A situação é tal que o elenco empenhara seus pertences para terminar a temporada. Melancólicos, Cacilda e seu marido Tito Fleury partem para a Fazenda Santa Cruz, no interior de São Paulo, e é de lá que ela escreve aflita ao amigo Labanca: quero apenas lembrá-lo das nossas joias penhoradas, cujo vencimento das cautelas será no dia 29 de fevereiro. Que é que se vai fazer?19 Na fazenda, entre paisagens que evocam as terras de sua infância, surgem pensamentos negativos quanto à sua arte. Todo o êxito no Rio de Janeiro apaga-se frente às dívidas, às decepções, ao desentendimento com Miroel Silveira, seu amigo de juventude e responsável pela sua carreira. Ainda na fazenda, é Labanca quem vai ficar sabendo dos novos planos: (...) dei novos rumos à minha vida. Do dia 1º em diante voltarei ao colégio. Matriculei-me no 2º ano Clássico e vou estudar seriamente. Você sabe que tenho 5 (ilegível) anos de Ginásio e o curso de professorado com especialização, não é? Pois agora resolvi estudar Direito. Acho que aprender nunca é demais... Tenho aproveitado esse tempo de fazenda para ler muito e fazer esportes. Tenho lido Wilde, Byron, Daudet, Dickens, Shelley e muita história universal (...) de volta para São Paulo também vou trabalhar. Já tenho emprego em rádio.20 Mas... para uma filha dileta de Dionisos nada é assim tão fácil e as coisas iriam forçosamente se passar de forma bem diversa. 19 BECKER, Cacilda. Em carta dirigida a João Ângelo Labanca. Fazenda Santa Cruz, São Paulo, 31.1.1948 20 BECKER, Cacilda. Em carta dirigida a João Ângelo Labanca. Fazenda Santa Cruz, São Paulo, 21.2.1948 A ESCOLA DE ARTE DRAMáTICA Alfredo Mesquita pensa em fundar uma Escola de Arte Dramática em São Paulo, a fim de preparar atores para o novo teatro que se modernizava. Divide a cadeira de Interpretação em Drama e Comédia. Ele se encarrega do primeiro, mas quem dará Comédia? Décio de Almeida Prado lembra-se da atriz do Grupo Universitário, no momento desempregada. A oferta é tentadora para ela que se pudesse teria se matriculado como aluna. O curso na faculdade passa a segundo plano e lá vai ela, em maio de 1948, com um texto de Martins Penna e outro de Noel Coward, seus conhecidos, a fim de dar-lhe maior segurança. Eu deveria estar aí onde vocês estão, não aqui. Também estou em início de carreira. Mas vamos nos entender, recorda o aluno Armando Paschoal. A professora mistura um pouco de seus saberes: dava o texto para o aluno ler, corrigia, valorizava as palavras, corrigia a postura, levantava-se e, na frente de todos, fazia a cena, como achava que o aluno deveria fazer. Pouco mais tarde chega a São Paulo o Teatro do Estudante do Brasil com o Hamlet, de Sérgio Cardoso. Bárbara Heliodora, que fazia a Rainha, é obrigada a afastar-se e a postulante a advogada (hei de defender uma mulher que mate o marido!) é chamada para substituí-la. É a quinta substituição que faz, em sete anos de carreira. A sexta selará em definitivo seu destino. UMA ATRIZ PAULISTA Em 11 de outubro de 1948 abre-se o pano para a inauguração, em São Paulo, à rua Major Diogo, 315, de um teatrinho com aproximadamente 400 lugares, situado num prédio adaptado para ser uma sociedade teatral, com salas de ensaio, carpintaria e escritórios. Tem como finalidade acolher grupos amadores que vinham crescendo em São Paulo e que mal podiam se exibir pela falta de teatros na cidade. Do Rio, vem a atriz Henriette Risner Morineau para dizer, em francês, o monólogo de Jean Cocteau, La voix humaine. Segue-se a apresentação do Grupo de Teatro Experimental, de Alfredo Mesquita, já não mais sob sua direção (dedica-se agora inteiramente à Escola de Arte Dramática, recém-fundada por ele), mas por Abílio Pereira de Almeida, que dirige A mulher do próximo, texto de sua própria autoria. Nydia Pincherle, que tão bem se saíra na montagem de À margem da vida, pelo mesmo Grupo de Teatro Experimental, seria escolhida para interpretar a principal figura feminina. Não podendo assumir o papel, recorrem a Cacilda, única atriz profissional, no momento com residência fixa em São Paulo. O ambiente que Cacilda encontra em São Paulo, em 1948, assemelha-se um pouco ao de sua chegada ao Rio de Janeiro. Talvez São Paulo seja mais contido em sua vibração e certamente mais rico. Após a Segunda Guerra Mundial, o Estado torna-se forte. O mercado cafeeiro tornou-se normal e a indústria elevou-se ainda mais. A riqueza atingiu as artes, fazendo-as crescer e firmar-se. Um visível interesse cerca cada uma delas. Populações de outras terras juntaram-se aos paulistas, criando uma capital, na época com cerca de 1,4 milhão de habitantes, um centro de matizes curiosos e inteligentes. Uma nova geração de pintores e escultores surge amparada por mestres particulares, ou por novíssimas instituições. Aficionados do cinema, da fotografia, artes plásticas e do teatro terão portos seguros: O Museu de Arte de São Paulo conduzido por Assis Chateaubriand, o Museu de Arte Moderna, o Clube de Cinema, o Foto Cine Clube Bandeirante, o Teatro Brasileiro de Comédia. Cursos de cinema, conferências de pintores e arquitetos famosos ocupam os auditórios do prédio dos Diários Associados, da Biblioteca Municipal ou do Clube dos Artistas. Duas personalidades exemplares criaram pontos artísticos que se tornariam marcos, retribuindo à cidade que ajudaram a construir e que, por sua vez, os ajudaram a se construir: os já citados, Museu de Arte Moderna, de Francisco Matarazzo Sobrinho, e o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) de Franco Zampari. Ambos casados com brasileiras de famílias ilustres e ligadas às artes, simbolizam muito bem o mecenato ítalo-paulista. No caso do teatro – e aqui nos fixamos – a fidelidade, a perseverança, de Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Madalena Nicol, R. H. Eagling dirigindo seus conjuntos amadorísticos, mas de incontestável competência, encontram estímulo em Zampari, que cria para eles um local fixo de trabalho. Prático, dotado de tino empresarial, vendo que apesar da máxima boa vontade daqueles amadores as apresentações contínuas seriam inviáveis, não demora muito para criar, no edifício, um elenco semiprofissional, a princípio, e depois tornando-os todos profissionais, aproveitando e renovando os amadores e dando preferência a intérpretes de fora, jovens e sem os vícios do teatro convencional. Escorando o elenco, uma atriz já profissionalizada e de incontestáveis méritos, como se viu no espetáculo inaugural. Para dirigi-los, escolhe um italiano, Adolfo Celi, formado pela Academia de Roma e naquele momento dedicando-se ao teatro na Argentina. É tão jovem quanto seus companheiros, o que facilitará um diálogo produtivo e um entusiasmo conjunto no soerguimento do grupo recém-formado. Pede algumas semanas para observar o elenco. Seria prematuro, por isso, aventurar qualquer observação agora, declara à revista Jornal das Artes. Mas se surpreende com a naturalidade espontânea dos elementos encontrados e prossegue: Estes jovens do Teatro Brasileiro de Comédia vão muito além da média de qualquer país. Espero, portanto, tirar o melhor partido dessa espontaneidade latente, e aproveitála nos diversos gêneros dramáticos (...) É sabido que o tom da recitação das línguas neolatinas tem sempre a mesma cadência e a mesma tonalidade cromática. Ainda que não me identifique bem com a língua portuguesa, posso, mesmo assim, trabalhar cenicamente numa peça que deva ser apresentada nesse idioma (...) Inicialmente ficarei entre o clássico e o moderno. O moderno denso e pleno de conteúdo, bem entendido, como, por exemplo, o teatro norte-americano atual. Penso em O assassino, de Irvin Shaw. Talvez também O tempo da sua vida, de William Saroyan (...) Penso ainda que seria desejável começar pela farsa, mas pela farsa capaz de fazer rir e pensar (...) O teatro exige homogeneidade, ausência do predomínio de um intérprete sobre os outros, de maneira que se destaque o todo. Não importa que o personagem central apareça mais vezes em cena, isso é uma decorrência da divisão de atribuições em face da ação da peça. O que não se pode esquecer é que todos estão trabalhando para obter um fim. Assim todos os papéis são igualmente importantes (...) concordo com aqueles que veem necessidade em se fazer com que a cenografia participe ativamente do entrecho, não criando apenas a impressão de ambiente. Ela tem que participar do espírito da peça e do movimento dela: é uma forma viva atuando no palco.21 21 Celi entra em contato com os amadores de São Paulo. Jornal das Artes, São Paulo. Nº 2, fev. p. 49, 1948. O TBC qUE CONHECI O que representou a entrada de Cacilda Becker para o Teatro Brasileiro de Comédia é fácil de ser avaliado: um local fixo de trabalho, atividade contínua, estabilidade econômica, contato com intelectuais, troca de ideias com colegas culturalmente informados, e interpretações variadas sob as ordens de diretores também eles de personalidades diversas. Iniciava-se, portanto, não só um intenso trabalho de atriz (considerava-se, ao ser contratada em 1948, uma principiante, com apenas sete anos de carreira, mas, também, um tempo de descobertas, pois, como afirmaria mais tarde, de cada uma das personagens interpretadas tirava um conhecimento mais profundo de si mesma). No TBC teve a oportunidade de se encontrar com 22 figuras femininas, diferentes em comportamento, ideias e rumos de vida. Após ser notada na peça de Abílio Pereira de Almeida, fez com desembaraço, encanto e malícia a Sally Middleton, de The Voice of the Turtle, de John van Druten, interpretada em Nova York, por Margaret Sullavan. A comédia americana, aqui chamada Ingenuidade, dirigida por Madalena Nicol, embora sem grandes pretensões, solidificou a organização teatral e o valor artístico de Cacilda Becker. O excelente nível da montagem e o entrosamento cênico dos três personagens tornaram a encenação atraente. Paschoal Carlos Magno, crítico do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, veio especialmente para observar o fenômeno paulista: um teatro moderno, com casa própria e dispondo de recursos para realizações de alto nível. É pródigo em elogios. Referindo-se às qualidades excepcionais de Madalena Nicol, tanto como diretora quanto como atriz, declara-a um enriquecimento para o teatro brasileiro com sua beleza, sua cultura, sua voz rica de nuanças, sua maneira de valorizar o texto sem exageros; Maurício Barroso é um nome que se deve guardar, porque, ou me engano muito, ou estamos diante de um ator de verdade cujo futuro se pode prever, para seu bem e do nosso teatro. Cacilda Becker não é a mesma atriz da Rainha de Hamlet ou da angustiada heroína de Não sou eu..., de Edgard da Rocha Miranda, do Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. Tem momentos realmente geniais, de prender a atenção completa do espectador, de subjugá-lo com a força de sua interpretação.22 22 CARLOS MAGNO, Paschoal. Ingenuidade, no Teatro Brasileiro de Comédia, de São Paulo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29.1.1949. Ingenuidade praticamente lança o TBC. O público comum está curioso por conhecer o teatrinho e a montagem cheia de resoluções bem executadas. Ajudando a divulgação, vêm a propaganda boca a boca, o noticiário dos jornais e cartazes espalhados pela cidade com uma frase marota em letras em destaque: AMOR SE É ISSO... GOSTEI. Frase dita esplendidamente por Cacilda, entre maliciosa e ingênua, inaugurando sua versatilidade em traduzir estados de alma em uma única frase. Com a chegada de Adolfo Celi e mais tarde com as contratações de Luciano Salce, Ruggero Jacobbi, Ziembinski e Maurice Vaneau, cria-se aquilo que se poderia chamar uma Universidade Teatral a ser frequentada por Cacilda e seus companheiros de elenco. Embora vindos dos mesmos meios teatrais italianos, as personalidades e inclinações de Celi, Salce e Ruggero são diversas. O mesmo se diga do polonês e do belga. A atriz, anos depois, os classificaria com simplicidade: Ruggero Jacobbi, rico em conhecimentos e cultura teatral, sacudia-nos intelectualmente; Ziembinski, velho mestre – amado e querido por todos – era o artista capaz dos mais belos espetáculos; Vaneau, espirituoso, sagaz e audacioso como era Salce. Detém-se mais ao se referir a Salce e Celi. Celi nos ensinava o que havia aprendido na Academia de Roma. Transmitia uma técnica e, sobretudo, desenvolvia em nós uma capacidade de trabalho que fugia às comodidades que o amadorismo facilitava. Nunca trabalhávamos menos de 10 horas por dia (...) Salce tão excepcionalmente talentoso (...) era uma pessoa difícil, complicada, um homem marcado por campo de concentração nazista, mas um diretor excepcional. De todos os diretores que tivemos era o mais duro na crítica, o mais descontente e insatisfeito sempre, com o nosso e com o próprio trabalho. Era de todos eles o que mais liberdade nos dava. Estimulava a inventiva, a imaginação e criatividade de cada um de nós.23 23 BECKER, Cacilda. O TBC que conheci. Jornal da Tarde, São Paulo, p. 28 (depoimento publicado postumamente). 11.10.1973. O texto chamado por Adolfo Celi, em suas primeiras declarações, como O Tempo de sua vida, foi realmente seu primeiro trabalho entre nós. A peça de Saroyan, The time of your life, traduzida por Nick-bar... álcool, brinquedos, ambições, marcou o encontro de Celi com Cacilda. Formado pela Accademia Nazionale di Arte Drammatica, de Roma, sob a direção de Silvio D’Amico, trazia, via Itália, algumas ideias de Jacques Copeau, ator, teórico, encenador, cujas teorias norteariam críticos e diretores brasileiros, até os anos 1950. Copeau dizia que a primeira virtude de um encenador era a paciência, muita paciência, à espera de que, por fim, o ator possa atingir um estado interior, um simples movimento, ou o mais elementar dos gestos, conseguidos só depois de muitos ensaios. Era preciso saber esperar. Quanto ao intérprete, sentenciava Copeau, não era ele um escravo, mas o senhor do palco. Cacilda sentia isso em Celi e passa a admirá-lo como um pequeno sábio homem de teatro. O jovem diretor trazia suas teorias: um teatro orientado pelo mais puro realismo atingindo sua própria essência através de uma simplicidade realística, uma espécie de realismo físico, sem, contudo, chegar ao expressionismo.24 Contrastava um pouco, portanto, com a discreta e natural atuação dos nossos amadores. Houve mais força no trabalho de Cacilda em Nick-bar, embora o firme realismo físico exigido por Celi seja temperado por um brando tom poético, melancólico, desenhando a prostituta e sonhadora, que há muito tempo teria preferido ser atriz. Em sua cena capital, quando, diante do policial, tem que se fingir de dançarina, seus poucos movimentos, sua emoção sem pudores, atingem certamente o que o diretor pretendia. Luiza Barreto Leite em crônica a respeito do espetáculo, revive a cena: aquela mulher que se retorcia num bailado tragicômico e falava com voz estrangulada de bêbada e vencida, era a pequena Cacilda Becker, a garota que traçara a própria vida em linha reta com traços firmes de quem sabe o que quer, de quem pretende chegar ao fim sem prestar atenção aos cascalhos que fazem sangrar seus pés delicados (...) Em que bela atriz havia se transformado minha amiguinha! E quanto se pode esperar ainda de seu talento, de seu temperamento dia a dia amadurecido pela experiência, pelo trabalho, pela inteligência pesquisadora.25 Mais seis peças, sob a direção de Celi sucederam-se a Nick-bar: Arsênico e alfazema; Entre quatro paredes; Um pedido de casamento; Seis personagens à procura de um autor; Antígone, de Jean Anouilh; e Antígone, de Sófocles. 24 CELI, Adolfo. Diário de São Paulo, 6.2.1949. 25 BARRETO LEITE, Luiza. Nick-bar. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 6.1.1949. Cacilda referia-se com carinho ao trabalho de composição que fizera, na doce velhinha assassina de Arsênico e alfazema, de Joseph Kesselring, em que pela primeira vez experimentou um jogo interpretativo entre dois atores (no caso, duas atrizes) que certas dramaturgias oferecem. Duas personagens interagindo permanentemente em cena, estabelecendo um jogo semelhante aos jogos esportivos. É o toma lá, dá cá, sem deixar que a bola se perca. Contracenando com Madalena Nicol e mais tarde com Marina Freire, a troca se realiza no achado cômico, uma respeitando e respondendo com presteza o tempo da outra, não ficando muito atrás das grandes Josephine Hull e Jean Adair, criadoras do papel. O próximo passo foi um jogo a três: Sérgio Cardoso, Nydia Licia e Cacilda enfrentam-se em Huis-clos (Entre quatro paredes), em um inferno-salão do Segundo Império. Não foi – declara Celi à Tribuna da Imprensa, em janeiro de 1950 – por um desejo de sucesso de escândalo, consequentemente econômico, nem por querer difundir o existencialismo, que escolhi o texto de Jean-Paul Sartre, mas por ser a peça extremamente bem construída e o estudo apurado dessas almas danadas vale, para artistas novos, tanto quanto um longo treino no palco.26 E assim, Celi fugiu de uma encenação ortodoxa. Ao inferno filosófico, foram acrescentados músculos e nervos, segundo o crítico Décio de Almeida Prado. O diretor aproxima-os de animais nos exercícios preparatórios: rato, gata e cobra. Quem são os condenados? Um covarde colaboracionista, uma infanticida sem moral, uma lésbica suicida. Claude Vincent, em a Tribuna da Imprensa, faz sua crítica e dá detalhes do que presenciou nos ensaios: Estela é uma gata que tem garras. Inês é uma cobra que ergue a cabeça para melhor morder. Garcin? É um rato. Foi nesse sentido que trabalhou Celi durante vários ensaios. Sem usar uma palavra, os intérpretes tinham que exprimir com as mãos, com a expressão dos olhos, com uma movimentação de mímica – os característicos desses animais. Cacilda usou os braços e soube virar o pescoço e a cabeça para sugerir a cobra; Nydia Licia procurou os gestos de uma pequena, linda gata que sabe se tornar fera num instante de relâmpago (...) no olhar desconfiado de Garcin – Sérgio Cardoso por trás do ombro 27 sente-se o rato. Cacilda não tinha o physique du rôle. Teve que ajustá-lo externamente: corte de cabelo, andar, maquiagem, gestos e atitudes, acompanhando a perversidade da personagem, demonstrada em uma força viril beirando a monstruosidade (... preciso dos sofrimentos dos outros para existir). 26CELI, Adolfo. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 1.1950. 27 VICENT, Claude. Entre quatro paredes. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro 1.1.1950. Poucos dias antes da estreia, em 24/1/1950, declara ao jornal A Gazeta: É uma das peças de realização mais difícil para um diretor, mais sedutora para atrizes e atores ambiciosos e mais atemorizadora para uma atriz como eu. Como não temer a responsabilidade do desempenho de um personagem tal como é Inês de Entre quatro paredes? Inês, sem dúvida alguma, expõe qualquer atriz a todos os perigos. Só num ponto eu e Inês somos semelhantes: na coragem. Inês por ter a coragem de ser o que é, e eu por ter a coragem de interpretá-la.28 Na mesma noite, segue-se a representação de Um pedido de casamento, de Anton Tchekhov. Após o inferno sartriano, Sérgio e Cacilda são obrigados a enveredar pela farsa. Realmente um aprendizado de choque. É certo que a criação da Enteada, de Seis personagens à procura de um autor, tenha agradado ao diretor Adolfo Celi mais do que os outros trabalhos de Cacilda feitos sob sua direção, embora não tenha sido muito bem recebida pelos críticos. Cacilda teria trabalhado mais a agressividade, a graça carnal, não deixando passar a irradiação íntima do sofrimento, como salientou o crítico Décio de Almeida Prado, preferindo o crítico mais a interpretação dada por Sérgio Cardoso pela perfeita identidade estabelecida entre personagem e ator. Provavelmente a atriz procurou seguir o diretor. No programa do espetáculo, Celi escreve: julguei necessário dar ao drama um impulso latino, convulso e superexcitado, de modo que as seis personagens perdessem o tom irreal e romântico de muitas interpretações cênicas anteriores. Sua Enteada era dotada de força, vibração. Graças mais uma vez a Claude Vincent, tomamos conhecimento dos procedimentos seguidos nos ensaios pelo diretor e consequentemente do comportamento de Cacilda: Adolfo Celi, sem nunca gritar, movimentando-se com cuidado, se encontra a cada momento num outro ponto do palco, sugerindo um novo tom de voz, um gesto diferente, ao ator ainda nas primeiras fases de seu casamento com o papel (...) durante cinco horas, das duas às sete, esse drama da vida, representado por um elenco, se desenrolara na grande sala onde os maquinistas do TBC constroem os cenários das várias peças. Cinco minutos para um copo de leite, e o trabalho prosseguia (...) Cacilda Becker, com voz monocórdia, repetia várias vezes trechos do texto pirandeliano para conseguir o ritmo amargo, intenso, que este papel requer. Calava-se para ouvir a voz de Celi indicar as nuances; retomava a frase, para modificar na sua voz, a sugestão do diretor.29 28 BECKER, Cacilda. Entre quatro paredes. A Gazeta, São Paulo, 20.1.1950. 29 VINCENT, Claude. Ensaio de “Seis personagens”, no Teatro Brasileiro de Comédia. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 10.2.1951. Em 28 de agosto de 1952 terminaria seu aprendizado com Adolfo Celi, na apresentação descrita como a mais audaciosa realização do Teatro Brasileiro de Comédia, até aquele momento: as encenações simultâneas das Antígone, de Sófocles e de Jean Anouilh. Antagônicas, a escolha era na verdade um desafio ao elenco: passar do clássico ao moderno, do mundo religioso ao mundo vazio do pós-guerra. Cacilda inclinava-se mais pela primeira, apoiando-se em dois versos-chaves que a tocavam: não nasci para o ódio: apenas para o amor e Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem. Apesar do grande esforço físico e psicológico, reconhecia que não conseguiu passar, na sua integridade, a imagem grega para o público. Faltava-lhe voz para os grandes momentos do desafio a Creon? Perdia-se, em certos trechos, simplesmente em frias declamações? Ela mesma dizia que sentia, em seu trabalho, uma ausência de escola, de um aperfeiçoamento anterior, de maior identificação com o teatro clássico. Muitos anos depois, em depoimento a Julio Lerner para o livro Uma atriz: Cacilda Becker, Ruggero Jacobbi declarava: essas incursões de Cacilda pelo teatro trágico foram muito atacadas por alguns críticos (...) Tudo isso não estava certo. Havia certa injustiça. O Brasil estava por demais acostumado a ver seus melhores atores em obras cômicas, satíricas, e não aceitava que um grande ator brasileiro pudesse também fazer tragédia (...) A tradição do trágico estava perdida e muito ligada a certos preconceitos, por exemplo, o preconceito de que o trágico tinha que contar com um ator ou atriz dotados de vozeirão (...) A concepção retórica, do século xx de tragédia declamada e mesmo gritada, para nós, já naquela época –para gente então jovem como eu, como Celi, como o Salce – virara lugar-comum, erro estético e coisa puramente negativa. Podia-se fazer tragédia com recursos vocais diferentes e com interpretação menos enfática e menos ligada às tradições de declamação que se haviam fixado no Brasil através do teatro português e, depois, através de João Caetano, como falso modelo do ideal trágico.30 O certo é que os louvores para a interpretação da atriz foram todos para a Antígone francesa. Raramente um texto foi tão bem compreendido e transmitido ao público, em gestos, corpo e intenções. Dizia-se que a Antígone, de Anouilh, fora feita para Cacilda Becker. Entre Huis-clos e Seis personagens, outros diretores transmitiram a Cacilda sabores diversos, vindos certamente de suas personalidades. Ruggero Jacobbi a tomara, a princípio, como uma atriz feita para comédias ligeiras. Fez com ela uma direção conjunta, em Filhos de Eduardo. Ágil nos diálogos, respondendo certo às próprias tiradas cômicas, sua interpretação como a senhora de três maridos: um inglês, um polonês e um francês, manteve o público em constantes gargalhadas, como diziam os nossos críticos mais velhos. Pena que, devido à má adaptação de A Ronda dos malandros, de John Gay, percebida pelos atores, impedindo-os de se apaixonar pela nova experiência, Ruggero não a tenha encaminhado para um humor diferente, exigido por Gay, que certamente acrescentaria dados novos ao senso de humor da intérprete. 30 JACOBBI, Ruggero. Depoimento. Uma atriz: Cacilda Becker. 2ª Ed, São Paulo: Editora Perspectiva, 1995. p. 134-135. Franco Zampari era um homem de altos empreendimentos. E o teatro que idealizou, junto a Francisco Matarazzo Sobrinho, não seria nunca um teatrinho qualquer, satisfeito em apresentar espetáculos bem realizados, acomodado à lentidão de uma vida teatral quase inexistente. Pensava certamente em uma pequena indústria teatral. Era preciso criar um público, formar uma plateia e para um trabalho em sequência era necessária uma variedade de gêneros, que uma única cabeça pensante estaria impossibilitada de realizar. Além de chamar Ruggero, sediado no Rio de Janeiro, por indicação de Celi, faz vir Luciano Salce, jovem sequioso de experiências novas e nada mais certo do que imaginar que certamente poderia realizá-las na América. Salce dizia-se cansado, não do teatro que se fazia na Europa, mas dos intérpretes, velhas máquinas, muito usadas que caminham com o apoio de tradições inúteis.31 Ora, o elenco paulista era justamente o oposto. Jovem, sem vícios de estruturas antiquadas, contando, sim, com uma atriz profissional, mas justamente louvada pela sua modernidade. Com Salce, Cacilda fez uma das interpretações mais exemplares de sua carreira: Alma Winemiller, de O Anjo de pedra, de Tennessee Williams. A ironia, com traços de amargura, temperamento do diretor italiano, imprime-se no torturado par amoroso, em seus familiares em contraste com a animação ridícula de seus amigos. Cacilda tinha experiência dessa figura austera. Na infância conviveu ou ouviu contar, pela mãe e pelas tias, as agruras das jovens protestantes. Temperou a rigidez com certa religiosidade e ternura acentuadas. Décio de Almeida Prado considerou a sua interpretação como a melhor até aquele momento: não é esta ou aquela característica isolada que nos seduz, mas a capacidade de ferir uma porção de notas ao mesmo tempo, todas com justeza e todas subordinadas a uma concepção única, rica e profunda do papel32 . Na verdade, Cacilda foi tecendo a sua Alma com extrema compaixão, o que a levava, a fim de abrandar a angústia que a personagem lhe causava, a imaginar um final feliz para ela, com o patético Archie Kramer. Mas, durante a construção da figura cênica, amalgamava em notas uníssonas: o fracasso, a histeria, a resignação, a fraqueza física e a ternura, encaminhado-os ao desfecho trágico. Em nota para o programa da peça, Luciano Salce antecipa o futuro da personagem, bem diferente do que Cacilda queria que fosse: (...) um dia ainda a encontraremos numa sórdida taverna da cidade ou, ainda pior, numa barraca à margem do rio. E nas noites de bebedeira e melancolia, contará que é filha de um pastor ou citará Blake, entre as gargalhadas incrédulas de marinheiros e caixeiros viajantes. 31 SALCE, Luciano. Contratado pelo Teatro Brasileiro de Comédia um ensaiador italiano. Folha da Manhã, São Paulo. p. 12. 13.3.1950. Se Luciano Salce foi o responsável por uma de suas criações inesquecíveis, também o foi por certa decepção: a lendária Margarida Gauthier. Certamente não foi por ambição de uma primeira atriz, desejosa de comparar-se a outras modestas intérpretes de Margarida Gauthier, como Sarah Bernhardt e Eleonora Duse, como disse o irado Miroel Silveira. Inteligente, profissional, decidida a se firmar como atriz percebeu a riqueza da personagem. Fizera até aquele momento, no TBC, 13 mulheres, cada uma com seus caracteres próprios, formando um painel sui generis. Que atriz com pendores dramáticos desdenharia um mito de mulher apaixonada, compreensiva, resignada, redimida pelo amor, a cortesã capaz de fazer verter lágrimas da burguesia estarrecida? Por todos os títulos A dama das camélias despontava como a última flor do romantismo. A crítica de Alfredo Mesquita publicada na revista Anhembi, de dezembro de 1951, por ter sido escrita por um profundo conhecedor das artes literárias e teatrais, deixou-a abalada: Cacilda Becker, por exemplo, uma grande artista, a nossa maior artista, superior mesmo às grandes intérpretes francesas em Poil de Carotte, deu-nos uma Marguerite Gauthier profundamente humana, sensível, adorável, comoventíssima no quinto ato, em que atingiu grandes alturas. No primeiro e no quarto ato, porém, faltou-lhe alguma coisa (...) o aspecto de grande cocotte, que o próprio Dumas Filho achava necessário à sua heroína, como disse, textualmente, a uma das suas intérpretes: Marie Duplessis era uma grande cocotte (...) Cacilda não o foi. No primeiro ato, não sendo ainda purificada pela paixão, deveria sentir-se mais à vontade, mais integrada, por sensível que fosse, no meio corrompido, podre, vicioso que era o seu. Também não nos pareceu suficientemente grande dame na cena do baile, onde sua aparição devia causar sensação, fazendo empalidecer as outras mulheres: altiva, desempenada, brilhantíssima, à imagem dessa Alphonsine Duplessis que, colhida na sarjeta, ao entrar mais tarde nos Italianos ofuscava todas as marquesas e duquesas ali reunidas. Eram esses os seus característicos: a suprema elegância, a altivez, a distinção! Nos outros atos Cacilda Becker foi, como já dissemos, comovedora, empolgante, patética mesmo, faltou-lhe, porém, o estilo, certa arte consumada no uso da voz, da dicção, do gesto. Faltou-lhe um pouco de artifício, se quiserem. Tem uma voz nítida, audível de longe, dicção clara, clara demais, talvez didática, diríamos. Falta-lhe, porém, para esta espécie de papéis, um conhecimento mais aprofundado dos recursos vocais, saber modular harmoniosamente, cantar quase, no bom sentido, é claro... 32 ALMEIDA PRADO, Décio. Apresentação do Teatro Moderno, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1956. p.360. Interessante que, dando prosseguimento à crítica, Alfredo Mesquita faz uns reparos que, hoje, seriam elogios: (...) Cacilda Becker fez da Dama das camélias, ou antes, de Margarida (não conseguimos empregar o qualificativo Dama à sua interpretação) uma criatura encantadora, repetimos, boníssima, simples, sofredora, apaixonada, mas um tanto moderna, um tanto trepidante, angustiada, nossa contemporânea, em suma, que comoveu profundamente, mas que não é certamente a que Dumas Filho havia imaginado.33 O reencontro com Ziembinski, agora contratado pelo TBC, dá-se, modestamente, em um texto de um ato, exemplo do naturalismo francês. De quem foi a ideia, não sabemos. Um infeliz menino, maltratado pela mãe, foi calcado na infância do próprio Jules Renard. Nada parecido com a infância de Cacilda, Cleyde e Dirce, nas fazendas do interior paulista. Moravam em uma casa que fora senzala e a vida que levavam era bastante rude, mas tinha seus encantos: eu vivia solta, como bicho... em meio a cobras, mato e entre caboclos primitivos... andava de foice como um moleque... tomava banho no rio. Mas cabe a uma atriz poder fazer viver os seus contrários. E apesar de ter emprestado uma vivacidade física ao menino um pouco parecida com a sua em menina, compreendeu-o em sua amargura, tão bem expressa na descrição do suicídio frustrado. O certo é que Cacilda anulou-se em Pega-fogo. Era um menino. Tanto foi sua integração à personagem que dizia aos amigos que o conhecia tão bem que seria capaz de interpretá-lo como um adolescente, como um rapaz, ou ainda em sua plena maturidade. 33 MESQUITA, Alfredo. Teatro de 30 dias. Anhembi, São Paulo, v. V n. (13): p. 154-156, 12.1951. Em um texto assinado por Ary Vasconcellos, em O Cruzeiro, de 19 de março de 1955, indaga o responsável pela matéria como teria ela conseguido realizar a feitiçaria e transformar tão radicalmente a sua personalidade em Pega-fogo. Cacilda responde: não há feitiçaria nenhuma... Sou a mais ortodoxa das artistas. Recebi um texto do diretor, levei-o para casa, tendo, através da leitura, uma visão pessoal da peça. Submeti-me depois, nos ensaios, ao método do diretor, ao qual adaptei meu próprio sistema. Dentro disso fiz o meu trabalho. Aprofundei então meu estudo analítico, psicológico do personagem, buscando aperfeiçoar-me nos menores detalhes, nas mais suaves nuanças. Da compreensão do papel decorreu minha apresentação física do personagem. Procurei trabalhar sempre com a mais absoluta consciência, dirigindo todo o meu esforço nesse sentido. De resto, não largo nunca o texto, estudando sempre a relação do personagem que vivo em relação aos outros. Como vê, não é nada de sobrenatural. É apenas o que faço em todas as peças.34 Foi por ocasião desse espetáculo que Michel Simon, escritor e jornalista francês, chamou-a de monstro do teatro, como De Max, Gaby Morlay, Charles Chaplin, Jean-Louis Barrault ou Charles Laughton (...) Poil de Carotte não pode ter mais, para mim e para muitos outros, de ora em diante, um outro rosto, senão o seu. Seu companheiro em Pega-fogo (era o pai do menino) dirigiu-a, ainda na Major Diogo, em um exercício realista, em Paiol velho, e em Divórcio para três, comédia de Victorien Sardou, encenação levíssma, banhada em champagne, como disse Miroel Silveira (e por que não repetir aqui os elogios à principal atriz feitos pelo jovem crítico João Augusto, em Tribuna da Imprensa, quando da apresentação no Rio? – Absoluta, inatingível... monstre sacré de nossos dias).35 Maria Stuart, de Schiller, e Adorável Julia, de Marc-Gilbert Sauvajon, baseada em Theatre, de Somerset Maugham, encerraram a parceria Ziembinski-Cacilda no Teatro Brasileiro de Comédia. Em Maria jogaram-se todas as cartas. A musicalidade do verso mais uma vez desafiou intérpretes formados em interpretações modernas (muito embora, Manuel Bandeira, presente em alguns ensaios, discutisse com os atores palavras que facilitassem – sem diminuir a qualidade poética – o ritmo e a compreensão do verso no palco). 34 VASCONCELLOS, Ary. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 19.3.1955. 35 João Augusto. Divórcio para três. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, p. 4, 29.6.1956. Cacilda teve três momentos que satisfizeram a Ziembinski: a cena que antecede ao encontro com Elizabeth, na qual o encanto da liberdade e o gozo da natureza traduziram-se em musicalidade, em acertada ocupação do espaço cênico, em uma citação de Sarah Bernhardt em um gesto amplo, romântico (Ai, nuvens, sois livres: eu, uma corrente/ Me retém cativa./ Altos veleiros, ai!/ À terra aonde fui, menina inocente,/ O meu pensamento, ó nuvens, levai!). O segundo momento é quando a serenidade, a emoção vão cedendo aos poucos, na interpretação, à invasão da flama interior, em contraste com a frieza intelectual de Elizabeth / Cleyde Yáconis, no trágico encontro. O terceiro grande momento: a confissão e a despedida, antes da partida para o martírio, servindo-se a intérprete de seus secretos poderes expressivos: emoção, severidade e sofrimento contido. Despede-se de seu Teatro Brasileiro de Comédia, não em seu palco, mas no palco do Teatro Maria Della Costa com Julia Lambert, de Adorável Julia, que, segundo Somerset Maugham, seu criador, era uma atriz não brilhante na conversa, mas de olhos vivos, um ar de inteligente que, uma vez tendo apreendido a linguagem da sociedade, passava por uma criatura muito interessante.36 Em comemoração aos dez anos de existência do Teatro Brasileiro de Comédia, a Folha da Noite iniciou uma série de depoimentos sobre a organização. Coube a Cacilda iniciar a série, em 20 de novembro de 1958. O que disse merece ser transcrito: ... desde que os Comediantes iniciaram suas atividades no Rio, paralelamente ao movimento do Teatro do Estudante do Brasil e a uma iniciativa subsequente de Dulcina de Moraes, tentando novos rumos no seu repertório, respirava-se uma atmosfera teatral nova, tendente a uma radical renovação, no Rio. O Teatro Brasileiro de Comédia concretizou aquilo que, isoladamente, se tentava lá, com muitas lutas, aqui em São Paulo, em uma cidade onde não havia o antigo profissionalismo, onde somente alguns grupos de amadores, e a recém-formada Escola de Arte Dramática existiam, e já fundamentadas em uma orientação completamente diversa do que se fazia no Rio. Não foi necessário ao TBC, para se impor, destruir coisa alguma. Teve a sorte de poder se fazer sem perda de tempo e de encontrar naquele nada um campo propício, em que tudo era aproveitável e puro. Quando despontou no plano nacional como teatro renovador estava pronto e não carregava remorsos ou antipatias. O TBC, em minha carreira, significa realmente, e com sinceridade, a Escola. Lá aprendi com os outros e comigo mesma! Aprendi como se representa e como se vive! Foram dez anos da minha vida dedicados a ele, TBC. Deu-me muito e eu a ele me dei integralmente. Hoje, a experiência e consequente serenidade advindas daqueles anos de luta no TBC – por ele e por mim – suprem com vantagem o entusiasmo que naquela época me movia. Sou grata ao TBC, e o amo mais do que ninguém.37 Na véspera de sua última noite de atuação, Cacilda fez um cálculo aproximado de quantas horas de sua vida tinha dado àquele teatro. Tomando por base dez horas diárias, em nove anos, teriam sido, muito, muito aproximadamente, 25.920 horas. 36 MAUGHAM, W. Somerset. A outra comédia. Rio de Janeiro – Porto Alegre – São Paulo: Livraria do Globo, 1947, p. 13. 37 BECKER, Cacilda. Amo o TBC mais do que ninguém. Folha da Noite, São Paulo, 20.11.1958. O TEATRO DE CACILDA BECKER Em 22 de março de 1958, a revista Manchete publica uma entrevista feita por Flávio Rangel, intitulada Mereço um grande sucesso. Cacilda já estava fora do TBC. Declara pouca coisa sobre o novo grupo. E o intuito do repórter certamente é outro. Flávio Rangel, naquele momento, formava entre os jovens que combatiam Cacilda, etiquetando-a como alienada e repetidora de formas gastas. É irônico e provocativo, retratando-a como uma Sarah Bernhardt nativa, cujos gritos, segundo os maquinistas do teatro, venciam o barulho dos martelos. Cacilda responde, também agressiva, às afirmativas do texto: seria verdade que prejudica os colegas, que não respeita diretor e quer sempre os melhores papéis? A história é outra, diz ela. Os diretores com quem trabalhei sempre foram muito inteligentes e os melhores papéis teriam fatalmente de vir a mim. Não era preciso que eu os escolhesse. Acontece que esses diretores, na maioria estrangeiros, não percebem determinadas nuanças de nossa língua. Às vezes discordo deles, mas apenas por isso. Quanto às colegas, prejudico-as realmente, mas no palco, quando o pano sobe. Percebe-se que está magoada, alguma coisa a entristece muito, e as perguntas irritam-na: A Companhia de Franco Zampari é uma grande realização e que somente um temperamento como ele poderia fazer. Considero Zampari a segunda pessoa em importância no teatro brasileiro (o primeiro lugar é de Ziembinski). Não devo nada a Zampari, nem ele a mim. Da mesma forma que o ajudei a ter seu teatro, ele ajudou-me a ser atriz (...) Sobre o futuro artístico a ser cumprido no Teatro Cacilda Becker, ela diz: Quero principalmente ampliar a medida do ator brasileiro. O ator brasileiro não é internacional. Até eu: somente poderia representar no exterior Pega-fogo e Antígone...38 Na verdade, quando a entrevista foi publicada, o Teatro Cacilda Becker já havia estreado no Rio, no Teatro Dulcina, em 5 de março de 1958, com O santo e a porca, de Ariano Suassuna, escrita especialmente para a apresentação do elenco. Desligaram-se do TBC para formar com ela o novo grupo: Ziembinski (diretor e ator), Walmor Chagas (ator e empresário), Cleyde Yáconis e Fredi Kleemann. Juntaram-se à companhia: Kleber Macedo, Jorge Chaia, Rubens Teixeira e Stênio Garcia, como ator em estágio. 38 BECKER, Cacilda. Mereço um grande sucesso. Manchete, Rio de Janeiro, (309): 52-57, 22.3.1958. No bonito programa, projetado por Napoleão Moniz Freire, as palavras de apresentação, escritas pela titular, ocupam poucas linhas: Nosso teatro nasceu quando nos tornamos um grupo, ligados pela mútua confiança e pelo mesmo ideal. Nossas experiências artísticas e de vida indicaram-nos o caminho que era o nosso, no teatro: – Fazer teatro pelo teatro – e para isso trabalharemos. A devoção ao teatro confunde-se com a ars gratia artis, no momento começando a ser vista com desconfiança pela juventude que ia, aos poucos, tomando de assalto o teatro brasileiro. Walmor Chagas, pertencente a uma geração abaixo dos demais sócios, tem uma simpática visão do que estava acontecendo, mas também ele formara-se no fazer bom teatro, ou seja, um palco comprometido com a atuação cultural. Sem palavras inúteis, completa o pensamento de Cacilda tentando trazer à realidade a sólida formação humanística que a atriz traz em si: (...) o teatro brasileiro é tão vulnerável, tão aberto aos imprevistos que o melhor mesmo é não prometer nada. É fazer. Apesar de tudo. Tentar superar as dificuldades e através dos imprevistos chegar ao ponto desejado: um teatro brasileiro que conte como autêntica expressão cultural. Na verdade, o que movia esses atores e diretores, egressos das asas de Zampari, era o fato de sentirem-se aptos a se realizar artisticamente, comandando suas próprias escolhas, seus próprios sonhos e, ingenuamente, ousarem mais em seus caminhos artísticos. A fundação do Teatro Cacilda Becker dá-se no momento em que novos caminhos se impõem ao nosso teatro. Há dois anos fora eleito presidente da República o mineiro Juscelino Kubitschek, cujo lema do governo era Desenvolver para sobreviver. Com dificuldades a princípio, foi pondo em prática suas metas desenvolvimentistas e pouco tempo depois uma euforia tomava conta do País. O Brasil existia e era preciso afirmá-lo, através de um conhecimento pleno de sua realidade. As artes não ficaram longe disso. Não bastavam a miséria moral dos senhores e as agruras dos servos da literatura social do Nordeste, nem o drama da seca, pintado por Cândido Portinari. Visualizações apenas. Era necessário conhecê-los, proclamá-los, denunciálos e propor meios de combatê-los. Os jovens do teatro paulista, muitos seguindo um ideário marxista, descobrem aos poucos que o teatro é o grande veículo e passam apressadamente a liderar os novos rumos. Embora a encenação de Eles não usam black-tie, do jovem ator Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro de Arena de São Paulo, em 22 de fevereiro de 1958, não cumprisse plano maior do que ser a última encenação de um grupo em crise econômica, o tremendo sucesso da peça muda os rumos do Arena. Leva à confiança na criação de uma nova dramaturgia brasileira, nascendo daí o Seminário de Dramaturgia, comandado pelo diretor e atores do teatro, e, em consequência, instauração de um laboratório de interpretação, com base em Stanislavski já bastante estudado, mas agora com vistas ao Brasil, em perfeito acordo com o que se pretendia naquele palco/arena e com os textos que vinham sendo escritos. Bem antes disso, o dramaturgo, crítico e esteta, Ariano Suassuna, no Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado no Rio de Janeiro em 1957, nos envia, através do Teatro do Adolescente do Recife, um belíssimo poema, em que Nossa Senhora paciente e carinhosamente se envolve com as tão simpáticas figuras do cordel, comuns às feiras, às festas e aos mamulengos. Auto da compadecida, um milagre temperado pela alegria nordestina, causa um impacto e faz pensar em uma dramaturgia nativa mesmo entre aqueles que divergiam do pensamento católico de Suassuna. E foi esse autor que o Teatro Cacilda Becker escolheu, coerentemente, para sua estreia, cumprindo uma lei que obrigava os elencos a estrear com peça nacional. A pedido da companhia, Ariano Suassuna escreve O santo e a porca. E foi com liberdade, espontaneidade e singeleza que o diretor Ziembinski foi construindo seu espetáculo, em lírico realismo, dando aos personagens populares contornos mal talhados, semelhantes às figuras de Mestre Vitalino. Como figura central evoluía em cena o avarento de nossas terras, o Euricão Engole-Cobra, um arábe, estrangeiro, símbolo de nós todos, como desterrados que somos (Não temos, aqui, cidade permanente, como escreve a Epístola). Aqui vivemos, na cidade dos homens, voltados para o poder do mundo, enquanto um santo nos espreita. Assim é Euricão, guardando avaramente o dinheiro em sua Porca, desesperando-se ao ver que de tão guardado e nunca utilizado, perdera o seu valor. O texto de Suassuna é cheio de incidentes e pretende uma moralidade filosófica: A vida é traição. Manuel Bandeira, admirador de Cacilda (a de acento beckeriano que suscita infartos de alma, tão imperativos quanto os de miocárdio),39 escreve uma crônica saudando o novo elenco e com certa ironia arrisca, brincando, uma interpretação do título da peça: Santo, pela sua mansidão, cordura e paciência, é o carioca; a Porca é esta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, sem água, sem serviço decente de coleta de lixo, urbe de arranha-céus de cujas janelas, todo o mundo cospe...40. 39 Trecho do Poema “Passeio a São Paulo”. Poesia completa e Prosa / Estrela da Manhã, p. 321. 40 BANDEIRA, Manuel. O Santo e a porca. O Jornal, Rio de Janeiro, 10.5.1958. A segunda apresentação representa bem o arrojo e, sobretudo, a crença de que estavam aptos para enfrentar os grandes desafios, técnica e artisticamente, longe de sua célula mater. Cacilda e seus pares escolheram uma tragédia moderna: Jornada de um longo dia para dentro da noite, de Eugene O’Neill. Embora com reparos à direção e interpretação, a encenação foi considerada uma bela realização teatral. Mas segundo a própria atriz, tanto a intérprete quanto a personagem nunca se deram bem. Mary Tyrone fugia-lhe quase sempre. Recordava-se que somente uma vez, em Santos, conseguiu realizá-la plenamente. Dar rosto e alma a essa máscara complexa era um desafio ao seu aprendizado: uma exnoviça a quem o marido sovina entrega a um médico incompetente, que lhe dá morfina, por ocasião de um parto difícil, viciando-a. Três anos antes de sua morte, Cacilda ainda declarava a Alfredo Souto de Almeida, em programa transmitido pela Rádio Ministério da Educação: Jornada veio prematuramente. Eu era extremamente jovem como mulher e jovem como atriz para fazê-lo... É um papel que gostaria de fazer daqui a dez anos. Aí tenho a certeza que vou fazê-lo bem.41 Não pensou assim Décio de Almeida Prado, na estreia em São Paulo, quase um ano depois do lançamento da companhia. Notou o crítico que o primeiro ato, dominado por Cacilda, pareceu-lhe magnífico, um dos instantes mais altos de todo o teatro brasileiro moderno, quais que sejam as pequenas objeções que lhe possamos fazer.42 Paulo Francis, no Diário Carioca, de 18 de maio de 1958, faz reparos, mas reconhece o desespero da intérprete para poder criar corpo e alma da morfinômana com toda a ruína nervosa e o descontrole de movimentos dos viciados. E vai além: há um movimento seu de cabeça, numa conversa com a empregada, em que realiza uma cadência de alegria patológica, que vale mais do que meia hora de conversa de O’Neill.43 Esses flashes em sua interpretação – feitos por dois críticos dos mais conceituados, no Rio e em São Paulo – não a satisfazem. Consola-a a certeza de se considerar uma atriz em evolução e nada ser definitivo em sua carreira. Assim, o que restou de perfeito em Mary Tyrone – sentimentos e emoções – seria incorporado em outras criações. Com Pega-fogo e O protocolo, de Machado de Assis, a companhia despede-se do Rio de Janeiro, excursionando pelo Rio Grande do Sul, Montevidéu, Curitiba, Joinville, Belo Horizonte e São Paulo. São bem recebidos e ganham prêmios em Montevidéu. Resta a capital paulista, onde Cacilda aperfeiçoou-se, tornando-se a maior atriz de sua geração. 41 Op. Cit. 42 ALMEIDA PRADO, Décio. Jornada de um longo dia para dentro da noite, In: Teatro em progresso. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964. p. 121 – 124. 43 FRANCIS, Paulo. A Tragédia de O’Neill (2). Diário Carioca, Rio de Janeiro, 18.5.1958. Alguns bilhetinhos, ainda em excursão, são dirigidos aos jornais Correio Paulistano e Diário da Noite: Estamos terminando nossa temporada e de malas quase prontas para regressarmos (...) Comece a lembrar o público de nossa próxima chegada. Eles gostam de nós, eu sei, mas são sempre tão desmemoriados!/ Se te for possível, em tua coluna lembra o público da nossa chegada. Recorda-lhe quem somos!44 Chegados a São Paulo convocam os jornalistas para uma conferência de imprensa, no foyer do Teatro Municipal bem antes de sua estreia no Teatro Leopoldo Fróes. Mattos Pacheco em o Diário da Noite, em 24 de dezembro de 1958, transcreve algumas palavras da longa apresentação lida pela atriz: meus caros amigos. Há longos anos nos conhecemos; nos conhecemos muito como homens e mulheres de teatro, como pessoas humanas. Conhecemo-nos desde a nossa primeira mocidade, quando todos nós, de um modo geral, dávamos os nossos primeiros passos no teatro (...) por várias vezes houve entre nós incompreensões, paixões, exaltações, simpatias, por vezes antipatias, mas o insofismável é que o teatro nos uniu de fato, e que nos tornamos, de fato, amigos (...) O que nos move é a consciência das nossas próprias e particulares deficiências. E as deficiências gerais, características do Teatro Nacional.45 Esclarecem ainda no programa de estreia realizada em 7 de janeiro de 1959: Estamos de volta. Depois de um afastamento de São Paulo que durou praticamente dois anos, voltamos com novas roupas, novo entusiasmo e outro nome (...) Cumprimentamos nossos colegas queridos, e ao Teatro de São Paulo, auguramos um ano cheio de realizações honrosas para o engrandecimento do Teatro Brasileiro. Reproduzem trechos de críticas elogiosas das diversas praças que percorreram, dando crédito necessário à nova empresa a fim de que o público saiba quem e o que irá ver. E afirmam em um pequeno histórico que tudo fizeram para formar um teatro de equipe, dividindo tarefas entre os atores, a fim de criarem uma consciência única, possibilitando tornar cada realização uma obra coletiva. 44 Cartinha de Cacilda Becker. Correio Paulistano, São Paulo, 26.11.1958. 45 MATTOS PACHECO. Cacilda Becker fala do Teatro Cacilda Becker. Diário da Noite, São Paulo, 24.12.1958. Em 1959, a nova geração do teatro, sobretudo a paulista, estava firme em suas contestações: impor um teatro que refletisse, em sua dramaturgia, o Brasil e seus problemas e colocasse em pauta um novo estilo de interpretação (que não era o do Teatro Cacilda Becker herdado do Teatro Brasileiro de Comédia). Fazer teatro apenas pelo amor ao teatro era uma alienação gravíssima. Cacilda e seus companheiros confrontam-se com novos termos: alienado, contexto, atuante... Estariam ela e seu elenco condenados ao fracasso? Sensível, tomou para si todo o infortúnio. Mas, inteligente e amando o teatro acima de tudo, resolveu dialogar com a nova geração, e suas certezas abalaram os jovens. Não mudou seu repertório, nem abandonou por completo seu clássico sotaque (que, muito ao contrário do que se pensa, era para muitos um de seus encantos), mas saiu de São Paulo, rumo a Portugal (passando por Salvador e Recife) com planos apreciáveis: solicita à Municipalidade o arrendamento do Teatro Leopoldo Fróes por 15 anos, comprometendo-se a renová-lo. Declara entre outras coisas: O Teatro Cacilda Becker (...) necessitaria apenas de um local fixo para o exercício de suas atividades, no sentido de poder pôr em prática suas tentativas de maior vulto, somente possíveis dentro de um ambiente de absoluta estabilidade financeira, que só um teatro próprio poderia lhe proporcionar.46 Críticos do Rio e de São Paulo abraçam a iniciativa e o Teatro de Arena, de certa forma um adversário artístico, percebe o valor inquestionável da atriz e a apoia em carta à Prefeitura: (...) Nesse campo de atividade, espinhoso e árduo, o talento de Cacilda Becker esteve sempre presente com sacrifícios, ideias e querer (...) o simples fato da possibilidade de permanência de Cacilda Becker entre nós justificaria essa moção de solidariedade, não fossem também excepcionais os planos de atividade cultural e artística e os projetos de reforma do teatro apresentados por aquela companhia que exercita o seu talento na vanguarda do movimento teatral brasileiro para a afirmação do nosso povo. Assinam: Riva Nimitz, Henrique César, Dirce Migliaccio, Vera Gertel, Flávio Migliaccio, Francisco de Assis. Wilson Ribaldo, Orion de Carvalho, Milton Gonçalves, Oduvaldo Vianna Filho, Arnaldo Weiss, José Renato, Augusto Boal.47 Os excepcionais planos de atividade cultural e artística referem-se a um projeto de uma Casa do Teatro, pensado por Cacilda, Walmor, o aluno da Faculdade de Arquitetura Flávio Império e o arquiteto Joaquim Guedes, a ser executado assim que a companhia voltasse da Europa e tivesse obtido o arrendamento do Leopoldo Fróes. O esboço do projeto aponta seis itens: 46 Memorial de Cacilda Becker. Recorte s.i./s.d. 47 Carta do Teatro de Arena de São Paulo enviada à Prefeitura de São Paulo, 6.1958. 1 -Montagem de espetáculos que tenham no seu conjunto um alto valor artístico e cultural. 2 -Escola nova. Negação do conceito acadêmico de ensino. Participação total nos processos de conhecimento. 3 -Centro de reunião de estudantes de arte e de estudantes em geral. 4 -Contatos com diferentes especialistas: economistas, sociólogos, escritores, etc. 5 -Centro de irradiação de experiências, técnicas e realizações para todos os núcleos interessados (intentando atingir principalmente os interiores brasileiros). 6 -Intercâmbio com outros centros de estudos e pesquisas. SALvADOR, RECIfE E EUROPA Salvador e Recife foram as duas últimas temporadas, antes do embarque no Vera Cruz, para cumprir contrato em Portugal. Segundo o relato de Inez Barros de Almeida, em seu livro Panorama visto do Rio, o TCB (em Salvador) receberá imensa aclamação do público e a primeira contestação artística frontal. Cacilda foi pouco feliz em sua primeira declaração, ao desembarcar na cidade: O público da província é mais puro do que os outros (...) ele ainda está para ser formado. Ora, Salvador vivia um momento de grandes realizações artísticas. A Escola de Teatro estava em pleno funcionamento, dirigida por Martim Gonçalves e assessorada por Brutus Pedreira, encenava Tennessee Williams e promovia Colóquios Luso-Brasileiros, apresentando textos de Gil Vicente. Uma declaração feita sem maldade pareceu provocação, não ao público comum que pouco se importou ou achou-a justa, e lotava todas as noites o Teatro Guarany, mas para a nova geração de artistas e para a intelectualidade (que já reagiam ao repertório anunciado) tudo lhes parecia uma grande ofensa. Glauber Rocha, no Estado da Bahia, estrilou bravíssimo: Em Santa Marta Mau Gosto S/A, Abílio Pereira de Almeida é autor pornográfico e subliterário (...) encenar um texto de museu (Maria Stuart) quando os atores se portam como alunos de ginásio em recitativos de sabatina (...) o valor de Cacilda Becker é um valor gasto (...) Cacilda go home,48 sentenciou o gênio em progresso... Em Recife toda a temporada decorreu sem problemas, com aplausos excepcionais... com a assistência aplaudindo de pé os desempenhos de Cacilda e Cleyde Yáconis, em Maria Stuart. Cacilda, nesse final de temporadas pelo Brasil, está cansada e tomada de uma grande tristeza. Recife é lindo... o público acolhedor e presente. Mas tudo isso não basta para tirar de mim uma tristeza, uma angústia profunda. Não que tivesse se importado com as investidas de Glauber Rocha, para ela um desconhecido, um rapazinho bobinho. E a fila formada desde as 9 horas da manhã, para assistirem ao último dia da temporada, compensava tudo. Suas preocupações eram mais sérias. Alguma coisa não vai bem. Desconfiava de sua arte. Olhava temerosa para o futuro, o caminho que pretendia ainda percorrer por muito tempo para, no mínimo, poder sobreviver. Quanta coisa nova a ser assimilada! Tantos mundos diferentes que pôde perceber nesses quilômetros e quilômetros de andança. Tomar caminho em direção a Lisboa não era fácil, malgrado as palavras que mandara para o programa de estreia: Todo ator é um errante. Seja na vida (sua própria condição inquieta o afirma), seja no palco (vivendo um efêmero momento), submetido sempre a um abrir e fechar de pano, a um trocar de roupas e tirar pinturas, a um arrumar de malas, que realmente o impelem a assumir destinos de um eterno caminhante de estradas. E como caminhantes de estrada, Cacilda e seus companheiros enfrentam Lisboa com o Auto da compadecida. Nas mãos, uma carta de Dom Helder Câmara (na época não perigoso) ao clero de Lisboa, a fim de que não houvesse discussões e censuras no texto. Controvérsias houve, mas contornáveis. 48 BARROS DE ALMEIDA, Inez. Nordeste, Portugal e o salto para o teatro das nações. In: Panorama visto do Rio – Teatro Cacilda Becker, Rio de Janeiro: INACEN, 1987. p. 69-72. A acolhida em Portugal é das melhores, desde a chegada. No cais, Maria Della Costa e seu elenco esperam o TCB. Historicamente unidas, as duas atrizes mais uma vez se cruzam, agora em Lisboa, uma no Teatro Capitólio, com Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri, outra no Teatro Tivoli, com o Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Amparada pelo sucesso e pelos amigos portugueses: João Villaret, Laura Alves, Eunice Muñoz, Maria Lalande, Rogério Paulo e a grande amiga do Brasil, Palmira Bastos, Cacilda só tem que se animar. A visita do Teatro Cacilda Becker é recebida como um esplêndido presente do Brasil49 e sua estreia com o Auto da compadecida foi descrita como água lustral banhando a nobre arte.50 Por intermédio do jornalista Mattos Pacheco, enviado a Portugal para cobrir as temporadas brasileiras, temos uma ideia do que foi a encenação do texto de Suassuna, sob a direção da atriz: [Cacilda] nada acrescentou em A compadecida. Não procurou achados, não utilizou truques. Mas valorizou a representação de todo o elenco, com marcações inteligentes, simples, quase ingênuas, sempre muito dentro do espírito popular da peça. Descobriu pequenos detalhes que até agora não tinham sido explorados por nenhum diretor. Não fez de A compadecida um show, mas um espetáculo de sabor ingênuo e popular, muitas vezes poético, muitas vezes humilde (...) vestida simplesmente, como mulher, apenas com um manto de renda branca sobre o vestido quase caipira de florzinhas vermelhas, Cacilda era verdadeiramente, apenas pela interpretação, uma verdadeira, autêntica Nossa Senhora.51 49 BOM, Pedro. Esplêndido presente do Brasil. Diário Ilustrado, Lisboa, s.d. 50 Teatro e cinema no Tivoli Auto da compadecida. Novidades, Lisboa, 22.10.1959. 51 MATTOS PACHECO. Cacilda venceu em Lisboa – A compadecida. Diário da Noite, São Paulo, 28.10.1959. O espanto e alguns protestos causados pelo texto foram, aos poucos, se dissipando. R. M., responsável pela matéria publicada em Novidades de 22 de outubro de 1959, salienta as excelentes qualidades histriônicas de Cleyde Yáconis, no Palhaço, chama o João Grilo, de Walmor Chagas, de admirável e cita os atores: Stênio Garcia, Raul Cortez, Luís Tito, Célia Helena, Kleber Macedo, todos na verdade não só bons atores, mas disciplinados e entusiásticos colaboradores (...) e Cacilda dá à sua final intervenção a nota certa que só uma comediante de classe conseguiria.52 Público e crítica se encantam com a juventude e alegria dos atores brasileiros. E foi esta onda de juventude que crescendo e rolando veloz introduziu a uma plateia rendida e conquistada a companhia de Cacilda Becker.53 Em sequência, Pega-fogo, pisando em solo europeu, continua sua caminhada, impressionando a crítica portuguesa pela riqueza de pormenores [em sua criação] e pela impressionante singeleza de processos. O certo é que o Teatro Cacilda Becker impressionou pelo trabalho de Ziembinski como encenador (finura e humanidade nas encenações).54 Em carta, Cacilda lamenta não ter até aquele momento conhecido José Régio, mas procura travar conhecimento com a história de Portugal, achando-a maravilhosa. E confessa que lá consegue ler melhor Fernando Pessoa e os estudos sobre ele. Não estranha quando lhe contam que era um vidente (alguma coisa de anormal ele teria que ter!). Empresariados por Vasco Morgado, atuam no Porto, enriquecendo o empresário. Entre as alegrias, as sérias reflexões escritas nos intervalos: não estou feliz, não. Nem tudo corre como eu desejaria, mas espero em Deus que tudo esteja certo! (...) receio que o melhor de mim já gastei antes, sinto-me velha e tenho profundos remorsos.55 (...) ah! o Teatro. Lá eu me arranjo... de vez em quando ele até me salva. É nele que tenho que permanecer, a ele tenho que dedicar minha vida inteira, com todos os erros, mas com essa única certeza de que não me traindo – como nunca me traiu – posso justificar a minha insignificante presença neste mundo (...) estou doida de vontade de voltar para o Brasil, agarrar o Leopoldo Fróes a unha e trabalhar o resto de minha vida nesse teatro (...) empenharei até a última gota de meu sangue naquilo que sempre me prometi, de que apesar de todas as incertezas e dramas não trairei meu ideal...56 52 R.M. Auto da compadecida no Tivoli, Lisboa, Novidades, 22.10.1959. 53 Id. 54 Bom, Pedro. O Protocolo de Machado de Assis e Pega-fogo, de Jules Renard pelo Teatro Cacilda Becker. Diário de Lisboa, Lisboa, 28.10.1959. 55 Id. 56 BECKER, Cacilda. Em carta dirigida à autora. Lisboa, s.d. Finalmente Paris, o Festival das Nações e Poil de Carotte, ponto final das viagens, e, de certa forma, o encerramento do que poderíamos chamar da primeira fase do Teatro Cacilda Becker. A programação não agradou muito aos críticos, nem à classe teatral no Brasil. Mas os franceses receberam-na, como uma homenagem aos 50 anos da morte de Jules Renard. Só desconfiaram da audácia de uma atriz de là-bas desafiar as inesquecíveis criações de Berthe Bovy e Ludmilla Pitoëff. Seriam dois dias cedidos ao Brasil: Maria Della Costa, com Gimba, e Cacilda com sua grande interpretação. Cacilda sabia bem da responsabilidade e dos desafios de caráter diverso: os brasileiros, chamando-a de esnobe negando-se à nossa dramaturgia e os críticos do Festival, achando-a pretensiosa. Uma frase drástica, como era de seu costume, foi enviada em carta aos amigos: Se os miseráveis inimigos têm razão, e estou mesmo liquidada, me enterrarei com honras, aqui, em Paris! Mas... estou confiante.57 Por outro lado, as declarações ao jornalista Barros Bella nada têm da dramaticidade habitual: Sinto-me orgulhosa de trazer esse personagem ao Festival das Nações. Tem o seu significado. A arte de representar se desenvolveu primeiro no teatro brasileiro, antes mesmo dos novos autores e dos diretores nativos. Atores (sem dúvida superiores a mim), como Paulo Autran, Margarida Rey, Maria Della Costa (que também se exibirá no Festival), Sérgio Cardoso, Dina Lisboa, Nydia Licia foram instrumentos para a imposição de novas bases. Humildemente, é meu desejo que o primeiro comparecimento do Brasil ao Festival seja uma homenagem a esses pioneiros.58 O jornal O Estado de S. Paulo coloca, na seção teatral, uma manchete simpática: Duas estreias hoje: Em Paris, Pega-fogo. No Arena, Fogo frio.59 57 BECKER, Cacilda. Carta dirigida à autora. Lisboa, 10.1.1960. 58 BARROS BELLA, J.J. de. Folha da Manhã, s.d. 59 O Estado de S. Paulo. São Paulo, 19.4.1960. As críticas não poderiam ter sido melhores: assistimos ontem à noite no Teatro das Nações a uma emocionante manifestação de amizade Franco-brasileira. Como poderíamos resistir a essa homenagem à França tão cheia de palavras gradas aos nossos corações. Depois, com a célebre pianista Magda Tagliaferro, a música estreitou, em liames coloridos, os laços que unem ao nosso país, o folclore do Brasil à arte de Darius Milhaud e o talento de Villa-Lobos. Na segunda parte, Mme. Cacilda Becker nos fez admirar sua compreensão e grande sensibilidade, interpretando Poil de Carotte.60 (...) Poil de Carotte em português! Confessemos que havia certa dúvida em nossa expectativa. Enganamo-nos. M. Gustavo Nonemberg em seu trabalho foi perfeito, fiel à língua e ao espírito da peça. Essa fidelidade é acrescida pela interpretação de Cacilda Becker, sua silhueta assemelha-se surpreendentemente aos croquis que ilustram as primeiras edições das obras de Renard. Sua maneira de representar é de grande austeridade. Nunca a menor concessão, a menor facilidade, o encanto fácil. Não vou dizer que já esquecemos Mme. Berthe Bovy. Descobrimos simplesmente outro Poil de Carotte ao qual a origem brasileira não acrescenta nenhum aspecto folclórico.61 (...) Tenho a impressão de que todos os que viram ontem Mme. Cacilda Becker falarão muito tempo não dela, mas dele, o pequeno Francisco, apelidado maldosamente de Pega-fogo (...) é o mais belo exemplo de aniquilamento e modéstia de uma atriz. Cacilda Becker escolheu Poil de Carotte para se apresentar, homenageando o cinquentenário da morte de Jules Renard. Foi uma atenção que nos sensibilizou. Sentimos só vê-la em um único papel: seu instinto e sua inteligência de grande intérprete, também sua sensibilidade, que nos faz lembrar Ludmilla Pitoëff, despertam-nos esse desejo.62 (...) O que descobrimos hoje foi um Poil de Carotte frágil, de gesto inquieto, de vozinha fina emocionante. Perenidade de uma obra-prima que a língua portuguesa não diminui, emprestando-lhe mesmo uma espécie de musicalidade rouca, áspera qual um soluço contido (...) fisicamente, a criação de Cacilda Becker é espantosa... Há nessa grande atriz um talento mímico, uma delicadeza de tom, uma musicalidade, uma juventude que exigem admiração.63 60 GAUTHIER, J. J. Amitié Franco-Brésilienne. Le Fígaro, Paris, 21.4.1960. 61 L.A. Poil de Carotte. Paris-Jour, Paris, 21.4.1960. 62 CARTIER, Jacqueline. Poil de Carotte – (Un Renard Intelligent), Paris, Francesoir, 20.4.1960. 63 PAGET, Jean. Le Brésil au Théatre des Nations. Combat, Paris, 21.4.1960. A agilidade de sua maneira de interpretar, a precisão de seus gestos e também suas inflexões e mesmo seus silêncios traduzem o estado de desafio tornado natural em Poil de Carotte. Tudo em Mme. Cacilda Becker, tudo que fez, foi exatamente o que podia ter sido dito e feito de melhor forma para que sintamos a verdade humana do drama, onde a crueldade se esconde sob o humor (...) há nessa grande artista qualidades tão vivas que a despeito da barreira erguida entre ela e seu auditório parisiense devido à língua, ela prendeu o público com seu encanto do começo ao fim, em um espetáculo onde permanece em cena constantemente, salvo no pequeno instante em que vai cuidar da criação.64 64 DUMESNIL, René. Un hommage du Brésil à La France, Le Monde, Paris, 22.4.1960. DE vOLTA AO BRASIL Bons ventos a trazem de volta. Na mesma madrugada do dia 20 de abril, tomam na Gare du Nord o trem para o Havre. Embarcam na terceira classe do Laennec (sic transit gloria mundi...). Depois dessa peraltice, de assumir representar Poil de Carotte, em português, em Paris e ser aplaudida e comparada a Pitoëff, Cacilda está alegre e seu grande feito mais se lhe assemelha às travessuras da menina que andava descalça pelos campos, subindo em árvores e comendo frutas de nomes pouco conhecidos. Bons ventos a trazem! Tem mil planos na cabeça. Conversou com pouca gente, mas soube escolher muito bem seus interlocutores. Gente muito semelhante a ela: Jean-Louis Barrault, Marie Hélène e Jean Dasté (pioneiro da descentralização teatral, fazendo teatro entre os operários em Saint Etienne) e Roger Blin (a quem Beckett entregou Esperando Godot). Todos eles com a mesma chama ardente, que a moverá in aeternum, pronta a arder no palco e muitas vezes entre os colegas na vida teatral, em momentos difíceis, quando for solicitada. Mais ainda do que isso, a consciência exigindo que respondesse com fidelidade ao chamado misterioso que a envolvia e descobrisse o caminho certo, para que cumprisse fielmente sua carreira de atriz. Logo ao chegar, em 5 de maio, estabelece planos para o Teatro Leopoldo Fróes, toma contacto com Nelson Rodrigues que lhe oferece o Boca de ouro e traz os direitos de O Rinoceronte, de Ionesco. Viu muito teatro, atenta às interpretações, como sempre fez. Reflete sobre sua carreira, sua maneira de interpretar. Compara-se. E através de textos poéticos estuda voz, com a professora Maria José de Carvalho. Sente que deve abdicar do teatro pelo teatro, em favor de um teatro de participação, um teatro vivo. Em verdade, nada existe para ser renovado no teatro brasileiro; o que existe são coisas a criar. Atua na antiga TV Cultura e programa para junho excursões pelo Estado de São Paulo. Seus amigos a querem em uma grande rentrée. Por que não, Blanche Du Bois, em Um bonde chamado desejo? Aproximam-na de Augusto Boal. Mas, como predisse Walmor, no teatro brasileiro nada é definitivo. Acabou fazendo (e bem) dando continuidade à sua terceira e última fase, uma personagem modestamente denominada Ela, numa comédia também modesta de sua amiga Clô Prado, em um local nada cacildiano: uma pequena sala do Teatro Natal (Sala Azul), situado na avenida São João...! Nessa pequena sala falaram ao público, a convite de Cacilda: Eugène Ionesco, Jean-Paul Sartre e, em cena aberta, foi homenageada a atriz portuguesa Palmira Bastos, por ocasião de sua visita de despedida ao Brasil. Não resta dúvida de que está mais confiante, mais calma. Uma trégua nas inimizades com seu ex-marido Tito Fleury e um contrato de casamento, entre ela e Walmor, dão-lhe mais estabilidade. Residem em frente aos fundos do Teatro Leopoldo Fróes, que já tem como seu por 15 anos. Mas isso não iria acontecer. Por sorte entram em negociação com Rubens de Falco e Dália Palma, e ficam com o Teatro Federação, uma das dependências da Federação Paulista de Futebol, na av. Brigadeiro Luís Antonio, 917. É quase uma residência fixa. O palco é bom, a plateia também, os camarins são péssimos. Não há sala de ensaios, nem possibilidades de construção de cenários, no mesmo ambiente. Mas é lá que se vai dar a fase mais madura, eficiente e praticamente os pontos mais altos de sua carreira. É lá que Cacilda se firmará como personalidade ímpar no teatro brasileiro e atriz de uma superioridade inquestionável. É bem verdade que está com 20 anos de palco. Foi muitas vezes preterida no início da carreira, mas – perseverante ao extremo – superou dificuldades e soube fazer seu preparatório para o grande aprendizado no Teatro Brasileiro de Comédia. Que é um palco?... Pois – está vendo? – é um lugar onde se brinca a sério, onde se fazem peças (...) O mal é esse, querida, que aqui tudo é fingido, diz a Enteada para a irmãzinha em Seis personagens à procura de um autor. Brincou a sério por 20 anos, tem pouca memória para os fatos, mas recolhe sensações. É no plano da expressão dos sentimentos e das emoções que se movimenta em cena. Jogando-as, expandindo-as, ou amainando-as, forma sua caixa de mistérios. Em seus nove últimos anos de vida, fala muito em ser gente e em seu firme propósito de chegar lá. Essa busca de seu eu mais profundo, liga-se – deixa bem claro – ao desejo de transmutar suas atuações em instantes de arte. É, pois, com emoção e sentimento, ambos em pleno domínio, que se entrega à personagem de Floripes, ...em moeda corrente do país, peça de estreia no Teatro Federação, considerada por muitos a melhor de Abílio Pereira de Almeida, depois de Paiol velho. O marido honesto, negando-se veementemente ao suborno, a esposa humilhada, por anos e anos de uma quase pobreza, vendo na ocasião a oportunidade única para soerguerse, propiciaram ao casal de atores uma admirável inter-relação cênica. A interpretação de Cacilda, que a crítica chamou de magistral, deveu-se, sem dúvida, à junção do patético e do quase trágico que conseguiu fazer em um único diálogo, nos momentos finais do segundo ato. FLORIPES – Guimarães: seja razoável, meu bem. Pensa um pouco. É tua mulher que te pede. É muito importante para a nossa vida (...) Eu lhe peço, Guimarães, com toda a humildade. Não é por orgulho. Eu me ajoelho. Eu peço de joelhos. Olhe: estou me ajoelhando. Peço de joelhos. Como uma escrava que pede a sua liberação... GUIMARÃES — Levante-se, Floripes. Você perdeu completamente a capacidade de raciocinar. Você está obcecada! Nunca pensei que o dinheiro a transtornasse. Lido, o diálogo bem mais extenso do que o transcrito aqui, à primeira vista mais parece um melodrama de novela de rádio. Não o é, pois permitiu aos dois atores usarem de contensão, e controle emocional que os levou, ele a uma limpidez interpretativa das mais notáveis e ela, a matizes surpreendentes, sem quaisquer maneirismos, juntando todas as suas conquistas interpretativas, revitalizando-as de forma surpreendente. O simples ato de ajoelhar-se, que tanto impressionou o público e os críticos, fez parte daqueles momentos no teatro em que palavras não ditas se tornam maiores do que as proferidas. As viagens fizeram bem a Cacilda (bem diz José Celso: pra você mudar, a melhor coisa é você estar viajando, é você estar em mudança, é tá indo). Parece a todos que reviu em alguns pontos seu estilo, tornando-o mais brando e calmo. A boa acolhida ao texto e ao desempenho do elenco na peça de Abílio encorajou-a, a ponto de não se desesperar com a proposta enviada à Câmara, pelo prefeito Ademar de Barros, revogando a lei que autorizava a Prefeitura a firmar convênio com o Teatro Cacilda Becker (após reexame do assunto entendeu ser a cessão em causa altamente prejudicial à coletividade comunal ).65 Marcha à ré nos planos ousados. O Teatro Cacilda Becker (logo o nome da atriz foi dado também ao espaço físico) será uma companhia como as outras no Brasil. Sede em São Paulo, onde permanecerá o mais tempo possível, não abandonando projetos de excursões ao interior e aos Estados, possibilitando o equilíbrio financeiro da organização. O mais importante é que, a partir da ocupação do Teatro Federação, torna-se mais forte a parceria com Walmor Chagas que se vinha desenvolvendo desde 1956, ainda no Teatro Brasileiro de Comédia. Será, doravante, o que chamaríamos de interação criativa. Um conhecimento mútuo enriquece a ambos, e o importante no diálogo interpretativo é que a emotividade da atriz temperada pelo raciocínio do parceiro faz bem aos seus desempenhos. A atuação torna-se um prazer para os que a praticam e para os que assistem. Consequentemente, o repertório nessas últimas temporadas deverá favorecer a ambos e dar lugar também aos velhos companheiros: Fredi Kleemann e Kleber Macedo. Ótimos atores completariam o elenco, quando houvesse necessidade. 65 Recorte sem identificação. O que teria significado a permanência de Cacilda Becker no TCB e em duas produções isoladas em 11 anos de atividade, além de estar ao lado de um excelente ator e diretor no qual confia muito? Foram dezoito perfis femininos antagônicos, uma personagem masculina, um recital de textos e poemas. De certa maneira houve oportunidade para que se defrontasse com personagens importantíssimos, com características muito próprias que ia amoldando, dando-lhes rostos refinados e requintados, à medida que seu ofício amadurecia. A Floripes, pequena funcionária de ...em moeda corrente do país, sucedeu a socialista Betty Bryant, de Raízes, dirigida pelo jovem Antonio Abujamra, em seu primeiro trabalho profissional. Estagiário por sete meses em Villeurbanne (com Roger Planchon, evidentemente) e frequentando o Berliner Ensemble, tentou apresentar novos caminhos ao Teatro Cacilda Becker, escolhendo Raízes, de Arnold Wesker, autor revolucionário inglês, preocupado em dirigir sua dramaturgia para os problemas reais da gente comum. Texto e encenação não foram bem compreendidos. Mas José Celso Martinez Corrêa lembra-se que a fala de Cacilda para a plateia (seu pequeno tributo a Brecht) dita com justeza tornou-se para ele inesquecível. No Teatro Cacilda Becker, permaneceu dois anos mais do que no Teatro Brasileiro de Comédia e provavelmente nunca se arrependeu de ter deixado seu abrigo seguro. Criações enriquecidas pelo contacto com novos atores, novas plateias e novas direções permitiram, ao longo desses 11 anos, trabalhos excelentes, gerados por experiências de vida e de palco, sempre profundas, reafirmando-se, entre quedas e soerguimentos, ser a maior figura de atriz surgida em nossos palcos (depois de Apolônia Pinto, dizia brincando). Qual seria o seu mistério? Uma das virtudes interpretativas que a tornavam grande era justamente olhar com curiosidade suas personagens, amá-las, desculpando-lhes os erros e enfatizando suas qualidades por mais recônditas que estivessem. A compreensão das falibilidades do gênero humano tornara-a mais paciente e menos medrosa perante a vida que, segundo dizia, amava de forma patológica. Se em seu falar, deixava, às vezes, escapar um tom ríspido e agressivo (afinal de contas, defendia-se, na arte e na vida) seus gestos e voz atenuavam-se quando o sentimento dominava a cena. O grotesco e o sinistro de Clara Zahanassian, em A visita da velha senhora, por exemplo, eram vencidos, por uma estranha melancolia e compaixão no encontro com Schill, seu antagonista (O coração com as nossas iniciais, quase apagadas e afastadas uma da outra...). E, diga-se o mesmo, no pequeno monólogo no momento em que impõe seu assassinato à coletividade, justificando-o não só como um ato de justiça, mas como troca pelos milhões que vai doar à cidade (... eu não esqueci, Schill... agora quero acertar as nossas contas... agora quero justiça, justiça em troca de um bilhão). Na mudança incessante das personagens, surge Hannah Jelkes, de A noite do iguana, sequência fechando o tríptico de personagens dramaticamente neuróticas de Tennessee Williams que Cacilda interpretou, resolvendo-as sempre a contento, enfatizando sentimentos iguais ou díspares entre as três. Hannah é parente bem próxima de Alma Winemiller, de O anjo de pedra, ambas puritanas e inibidas, menos vibrantes do que Maggie, a gata. Enquanto a heroína de Gata em teto de zinco quente é vibrátil, vencedora através da mentira, sexualmente frustrada e desejosa de segurança econômica (diz de seu passado, em uma das versões da peça: nos tornamos tão pobres que só tínhamos o nome), Alma é tímida, apaixonada, sensível, ledora de William Blake e muito mais do que Hannah, é dividida entre ordem e anarquia, espírito e carne. Hannah é quase oriental em sua aceitação dos fatos, admirável em seu conhecimento de si mesma, surpreendente de simplicidade quando se confronta com Larry Shannon, o défroqué e com a reluzente Maxine. Segura de si mesma, narra melancolicamente suas experiências íntimas, como atos de infinita bondade. As observações de Yan Michalski não só esclarecem seu trabalho na peça de Williams como informam pontos primordiais de seu estilo: Como acontece quase sempre, o reencontro com Cacilda é um deslumbramento e uma emoção. Sua Ana Jelkes é um prodígio de riqueza de intenções e de exatidão de tom; a atriz atravessa as enormes dificuldades do papel com uma naturalidade expressiva que faz dela um fenômeno à parte no nosso teatro. É interessante observar que um detalhe que apontamos ontem em relação ao texto se repete, exatamente no desempenho de Cacilda: durante a primeira metade do espetáculo, a personagem parece um pouco no ar, um pouco confusa e indecisa; de repente, a sua interpretação se torna tão esclarecedora que explica perfeitamente a indefinição anterior e a faz aparecer como intencional, lúcida e funcional. A grande cena de Cacilda com Valmor no terceiro ato e o seu grito mudo no final permanecerão por muito tempo na nossa memória, como maravilhosas manifestações de uma arte plenamente desenvolvida.66 66 MICHALSKI, Yan. A noite do iguana – II. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13.8.1964. As críticas sobre sua interpretação em Gata em teto de zinco quente, posterior ao Anjo e antecessora de A noite do iguana são muitíssimo curiosas no aspecto voz de Cacilda. Valem uma reflexão. O primeiro ato é uma verdadeira armadilha para a atriz. A rubrica pede que a voz de Maggie seja ao mesmo tempo rápida e aliciante e que nos discursos longos tenha maneirismos vocais de um pastor entoando cantos litúrgicos; as falas devem ser quase cantadas, continuando um pouco além do fôlego, de forma que ela precise tomar ar – o que, inclusive, quase coincide com certa emissão vocal da intérprete. Abrindo a peça, o jorro de palavras, ditas apressadamente, assusta público e críticos. Paschoal Carlos Magno, no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, lamenta o dizer a jato, atirando dezenas de palavras em um só fôlego, articulando exageradamente. No entanto, mais adiante, sensibiliza-se, quando Cacilda fala normalmente. Nota sua beleza, seus movimentos harmoniosos, sua dignidade artística presente nos gestos, no porte, no andar (...) sua emoção atravessa a ribalta e a atriz comove, o personagem interessa, sua humanidade encontra ressonância.67 Décio de Almeida Prado compreende a tempo: Cacilda Becker, a princípio, surpreende pela elocução nervosa e artificial, até percebermos que é exatamente o tom que convém ao papel de Maggie, a gata.68 Na revista O Cruzeiro, escreve Clóvis Garcia: Cacilda Becker volta em grande forma, dando-nos uma Maggie tensa, nervosa, com características neuróticas, bem demarcadas. Se nos primeiros momentos a respiração sonora, adotada pela grande atriz, ultimamente, pode desviar a atenção é imediatamente esquecida a seguir pela força de sua interpretação.69 Por vias indiretas tocam em um ponto importante, em sua aceitação pela maioria da plateia: falasse como falasse, o que a tornava grande era a intensidade dramática percebida por todos, sua energia e doação plena para que a personagem fosse aceita. A verdade é que, tempos depois, a partir de 1958, vigia-se mais e aos poucos desaparece a respiração sonora e a emissão vocal que desejou impor conscientemente, como fala teatralmente construída, em decorrência de problemas físicos, difíceis de ser evitados. 67 CARLOS MAGNO, Paschoal. Gata em teto de zinco quente, no Ginástico, pelo Teatro Brasileiro de Comédia. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 7.5.1957. 68 ALMEIDA PRADO, Décio. Gata em teto de zinco quente. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26.10.1956. 69 GARCIA, Clóvis. Teatro em São Paulo. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 17.11.1956. qUEM TEM MEDO DE vIRGíNIA WOOLf? Uma leitura dramatizada de Festa de Aniversário, de Harold Pinter, com Walmor Chagas, Paulo Autran, Sérgio Viotti, Rosita Tomaz Lopes e Fábio Sabag, dirigida por George Devine, diretor artístico do Royal Court Theatre, de Londres, em visita ao Brasil, em 1962, lhe fornece pistas para Marta, de Quem tem medo de Virginia Woolf?, sua mais difícil interpretação até então, pela complexidade e exigência de meios interpretativos ainda não trilhados. Fala a Alfredo Souto de Almeida, no já citado programa da Rádio Ministério da Educação: entramos em contato com um humor diferente, uma técnica teatral diferente, com um diretor que, exemplificando várias vezes, esclareceu um tipo de humor que nós vamos encontrar em Quem Tem Medo de Virgínia Woolf? (...) Essa experiência foi muito importante para que eu pudesse fazer Virginia Woolf com essa segurança que fiz. Eu não tive medo.70 Se aprendeu com Devine um novo tipo de humor, não se acanhou em juntá-lo com a maneira de ser de nossas atrizes burlescas (e se ambas as abordagens eram semelhantes, ou não, o resultado foi ótimo). Não abandonou, contudo, a intensa dramaticidade e o seu estilo realísticopoético, quando o texto permitia, por instantes, interromper o lado fantasmagórico da personagem. Alberto D’Aversa assinala: Cacilda mais uma vez estupenda. Riqueza de tons, sensibilidade afiadíssima, participação quase que ontológica na personagem fazem desta atriz a mais sensível intérprete para um repertório onde as palavras não ditas pesam mais que as pronunciadas, onde a incerteza dos sentimentos precipita na angústia e o desespero se objetiva. Há anos que esta atriz tem um encontro marcado com Tchekhov.71 Na temporada carioca, estendendo elogios ao parceiro Walmor Chagas, Carlos Drummond de Andrade é incisivo, em crônica publicada no Correio da Manhã: É um espetáculo fascinante (...) união infernal entre seres que se repelem para, absurdamente, melhor se colarem um ao outro e, devorando-se, atingirem à comunhão do nada (...) Cacilda e Walmor travam essa luta sem quartel, com a ferocidade de lobos que se divertissem em ser ferozes, utilizando o refinamento que a civilização deu à mente humana para o exercício da crueldade e também da autopunição. Fazem isso com aquela perfeição que só o grande artista, no cume de uma grande carreira, consegue de si mesmo (...) É fantástico – e esta pobre palavra não diz nada, pelo desgaste.72 Virgínia Woolf foi o terceiro encontro de Maurice Vaneau com Cacilda. Vaneau, o espirituoso, o sagaz e o audacioso, como ela o via, contribuiu muito para a arte de Cacilda. Perspicaz, ela logo percebeu as qualidades desse diretor, formado na Europa, mas com estágio em Yale, mesclagem que o fazia diferente de seus antigos mestres italianos. O preço de um homem, de Steve Passeur, montada um ano antes e dirigida por ele, mostrava uma interpretação revigorada, mais depurada, mais direta, livre de artifícios, lembrando suas primeiras grandes atuações pré-TBC. Quem tem medo de Virgínia Woolf?, a última direção de Maurice Vaneau, com Cacilda no elenco, foi sem dúvida o ponto mais alto a que atingiram Walmor e Cacilda em suas carreiras, ricas na decantada interação interpretativa. 70 Depoimento citado. 71 D’ AVERSA, Alberto. Quem tem medo de Virgínia Woolf? (cont.) Diário de S. Paulo, São Paulo, 12.11.1965. 72 ANDRADE, Carlos Drummond de. Grande Noite. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 9.1.1966 COMOvENTE NO DRAMA E ESPIRITUOSA NA COMéDIA Lamentamos que nesses 11 anos em que atuou em seu próprio elenco tenha feito apenas três comédias: Os perigos da pureza, de Hugh Mills (excelente direção de Ziembinski, ignorando e pagando seu preço, às revoluções nacionalistas de 1958), Virtude e circunstância, de Clô Prado, e Oscar, de Claude Magnier. É certo que, em algumas outras peças, houve lugar para esparsas tiradas cômicas, sempre de alto nível, exceções em nossa maneira de fazer comédia. Além do tempo certo em responder às falas, colocava em suas personagens a crença no que falavam, atenta à contenção, não deixando nunca se arrastar pelo apelo caricatural, armadilha contida em muitas das comédias nacionais ou estrangeiras. Essa maneira de representar aspectos cômicos, de maneira tênue, e às vezes irônica aparece em Isso devia ser proibido, texto a duas mãos, de Bráulio Pedroso e Walmor Chagas, dirigida por Gianni Ratto, dupla reflexão pretensamente crítica de séria crise matrimonial e artística. Entremeiam-se problemas domésticos, discussões e raivas contidas, amainadas pela presença de filhos e cachorro. Não sabendo mais o que fazer, em pleno 1967 com sua ars gratia artis despedaçada, o casal de atores da peça, olha desconfiado para Bertolt Brecht, Samuel Beckett, Eugène Ionesco e agarram-se ao desespero de Anton Tchekhov, que a atriz do texto, afeita a características tchekhovianas, soube construir sempre com galhardia. Apesar de tanta qualidade, Ivanov, o texto de Tchekhov, é um fracasso de bilheteria, enquanto o teatro dos jovens (de atuação tantas vezes fraca, aos olhos dos dois atores / personagens) passa a corresponder aos anseios das novas plateias que se vêm formando, ávidas de não perder as contundentes mudanças iniciadas no final dos anos 1950. Estariam Ele e Ela superados? Público e crítica olharam com prazer e divertindo-se com essa verdade, não muito verdade, essa mentira, nem sempre mentira, escrita com muita esperteza e muito espírito. Décio de Almeida Prado, em O Estado de S. Paulo, lembra que os americanos chamam textos dessa natureza de veículo, ou seja, suportes para o virtuosismo dos atores, uma exceção que se aceita quando os intérpretes de fato a merecem e justificam. Cacilda Becker e Walmor Chagas estão nessa categoria (...) Cacilda é a mesma atriz exata, sóbria, sincera, destituída de exibicionismo e de retórica, espirituosa na comédia e comovente no drama, que aprendemos a admirar, já lá se vão 20 anos.73 Anatol Rosenfeld, de certa forma, foi mais longe. Desconfia que haja um ato falho na escolha do texto de Tchekhov. A fala de Ivanov, referindo-se ao vazio decorrente da ausência de fé, de amor e de objetividade, não se distanciava muito do que na verdade sentiam esses atores verdadeiros, escondidos entre as personagens sem nome próprio, denominadas simplesmente Ele e Ela, olhando, com um vago sorriso, mas precavidos, as transformações comportamentais, em suas várias vertentes, no decurso dos anos 1960.74 A última criação de Cacilda, Esperando Godot, de Samuel Beckett, em 8 de abril de 1969, em seu dilaceramento visível, é, em verdade, uma súmula de todas as criaturas / personagens com seus conflitos, sorrisos e lágrimas, acumuladas e ampliadas em seu ser. Não mais mulheres nem homens sequer, absorvidos em seu rosto e corpo nos 28 anos de carreira. Diz ela em suas derradeiras palavras ao crítico Sábato Magaldi, para o jornal O Estado de S. Paulo: não pensei em termos de sexo masculino ou feminino. Estragon é um ser humano com sua problemática existencial.75 Comove-nos o elogio feito de maneira indireta à sua interpretação, em texto de Sábato Magaldi enviado de Paris, publicado no Jornal da Tarde, em 6 de abril de 1986, com o título O crítico, pronto para redescobrir Beckett. Sábato se refere ao espetáculo apresentado no Teatro Cacilda Becker. E a referência diz tudo sobre o significado daquele momento cênico: li os novos textos beckettianos e achei que tudo estava em Esperando Godot. Essa impressão confirmou-se no extraordinário desempenho de Cacilda Becker, ao lado de Walmor Chagas, dirigidos por Flávio Rangel. Não é porque, em 1969, a grande atriz precisou interromper uma vesperal, para hospitalizar-se já em coma, vindo a falecer de aneurisma cerebral. Na pungência, na sensibilidade, no rigor de sua criação havia, sem dúvida, aquela forma perfeita, de quem passa a vida a limpo e acerta as contas com a morte.76 73 ALMEIDA PRADO, Décio. Isso devia ser proibido. IN Exercício Findo (crítica teatral – 1964-1968). São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. p. 186-189. 74 ROSENFELD, Anatol. Isso devia ser proibido. O Estado de S. Paulo, 30.9.1967. Suplemento (547): 4. 75 Cacilda analisa sua personagem. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8.4.1969 76 MAGALDI, Sábato. O crítico, pronto para redescobrir Beckett. Jornal da Tarde, São Paulo, 6.4.1986. ESTREIAS NA Tv E NO CINEMA Albert Camus tem belas palavras para proclamar o efêmero da criação do intérprete teatral. Metáfora de nossa condição humana, é ele o intérprete, sem dúvida, quem mais percebe entre todos os homens não crentes que tudo acabará um dia. Os tempos modernos quebraram essa arte fugaz, em cinema ou em televisão, ressuscitando-a de forma profana, diversificando-a, empobrecendo-a, de certa forma, com a impossibilidade da presença viva. Vestígios da arte de Cacilda Becker foram vistos em televisão. Primeiramente em transmissões ao vivo, sempre recriando espetáculos de sucesso, ou textos dramáticos inéditos. Sua estreia nesse meio de comunicação deu-se em 26 de novembro de 1953, no antigo Canal 5, Rádio Televisão Paulista. A série, transmitida às 21 horas nas quintas-feiras, chamou-se Grande Teatro Kibon e, segundo o noticiário, teria como diretores profissionais da cena: Ruggero Jacobbi (direção geral), Ziembinski, Luciano Salce e Ruggero (diretores ensaiadores). Continuou, com interrupções, suas apresentações na TV Record e na antiga TV Cultura. Em 1954 chegou a participar de um programa (Teatro Cacilda Becker) levado em São Paulo, Rio e Belo Horizonte, ou seja, a mesma peça, em três cidades, em três segundas-feiras seguidas. Continuou, por anos, a frequentar essa modalidade artística, tendo mesmo participado, como tantos intérpretes o fizeram no decorrer de suas carreiras (Vera Nunes, Eva Wilma, John Herbert, Jardel Filho, Walmor Chagas), de uma versão simpática, provavelmente inspirada na série inventada por Lucille Ball e Desi Arnaz (grande sucesso na TV americana) tendo por tema pequenos incidentes no desenrolar cotidiano de um casal classe média. Uma única novela (Ciúme), escrita por Talma de Oliveira para a TV Tupi, tentou colocá-la entre as grandes protagonistas. Em 1968, é contratada pela TV Bandeirantes para uma série de teleteatros, dirigidos por Walter George Durst e com cenários e figurinos de Campello Neto. Pouco depois faz também um programa de entrevistas. Estreado com a peça de Henry de Montherlant, A rainha morta, a programação continuou com grandes textos, sempre adaptados por Durst. Deles talvez ainda possam ser vistos, com alguma nostalgia e sem prejuízo da arte da atriz: Breve Encontro, de Noel Coward; e Casa de bonecas, de Henri Ibsen. Cacilda foi injusta consigo mesma ao se referir à sua primeira participação em cinema, no filme Luz dos meus olhos. Presente a uma exibição pública, fez ver ao auditório que a importância do filme se devia somente à atuação de Grande Otelo. Visto hoje, ainda que incompleto, a fita mostra-a em uma interpretação plácida, sóbria, dialogando naturalmente, sem aquela declamação comum a algumas atrizes do cinema brasileiro da época. Buscava uma naturalidade que cabia bem ao papel. Aliás, esse estilo de interpretação foi muito bem empregado em sua primeira grande atuação na montagem de Não sou eu... (influência de uma interpretação suavizada exigida em seu trabalho na Atlântida um ano antes?). A atriz só voltaria a atuar em cinema em 1953, em Floradas na serra, adaptação do romance de Dinah Silveira de Queiroz produzida pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz. As circunstâncias eram outras. Fundada, em 1949, por Franco Zampari, com o suporte financeiro de 350 acionistas, a nova companhia cinematográfica estava entre os entusiásticos empreendimentos artístico-culturais em funcionamento na capital paulista. Curiosamente Cacilda estreou na Vera Cruz dublando a diretora do orfanato em Caiçara, primeiro filme da empresa. Floradas na serra, quatro anos depois, foi realizada em plena crise da companhia, marcando, dramaticamente, o final de um sonho demasiado alto de Franco Zampari. Dirigida por Luciano Salce e contando ainda com técnicos ingleses trazidos por Alberto Cavalcanti (coube a Ray Sturgess captar belamente suas expressões mais profundas) pode-se dizer que o filme foi realizado exclusivamente para ela. A personagem Lucília aproximava-se muito de Cacilda, o que fez com que o crítico do jornal O Tempo, Luiz Carlos Pereira, não se convencesse de sua criação, achando seu trabalho bastante simplificado, uma vez que se adaptava tão bem à atriz. Não foi uma opinião unânime. Embora o filme fosse bastante criticado, a atuação de Cacilda foi plenamente exaltada. Somos obrigados a confessar, diz o crítico de O Estado de S. Paulo, que temíamos pela participação de Cacilda Becker na fita. A nossa maior atriz teatral poderia transportar para a tela a ênfase natural do palco. Isso não se deu, porém. Poder-se-á gostar ou não gostar da encarnação de Cacilda, mas temos que convir que ela realiza um estilo de interpretação do tipo emotivo que encontra, por exemplo, em Bette Davis, um dos paradigmas mais característicos –, mas mantém-se dentro dos limites do novo meio (...) sua máscara é expressiva, sem demonstrar esforço ou excessivo artifício.77 Noé Gertel, assinando a crítica da Folha da Noite, em 2 de outubro de 1954, chama-a de a grande figura do filme e de intérprete excelente, de rara sensibilidade.78 A crítica carioca é animadora: ... extraordinária a interpretação de Cacilda Becker que traduz o mais sensível e inteligente desempenho de uma atriz no cinema brasileiro desde que se fez cinema no Brasil.79 Em Tribuna da Imprensa, Ely Azeredo não discorda dos colegas: de nada adiantariam os esforços da equipe, se a fita não tivesse em Cacilda Becker, mais do que sua espinha dorsal, sua alma, sua razão de ser. Pela primeira vez, em nosso meio, vemos uma atriz que justifica e garante a integridade de um filme dramático.80 Na publicação organizada por José Umberto Dias sobre o importante crítico baiano Walter da Silveira, é reproduzida a crítica de Floradas, feita por Silveira. Dado o alto conceito em que era tido, suas palavras significam muito para o trabalho da intérprete: (...) existe nessa fita uma atriz que, com seu desempenho, apenas não se transforma numa atriz internacional porque esse filme tematicamente errado não alcança no estrangeiro o sucesso de dois outros filmes da Vera Cruz. Cacilda Becker, pela sua figura e sua dramaticidade, falando, andando, usando o rosto e as mãos numa pantomima por vezes notável, é digna de um cinema como o da Itália ou da França, é pelo menos digna de que o cinema nacional sobreviva, para continuar a ter artistas como ela.81 Apesar dos admirável, talento raro, eternidade de beleza e arte, uma das frustrações de Cacilda era a de nunca, nunca mais ter sido convidada para filmar. E chega a refletir: aquela economia de interpretação me agrada muito, porque, tendo tão poucos recursos vocais, o cinema seria uma abertura para a minha criação artística, me pedindo muito menos esforço físico.82 77 O Estado de S. Paulo, São Paulo, 10.10.1954. s.a. 78 GERTEL, Noé. Floradas na serra. Folha da Noite, São Paulo, 2.10.1954. 79 VIEIRA OTONI. Floradas na serra. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 13.12.1954. 80 AZEREDO, Ely. Floradas na serra. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 22.12.1954. 81 SILVEIRA, Walter da. Floradas na serra. Diário de Notícia, Salvador, 28.11.1954. 82 Depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, 26.12.1967. POR UM TEATRO LIvRE Seria de justiça colocar no mesmo patamar a figura de Cacilda espírito indômito, como ela própria se classificava, com a de Cacilda atriz? Em verdade, sim, pois teria sido certamente esse espírito indômito, como relembra Antonio Abujamra, que fazia com que se atirasse, sem rede, às solicitações das personagens, mesmo tendo consciência, algumas vezes, de que não conseguiria atingir o resultado desejado. Essa mesma coragem inflexível ajudou-a em momentos cruciais, ora lutando quase oito anos pela guarda do filho Luiz Carlos (Cuca), ora enfrentando dolorosamente tremendas decepções amorosas. Com sabedoria e força transmutou suas dores em matéria preciosa, revivificando suas criações. Idêntico espírito de luta alimentou sua condição de líder da classe teatral e da família (Cacilda foi a nossa âncora, disse uma vez sua irmã Dirce). Por algum tempo essa liderança entre seus pares esteve adormecida, talvez por uma preocupação justa, consigo mesma, no desenvolvimento de uma afirmação profissional. A retomada dessa posição surgiu, de maneira inesperada, em certa reunião no Teatro de Arena de São Paulo, em 1961. Exasperada com o palavreado um tanto inútil para a salvação de uma crise teatral, vai até o centro da Arena e dá a sua fala. É imediatamente eleita Presidente da recém-fundada União Paulista da Classe Teatral. Antes, esboçara essa liderança, reunindo a classe em torno da proibição, pela Censura, da montagem de Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, pela Companhia Brasileira de Comédia, de Rubens De Falco e Dália Palma, e logo a seguir, convocando a classe para uma grande passeata em apoio maciço à atriz Nydia Licia ameaçada de perder o Teatro Bela Vista. Com inteligência e bom senso foi cultivando o amor à classe teatral (expressão sagrada em seu vocabulário) até o enfrentamento das criminosas rajadas ditatoriais. Em 8 de maio de 1964, Cacilda é interrogada, no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), por um delegado e por um militar à paisana, afirmando primeiramente que nunca militou em qualquer partido ou corrente política e o teatro que pratica sempre teve por norma, objetivos artísticos: vi muitos espetáculos carentes de qualquer qualidade artística, justificados apenas por suas intenções políticas. Vi muitos jovens dizerem-se atores sem ter a menor vocação para isto; eles teriam cumprido melhor o seu objetivo se tivessem sido candidatos a qualquer chapa política numa campanha eleitoral. De qualquer modo, foi sempre com os olhos de muito amor que contemplei o trabalho alheio e que manifestei opinião, nem sempre favorável, a este gênero de teatro, pois acreditava que a própria continuidade deste movimento levaria a juventude artística honesta à constatação dos seus próprios erros, e acreditava que a intenção desses grupos era ainda a de contribuir para o engrandecimento do nosso teatro. E acrescenta: É preciso deixar que as asas cresçam para todos os lados, para que o voo possa ser bem mais alto. [Fui] ao DOPS para pedir à Polícia Política que não corte as asas de uma gente moça, e outros menos moços que começam a voar (...) [Fui] ao DOPS para explicar meus irmãos.83 Em fevereiro de 1968, em luta contra a censura, na companhia de vários artistas, concentrada nas escadarias do Teatro Municipal declara à TV Tupi: (...) estaremos aguardando ansiosamente as medidas que o sr. ministro Gama e Silva prometeu tomar em favor da intelectualidade e da cultura brasileira. Estamos confiantes na sua promessa. Ele nos disse, e nos afirmou, que o teatro a partir deste momento é livre. E Cacilda frisa seu ponto de vista: É preciso, entretanto, que o público saiba que todos os artistas e intelectuais do Brasil consideram esta liberdade, uma liberdade em favor do progresso e do desenvolvimento da cultura nacional. Hélio Eichbauer, na época um jovem cenógrafo, ligado ao grupo Oficina, chamou-a de brava Joana D’Arc paulista, lutando contra um exército inimigo, evitando o aniquilamento de nossos ideais comuns. Augusto Boal, em sua autobiografia, recorda-a com saudade: Cacilda! Impossível esquecer sua figura frágil, voz trêmula, palavras claras: desobediência civil. Cacilda proclamou? Obedeçamos Cacilda!84 A desobediência civil referida por Boal foi proposta e exigida por toda uma classe e lida pela sua fiel representante e presidente da Comissão Estadual de Teatro na estreia da 1a Feira Paulista de Opinião, reunião de textos escrita pelos autores: Lauro César Muniz, Bráulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Augusto Boal e Plínio Marcos respondendo a questão, mesmo em forma indireta: Que pensa você? Onde estamos? Onde queremos ir? Das 80 páginas enviadas aos censores 65 foram censuradas. As 15 restantes ostentavam o carimbo: LIBERADA. Eis o texto, lido por Cacilda, tendo ao seu lado atores, diretores, empresários, cantores, músicos: 83 BECKER, Cacilda. Cacilda Becker depõe. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24.5.1964. 84 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, p. 261, 2000. A representação na íntegra da 1a Feira Paulista de Opinião é um ato de rebeldia e de desobediência civil. Trata-se de um protesto definitivo dos homens de teatro contra a censura de Brasília, que fez 71 (sic) cortes nas seis peças. Não aceitamos mais a Censura centralizada, que tolhe nossas ações e impede nosso trabalho. Conclamamos o povo a defender a liberdade de expressão artística e queremos que sejam de imediato postas em prática as novas determinações do Grupo de Trabalho nomeado pelo Ministro Gama e Silva para rever a legislação da Censura. Não aceitamos mais o aditamento governamental, arcaremos com a responsabilidade desse ato, que é legítimo e honroso. O espetáculo vai começar. Boal ainda acrescenta: (...) só nos faltava fazer a reforma agrária e decretar a moratória da dívida externa. Bastaria que a Cacilda quisesse, ela que decretara a desobediência civil, qual Gandhi redivivo...85 Na verdade a atriz tornou-se a defensora de uma classe. Não que não tivesse medo algumas vezes, apelando em situações agônicas para Nydia Licia e Fernanda Montenegro. No entanto, seu fracasso, não conseguindo dissuadir a classe teatral a não devolver os Sacis, abalou-a fortemente. Mais do que ninguém sabia quanto o jornal O Estado de S. Paulo prestigiava o teatro. Nele estavam Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, que muito mais do que críticos poderiam ser considerados homens de teatro, pela atenção e amor que demonstravam pelas realizações teatrais, sempre prontos a toda espécie de auxílio à classe, quando solicitados. A própria direção do jornal seguia uma tradição familiar de prestigiar o teatro. Era necessário que isso fosse lembrado. Ingênua, exigia gratidão, quando o ato era um mero gesto político, talvez sem repercussão alguma, mas comandado por algum jovem irado, mais inescrupuloso do que idealista. De qualquer forma, achava, como atriz, que essa atitude prejudicaria a luta que vinham mantendo contra a censura. Vencida, não lhe agradava, em contrapartida, que sua ideia parecesse uma traição à categoria. Afirmando até o final sua posição contrária, assim mesmo colocou seu prêmio à disposição, solicitando mesmo, a alguns indecisos, que o fizessem, a fim de não dividirem a classe, naquele momento, mais do que nunca, necessitando de união. Cacilda Becker assumiu a presidência da Comissão Estadual de Teatro (Conselho Estadual de Cultura), da Secretaria da Cultura, Esportes e Turismo, em 4 de março em pleno tumulto que foi 1968. Nada fácil, portanto, ser uma espécie de ponte entre as artes cênicas e o governo. Abandona o teatro, assume a sua categoria. Fez o que pôde, dentro de severos critérios de justiça, mas seu grande mérito foi ter conseguido quadruplicar a dotação orçamentária, tal seu prestígio e consideração por parte das autoridades. Em atos de sinceridade, soube tanto ser fiel às chefias que a reconheciam como tutora de uma classe quanto ao seu pequeno exército de colegas, em sua maioria, tantas vezes emotivos e inseguros. E assim viveu Cacilda, em breves momentos de alegria fora do palco, entre sua mãe e irmãs, junto ao marido Walmor Chagas, os filhos Cuca e Maria Clara (tenho a certeza que meus filhos serão minha única alegria e amparo na velhice), sempre assistida por Lindaura Hermínia da Silva, a fiel Dadá. Um simpático bóxer, Fió, acompanhava a família. Após a morte da atriz saiu um dia à procura de sua dona e nunca mais voltou... Miroel Silveira ainda se lembrava: Éramos poucos naquela noite de 12 de abril de 1941, no Teatro Ginástico, assistindo à Altitude 3200, de Julien Luchaire, traduzida por mim, para o Teatro do Estudante. Avistei Gustavo Dória e Raul Roulien.86 Feliz, ou infelizmente, em tão poucas horas, cunhava-se uma vida. 85 BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, p. 262, 2000. 86 SILVEIRA, Miroel. Vinte anos de Cacilda. Correio Paulistano. Suplemento. São Paulo, 25.1.1959. PRECISO vER TUDO: úLTIMA ENTREvISTA DE CACILDA BECKER CONCEDIDA à DAISy fONSECA A última entrevista concedida por Cacilda Becker foi feita pela radialista e jornalista Daisy Fonseca, sua antiga colega nas rádios Tupi e Bandeirantes. Cacilda pediu-lhe as perguntas e comprometeu-se a respondê-las, por escrito, nos intervalos de Esperando Godot. Com o título de Eu preciso ver tudo, foi publicada no Shopping City-News nos primeiros dias de maio de 1969. Reproduzimos, incluindo a introdução de Daisy, que não deixa de trazer um retrato muito verdadeiro de Cacilda Becker, nos anos 1940 e também o testemunho de uma fiel amizade. “Conheci-a há muitos anos, no começo de minha carreira. Ela era moça, bonita, com traços bem definidos e um sorriso que se abria espontaneamente para quem ela admirava e queria bem. Não aquele sorriso puxado por um cordel que muitas pessoas afivelam o rosto para todo instante e pensam que com ele escondem o que vai dentro da alma, mas aquele sorriso natural de quem não precisa agradar para ser alguém, mas de quem é alguém naturalmente. Nasceu com essa qualidade de personalidade marcante e projeta essa personalidade e a desdobra pelo passar da vida. Estou falando do sorriso de Cacilda porque foi o primeiro traço marcante que notei nela, aquela maravilhosa arma de comunicação e que ela manejava tão bem. Com sua figura sempre altiva, cabeça levantada, passos rápidos, ela andava pelos corredores da Rádio Tupi, lá no Sumaré, quando ainda não era Cacilda, cujos ingressos para os espetáculos eram disputados e era chique ir ao acolhedor Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Cacilda era autêntica. Conversava com quem ela admirava. Para quem não gostava, apenas um alô muito seu, com aquela voz personalíssima. Era já naquele tempo uma mulher de fibra com uma determinada vontade de fazer de sua carreira, já ao meio, uma grande carreira. Não de grandes espetáculos, mas de grandes lutas pelo teatro, que ela amava acima de tudo. Foi essa Cacilda que eu conheci de 1943 a 1947. À frente de um microfone, emprestando toda a sua arte às novelas, às peças, aos shows, aos espetáculos de rádio, montados no palco do auditório da Rádio Tupi, ou com a Campanha do Expedicionário Brasileiro. Num deles, lembro-me bem, Cacilda representava a figura da Estátua da Liberdade. Tivemos que fazer nós mesmas, à mão e, às pressas, com metros e metros de gaze branca comprada numa lojinha da Consolação, a veste da Liberdade. Havia uma marcha musical ao fundo. Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra, sem que volte para lá; sem que eu leve por divisa esse V que simboliza a vitória que virá... E ficou pronta em três tempos a roupa da Liberdade que Cacilda vestiu à noite, num espetáculo de gala. Ela era incansável e extraordinária, sempre com um incentivo para quem era realmente profissional, uma solução inteligente, uma decisão no momento exato. Essa foi a Cacilda que eu conheci, quando ainda era quase garota e a vida sorria para nós. Anos depois, novamente juntas na Rádio Bandeirantes, na Líbero Badaró, estava eufórica, finalmente ia viver a grande aventura do teatro de verdade. No tempo, ela estava presa a um contrato da Rádio Bandeirantes que a impedia de tomar parte em qualquer outro espetáculo e com um ar quase infantil, lembro-me quando entrou certa tarde na sala, para pedir emocionada e com marcas de cansaço no rosto, para que Rebello Junior, então diretor-presidente da Bandeirantes, consentisse que ela participasse dos espetáculos do TBC, quebrando a cláusula do contrato. E como ela não perdia uma parada, a cláusula foi quebrada pelo senhor diretor, meu marido. E lá foi Cacilda para sua grande estreia, repetindo seus sucessos por anos e anos no TBC e por este Brasil afora, esbanjando arte por onde passava, emocionando plateias, vivendo mil vidas diferentes, amando, sonhando, sofrendo, morrendo... Sempre que podíamos, lá estávamos nós, meu marido e eu, aplaudindo nossa amiga Cacilda a quem estávamos ligados por uma amizade toda especial. Entretanto, criatura sensível que sou, fiquei preocupada com sua última peça Isso devia ser proibido e especialmente a cena em que ela e Walmor Chagas trocavam de roupa em cena e ao mesmo tempo um diálogo tremendamente implacável, humano e verdadeiro se travava entre eles. Era muito mais que uma cena de uma peça num palco. Para mim, Cacilda, a nossa amiga Cacilda, já estava começando a morrer ali, doente da alma. Saí maravilhada com sua performance na peça, mas triste, com uma impressão profunda que permaneceu em mim alguns dias, e sempre que me lembrava de Isso devia ser proibido sentia algo esquisito que não sabia definir. Depois, Cacilda viajou e lá veio ela com novas esperanças e com o Esperando Godot, elogiado pelos críticos. Infelizmente não pude ver o espetáculo por uma série de motivos, mas, de tanto ler notícias aqui e ali sobre ele, procurei Cacilda para uma minientrevista para minha página De Mulher para Mulher, no Shopping City-News. Cacilda, sempre correndo, estava de saída para um compromisso e, depois de uma prosinha rápida, deixei em suas mãos uma lista de perguntas e logo à noite chegaram suas respostas, em tinta verde, naquela sua letra grandona e firme de quem sabe o que quer e dominou a vida e as coisas. Quarta-feira de manhã, quando ia preparar o material de minha página para mandar para a redação, abrindo o jornal deparei com a notícia terrível: Cacilda havia tido um derrame em pleno palco. Sobre a minha mesa de trabalho, folhas brancas com letras verdes guardavam a mais recente mensagem de Cacilda. É esta mensagem que vai aqui: ESPERANDO GODOT É UMA COMÉDIA OU UMA TRAGÉDIA? Godot é uma tragicomédia. Em meio a risos, Beckett saca a tragédia da vida humana. COMO A PEçA TEM SIDO RECEBIDA PELO GRANDE PúBLICO? Excepcionalmente bem! Não são todos que estão aptos para tudo que a peça propõe e para todas as suas indagações; entretanto, o texto e o espetáculo dirigido por Flávio (Rangel) são tão sólidos, que se impõem. E PELA GENTE JOVEM? São os jovens, enfim, que mais aptidões têm para esse teatro vanguardista, onde Godot é um clássico. DEPOIS DE ESPERANDO GODOT O QUE VOCê VAI ENCENAR? Ainda não sei. Escolher um texto é sempre uma terrível dificuldade. Posso, entretanto, assegurar que, mais uma vez, tentaremos uma experiência. E A TELEVISãO? Também não sei. Gostaria de participar mais assiduamente, mas ainda não consegui esse milagre de atuar na TV e no teatro ao mesmo tempo, sem danos para a saúde. QUAIS OS PLANOS PARA O FUTURO? Trabalhar, educar meus filhos, viajar... Eu preciso ver as coisas, ver o mundo! Ver gente! Ver tudo! Junto com as respostas, um bilhete carinhoso: Daisy querida. Quando você e Rebello quiserem assistir à Godot basta ir ao teatro e lá na bilheteria me mandar um recado que estão lá os seus lugares separados. Ou, então, telefone-me avisando. É uma grande peça. Convide a Hebe também. Fale com ela. Beijo-te com carinho. Tua Cacilda Isso devia ser uma minientrevista nesta página De Mulher para Mulher, mas pelo que aconteceu não pôde entrar no Shopping City-News apenas como um flagrante da carreira de uma artista. Eu precisava falar mais dela, falar dessa mulher maravilhosa, extraordinária, chamada Cacilda Becker, e que é minha amiga. Essa artista fabulosa, que no auge de sua carreira, na simplicidade dos grandes, queria as coisas simples da vida, trabalhar, educar os filhos, ver coisas, ver o mundo, ver tudo!” CRONOLOGIA TEATRO | CINEMA | RáDIO | TELEvISÃO TEATRO DO ESTUDANTE DO BRASIL 1941 3200 metros de altitude, de Julien Luchaire. Ensaiadora: Esther Leão. Dias felizes, de Claude-André Puget. Ensaiadora: Esther Leão RAUL ROULIEN E SUA COMPANHIA DE COMÉDIA 1941 Prometo ser infiel, de Dario Niccodemi. Diretor de cena: Sadi Cabral O patinho de ouro, de Alberto de Castro. Diretor de cena: Sadi Cabral Garçon, de Alfred Savoir. Diretor de cena: Sadi Cabral Trio em lá menor, de R. Magalhães Júnior. Diretor de cena: Sadi Cabral Alguns abaixo de zero, de Machado de Oliveira. Diretor de cena: Sadi Cabral Coração, de Raul Roulien. Direção de cena: Sadi Cabral Diana, eu te amo!, de Alberto de Castro. Direção de cena: Sadi Cabral 1942 Na pele do lobo, de Arniches e Estremera. Direção de cena: Sadi Cabral ESPETÁCULO úNICO (Santos) c. 1942 Dias felizes, de Claude-André Puget. Direção: Cacilda Becker e Miroel Silveira GRUPO UNIVERSITÁRIO DE TEATRO 1943 Auto da barca do inferno, de Gil Vicente. Direção: Décio de Almeida Prado Os irmãos das almas, de Martins Pena. Direção: Décio de Almeida Prado Pequenos serviços em casa de casal, de Mário Neme. Direção: Décio de Almeida Prado COMPANHIA DE COMÉDIAS BIBI FERREIRA 1944-1945 É proibido suicidar-se na primavera, de Alejandro Casona. Direção: Jorge Diniz Que fim de semana!, de Noel Coward. Direção: Carlos Lage e Jorge Diniz Pedacinho de gente, de Dario Niccodemi. Direção: Jorge Diniz A moreninha, de Joaquim de Macedo, adaptada por Miroel Silveira. Direção: Miroel Silveira. A culpa é de você, de G. Giacoeche e R. Cardone. Direção: Carlos Lage e Jorge Diniz GRUPO UNIVERSITÁRIO DE TEATRO 1945 Farsa de Inês Pereira e do escudeiro, de Gil Vicente, adaptada por Décio de Almeida Prado. Direção: Décio de Almeida Prado 1946 IIº. ANIVERSÁRIO DO TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO Othello, de William Shakespeare (cena II, ato V). Direção: Abdias do Nascimento OS V COMEDIANTES 1947 Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. Direção: Ziembinski Era uma vez um preso, de Jean Anouilh. Direção: Ziembinski Desejo, de Eugene O’Neill. Direção: Ziembinski OS COMEDIANTES ASSOCIADOS 1947 Terras do sem-fim, de Jorge Amado, adaptado por Graça Mello. Direção: Zygmunt Turkow Não sou eu... , de Edgard da Rocha Miranda. Direção: Ziembinski TEATRO DO ESTUDANTE DO BRASIL 1948 Hamlet, de William Shakespeare. Direção: Hoffmann Harnisch GRUPO DE TEATRO EXPERIMENTAL 1948 A mulher do próximo, de Abílio Pereira de Almeida. Direção: Abílio Pereira de Almeida GRUPO UNIVERSITÁRIO DE TEATRO O baile dos ladrões, de Jean Anouilh. Direção: Décio de Almeida Prado, com a colaboração de R. Rognoni GRUPO DE ARTE DRAMÁTICA 1949 Ingenuidade, de J. Van Druten. Direção: Madalena Nicol GRUPO DE ARTE DRAMÁTICA – SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMÉDIA 1949 Nick-bar... álcool, brinquedos, ambições, de William Saroyan. Direção: Adolfo Celi Arsênico e alfazema, de Joseph Kesselring. Direção: Adolfo Celi TEATRO BRASILEIRO DE COMÉDIA 1950 Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre / Um pedido de casamento, de Anton Tchekhov. Direção: Adolfo Celi Os filhos de Eduardo, de Marc-Gilbert Sauvajon. Direção: Cacilda Becker e Ruggero Jacobbi A ronda dos malandros, de John Gay. Direção: Ruggero Jacobbi A importância de ser prudente, de Oscar Wilde. Direção: Luciano Salce O anjo de pedra, de Tennessee Williams. Direção: Luciano Salce Pega-fogo, de Jules Renard. Direção: Ziembinski 1951 Paiol velho, de Abílio Pereira de Almeida. Direção: Ziembinski Seis personagens à procura de um autor, de Luigi Pirandello. Direção: Adolfo Celi A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho. Direção: Luciano Salce 1952 Inimigos íntimos, de Pierre Barillet e J. P. Grédy. Direção: Luciano Salce Antígone, de Sófocles/Antígone, de Jean Anouilh. Direção: Adolfo Celi 1953 Divórcio para três, de Victorien Sardou. Direção: Ziembinski 1954 Leito nupcial, de Jan de Hartog. Direção: Luciano Salce 1955 Maria Stuart, de Friedrich Schiller. Direção: Ziembinski 1956 Gata em teto de zinco quente, de Tennessee Williams. Direção: Maurice Vaneau 1957 Adorável Julia, de Marc-Gilbert Sauvajon, baseada em Theatre, de Somerset Maugham e Guy Bolton. Direção: Ziembinski PRODUçãO RAUL GUASTINI 1954 A filha de Iório, de Gabriele D’Annunzio. Direção: Ruggero Jacobbi TEATRO CACILDA BECKER 1958 O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Direção: Ziembinski Jornada de um longo dia para dentro da noite, de Eugene O’Neill. Direção: Ziembinski Maria Stuart, de Friedrich Schiller. Direção: Ziembinski Santa Martha Fabril S/A, de Abílio Pereira de Almeida. Direção: Ziembinski 1959 Os perigos da pureza, de Hugh Mills. Direção: Ziembinski A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho. Direção: Benedito Corsi Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Direção: Cacilda Becker 1960 Virtude e circunstâncias, de Clô Prado. Direção: Jean-Luc Descaves ...em moeda corrente do país, de Abílio Pereira de Almeida. Direção: Walmor Chagas 1961 Raízes, de Arnold Wesker. Direção: Antonio Abujamra Oscar, de Claude Magnier. Direção: Cacilda Becker 1962 A terceira pessoa do singular..., de Andrew Rosenthal. Direção: Walmor Chagas A visita da velha senhora, de Friedrich Dürrenmatt. Direção: Walmor Chagas 1963 César e Cleópatra, de Bernard Shaw. Direção: Ziembinski 1964 A noite do iguana, de Tennessee Williams. Direção: Walmor Chagas 1966 O homem e a mulher. Roteiro: Walmor Chagas. Direção: Walmor Chagas 1967 Isso devia ser proibido, de Bráulio Pedroso e Walmor Chagas. Direção: Gianni Ratto 1969 Esperando Godot, de Samuel Beckett. Direção: Flávio Rangel PRODUçãO NELSON SEABRA 1964 O preço de um homem, de Steve Passeur. Direção: Maurice Vaneau MAURICE VANEAU PRODUçÕES ARTÍSTICAS 1965 Quem tem medo de Virgínia Woolf?, de Edward Albee. Direção: Maurice Vaneau CINEMA ATLÂNTIDA EMPRESA CINEMATOGRÁFICA DO BRASIL S/A 1947 Luz dos meus olhos. Argumento: Alinor Azevedo. Direção: José Carlos Burle COMPANHIA CINEMATOGRÁFICA VERA CRUZ 1954 Floradas na serra. Adaptação do romance homônimo de Dinah Silveira de Queiroz. Roteiro: Fábio Carpi e Maurício Vasquez. Direção: Luciano Salce RÁDIO RÁDIO CLUBE DE SANTOS c. 1939 Apresentações esporádicas RÁDIO TUPI – EMISSORAS UNIDAS 1943 Radioatriz RÁDIO AMÉRICA 1945 Redatora, locutora, radioatriz RÁDIO NACIONAL, RJ 1946 Redatora RÁDIO BANDEIRANTES 1948 Radioatriz TELEVISÃO RÁDIO TELEVISãO PAULISTA 1953 Grande Teatro Kibon 1954 Teatro Cacilda Becker (realizado, ao vivo, em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) TV RECORD 1955 Grande Teatro Royal TV RIO 1956 Teatro Cacilda Becker TV RECORD 1958 Teatro Cacilda Becker (o programa lança o concurso À procura de um teleautor) ANTIGA TV CULTURA 1961 Grande Teatro Canal 2 TV BANDEIRANTES 1968 Grande Teatro Cacilda Becker Entrevistas com Cacilda Becker NOVELA TV TUPI 1967 Ciúme. Autor: Talma de Oliveira CRéDITOS DAS IMAGENS Acervo Cedoc-Funarte | Foto Carlos 49, 52 Acervo Cinemateca Brasileira 130 (inferior direita), 132 Acervo Clara Becker 34, 37 Acervo Coleção Arquivo Multimeios | Centro Cultural São Paulo | SMC | PMSP | Foto Derly Marques 140 (inferior) Acervo Coleção Arquivo Multimeios | Centro Cultural São Paulo | SMC | PMSP | Foto Fredi Kleemann 7 (capa), 11, 15, 63, 64, 65, 66, 68, 69 (4ª capa), 70, 72, 84, 85, 86 (superior esquerda e inferiores), 87, 88, 89, 99, 100, 101, 106, 107, 110, 111, 113, 114, 121, 127, 131, 136, 137 Acervo Daisy Fonseca 148 Acervo Família Becker 24, 30 Acervo Família Becker | Foto Centenário 24 (inferior direita) Acervo Família Becker | Foto Fredi Kleemann 25, 46, 139 (superior) Acervo Família Becker | Foto Marcos Jourdan 58, 59 Acervo Família Becker | Foto Paulo Becker 24 (superior direita) Acervo Folhapress 90 Acervo Instituto Moreira Salles | Foto José Medeiros 51, 53 Acervo Luiz Carlos Becker Fleury Martins | Foto Photos Max Ottoni Press 139 (inferior) Acervo Maria Thereza Vargas 18, 31, 44, 56, 83, 95, 128 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Amâncio Chiodi 129, 130 (superior e inferior esquerda) Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Boris Kauffmann 9, 26, 27, 28, 29, 33 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Fredi Kleemann 54, 86 (superior direita), 138 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto José de Queiroz Mattoso 102 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Gondin 5 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Maureen Bisilliat 122, 124 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Paulo Becker 20, 23 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Rachel Schein 98 Acervo Maria Thereza Vargas | Foto Sylvia Maria Masini 144 Acervo UH/Folhapress 140 (superior) Acervo UH/Folhapress | Foto Ruy Costa 19 AGRADECIMENTOS Arquivo Multimeios / Dadoc / Centro Cultural São Paulo / SMC / PMSP Cinemateca Brasileira Funarte / Centro de Documentação e Informação em Arte Instituto Moreira Salles Jornal O Estado de S.Paulo Clara Becker Chagas Daisy Fonseca David José Djalma Limongi Batista Edmundo Leite Edney A. de Brito Família Kauffmann Fernanda Freixo Brancato Jefferson Del Rios Joyce T. 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Série Teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-401-0053-4 1. Teatro – Brasil – História e crítica 2. Teatro – Produtores e diretores - Biografia 3. Becker, Cacilda, 1921 I. Ewald Filho, Rubens II. Título. III. Série. CDD 792.0981 Índice para catálogo sistemático: 1. Teatro brasileiro: História e crítica 792.098 1 Proibida a reprodução total ou parcial sem a autorização prévia do organizador e dos editores Direitos reservados e protegidos (lei no 9.610, de 19.02.1998) Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (lei no 10.994, de 14.12.2004) Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009 Impresso no Brasil 2013 Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo Rua da Mooca, 1.921 Mooca 03103-902 Sao Paulo SP Brasil sac 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br livros@imprensaoficial.com.br www.imprensaoficial.com.br GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Geraldo Alckmin Secretário-Chefe da Casa Civil Edson Aparecido Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Marcos Antonio Monteiro Formato 21 x 26cm Tipologia Chalet Comprime e Univers Papel capa triplex 250g/m2 Papel miolo couché fosco 150g/m2 Número de páginas 160