Inácio Araujo Cinema de Boca em Boca Inácio Araujo Cinema de Boca em Boca Organização e Pesquisa: Juliano Tosi Imprensa Oficial São Paulo, 2010 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Alberto Goldman Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo culturalparaesse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo A Crítica Vista pelo Crítico A entrevista a seguir foi realizada em julho de 1997 por Mário Vitor Santos, então ombudsman da Folha de S. Paulo. À época, foram colhidos depoimentos de diversos outros críticos do jornal (não apenas de cinema), numa enquete sobre a atividade e os rumos da crítica de arte que se estendeu por duas das colunas dominicais de Mário Vitor – nas quais alguns fragmentos dos depoimentos foram citados. A íntegra desta entrevista foi publicada pela primeira vez nas páginas da revista IDE, editada pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. É esta a versão que reproduzimos abaixo. * Para quem você escreve? Eu tento não pensar nisso, ou pelo menos não fazer disso um problema. Num jornal com a penetração que tem a Folha, não há um público, há leitores. Existem as pessoas que procuram apenas um guia de consumo, isto é, a indicação de uma autoridade sobre se um filme é bom ou mau. Para essas, o critério de estrelas, ou de carinhas, serve como baliza. Mas a crítica propriamente dita é endereçada sobretudo ao leitor que procura um diálogo mais detido com o filme. É claro que toda pessoa pode estar em uma ou outra categoria, conforme a hora. Agora, há pouco tempo, numa entrevista a Veja, Décio de Almeida Prado falava da diferença entre o público de teatro dos anos 1950/1960 e o de agora. Ele diz que, naquele tempo, as pessoas viam uma peça de teatro e depois aquilo era motivo para conversa e reflexão, durante dias. Com o cinema não é tão diferente. O que se vê mais recentemente é a substituição de uma arte que nasceu popular por uma atividade de massa. É o que se pode chamar de cultura do blockbuster: a pessoa quer um filme agitado, com explosões, correria. Até aí, tudo bem. Não é por ter isso que um filme deixa de ter importância. Mas o que se está sedimentando, que me parece muito perigoso, é a ideia de que cinema é movimento. Muito bem. Estou até de acordo. Mas o que é movimento? Não é agitação. De algum modo, espero escrever para quem ainda se dispõe a fazer uma distinção entre essas coisas. Quais os seus objetivos? Eu penso que hoje existe um paradoxo: nós vivemos em um mundo povoado por imagens. Existe até a imagem como metáfora: a imagem de fulano, a imagem de um partido político. Hoje, a alfabetização para a imagem começa muito antes do que para as letras. Com alguns meses, a criança já vê filmes, já assiste comerciais de TV. Mas não existe nenhuma iniciativa pedagógica, ao menos que eu conheça, no sentido de difundir e sistematizar os conhecimentos sobre imagem. Então, nós somos indefesos diante da imagem. Por exemplo, sabe-se que os políticos usam técnicas para criar uma imagem, para se mostrar confiáveis. Como essas técnicas – que têm origem no cinema – são desconhecidas, nós não as apreendemos como técnicas. E nem apreendemos os políticos como imagens. Vamos imaginar, por exemplo, o ministro Paulo Renato. Quando ele cria o provão, está também criando uma imagem de si mesmo como administrador da educação, como alguém que zela pelos alunos, etc. Isso acontece quer ele queira, quer não. Agora, seria interessante que os alunos pudessem ter acesso a conhecimentos que os levassem a decifrar como se dá essa construção da imagem dos políticos. Como os secretários e ministros de Educação são políticos, é improvável que um dia a imagem venha a fazer parte do currículo. Mas então eu pergunto: para que tantas TVs e computadores nas escolas, se o instrumental para utilizá-los criticamente não existe? Essa é a questão crítica. A crítica não é dizer se tal filme é bom ou ruim, é uma tentativa de compreender o mundo. Você acha que tem algum poder? Qual? Há algum tempo, uma menina escreveu uma carta ao Painel do Leitor da Folha. Ela dizia mais ou menos o seguinte: todos os filmes de que eu e meus amigos gostamos, a Folha não gosta. Vocês não acham que, quando os filmes forem feitos para crianças, deveriam ser criticados por crianças? Eu acho que essa carta deveria merecer a maior reflexão. Existe uma desmoralização da crítica, é evidente, porque quando uma menina de 10 ou 11 anos acha que pode estabelecer uma escala de valores sobre uma arte, é que algo está muito errado. Essa menina viu Chaplin, viu Buster Keaton, viu os Irmãos Marx, viu Jerry Lewis? Não. Ela só pode ver esse lixo industrial, que é quase tudo que os cinemas passam. Quer dizer, os canais (de TV inclusive) são muito estreitos. Seja como for, quando a menina diz isso, deve ser escutada: não só coloca a crítica em crise, como nos lembra que a formação do espírito crítico – em matéria de imagem – pode ser desenvolvida desde muito cedo. E não é. Agora mesmo, está aí a exposição Monet. Alguma criança vai chegar e dizer: Olha, eu acho esse pintor uma bobagem? Não. Para o cinema, isso é muito bom, porque indica que não há uma ordem eterna, já constituída e assimilada. Mas é ruim pelo mesmo motivo, porque essa pessoa acha que o entendimento da imagem é imediato, não tem mediação alguma. Ora, a imagem não é óbvia. Existe um campo no qual isso acontece de maneira saudável, que é a MPB. É um assunto que qualquer brasileiro sabe discutir com pertinência. Você pode divergir sobre o presente. Mas ninguém precisa dizer que Noel Rosa ou Cartola, ou tantos outros, são auto-res preciosos: todo mundo sabe, desde a infância. Em outros setores, não. O professor vai te ensinar que Guimarães Rosa é bom. E você vai engolir aquilo, goste ou não, porque senão não passa de ano. Também não é uma situação perfeita. Penso que poderia haver um meio-termo entre os critérios estabelecidos e a rediscussão das coisas, que é a experiência de cada um em relação a ela. Ninguém tem obrigação de ler Guimarães Rosa, acho até difícil gostar. Mas, se não forçar um pouco, você se entrega à preguiça e não lê o livro nunca. Agora, há outra maneira de responder à pergunta: a palavra impressa tem uma força, uma violência de que a gente tende a não se dar conta. É óbvio que se você escreve sobre um filme infantil tomando Dreyer ou Eisenstein como paradigma, é sinal de que está um tanto perdido. Há temas, como a sexualidade, vitais para quem está na adolescência. Dizer que tal comédia é ruim só porque é erótica me parece uma atitude tão acrítica quanto o inverso, quer dizer, aceitar qualquer coisa só porque visa a esse mercado. Os adolescentes são adolescentes, não são imbecis. Para resumir: quer queira, quer não, você tem um certo poder. O problema é que você não controla esse poder, porque a rigor ele diz respeito ao jornal, à crítica como instituição, não a tal ou tal fulano. Em compensação, você tem uma responsabilidade que, essa sim, é pessoal. Esse poder exerce-se em relação aos pequenos filmes, que saem com uma ou duas cópias. O que o jornal diz ou deixa de dizer sobre um filme do Spielberg, por exemplo, não faz a menor diferença. Para quem escreve a quente, de uma hora para outra, é lógico que é mais confortável falar sobre filmes que estão fora do seu alcance. Quando você fala de um pequeno filme, sempre pensa que pode estar interferindo na recepção do público ao filme, o que é muito ruim. Você acha que o crítico tem obrigação de achar alguma coisa, alguma falta a registrar? Quando eu comecei a trabalhar em cinema, eu era assistente de um diretor chamado Ozualdo Candeias. E, certo dia, eu disse a ele que uma cena ficaria melhor se ele a fizesse de tal jeito, e não como ele fez. E o Candeias, que é um cara de poucas palavras, virou e disse: Falar é fácil, fazer é difícil. É uma coisa de que eu não esqueci, porque a rigor quer dizer o seguinte: quando você vê um filme, sua obrigação é tentar – pelo menos tentar – entender o que vê, e não ficar imaginando o que você faria se estivesse no lugar do cara que filmou aquilo. Em suma, a questão não é achar defeitos. Agora, por minha formação – eu fui montador de cinema –, sou tentado a encontrá-los. Sempre pensava que o montador era o primeiro crítico do filme, o sujeito que está lá para achar defeitos e suprimi-los. Então, defeitos existem. Tento não tratá-los de maneira mesquinha. Por outro lado, essa pergunta traz implícita uma outra: o que é a crítica? Há duas definições de que eu gosto muito. Uma é a de Jean Douchet. Ele diz que a crítica é a arte de amar. E o que significa isso? Nós vemos um filme, gostamos dele, tentamos explicá-lo, defendê-lo. E claro que não se ama indiscriminadamente – nem no cinema, nem na vida –, então você não pode gostar de tudo. Para gostar de certo filmes, é preciso que outros não despertem teu interesse, não te mobilizem, às vezes por razões estéticas, outras por motivos pessoais. Mas, como disse há pouco Rodrigo Naves, um crítico só se afirma pelo que defende, nunca pelo que nega. Negar faz parte do trabalho, mas não é o essencial. A segunda definição é de Roland Barthes. Ele diz que criticar quer dizer pôr em crise. Isto é, nosso trabalho é, de certa forma, desmontar a ordem estabelecida. É claro que Barthes, ou Truffaut, faziam isso e eu talvez não consiga fazer. Mas vale a pena tentar. Caso contrário, você fica sendo pombo-correio da indústria de cinema, fica dizendo o que eles querem que seja dito. Você se arrepende de alguma crítica que fez? Qual? Arrepender é uma palavra forte. Significa que eu coloquei motivos pessoais à frente dos estéticos, que quis fazer mal a alguém. Isso eu nunca fiz. Mas às vezes eu revejo tal ou tal filme, tempos depois, e percebo que o que eu disse estava errado. Às vezes, nem preciso rever o filme. Converso com um amigo, ele me aponta coisas que não notei e muda a minha opinião. Mas a questão principal não é essa. Se sua crítica tem valor de uso – tenta ser reflexiva, inserir o filme numa história, numa tradição, etc. – a questão do arrependimento não existe. Agora, se ela tem meramente um valor de troca – aconselha o público a ver ou não tal filme –, se tenta interferir no mercado, talvez haja razão para arrependimento. Pega uma filme como Antes da Chuva, por exemplo, que muita gente acha ótimo. Eu acho uma bomba, uma mercantilização vil da guerra, portanto tenho de dizer isso. Mas por que dizer não veja? Se a pessoa não vê muitas coisas diferentes, discrepantes, nunca chegará a formar sua própria opinião. O ideal é que as pessoas façam sua experiência da coisa. Quando isso acontecer, e se acontecer, a crítica deixará de ser confundida com juiz de futebol, o cara que apita falta, diz se foi gol ou não. E essa é a parte chata da coisa. Há que se acrescentar uma coisa. No Brasil, existem duas distorções. Uma delas, a que você se referiu, é a tendência a confundir crítica com prepotência. O fato de você dispor de espaço num veículo de grande circulação leva o sujeito a se achar meio demiurgo, a pensar que pode pôr e dispor, a determinar o sucesso ou não de um objeto artístico qualquer, o que é um desvio demiúrgico idiota. A História é que vai dizer se você estava certo ou não, se tal filme permanecerá ou não. Existem grandes críticos, como André Bazin, por exemplo, do qual deriva praticamente todo o pensamento cinematográfico moderno. Mas os autores que Bazin defendia – William Wyler, por exemplo – se mostraram bem menos duradouros do que outros de que ele desconfiava, como Hitchcock ou Howard Hawks. Então, os juízos imediatos de Bazin não foram os melhores, mas suas ideias é que levaram outros a juízos que se mostraram corretos. Então, esse terreno é muito difícil. A crítica não é ciência. É mais fácil compará-la a um jogo de futebol. Você faz jogadas, elas às vezes dão certo, às vezes, não. A segunda distorção, mais séria, é uma certa cultura do não me toques, que existe aqui. Essa história de o artista se julgar um demiurgo, um profeta, alguém necessariamente acima da crítica. No ano passado, o Jorge Coli publicou no Mais! uma crítica sobre um espetáculo do Oficina que me pareceu muito justa. Justa ou injusta, não importa. Na semana seguinte, o Zé Celso escreveu um artigo de umas duas ou três páginas, completamente vazio, para desqualificar a crítica. Eu digo para desqualificar. Não para defender o que fez, o que seria justo. Eu também acho, como Jorge Coli, que Zé Celso hoje é uma sombra do que foi no passado, mas isso é outro assunto. Eu acho muito justo um artista defender e explicar o seu trabalho. Às vezes você não compreendeu mesmo o que o cara quis fazer. Agora, essa história de achar que o artista é uma figura meio sagrada, essa espécie de neorromantismo tecnológico, fica um pouco ridículo, isso. Não há diferença, a rigor, entre crítica e criação na modernidade. Todo grande cinema, desde os anos 1940, pelo menos, é crítico. Todos na Nouvelle Vague eram críticos. Wim Wenders era crítico. Lindsay Anderson, também. Pega o Fassbinder, tem uma série de artigos notáveis sobre Douglas Sirk. No Brasil, cada entrevista do Walter Lima Jr. ou do Carlos Reichenbach, por exemplo, são peças críticas finíssimas. Quer dizer, o cara não precisa nem escrever, nem publicar, mas todo o cinema é uma reflexão sobre o cinema já existente. Quando você pega o capítulo do Scorsese na série Cem Anos de Cinema, o que é aquilo? Grande crítica, só isso. Não admira que ele seja um grande cineasta. No Brasil, em matéria de cinema, existe um problema adicional. Como a produção é muito frágil, como os grandes circuitos são associados aos estúdios americanos, o cineasta sempre espera que você seja uma espécie de aliado. Então ele faz um filme banal e espera que você diga que não, que aquilo é uma beleza. Há pouco tempo, o Alain Fresnot veio com essa história. Paulo Emílio é que era bom. Paulo Emílio sempre mandava ver os filmes brasileiros. Ora, leia o Paulo Emílio: não é isso que está lá. Isso corresponde a um momento específico, polêmico, em que ele queria chamar a atenção para o estágio colonial em que vivíamos. Isso é uma coisa, e foi muito importante. Agora, você não vai ficar a vida toda fazendo isso. Em dois meses, o leitor ia perceber que você estava fazendo uma tapeação. Isso é postular o acriticismo como crítica. É confortável para o cara, sem dúvida. Em vez de ralar, de ter ideias, você diz: é brasileiro, então é bom. É confortável, mas não leva a nada, vamos falar o que é. Em seu trabalho, você sente alguma necessidade de fugir do gosto médio? Se fosse possível saber o que é gosto médio... O que é? O gosto médio é uma superstição de que o jornalismo precisa, a fim de avaliar o que vai dar no alto da primeira página e o que vai ficar na parte de baixo da página 4, digamos. Você já perguntou sobre o poder do crítico. Não é de hoje, o crítico tem algum poder quando se trata de um filme pequeno, lançado com uma ou duas cópias. Quando se trata de um blockbuster, que entra com 50 ou 60 cópias, de um filme que concorreu ao Oscar, não. Eu posso escrever o quanto quiser que O Paciente Inglês não é tudo isso. A questão é que o mecanismo de marketing montado é muito sofisticado e muito agressivo. Muito antes de o crítico entrar em cena já houve matérias sobre a filmagem, o lançamento nos EUA, as indicações ao Oscar, etc. É uma questão publicitária, não é cinematográfica. Então, eu penso que o crítico deve responder, tanto quanto possível, pelo cinema, pelo que ele vê, pelo que há de subjetivo (sua experiência pessoal) e de objetivo (a história da própria arte), porque a observação da arte comporta uma parte objetiva e outra subjetiva, como escreveu Giulio Carlo Argan. Agora, ao mesmo tempo essa pergunta é muito ampla, porque você pode remontar toda a história do cinema, desde a sua constituição, quando era uma diversão de feira. Para resumir, me parece importante fugir de conceitos como o de gosto médio, do qual a gente deveria se aproximar ou se distanciar. De alguma maneira, você leva em consideração os sentimentos da pessoa que criou a obra criticada? Sim, embora isso não tenha a ver com a crítica propriamente dita. É uma atitude diante das coisas. Não gosto de ser agredido, e também não gosto de agredir ninguém. Mas, fatalmente, se eu não gosto do filme, e por mais respeitosa que seja a forma como minha discordância é exposta, as pessoas não apreciam. Se, ao contrário, eu gosto, elas apreciam. Na verdade, a circulação de sentimentos numa crítica pode ser enorme. Se eu disser que não gosto de Antes da Chuva, um filme com muito prestígio entre espectadores letrados, e eu não gosto, tenho de ir com jeito, senão quem se ofende é a pessoa que lê. Já não me lembro quem disse que todo homem, fora de sua especialidade, é um ingênuo. Com o cinema não é diferente. Aí vem aquele filme contra a guerra, todo mundo é contra a guerra, a pessoa diz: É um bom filme. Esse é um aspecto delicado, porque se você pegar pesado a pessoa que gostou do filme vai se sentir insultada, como se estivesse sendo chamada de idiota. Por isso é importante ir com calma e, num caso como esse, mostrar como, num filme, o assunto é apenas um dos aspectos e que, em suma, você pode ser contra a guerra sem gostar desse filme, e pode gostar de um filme do John Woo e ser contra a violência. Em alguns momentos, porém, você precisa marcar as diferenças com clareza. Quando o Godard faz JLG por ILG, e o Godard hoje é um cara estigmatizado pela cultura de massa e por causa da cultura de massa, aí é preciso ser até violento na defesa. No mais, penso que existe uma mudança curiosa, que é cultural, não diz respeito à crítica, nem ao jornalismo. Eu leio críticas desde a adolescência, pelo menos, e com certeza aprendi muito mais com críticos dos quais discordava. De alguma forma, eram os que mais me ampliavam os horizontes. Será que isso era uma atitude pessoal? Não creio. Há alguns anos, o mundo ainda era mais constituído. Se o sujeito passava a vida inteira estudando um assunto, você pelo menos admitia que ele tinha alguma coisa a dizer sobre aquilo. Hoje, o leitor de jornais não se toma mais por um leitor, mas por um consumidor. Então, ele quer que o produto – a crítica, no caso – corresponda exatamente àquilo que comprou. Ou seja, que esteja de acordo com ele. Existia um corpo a corpo, uma vontade de entendimento que, no fim, era interessante para todo mundo, e que não existe mais. Eu acho muito saudável combater o critério de autoridade, mas não sei se é isso que acontece. É uma espécie de indiferenciação. O sujeito vai ao cinema uma vez por mês. Ele olha a cotação de um filme como, digamos, A Estrada Perdida, de David Lynch, na Folha. Ele vai lá, acha que aquilo é um filme sem pé nem cabeça e escreve uma carta para o jornal dizendo que o filme é muito mal feito e os críticos são uns idiotas. Essa pessoa nem leu o que estava escrito. Só viu as estrelinhas, não gostou do filme e a primeira coisa que pensa é em reclamar. É incrível, isso. Existe um império da subjetividade – o que eu acho é certo, é o que vale – mais ou menos completo. A partir daí, não existe mais possibilidade alguma de entendimento. É uma pane. O cinema não tem mais a ver com entendimento. Mas eu pergunto: as outras coisas têm? Não. Elas também respondem aos mecanismos de marketing. Você tenta ir ao MASP para ver o Monet e está abarrotado. Você vai a um museu a dois quilômetros dali e o museu está às moscas. Há alguma coisa que não funciona. Como crítico, você acha importante considerar as intenções do criador? É uma questão que embute um mito. O que são as intenções do criador? Ninguém sabe. Qual era a intenção de Leonardo? Qual a de Shakespeare? O que você tem atualmente são entrevistas do diretor, ou do produtor, ou do ator, que são em geral peças publicitárias, nas quais eles dizem o que lhes convém. O único esforço crítico possível é afastar essa sombra da intenção, da interpretação. E ver o que está no filme. Veja: até os anos 1950, o Hitchcock, o Howard Hawks não valiam nada. Eram considerados apenas bons diretores de filmes comerciais. Aí vieram os jovens turcos dos Cahiers du Cinéma e revisaram tudo. Não foi fácil. Lendo hoje os artigos de Truffaut, Rohmer, Godard, Rivette, Douchet, você percebe que eles tiveram até de se opor com certa violência ao André Bazin, que era o mestre que todos reverenciavam, para impor esses cineastas. E qual a particularidade dessa operação? É que esses cineastas eram extremamente populares. Então, os Cahiers são um momento em que o pensamento crítico e o gosto popular se encontram. Vendo retrospectivamente, nós podemos observar que, sobretudo para o cinema americano, o público tinha um olhar muito mais sofisticado, muito mais aparelhado que o dos críticos da época. Por que isso? Porque os críticos interpretavam. Eles não olhavam. Eles viam a literatura atrás da imagem. Essa é a grande lição dos Cahiers. É ter visto o cinema como arte autônoma. Fizeram para a crítica mais ou menos o que Griffith fez para o cinema. O que aconteceu de lá para cá, porém, é curioso. O cinema se elitizou. E o público passou, ele próprio, a interpretar, a procurar significados ocultos. Quer dizer, um público com formação literária é que passou a ditar o gosto e daí, talvez, é que tenha nascido o filme de arte, no mau sentido da palavra, esses filmes cheios de pretensão, cheios de coisa, mas que, você vai ver, não servem nem para lamber as botas de um Murnau, de um Fritz Lang. Por fim, você tem uma reação a isso, que é o Spiel-berg, o blockbuster. No início, é sensacional. Tubarão é um grande filme. O problema é que depois vai se criar – talvez não seja culpa dos filmes, mas de outras coisas da vida – um outro público, bem atual, que não é nem literário, nem popular, mas é o que cria a ignorância militante. Ele tem nostalgia do cinema original, inocente, dos velhos seriados. Ele quer que o tempo volte, que o velho cinema popular volte a imperar. Mas, como o tempo não volta, as contrafações são abundantes. E quando você tem um belo filme popular, como O Segredo, de James Foley, ou Um Sonho de Liberdade, ou os do Clint Eastwood, acabam quase passando em branco, não raro. O que você acha da afirmação segundo a qual os críticos pertencem à espécie dos autores frustrados, a avaliar obras que eles não teriam competência ou coragem para buscar realizar? Faz algum tempo que não escuto isso, o que de certo modo é mau sinal. Significa que o crítico, o especialista, a autoridade se tornou um mediador indispensável, quando na verdade deveria ser só um interlocutor, aquele com quem você discute o seu próprio entendimento do filme. Essa interlocução costumava ser mal compreendida por algumas pessoas, que viam no crítico uma espécie de sujeito interferente no seu prazer. Talvez a época atual seja de institucionalização, de assentamento, como resposta aos anos 1960/1970, quando ninguém sabia seu lugar. Os estudantes ensinavam, os professores iam para o campo, como aconteceu na China. Então, já faz tempo que não escuto esse tipo de afirmação. Seja como for, ela é curiosa. De um modo geral, se penso nos meus colegas, é uma injustiça. Acho que Sérgio Augusto ou o Rubens Ewald estão perfeitamente felizes como estão. De quem faz crítica, acho que o único a quem você pode chamar de autor frustrado sou eu mesmo, que me preparei a vida inteira não para ser crítico, mas para realizar. O problema é que, quando eu estava pronto para isso – havia feito um episódio de um longa-metragem –, o cinema entrou em pane. Ao mesmo tempo, a Folha me convidou para escrever, isso em 1983, e eu vim. Desde então, arquivei minhas pretensões. Há frustração nisso, claro, porque existe uma renúncia. Mas escrever também me dá muito prazer, e a formação que tive de algum modo me possibilita defender o cinema de que eu gosto. É claro, às vezes eu vejo um filme tão vagabundo que penso que o dinheiro empregado nesse abacaxi estaria melhor em minhas mãos. Mas é uma coisa que passa rápido. O cinema, fazer cinema, no Brasil dá muito mais dor de cabeça do que outra coisa. Meu romance Casa de Meninas foi originalmente um roteiro. Com mais frequência eu fico pensando que eu, no fim, é que estou com a melhor parte da coisa. Artigos – Folha de S. Paulo Notas para um Cinema sem Crédito 20 de março de 1983 1) Encontro um cineasta. Ele me fala longamente dos problemas de mercado, dos exibidores, do imperialismo. Não conseguimos falar sobre filmes, e desconfio que ele vai raramente ao cinema: lê livros de Sociologia. Temos um cinema com complexo de inferioridade, não perde uma chance de se mostrar inteligente. Inteligência, no caso, leia-se: subliteratura. 2) O colonialismo cultural não está na origem dos filmes, mas na relação que mantemos com eles. Não existe política de conservação, o contato com o passado é pequeno e fragmentário. A dominação americana não é apenas comercial, isto é subsidiário. Vem de um padrão que as outras cinematografias só alcançaram esporadicamente, se afirma graças a um esquadrinhamento frequentemente cruel da vida nos EUA. O mal não está em imitálos (Sganzerla fez isso, Godard também), mas em, percebendo deles apenas a superfície, copiar certas estruturas que, transpostas, nada têm a dizer. 3) Não nos faltam filmes. Quem não gosta de Das Tripas Coração – eu os entendo – pode ir ver O Segredo da Múmia; quem não gosta de O Homem do Pau-Brasil – também entendo – pode ir ver Amor, Palavra Prostituta ou O Olho Mágico do Amor. Para isto, basta gostar de cinema e solidão, acostumar-se a conversar consigo mesmo, ignorar a barulheira publicitária: malgrado a atualidade ou o cuidado da realização, esses belos trabalhos não ecoam, acabam quase esquecidos no meio da grande produção. E, no entanto, há sujeitos com textos fabulosos: José Inácio Mello e Souza, Luiz Nazário, João Carlos Rodrigues. Não digo o nome dos amigos nem dos articulistas famosos. Gente que diz alguma coisa fora do estritamente óbvio, que defende um ponto de vista com paixão e inteligência, toma partido e assume aquilo que a convenção julga indefensável. Podem estar até errados, às vezes, isso não importa: com o público que temos e o número de fitas que fazemos, só conta a capacidade de distinguir onde há uma proposta estética, uma ideia sobre as coisas e respeito pelo espectador. Essa capacidade anda a zero. 4) Badalação em torno de Black-tie. Hirszman tem bons filmes, este é frouxo, uma mise-en-scène que não vai a parte alguma. Mas ganhou em Veneza, abaixemos a cabeça. O que é bom para a Europa é bom para o Brasil. É quase sempre assim: quando querem mostrar operário, escalam Ricelli, Fernanda Montenegro, Beth Mendes, só gente rica. Quando querem mostrar milionário, escalam gente que nunca passou perto de uma butique. De ponta-cabeça. 5) Babenco conseguiu, com um filme, o que o governo tentou durante anos sem sucesso: mostrou os trombadinhas; a classe média purgou suas culpas, comovida. Em vez de levantar um problema, Pixote acabou com ele. 6) Carlos Manga está fazendo comerciais, Anselmo Duarte, ninguém sabe onde anda, Glauber morreu, Rogério está parado, Callegaro também nos comerciais. 7) Os Amantes da Chuva é a ressurreição de Roberto Santos, um dos maiores filmes dos últimos anos. Mas Roberto tem um mal: fala baixo, não diz que é gênio. Isso não dá certo. Biáfora: dizem que Ravina é ridículo. Os que dizem isso seriam felizes se tivessem um décimo do cuidado que Rubem Biáfora tem com cenários, figurinos, enquadramentos. Não é um filme nacional. E daí? É um filme apátrida, ou melhor: só existe no cinema, que é a pátria de Rubem Biáfora. Um belo filme com timing e cortes, uma direção segura e honesta: revelou o maior talento para diretor de estúdio que o Brasil já teve. Reconstituição de época sem que o espectador sinta os signos da reconstituição de época. Filme a ser revisto. 8) Não gostei de Gaijin. Não se ama em línguas diferentes, em culturas diferentes. Amor supõe identidade. Se o filme se passasse em 1960 ou 1970 teria mostrado a imigração. Não mostra. A cena do brasileiro explicando por mímica aos japoneses como cuidar do café é um primor: vale o filme. 9) Djalma Limongi Batista parece discípulo de Roberto Santos. Fez (com Asa Branca) um filme honesto, sincero, com um belo roteiro e preocupado com o público (não em agradá-lo, mas em dizer-lhe algo). Acabou reconhecido por aquilo que o filme não tem: força de encenação. Um bom fotógrafo teria ajudado o diretor a controlar o espaço, o que lhe permitiria investir apropriadamente nos tempos fortes e fracos, apurar o corte e a estruturação das sequências. É um cineasta de que se pode esperar o melhor. 10) Disse numa aula do Jean-Claude que a pornochanchada é o único cinema honesto que se faz no Brasil atualmente. É medíocre, mas cumpre o pouco que promete. Daí sua credibilidade. O público quer ver problemas sexuais em cena, preocupa-se com isso e não tem dinheiro para pagar o psicanalista. A pornochanchada é o divã do pobre. Não há mal nisso. Os letrados é que são pudicos. Desprezam (ou temem identificar-se?) a sensualidade meio selvagem dos iletrados, falam em seriedade, em problemas nacionais, mas está na cara que isso é um biombo. A ordem (social) está toda montada para que a classe média tire o corpo fora, não se meta com esses problemas sujos. A expressão mais clara disso é o episódio de Joaquim Pedro em Contos Eróticos: não sei se é bom manter relações sexuais com uma melancia, mas sei que o sujeito que faz isso não é essencialmente diferente dos demais. Naquele filme, o personagem é coisificado da maneira mais vil do mundo. Por um retorno na história, J. P. poderia mostrar que aquele homem é como todos os homens, de alguma maneira, que a tara não é um privilégio do Outro. Não fez isso. Preferiu se mostrar como crítico, se pôr acima dos outros, tirar o corpinho fora. O filme não vale nada, como aliás quase todos os de Joaquim Pedro, exceto pelo interesse sociológico: expressão viva do quase-nazismo nacional. 11) Ainda pornochanchada. O gosto do público não é uma entidade morta, é dinâmico e elástico. Comporta denominadores mínimos, mas se deixa sensibilizar pela originalidade. O problema não é o público: é compreendê-lo. Quem vive num tempo de cataclismo moral tem todo o direito de defender-se, buscar parâmetros. A obrigação do cineasta é, dentro das possibilidades de cada um, oferecer ao público o melhor de si, fazer com que ele se sinta gratificado por ter visto tal ou tal filme. Não agredido, nem humilhado. Acho que hoje em dia há um número maior de filmes que, de um modo ou de outro, vão por esse caminho: os de Carlos Reichenbach, Antônio Calmon, O Segredo da Múmia, O Olho Mágico do Amor. 12) Falta de uma revista: não para falar de mercado, nem de intenções, mas de filmes e resultados. Brasileiros ou estrangeiros. Não há diferença nenhuma. Cinema não é arte local: isso é que desacredita as revistas. O público cultivado não dá mais crédito ao cinema brasileiro. Prometem-lhe uma maravilha. Vão ver, não é. Uma, duas, três vezes: enche. Saiu a biografia de Buñuel. Ele diz que o nacionalismo é um complexo de inferioridade. Assino embaixo. 13) O cinema é uma alma. O bom filme não é necessariamente o que fala de grandes problemas nem o que dispõe de grandes recursos. Edgar G. Ulmer fez filme em seis dias. Fuller em oito: obrasprimas. A convicção é o que mais conta. Não há lugar certo para a câmara, não há lente certa. A lente, o ângulo, a decoração, os contrastes, as sombras (ou ausência delas) são o próprio pensamento de um diretor. No momento em que se cria uma cumplicidade entre autor e argumento, técnicos e atores, existe a possibilidade de sair um bom filme. 14) Mizoguchi dizia que após cada plano é preciso lavar os olhos. A vontade de ver alguma coisa, plano por plano, o ajuste de todos os elementos, a precisão de um detalhe que retira uma cena do mero convencional, isso é que cria na tela personagens vivos: a convicção. Não a vida que imita a realidade, mas que tira a verdade de sua coerência interna. 15) Faltam-nos produtores. O melhor produtor paulista é Galante: já produziu Sganzerla, Carlão, Khoury, Ramalho e Candeias. Fora alguma exceção, o melhor do cinema paulista passou por lá. Faz também os piores filmes e ganha dinheiro com isso. Sabe ver cinema e isso é raro na sua profissão. 16) Em Mulher Objeto, lá pelo meio do filme, chega uma personagem (Kate Lyra) e diz ao casal (Helena Ramos e Nuno Leal): Chega de ficar em casa vendo novela. Hoje vamos sair. Até ali, em nenhum momento se viu ninguém assistindo televisão, ou comendo, ou escolhendo roupas, ou indo ao banheiro. Nada. Só uma mulher que tem sonhos comerciáveis. O filme foi apresentado como erotismo de alto nível. É bobagem pura. Seu sucesso reside, acho eu, no fato de representar a classe rica como ela gosta de se ver: piscina, carrões e roupinha engomada. De vez em quando um ricaço vem me dizer que o cinema nacional ainda não conseguiu captar com agudez a vida brasileira. No dia em que isso acontecer, eles vão corar. Eles falam mal dos jornais do Carbonari, mas eles são o Carbonari, ou seja: não admitem outra versão sobre si mesmos que não a oficial, a que eles mesmos divulgam. Mesmo que não seja para falar mal dos ricos: só dizer que as coisas são mais complexas do que aparentam, etc.: ninguém quer. Eles gostam de ser chamados de doutor e divulgar de seu mundo uma ideia de inocência, como se o que acontece fosse de direito divino. Mulher Objeto é típico exemplar dessa Voz do Brasil da riqueza. Helena Ramos é rica e frígida. O que faz? Terapia, e sonha. No fim, consegue resolver seu trauma, graças a uma psicanalista que por certo formouse por correspondência no Reader’s Digest. Ato contínuo, realiza-se sexualmente. Com o marido, claro. La boucle est bouclée, dizem os franceses. Uma visão confortável, isto é: de alto nível. 17) Yasujiro Ozu só mostra as aparências: a vida no escritório, a filha que não se casa para viver com os pais, a solidão de um casal de velhos. Nenhuma crítica, nenhuma profundidade. Ozu não mostra o conflito por trás do ritual de sorrisos e gestos delicados. Percebemos apenas que ele existe, entrevemos a que custo as aparências são mantidas. Seus planos longos desmontam a aparência sem sequer tocá-la. Segundo movimento: seus planos longos – e quase sempre baixos, quase sempre imóveis – indicam uma permanência do olhar. O olho do cachorro, diria Douchet. Esse olhar que não sabe nada, não entende nada, mas está lá e nos desarma. E depois, é como se também magicamente o mundo de aparências se recompusesse, cada gesto, cada sorriso adquirisse um sentido que a princípio não parecia ter. Não sei o que pensarei amanhã: hoje, acho que é o maior cineasta que já houve. Por trás da imagem não há nada: só outra imagem. A imagem da vida é a própria vida e sua ausência. Afirmativa e negativa. Simulacro e verdade. Outro lado de um espelho sem outro lado. Rivette: Prova o movimento, andando, a existência, respirando. O que é, é. Uma Aula de Faroeste pelo Mestre King Vidor 27 de abril de 1983 HOMEM SEM RUMO / Man Without a Star (1955), de King Vidor Em uma das cenas de Homem sem Rumo, Kirk Douglas faz uma demonstração de malabarismo com o revólver para seu jovem escudeiro, Texas Kid. O Kid assiste a tudo aquilo admirado, enquanto o espectador vê com desconfiança o exibicionismo vulgar de Kirk. Por alguns segundos, porém: em um instante, ele interrompe o gesto, quebra o encantamento em que está mergulhado o garoto e arremata com uma frase definitiva: Rodar a arma não vai salvar a sua vida. Só atirar. A sequência – bela porque trabalhada em um limite extremamente perigoso – é ao mesmo tempo uma postulação estética: não é o efeito que vale, mas a objetividade; não é a grandiloquência, mas o vigor. Elementos que se encontram com frequência na obra de King Vidor e que poderemos rever ainda uma vez neste que é um dos melhores westerns dos anos 1950 (um período de fausto do gênero). Mas, como toda posição estética, também esta implica uma renúncia: chegar ao ponto, contar sua história, significa igualmente abrir mão da arte, da profundidade, o que Vidor faz sem hesitação. Nas mãos de um cineasta menos seguro, o roteiro de Borden Chase e D. D. Beauchamp poderia sem dificuldade tornar-se o estudo do caráter de um homem que, embora apto a enfrentar as áridas condições de vida do Oeste, prefere deslocar-se, evitar as barreiras que surgem à sua frente; poderia até se converter em uma ingênua parábola pacifista. Nada disso com Homem sem Rumo: ao contar a história do homem errante que encontra o jovem Texas Kid num trem e o inicia na vida, King Vidor opta por uma perfeita sujeição do significado à história. Talvez por isso seja possível discernir tantos sentidos possíveis no filme. Mesmo se sabemos de Vidor – por todo o seu passado – que é antes de mais nada um individualista, essa posição não se mostra genericamente, mas de forma pontual: há que se ver como Dempsey Rae (Kirk Douglas) saca a arma rápido como um relâmpago contra seu próprio amigo, ou como – de modo igualmente fulminante – abre sua camisa para mostrar as chagas causadas pelo arame farpado. Há que se ver cada imagem, seguir cada passo do homem sem rumo para entender-lhe o passado e justificar o presente: desmontar um destino e remontá-lo diante de nossos olhos. Em outras palavras, a estética que prega King Vidor sustenta-se na capacidade de criar vida por meio do acúmulo de um sem-número de pequenos detalhes que isolam o personagem da multidão (da Turba, título de seu clássico filme mudo) e fazem dessa vida – ao início como ao final – um perfeito mistério. Porque, entre tantas coisas que nos diz esse filme, no qual a beleza não raro deriva em perversão (como no caso da proprietária de gado) e a violência em poesia, podemos isolar em Homem Sem Rumo a ideia de um perfeito mistério do destino humano: absolutamente pessoal, ele é, por paradoxo, comum a todos os seres. Tangível, na medida em que o visualizamos, ele permanece no entanto insondável: para além da Justiça e da Injustiça, da Felicidade ou da Infelicidade, a vida é a um só tempo tautologia (que se afirma sendo) e labirinto (perda, ausência de rumo). Um grande filme, clássico pelo desenvolvimento da intriga, moderno pela seca elegância, eterno pela magistral alternância de tempos fortes e fracos, pela orquestração de elementos que vão desde a excepcional presença de Kirk Douglas até a secura de uma decoração na qual não se vê traço de azul (e portanto de tranquilidade). Cada plano tem uma ideia, mas ela não se impõe como tal, não faz questão de ser percebida como raciocínio, e sim como vida. A arte de King Vidor talvez seja um pouco como o corpo de Dempsey Rae (Kirk Douglas): algo que esconde com cuidado e que, se mostra, o faz apenas por completa necessidade. O filme que passará hoje à noite na TVS é um desses que se pode ver, rever, rever de novo e, se possível, gravar: não é todos os dias que se assiste a uma aula de cinema. Obra-prima de Walsh, de Inspiração Psicanalítica 26 de junho de 1983 FÚRIA SANGUINÁRIA / White Heat (1949), de Raoul Walsh Em Dentro da Noite, Ida Lupino mata o marido para ficar mais próxima de George Raft, sem suspeitar que por este gesto ela o afastava de si. Em Seu Último Refúgio, Humphrey Bogart é o criminoso perfeitamente amoral, que cai apaixonado por uma garota coxa, de classe média, afastando de si a única mulher (também Ida Lupino) que poderia compartilhar de sua sorte. Já o James Cagney de Fúria Sanguinária entrega-se aos crimes mais impiedosos pela simples necessidade de chegar ao topo do mundo e mostrá-lo à mãe. De três maneiras diferentes (haveria outras), podese observar que os personagens dos melhores filmes de Walsh estão sempre, inadvertidamente, se afastando do objetivo que perseguem com absoluta tenacidade. Dessa maneira, mostra-se com clareza a marca temática do autor: é o trágico desarranjo do destino – e a consequente necessidade de convocar todas as forças do destino para conjurá-lo, como já se disse – que o fazem por excelência o cineasta da aventura, seja qual for o gênero que aborde. Personagem mitológico, que aprendeu a fazer cinema como ator e assistente de Griffith, Walsh é autor de uma obra desigual, na qual se alternam filmes magistrais (os citados, mas também O Ídolo do Público, Meu Pecado Foi Nascer, Sua Única Saída, etc.), ora medíocres e marcados por seu desinteresse (Escravo de um Segredo). É natural, para um diretor que não raro pegava o roteiro no estúdio pela manhã e começava a rodar à noite, em que os traços do autor se mostram pouco a pouco. Mesmo no interior dos grandes filmes, pode-se perceber em que direção aponta sua paixão: nunca as cenas românticas, quase sempre carregadas de um convencionalismo detestável, mas os momentos em que tudo converge para a resolução de um destino (assim, em Meu Pecado Foi Nascer, após minutos de um melaço completo vemos em apenas alguns segundos tudo se transformar na vida da menina, que perde numa enfiada pai, fortuna e liberdade – torna-se escrava: momento exemplar de sintetização); nunca a sociedade estabelecida, mas os marginais; nunca o social, mas o indivíduo. Todas essas características estão de algum modo presentes no filme que a Globo apresenta hoje. Ao seguir a trajetória de um gângster especialmente cruel, Walsh dispõe todas as peças em função da necessidade de subir na vida e, mais importante, de fazer dessa ascensão uma oferenda à mãe. Inútil dizer, quanto mais avança em sua escalada criminal, mais Cagney se distancia da imagem que orienta seus movimentos. Aqui, como em todos os bons filmes de Raoul Walsh, a natureza é chamada a fazer parte do destino do protagonista. O cenário é, em essência, o deslocamento, a possibilidade de mover-se para outro lugar. Não há tempo para tomar fôlego, e isto é a aventura. Parar, tomar fôlego, é entregar-se à fatalidade de uma paisagem hostil (ao contrário, portanto, do cinema de John Ford). Fúria Sanguinária, filme de inspiração psicanalítica (como Sua Única Saída), coloca em evidência outro aspecto do trabalho do cineasta: se segue rigidamente a regra americana de que cinema é movimento (movie), em momento algum esquece que as imagens, por frenéticas que sejam, só interessam no momento em que a energia ali implicada remete ao que realmente desperta seu interesse: a aventura interior. Samuel Fuller, um Criador de Anti-heróis 29 de junho de 1983 TORMENTA SOB OS MARES / Hell and High Water (1954), de Samuel Fuller Existe um momento, em Tormenta sob os Mares (amanhã, na Record), em que Cameron Mitchell exibe, em primeiro plano, o tórax para Bella Darvi. E é de se ver o encanto que ele experimenta ao mostrar aquela ridícula tatuagem à jovem cientista. Bella Darvi não fica atrás. Em meio ao grupo de marinheiros pouco afeitos à ciência, ela exibe seu vasto conhecimento, falando em menos de cinco minutos idiomas tão díspares quanto o francês, o japonês, o italiano, o inglês, o alemão. E a bela Bella seduz os marinheiros de maneira quase descarada, fazendo com que eles lutem por ela. Richard Widmark, por sua vez, é um canalha. Convocado a combater as forças do mal (os comunistas que montam secretamente uma base atômica), o que lhe interessa mesmo são os dólares que vai receber para capitanear o submarino. Estamos longe do que há de melhor em Samuel Fuller: de Matei Jesse James, por exemplo, no qual segue a trajetória do patético Bob Ford, que mata Jesse James (seu melhor amigo) pelas costas para, com o dinheiro do prêmio, poder se casar. Ou de O Barão Aventureiro, em que o protagonista se mete na louca aventura de grilar todo um território. Estamos a quilômetros de A Lei dos Marginais, no qual Cliff Robertson se torna gângster para poder encontrar (e matar) o gângster que assassinou seu pai. O cinema de Fuller, americano nascido em 1912, ex-repórter, ex-roteirista, atinge seus pontos altos nessas tramas intrincadas que mobilizam pequenos personagens. Nunca heróis, sempre anti-heróis. Nesse sentido, é um cinema bem representativo da geração de diretores americanos surgidos depois da 2ª Guerra Mundial. Tomemos alguns dos mais significativos como exemplo: Nicholas Ray e seus rebeldes sem causa, permanentemente solitários; Elia Kazan, constatando o fim do sonho americano. Fuller, por sua vez, traz para a tela o figurante, o anônimo excluído das grandes epopeias, e faz deles seus protagonistas: pequenos bandidos, prostitutas, soldados (como no admirável Agonia e Glória, exibido recentemente em São Paulo). Daí a sensação de relativa estranheza que pode causar Tormenta Sob os Mares. Diferentemente da maior parte de seus filmes, aqui ele teve de se arranjar com um roteiro bem comportado de Jesse L. Lasky Jr. Ainda assim, podemos perceber ao longo desse drama cenas que interessam a Fuller. É o caso de todo o início, com Widmark chegando ao esconderijo onde se encontra o professor Montel e deixando claro o seu egoísmo. Ou, já no submarino, a cena em que agarra Bella Darvi com violência pelo braço; ou o momento em que, sem hesitar, decepa o polegar do professor. Como as demais sequências mencionadas, importa a Fuller que em nenhum momento se idealize a natureza humana: um cientista é capaz de ser tão brutalmente exibicionista quanto um marinheiro; da mesma forma, nenhum saber nos livra de uma parcela de ignorância, assim como no ignorante existe algum conhecimento. O mundo descrito por Fuller é o de seres incapazes de sair de si mesmos: comunistas ou capitalistas, eles têm de se matar entre si porque não são nada exceto seres igualmente presos a um sistema que lhes confere identidade. É o que nos mostra a extraordinária sequência na primeira ilha abordada pelo submarino, transformada em poucos segundos num inferno. É o que, numa versão aprimorada, nos mostraria Agonia e Glória, quando os soldados americanos abordam o exército francês na Argélia e, só após a carnificina consumada, os soldados percebem que afinal não são inimigos. Assim, ainda que Tormenta sob os Mares não seja um filme no qual o diretor leva às ultimas consequências suas ideias, acaba sendo muito mais do que um trabalho alimentar desse que é um dos mais modernos cineastas em atividade. Filme da guerra fria, que não dissimula o anticomunismo do autor (os comunistas não são gente direita, disse certa vez), deixa no entanto claras algumas das ideias pouco convencionais de Fuller: o único heroísmo que existe na guerra é sobreviver. Sabendo que Fuller um dia comparou o cinema à guerra, e que em seus filmes a guerra é uma metáfora da vida, resta concluir que nesse cinema não há heróis, há sobreviventes. Quem notar a atenção que Fuller atribui aos caracteres japoneses que frequentemente disputam com os atores o centro da cena, se dará conta também de que o essencial nos sinais que marcam seus filmes é serem inabordáveis. Conquista-se um país como se conquista o mundo. Nem por isso ele se torna decifrável. Imitação da Vida, ainda um Filme Atual 28 de agosto de 1983 IMITAÇÃO DA VIDA / Imitation of Life (1959), de Douglas Sirk Imitação da Vida desenvolve-se em torno de cinco personagens: Annie, a empregada de Lana Turner, é uma negra que tem uma filha mulata, Sarah Jane. Esta odeia sentir-se negra e descarrega sobre a mãe a infelicidade dessa condição. Lana, a patroa, é escandalosamente loura e procura fazer carreira como atriz. John Gavin é apaixonado por Lana, que é viúva e também tem uma filha, Sandra Dee, que por sua vez apaixona-se por John Gavin. Este o quadro básico do último filme realizado por Douglas Sirk em Hollywood e um de seus melhores trabalhos. Uma trama na qual cinco percursos se entrelaçam de modo a formar um nó cego: personagens conduzidos pela própria cegueira, e perseguidos por algo que se chama destino, mas que também se traduz pela impotência em conduzir os acontecimentos. O melodrama é a tragédia transposta para o universo da classe média, disse uma vez Sirk, que começou sua carreira como diretor teatral. Transposição delicada, a que o gênio do cineasta da Universal deu uma dignidade incomum. Porque em seus filmes existe o desejo de ser feliz e, ao lado, um universo social que a um só tempo nos solicita e nos impede a felicidade. Fassbinder, que fez de Sirk o seu mestre, nota que o mais espantoso é podermos en-tender a razão de cada um dos personagens, o fato de todos terem razão, mas de simplesmente nada podermos fazer em seu favor. Nada pode resolver o problema de Sarah Jane: ela tem que arcar com sua cor; mas nada pode resolver também o problema da deusa branca Lana Turner: a menos que se mude o mundo, diz Fassbinder. E se chora, até, malgrado a secura do estilo. Não por pieguice, mas porque é difícil, demais, transformar o mundo.Cinema por muitos desprezado, em razão do preconceito contra o melodrama, Imitação da Vida é um desses trabalhos em que se revela toda a ternura do cineasta por seres que ele sobrecarrega de desesperança. É um filme essencialmente cinematográfico, que não deve nada de sua beleza à literatura e tudo à capacidade de organizar imagens, não só ao longo da narrativa, mas no interior de si mesmas: é no brilho de um olhar, no rigor do enquadramento, da luz, no justo (justíssimo) arranjo da cenografia que se mostra a ideia de uma humanidade desprotegida, debatendose em busca de uma realização impossível, em meio a forças que, nada transcendentais, a sacodem de um lado para outro. É como se ouvíssemos Borges dizer que a humanidade é o produto menor de um deus menor. Filme moderno – até demais para seu tempo –, Imitação da Vida é uma obra-prima de puro cinema e um momento chave da obra de Sirk, indispensável para os que desejam compreender cinema a partir de seus filmes: fato infelizmente mais raro do que se poderia desejar. Pornô, Beco sem Saída para o Cinema Nacional 25 de setembro de 1983 Graças à simpática instituição do mandado de segurança, passamos da noite para o dia do pudor à devassidão. As telas severamente vigiadas por dona Solange Hernandez se empanturraram do sexo explícito tantas vezes prometido pelos certificados de censura e nunca finalmente cumprido. De Calígula a Garganta Profunda, vivemos uma rápida primavera do pornô: gênero já cultivado nos motéis e casas de famílias, mas até há pouco proibido para o grosso da população. Uma decisão da 1ª Vara de Justiça Federal em São Paulo acaba de cassar essas liminares, sob a alegação de que não foram apresentados argumentos em defesa dos filmes, dentro do prazo legal, pelas distribuidoras interessadas. É compreensível o silêncio das distribuidoras: os filmes são mesmo indefensáveis. Isso não impede que o período em que vigoraram os mandados se segurança tenha sido bastante revelador. A exibição destes filmes mostrou – antes de mais nada – que o pornô está longe de conseguir desagregar as famílias ou o já abalado sentido moral dos brasileiros. Mais do que isso, no entanto, mostrou que com discernimento e um pouco mais de tolerância é possível superar esse fantasma. Talvez sejamos um povo peculiar, mas em regra geral nos assemelhamos ao conjunto da humanidade. De modo que, tudo indica, passado o primeiro momento de curiosidade, a tendência é que o pornô se acomode em um número limitado de salas, interessando também a um público limitado. Na verdade, a superação desse problema que já começa a se tornar crônico é quase vital para o cinema brasileiro, no momento. Nos anos 1970, enquanto as grandes cinematografias estavam em plena crise, o filme nacional conquistou um público que até então lhe era indiferente. A decadência que começou no ano passado e se acentuou fortemente em 1983 é indicativa de uma cinematografia que não soube capitalizar seus ganhos: em vez de melhorar, nossa produção comercial tem, em média, piorado. O cinema americano e o europeu, ao contrário, encontraram saídas para seus principais problemas. No Brasil, em consequência, os problemas começam a aflorar: com a produção internacional voltando a se firmar, o espectador tem oportunidade de comparar nossas obras com as estrangeiras. E de constatar, com assombro, que, em vez de evoluir, nosso cinema regrediu. Dos habitualmente silenciosos realizadores de filmes comerciais aos prolixos realizadores de filmes de arte desaprendemos enquadramento, ritmo, alternância de tempos. Em uma palavra, mise-en-scène. A liberação do pornô, nesta altura dos acontecimentos, é o que poderá confrontar nosso cinema com a realidade, afinal. Se de um lado já começamos a aprender que não se pode impunemente imitar as novelas, no momento em que o pornô abandonar a condição de mito obsessivamente cultivado pela Censura, poderemos finalmente perceber que não se faz cinema sem, pelo menos, tentar dizer algumas coisa aos espectadores. Como isso vale tanto para os filmes importados como para os brasileiros, talvez tenhamos a oportunidade de começar a fazer filmes pelo começo, outra vez. Isto é, relançando a cada plano a insubstituível pergunta de André Bazin: o que é cinema? Fora disso, pode haver ilusão, mas nunca salvação. A Crítica de um Cinema em Crise 29 de setembro de 1983 O duro ataque de Tizuka Yamasaki contra o crítico Rubens Ewald Filho, publicado na Folha de ontem, tem o inegável mérito de relançar dramaticamente o problema da função de crítico de cinema. Tizuka fala com paixão, o que é normal: defende o seu filme. Fala com excessiva paixão, na verdade, fazendo acusações tão pesadas quanto, até prova em contrário, perfeitamente injustas. Não existe, como se sabe, nenhum critério objetivo para analisar um filme. O que agrada a uns, a outros não. Godard, crítico, escrevia as piores de Stanley Kubrick, o que se compreende: cada um reinventava o cinema, a seu modo, naquele instante. Eric Rohmer diria, anos mais tarde, que Bazin tinha ideias; nós (isto é, os redatores dos Cahiers), um gosto. Bazin fixou um modo de ser da crítica, mas os autores que procurou para exemplificá-lo, com poucas exceções, não duraram. Digressão muito bonita, mas que nos leva apenas à constatação de que, no Brasil de hoje, a crítica tornou-se mais uma convenção jornalística do que um referencial em torno do qual giram as principais tendências cinematográficas. Existe aí, em parte, uma responsabilidade dos críticos. Em face do grande sucesso de público do cinema popular brasileiro, nos anos 1970, poucos deixaram de usar o nome pornochanchada, para evitar o trabalho de falar de filmes que, embora frequentemente medíocres, atingiam milhões de espectadores e – seja como for – diziam-lhes alguma coisa. Existe, portanto, responsabilidade da crítica quando – evitando pudicamente nosso ingênuo pornô – se permitiu que, de honradas comédias eróticas (Ainda Agarro Esta Vizinha, Memórias de um Gigolô), nosso cinema popular degenerasse em um leilão em que, quanto mais baixo o nível, maiores os ganhos. Da procura do público que marcou essa fase pós-Cinema Novo, passamos ao desrespeito puro e simples. A resposta do público a um cinema que só soube andar para trás é, hoje, nítida: as salas estão vazias. A participação dos críticos é, no entanto, relativa. Se ele não é mais um referencial, a verdade é que também não existem grandes tendências. Não se é mais pró ou contra Khoury nem pró ou contra Sganzerla. Cada filme que se faz é algo que se acrescenta a uma cinematografia, em linhas gerais, à deriva. É dentro desse quadro que se inserem seja o filme seja o protesto de Tizuka Yamasaki: de um cinema que cresceu sem criar uma cultura cinematográfica compatível com esse crescimento. Perdidos no salve-se quem puder dos anos 1980, críticos e cineastas procuram o seu público. O que se sustenta mal ou não se sustenta de modo algum no artigo de Tizuka é a alusão a um possível complô contra o cinema brasileiro por parte dos jornalistas cinematográficos em geral ou, em particular, Rubens Ewald Filho. O que parece ter irritado a autora de Parahyba é o fato de Rubens referir-se a alguns autores estrangeiros, em seu artigo a respeito do filme. A referência é, no mínimo, compreensível: o cinema não começou com Parahyba, da mesma forma que o cinema brasileiro não é uma ilha: queiramos ou não, diariamente nossos filmes são comparados pelos espectadores aos filmes estrangeiros. Esse, o xis da questão: nossas salas estão vazias. Esse, o único problema que, por ora, deve interessar a críticos, produtores, cineastas. O fato de o cinema brasileiro existir, hoje, não significa de modo algum que existirá sempre. É inútil reclamar contra as multinacionais estrangeiras ou levantar pelos séculos afora o problema do mercado no momento em que não se encontra uma maneira de trazer o público ao cinema. Vista assim, a questão se torna mais simples: se Parahyba faz a renda esperada, passemos para o seguinte. Isso significará que está, de algum modo, atendendo a uma demanda. Tudo se torna um pouco mais complicado quando, olhando para trás, vemos que as virtudes da mise-en-scène de um Carlos Manga, por exemplo, permanecem até hoje irreconhecidas por críticos ou cineastas. Em outras palavras: o cinema está chegando aos 100 anos, carregando uma história. Não se pode mais, diante dele, postular nenhuma espécie de inocência. Qualquer cineasta é crítico, ou então não é cineasta: estará pisando o quintal do vizinho com a sensação de que pisou na Lua. Da mesma forma, não há critico que não seja cineasta: sem experimentar a paixão do cinema, a cada plano, a cada corte, se limitará ao burocrático exercício de um julgamento que a cada dia perde sentido. Um filme é, como diria Borges, criação coletiva: quem vê é, de certo modo, um autor; quem realiza é, antes de tudo, um espectador. Qualquer uma dessas funções requer que se revele – para dizer alguma coisa – uma alma. O momento por que passamos é de almas aparentemente perdidas à procura de bons álibis: não é um problema só do cinema. Mas é sobretudo do cinema: o voo está mais do que rasante (quase arrasante). É melhor encarar essa amarga situação do que tapar o sol com a peneira até que o último espectador abandone nossas salas. Este é o fantasma que deveria, desde já, estar preocupando cineastas, críticos e – inclusive – exibidores: o de um cinema que perdeu seu crédito junto ao público. E ninguém é inocente nessa história: poderia ter sido diferente. Em Debate, a Ideologia do Cinema 29 de outubro de 1983 O debate sobre A Ideologia da Produção Contemporânea foi o fato mais importante do festival de cinema na quinta-feira, dia em que foram projetados o longa O Bom Burguês, de Oswaldo Caldeira, e os curtas Visita ao Presidente, de Haroldo Marinho Barbosa, e Carnaval, o Aval da Carne, de Ralph Araújo e Carlos Marques. O encontro sobre ideologia, como era de prever, resistiu a qualquer tentativa de encaminhar a discussão para os problemas estéticos do cinema brasileiro, muito embora fosse esta a intenção da mesa. Os cineastas presentes – quase todos do Rio de Janeiro – preferiram discutir política cinematográfica e, mais particularmente, aquela que se dá nas imediações da Embrafilme. A princípio, definiu-se ideologia como uma formação nascida na Renascença, no momento em que começa a existir uma sociedade que – não tendo já uma base mítica ou religiosa – precisa pensar a fundação social como interna a si mesma. Não sendo una, esta sociedade precisa ocultar suas diferenças – por meio de um jogo de representações – de maneira a se legitimar, fazendo com que pareça natural a dominação de um grupo sobre outro. A partir dessa ideia, pode-se pensar a atividade artística (e o cinema, por conseguinte) como um verdadeiro ato falho no mecanismo de dominação e o inverso da operação ideológica: momento de aventura na liberdade, de enfrentamento com o mistério do mundo. Os cineastas, porém, e especialmente os cariocas – que estavam em maioria – preferiram ignorar esse tipo de entrada, para insistir nos eternos problemas mercadológicos. Eles existem e são graves, é verdade, porém parecem duplicar quando se percebe nos cineastas uma ausência quase crônica de amor ao cinema. E, na falta dessa paixão, o debate tomou o rumo inevitável da formulação ideológica, isto é, que procura ocupar um espaço de poder mascarando-se sob o emblema da necessidade. Discurso competente (no sentido que Marilena Chauí dá à expressão: alguém a quem a sociedade atribui um saber presumível e passa então a falar em nome do outro), o de Paulo Thiago procurava restabelecer o desusado mito da unidade de ação do cinema brasileiro em torno de um grupo dotado de competência. Com bela oratória (é de se perguntar por que tantos cineastas no Brasil se explicam tanto e filmam, qualitativamente, tão pouco), o que Paulo Thiago desenvolvia na verdade era a necessidade de esvaziar a Embrafilme (e criar outro órgão), justamente quando a empresa estatal procura – certa ou errada – diversificar sua produção. A grita a esse respeito começou há algum tempo, com aqueles grupos competentes (o produtor Luiz Carlos Barreto à frente) lamentando a perda de uma parcela de poder que tinham na Embrafilme. De resto, Barreto já expôs publicamente seu ponto de vista. A Paulo Thiago coube apenas formular a ideologia, escamoteando a diversidade de grupos e tendências no cinema brasileiro. Embora outras colocações tenham sido feitas nessa direção, a intervenção de Paulo Thiago se fundamenta mal: lacunar, ela omite que o fato de o cinema ser uma indústria não o impede de ser uma atividade estética cujo exercício deve ser o mais amplo possível para ser representativo. Em segundo lugar, parte de uma interpretação um pouco risonha da história das telecomunicações no Brasil, ao denegar todo e qualquer investimento oficial na área cinematográfica (o que daria ao cinema, até mesmo ao feito nos últimos dez anos pela Embrafilme, uma aura de resistência cultural que em definitivo não se coaduna com o grosso da produção que temos visto) e projetar um futuro para, digamos, uso próprio. Em poucas palavras, nesta mesa composta por Ismail Xavier (ECA/USP), Cláudia Pereira (UnB) e Inácio Araújo (Folha) ficou demonstrado ainda uma vez que nada é mais difícil para cineastas, quando se reúnem, do que falarem de cinema propriamente dito. Por enquanto, fica para Walter Lima Jr., Antônio Calmon e alguns poucos a tarefa de fazerem filmes – propriamente – ditos. Até quando vai durar esta estética mercadológica, é o que se pode perguntar. Um Diretor Fiel à Linguagem da Tela 30 de outubro de 1983 INOCÊNCIA (1983), de Walter Lima Jr. A palavra nem sempre sai fácil: como se Walter Lima Jr. não conseguisse expressar tudo o que tem a dizer. Desse tipo de cineastas que vão fazer cinema para não terem que discorrer verbalmente sobre as coisas. Mas em cada frase existe a renovada sensação do inédito, do desconhecido. Embora o júri ainda não tenha se pronunciado, todos sabem que Inocência dificilmente perderá o prêmio de melhor filme em Brasília, este ano (já ganhou, aliás, o prêmio instituído pela crítica). É sobre o seu filme e sobre a aventura do cinema brasileiro desde o Cinema Novo que fala, nesta entrevista, o autor de Menino de Engenho. No teu filme me impressionou muito essa reconstituição de época que não faz nenhuma concessão, não procura se aparentar a ideias em circulação. Inocência é um filme intimista, em primeiro lugar. Ao mesmo tempo, o romance de Taunay tem uma grande preocupação em documentar a gestualidade, o comportamento, o ambiente rural brasileiro. No livro, você percebe essa preocupação, que é quase científica. O livro documenta essas coisas: como é a casa, como se cura, essas coisas. A minha preocupação, nesse sentido, foi a de ler o livro, mas sem transformar esses elementos em atributos de produção, sem perturbar a harmonia dessas informações. O filme tem uma depuração, uma ausência de efeitos, que me parece já um modo de você se relacionar como o cinema. É, uma coisa mais simples... deve ser uma coisa de personalidade. Eu, fazendo cinema, o importante para mim é o filme. Nunca renunciei a meu prazer pelo cinema, o discurso cinematográfico para mim sempre foi mais importante do que o discurso factual, essa coisa objetivamente política. Isso pode até ser uma deformação criada pelo próprio cinema, mas eu não sei analisar bem o meu trabalho. O que eu quero é fazer cinema e acreditar que eu estou fazendo. Para mim, o mais importante da reconstituição de época do filme é a credibilidade. Eu falo de credibilidade cinematográfica, não tem nada a ver com o real. Essa credibilidade estaria, em grande parte, na primazia que você dá ao objeto de que você está tratando, antes da sua figura de autor. Claro. Acho que há outro tipo de risco: fazer um filme no qual o erotismo é todo camuflado. Acho que esse risco está relacionado com uma grande paixão pelo tema. Está mesmo. Agora, eu fico tocado com alguma cena erótica que eu veja, muito mais pelo meu imaginário do que por ela mesma. Eu posso ver duas pessoas na minha frente e aquilo me constranger. No caso do meu filme, primeiro a história é sobre uma menininha virgem, presa numa casa, num momento em que as pessoas tinham outra visão ética. Então, o simples tato era importante. Eu falo também em representar, não é? E Inocência é um pouco um conto de fadas, uma história de repressão sexual, tem esse lado. Eu acho que o espectador entra aí como uma espécie de cúmplice. Aí, eu tenho de falar de uma forma que consiga envolver o espectador sem perder nenhuma das características dos personagens, ir fazendo com que ele também vá se apaixonando por aquele modo de ser. É o que me toca muito no Rossellini (não é um cineasta da minha preferência): esse uso arqueológico do cinema, essa capacidade de recuperar um gesto perdido. Não é só na roupa que você faz uma reconstituição de época. A relação com a natureza parece ser um dos eixos do filme. No momento em que você está diante do real, tem um poder supremo sobre as coisas, que tanto pode ser útil como se voltar contra você. Eu, o meu aprendizado foi feito nos meus próprios filmes. No documentário, você não está ali pra determinar, mas para captar. E isso é muito enriquecedor. Se você bota uma câmara na frente do real e começa a dar berros, a contrariar tudo aquilo, de algum modo você está perdendo alguma coisa. Eu, filmando na floresta, uma das coisas que eu tinha de exigir é que as pessoas não ficassem aos berros. Por quê? Tinha bichos ali. E eu estava ali também para filmar aquilo, não podia ficar espantando os bichos. Mas existe também uma captação da natureza humana. Aí entra a questão do ator. Existe um trânsito entre ator e personagem, uma questão de você aproximar o personagem do ator. Você tem uma figura, você começa a acreditar que aquela figura seja o personagem. E depois há uma questão de diálogo com o ator, fazer com que ele sinta a tua presença, mas não de uma maneira autoritária, e sim como cúmplice. Isso eu acho que faz surgir figuras reais em vez de impostações, performances. É um pouco isso: não deixar que a tua vaidade interfira no momento da credibilidade. O resultado é que o personagem vai aparecer, não vai ter medo. Vai aparecer como passarinho, não é? Acho que poderia até pôr na tua boca: é uma questão de acreditar perdidamente no que você está filmando. Ah, é claro: não ter limites. O filme também coloca agudamente a questão do real e do aparente, que se liga ao que você falou. No livro isso já estava contido. O Taunay foi agudíssimo em registrar o nosso estado permanente de ingenuidade. E também toda uma estrutura familiar extremamente autoritária: ver no outro aquilo que desejamos ver. O individualismo, aqui, é uma coisa rarefeita, diferente de outros povos, que acreditam que o outro é o outro. Aqui, existe uma facilidade muito grande de penetrar no universo alheio. Mudando um pouco de assunto, você tem apontado a predominância do discurso mercadológico no cinema brasileiro atual. Minha visão é muito clara. Eu faço uma análise histórica do que presenciei no cinema brasileiro. O Cinema Novo formulou uma experiência que eu chamo de cinema possível. Articulado contra a ideologia do cinema industrial, que imperava no Brasil. Agora, esse cinema possível criou uma deformação, porque passou a ser feito coletivamente. Num determinado momento, nós estávamos diante de um cinema profundamente angustiado com a realidade e impotente de transformar essa realidade sociopolítica numa imagem cinematográfica. Então, o discurso, o blá-blá-blá era muito mais importante do que a própria arte cinematográfica que ele se dispunha a fazer. O resultado disso foi um cinema frontal, teatral, em que o discurso era repetitivo. Tudo isso precedeu um período de autoritarismo muito forte que esse cinema viveu premonitoriamente. Quer dizer, ele também foi vivendo autoritariamente, confinando o real a uma forma autoritária de ver, de enfocar, de colocar diante da câmara os paradoxos da vida brasileira. Eu acho que esse cinema, de vocação libertária, foi vítima dessas circunstâncias exteriores a ele. Mais adiante, no período da repressão, o que resulta? A ideia maior desse cinema possível era a ocupação do mercado. E a ocupação do mercado foi se dar, paradoxalmente, com filmes que não tinham esse discurso: foram as pornochanchadas. Então, aconteceu uma espécie de reversão: hoje os filmes não são nem neurótico-políticos, eles são erótico-políticos, às vezes até pornô-políticos. Há bons filmes, nesse sentido, mas eu acho que um filme não é aceito por causa disso. Eu acredito que é principalmente a sinceridade dos filmes que vai fazer com que o público se sinta bem diante deles. Então, esses mesmos realizadores que estavam fazendo Cinema Novo passaram a namorar o mercado de uma maneira outra, passaram a namorar o grande espetáculo. Quase uma volta à ideologia do cinema industrial. É. É estranho, porque é exatamente o que, no ponto de partida, tinha sido negado. Então, o paradoxo é completo. Eu sei que tem aí um movimento dialético pouco claro, que eu não sei ver precisamente, mas é interessante que isso tenha se dado. E também que isso esteja gerando um impasse. Dele, pode resultar um cinema no qual o individual apareça, no qual os caminhos tomados por cada um sejam mais claros. E também no qual se perca aquela experiência coletiva. A Comédia e Seu Avesso 21 de dezembro de 1983 O REI DA COMÉDIA / The King of Comedy (1983), de Martin Scorsese Desde seu início de carreira, em Sexy e Marginal – pequena produção que mal se aguentou uma semana em cartaz em São Paulo – Martin Scorsese manifestou a preferência por mostrar, da América, o seu avesso. Não os grandes heróis ou vilões, mas a gente miúda: os candidatos a gângster de Caminhos Perigosos, a candidata a cantora de Alice não Mora mais Aqui ou ainda o boxeur decadente de Raging Bull. Personagens que ele olhou com mais atenção do que propriamente carinho, sem perder de vista um lado documental da vida americana que faz grande parte de sua modernidade. Eu nunca tinha visto, no entanto, um personagem tão avesso como esse Rupert Pupkin que De Niro interpreta, ainda uma vez com perfeição. Ele não é nada, ou antes, é o que no Brasil se chamaria macaco de auditório, tipo que ama perdidamente uma estrela do show business. Levando às últimas consequências a lógica de sua própria loucura, Pupkin dedica-se exaustivamente a imitar seu ídolo, o apresentador de televisão Jerry Langford (Jerry Lewis). Seu sonho: apresentar-se em seu programa nacional em rede de TV. Como Jerry o dispensa com todo o mau humor de que é capaz, Pupkin imagina um plano mirabolante: raptá-lo e exigir, como resgate, a oportunidade de aparecer no show de Langford ostentando o título de Rei da Comédia. Não é por acaso que Scorsese se fixa na televisão para compor sua fabulação. A TV é o próprio emblema de uma civilização que, dedicada exclusivamente ao consumo, abandonou todos os valores (éticos ou estéticos), em que já não se distingue o gênio do idiota, já que só interessa a corrente desenfreada que vai da venda ao consumo. Assim, a questão principal do filme é saber quem é Rupert Pupkin. Um idiota, por certo, mas que subitamente ascende à condição de gênio. Gênio porque, não se movendo por nenhum parâmetro, exceto a celebridade que a TV pode oferecer, ele percebe que só a veiculação conta. No momento em que é anunciado no palco, o que Pupkin tem a contar é apenas a dramática aventura que acaba de viver em companhia de Langford. Tendo sido apresentado como O Rei da Comédia, o que ele conta já não parece dramático aos espectadores, mas cômico. Um rótulo basta. Ser rei não implica, para Pupkin, ter alguma coisa a dizer, mas fugir ao anonimato, chegar à celebridade. Isso não constitui nem mesmo uma empreitada individualista, apenas atesta como, no fantasmagórico nada consumista, qualquer coisa ou qualquer um podem se impor como sucesso. Há que ser audaz, perseverante e, lógico, idiota. Porém, Pupkin, o idiota, não deixa de ser Pupkin, o gênio, na medida em que decodifica esse mecanismo perverso: verdade é o que aparece na TV. Ter sua imagem projetada num receptor não é apenas um critério de sucesso, mas também um estatuto de existência. Inútil acentuar o olhar sarcástico que Scorsese lança sobre esse mundo no qual a farsa não se distingue da verdade; no qual aquele que produz felicidade (Langford, no caso) está condenado à solidão e ao mau humor perpétuos. Essa ausência de vigor numa civilização que se contenta em absorver pacatamente o que quer que seja; em gerir o caos televisado sem oferecer nenhuma perspectiva aos viventes que não a reprodução infinita desse sistema – esse o centro mesmo do filme. Ou, digamos, um dos centros de um dos filmes mais ricos dos últimos tempos: um pesadelo preciso, que – se focaliza em particular a América do Norte – não deixa de valer para qualquer outro canto tomado pela tirania eletrônica. Mas sejamos otimistas: na simplicidade e depuração de Scorsese, pode-se ver uma reação contra esse mecanismo infernal. Filme ético, O Rei da Comédia é também uma postulação pela arte das imagens: um ato crítico que não se reveste de qualquer critério de autoridade; uma resposta cheia de humor e talento aos profetas da mediocridade. O avesso do pensamento dominante (mesmo em áreas autoproclamadas progressistas). Um filme, enfim, que não se pode perder. A Maldição de um Olhar além do Humano 8 de janeiro de 1984 O HOMEM DOS OLHOS DE RAIO-X / X: The Man with the X-Ray Eyes (1963), de Roger Corman O Homem dos Olhos de Raios-X, que a Globo mostra hoje, conta a história de um certo dr. James Xavier, que em suas pesquisas descobre um líquido capaz de ativar a visão humana (segundo ele, só usamos 10% de nossa capacidade visual). Incapaz de convencer os membros da fundação que o financia da importância de seu projeto, volta a trabalhar como médico. A poucas horas de uma operação em que deverá servir como assistente, Xavier constata – graças ao seu líquido – que o diagnóstico do médico-chefe estava dolorosamente errado. Para salvar a paciente, Xavier afasta com violência o outro médico e realiza ele mesmo a operação, com pleno êxito. O que ocorre em seguida é quase nebuloso. Perseguido pelas instituições médicas, Xavier termina por matar acidentalmente um amigo. O fato crucial é que um homem vê demais, mais do que lhe per-mite a instituição. Conhecer, no seu caso, significa violar a lei humana – ou a Lei, simplesmente. Não há volta atrás, pois o homem que vê demais não é dono, mas objeto de seu próprio destino: já estamos aí no domínio aberto da tragédia, mais especificamente de Prometeu Acorrentado. Acompanhamos, a seguir, a via crucis de Xavier, transformado em monstro de uma feira de variedades, obrigado a usar permanentemente um par de óculos negros que impedem a entrada de qualquer luminosidade. E trabalhando, sempre, em busca de um antídoto que faça retroagir os efeitos acumulativos do líquido que, de tempos em tempos, ainda injeta em seus olhos para poder ver melhor. Esse é apenas o início da intriga que se funda, essencialmente, sobre um personagem que seria o avesso de Goethe ao morrer: Xavier vê tudo, e é essa, precisamente, sua maldição. Xavier chega, pela totalidade da Luz, à totalidade da Treva (pela impossibilidade de ver já não tudo, mas além de tudo), à mais completa cegueira. O filme propicia inúmeras ideias sobre o crime de alguém enxergar além dos limites do humano – e os castigos aplicados pela própria comunidade àqueles que o praticam. Eles me impressionam menos do que a envergadura trágica que Corman confere a seu tema, a partir da identidade entre conhecimento e solidão. Para tanto, não é necessário que se afaste de umas tantas convenções da série B, como a caracterização típica do cientista ou mesmo a pobreza dos meios. Como em quase toda história de baixo orçamento, a que faltam tempo de rodagem e recursos até para elenco de apoio, a solidão é também um dado quase invariável, embora passível de nos interessar quando manejado por diretores capazes de tirar proveito da própria limitação de recursos. O extraordinário, no caso, é a reconversão de um tema clássico em narrativa perfeitamente popular e – mais – a maneira como Corman serve-se exclusivamente de imagens para contar sua história. Não se trata de desprezo pela literatura, ao contrário, mas de um forte investimento no meio que se pratica e que se ama. Fico com apenas um exemplo: a preciosa química que ao longo do filme vai transformando o rosto de Ray Milland (Xavier): nada se diz e no entanto toda vez que Xavier injeta uma gota de colírio nos olhos vê-se a operação que neles se opera, com o gradual crescimento das pupilas. Xavier é um homem isolado do mundo, não se tem notícia de qualquer amigo ou parente fora do trabalho. Sua única paixão é o conhecimento e, como toda paixão, também esta é inútil. Embora Xavier fantasie que suas pesquisas são para o bem da humanidade, é óbvio que só servem a seu próprio desejo. E ver mais, no caso, é um desejo intransitivo, que o separa dos homens. O olho é o registro desta situação amaldiçoada: o vemos, em sequência, normal, crispado, oculto pelos óculos, a pupila em crescimento, a pupila ocupando todo o globo ocular. o dr. Xavier vê, graças a sua descoberta. Para ele, Também não é de importância secundária o fato de a todo momento serem mostradas as imagens que essas imagens ultraluminosas são a visão mesmo; para nós, apenas a constatação do incompreensível. É, em suma, uma corda bamba em que o filme trata de (e consegue) identificar meio e temática, forma e fundo. Todos sabemos que um diafragma funciona à maneira de um olho humano. Ele se abre (assim como a pupila dilata) à medida que a luz se torna mais rara. A visão de Ray Milland passa por um processo contraditório a essa lei ótica: quanto mais seus olhos se mostram aptos a receber luz, mais as pupilas se dilatam; quanto maior a quantidade de luz recebida, maior a quantidade de que necessitam. A vontade de ver de Xavier se traduz, assim, por uma transgressão das leis físicas. Seu olho enuncia a simples impossibilidade de pensar isto, como diria Foucault: uma luz que, por ser tanta, só pode reverter em treva. Punição irreversível, como a de Prometeu ou Fausto. Mas também uma punição análoga à que o cinema reserva a todos os que dele se aproximam: pois o que ele é, senão essa tentativa de franquear a barreira dos 10% a que se refere Xavier? Numa cultura cinematográfica como a nossa, indecisa entre engatinhar e rastejar, a reprise pela TV do filme de Corman evoca essa identidade entre o cinema e essa vontade de ver, de investigar através de imagens. Uma maldição, talvez, mas sem a qual tanto a vida como a arte deixam de ter sentido. Um Grande Clássico do Faroeste 18 de fevereiro de 1984 EL DORADO (1966), de Howard Hawks Os filmes de Howard Hawks começam, quase sempre, com uma situação ou imagem monstruosa: o assassinato de um gângster, a morte de um piloto de corridas, a figura de um ser pré-histórico, etc. No caso de El Dorado, essa situação parece ter sido retardada (talvez para não se tornar semelhante demais ao início de Onde Começa o Inferno/Rio Bravo). Mesmo porque no segundo filme a trama é recorrente. Em Rio Bravo, John Wayne era o xerife que tratava de recuperar seu ex-assistente (Dean Martin), a fim de que, juntos, pudessem enfrentar os poderosos bandidos da região. Aqui, J. P. Harrah (Robert Mithcum) é o xerife, entregue à bebida após uma aventura amorosa infeliz, enquanto é o pistoleiro que trata de colocá-lo em – digamos – situação de combate para enfrentamento contra um poderoso grupo de pistoleiros. Não vem ao caso insistir, a não ser de passagem, sobre certas características clássicas do cinema hawksiano: a câmera à altura dos olhos, a recusa de qualquer efeito, a descrição de situações tão triviais quanto possível. Quem pôde ver Scarface na segunda-feira passada ainda estará por certo espantado com a modernidade de um estilo em que tudo, no entanto, parece simplicidade, em que os personagens falam pelos cotovelos, quase ocultando a importância – no entanto capital – das imagens. El Dorado é o segundo filme de uma trilogia sobre personagens do Oeste que se encerraria com Rio Lobo. O que mais espanta os espectadores, ainda uma vez, é a força de imagens aparentemente correntes. Vamos tomar apenas um aspecto, não negligenciável: Hawks, que começou sua carreira como aderecista, tem verdadeira obsessão por objetos que constituem extensões do personagem e por meio dos quais cria um envolvimento entre homem e meio. Em Scarface, as armas existem em perfeita continuidade com Tony Camonte, que é a própria encarnação do fogo, da mesma forma que a moeda atirada por Cesca é um apêndice indissociável de Guido Rinaldo, o seu duplo. Esses elementos podem ser encontrados em toda a filmografia de Hawks: o rinoceronte é o duplo de John Wayne em Hatari!, assim como os fósforos o são de Lauren Bacall em To Have and Have Not*. Em Levada da Breca, as coisas são até mais claras: o osso de dinossauro é, praticamente, condição de existência para o cientista Cary Grant. Em El Dorado, dois desses elementos são particularmente importantes: a bala que John Wayne (Cole Thornton) carrega dentro de si e a garrafa de bebida de J. P. Harrah. Essas duas extensões têm um papel essencial na trama: a bala porque imobiliza Thornton; a garrafa porque produz o mesmo efeito em Harrah. Não se insistirá sobre o magnífico equilíbrio do roteiro de Leigh Brackett: como o diretor gostava, não há supremacia de um personagem sobre outro. Eles se suprem e se completam. Ainda uma vez, aqui, a trama é motivo para a possibilidade de uma ligação amorosa. Como em Rio Bravo, Wayne rejeita a vida afetiva e tem, a seu lado, alguém cuja aventura amorosa decompôs seu universo profissional. A exemplo do faroeste anterior (e de todos os seus filmes anteriores, na verdade), a trama leva a um rompimento desta barragem do afetivo, restabelecendo o equilíbrio do universo. Obra-prima discreta, El Dorado é, no entanto, antes de mais nada trabalho a ser inserido no conjunto de uma obra, a mais rica, cinematograficamente, talvez já feita nos Estados Unidos: sempre igual a si mesma, sempre diferente pelas emoções que suscita. Talvez o último grande western; seguramente, o último grande western clássico: não só por se inserir perfeitamente na definição de André Bazin para o gênero, como por ser o derradeiro grande trabalho (se admitimos que Rio Lobo é ligeiramente inferior) dedicados ao Oeste por um dos veteranos de Hollywood, por um daqueles que, vindo do cinema mudo, inventaram o sonoro. * Lançado no Brasil como Uma Aventura na Martinica Lang, a Energia e a Destruição 24 de março de 1984 O GRANDE SEGREDO / Cloak and Dagger (1946), de Fritz Lang Realizado em 1946, O Grande Segredo é o último filme antinazista de Fritz Lang, que durante a guerra se dedicara a combater a política de Hitler por meio de seus filmes. Aqui, um cientista americano é subitamente transformado em espião, com o objetivo de contactar e tirar da Alemanha uma cientista que trabalha na fabricação da bomba atômica (o filme se passa, obviamente, durante a guerra). Já se vê, pelo simples enunciado da intriga, a semelhança com um filme posterior de Hitchcock, Cortina Rasgada (1966), para nos lembrar o diálogo que, por meio de filmes, os dois cineastas mantiveram durante muitos anos. Esse aspecto, contudo, é secundário. As pessoas que já viram os filmes alemães de Lang (mais acessíveis ao cinéfilo brasileiro) terão com certeza notado o conflito que ali se estabelece entre um rosto móvel (e curioso) e outro, rígido, que procura impor uma verdade. O sistema, com ligeiras variações, domina a obra alemã de Lang. Na fase americana – que inexplicavelmente alguns críticos consideraram decadente – o que se verifica é uma quebra do esquematismo que marca a fase alemã: como em O Segredo da Porta Fechada, um rosto pode ser a um tempo rígido e móvel (é o caso de Michael Redgrave), ou ainda, em The Big Heat*, o rosto de Gloria Grahame é metade belo, metade desfigurado: o Bem e o Mal convivem numa mesma pessoa, ao contrário de Metrópolis, por exemplo, no qual as duas instâncias são divididas em duas pessoas idênticas (a falsa e a verdadeira). O Grande Segredo tem em seu centro, ainda uma vez, este embate entre curiosidade e rigidez, vida e morte. E, mais especificamente, detém-se sobre a oposição entre energia e destruição: trata-se do momento em que o homem descobre a capacidade destruidora da energia nuclear. O personagem de Gary Cooper (o físico americano) se vê então diante de um dilema de assumir ou não uma energia destrutiva brutal. Na dúvida, ele se limita a tentar impedir o acesso dos nazistas a essa força. É muito pouco. Todo o filme é construído sobre uma fragilidadecentral doser humano, capaz de conhecer forças que escapam facilmente a seu controle. Não por acaso, a cena central do filme é aquela em que Gary Cooper elimina com suas mãos o agente do Eixo: momento de rigor absoluto num filme todo ele rigoroso, no qual Cooper descobre como sua energia pode ser desviada para a morte. Filme notável a cada plano, esse capa e espada moderno, atual como nunca, no qual esse cineasta que ficou conhecido pelo maníaco perfeccionismo (não por acaso era chamado o demônio de Hollywood) mostra, ainda uma vez, o alcance de suas ideias. * Lançado no Brasil como Os Corruptos Decifração Apaixonada e Furiosa do Mundo 4 de maio de 1984 M – O VAMPIRO DE DÜSSELDORF / M (1931), de Fritz Lang Impossível se queixar da atenção que tem sido dada aos filmes de Fritz Lang no circuito paralelo, nos últimos tempos. Em dois meses, aproximadamente, pudemos ver O Testamento do Dr. Mabuse e Os Mil Olhos do Dr. Mabuse (no cineclube da PUC), O Grande Segredo (no Lasar Segall) e O Segredo da Porta Fechada (na semana dedicada ao film noir pelo Cine Arouche). De todos, O Vampiro de Düsseldorf – que o Bixiga mostra neste fim de semana – é o mais conhecido: primeiro filme sonoro de Lang, o seu preferido também, nele Lang pretendeu compor – a partir do caso de um maníaco assassino de crianças – um retrato da decomposição da República de Weimar, no início da década de 1930. Há isso, é evidente, mas há outras coisas interessantes, desde o emprego do som até o uso de uma câmera extremamente móvel, em contraste com a obra muda do diretor, marcada pela câmera fixa. Não obstante, Lang retoma aqui temas que o ocuparam durante toda a vida, como a erupção no homem de forças maiores do que ele (não é casual a intimidade do diretor com a obra de outro austríaco, Freud) e, em particular, a convivência de dois seres em um só. Nenhum traço de maniqueísmo, mas também nenhuma complacência: o Bem e o Mal, o amor e a perversidade convivem na sociedade humana. Não lado a lado mas, se é possível dizer, um dentro do outro. Lembremos apenas um momento: quando a câmera mostra um anúncio de recompensa a quem der informações sobre o criminoso; um instante depois, uma sombra cobre o anúncio; logo a seguir tomamos conhecimento do rosto de M, o patético Peter Lorre. Esse trabalho de mise-en-scène faz o fascínio do cinema de Lang: um momento se segue ao outro como se estivéssemos abrindo um pacote... E assim sucessivamente. Esse procedimento, que está na base do cinema languiano, tanto o alemão quanto o americano, se acrescenta a um trabalho na relação tempo/espaço em que Lang se mostra mestre absoluto: porque nenhum encanto, aqui, vem puramente daquilo que se vê, mas da capacidade de marcar, no visto, o passado e o porvir; de criar um fluxo narrativo no qual, ao contrário de Hitchcock, nem tudo é dado antecipadamente ao espectador. Aí talvez resida a diferença essencial entre o cinema de Hitchcock (o suspense) e o de Lang (o mistério). Sem comparar valores, vem ao caso aqui fixar a visão de Lang sobre as coisas: o desvendamento do mistério, diferentemente de Hitchcock, não implica em solução de um impasse, mas na passagem do falso mistério (enunciado pela intriga) ao verdadeiro (o da relação do homem com o mundo). A presença de Peter Lorre em M de certa forma é sintomática do pensamento do autor. Ninguém ignora que o cinema é olhar, veículo que afirma e nega, num mesmo movimento. Neste movimento, poucos olhares são mais memoráveis do que o de Peter Lorre, o homem da capa: carregando seu corpo desproporcional de sombra em sombra, tentando escapar à maldição da luz como procura fugir à maldição de ser quem é (ou de ser, apenas). E, nesse corpo, há o olhar de Lorre, a um tempo infantil e perverso, vendo e carregando o perpétuo horror de ser visto e identificado. O Vampiro de Düsseldorf é, neste sentido, para o cinema, um pouco o que A Metamorfose é para Kafka: a projeçãode umcorpo desgraçadamente visível, um corpo desmesurado, que somente o inexplicável ato do criminoso torna habitável. Lang era um arquiteto, todos os seus filmes são marcados por essa interpenetração entre paisagem, o sentido e o homem. Não é impossível que para ele o ser humano seja um mau arquiteto criado por um deus também mau arquiteto. A arte para Fritz Lang teria (a se confirmar esta hipótese apressada) a função, megalomaníaca, de corrigir os deuses, seja desvendando seus desígnios, seja enunciando a queda do homem. O Vampiro de Düsseldorf é exemplo da decifração apaixonada e furiosa de um universo no qual a possibilidade de salvação é pequena, para não dizer nenhuma. Mas isso é só um pouco do que ainda resta ver neste cineasta inesgotável. Ou, como disse de Sade o poeta Marcelin Pleynet: cada vez mais legível, porque está por ser lido. Murnau, o Gênio e a Audácia 3 de julho de 1984 A ÚLTIMA GARGALHADA / Der Letzte Mann (1924), de F.W. Murnau A Última Gargalhada – como é conhecido no Brasil – ou O Último Homem – como o chama o Consulado alemão – é o feliz encontro de alguns dos maiores talentos do cinema alemão dos anos 1920: o ator Emil Jannings, o roteirista Carl Meyer, o fotógrafo Karl Freund e o diretor F. W. Murnau. É difícil precisar a parte de cada um no êxito e na perenidade do filme, mas com certeza pode-se afirmar que se trata de um dos momentos mais importantes da história do cinema. O roteiro diz respeito a um porteiro de hotel que, devido à idade avançada, é deslocado de suas funções para a de limpador de banheiros. Desde o início, Carl Meyer pensou em colocar a ênfase do roteiro na perda do uniforme pelo homem: sinal de sua posição face ao meio social, retirado abruptamente. Existe uma enorme beleza de concepção, pois Meyer não visou um homem importante, mas alguém modesto, cuja modéstia, no entanto, não o impedia de ter orgulho de seu cargo, nem de ver nele a razão, quase, de sua existência. Se de Emil Jannings pode-se dizer que deu uma composição sensível ao personagem, são de Murnau e Freund os maiores méritos. Este último conseguiu dar vida à ideia do diretor, que lhe pedira o emprego de uma câmera tão ágil quanto possível. Já o papel de Murnau é quase interminável, e para melhor avaliá-lo podemos recorrer ao que o então jornalista Marcel Carné (importante diretor francês dos anos 1930/1940) escreveu: Colocada sobre um carrinho, a câmera deslizava, subia, descia, se infiltrava em toda parte onde era preciso estar para o desenvolvimento da intriga. Ela não era mais imóvel, mas participava da ação, tornava-se personagem do drama. Não eram mais os atores que vinham se colocar frente à objetiva, mas esta que os surpreendia. O depoimento é tão mais importante quanto capta o impacto causado pela audaciosa linguagem de Murnau: mais tarde, seus movimentos influenciariam amplamente o desenvolvimento da linguagem cinematográfica em todo o mundo. Naquele instante, contudo, representavam mais do que isso. Num momento em que o cinema mudo apenas começava a chegar ao apogeu (1924), Murnau conseguira a proeza de filmar todo um longa-metragem sem se valer de legendas. Ou seja: narrando uma história e criando sentido apenas pelas imagens, pela capacidade de explorar dramaticamente seu assunto. Tal empreitada poderia parecer, hoje, um tour de force superado, o que não acontece. A agudeza de seu olhar, a sensibilidade com que se vale de recursos de câmera (plongées ou contraplongées dando ideia do estado de espírito dos personagens, por exemplo), ainda hoje permanece moderna e discreta: ao primeiro olhar, o espectador apenas se preocupa em seguir atentamente o desenvolvimento da intriga. Mais tarde, apenas, pensará em como as plongées (câmera alta) esmagam Jannings quando ele está no banheiro, ou como a contraplongée (câmera baixa em relação ao personagem) consegue engrandecê-lo e dar a medida de seu orgulho quando passeia com o seu uniforme a caminho de casa. Não é menos impressionante a maneira econômica como se empregam certos recursos estritamente cênicos nesse filme sublime: assim, a porta giratória do hotel, funcionando como uma roleta, consegue transmitir a ideia talvez central do filme, sem que uma palavra seja necessário dizer (no caso escrever, valendo-se de legendas) sobre o assunto: a inconstância e mistério da existência. Invenção e Aventura do Cinema 9 de agosto de 1984 Ver um filme, qualquer um, já é de certa maneira ver um filme de Griffith: tudo já está lá, com exceção do som e da cor. Ver um filme de D. W. Griffith, porém, significa um pouco mais: é como dar um passo à Lua, participar de uma invenção. Uma sensação que temos frente aos filmes de Lumière, Méliès, alguns poucos mais. Mas, se os Lumière inventaram as imagens em movimento e Méliès descobriu a relação entre elas e o sonho (o ilusionismo), a Griffith devemos sua sintaxe. Não por acaso, os que o conheceram e com ele se formaram só sabem dizer maravilhas dele, como Raoul Walsh (que foi seu ator e assistente). E Godard escreveu certa vez que qualquer artigo sobre cinema deveria necessariamente mencionar Griffith. Tudo, praticamente, está no cinema de Griffith: do flashback ao primeiro plano. É com ele que surge o ponto de vista subjetivo, isto é, a consciência de que o cinema é uma relação entre os olhares (ideia que encontraria seu pleno desenvolvimento em Lírio Partido/Broken Blossoms). Com ele, o espaço começa a se organizar de outra forma que não a do teatro. Com ele, finalmente, a montagem paralela surge (em O Nascimento de uma Nação) e revela a possibilidade, especificamente cinematográfica, de associar dois espaços diferentes numa mesma continuidade ou de enfeixar tempos diversos em torno de uma mesma ideia (ou antes: na construção de uma ideia; e disso não há melhor exemplo do que Intolerância). Como bem observou Ismail Xavier, o trabalho de Griffith deu origem ao cinema narrativo clássico. Outras hipóteses sobre a narratividade vieram depois, mas isso importa menos: é a partir de Griffith que o cinema pensa por si mesmo o mundo e adquire uma sólida capacidade de, ao mesmo tempo, se pensar. Nessa mesma linha, podemos também observar a hipótese bastante ousada de Sheila Schvarzman: a cristalização de suas diversas invenções em O Nascimento de uma Nação representa o momento em que o cinema passa a criar uma interpretação autônoma da História, na medida mesmo em que se torna capaz de articular histórias dentro de um espaço/tempo próprios. Com Griffith, a câmera de cinema já não é o objeto neutro, registro de algo que lhe é exterior. É, ao contrário, um aparelho ideológico. Mais do que pensador, Griffith é o papai do cinema: não um criador de filmes, mas de uma arte. Dessa aventura intemporal que é a invenção, poderemos ver, hoje, dois momentos: O Fugitivo (1910) e A Moça que Ficou em Casa (1919) no auditório da Folha. Obra de um Mestre, em Filme Comovente 8 de setembro de 1984 MEMÓRIAS DO CÁRCERE (1984), de Nelson Pereira dos Santos Adaptação para cinema do romance escrito por Graciliano Ramos a respeito do período em que esteve preso sob o Estado Novo, Memórias do Cárcere representa talvez o principal momento na carreira de Nelson Pereira dos Santos, e não é por bondade que em torno dele criou-se uma espécie de unanimidade nacional: sobre um tema árido (a prisão e suas misérias), Nelson Pereira conseguiu construir, ao longo de mais de três horas, um espetáculo comovente, belo e seco, no qual nada figura gratuitamente. É o filme de um mestre em pleno domínio de seus meios, capaz de levar o afeto do espectador, jogar com seus sentimentos, tirar-lhe o fôlego, levar-lhe às lágrimas. Mas é, sobretudo, um filme sobre a escrita e a prisão. A prisão como metáfora do Brasil, claustro da inteligência, país feito de segmentos estanques, onde dificilmente se pode comunicar as experiências pelas quais se passa (a introversão do ator Carlos Vereza é, disso, um nítido sintoma, assim como a importância que adquire o buraco pelo qual homens e mulheres conseguem se comunicar numa das prisões). Por outro lado, é um filme sobre o cinema. Ali onde o escritor anota, rabisca, lembra, o cineasta decupa: hierarquiza, organiza imagens, distingue gestos, recorta no infindável universo visual aquilo que importa. Em uma palavra, faz do cinema um espetáculo lisível. Essa identidade entre tema e forma faz a força de um filme que, à força de rigor, pode ser considerado, ao lado de Inocência, de Walter Lima Jr., como o mais perfeito realizado no Brasil nos últimos anos. Definidos seu limite e seu objeto, não é exagero dizer que nada lhe escapa: dos mínimos detalhes referentes à sobrevivência (como, por exemplo, os pratos de comida mostrados de prisão em prisão) às grandes ideias de Graciliano (o personagem) sobre a liberdade e a dignidade, tudo tem seu lugar e seu tom. Harmonia rara e que o próprio Nelson Pereira dos Santos não conseguira atingir desde Fome de Amor, no fim dos anos 1960. O Movimento e os Mistérios da Vida 5 de outubro de 1984 INOCÊNCIA (1983), de Walter Lima Jr. No começo, há um prólogo em que se encontram o jovem médico viajante (Edson Celulari) e o pai de Inocência (Sebastião Vasconcelos). Em seguida, vê-se pela primeira vez o quarto de Inocência (Fernanda Torres), e nesse momento a ênfase não vai para a personagem, mas para o véu branco que envolve seu leito. Essa veladura define o destino da personagem, assim como o do filme, e de certo modo os identifica. É que esse véu não designa um ocultamento, mas uma superfície e uma relação com a natureza. Mais tarde, veremos, esse véu se transformará em cachoeira – fluxo contínuo e harmônico, correspondência segura do amor entre Inocência e o jovem médico. Veremos, igualmente, que a forma desse leito se assemelha à de uma borboleta: animal que constitui o centro das preocupações do entomólogo alemão, curioso personagem obstinado em capturar esse ser, em reter algo que se distingue pelo movimento e reduzi-lo à imobilidade, em transformar o ser vivo em objeto de dissecação. Esses elementos – parciais – definem já uma ideia do cinema segundo Walter Lima Jr. Como essa tensão entre o movimento e sua análise, a contemplação e o entendimento do fenômeno. E, ao nos dar uma ideia de cinema, pela exclusiva manipulação de elementos cênicos, nos mostra igualmente uma ideia da vida. Algo tão delicado e sensível que em relação a ela todo cuidado, todo respeito, é pouco. Daí, o equilíbrio entre as três personagens masculinas: o entomologista é aquele que imobiliza e mata para conhecer; o pai é quem mata por desconhecer e passar ao largo da natureza; o médico é quem concilia natureza e ciência, conhecimento e paixão. De outro lado, Inocência, personagem que encarna a tal ponto a fragilidade do humano que, tão logo a vemos, percebemos estar diante de alguém que já morreu, ou melhor, cuja existência consiste exatamente em demonstrar a fragilidade, a presença da morte na existência humana. A primeira aparição de Inocência é definitiva: um véu a envolve, por trás do véu nada existe, senão outro véu; atrás da superfície, outra superfície. É a encarnação do diáfano, de algo que, embora transparente e sensível à luz, não se deixa apreender como forma. É a borboleta, cuja existência se dá, desde sempre, como transformação e movimento. Quando capturada, nomeada, ela já não é mais nada; é expressão de sua própria morte; algo tão inconcebível como uma cachoeira na qual a água não corresse. Cito acima alguns elementos cênicos de Inocência: impossível conceber esse filme de outra forma. Porque mesmo a evolução dramática da narrativa existe exclusivamente em função deles. E porque Inocência é um filme de cinema, o mais belo, o mais puro, o mais moderno. E Walter Lima Jr. é o maior crítico de cinema brasileiro, não por acaso. Inocência é, por isso, filme de uma beleza humana rara e manifesto cinematográfico de raro vigor. A delicada película que – como a cachoeira – corre cadenciada no interior da câmera é um instrumento de conhecimento, mas peculiar, na medida em que só lhe é dado conhecer em movimento e ao movimento: sua natureza exclui a imobilidade imposta ao objeto pelo taxidermista, sua estranha superfície é esta na qual a vida e seu fantasma se encontram, relacionam-se sem nunca parar, na qual a captação estática (e isso é o filme, fotos a 1/24 de segundo) e projeção em continuidade se completam. Feliz, rara coincidência em que matéria (visual) e espírito se encontram, Inocência é um filme que nos introduz à vida como mistério, porque só concebe o cinema como mistério, elo entre o visto e o ser, criando e transformando a existência. Não temamos a patriotada: é um grande filme do cinema. Uma Radiografia do Cinema 23 de outubro de 1984 BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO / Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni O sucesso do filme é, quase sempre, resultado de um mal-entendido. A fama dos autores também. Antonioni fez nome em cima da incomunicabilidade e da angústia existencial de seus personagens. Ao revermos seus trabalhos, podemos bem perguntar por que ganharam essa fama personagens que diziam tudo o que tinham a dizer, em filmes sempre carregados de emoção e nunca de tédio. Blow-Up veio, na obra de Antonioni, logo após O Deserto Vermelho e, já de saída, espanta multidões: o que simbolizavam aqueles dois persona-gens jogando tênis sem bola, ao final? É o menor dos enigmas dessa história, que começa com um fotógrafo batendo chapas de um casal (aparentemente apaixonado) numa manhã londrina. Em seguida, ele leva o filme ao estúdio e começa a revelar as fotos. Depois as copia. A cópia lhe dá a impressão de que havia fotografado um crime. (E já então estamos num universo contíguo ao de Janela Indiscreta, de Hitchcock, a quem nunca se acusou de incomunicabilidade). O fotógrafo começa a ampliar as fotos, detalhes das fotos. E cada uma dá a certeza (até pelo efeito de montagem que produzem quando alinhadas) de ter documentado um crime. A partir daí, estamos diante de um delicado equilíbrio: dúvida e certeza, sombra e luz, revelação que é mistério. A foto que se amplia mostra o detalhe, mas ganha em granulação, perde em nitidez. A câmera executa exatamente aquilo que Antonioni sempre se preocupou em fazer dela: colocar-se dentro dos personagens. Mas, quanto mais se aproxima deles, mais a realidade se fragmenta, mais difícil se torna alcançá-la. A menção inicial a Janela Indiscreta tem mais de um sentido. Se há cineasta que influenciou Antonioni é Hitchcock. E Janela Indiscreta é um filme exatamente sobre a operação essencial do filme: o olhar e o registro. O fotógrafo de Blow-Up, no entanto, faz aquilo que o de Janela não faz: fotografa. E ao fazê-lo propõe um desdobramento na investigação do trabalho cinematográfico. Em vez de olhar e fantasia – elementos privilegiados de Hitchcock – temos o olhar e seu registro; o registro e a associação dos fragmentos que ele supõe (a montagem); a fragmentação e a projeção (una e linear). Blow-Up nos informa desse circuito que vai da captação do real à fabricação de um novo real, projetável. É uma radiografia do cinema no que tem de mais fantástico: máquina que capta o mistério, ao projetá-lo já não mostra o real, e sim o mistério do filme. A Saga dos Heróis da América 24 de janeiro de 1985 OS ELEITOS / The RightStuff (1983), dePhilip Kaufman Quem pensou que Os Eleitos, por ser uma história de astronautas, retomaria em ponto menor a parafernália de efeitos da série Guerra nas Estrelas se enganou. Quem temeu que, por ser um filme de aventuras, se veria precipitado numa montanha russa de emoções epidérmicas, como em Indiana Jones, pode perder o medo. Os Eleitos é feito contra esse cinema do qual Spielberg e George Lucas viraram mais ou menos os símbolos. E no entanto é um filme de aventuras – e dos melhores – retraçando os primeiros momentos da corrida espacial, quando os engenheiros americanos ainda tinham o hábito de dar vexame a cada lançamento e, em plena guerra fria, o chamado mundo livre tinha de se curvar estupefato ante os avanços soviéticos. Arte do momento, o cinema consagra os cineastas que tomam um assunto em seu tempo exato. De Philip Kaufman, a primeira coisa a dizer é que soube captar o sentimento da guerra fria na era Reagan. Mas, segunda virtude básica de um cineasta, soube também dar ao público aquilo que ele queria ver mas ainda não sabia. Jogou de lado o primeiro roteiro (escrito por William Goldman) e readaptou ele próprio o livro de Tom Wolfe, reintroduzindo o personagem de Chuck Yeager, o primeiro homem a voar mais rápido que o som. Yeager fazia parte de uma seleta comunidade de pilotos da Força Aérea cujo prazer consistia em arriscar a pele solitariamente, buscando sempre abrir novos limites à experiência e, sobretudo, à percepção humana (em todo o filme a percepção é problematizada). Yeager (magistralmente interpretado por Sam Shepard) é um desses homens excepcionais. Por acaso, o melhor. Quando, já nos anos 1950, o governo americano lança o projeto Mercury, destinado a enviar os primeiros astronautas ao espaço, é a esses homens da base Edwards que recorre. Os melhores – e mais consagrados – não aceitam. Ser astronauta, para eles, era ser uma espécie de macaco sofisticado. Sem decisões a tomar, sem necessidade de pensar. Os novatos, os que tinham muitas pretensões mas poucas chances, é que topam a parada. E partem para a conquista do espaço cercados de uma publicidade que Yeager nunca tivera, e que de resto não o interessava. Seria fácil tomar o partido dos astronautas – o que o roteiro original fazia –, para alegria do patriotismo americano. Seria fácil tomar o caminho oposto e erigir um obsoleto aeronáutico, os bons tempos em que o ser humano valia mais do que a máquina em paradigma perdido. A inteligência do filme de Philip Kaufman (aliás, mais um egresso da escola de Roger Corman) consiste justamente em olhar o futuro sem perder de vista o passado. Em estabelecer uma continuidade na linhagem dos heróis americanos. Do resto, o autor é muito claro quando diz que toda a questão do filme é saber por que o faroeste terminou. Arte do movimento, o cinema busca sua beleza numa sutil relação entre gestos e ideias, imagem e roteiro. Seu sentido é ser moderno. Não importa o que diz um filme, mas o que mostra. Não importa que sua narrativa se assemelhe ao romance do século XIX, mas precisamente que sua existência tenha tornado obsoleta a maior parte dos romances escritos, capazes de descrever uma ação, mas não de mostrá-la. Ora, qual a evolução do espectador de cinema nos últimos anos? Em vista de tantos filmes que se propunham a ele como inteligentes, portanto decifráveis, aprendeu a decifrar. Mas – como sustenta Eric Rohmer – desaprendeu a ver. O filme de Philip Kaufman retraça não só uma trajetória da conquista espacial, como a do cinema. Ao herói solitário – cowboy por excelência – sucederam máquinas publicitárias impessoais capazes de toldar a visão. Chuck Yeager, solitário e esquecido, é o contraponto perfeito dos sete astronautas festejados sem terem feito absolutamente nada (ainda). Mas, por trás da máquina publicitária – é esse o mérito maior do filme –, vê-se que ali estavam os eleitos, os homens destinados a buscar os novos limites do humano, enquanto Chuck Yeager comia areia e realizava novos feitos, mas sempre redundantes: os novos Chuck Yeagers. Olhar para o passado, com atenção mas sem complacência; olhar para o futuro com desconfiança, mas sem medo: essa parece ser a fórmula encontrada por Os Eleitos para reconciliar o cinema americano com seus gêneros mais clássicos (o faroeste, a aventura, o filme de exploração) sem perder a dimensão da modernidade. É um filme de emoção e reflexão como há muito não se via, um filme que busca – e encontra – a pertinência no que dá a ver, não no que propõe à decifração. Volto, agora, ao início, quando disse que esse era um filme francamente contra os Indiana Jones ou Guerra nas Estrelas. Não que estes sejam desprezíveis. Simplesmente, partem de uma mentalidade alarmista, segundo a qual é preciso encher os olhos do público com mais aventura e mais tecnologia, de modo a escapar à concorrência da TV. Para Os Eleitos, ao contrário, o cinema é por excelência o terreno da emoção. E, se essa emoção surgia quase espontaneamente no cinema americano clássico, a atualidade coloca problemas para encontrá-la, mas não pode tê-la abolido. Buscar a linhagem de seus heróis, entender que ação não é necessariamente agitação, ou, como diz ainda uma vez Rohmer, que o movimento é o ser de cada coisa – este parece ser o dado básico de um filme construído sobre os seres e sua existência. Só os anjos têm asas. Mas esses anjos existem e, por moverem-se, deslocam um pouco a Terra e cada um de nós. Esse registro do abismo, do mistério, da absoluta opacidade da vida – tão frequente no cinema americano passado – Os Eleitos traz de volta até nós. Renovados, mas plenos. No Domingo, Três Filmes para não Esquecer 3 de maio de 1985 ESTRADAS DO INFERNO / Jet Pilot (1957), de Josef von Sternberg ONDE COMEÇA O INFERNO / Rio Bravo (1959), de Howard Hawks SCARAMOUCHE (1952), de George Sidney Em 1930, quando preparava as filmagens de Marrocos, Josef Von Sternberg contou a Howard Hawks como visualizava a entrada em cena de Marlene Dietrich, na primeira sequência do cabaré: toda de branco, num vestido com muitas rendas e cercada de flores por todos os lados. Hawks torceu o nariz e propôs uma solução simetricamente oposta. Marlene entraria sem nenhum adorno, com roupas pretas e vestida de homem. Sternberg ouviu o palpite do amigo e fez, a partir dele, uma das mais eróticas sequências do cinema nos anos 1930. O episódio não nos deve enganar: os dois mestres de quem serão mostrados hoje Estradas do Inferno (Sternberg) e Onde Começa o Inferno (Hawks) tinham em comum essencialmente o antiexpressionismo herdado de Murnau. No mais, seus estilos eram bem diferentes: Sternberg partia de situações coloquiais e gostava de levá-las a extremos (lembremos O Anjo Azul); Hawks era um especialista em, mesmo ao tratar de grandes temas (Scarface, por exemplo, é baseado na biografia de Al Capo-ne), rebaixar o tom da narrativa, esvaziando-a de todo conteúdo espetacular. Se Onde Começa o Inferno (Rio Bravo, na pia batismal) é uma obra-prima do faroeste, isso se deve em grande parte a esse tipo de visada. Ali, onde Ford transforma a História em mito, Hawks reduz a legenda à sua dimensão mais prosaica, a história a uma sucessão de pequenos acontecimentos cotidianos, cortados por momentos de tensão. John Wayne é um xerife que, às voltas com um grupo nada desprezível de bandidos, conta, a seu favor, apenas com o velho Walter Brennan e o bêbado (outrora homem da lei) Dean Martin. Todo o seu esforço, à parte aparar as investidas dos bandidos que pretendem tirar da cadeia um de seus chefes, consiste em curar Dean Martin de seu porre eterno e devolvê-lo à vida útil (de pistoleiro). A oposição entre Rio Bravo e o cinema de, digamos, John Ford, é que em Ford o combate se reveste de uma aura heroica; já em Hawks, ele é estritamente profissional: Wayne tem uma obrigação a cumprir e a cumpre. Ponto. Não por acaso, o filme surgiu em oposição a Matar ou Morrer, de Fred Zinnemann, em que o xerife ficava pedindo ajuda à população para enfrentar a bandidagem. It is not professional, comentou Hawks. Mas, se Rio Bravo é uma obra-prima, não é apenas por colocar em cena os princípios fundamentais do cinema hawksiano: subentendidos, prosaísmo, câmera à altura do homem, amizade masculina, medo da mulher. O importante é que em torno desses elementos se organiza um universo perfeitamente hierarquizado e dilacerado entre dois polos essenciais: a racionalidade (homem, profissão) e a irracionalidade (mulher, desejo). Porque todo filme de Hawks descreve a trajetória de um homem (no caso, Wayne) que recusa o amor de uma mulher (aqui, Angie Dickinson). Toda a história conduz à aceitação do desejo, ao casamento da razão com o irracional, da função com o prazer. E, se Rio Bravo é um prodígio de equilíbrio, deve-se à distribuição impecável dos pesos jogados por esses dois polos. Podem existir filmes em que o espectador vibre mais; dificilmente haverá um outro de realização mais difícil: 141 minutos praticamente sem história e, ao mesmo tempo, completamente cativantes. Em Estradas do Inferno, John Wayne também pontifica. Se é possível concordar que o cinema de Hawks, como diz Jean Douchet, no fundo aspira a ser um cinema safado, o de Sternberg aspira pura e simplesmente à demência. Aqui, o caso é limítrofe: realizado em 1951, para servir de propaganda à guerra fria, ficou congelado até 1957. Claro: a aviadora russa que pede asilo nos Estados Unidos é nada menos do que uma Janet Leigh luminosa de beleza, charme e inteligência, deixando prostrado o bronco John Wayne. Tão ambíguas são as situações que no fim já não se sabe se os russos são os vilões ou os heróis. No fundo, nem um nem outro: o cinema de Sternberg busca sua força no encontro dos contrários e na substituição de seres reais por fantasmas, formações puramente imaginárias. Estradas do Inferno desmente na lata a ideia de um Sternberg decadente: estava no auge. E não por acaso esse foi considerado o filme mais erótico de todos os tempos. Basta ver as cenas aéreas, em particular o voo-cópula dos aviões de Wayne e Janet para comprovar. Quem não ficar satisfeito, remeta-se ao strip-tease que Janet faz logo no início diante do boquiaberto Wayne. Frente a esses dois filmes, Scaramouche fica um degrau abaixo. George Sidney, um especialista em musicais, faz de cada luta de espadas um verdadeiro balé. Cada plano transborda de imaginação e leveza. Não bastasse isso, eis aqui de volta Janet Leigh e, de quebra, Eleanor Parker, ambas apaixonadas por Stewart Granger, um grande ator que, não se sabe por que, ficou com a fama de canastrão. Scaramouche encerra uma noite que dificilmente será esquecida pelos cinéfilos: não é todo dia que temos a chance de ver três filmes tão importantes. Um Cinema Moderno, entre o Real e o Delírio 10 de junho de 1985 A visão em conjunto dos filmes de Méliès mostra muito mais do que um artista inventivo lidando com meios primitivos. Com o primeiro cineasta de ficção inaugura-se, na verdade, a linhagem de autores que mais tarde daria em Orson Welles: os que veem no cinema uma maneira de questionar as imagens e sua verdade. Em seus filmes, sempre somos confrontados com essa espécie de dilaceramento em que a mentira magicamente se converte em verdade, o que é passa a não ser no instante seguinte, a fantasia se converte em realidade e, finalmente, o real em delírio. Esta é, em toda extensão, a arte da trucagem inventada por Méliès e que faz de seu cinema eterno e moderno. Longe de um estágio primitivo, a ver com certa complacência, teremos pela frente uma arte de rara modernidade e perfeição. Embora realizado em 1899, o Autorretrato, em que Méliès aparece simultaneamente se pintando e aparecendo numa tela, é talvez a primeira manifestação de metalinguagem cinematográfica; o cinema, ainda nascente, já se questionando. É um procedimento que lembra Um Corpo que Cai, de Hitchcock, 59 anos depois. Da mesma forma, Viagem à Lua, de 1902, não é apenas a premonição de, digamos, 2001, uma Odisséia no Espaço, de Kubrick. A Lua com cara de queijo, que avança na direção dos espectadores, sorriso aberto e um piscar de olhos, é um momento de imaginação fantástica e autônoma, em que se introduzia no cinema, senão o espaço, ao menos a relação entre espaço e tempo. Os filmes de Méliès nos reservam outras belezas. O papel de diabo, que ele próprio gostava de representar, fala não só do pensamento anárquico de seus filmes, como significa, de certa maneira, que o cinema – arte das imagens em movimento – já nascia do lado do diabo: desconcertante, desorganizador de toda a ordem artística vigente e abrindo caminho para uma nova forma de conhecimento: a que se define pela captação e projeção de imagens vivas. Verdade (ou mentira) a 24 quadros por segundo. Méliès traz em seus filmes a essência do cinema. E hoje estaremos em contato com ela, tanto mais que, na sessão da Aliança Francesa, um piano estará tocando músicas compostas especialmente para estes filmes. As Imagens Perfeitas de Ozu 16 de junho de 1985 BOM DIA / Ohayô (1959), de Yasujiro Ozu O tema é simples até a singeleza: dois meninos da classe média japonesa fazem uma greve de silêncio em protesto contra a atitude de seus pais, que se recusam a comprar um aparelho de televisão. Em torno desse pequeno fio dramático desenvolvemse algumas histórias dando conta dos pequenos problemas, atividades e ambições dos vizinhos. Em suma, Bom Dia é um típico gendaigeki, gênero estritamente japonês que se poderia definir como um cinema caseiro, no qual os problemas domésticos têm o peso principal. Na maior parte das vezes, esses filmes (em que a Shochiku era especialista) eram melodramas, mas também podiam perfeitamente ser comédias, como é o caso de Bom Dia. Yasujiro Ozu não é, desgraçadamente, um cineasta a que tenhamos acesso fácil no Brasil, atualmente. As cópias que existiram nos anos 1950/1960 desaparecem ou voltaram para o Japão, o que tira a possibilidade de ver novamente A Rotina Tem Seu Encanto, seu último e magistral filme, de 1962. Bom Dia foi realizado em 1959 e, em todo caso, exemplifica bem o funcionamento desse cinema: Ozu usava apenas uma lente (a objetiva 50 mm, isto é, que reproduz a visão humana com mais fidelidade do que as teleobjetivas – que aproximam os objetos e diminuem o campo focal – ou as grandes angulares – que distorcem as linhas laterais), raramente movimentava a câmera e, com frequência muito maior do que a habitual, colocava a câmera baixa – à altura do homem sentado no tatame. Esse tipo de procedimento só encontra similar no francês Robert Bresson, embora os resultados sejam diferentes. Ozu era um cineasta zen por excelência. Ao vermos seus filmes, o primeiro olhar é extremamente cruel para com as aparências. Todo um mundo (o familiar) organizado em torno de certos ritos e crenças, que se recusa a questionar, desmorona diante da inflexível imobilidade da câmera. Mas existe um segundo momento em que, magicamente, a aparência, destruída, parece se recompor. O que era, de início, epidérmico, agora se vê como uma ponta de iceberg: parte visível de fenômeno muito mais profundo. Esse tipo de visão das coisas fez com que, não raro, Ozu fosse classificado como um cineasta imobilista. Pode ser, desde que se conceba a História humana como um movimento contínuo em direção a alguma coisa. Ozu não parece partilhar desse ponto de vista. Mesmo ao abordar um fenômeno moderno – a introdução da TV na vida cotidiana, isto em 1959 – é esse movimento que leva do aparente ao essencial para, num terceiro momento, dar a ver uma aparência que é reflexo de essência – o que parece interessá-lo. Não é por acaso que se tem Lévi-Strauss por fã. O mais estranho, para o espectador que começar agora a tomar contato com essa obra invulgar, é que essa simplicidade de monge se traduz em imagens extremamente leves, numa fluência narrativa rara e, no caso específico de Bom Dia, num humor que segue do começo ao fim sem tropeçar na simplicidade franciscana. Não é coisa que se veja todo dia: são atributos de poucos mestres, que, à força de procurar a dificuldade, acabam por manipulá-la como se se tratasse da coisa mais corriqueira do mundo. Bom Dia, que hoje será visto no Cine Shochiku, é um espetáculo para não ser esquecido: pequenos gestos, movimentos sutis, palavras ditas ao acaso – desses elementos mínimos veremos nascer na tela seres espantosamente vivos, um pensamento agudo sobre a cultura, a disposição dos objetos, o significado da linguagem (pois é uma greve da linguagem o assunto central). Ozu já fez melhor, é verdade. Mas, que importa, se fazendo um filme menor ele o fez perfeito? O Vampiro Ressuscita na Era da Televisão Folha de S. Paulo, 22 de maio de 1986 A HORA DO ESPANTO / Fright Night (1985), de Tom Holland Para matar um vampiro, a receita clássica manda enterrar uma estaca em seu coração. Já para ma-tar o Vampiro, entidade mitológica construída em torno do horror à sexualidade, foi preciso um pouco mais: uma era de permissividade (em que se pôde acreditar no fim desse horror), mais a TV (que banalizou a imagem). Os dois elementos, televisão e sexualidade, reaparecem em A Hora do Espanto, de Tom Holland, que estreia hoje em São Paulo, desde os primeiros momentos, quando, em um longo travelling (com diálogos de filme de horror no áudio), a câmera penetra em uma janela. Mas lá o que se encontra é apenas um programa de televisão, A Hora do Espanto. Quem enfia os dentes no pescoço e tudo o mais de sua vítima é Charley Brewster (William Ragsdale), empenhado em conseguir que sua namorada, a também adolescente Amy (Amanda Bearse), tenha relações sexuais com ele. Amanda tenta desviá-lo, chamando a atenção para a presença, na TV, de Peter Vincent (Roddy McDowall), o veterano astro de horror, que apresenta o programa. Com um pouco mais de insistência, Charley consegue que ela concorde em fazer amor. Mas, nesse momento, Charley dá para trás: vê, na tétrica casa vizinha, um caixão sendo conduzido até o subsolo. Não pensa mais em sexo; pensa em vampiros. Amy pensa que ele está dando para trás. Com razão, aliás. A primeira coisa a dizer de A Hora do Espanto é que não esconde suas garras. Desde a menção a dois atores clássicos de filmes de Drácula (Peter Cushing e Vincent Price, unidos no nome de Peter Vincent), a ideia de pastiche estará presente do começo ao fim. O diretor e roteirista Tom Holland retoma os procedimentos de mais ou menos todos os filmes de vampiros, dos instrumentos para identificar vampiros – espelho, cruz, etc. –, ao artificialismo de certas situações – típico dos filmes de série B. Retoma também algumas convenções funcionais (a incredulidade geral que cerca a possível existência do vampiro, por exemplo), pelas quais o próprio público é atraído da incredulidade à crença, se não nos vampiros, ao menos nas imagens. A primeira trucagem feita no cinema, por Georges Méliès, consistia em fazer sumir uma imagem (pessoa ou objeto), sem alterar o restante do quadro. Não é de espantar que – desde pelo menos Nosferatu, o Vampiro (1922), de Murnau, passando pelo Drácula (1931), de Tod Browning – e todas as sequências, renovações e paródias, os vampiros tenham sido uma presença constante nas telas de cinema. Eles existem entre o visível e o invisível. E a oposição entre ver e não ver, mostrar e não mostrar, real e imaginário, é mais ou menos o pão nosso de qualquer diretor de cinema que se respeite. Os filmes de vampiro encerram outra forma corrente de espanto, que é a transformação da beleza mais pura em completo horror. Todo filme do gênero precisa, portanto, de uma heroína bonita, pronta para ser devidamente chupada pelo mortovivo e, tempos depois, surpreender o mocinho com seus dentes que crescem, voz sinistra e feições horrendas. A Hora do Espanto não despreza nenhum desses velhos truques, embora sirva-se de alguns mais recentes (os heróis adolescentes, tendência do cinema americano atual). O essencial, contudo, está na TV como background e na inversão do fantasma. O vampiro é, tradicionalmente, um fantasma feminino: a relação sexual com o amado sendo impossível, a mocinha fantasia uma posse acontecida, com outro, graças a poderes demoníacos. Aqui, ao contrário, é o homem quem não consegue possuir sua amada e cria um vampiro (Chris Sarandon) para se atormentar. A inversão é engenhosa, já que permite ressuscitar a sexualidade como angústia, sem correr o risco de ser careta. O retrato da TV parece fazer parte de um contraataque que o cinema começa a organizar. Diante da televisão, o cinema foi se encolhendo. Ora para imitá-la, como ocorreu no Brasil com frequência, ora para contestá-la. Fellini escolheu há pouco uma maneira diferente de encarar a TV, ao mostrá-la, simplesmente, em Ginger e Fred. O estreante Tom Holland faz reviver os vampiros a partir de um show de televisão. O fato de o show ser decadente é que interessa: ninguém mais acredita em vampiros (sequer Peter Vincent). Eles fazem parte de um mistério que a TV meio que baniu do imaginário, misturando tudo em sua tela: dança, cultura, sabonetes, vampiros, etc. Disseminando a crença em tudo, e a tudo tornando óbvio, aplastrou diferenças e dúvidas, visível e invisível, sonho e real. Quando tenta resgatar esse passado vampiresco, A Hora do Espanto toma uma posição contra a TV e a favor do cinema. Mas não parece estar completamente seguro disso. Aqui, o cinema remete a si mesmo, aos filmes já feitos e consumidos à saciedade, disseca seus mecanismos, os expõe ao ridículo. É inteligente, em suma. Mas essa exposição de inteligência obscurece, ao mesmo tempo, o cinema: as peças não se destacam (ou só em momentos precisos), nem se rearranjam. O que dá mais medo, na verdade, é que a ressurreição do vampiro implique, no caso, o nascimento de um novo academismo. Hitchcock-Truffaut, o Suspense sem Mistérios Folha de S. Paulo, 25 de maio de 1986 HITCHCOCK-TRUFFAUT, de François Truffaut Quando publica Hitchcock-Truffaut, em 1966, François Truffaut, de certa forma, fecha o ciclo crítico dos Cahiers du Cinéma. Nos anos 1950, ele e mais um grupo de redatores da revista animada por André Bazin (Claude Chabrol, Jacques Rivette, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer) tinham lutado para mostrar as qualidades de um grupo de cineastas americanos tidos até então como estritamente comerciais. No auge de um tempo de polêmicas, o grupo era conhecido como o dos hitchcocko-hawksianos, e de vez em quando Bazin era obrigado a intervir pessoalmente, dizendo que, se não partilhava de todos os gostos de seus discípulos, reconhecia que muito dificilmente se encontrariam tão bons quanto eles. Eric Rohmer diria mais tarde, com certa modéstia, que Bazin teve as ideias, nós tivemos os gostos. Guru de todos, Bazin não chegou a impor muitos cineastas, enquanto esta geração de críticos – seguramente a mais brilhante que já existiu – descobriu que, além de comerciais, uns tantos diretores, quase todos americanos, eram também os mais sólidos artistas que o cinema produzira. No fim dos anos 1950, os enfants terribles encerram pouco a pouco o ciclo crítico para criarem a Nouvelle Vague, o mais importante movimento do cinema falado francês. Mas Truffaut (que, como crítico, tinha o estilo mais elegante da revista) achava que ainda restava algo a fazer: uma longa entrevista com o mestre inglês, em que ele transmitisse parte – pelo menos – dos segredos da direção. Na introdução à edição de 1975, retomada pela Brasiliense, Truffaut escreve que se observarmos Hollywood em 1966, Howard Hawks, John Ford e Alfred Hitchcock aparecem-nos como os únicos herdeiros dos segredos de Griffith, e como pensar sem melancolia que, acabadas as suas carreiras, será preciso falar de segredos perdidos?. O livro é obra, portanto, não só do fã de Hitchcock, do amante de cinema, do diretor consagrado (que Truffaut já era na época), mas, sobretudo, de alguém que não vira seu trabalho crítico repercutir, na justa medida, exatamente nos Estados Unidos. Se o objetivo é crítico, no ponto de partida, no de chegada é muito mais. Na linha dos diretores americanos, Hitchcock não gostava de falar a sério de seus filmes. Mas era agradecido a Truffaut pelo reconhecimento que os Cahiers lhe deram. E Truffaut, bom entrevistador, conseguiu muito mais do que mostrar uma personalidade ou o segredo de determinados efeitos técnicos: arrancou de Hitchcock uma aula de cinema, útil não só para fãs do cineasta inglês, como para quem quer que pretenda ver cinema. Assim, Hitchcock explicará ao leitor o que é MacGuffin (pretexto sem importância para o diretor, mas sobre o qual o roteiro chama a atenção e em torno do qual os personagens se inquietam). Mas falará também de como, em Rebecca (1940), consegue fazer da sra. Danvers um personagem aterrorizante: A sra. Danvers quase não andava, jamais era vista deslocando-se. Por exemplo, se entrava no quarto onde estava a heroína, a moça ouvia um ruído e a sra. Danvers estava lá, sempre lá, de pé, sem se mexer. Esse era um meio de mostrar isso do ponto de vista da heroína: ela nunca sabia onde estava a sra. Danvers e era mais terrificante assim; ver a sra. Danvers a teria humanizado. Hitchcock é pródigo em sua imperdível aula. Da maneira como conduz o famoso travelling de Young and Innocent (1937) à luz que coloca dentro do copo de leite que Cary Grant leva para Joan Fontaine em Suspeita (1941). Falando da cena de refeição em O Marido Era o Culpado* (1936), em que Sylvia Sidney deve matar Verloc, o marido sabotador, detém-se na construção: Quando Sylvia Sidney leva o prato de legumes para a mesa, está realmente obcecada pela faca, como se sua mão fosse pegá-la, independentemente de sua vontade. A câmera enquadra sua mão, depois seus olhos, depois sua mão, e mais uma vez seus olhos, até o momento em que seu olhar tornase, de repente, consciente do que a faca significa. Nesse momento, coloco um plano absolutamente comum mostrando Verloc comendo seu ensopado... Em seguida, volto à mão e à faca. A maneira errada de proceder teria consistido em pedir a Sylvia Sidney que explicasse ao público, por jogos de fisionomia, tudo o que se passa em seu foro interior, mas não gosto disso. Na vida, as pessoas não levam seus sentimentos impressos no rosto. O assassinato de Janet Leigh em Psicose (1960), a escolha da arquitetura nesse mesmo filme, o beijo final entre Cary Grant e Eva Marie Saint em Intriga Internacional (1959), o uso conjunto da dolly e da zoom em Um Corpo que Cai (1958), em síntese: Hitchcock coloca o leitor dentro do quase infinito leque de procedimentos de que se valeu para criar sua obra. Esses poucos exemplos dão uma ideia, ainda que muito parcial, da extensão de Hitchcock-Truffaut, muito mais do que uma entrevista elucidativa sobre a obra de um autor. É isso também (desde a ideia de suspense, até os meandros do catolicismo do diretor inglês). Mas é, sobretudo, o monumento acabado da teoria do autor desenvolvida pelos Cahiers (segundo a qual, resumidamente, certos cineastas eram muito mais do que diretores, mas os verdadeiros autores de seus filmes; hoje, essa ideia é corrente, na época foi revolucionária, como visão do cinema hollywoodiano), já que ali Hitchcock desenvolve as ideias que fundam seu trabalho. É uma lição de cinema, porque os princípios enunciados pelo autor inglês servem a quem quer que pretenda aprofundar seus conhecimentos sobre a arte do cinema. É, finalmente, um grande momento da crítica cinematográfica. O pessoal dos Cahiers sempre sustentou que escrever sobre filmes já era uma forma de fazer cinema. Quando começou a fazer filmes, ficou claro também que a realização, para eles, passava pela atividade crítica. Quando Truffaut dirige-se a Hitchcock, une esses dois momentos: faz grande crítica, põe um fecho de ouro na fase Cahiers (a partir da qual Hitchcock e outros tantos diretores tidos por comerciais serão reavaliados na América) e afirma, ainda uma vez, que nos tempos modernos a reflexão sobre cinema já é cinema, assim com as ideias emitidas por meio de imagens já implicam uma atitude crítica. Não bastasse isso, a edição de Hitchcock-Truffaut introduz o leitor às motivações de Hitchcock, às fontes de seu humor e de seus temores. Não é um livro completo sobre o cinema ou sobre alguém, porque isso é impossível; é o mais completo possível. E não é pouco. Sem falar que, para os cinéfilos brasileiros, às voltas com um nível de edição deprimente, se abre a esperança de que, finalmente, os textos fundamentais, que tratam de cinema como tal, comecem a chegar ao Brasil, daqui por diante. * também conhecido como Sabotagem Cobra, um Vampiro dos Anos 1950 7 de agosto de 1986 COBRA (1986), de George P. Cosmatos O cinema de Sylvester Stallone baseia-se na inversão de situações desagradáveis. Se perdemos no Vietnã, Rambo vai lá e ganha a guerra sozinho. Se o crime é um fenômeno generalizado, a solução é Cobra, aliás Marion Cobretti, policial para quem só a violência extrema pode eliminar a violência. Em Cobra, como nas séries Rambo e Rocky, trata-se de simplificar ao máximo os dados do problema, para num segundo momento revestir o herói da aura de outsider. Assim, Cobra será apresentado como um tipo saído dos anos 1950. A afirmação, feita por um dos comparsas no filme, visa legitimar o vale-tudo em que se envolve o policial. A analogia sustenta-se apenas num ponto: nos anos 1950, a América ainda podia se considerar um país engajado nas boas causas. Acontece que, nos anos 1980, depois de um período de intensa autocrítica, essas causas têm pouco ou nada a ver com o cinema dos anos 1950. Em vez do espírito de aventura e curiosidade que o caracterizava, temos Rambo, encarnação do ressentimento pós-Vietnã, ou Cobra, versão para uso interno do mesmo ressentimento. Basta ver um pouco do enredo: uma série de assassinatos deixa a polícia desnorteada; trata-se de um maníaco, acreditam, de um doente. Mas a polícia pretende agir segundo métodos tradicionais, respeitando a Justiça, os direitos humanos, etc. Logo a seguir sabe-se que não é apenas um anormal quem pratica os assassinatos, mas todo um bando de débeis mentais, que pretendem criar uma nova sociedade pela violência e pela morte dos fracos. No filme, a Justiça é o inimigo ideológico: a polícia prende os bandidos, os juízes soltam. Esta seria – é o subtexto do filme – a causa central da criminalidade urbana. Nesse quadro, Cobra autodefine-se como o mal menor; não dá bola para pequenos detalhes judiciais e manda fogo nos marginais em geral. Diante do bando de bárbaros, é difícil o espectador não partilhar de seus sentimentos. A não ser por um motivo: sua narrativa é absurdamente semelhante à do cinema nazista. Ou seja, não se trata de mostrar a experiência de um fato concreto, mas de uma abstração. É tudo o que o grande cinema clássico americano não fez. Cobra não tem qualquer curiosidade especial, nenhum espírito de aventura ou conquista, não tem sequer uma sexualidade definida. É um vampiro dos anos 1950, recolhendo ali um espírito que o dota de uma existência puramente artificial. É compreensível que o cinema americano procure, hoje, de diversas maneiras, romper com o trauma do Vietnã. Ele o faz quando Spielberg filma as aventuras de Indiana Jones, refugiando-se no espírito do seriado e na tentativa de brincar com o gênero. Ele o faz muito melhor quando Michael Cimino filma O Ano do Dragão e cria um persona-gem como Stanley White. Face inteligente – e quanto – de Cobra, O Ano do Dragão se afunda no inferno de uma sociedade cujo sonho (a integração de vários povos, etc.) se encontra em estado de dilaceração. Mas ali onde O Ano do Dragão parece navegar as mesmas águas de Cobra, tudo é diferença: em vez da abstração, a crueldade das situações concretas; em vez de assexualidade, uma sensualidade que se mostra a cada cena; em vez da ausência que caracteriza as interpretações de Stallone, o rosto desesperado, insano, de Mickey Rourke. Por fim, em vez da matança justificada de Cobra, uma ação que só se sustenta no próprio caráter obsessivo do persona-gem de Stanley White. Com mais ou menos os mesmos elementos que Sylvester Stallone (aqui ele é apenas ator e roteirista, mas na verdade é o autor) usa para chegar ao sucesso fácil – em dez dias de exibição nos Estados Unidos, Cobra rendeu mais de 26 milhões de dólares (Cz$ 364 milhões, aproximadamente, no câmbio oficial) segundo a Warner Brothers –, Cimino faz o grande cinema americano dos anos 1980. A diferença é que o primeiro faz de seus trabalhos um enaltecimento da superficialidade, e vira sucesso. O segundo se afunda no inferno da dor americana, e vive sempre à beira da maldição. Terra dos Faraós Faz Howard Hawks Falar 13 de julho de 1987 TERRA DOS FARAÓS / Land of the Pharaohs (1955), de Howard Hawks Em suas entrevistas, Howard Hawks calava muito mais do que falava. Às perguntas específicas sobre tal ou qual procedimento, saía pela tangente, com uma piada, uma frase evasiva ou, não raro, uma história que quase nada tinha a ver com o assunto em questão. Falando de Terra dos Faraós, que a Globo exibe hoje, no entanto, por vezes nota-se uma mudança em seu estilo. As queixas que faz são absolutamente objetivas. Critica o cinemascope (que nunca mais utilizou), que no seu entender dificultava o enquadramento e o corte, e queixava-se de não saber (ele e seus roteiristas, entre eles Faulkner) como falavam os antigos egípcios. Essas reclamações eram, em parte, uma maneira de justificar o relativo fracasso da empreitada. De Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille ao Spartacus de Stanley Kubrick, é possível lembrar de no mínimo uma dúzia de superproduções bíblicohistóricas nas quais a grandeza do espetáculo saltou melhor à vista do espectador. Mas elas nos dizem alguma coisa sobre o estilo do diretor: o cinemascope privilegia seja as grandes paisagens, seja os primeiríssimos planos. O registro hawksiano vai, essencialmente, do plano médio (o grupo), ao primeiro plano (enquadramento da cintura para cima): não tem a ver com o gosto pelos grandes espaços que cultivava, por exemplo, um Anthony Mann, ou com o estilismo de um Sergio Leone, capaz de transformar a imagem gigantesca de um rosto em uma paisagem. Se Terra dos Faraós pode ser considerado um furo no megalomaníaco projeto de Hawks, de deixar pelo menos uma obra-prima de cada gênero (projeto no geral muito bem-sucedido), não vale a pena descartá-lo por antecipação. A obra de Hawks é dessas que cresce com o tempo, a cada revisão. Cresce como obra, em que um filme não pode ser destacado do conjunto impunemente. Terra dos Faraós conta a história do faraó Quéops. Em particular, de sua obsessão por construir um túmulo perfeitamente inviolável, onde após a morte pudesse repousar junto com suas riquezas, isto é, uma pirâmide. Um cativo arquiteto, Vastar, é contratado para fazer a obra. Vastar compromete-se a morrer com Quéops na pirâmide, levando junto o segredo de sua inviolabilidade, em troca da liberdade de seu povo. A história vai muito bem até que uma mulher, Nellifer, entra na parada. Quéops se apaixona por ela; Nellifer se apaixona pelos tesouros de Quéops; e é aí que o projeto começa a fazer água. Passemos pelo fato de Hawks, como quase sempre, atacar discretamente uma monstruosidade. No caso, o homem mais poderoso de seu tempo, que passa a viver em função da obsessão da morte. A maior parte dos filmes de Hawks desenvolve-se em torno do acesso ao desejo. O esquema é quase imutável, embora sempre surpreendente. Suas mulheres também têm um estatuto peculiar para o cinema clássico americano: vão à luta, trabalham, se colocam de igual para igual em relação aos homens. Nellifer, ao contrário, é uma prostituta feita princesa de Chipre. Como Quéops só se preocupa com o próprio túmulo e fecha-se de certa maneira ao mundo exterior (é um morto em vida, afinal), sequer se dá conta das múltiplas traições de Nellifer. Numa abordagem genérica, Terra dos Faraós não desmerece em nada a sutileza com a qual Hawks costuma abordar as relações humanas em seus filmes: delicados jogos nos quais a ênfase – muito antes do cinema moderno – vai mais para os tempos mortos do que para os momentos de exceção da vida (a elipse é uma figura de que nunca se vale). Mas, mesmo quem achar que Terra dos Faraós foi um mau passo do diretor, não ganha nada em desligar a TV antes da hora. A sequência do fechamento da pirâmide não é apenas o grande momento do filme, é uma das grandes sequências do cinema: o ritmo regular do implacável movimento das pedras sela o destino não só da história como dos destinos nela envolvidos; desdobra, em arquitetura, os termos de uma tragédia muito humana, submetendo poder, ambição, desejos, aos desígnios onipresentes da morte: os sonhos são pó, mas do pó se fazem pirâmides. Lente de Fuller Disseca o Racismo em Cão Branco 9 de junho de 1988 CÃO BRANCO / White Dog (1982), de Samuel Fuller Samuel Fuller tornou-se mais conhecido no Brasil por homenagens que alguns colegas europeus lhe fizeram do que por seus filmes: ele foi o gângster de charuto de O Amigo Americano, de Wim Wenders, o fotógrafo de O Estado das Coisas, do mesmo Wenders. Antes disso, dissera uma frase clássica em Pierrot le Fou, de Godard: O cinema é um campo de batalha. Nem isso levou o Brasil a se apaixonar por seus biscoitos finos, e os últimos filmes desse americano mostrados no Brasil fracassaram miseravelmente: Em Ritmo de Assassinato (1974) ficou três dias em cartaz no Cine Marabá; Agonia e Glória (1980), não emplacou a segunda semana. O estranho, portanto, não é que Cão Branco sequer tenha sido mostrado em cinemas. O estranho – maravilhoso – é que pelo menos nos chegue o vídeo desse drama no qual o racismo é visto pela lente como sempre complexa de Fuller. Um pequeno parêntese: a carreira de Fuller se caracteriza por tomar temas triviais, entrando sempre pela porta dos fundos. Já em sua estreia, Matei Jesse James (1949), não era o herói o centro de interesse, mas seu assassino. Para mostrar a guerra, não buscou falar dos grandes comandantes, mas do general de Divisão Merrill, em Mortos que Caminham (1961), ou ainda de um grupo de soldados entre os quais a mais alta patente era o sargento representado por Lee Marvin (Agonia e Glória). Sua visão da guerra é radicalmente simples: o único heroísmo, ali, é sobreviver. Cão Branco é outra entrada de Fuller pela porta dos fundos, esta por onde passam os empregados e tudo mais que não deve enevoar a paisagem impoluta que o olhar oficial procura fixar das coisas. Como o tema é o racismo, o autor foi ao que de mais profundo e irracional esse fenômeno poderia produzir, o cão branco: entidade surgida – conforme explica o filme – para perseguir escravos fugidos e, mais tarde, prisioneiros negros. O cão branco situa-se, assim, um estágio além do linchamento, na medida em que é produto da sistematização do ódio: seu caráter é permanente para o cão condicionado a atacar negros, e, em princípio, irreversível. Sua pele é o lugar onde se inscrevem séculos de uma história de intolerâncias – é sua poesia e seu produto. Se o assunto não é indiferente ao filme, sabe qualquer espectador com um pouco de prática que é fácil um bom tema morrer nas mãos de um diretor rotineiro. É tudo o que Fuller evita. Sua carreira tem sido um corpo a corpo com a linguagem do cinema; baseia-se em grande parte na capacidade de reverter as dificuldades causadas pelos pequenos orçamentos que tem a seu dispor e transformá-las em virtudes. Cai fora a figuração, por exemplo, até porque um filme se faz com ideias. Em compensação, coloca-se no centro da história o próprio cão: o branco de seus pelos, que em determinado momento podem se encher de manchas de sangue; sua expressão, variando da ternura extrema à máxima ferocidade, a elegância do porte: qualidades que nem por um instante nos deixam esquecer que sua marca essencial é o silêncio – o curto-circuito total com a razão, que o torna imprevisível. Como contraponto ao cão branco, Fuller fixa a figura de Keys, o domador de animais negro, que aceita o desafio de eliminar o condicionamento do cão. Keys entende que o verdadeiro desafio não é eliminar o cão, mas seu racismo. Se conseguir, terá demonstrado que o racismo é, também ele, extirpável, pois o inimigo não é a fera que pretende amansar, mas o cérebro secular que o criou. O desenvolvimento do filme servirá como demonstração límpida de que o racismo, enquanto fenômeno, gera distorções que vão muito além do que podem prever seja o racista, seja o antirracista. O cão branco é, afinal, um cérebro tão dotado para a errância quanto o jornalista de Shock Corridor, que para descobrir um assassino dentro de um manicômio termina, ele próprio, alienado (e, ironia principal, ganha o Prêmio Pullitzer). Mas se enganará quem pensar que Cão Branco é um filme reflexivo. O cinema de Fuller é de ação: sangue, gritos, morte, suspense – nada está fora de seu horizonte muito americano. O que não deve levar a crer que estamos diante de algo do tipo A Gangue dos Dobermans ou qualquer outro dog movie recente. Fuller conjuga suas filmagens na ordem direta, fiel à sua juventude de jornalista, mas os caminhos são tortuosos como os de seu mestre Fritz Lang. Do formidável ataque do cão durante uma filmagem (em back projection mostram-se imagens plácidas de Veneza), ao assassinato de um negro no interior de uma igreja, tendo como testemunhas inertes dois santos, nenhum momento é destituído dessa ideia central na obra de Fuller: a de batalha. Que consiga gelar o sangue do mais frio dos espectadores com uma discrição que os narradores mais recentes não estão acostumados, é um mérito complementar, mas não secundário, deste filme notável. Estilo de Lubitsch Mantém Ninotchka Atual 19 de janeiro de 1990 NINOTCHKA (1939), de Ernst Lubitsch Ilustre precursora de Gorbachev, Ninotchka conseguiu trazer para o Ocidente a imagem de um burocrata soviético capaz de rir, ainda na década de 1930. Verdade que Ninotchka era ainda o que se pode chamar de um quadro médio e que seu riso, embora tivesse causado furor mais ou menos idêntico ao do atual presidente da URSS, tinha outras motivações. Ninotchka, o filme, foi a primeira comédia de Greta Garbo, lançada com uma campanha publicitária que enfatizava justamente o fato de ela rir, o que significava uma guinada na carreira da atriz sueca. Da realização, encarregou-se Ernst Lubitsch, um mestre da comédia. O resultado não poderia ser melhor: Lubitsch conduz com seu habitual gênio, a um tempo inventivo e delicado, a história do grupo de funcionários soviéticos que chegam a Paris com a missão de negociar joias confiscadas durante a revolução de 1917 para resolver problemas de caixa do governo comunista. A URSS é representada exatamente como hoje a representa Gorbachev: uma mistura de severidade e falta de bens de consumo geral. Não é difícil seduzir os enviados de Stalin com as delícias de Paris: em três tempos eles caem na farra. É então que Ninotchka – Greta Garbo – entra em cena, a fim de pôr ordem na casa. Ao contrário de seus colegas, ela se mostra inflexível com os costumes ocidentais e, de passagem, com os bens de consumo (e prazer) oferecidos por Paris – cidade que, no mais, os norte-americanos imaginam como uma espécie de Disneylândia para adultos. Severa até o último fio dos cabelos, a bela Ninotchka não ri. Melvyn Douglas logo percebe que o único bem de consumo que pode lhe oferecer é o humor. Se Ninotchka sobreviveu de 1939 até hoje, sem ajuda da perestroika, não há como evitar a menção, hoje, a seu faro político: sem ser anticomunista (mas sendo contra o comunismo) o filme é implacável na sátira ao sistema bolchevique, visto como uma mistura de privações e boas intenções que, o tempo mostrou, não levavam à libertação do proletariado, mas a uma persistência da privação de bens e liberdade – e é nessa parte que Gorbachev e cia. lançam uma nova luz sobre o filme. Nem por isso o filme vê o capitalismo como um paraíso, a não ser que o paraíso se componha de uma sucessão de breguices. Com isso se encerra o aspecto propriamente político do filme. O resto corre por conta do duelo Paris/Moscou, afetos/ideologia, Melvin Douglas/ Greta Garbo. Enquanto bate as asas na direção da bela Ninotchka, Douglas precisa fazê-la esquecer os encantos do partido e descobrir os dele. Não será na primeira nem na segunda tentativa que será bem-sucedido. Mas será. Nem os afetos, nem a ideologia, porém, esgotam o encanto desse filme que é uma das belas comédias dos anos 1930. Tanto quanto Garbo, Lubitsch tinha o dom de seduzir o público, e, no caso dele, justamente pela introdução de elementos de ambiguidade numa trama em que ela não era obrigatória. Seu assunto central, o amor, é que aconselhava esse procedimento: nele nada é definitivo, nada é final. Talvez por isso, boa parte de seus filmes girem em torno de triângulos amorosos. Em Ninotchka, Lubitsch introduziu as ambiguidades do amor num gênero pouco elástico – a sátira política –, fazendo do partido o terceiro lado do triângulo. Com isso, conferiu ao filme uma capacidade de respiração rara, em que Garbo não só renuncia aos espartanos ideais bolcheviques, como permite que seu tipo ideal de mulher se torne, temporariamente, tangível. Seu riso, a gargalhada que quase por acaso e bem a contragosto deixa escapar, é um momento que não se esquece com facilidade. Todo o filme é, no mais, uma química difícil, que Lubitsch levou com a delicadeza de grande mestre da comédia. Michael J. Fox É um Roqueiro em Filme Inédito 1º de fevereiro de 1990 LUZ DA FAMA / Light of Day (1987), de Paul Schrader Para representar uma tormenta, o italiano Leonardo da Vinci recomendava considerar antes os efeitos do que as possíveis causas, pois quando o vento sopra com violência sobre a superfície do mar e da terra, move e leva atrás de si tudo o que não está firmemente unido com a massa universal. Ainda que o diretor norte-americano Paul Schrader não seja um Leonardo – e quantos, entre os que seguiram o conselho, seriam? –, é quase impossível dissociar seu Luz da Fama dessas palavras. Primeiro, porque neste filme estamos em plena tormenta. Segundo, porque o que vemos são exatamente os efeitos – os estilhaços do que soçobrou durante a tempestade – e não as causas. Os dados iniciais deste filme, que não chegou a ver a luz do dia nos cinemas de São Paulo, lembram um filme do cineasta francês Robert Bresson. Patti (Joan Jett) é uma roqueira visivelmente habitada pelo mal, capaz tanto de roubar e renegar a família, como de ter um filho de pai ignorado do qual mal se ocupa. Do outro lado da coroa está Jeanette (Gena Rowlands), a mãe apegada à religião, de moral estrita e em inevitável conflito com a filha. Neste filme de figuras femininas muito fortes, o homem faz papel de ausente (no caso do pai) ou funciona como um leva-e-traz, segurando as pontas ora com uma, ora com outra, caso de Joe (Michael J. Fox, de De Volta para o Futuro), o irmão de Patti e, como ela, também roqueiro. A exemplo de Bresson – ainda que de outra maneira – os personagens de Schrader são seres de pura espiritualidade, e o verdadeiro conflito não é entre personalidades ou visões diferentes das coisas, mas diretamente entre céu e inferno. Não seria exagerado descrever sua presença física – sempre um tanto retraída – pelas palavras de Georges Bernanos: É na pobre carne humana que o inefável assassinato se consuma. Se Deus periclita em cada ser humano, cada ser humano periclita num Deus cuja natureza não se sabe ao certo se é frágil, vingativa ou apenas ausente. O homem é o cenário deste conflito brutal, aquele que arrisca soçobrar a cada instante numa tormenta cujas causas lhe escapam. Quer se ligue ao rock (como Patti), quer à religião (como Jeanette), ao homem só resta tentar discernir a natureza do mundo, esforçando-se por transformar suas crenças em verdade, mas esta insiste em esquivar-se. Tudo é incerto para esses habitantes de um universo desprovido de qualquer tipo de luz – e não é de espantar que estejamos assim diante de um filme pouco comercial. Para o cinéfilo atento, isto importará pouco. Mais interessante é acompanhar como Schrader – habilíssimo roteirista – duplica o conflito ao discutir se o universo é um contínuo de ações coerentes e solidárias entre si (ponto de vista da mãe) ou uma entidade fragmentária, na qual cada momento existe por si e para si, sem formar uma massa universal. Este é o mundo segundo Patti, que o identifica ao rock e aos videogames. Identificação radical, já que ela não entende – ao contrário dos demais roqueiros – que seus dotes de cantora possam levála a uma carreira (portanto, uma continuidade). O princípio de Patti é o da dispersão. Da metade para o fim, Schrader introduzirá uma transformação radical no roteiro, do momento em que Jeanette contrai câncer nos ovários (órgão da fertilidade feminina, de onde saem os filhos). Com a certeza de quem tem um olhar firme para as coisas, Schrader mistura as cartas, joga com o destino das personagens tanto quanto com suas ideias. Se este é o momento crítico do filme – em que se poderia criar uma desagradável fratura – é também aquele no qual estão as melhores sequências. Tudo se segura, mas tudo revela a precariedade humana. Num filme que nada perderia se a câmera flutuasse um pouco menos (e enfatizasse o caráter episódico dos personagens), chama a atenção o nível do elenco, puxado por uma notável Gena Rowlands e pela cantora Joan Jett, mas no qual Michael J. Fox não destoa na pele do frágil Joe. Bota seu carisma a serviço de um mero leva-e-traz que se finge de ator principal. É um gesto de modéstia que vale a pena, num filme idem. Sirk Constrói Retrato Trágico da Classe Média 5 de março de 1990 IMITAÇÃO DA VIDA / Imitation of Life (1959), de Douglas Sirk Em Imitação da Vida, Lana Turner é uma atriz viúva, em busca de sucesso, que logo de saída encontra uma mulher negra (Juanita Moore), também viúva, que se tornará sua amiga e empregada. Encontrará também um homem disposto a amá-la, John Gavin. Ela tem uma filha, Susie (Sandra Dee); Juanita Moore tem outra, Sarah Jane (Susan Kohner). As coisas parecem encaminhar-se bem na vida das duas mulheres, e mesmo o problema artístico de Lana Turner vai se resolver: ela encontrará sucesso crescente na carreira. Mas, como se trata de um filme de Douglas Sirk, é preciso que o céu desabe sobre a cabeça das protagonistas. Lana dedicará tempo excessivo à carreira e vai se descuidar da educação da filha Susie, que acaba se apaixonando pelo namorado da mãe. Sarah Jane, por sua vez, sofre na escola por ser negra e descarrega na mãe as humilhações que lhe são impostas. Passa a odiar e desprezar com todas as forças a mãe, que vive para lhe dar uma boa educação. Está armado o quadro para o melô, que Sirk entendia como uma tragédia da classe média. Diferentemente da versão de John M. Stahl, com Claudette Colbert, os problemas econômicos são secundários (no filme de Stahl, realizado em 1934, a questão central era ganhar a vida; Colbert, auxiliada pelos dotes culinários de sua empregada, termina abrindo um bem-sucedido negócio de panquecas). O melô sirkeano passa-se em um meio normalmente abastado, o que torna ainda mais radical o caráter trágico da situação: a desgraça existe justamente porque os personagens podem se entregar por inteiro aos seus afetos. E, naturalmente, serem tragados por eles. A esses personagens não se nega pompa e circunstância na catástrofe: seus rostos carregam uma crispação quase permanente, acentuada pela cenografia que os cerca, luxuosa e de preferência dotada de um colorido vibrante. Seus olhares parecem com frequência voltar-se para um ponto vazio, como se essas pessoas não conseguissem distinguir o que está à sua frente, e caminhassem cegamente para o abismo (não por acaso há tantos cegos nos filmes de Sirk). Imitação da Vida é, em particular, um filme que se observa com uma ponta de ódio pelos persona-gens. É claro, se Lana Turner se preocupasse menos consigo mesma conseguiria enxergar o que se passa com sua filha. Da mesma forma, Sarah Jane sofre tão profundamente com a rejeição que a vitima que é incapaz de perceber as injustiças cometidas em relação à mãe. Ao mesmo tempo, essas situações parecerão familiares ao espectador, cuja vida consiste em grande parte em mirar um alvo e ignorar tudo o mais ao seu redor. Imitação da Vida instala-se neste jogo: todos os dados são jogados de maneira a que consigamos entender as motivações dos personagens. Ao mesmo tempo, essa compreensão é quase um exercício fútil: a natureza de seus atos escapa ao espectador tanto quanto aos próprios personagens. Existe uma distância atroz, insuperável, entre o gesto que executam e a racionalidade que enunciam, como se corpo e alma fossem instituições impermeáveis uma à outra. Se o encanto deste filme está em grande parte na capacidade de descrever vidas que se perdem na tormenta, sua força não vem menos da maneira quase abstrata como as encara. Já não são eles que erram e se perdem: o humano é que é fadado a perceber da vida apenas sua casca e a rodar sem nunca chegar ao ponto. Imitação da Vida é um filme estranho. Tem uma maneira fria de ser terno e uma maneira imponente de ser íntimo. É como um tratado sobre o deslocamento inexorável das coisas. Jean Renoir Faz Cinema com Palavras 22 de junho de 1990 ESCRITOS SOBRE CINEMA, de Jean Renoir Poucos cineastas foram, ao longo do século, tão agradáveis quanto Jean Renoir (1894–1979). Essa sensação não decorre necessariamente da qualidade ou vigor de seus filmes, mas de uma atitude que, de algum modo, Renoir conseguia transpor para a tela mesmo quando filmava uma história trágica. Os Escritos sobre Cinema, que a Nova Fronteira agora lança no Brasil, possuem, logo de cara, a virtude de explicitarem esse modo de ser que o crítico Jean Douchet resumiu em uma frase certeira: A felicidade é a base do cinema de Renoir. Assim como filma, Renoir escreve. Nos textos reunidos por Claude Gauteur para a edição francesa do livro, em 1974, ele fala sobre o cinema, a guerra, os Estados Unidos, Hitler, os amigos, os atores, etc. As circunstâncias e épocas variam, mas a vitalidade permanece a mesma, independentemente do assunto. Não é impossível que algum leitor, interessado em saber alguma coisa sobre Pierre-Auguste Renoir (1841–1919), o pintor, se decepcione num primeiro momento. Renoir, o cineasta, parece ter resolvido bem o bastante o problema de ser filho de um homem célebre. Fala sobre o pai sempre com afeto, mas em poupas palavras (reservou mais palavras para a biografia Meu Pai, lançada no Brasil pela Paz e Terra). À medida que o livro se desenvolve, é possível notar o peso do pai em sua formação. Assim como Renoir pai, Renoir filho dá pouca importância a categorias como fama e glória. A necessidade de parecer inteligente também não o afeta. Apenas lança as ideias no papel, aparentemente ao acaso, como quem conversa entre amigos, embora com enorme elegância. Exemplo: Um comentário satírico de Oscar Wilde é o de que não existia fog em Londres antes de Turner. Pessoalmente, estou convencido de que tinha razão. Antes de Turner, não havia fog; e talvez antes de Renoir não houvesse nariz arrebitado. Essa qualidade faz da prosa de Jean Renoir uma deliciosa experiência cinematográfica. Para ele, não se trata de compreender o mundo por meio de ideias, mas sensivelmente. No cinema – como na pintura – não existem ideias, ou antes elas se convertem em gestos, movimentos, objetos, luz. Em Renoir, o cinema reencontra a experiência dos impressionistas, preocupados em libertar a pintura de vestígios literários. Sobre isso, Renoir evoca o pai: Lembro da cólera terrível de meu pai a propósito de um de seus quadros, mostrando uma jovem com a cabeça ligeiramente inclinada, a que um marchand queria dar o nome comercial de O Pensamento. Furioso, Renoir protestou: “Nos meus quadros não se pensa”. Também nas crônicas de Jean Renoir não se pensa, ou em todo caso cuida-se para que as ideias fiquem escondidas, transformadas em alguma coisa que se poderia resumir como observação e devaneio. Isto é, cinema. Tecnicamente, Escritos sobre Cinema divide-se em quatro partes: Meu Nome É Jean Renoir, Jornalismo, Amigos e Cineastas e Sobre a Direção. A primeira parte é previsivelmente autobiográfica. Mas, fiel a um princípio de sua geração de artistas, Renoir nunca distingue a vida da arte. Se sua experiência na cavalaria, durante a 1ª Guerra Mundial, rebate em um filme como A Grande Ilusão (1937), sua ligação pessoal com outro cineasta – Marcel Pagnol – determina a experiência-chave de Toni (1935), filme que antecipou em uma década a escola neorrealista. Da mesma forma, a intimidade com o feminino – adquirida no convívio com as modelos do pai, na infância – aparecerá com força em seu trabalho. Assim, rejeita a imagem convencional da vamp alta, magra, distante, diáfana, e propõe como verdadeira femme fatale mulheres baixas, um pouco gordas, graciosas e familiares, o busto exuberante de saúde, o rosto se abrindo num sorriso popular e simpático. Essas, no mais, são mulheres que frequentam os seus filmes. A segunda parte, Jornalismo, reúne os artigos escritos entre 1936 e 1938 no semanário Ce Soir. São crônicas de época marcadas por um bem-humorado engajamento antinazista, a que o olhar não permaneceria alheio. Assim, ao comentar o provérbio segundo o qual não se pode julgar os outros pela aparência, Renoir sustenta que é perigosíssimo: Tenho certeza de que alemães e italianos são neste momento vítimas inocentes desse provérbio, pois se tivessem confiado nas aparências, como explicar a incompreensível confiança que concederam a seus ditadores atuais? As duas partes finais do livro, teoricamente dedicadas ao cinema, seguem a mesma tocada: uma prosa de observações tão despretensiosas quanto fascinantes. Ali, ele fala de seus ídolos (Von Stroheim, Chaplin) ou de amigos (André Bazin, Jacques Becker, etc). Mas também pode se sair com uma crítica agudíssima sobre um filme como A Paixão de Joana D’Arc (1928): Quando Dreyer pediu a Falconetti para raspar a cabeça, a fim de interpretar o papel de Joana D’Arc na prisão, não era apenas um sacrifício à verdade exterior (...). A visão daquele rosto admirável privado de seu ornamento natural mergulhava Dreyer na própria essência do tema. Aquela cabeça raspada era a pureza de Joana D’Arc. Era a sua fé. Como em seus filmes, Renoir alterna tema e digressão, crítica e inocência, passeia entre essência e circunstância como quem vai de um cômodo a outro de sua casa. Mesmo quando não fala de cinema, Renoir faz grande cinema. Vertigem de Hitchcock Une Cinema e Paixão 27 de junho de 1990 UM CORPO QUE CAI/Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock Ouve-se aqui e ali que A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, seria um belo filme sobre cinema. Para quem algum dia viu e amou Vertigo (Um Corpo que Cai), isso soa como uma espécie de ofensa. Vertigo é seguramente o maior filme já feito sobre cinema, entre outras coisas porque Hitchcock sabia perfeitamente que existe uma diferença brutal entre pensar o cinema e promover um entra-e-sai de gente da tela. Hitchcock sabia, no mais, que a tela de cinema não é um retângulo de pano branco. Sua matéria real é o imaginário. Mas Vertigo é também um filme sobre a paixão, talvez o mais intenso de que se tem notícia. Ali, como se sabe, James Stewart faz Scottie, ex-detetive aposentado em função do seu pânico das alturas. Sabendo disso, seu velho amigo Elster contrata-o para uma missão em princípio mais prosaica: seguir sua mulher, Madeleine, que estaria sendo tomada pelo espírito de uma certa Carlotta Valdez. Elster é um canalha, bolando um grande plano. Cria uma mulher para representar o papel de Madeleine, Kim Novak, e providencia para que a falsa Madeleine simule suicídio jogando-se de uma torre. Por razões óbvias: a torre é alta o bastante para que Scottie não consiga, naquele momento, seguir a mulher. Toda a primeira parte do filme é levada em tom de mistério, como se os personagens andassem sobre nuvens. De um lado, a falsa Madeleine arma toda a encenação que levaria Scottie a acreditar na hipótese de estar possuída por Carlotta. De outro, Scottie a segue. Não porque a missão lhe pareça digna de um detetive, mas simplesmente porque é seduzido pela mulher e passa a viver numa espécie de transe hipnótico. Já na primeira parte, Hitchcock lança as premissas de sua noção de cinema. O olhar é sua base, naturalmente. O olhar é o veículo da vertigem, da paixão e do equívoco. A soma dos três pode ser resumida pela palavra alucinação. Scottie vive na alucinação provocada pelo encenador Elster e pela grande atriz Kim Novak, a suposta Madeleine. Existem também noções clássicas no diretor, como o combate entre Luz e Trevas, tão evidente em Scottie. A primeira parte fecha-se com outra ideia central na obra do mestre inglês: a transferência de culpa pela morte da falsa Madeleine (de Elster para Scottie), naquela que é uma das poucas cenas de humor do filme. A segunda parte se abre ao encontro de Scottie com Judy. Judy é a mesma Kim Novak. Apenas que suas roupas e cabelos são diferentes. Scottie, que não se conforma com a perda de Madeleine, gruda na mulher. Ele não sabe, ainda, que Judy é a falsa Madeleine, isto é, que representou o papel e levou-o a enredar-se no caso para servir como testemunha de um suposto suicídio. Enganado pelas aparências e pela representação na primeira metade do filme, o olhar de Scottie agora não se enganará. Ele passa a dominar as aparências por meio da paixão (cujo caráter patológico o filme não deixa de ressaltar). Sua paixão, não resta qualquer dúvida quanto a isso, é por uma imagem. O extraordinário é que essa paixão seja correspondida. A partir desse ponto, Scottie empenha-se em recriar a imagem perdida de Madeleine: compra para Judy os mesmos vestidos, obriga-a a usar o mesmo penteado. Sem perceber, executa um duplo trabalho: o do amoroso e o do detetive. Reconstitui detalhadamente seu obscuro objeto de desejo, ao mesmo tempo em que lança uma luz sobre o crime que testemunhou. Em outras palavras, Scottie executa um trabalho de mise-en-scène, e raras vezes o espectador terá estado diante de um filme que escancara o sentido do trabalho fílmico. Na primeira parte, trata-se de criar uma ilusão (Judy representando Madeleine), de que Scottie é espectador privilegiado ou, se se preferir, vítima. O encenador é Elster. Como todo encenador, baseia seu trabalho numa fraqueza de seu público. No caso, a tendência à vertigem de Scottie. Na segunda metade, não se trata de um trabalho de desconstrução, como se diz. Hitchcock parece nos dizer que só o olhar cura o engano do olhar, só outra ilusão desfaz uma ilusão. Scottie reconstitui Madeleine em Judy com a mesma paixão pelos detalhes de um cineasta neorrealista, digamos. Para atingir a realidade, ele deve mergulhar novamente na ilusão. Num dos filmes mais perfeitos do cinema, que hoje passa pela segunda vez na TV brasileira, é inútil chamar a atenção para os atores, a decoração, o roteiro, a música, a iluminação. Tudo funciona mais que bem, inclusive Kim Novak, de quem Hitchcock queixava-se tão amargamente. Gary Cooper Faz Western sem Heroísmo 2 de agosto de 1990 O HOMEM DO OESTE / Man of the West (1958), de Anthony Mann Os faroestes de Anthony Mann são feitos com todos os elementos clássicos do gênero: homens solitários, suas montarias, paisagens, passados tortuosos, conflitos. O que os distingue e os particulariza na vasta produção do pós-guerra é a capacidade de servir ao gênero, antes de servir-se dele. Isso não se confunde com nenhum tipo de impessoalidade artesanal. Embora esse cinema participe do que hoje se chamaria estética da transparência, cada um dos planos parece assinado, tão evidente é a presença da mão que guia os acontecimentos. No caso de O Homem do Oeste, Mann cria desde logo uma situação de estranhamento: um homem chega a uma cidade. Perguntado sobre sua identidade, dá nomes diferentes a diferentes pessoas. O homem em questão não é um qualquer, mas Gary Cooper, o que acentua o estranho da situação, já que estamos mais acostumados a vê-lo como herói impoluto. Corte para a estação de trens. Nova indagação sobre seu nome. Homens armados controlam o embarque, com os devidos revólveres no coldre. Cooper não tem revólver algum. Os motivos por que ele não carrega uma arma serão explicitados ao longo do filme, assim como os que levam os homens da lei a olharem para ele com tanta desconfiança: seu retrato ainda circula pelos gabinetes dos xerifes, embora ele tenha abandonado a vida de crimes. Os passos seguintes marcam um reencontro com o passado. O trem em que viaja é assaltado pela gangue do velho Dock Tobin (Lee J. Cobb), o bandoleiro que o criou e fez dele um pistoleiro de primeira. Cooper, em companhia de Julie London, permanecerá até certo ponto prisioneiro do velho. Até certo ponto porque o reencontro não deixa de ser carregado de ambiguidade, do ponto de vista de Cobb: Cooper abandonou-o anos atrás; Cobb mantém com ele uma relação em que o amor supera o rancor e o irracional prevalece sobre o racional. O fato não será sem consequências, como, no mais, todos os outros do filme. A história tem, como se vê, pouco de original. A rigor, o único personagem realmente interessante é o de Cobb. A maneira como Mann contorna esse problema, ao contrário, faz de O Homem do Oeste um filme memorável. Na primeira parte, cria-se um clima de estranhamento. Cada pessoa é estrangeira à outra, cada situação é produto do mútuo desconhecimento. Os personagens não conhecem mais sobre a ação a vir do que os espectadores, nem o inverso. Todos tateiam, procurando situar-se. Existe também a maneira como Mann insere seus personagens na paisagem. Em vídeo, o filme perde um tanto da amplitude original do cinemascope. O espaço se acanha, mas o encanto não se quebra. Onde quer que estejam, os personagens interagem magnificamente com a paisagem, como se devessem receber dela o ar que respiram. Como se esse ar só existisse para ser respirado por eles. Assim, cena por cena, o filme vai construindo seus personagens em função da harmonia do conjunto. A psicologia são seus atos, os cenários são seu caráter, as circunstâncias determinam sua inteligência das coisas e o tamanho do perigo é, aproximadamente, o mesmo da coragem. O homem não existe, em suma, sem a sua circunstância. Mas, alem da circunstância, há o aspecto moral. Cooper é um bandido que em dado momento resolveu mudar seu destino à força. As circunstâncias o levam a um encontro não apenas com o seu passado, mas com tudo o que o levou à decisão de mudar de vida. O acaso leva seu passado a aflorar e é contra ele, mais do que contra o velho Tobin, que deve se bater. Anthony Mann parece evitar que se veja nessa batalha qualquer heroísmo. Cooper move-se apenas o necessário, atira apenas o necessário. Defende uma ideia pré-existente sobre as coisas. Diferentemente da imensa maioria dos faroestes, em que se trata de implantar ideia, por elementar que seja (a de justiça, digamos), aqui a luta é mais inglória: não existe vitória, trata-se apenas de conservar seu ganho (a existência digna que levou nos últimos anos). Mas enterrar o passado tem, no caso, a grandeza de uma operação dolorida, que precisa ser executada de uma vez por todas. É dessa grandeza, sem frieza, mas também sem romantismo, que O Homem do Oeste dá magnificamente a dimensão. Hawks Revisita o Pesadelo da Juventude 9 de setembro de 1990 O INVENTOR DA MOCIDADE / Monkey Business (1952), de Howard Hawks Se David Cronenberg resolvesse fazer uma comédia, o que não parece muito provável no momento, não seria fora de propósito dedicar um remake a O Inventor da Mocidade (Monkey Business), de Howard Hawks, filme que a Cultura exibe hoje em versão original. Como nos filmes de Cronenberg, aqui também a ética da ciência está em questão, embora o andamento seja outro. O problema que faz o químico Barnaby Fulton (Cary Grant) quebrar a cabeça é como tornar efetiva a fórmula de regeneração das células que desenvolve para o laboratório Oxley. Trata-se de buscar um remédio capaz de devolver ao homem a energia da juventude. Barnaby está encalacrado até que Esther, a chimpanzé que usa como cobaia, escapa de sua jaula e mistura aleatoriamente os elementos químicos que encontra no laboratório. Não dá outra: é a solução de todos os problemas. E, a bem dizer, o início de outros tantos. Esther mistura sua fórmula à garrafa de água do laboratório, e quem a toma é o próprio Barnaby. A fórmula de Esther sai melhor do que a encomenda: não apenas seus usuários começam a rejuvenescer fisicamente como mentalmente. Eis, então, o sisudo Barnaby reconduzido à adolescência, e depois sua mulher, Edwina (Ginger Rogers). Aqui começa efetivamente a comédia, tão burlesca quanto possível, e também a reflexão hawksiana sobre a maturidade e a juventude recuperada, cuja inevitável conclusão é: a juventude não passa de uma espécie de doença, à qual mal se sabe como é possível sobreviver. O pensamento vinha na hora certa, para um homem na faixa dos 50 anos (nasceu em 1896, o filme é de 1952), em pleno apogeu de sua carreira. Mas, é claro, ele em si não vai muito longe: a arte de Hawks está em inseri-lo numa reflexão mais ampla sobre o homem, na qual a ciência e os cientistas não entravam pela primeira vez como bode expiatório. Em primeiro lugar, existe um contraste que faz a diferença entre um filme qualquer e um genial: quando o engenho humano não consegue resolver um problema, entra em cena um chimpanzé e cria a tão procurada fórmula. Não é um acaso (a ideia está em outros filmes do autor): o estágio mais evoluído da espécie, o homem, encontra o mais primitivo e instintivo (macaco e fêmea). Entre os dois, numerosos estágios, da mulher-objeto (Marilyn Monroe) ao bebê, da mulher adulta (Ginger Rogers) ao homem decrépito (Charles Coburn, o velho dono do laboratório, interessado na fórmula menos pelos lucros que ela pode lhe dar do que pela potência sexual que promete restituir). Nessa escala, falta outra presença constante em seus filmes: a mulher profissional, em que se encontram intensamente as ordens da natureza e da cultura (caso de Rosalind Russell em Jejum de Amor). O desenvolvimento supõe, no cinema hawksiano, um rigoroso equilíbrio entre os personagens. Assim, é natural, embora exagerado, que o próprio diretor fizesse restrições a O Inventor da Mocidade. Ele se queixava que o papel de Cary Grant foi mais desenvolvido que o de Ginger Rogers e que, no mais, as cenas de retorno de Ginger à juventude repetiam em linhas gerais as de Cary pós-adolescente. Para o espectador, o problema é muito menos grave: primeiro, porque em Hawks o efeito humorístico é sempre previsível, embora tome rumos invariavelmente inesperados; segundo, porque Edwina, a mulher de Barnaby, não sendo profissional nem tendo a função de representar o universo dos afetos em oposição ao do pensamento, tende mesmo a ser uma heroína menos marcante. Ainda assim, a atração sexual, assunto central no cinema de Hawks, está presente. Em seus filmes tudo gira em torno da necessidade de romper uma barreira para chegar à realização afetiva. Em O Inventor da Mocidade, a questão é posta por um viés particular: a de um casal que, sete anos (cifra mágica) após o casamento, sofre a fadiga da realização afetiva. O retorno à juventude, porém, revela-se um magnífico pesadelo: não o reencontro com uma fase ideal da vida, mas um momento de desperdício de energia, a um passo da infantilização completa. Se O Inventor da Mocidade não é a maior comédia de Hawks, ali ele desenvolve os traços essenciais de seu cinema: um universo no qual a precisão dos gestos e dos objetos conduz à solidez das ideias. Ele resumiu tudo na clássica frase: trata-se de colocar a câmera à altura do homem para observar o homem, ao mesmo tempo em que se é homem. Questão, como se vê, à qual não ficou alheio o Wim Wenders de Asas do Desejo. Agonia e Glória Traz Relato Autobiográfico 4 de outubro de 1990 AGONIA E GLÓRIA / The Big Red One (1980), de Samuel Fuller O cinema é um campo de batalha, disse uma vez Samuel Fuller, que entende muito bem das duas coisas. Como cineasta, é um dos realizadores mais inventivos de sua geração, a do imediato pósguerra. Antes disso, porém, foi soldado durante a 2ª Guerra Mundial e, nessa experiência, buscou o material de vários filmes de guerra, em particular deste Agonia e Glória, relato em grande parte autobiográfico, que resumiu com uma máxima: Na guerra, o único heroísmo é sobreviver. Quando foi lançado em São Paulo, o filme teve destino similar ao de vários outros trabalhos admiráveis de Fuller: um lançamento fuleiro, com direito a uma semana em cartaz. Um crime de lesa-cinema que o lançamento em vídeo poderá, ao menos parcialmente, compensar. Agonia e Glória é um dos maiores filmes de guerra já feitos. Não vem ao caso compará-lo com outros filmes notáveis, mas, como na maior parte dos Fuller, tomá-lo naquilo que se distancia de seus similares. Em primeiro lugar, seu deslocamento em relação à indústria: no início dos anos 1980, a guerra que vinha ao caso era a do Vietnã. Fuller fincou pé na 2ª Guerra Mundial, aquela que melhor servia aos seus objetivos, ou seja, refletir sobre a glorificação da guerra no cinema. Nesse sentido, o Vietnã não servia de amostra: era o exemplo mesmo de guerra sem sustentação. O combate ao nazismo, ao contrário, sempre foi moralmente admirado. Daí os filmes de guerra que o precederam possuírem um aspecto um tanto abstrato. É nisso que Agonia e Glória busca sua distinção. Trata-se de um filme físico, sem lugar para o Estado Maior e, portanto, grandes linhas estratégicas. A maior patente que se vê em cena é um sargento (Lee Marvin), da 1ª Divisão de Infantaria do Exército americano (conhecida como The Big Red One). Ao seu lado, um destacamento de jovens mal saídos da adolescência e já às voltas com situações nas quais todo o horror descrito em, digamos, Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, pode enfim ser visto e experimentado. Não é o primeiro filme em que se trabalha com esse tipo de sensação. É, porém, o mais radical. Fuller mostra-se refratário a tudo o que, numa guerra, é motivação, para atirar seus personagens na selvageria do fronte, onde pouca diferença faz ser aliado ou nazista. Essa dureza não inspira qualquer piedade: mesmo esse tipo de noção é abstraído numa narrativa em que as situações de combate se sucedem praticamente sem parada. Não confundir com tantos filmes que fazem da sucessão interminável de eventos o seu marketing. Em Agonia e Glória, a sucessão confunde-se com certa monotonia. Essa monotonia, ainda que pontuada pelo risco perpétuo da morte ou de mutilações, instala-se na tela como uma espécie de maldição. A guerra evolui. Sabemos em que estágio ela se encontra. Mas os episódios protagonizados pelos soldados da 1ª Divisão de Infantaria não obedecem a qualquer espécie de crescendo. Ideias correntes – apogeu, perigeu e que tais – parecem descartadas. Se na guerra cada momento é diferente de outro, pelos riscos e desafios específicos que propõe, Fuller mostra que eles tendem paradoxalmente à indiferenciação, pelos mesmos motivos. Só se morre uma vez. E toda a questão é sobreviver. Essa opção pelo monótono é tão clara que, quando nossos heróis chegam ao grande momento (a descoberta dos campos de concentração), topam com câmaras de gás tão reluzentes quanto vazias. A guerra de Fuller remete diretamente ao Quixote: a cada combate, segue-se o vazio. Ao combate final, segue-se o vazio completo, a ausência de sentido, a percepção do desnível abismal entre ação e finalidade. Não terá sido esta a primeira vez que Fuller interpelou a vida de maneira tão violenta. O nonsense atravessa seus filmes sob a forma do cinismo (O Barão Aventureiro), da loucura (Shock Corridor), do desespero (O Beijo Amargo) e por aí afora. Mas foi a primeira vez que o cineasta se colocou ostensivamente dentro de um de seus filmes. Ele é o soldado representado por Robert Carradine, que, como o diretor, se caracteriza pelo hábito de portar enormes charutos na boca, em tempo mais ou menos integral. É possível acusar Agonia e Glória de tudo, menos de ser um filme impessoal. Drugstore Cowboy Usa Drogas na Medida Certa 18 de outubro de 1990 DRUGSTORE COWBOY (1989), de Gus Van Sant De pedra de toque capaz de transformar o cotidiano sombrio em experiência dos paraísos artificiais, as drogas passaram em poucos anos a grande demônio internacional, que a um tempo mobiliza e inocenta as polícias do mundo. Essa passagem foi acompanhada pelo cinema com o gradativo abandono dos filmes que – mais ou menos abertamente – alardeavam o barato tóxico, substituídos, em séries de TV ou policiais razoavelmente vagabundos, pelo endeusamento da repressão. O primeiro mérito de Drugstore Cowboy é ocupar um terreno vago entre essas duas ideologias. Tratase, para Gus van Sant, de mostrar a vida cotidiana de um grupo de drogados, sem ilusionismo libertário, mas também sem um sentimentalismo cuja outra face se chama, sem eufemismos, repressão. Fixando-se numa gangue de quatro viciados, cuja atividade básica consiste em assaltar farmácias de Portland e arredores, o filme se pretende antes de tudo descritivo de um modo de vida. A descrição será interessante na medida em que essa vida tenha particularidades em relação ao mundo normal. Ela as tem, e surpreendem não por caracterizarem tipos quase monstruosos, mas, justamente, uma variação do que se entende por normalidade. Assim, Van Sant dedica muito menos tempo aos barbitúricos e seus efeitos do que à necessidade e à maneira de obtê-los. Mas, um assalto de farmácia aqui, uma fuga ali, não bastam para configurar um mundo. Mais fascinante é a maneira como o filme visa a relação do grupo com coisas triviais (para os de fora), como as embalagens dos remédios roubados. Assim, voltando de um assalto a uma farmácia, Bob (Matt Dillon), líder do grupo, contempla os vidros roubados com a mesma obsessão que um jovem pai, por exemplo, dedica à mamadeira do filho, ou que um doente observa a os sinais visíveis da evolução de sua doença. Isto é, o drogado também opera uma brutal redução do mundo, o que não significa felicidade, nem desgraça. É assim, ponto. A questão, para Van Sant, é descrever com a maior fidelidade possível a série de gestos que, se particularizam seus personagens, não os exclui da humanidade (neste sentido, o filme opõe-se à ideologia policial, que pretende coisificar o drogado). Os viciados de Drugstore Cowboy limitam-se a conceber um universo violentamente fetichizado, no qual a parte e o todo se confundem, de tal modo que seu sistema de trocas limita-se a poucos elementos exteriores (roubo, drogas, polícia), embalado por um sistema de superstições autoabsorvente. Existindo num universo contraído, esse parece ser o único recurso ao simbólico com que conseguem trabalhar. O aspecto descritivo é, de longe, o que existe de mais interessante em Drugstore Cowboy e, se não houvesse outra evidência da felicidade com que o diretor trabalha seu assunto, bastaria lembrar que o espectador, ao fim de 15 minutos, se vê dentro da ação, participa dos sentimentos e atitudes dos quatro da gangue, é capaz de partilhar a estranhamente fria aflição de Bob em ocultar um cadáver. Não há estranhamento, ou sinal de ruptura violenta. Assim, Drugstore Cowboy pode ser visto como um filme amoral, isto é, que não pretende ver no consumo de tóxicos uma espécie qualquer de valor, para mais ou para menos. Pretende dar a ver esse mundo, mais do que entrar em seu mérito. Não entrar no mérito não significa, necessariamente, se omitir. Nesse sentido, a entrada em cena do escritor William Burroughs é iluminada. Travestido de padre junkie, o escritor beatnik recoloca a questão nos eixos: existem sofrimentos atrozes que as drogas ajudam a combater. Ideia emprestada de Antonin Artaud, outro junkie notório que se manifestou com frequência contra a vulgarização das drogas. Transformada em Mal ao alcance de todos, a droga torna-se assunto de polícia (para um lado e para outro). Deixa de ser esse ponto de vista de fora, maldito, para se transformar numa cegueira entre outras. É no interior dessa cegueira que Drugstore Cowboy se constrói, apesar de certas desigualdades, com muita felicidade. Oliveira Faz Épico com Derrotas Portuguesas 23 de outubro de 1990 NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR (1990), de Manoel de Oliveira Se não houvesse outra prova de que Manoel de Oliveira é um dos maiores artistas portugueses do século, alguém à altura de Fernando Pessoa, por exemplo, existiria agora Non, ou a Vã Glória de Mandar. O novo filme de Oliveira é uma incursão à história portuguesa pelo aspecto que as histórias nacionais costumam ter de mais atroz – suas derrotas. Engana-se quem pensar que o assunto limita o interesse ao território português (ou, com boa vontade, às ex-colônias). Como a maior parte dos grandes filmes, Non é tão mais universal quanto seu ponto de fixação é nacional. O enredo, simples como tudo, traz um grupo de soldados portugueses sendo transportados para o fronte num caminhão, durante as recentes guerras coloniais africanas. Enquanto esperam o conflito, conversam. Suas vozes misturam-se e somam-se, como numa sinfonia: nenhuma é igual à outra, todas manifestam maneiras de compreender o mundo a partir de uma localização específica. A organização do discurso corre por conta do alferes. Ele ensina e indaga, ao mesmo tempo em que acentua a natureza trágica de Portugal, pequeno país apertado entre a Espanha e o mar, a quem o destino sempre negou vitórias duradouras. O ponto de vista do vencido não é necessariamente o pior. O que resta de um império, diz a certa altura o alferes, não é o que ele tira, mas o que ele dá. Se do poderio grego restaram apenas ruínas, a Grécia manteve-se viva por suas obras. Se Portugal existe, não é por ter criado e explorado um vasto império colonial, mas por ter legado ao mundo as navegações. Não se trata de uma simplificação das coisas, que nega a guerra para afirmar a cultura (a conversa é entre militares, no mais), mas de afirmar a supremacia da ideia sobre a matéria. Oliveira permite a seus personagens repassarem episódios centrais da história lusitana. Ainda na Antiguidade, a resistência do chefe bárbaro Viriato ao poderio romano (história de Davi e Golias); mais tarde, a tentativa de unificação entre Espanha e Portugal, por via de uma união dinástica, frustrada pela morte prematura do príncipe d. Afonso, no final do século XV. Em seguida, episódio central, a célebre batalha de Alcácer Quibir, em 1578, derrota fatal para todo o futuro português, envolvendo talvez o maior mito de sua história, d. Sebastião. Oliveira não é gentil com o rei. D. Sebastião é visto como um fanático assexuado, disposto não apenas a tomar o Marrocos, como a chegar a Jerusalém e, em seguida, tornar-se papa. Ele seria, para completar, um chefe militar inepto. Se vê a história portuguesa com distante ironia (há muito humor no filme), Oliveira não abusa do procedimento. Ao mesmo tempo em que mergulha na história, ele a enxerga como fenômeno contingencial. É quase como se dissesse, como Fernando Pessoa, que apenas navegar é preciso. A vida, ao contrário, é feita de imprecisões cuja glória está acima da derrota ou da vitória. Em outras palavras, ao se afundar pela história de Portugal, não é a ela que Oliveira busca em última instância. A história é um ponto privilegiado, mas fugidio, de observação. Remete aos infinitos mistérios de uma existência cujo sentido insiste em escapar ao homem. O terrível non da derrota é, muito mais, um não do desencontro. O cinema de Oliveira tem um quê de Robert Bresson, sabe-se. Mas enquanto o francês enxerga a vida de uma perspectiva religiosa, Oliveira se coloca em um campo laico. Se existe algo como um desígnio, em Bresson ele é divino (e jansenista); em Oliveira, ao contrário, não há recurso a um Deus, mesmo cruel. Isso de certa maneira faz a originalidade de seu cinema. Enquanto em Bresson o homem é representado como se por trás de um véu espesso, em Oliveira o aspecto físico é privilegiado. Em cada sequência a câmera encontra seres cuja grandeza e miséria está em seus próprios atos. Realizando um épico de extrema precisão, cuja beleza está tanto na grandeza de uma batalha como na maneira quase intimista quanto capta a morte de um negro (anônimo), Oliveira revira a história portuguesa, na dimensão que tem: um bocado importante e instrutivo da aventura humana. Non, ou A Vã Glória de Mandar é um monumento. Clint Discute Vida e Cinema à Sombra de Huston em Coração de Caçador 15 de novembro de 1990 CORAÇÃO DE CAÇADOR / White Hunter Black Heart (1990), de Clint Eastwood Coração de Caçador dura o tempo exato de uma espera. O tempo que John Wilson, diretor de cinema, gasta em busca de um elefante de presas longas; o tempo que o espectador gasta, em sua poltrona, aguardando que John Wilson finalmente rode o primeiro take de seu novo filme. Clint Eastwood sabe que a questão é vital em cinema: existe a necessidade de o filme produzido valer o tempo que se perde na sala, para valer o preço do ingresso. Por isso o cinema standard da Hollywood atual corre rápido. Também, por isso, Clint subverteu todas as normas da produção corrente, realizando um filme lento, com pouca história, no qual jogou a própria pele: ali, ele é diretor, ator, produtor. E mais, o John Wilson que ele interpreta não é outro senão John Huston (1906 – 1987), diretor célebre, vivendo os momentos de preparação de um de seus melhores filmes, Uma Aventura na África (The African Queen, 1951). É ao coração do cinema, portanto, que Clint se dirige. Algo que fica explícito pela referência de Wilson às putas de Hollywood: os que cedem às pressões das companhias, obedecem cegamente as determinações dos produtores, pensam apenas naquilo que o público, supõe-se, quer ver, e terminam fazendo um cinema amorfo e sem ideias. A referência é cheia de humor e amargura. O humor está, por exemplo, no desprezo com que Wilson trata o yes man de seu produtor (George Dzundza); a amargura vem da boca de Wilson, que relembra os tempos em que também ele tinha de se prostituir. Pela boca de Wilson, quem fala é Clint: ele pensa, por certo, nos faroestes vagabundos que interpretou, nos Firefox que dirigiu sem outro fim preciso exceto fazer dinheiro. Também o personagem de Coração de Caçador não é casual. Ele evoca John Huston a partir do livro de Peter Viertel, um dos roteiristas de Uma Aventura na África. E Huston, como se sabe, percorreu um caminho cheio de altos e baixos em Hollywood. Houve momentos em que foi autor, outros em que foi prostituta, alternadamente. O Huston/Wilson é o autor que batalha com todas as armas, até o último segundo, pela integridade de sua obra. Para fazê-lo, deixa-se levar inteiramente por suas obsessões, que no momento da ação con-centram-se no ato de caçar elefantes. O produtor e seus auxiliares arrancam os cabelos à vontade, mas Wilson lembra-lhes que isso é um assunto entre ele e sua mãe (isto é, da ordem do inconsciente). Para o Clint Eastwood de hoje, os valores essenciais são a liberdade e a integridade. Em nome desta, ele ofenderá uma moça que ataca os judeus e se baterá, bêbado, com um funcionário de hotel que maltrata os empregados nativos. Em nome da liberdade, atrasará as filmagens e escolherá, na última hora, locações mais autênticas, na aldeia de seu guia de caça negro. Clint Eastwood fala da vida falando de cinema, e vice-versa: as duas instâncias se interpenetram. Esse é o caráter trágico do personagem John Wilson, às voltas com a natureza impura do cinema, essa mistura de arte e comércio. Coração de Caçador se constrói lentamente, ao longo de conflitos tão frágeis quanto densos, mas a direção de Eastwood deixa certos aspectos em aberto, como se, explicitamente, quisesse ver o espectador pensando que tudo o que lhe é dado a ver pode a qualquer momento se desfazer como fumaça: tanto a arte como a vida. Porque também (ou sobretudo) a vida é uma entidade frágil, muito próxima da fantasia, em Coração de Caçador. Basta lembrar a cena em que Wilson se vê frente ao elefante, o chapelão na cabeça, o rifle pronto para o tiro: não é em Wilson, nem em Huston que o espectador é levado a pensar, mas no caubói Clint Eastwood. Curiosamente, a continuação da cena levará a outro lugar. Em lugar do tiro esperado, o caubói abaixa o rifle. Clint reflete, Clint hesita. Como a vida, a arte se constrói como um longo détour, nesse filme de uma beleza exemplar. Ozu Revolve Códigos e Aparência do Japão 24 de novembro de 1990 ERA UMA VEZ EM TÓQUIO / Tokyo Monogatari (1953), de Yasujiro Ozu Já se falou tanto do estilo de Yasujiro Ozu que, por uma vez, pode-se começar pelos seus assuntos: em seus filmes, que tratam invariavelmente da vida familiar japonesa, Ozu realiza uma longa crônica das transformações, tanto físicas quanto emocionais, do Japão no século XX, até os anos 1960 (ele morreu em 1963). Era uma Vez em Tóquio é a quintessência de sua temática, porque focaliza não um problema localizado (filha que não se casa para ficar com pai, etc.), mas o núcleo familiar inteiro. A história diz respeito a um casal de velhos que vai a Tóquio em visita a seus filhos e os encontra muito mais preocupados consigo mesmos do que com os pais. A história se passa no início dos anos 1950, um momento em que o Japão ainda não havia se levantado da derrota na guerra. Era muito mais o local de uma árdua luta pela vida do que o atual exportador de tecnologia. No mais, Ozu pega o país num momento em que a influência ocidental cresce, o que registra em notações discretas e marcantes. Em vez da recepção que esperam, os pais são assim relegados a um relativo segundo plano, o que dá o tom agridoce do filme. Existe ali, primeiro, uma reflexão sobre o que se chama, eufemisticamente, de terceira idade. Nada é dito: o espectador notará tudo pela fragilidade dos velhos, pelo anacronismo de seus gestos suaves num mundo já dominado pelo dinamismo. Há também uma reflexão sobre a condição familiar. No Japão (e fora dele), o amor paterno é assimilado como condição natural. Não é coisa pela qual se deva lutar. E os filhos em geral se importam mais com seu próprio bem-estar do que com o dos pais. Por isso, os velhos encontrarão mais calor na recepção que lhes reserva Noriko (Setsuko Hara), a nora, viúva do filho morto na guerra, e que, ao recebê-los, parece reatar os laços com o marido. O espectador que já conheça os filmes de Ozu do cinema sentirá a perda imposta pela televisão. O trabalho em planos médios termina, na tela pequena, por distanciar excessivamente os atores e a ação, em diversos momentos. Um aborrecimento a que a arte incomparável do cineasta japonês resiste, seja como for. Mesmo que detalhes de enquadramento se percam na TV e o conjunto seja prejudicado por isso, há compensações. A construção da história, de uma lógica delicada e implacável, plano a plano, os momentos estonteantes, patéticos, da visita do casal de velhos a Tóquio, dão conta de um cuidado raro com as imagens, que resulta em uma beleza igualmente invulgar. Por fim, não há como passar em branco pelo estilo tão original de Ozu. Dá para esquecer os planos fixos, a câmera baixa, etc. Esses recursos, mesmo que não se ponha atenção neles, definem o cinema de Ozu. Por eles passam os três tempos a que se referiu Paul Schrader. No primeiro momento, o espectador se vê às voltas com as aparências (um mundo rigidamente codificado, aparentemente imóvel). No segundo, as aparências se decompõem e por trás dos hábitos gentis pode-se ver quanto a tradição esconde de hipocrisia. Por fim, esse império das aparências se rearticula: nada existe em vão; o que é, é. Ozu foi autor de um cinema conformista (sem conotação pejorativa); para ele, o mundo é conforme, uma série de adequações por vezes dolorosas que fazem da vida um fenômeno largamente imperfeito e de limites estreitos, que não vem ao caso julgar. Viver, para ele, é esbarrar nesses limites, constatar o vazio que nos faz humanos e vivê-lo. Globo Mostra Obra-prima Ecológica de Ray 26 de novembro de 1990 SANGUE SOBRE A NEVE / The Savage Innocents (1960), de Nicholas Ray No princípio era o gelo, o claro imaculado do território ártico, o branco apenas eventualmente manchado por um urso polar ou um esquimó. O que mostra o começo de Sangue sobre a Neve é uma continuidade silenciosa entre homem e natureza, cujo equilíbrio se manifesta na magnificência das paisagens. Depois, chega a civilização com sua máscara preferida, a do progresso. As armas chegam aos esquimós, seduzindo os nativos com as facilidades que introduz na caça aos ursos. Só em seguida a civilização mostra suas garras, sua pretensão de transformar um modo de vida, impor seus códigos como verdade a uma outra cultura. Por fascinante que seja, o assunto ainda assim é inferior ao filme. Ali, um estampido na paisagem silenciosa não é apenas o sinal de um tiro. Ele indica uma violentação próxima da barbárie: é como se cem serras elétricas se pusessem a funcionar simultaneamente na floresta amazônica, por exemplo. Todo o filme se desenvolve a partir de sutilezas como essa, e não há exagero em dizer que Sangue sobre a Neve é um dos pontos altos da obra de Nicholas Ray (1911 – 1979), justamente pela capacidade de tirar o máximo de elementos mínimos, colocando em relevo o papel do olhar. Em uma sequência, o esquimó (Anthony Quinn) é conduzido por dois policiais brancos até uma cidade próxima, para acertar contas com leis que, embora desconheça, fazem dele um criminoso. Em dado momento, o esquimó os adverte sobre o caminho que tomam, mas é ignorado. Não dá outra: logo em seguida, a neve se racha e um dos homens é jogado na água gelada. Ou seja, o esquimó enxergava mais, porque sabia olhar em profundidade a paisagem de que o invasor não via senão o indiferenciado, a superfície. O espectador que se acostumou com os filmes do diretor sabe que ele não vê as relações humanas com facilidade. O social é antes de tudo um acúmulo de solidões, de diferenças dificilmente transponíveis. A vida é difícil, como bem sabe, por exemplo, o advogado coxo de A Bela do Bas-Fond (Party Girl, 1958). Seus filmes não se fazem a partir dessa obviedade, mas da capacidade de captar cada movimento em seu voo, cada gesto em seu instante de sentido, naquilo que caracteriza a fricção com o mundo onde o ser, o novo ser, vem se instalar. Como os jovens de Amarga Esperança (They Live by Night, 1948). Não se trata de opor simplesmente natureza e cultura, mas de flagrar, pela imagem, a fatalidade de suas contradições. Filme com forte conteúdo documental, tão mais impressionante quando se sabe que foi rodado quase todo em estúdio, Sangue sobre a Neve só honra a ilustre família a que pertence, a dos Tabu, de Murnau, ou Nanook, o Esquimó, de Flaherty: recusa a facilidade, os efeitos, o impacto. Tudo deve convencer e seduzir pela verdade do raciocínio e pela força da demonstração. Dessa obra-prima diga-se, por fim, que o título brasileiro tem uma força muito grande e sabe jogar com os contrastes que o filme trabalha: o desequilíbrio que uma outra cor provoca na paisagem branca é a expressão física de uma violência tão mais selvagem porque impessoal, sem objeto específico. A violência existe para continuar existindo. Coppola Faz Épico da Decadência em Tucker 29 de novembro de 1990 TUCKER / Tucker: The Man and His Dream (1988), de Francis Ford Coppola Tucker é um épico de câmara sobre a decadência americana. Por isso mesmo, entende-se que o filme de Coppola não tenha sido um sucesso nos Estados Unidos, mas se entende com muito mais dificuldade que tenha passado como um meteoro nos cinemas brasileiros. Afinal, o Brasil tem pouco a ver com os EUA, além de Miami e da crença, muito cultivada da classe média para cima, de que o brasileiro rico é um cidadão norte-americano que acasos cartográficos fizeram nascer um pouco para baixo. Vale esperar que essa identificação não seja tão completa, que o espectador brasileiro dê uma chance a Tucker. Na pior das hipóteses, ali o mito da América está tão vivo quanto nos filmes de John Ford. Tucker é um filme fordiano, talvez o mais próximo do cinema de Ford já feito desde a sua morte. O que determina, de imediato, algumas consequências. No cinema de John Ford, nada é dado e nada é estabelecido em definitivo. Se seus filmes elaboravam o mito de uma nação em seu nascimento, esse mito era, já, o triunfo do homem simples contra um poderoso que, não raro, tomava conta do Estado em benefício próprio. Esse é o mito que Coppola revive em Tucker. Quem é, em primeiro lugar, Preston Thomas Tucker, o homem? Um brilhante projetista automobilístico, sem dúvida, mas também um cidadão comum. Seu sonho: terminada a 2ª Guerra Mundial, construir o melhor carro de seu tempo, com uma concepção revolucionária não só em termos de aerodinâmica (portanto, economia e tudo mais) como de segurança. Tucker encontrará enormes resistências ao seu projeto. Perceberá que o espírito de iniciativa, que norteava o ideal americano no século passado, evaporou-se. Em dado momento, quando ele próprio está sendo julgado por estelionato, diz que um dia os EUA comprarão carros e rádios de pilha daqueles a quem haviam acabado de vencer. Preston Tucker era um visionário, com ideias muito claras sobre economia de mercado: tratava-se de construir um carro melhor e mais barato para beneficiar seus compradores. É claro que as grandes empresas já estabelecidas em Detroit tinham outra ideia e trataram de mexer os pauzinhos para inviabilizar a ideia do projetista. Exteriormente, o conflito é esse. Interiormente, a briga é outra. Coppola pega os Estados Unidos em pleno apogeu – o pós-guerra – e revela, por meio de um episódio insignificante, como a decadência existia em estado germinal. Essa decadência já se entremostrava nos filmes de John Ford. Ela é o moralismo hipócrita dos viajantes de No Tempo das Diligências (Stagecoach). Ela está na personalidade ambígua de Doc Holliday em Paixão dos Fortes (My Darling Clementine). Seja como for, em Ford eles são sempre vencidos. Em Tucker, ao contrário, existe a derrota do personagem (como se sabe, sua fábrica só produziu 50 carros), mas Ford Coppola acentua o papel do sonho, do idealismo americano, na boca do próprio protagonista. Não há diferença entre construir 50 automóveis ou 50 milhões: cifras são coisa transitória, secundária; já a ideia, não. Inútil dizer que Coppola transmitiu ao filme e a seus personagens (completamente idealizados, no mais) toda a grandeza que o acontecimento não teria, desde que despojado de seu significado: Tucker, sua família, seus colaboradores são gente admirável, praticamente sem defeitos; já do senador Ferguson, o testa-de-ferro da indústria automobilística, pode-se dizer exatamente o inverso. É interessante notar que nos anos 1980, esses cheios de descrença, pode-se fazer um filme no mais velho estilo maniqueísta e idealizado e fazer as coisas darem certo. Certíssimo. Tudo o que faz a força do filme encontra-se, na verdade, além ou ao lado desse maniqueísmo: está, eventualmente, na crença sincera de que essa divisão tão nítida entre Bem e Mal não só existe como convém deixá-la clara, em vez de ponderar, como o cinema moderno, sobre o caráter ambíguo do mundo. Inútil dizer que Jeff Bridges está memorável e compõe um Tucker à altura do que o mito esperava dele. Ata-me! Dá Nó em Conceito de Normalidade 30 de novembro de 1990 ATA-ME! / Átame! (1990), de Pedro Almodóvar Ata-me! é o filme de um sucessor de Luís Buñuel. Vale não confundir sucessor com epígono ou imitador. O que une Pedro Almodóvar, 41, a seu ilustre predecessor não são o anticatolicismo, a iconoclastia, ou o gosto pela blasfêmia. É algo na verdade mais simples: uma atitude profundamente antissocial. Em Ata-me!, seu oitavo longa, ela se manifesta já no argumento. Victoria Abril é Marina, atriz pornô que tenta a sorte em um filme de horror de pequena produção, quando é sequestrada por Ricky (Antonio Banderas), órfão desde os três anos de idade e há muito circulando por instituições psiquiátricas. Ao receber alta da última que frequentou, já considerado um homem normal, tudo o que quer da vida é encontrar uma mulher, um emprego e formar família. À parte o método pouco ortodoxo de chegar à mulher amada, Ricky representa as aspirações sociais mais caretas, enquanto sua vítima, Marina, representa o exato inverso: vida sexual promíscua (para usar a nomenclatura da era AIDS), desordem do espírito, egoísmo. No entanto, Ricky é aquele que o espectador identificará como o louco, enquanto Marina será sua vítima. Já em seus pressupostos, portanto, Ata-me! dá um nó, procede a uma inversão dupla: ao mesmo tempo em que transforma o homem normal em um sequestrador maluco, lhe atribui as intenções mais dentro da norma que se possa imaginar (casar, trabalhar). A série de inversões de comportamento a que Almodóvar submete seus personagens – por artificiais que eles sejam – é essencial ao funcionamento do filme: em Ata-me! tudo existe para estar fora de lugar. Não é a primeira vez que isso ocorre com o cineasta espanhol. Em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, por exemplo, o melodrama era uma referência forte (melô no sentido dramalhão mexicano da palavra) e o resultado, ao contrário, uma comédia. O humor em Mulheres... não vinha de uma intenção paródica, mas dessa capacidade de Almodóvar de provocar deslocamentos sucessivos e criar estranhamentos (matéria em que Buñuel foi um mestre total). Nenhuma semelhança, portanto, com o grupo Monty Python e similares, todos esses que criaram, nos últimos anos, uma indústria da paródia. O olhar de Almodóvar não é cínico, nem debochado. Ele se origina nos gêneros populares, não os despreza e parece se alimentar da crença nos sentimentos socialmente aceitos que esses gêneros disseminam. Mas a crença convive com a descrença. Não a descrença blasée dos que se imaginam acima dos sentimentos não mediados intelectualmente (amor, ódio, etc.), mas essa descrença feita de bater com a cara na porta, de perceber que o desejo e o sentimento social aceito trilham vias irreconciliáveis. Almodóvar não deixa muitas dúvidas sobre o partido que toma: sua produtora se chama El Deseo S/A e já deixa claro no nome que o desejo é uma entidade anônima, isto é, não submetida à vontade. A atitude antissocial de Pedro Almodóvar está longe de ser um tique para agradar o mercado (pode vir a se tornar, o que é outra história). Ele vê essa inadequação entre as exigências da natureza e as da cultura como uma tragédia que se abate sobre o humano, embora consiga converter esse sentimento em comédia. Em Ata-me!, o melodrama não é o único gênero referencial, e o horror chega a ser mesmo mais importante. Não é por acaso que, na porta da sala de montagem, onde trabalha o diretor Máximo Espejo (Francisco Rabal), existe um cartaz de Invasion of the Body Snatchers (Vampiros de Almas), de Don Siegel: nesse filme, o assunto é a substituição de seres humanos por duplos, idênticos a eles, porém sem sentimentos. Qualquer que seja o registro procurado, porém, a sombra de Buñuel parece se mostrar no cinema de Almodóvar: como conteúdo, por exemplo, é impossível passar por Ata-me! sem lembrar, aqui e ali, de Belle de Jour. Formalmente, sem perceber que cada cena contém elementos de calculado desleixo convivendo com outros absolutamente cuidados (os diálogos, por exemplo). Sem notar que o conjunto do filme parece importar menos do que cada sequência em particular. Os pontos de aproximação são diversos. Os únicos essenciais parecem ser, no entanto, a importância dada ao inconsciente e o ponto de vista claramente anárquico, surrealista no sentido original da palavra. São esses atributos que fazem hoje do cinema de Almodóvar um dos mais interessantes do mundo. Mas são perigosos. Na verdade, pode-se esperar para o futuro uma queda de braço entre Almodóvar e o sucesso: nada pode ser mais destrutivo do que o êxito para um cinema corrosivo como o seu. Gazeta Exibe Melodrama Preciso de Douglas Sirk 11 de dezembro de 1990 TUDO O QUE O CÉU PERMITE / All That Heaven Allows (1955), de Douglas Sirk Há que se olhar com atenção os rostos dos personagens de Douglas Sirk. Eles se tornam crispados à medida que o filme avança, sobretudo nos momentos-chave. É que nos filmes de Sirk o céu desaba sobre os personagens quase literalmente, tenha esse desabar a forma de fatalidade (cegueira, paralisias, etc.) ou pressão social. Em Tudo o que o Céu Permite estamos no segundo caso. Jane Wyman é uma viúva grã-fina cuja vida insossa, numa cidade do interior dos EUA, é invadida por Rock Hudson, jardineiro bonitão, pobre e muito mais jovem do que ela. A história é o que o céu poderia reservar de mais ingrato, para um diretor de cinema. Sirk reverte a situação com as armas que melhor soube usar ao longo de sua carreira: a delicadeza e a ternura. Elas estão nas mãos de Rock, que cultiva Wyman com o mesmo tato que dedica às plantas. Já as pessoas que cercam a viúva cultivam preconceitos, de maneira que a paixão entre os dois estará condenada a ser tão intensa quanto cercada de perturbações. Mas Sirk possui o sentido do trágico: se é difícil lutar contra a sociedade, é impossível escapar a uma paixão tão iniludível. O diretor entendia o melodrama como a transposição da tragédia para o universo pequeno-burguês e manejava seus elementos nesse sentido. Raramente seus personagens tinham problemas de dinheiro; os ambientes que descreve não são só abastados, são fartos: neles tudo funciona como contraponto aos males que afetarão seus heróis e que, o espectador saberá desde logo, começam onde termina tudo o que o dinheiro pode comprar. Douglas Sirk (1900 – 1987) realizou uma série de obras-primas para a Universal nos anos 1950, de Sublime Obsessão a Imitação da Vida, passando por Sinfonia Interrompida, Almas Maculadas, Palavras ao Vento, entre outros. Em todos, sempre de maneiras diversas, a adversidade surge além da situação física dos personagens (a exceção, parcial, é Amar e Morrer): também a força para viver essas situações vem de uma espécie de além, que consiste em os personagens não serem donos de seus destinos, mas possuídos por ele. O espectador não familiarizado com seus filmes não estranhará se não chorar em Tudo o que o Céu Permite: esses melodramas trocam o lacrimoso pela precisão. Dirigem-se, sem dúvida, aos sentimentos. Mas sentimentos mediados por uma observação da existência que, embora cruel, convive com uma imensa capacidade de compreensão do outro. Como se dissessem que as almas podem ser muitas, mas o barco é um só. Princesa de Mizoguchi Ensina o Planosequência 14 de dezembro de 1990 A PRINCESA YANG KWEI FEI / Yôkihi (1955), de Kenji Mizoguchi O plano mais prodigioso de A Princesa Yang Kwei Fei é a visita a uma festa popular que o imperador Huan Tsung faz com Kwei Fei. A cena se abre com um movimento vertical da grua, mostrando a multidão. Em seguida, destacam-se a princesa e o imperador, que esconde as feições para não ser reconhecido. Os dois continuam a caminhada até um ponto, supostamente de frequência mais popular, onde Huan Tsung já pode mostrar o rosto. Numa barraca, eles comem. Em seguida, vão a um lugar onde as pessoas dançam. O imperador pega um instrumento e toca. Kwei Fei dança. Toda a sequência resume-se a esse plano, que por sua vez resume em grande medida o sentido do filme. Quando leva o imperador à festa, Kwei Fei faz dele um homem comum, dotado de sentimentos comuns e de uma liberdade desconhecida por imperadores. Todo o conflito do filme se dará em torno da dificuldade do imperador em conciliar o homem com o homem de Estado. Ao mesmo tempo, esse plano-sequência ilustra o procedimento mais característico do diretor, o uma cena/um corte. É fácil verificar, por ele, a dificuldade que Mizoguchi assumia. Da disposição de luzes à atuação dos atores, o plano-sequência propõe um tour de force evidente, o que não determina necessariamente seu valor. A Princesa é exemplar pelo uso rigoroso desse procedimento. Não se trata ali de estalar aos olhos do espectador o virtuosismo técnico, mas de resolver um problema concreto. Caso se optasse pela decupagem clássica, a sequência seria dividida em vinte ou trinta planos, com idêntico número de interrupções, deslocamento de luzes, etc. O tempo gasto seria muito maior. O resultado, sobretudo, seria afetado. No planosequência, Mizoguchi propõe uma continuidade de ação que se assemelha à de um rio. Do início ao fim, a situação se altera radicalmente. O imperador que aparece na abertura do plano ainda é o homem triste, soterrado pelos problemas de Estado e pela lembrança da antiga imperatriz. No final do plano, é um outro: a música que sai de seu instrumento é alegre. Essa mudança radical no estado de espírito de Huan Tsung, no espaço de poucos minutos, é possibilitada pelo plano-sequência, que funciona ali como instrumento de síntese, num momento em que a percepção das coisas pelo imperador é praticamente virada pelo avesso (ao mesmo tempo em que ressalta sua fragilidade). O conjunto do filme é muito esclarecedor sobre uma questão proposta ao cinema moderno. Com a evolução técnica, o plano longo deixou de ser uma dificuldade para tornar-se, em princípio, uma banalidade. Daí a revalorização recente dos cineastas essenciais, como Ozu e Bresson, que raramente movimentam a câmera. Mizoguchi mostra a contrapartida dessa ideia: quando a câmera se movimenta intensamente, mas tem uma ideia e um motivo fortes, cria sentido. O movimento não é uma rebarba virtuosística, mas uma necessidade do filme que cria sentido recriando a vida. Nesse caso estão também Welles, Fuller, Scorsese, Antonioni, etc. Existe, por outro lado, a cor. A Princesa Yang Kwei Fei é o segundo e último filme colorido de Mizoguchi. É um dos mais deslumbrantes filmes coloridos já feitos. Na cor, convivem a beleza e a complexidade das coisas, o fausto imperial e a austeridade de sua recriação. A Princesa é uma obra-prima de certa forma arrasadora. Última Sessão Evoca Cinema Clássico 7 de janeiro de 1991 A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA / The Last Picture Show (1971), de Peter Bogdanovich É provável que Bogdanovich não tenha inventado a nostalgia cinematográfica. Mas nenhum outro diretor a levou às últimas consequências como ele. Seus primeiros trabalhos evocaram o cinema pelo ângulo da comédia screwball (Esta Pequena É uma Parada) ou romântica (Lua de Papel) dos anos 1930, regressaram ao tempo dos pioneiros e da criação de Hollywood (Nickelodeon), homenagearam o policial e o horror na pessoa de Boris Karloff (Na Mira da Morte). Mas nenhum deles lhe deu tanto prestígio quanto o melancólico olhar para a decadência do cinema de A Última Sessão de Cinema. Esse tom é acentuado pela fotografia em preto e branco de Surtees, e o filme pode ser visto, num primeiro nível, como uma visada sobre a adolescência, numa cidade do Texas, anos 1950. Bogdanovich acrescenta uma série de elementos de sua experiência de cinéfilo. No início, uma projeção de Rio Vermelho, de Howard Hawks, remete à batalha de um texano para abrir uma trilha e conduzir seu gado até onde ele pudesse ser vendido dignamente, após a Guerra de Secessão. A Última Sessão pega o contrapé dessa idéia. É pós-sonho americano. O fastio e os preconceitos ocupam o espaço. Mas o cinema está para fechar. E Bogdanovich não concebe catástrofe mais completa. O cinema, na época em que o filme é ambientado, mal começava a viver sua grande crise. Quando foi rodado, diferentemente, o fechamento de cinemas era fato trivial. E para ele o cinema (físico) é parte do equilíbrio ecológico. Para criá-la, A Última Sessão recorreu abertamente a John Ford: os largos espaços são dominantes. Mas também com Ford os dados são invertidos. No cinema fordiano, o homem é posto nos grandes espaços, mas consegue dominá-lo. Em Bogdanovich, o espaço é dominante e nele o homem está perdido. De algum modo, todos os filmes de sua primeira fase (até 1976) fazem mais do que evocar o cinema clássico. Representam um esforço de preservação, feito por alguém que não admite o final de uma grande era. Monstro de Corman Enfrenta Hollywood 11 de janeiro de 1991 FRANKENSTEIN, O MONSTRO DAS TREVAS / Frankenstein Unbound (1990), de Roger Corman Sessões para a imprensa podem ser um sofrimento atroz. Nelas, acontece de filmes serem liquidados sem cerimônia, mal começou a projeção, com variados pretextos: os atores, os figurinos, o que for. O mecanismo é aproximadamente o mesmo do linchamento: alguém comenta um defeito – possível, não necessariamente real; alguém mais ecoa em outro canto da sala. Em pouco tempo, o que era hipótese converte-se em verdade indiscutível e logo todos na sala sentem-se obrigados a notar, com o devido sarcasmo, os erros do filme. Foi isso o que aconteceu com Frankenstein, o Monstro das Trevas na cabine da companhia Sul, quartafeira passada. Existe algo profundo nessa rejeição em bloco e apriorística: é que Corman fala de outro lugar que não a ideologia dominante do cinema atual. Isto é, hoje os filmes começam pela trucagem e fazem dela o seu caminho para o verossímil. Aceita a premissa, pode-se enfiar goela abaixo do espectador tolices abissais, tipo Linha Mortal, sem que a crítica necessariamente ria com isso. O sistema de Corman supõe – desde sempre – trucagens marretas, deficiências de produção, simplificações brutais, sínteses brilhantes. Tudo é feito mais ou menos a toque de caixa. Mas esse não é o ponto. Em Frankenstein, os efeitos especiais são elementos que existem após a imaginação do espectador estar em funcionamento. O verossímil é produto do imaginário do espectador em contato com o imaginário do autor. Trucagem e maquiagem são apenas elementos confirmatórios dessa, digamos, comunhão de interesses. Pode-se rir à vontade, mas ninguém dirá que a premissa de Frankenstein, o Monstro das Trevas é ingênua: John Hurt é o dr. Buchanan, cientista do século XXI empenhado em criar uma arma que, em vez de matar, atire suas vítimas em uma dimensão outra do espaço/tempo. Ele pretende evitar que as armas destruam a Terra. Ironicamente, sua própria criação o apanha. Ele é remetido à Suíça, século XIX, onde o dr. Frankenstein está envolvido em criação análoga. Próximos dele, Shelley, Byron e Mary Shelley também inventam o mundo à sua maneira. Mary, aliás, junta elementos para escrever Frankenstein. Corman não foge ao provocativo flerte com o ridículo. Não basta ao dr. Buchanan encontrar Mary Shelley. É preciso, ainda, que transe com ela. Mas também não foge às responsabilidades: insere uma sequência de enforcamento memorável (a aniquilação do outro vista como festa, tal como aconteceu com o filme na dita sessão). O monstro criado por Frankenstein não tem comparação, aqui, com o de Boris Karloff, no filme de James Whale (1931): parece saído de um estágio pré-Homo sapiens direto para o século XIX. Isso fará sentido ao longo do filme, mas não é o que mais importa. Num tempo em que o cinema usa e abusa de todas as geringonças mecânicas, Corman dispensa as glórias do cinema de maquiagem. Sua questão é o conhecimento, a mesma que movia O Homem dos Olhos de Raios-X. No caso desse Frankenstein, o terreno é o do potencial destrutivo contido na busca do conhecimento. Mais do que isso, porém, é a criação que está em jogo. Em particular, a criação cinematográfica. É evidente que o Frankenstein de Corman rima com De Volta para o Futuro. A ideia de Corman é um pouco mais profunda (para comprová-lo é preciso ver o filme inteiro e suas consequências). Não será indiscrição, em todo caso, dizer que o retorno ao presente na verdade é retorno a tempo algum. Mais do que confrontar criador e criatura, o filme coloca frente a frente o mais sofisticado (a ciência moderna) e o mais primitivo estágio da evolução. Frankenstein é a mise-en-scène dessa postura. E isso é o que tem de mais admirável. Corman discute o cinema presente de maneira atual. Nega o maquinário da Hollywood pós-Spielberg, designando-o em pleno voo. Faz um filme de trucagem para demonstrar que o imaginário dominante não é absoluto, mas histórico. Como a própria história não é um absoluto, exceto nas visões totalitárias, o filme toma a história do cinema na contracorrente, como a dizer que a criação hollywoodiana de hoje, que faz da máquina o suporte e o fim do imaginário, tem mais de um ponto em comum com a do dr. Frankenstein. Frankenstein é um filme sobre um homem perdido no tempo e no espaço. Mas também é um filme de discussão estética, a mais cristalina produzida ultimamente nos EUA. É o primeiro sopro de alta invenção do ano: 1991 começa bem. Wajda Usa Danton para Criticar Socialismo Real 17 de janeiro de 1991 DANTON, O PROCESSO DA REVOLUÇÃO / Danton (1983), de Andrzej Wajda Danton seria um filme sobre a França revolucionária ou sobre a Polônia do Solidariedade? A dúvida parece ter assolado a equipe em plena filmagem, já que o combate entre Danton, o liberal, e Robespierre, o radical, se dá num terreno pouco específico. A Revolução Francesa é um acontecimento central na história moderna, travada em torno de uma série de ideias com as quais até hoje a humanidade se debate. No entanto, o cinema ainda não realizou um filme à sua altura. Quem esteve mais próximo foi Peter Brook, com Marat/Sade, cujo interesse vinha da feliz oposição entre o que os dois personagens representavam: um, a revolução real, o outro, seu processo simbólico. Danton e Robespierre, diferentemente, são polos bem menos opostos do que Wajda procura fazer crer: ambos são republicanos radicais, com divergências sobretudo quanto à integração política dos menos favorecidos, os sans-culottes. Danton, o Processo da Revolução passa ao largo dessas especificidades, ao mesmo tempo em que opera uma brutal presentificação da história e seu aproveitamento para usos outros. É pena, sobretudo em vista dos acontecimentos que, anos depois, se dariam nos países socialistas, inclusive Polônia: o filme teria mais chances de ser atual se fosse fiel à época representada. Wajda optou pela analogia entre os destinos da revolução e do socialismo no final do século XX. A França revolucionária envolvia vários tipos de conflito, entre os quais um forte cerco externo. Que o Terror tenha sido o momento de desordenação desses conflitos, admite-se. Que Danton tivesse mais razão do que Robespierre, nem tanto, justamente em vista dessa desordenação. Quando tenta entender o Terror à luz da Polônia de 1980, o polonês Wajda nomeia, sem querer, problemas do próprio cinema, arte cuja virtude está justamente na capacidade de remeter o espectador a tempos e locais diversos. Paradoxalmente, Danton expressa a miséria do socialismo real me-nos pelo que procura dizer do que por aquilo que deixa de dizer. Não é um caso único: é a norma estética dos filmes socialistas pré-perestroika. Esses filmes (como Mephisto, entre outros) variaram da alegoria à analogia e falaram de seus países mais pelo hiato de significação que continham do que outra coisa. Não será absurdo lembrar a maneira como Jacques Lacan explicava as noções de significante e significado em psicanálise. Diferentemente da ideia clássica, em que o significante árvore tem, como significado, a figura de uma árvore, para Lacan existe o significado homens. Seu significante é uma porta. Existe a palavra mulheres, com o mesmo significante, uma porta. A cena se dá numa estação de trens. As duas portas (de banheiros) são idênticas, mas o sentido, segundo o psicanalista francês, é a separação radical entre o mundo feminino e o masculino. O socialismo fez algo perverso com o cinema. Podese ler como significante de filmes como Danton a palavra arte. O seu significado é, também, arte. Criou-se ali um cinema da tautologia, que substituiu a capacidade de designar o que mostra pela hipertrofia do artístico. Basta observar a interpretação de Depardieu: não é a Danton que remete, nem mesmo à Polônia atual. Ele se defende investindo mais do que nunca em seu físico de urso. No que lembra, mais do nunca, Michel Simon. Chabrol Leva Mulheres à Linha de Frente 18 de janeiro de 1991 UM ASSUNTO DE MULHERES / Une Affaire de Femmes (1988), de Claude Chabrol Nos filmes de Claude Chabrol existe uma moral do movimento. A ação é um percurso. Em princípio, isso é o que qualquer filme oferece. O que diferencia o cineasta francês é a natureza pessoal dessa trajetória: para que se ande do início ao fim numa história, é preciso que o mundo inteiro se mova, arrastando com ele a percepção do espectador. Essa moral do movimento narrativo inscreve-se plano após plano, sequência por sequência. Assim, Um Assunto de Mulheres se abre com Marie (Isabelle Huppert) no campo, com seus dois filhos. Severa, esbofeteia o mais velho. A cena não designa nenhuma época específica. Logo, o espectador saberá que o filme se passa na França ocupada pelos alemães (2ª Guerra Mundial). Marie enfrenta as dificuldades do período, até que o acaso lhe propicia um atalho para a fortuna. Ela começa a praticar abortos em mulheres que, por motivos vários, não desejam ter os filhos que conceberam. Enquanto Marie prospera, o governo do marechal Pétain continua a formular discursos pomposos em torno do lema trabalho, pátria, família. Marie toma gosto pelo dinheiro. E, como tudo se move, percebe que pode conseguir lucro adicional alugando um dos quartos de sua casa para encontros amorosos. Por fim, procurará com um amante o prazer sexual que o marido – perdedor como soldado e, no mais, insuportável – não lhe dá. Com tema fornecido por um livro de Francis Szpiner, ele próprio baseado num fato real, o filme é a narrativa de uma lenta, quase imperceptível degradação moral, que acompanha o movimento de uma França não só derrotada como despojada de perspectiva. Marie é o contraponto – como tantos outros – do lema infame de Pétain. O título é verdadeiro em parte e em parte uma ironia. Aborto e prostituição são assuntos femininos, sem dúvida, mas para que existam é necessária uma decisiva colaboração masculina. Esse mundo no qual o homem é uma sombra, ou pouco mais, organiza-se masculinamente: guerra, ocupação, Justiça são prerrogativas masculinas. Feminino, ao contrário, é o território do sonho. E o de Marie é tornar-se cantora. Com discrição e eficiência incríveis, Chabrol consegue colocá-lo em cena: ao fazer o primeiro aborto, numa vizinha, Marie ganha de presente uma vitrola. Se o aborto leva à música, sua paixão, a vitrola mesmo indicará a Marie o caminho da fortuna via novos abortos. Da solidariedade à profissionalização existe apenas um pulo. Mais tarde, com o dinheiro ganho em suas atividades imorais, Marie tentará reconstruir seu sonho, tomando aulas de canto. Esta será uma das cenas mais arrebatadoras do filme, até porque ilustra com perfeição essa moral do movimento em Chabrol. Marie entra numa casa como fabricante de anjos. Sem cortes, a câmera volta, seguindo a parede exterior da casa, até mostrar uma janela. Dentro, Marie toma aula de canto. É um anjo. Esse plano que expressa toda a ambígua inocência da personagem também ilustra as ideias de Chabrol sobre o movimento de câmera. Há anos, numa entrevista, ele criticou os diretores que movimentam a câmera a propósito de tudo e para todo lado, como uma vassoura. A sua arte, ao contrário, é feita de precisão e sentido. É ela que permite a Chabrol controlar os inúmeros registros envolvidos num filme em que transita da fortuna à miséria, da inocência à condenação, do claro ao escuro, da música à prostituição.Partindo de um fait divers aparentemente pouco significativo, Chabrol empreende uma revisão cruel de um episódio central na história francesa recente. Dispondo seus personagens num espaço misterioso, incerto, povoado de imponderáveis, faz um filme à altura do melhor Chabrol, ao qual não falta a crítica atroz da moral burguesa, apanhada no que tem de mais imóvel, a hipocrisia. TV Mostra Show do Conflito 19 de janeiro de 1991 Prevista, anunciada, com hora marcada, a guerra no Golfo Pérsico tinha tudo para se tornar o grande momento da TV desde a chegada do homem à Lua. Nunca se dispôs antes de um aparato tecnológico tão apropriado para a cobertura segundo a segundo. Nunca as emissoras – do Brasil e do exterior – puderam se preparar tão apropriadamente, em São Paulo, Washington, Jerusalém, Amã, Dhahran ou mesmo Bagdá, para o que ia acontecer. Todo esse aparato, porém, acabou por produzir um curioso efeito de estranhamento. Os comentaristas fazem previsões como se estivessem numa partida de futebol americano (pontos conquistados, metros avançados, etc.). A rede CNN coloca no ar scouts de foguetes caídos em Tel-Aviv e arredores, como se mostrasse um jogo de basquete (rebotes pegos, arremessos errados, etc.). Os repórteres no meio do fogo abrem o microfone para apanhar o ruído das bombas, mais ou menos como nas corridas de Fórmula 1. O efeito de analogia com o esporte leva o espectador consigo: a sensação de acompanhar uma guerra real, em que se joga o destino de populações inteiras (talvez da humanidade) é substituída por outras, infinitamente menos graves. Com euforia, partilhada pelos locutores, sabe-se que os norteamericanos estão fazendo picadinho de Bagdá. Gol nosso. Mais tarde, um general dá entrevista: é como um treinador que no intervalo do jogo comenta como vai a sua equipe. O que é estranho, no caso, é que não existe nenhuma intenção declarada de desinformação. Ela é um efeito que escapa às intenções jornalísticas (e à capacidade informativa das estações): informase, mas o que é dito e mostrado perde-se no ar, decodificado pelo espectador, que o assimila às inúmeras sensações que o cotidiano televisivo lhe oferece. Talvez Renato Machado, na Manchete, tenha dado uma pista segura desse fenômeno já no primeiro dia de conflito (quarta-feira), ao dizer que, finalmente, a TV ia mostrar as imagens com que sempre sonhamos. O ato falho não revela, necessariamente, um temperamento belicoso. Dá conta, porém, de um fenômeno mais profundo, partilhado pelos espectadores: a TV traz o mundo para dentro de casa, OK, mas esse mundo já não existe em estado bruto. À custa de se reproduzir diariamente, essa capacidade já não produz conhecimento: enredada num sistema alienante, a realidade não se revela. Esconde-se, travestida, revestida das cores de uma grande festa. Paradoxalmente, o máximo de informação e o máximo de alienação (alheamento) ocupam o mesmo espaço. Quem se sentar à frente da TV com uma cerveja e um pacote de amendoins ao lado, para ver o fim do mundo, estará na exata sintonia de seus semelhantes: vista pela TV, a Tempestade no Deserto é fictícia como uma novela, emocionante como um sorteio do Silvio Santos, com o mesmo suspense que uma performance de Ayrton Senna. A TV trans-mite o real: o que entra no aparelho receptor é o irreal. Pode ser um consolo. Que o mundo acabe. A TV garantirá um último segundo de torpor feliz. Allen Perde o Humor e a Graça em Interiores 14 de fevereiro de 1991 INTERIORES / Interiors (1978), de Woody Allen O que existe em Interiores não é propriamente a passagem de Woody Allen da comédia ao drama, mas a pura e simples rejeição da comédia e, mais genericamente, do humor. Essa rejeição é um fato bem mais central na carreira de Allen do que, por exemplo, a influência que o sueco Ingmar Bergman passou a exercer sobre seus filmes, e não pode ser dissociada de sua história. Desde os anos 1960, Allen se havia firmado como o grande nome da comédia americana, o sucessor de Jerry Lewis. Em meados da década seguinte, passou a sentir a comédia como uma limitação, algo que impedia a exploração completa de seu talento. Bem ao contrário, esse é o momento em que os limites de Allen começam a se mostrar. A partir daí, mesmo quando volta à comédia é para encarar o mundo seriamente: Manhattan se preocupa em fazer estilo recorrendo ao preto e branco (mas ainda é um filme de diálogos hilariantes); A Rosa Púrpura do Cairo investe num entra e sai que, se não chega para montar um pensamento inovador sobre o cinema, basta em todo caso para deixar o espectador atônito com a gratuidade do procedimento. Dá para ficar por aí. A única exceção digna de nota nos anos 1980 é Hannah e Suas Irmãs e, mais remotamente, Zelig. Embora frustrada, a história do sujeito capaz de mudar de cara conforme a pessoa que encontre à sua frente, a obsessiva vontade de agradar, diz muito mais e profundamente sobre Allen do que a fácil nostalgia de Radio Days, por exemplo. Se Interiores abre uma longa lista de filmes pouco animadores de Woody Allen, a culpa de Ingmar Bergman é mais que relativa. A Suécia não é ocasional na obra de Bergman. Interiores, ao contrário, poderia se passar em qualquer parte, já que aquilo que o autor tem a dizer lhe parece mais importante que as coisas que mostra. Essa imprecisão tem a ver com o resultado final. O cinema exige uma exatidão que outras artes dispensam. É uma arte documental, que lida diretamente com coisas. No momento em que as coisas assumem, em primeiro lugar, o caráter de signos, o cinema invade perigosamente o terreno do subteatro, da subliteratura ou mesmo da subpintura. Ele diz em vez de mostrar. E o cinema não diz nada, como já notou Eric Rohmer, ele mostra. Em Interiores, a vontade de dizer vence fartamente a vontade de mostrar. Não por acaso – e bem ao contrário de Bergman – sente-se os personagens como um incômodo ambulante. Da mãe (Geraldine Page) às filhas (Diane Keaton, Mary Beth Hurt, Kristin Griffith), passando pelo pai (E. G. Marshall), que compreensivelmente larga a mulher, todos rastejam pelos cantos, ocupados em tempo integral com pensamentos soturnos. Essa vida que se define como uma fossa perpétua tem interesse exclusivamente pelo que significa na carreira de Allen. Não se trata de um episódico abandono do humor. Trata-se de amputá-lo, como quem amputa uma perna. No caso de Woody Allen, a operação é não apenas inútil, como indesejável. A riqueza espantosa de suas gags desaparece, soterrada num pesadelo sem surpresa ou graça, para que o comediante seja enfim reconhecido como verdadeiro artista. Existem algumas centenas de filmes sobre vidas arruinadas por uma razão ou outra. Em Interiores, diferentemente, Allen edifica a ruína. Não é o caso de dizer que isso resulte em um mau filme. É, antes, um contrassenso. Professor Aloprado Prova Gênio de Lewis 19 de fevereiro de 1991 O PROFESSOR ALOPRADO / The Nutty Professor (1963), de Jerry Lewis As aparências não enganam. Isso é o que o cinema é, em uma frase, ou, em todo caso, o que define sua originalidade como arte. Na tela, as coisas são coisas antes de serem signos, captadas em sua inteira materialidade, e talvez isso confira um lugar tão próprio a cineastas como Ozu ou Robert Bresson: em seus filmes, nenhum sinal, nenhuma profundidade vem turvar a plenitude das aparências. Bem, e por que lembrar tudo isso ao falar de Jerry Lewis, em particular de O Professor Aloprado? Porque a aparência é ambígua. Ela mostra com a mesma desenvoltura que oculta. E poucos cineastas foram tão vítimas da própria capacidade de, a um tempo, mostrar e ocultar, quanto Lewis. Como comediante, ele construiu ao longo de décadas o tipo do idiota. Isso bastou para que fosse considerado um idiota, quando ele representa (sobretudo em seus filmes com Frank Tashlin) o reverso do sonho americano em versão comédia: Jerry é o excluído por idiotia, por incapacidade de participar de um mundo que impõe a performance, a desenvoltura do winner como uma espécie de moral. O Jerry cineasta foi um pouco mais longe. Numa série de filmes que – sobretudo nos anos 1960 – o firmaram como um dos grandes cineastas norteamericanos modernos, conservou as características básicas de seu tipo, ao mesmo tempo em que desenvolveu a capacidade de desdobramento do personagem. Nos filmes que dirigiu, Jerry com frequência se multiplicou em vários Jerrys. Em nenhum, provavelmente, foi tão claro quanto em O Professor Aloprado, versão comédia de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Stevenson trabalhou com a dualidade do ser humano, sua capacidade de ser Luz e Treva ao mesmo tempo. Lewis deslocou a questão para o problema que os norte-americanos vivem obsessivamente: ser bem-sucedido ou não ser. Seu primeiro persona-gem é um professor tímido, fisicamente horrível, dotado de voz idem e, obviamente, atrapalhado. Tem tudo o que o credencia à exclusão de uma sociedade que favorece a saúde e a beleza. O segundo personagem, aquele em que se transfigura, por efeito de uma fórmula que descobre miraculosamente, é bonitão e elegante, isto é, um sucesso social. A simples divisão de personagens remete a uma fase anterior de Lewis, quando ele fazia dupla com Dean Martin. Agora, sozinho, ele assume a sua porção Dean Martin, para demonstrar que fracasso e sucesso, belo e feio convivem na mesma pessoa. Não é bem o caso de aproximar Jerry Lewis de Ozu ou Bresson, de Hawks ou Renoir, cineastas que souberam mais do que ninguém filmar as aparências no que têm de imperturbável, como emanações de camadas e camadas de tempo, e fazer com que se depositem até que a superfície chegue ao estágio de superfície. A matéria com que trabalha Lewis é aparentada com a deles, mas possui um elemento de perturbação próprio do cinema moderno. O Professor Aloprado tem uma construção em espelho: são duas personagens/superfícies opostas que se comunicam o tempo todo – de onde deriva o humor do filme. Em Lewis, a matéria volta-se sobre si mesma e o real já duvida de sua realidade. O olhar implacável e terno que dirige a essa matéria turbulenta faz de Jerry um cineasta mais amplo, profundo e autoral do que, digamos, Woody Allen. Elia Kazan Filma o Desejo em Clamor do Sexo 25 de fevereiro de 1991 CLAMOR DO SEXO / Splendor in the Grass (1961), de Elia Kazan Jacques Rivette escreveu, numa crítica antológica sobre Clamor do Sexo (Splendor in the Grass), que este filme descreve esse trabalho do tempo, essa obscura degradação e metamorfose, que trans-forma um casal de amantes em dois estranhos, um país estável em um povo à deriva, uma moral estabelecida em moral caduca. A queda ou a transformação dos valores, de todos os valores, este é o eixo de um filme cujas vozes diversas se unem sob o comum denominador da ideia de crise. E, no entanto, tudo isso sai de uma história que se pode chamar de banal: Natalie Wood e Warren Beatty são dois adolescentes texanos. Ele é um rico herdeiro de campos petrolíferos. Ela é pobre. Os dois se apaixonam. As famílias se opõem à ligação. O pai de Beatty quer vê-lo na universidade e ele se conforma com a decisão paterna. Os amantes se afastam. A ação, porém, se passa em 1929, às vésperas da quebra da Bolsa. É o campo propício a que o mundo vire de cabeça para baixo. Junto com a Bolsa, arrebentam-se os valores. E as fortunas. Os poderosos de ontem amanhecem miseráveis, ou mortos. Aqui entra um novo elemento. Kazan é o cineasta das docas (Pânico nas Ruas, Sindicato de Ladrões), das divisas (Rio Violento, América, América). Seus filmes realizam-se em espaços limitados, onde a margem de manobra dos personagens é mínima. Como Kazan, seus personagens sofrem por ser estrangeiros. Nem são americanos, nem deixam de sê-lo. Pertencem a uma divisa, que não conseguem romper, mas da qual também não podem recuar. Se Clamor do Sexo se afasta de certo modo de outros de seus filmes, em nenhum deles a noção de limiar foi desenvolvida tão profundamente. E, diga-se, com tanta beleza. Existe nele a adolescência, como limiar da vida, a descoberta do amor e do sexo com uma violência irrefreável. Existe 1929, ponto de inflexão do sonho americano: momento em que, à falta de as coisas serem postas em questão, elas próprias parecem se rebelar e se colocar fora de controle. Existe, por fim, o Texas, a América profunda: um fim de mundo milionário onde tudo se decide (em particular, e para o que conta no filme, o destino do casal), mas nada é formulado. Se toda a obra de Kazan exprime a impossibilidade de entrar na América (e, ao mesmo tempo, de deixá-la), Clamor do Sexo é uma abordagem direta das distâncias e proximidades entre as pessoas e as coisas, isto é, do desejo. Como em Rio Violento (1960), mas em menor grau, também aqui a natureza e a cultura se organizam como espelhos. Não existe oposição entre uma e outra, e as coisas se passam como se ambas devessem se iluminar mutuamente, não para atingir um fim, mas para seguirem sendo. Não há ideia finalista em Clamor do Sexo. A paixão é um mistério que conduz a outro mistério (a dissolução); o tempo é um mistério feito de duração e passagem. Daí, a inexatidão do título brasileiro. Ela não está tanto no fato de uma frase poética tirar uma afirmação sensacionalista, ainda que verdadeira. O sexo em Clamor do Sexo é a superfície visível do que o homem tem de menos compreensível, o desejo. Tornar visível o invisível é o milagre a que chega este filme completamente invulgar. Fuller Revolve pela Última Vez o Cinema 28 de fevereiro de 1991 LADRÕES DO AMANHECER / Les Voleurs de la Nuit (1984), de Samuel Fuller Samuel Fuller é um mestre em embaralhar as cartas. Em Ladrões do Amanhecer, seu último filme, ele se detém sobre dois jovens desempregados – François e Isabelle – que se conhecem numa agência de empregos, apaixonam-se, logo decidem se transformar em assaltantes. Mas o filme não é propriamente um policial. Em Ladrões, o crime é uma opção do casal e, a princípio, uma diversão inconsequente. François (Bobby di Cicco) e Isabelle (Véronique Jannot) remetem direto ao Acossado (1959) de Jean-Luc Godard. Mas Fuller não se detém sobre o aspecto existencial da questão. Existe um item central na motivação dos criminosos. É, no mais, o que os une: vingar-se das humilhações sofridas na agência estatal de empregos. Seus carrascos serão agora vítimas. Um acidente muda o rumo das coisas, quando assaltam a casa do funcionário a quem chamam Tartufo (Claude Chabrol). Por azar, na hora do assalto o Tartufo está pendurado em uma janela de seu apartamento, tentando ver a vizinha se trocar. Assusta-se ao ver os assaltantes, cai da janela e morre. Desencadeia assim a engrenagem criminal. Só esse princípio de filme já basta para situar pelo menos quatro registros: o social, o psicológico, o existencial, o afetivo. Fuller está e não está em todos eles. É o que particulariza o filme e o identifica à obra de seu autor. Vem daí sua tortuosidade, à qual se acrescenta um último e decisivo elemento: Ladrões é, também, um filme sobre a música. François é um violoncelista e seu universo é o som. Já na abertura do filme, ele tenta assistir, de penetra, a um concerto. Pouco depois se apaixonará por Isabelle apenas porque seu nome lhe parece sonoro. Nas sequências finais, conseguirá enfim tocar em uma orquestra. O preço que paga para chegar à harmonia entre a música e o nome de sua amada será uma das linhas de força do filme. O que faz de Ladrões do Amanhecer um filme apaixonante, à altura de seu autor, é a maneira como Fuller situa-se no interior desses múltiplos registros, misturando-os e colocando toda a ênfase na invenção (contam-se nos dedos as cenas sem um achado, os momentos em que todo o quadro não vibra com a intensa materialidade impressa às figuras, aos cenários, à luz). Em uma palavra, se é tão difícil classificá-lo, é porque Ladrões é, estritamente, um filme de cinema. Isso não soará como novidade para quem frequenta Fuller. É próprio de seus filmes estabelecerem um corpo a corpo com a matéria; se realizarem nessa dobra entre o real e o filmado, não como se quisesse harmonizá-los, mas atirar um contra o outro, espelhar suas contradições. O filme respira, quase fisicamente, nesse hiato entre a verdade e a representação. Não é espantoso, assim, que os protagonistas de Ladrões comecem eles próprios na realidade, descolem-se para a fantasia (o crime como produtor de felicidade), antes que o real volte a projetar sua sombra sobre a fantasia. Essa imediatez, esse atrito permanente entre fato e representação, matéria e linguagem; a contradição dolorosa entre o corpo (físico) e sua alma (abstração) fazem do filme fulleriano por excelência aquele no qual tanto o real como a representação revelam um ao outro suas arestas, suas fragilidades. Daí não ser difícil quem identifica a beleza de um filme com o seu assunto decepcionar-se com Ladrões: o assunto, em Fuller, está sempre em outra parte que não no tema. Seu assunto é, afinal, a própria possibilidade de existência do filme e, portanto, da vida, a busca do encontro entre essas duas linhas paralelas, simultaneamente a exasperação de suas distâncias. Com mão de mestre, Fuller imprime um ritmo espantoso ao filme (a montagem é notável), produz um humor caricatural, homenageia seu mestre Fritz Lang (as sequências de perseguição são evidentemente inspiradas em Vive-se uma Só Vez), mas nunca perde o fio da meada: tudo é físico e, paradoxalmente, intangível. A arte de Samuel Fuller é uma arte da inquietude e da tormenta. Gazeta Mostra América Fuleira de Aldrich 5 de março de 1991 GAROTAS DURAS NA QUEDA / ...All the Marbles (1981), de Robert Aldrich Se o cinema explorou o mundo do boxe de quase todos os lados possíveis, em filmes que variaram do sublime ao abominável, a luta livre continua um mundo desconhecido, quase virgem. Ao contrário do boxe, no qual a farsa é um elemento parasitário, na luta livre ela é constitutiva. O catch existe para não ser acreditado, afirmandose como espetáculo em si, coreografia na qual a violência chega ao paradoxo de ser, a um tempo, exaltada e inocentada. Existe um tanto de inconsequência que termina por absorver os significados brutais que pode desprender. Se é possível falar de submundo do boxe, composto por uma malta de aproveitadores diversos, é porque o boxe comporta um mundo (ascensão social, tragédia, morte, fortuna, etc.). O catch é um submundo em si, sem direito a saga. Daí o interesse que desperta o filme de Robert Aldrich, o último que realizou até hoje. O fracasso é intrínseco à luta livre. E o fracasso está estampado no rosto de Peter Falk, esse ator notável aqui transformado no empresário Harry Sears, que tem sob sua responsabilidade uma dupla de lutadoras tão belas quanto competentes, as California Dolls (Vicki Frederick e Laurene Landon). No rosto de Peter Falk, o fracasso não se traduz em desespero. Ele é dotado de um irreparável otimismo cínico, capaz de transformar até um revés em motivo de alento. Com isso, evita-se que o filme descambe para a seriedade e o repulsivo, mesmo quando as moças precisam, para faturar uns trocados, lutar na lama numa feira vagabunda. Falk, com lábia digna de corretor de imóveis, convence-as de que não existe nenhuma degradação na degradação, desde que o dinheiro a receber seja compensador. O filme é todo pontuado por gags, com as quais se dribla o registro depressivo, ao mesmo tempo em que se impõe o que Michel Maheo entende como o registro essencial de Aldrich, a representação obscena da violência. Se a geração de Aldrich (a do pós-guerra) problematizou a América, esse diretor foi ao cerne (a um deles, em todo caso) da questão já em Vera Cruz (1954), quando criou o faroeste de violência extrema e gratuita, ao mesmo tempo em que rompeu com a noção de ética, central no faroeste clássico (o gênero norte-americano por excelência). Em Vera Cruz chafurdava-se na lama e isso foi um acontecimento. Em Garotas Duras na Queda, diferentemente, a violência é integrada ao cotidiano, e, portanto, banalizada. Ela pode ser percebida tanto quando as moças têm de empurrar o calhambeque de seu manager, como quando o mesmo calhambeque entra, triunfal, na cidade de Chicago, cujos prédios reluzentes parecem fazer, por si, uma apologia do triunfo e da riqueza. A luta principal não é a que se desenvolve no ringue, isso é claro desde o início. Vencer (as lutas) é só uma parte do problema, talvez a menos importante. Capitalizar é o centro da questão: transformar a energia em reconhecimento e o reconhecimento em triunfo. Aldrich mostrou nesse pequeno belo filme uma América fuleira. É com certeza o tipo de imagem que os EUA não apreciam ver a seu próprio respeito. Contornou as dificuldades implícitas no projeto sem deixar que o baixo astral se instalasse. É tudo o que o SBT poderia ter feito em sua novela Brasileiras e Brasileiros e não fez. Hatari! Torna-se Cada Vez mais Moderno 21 de março de 1991 HATARI! (1962), de Howard Hawks Com todo o respeito, a feminilidade de Rita Hay-worth tirando suas luvas em Gilda é apenas uma grosseria, se comparada à feminilidade de um grupo de girafas correndo em campo aberto em Hatari!. Quando foge do caçador, a girafa mal encosta os pés no chão. Dos pés ao pescoço, seu corpo contém as ideias de força e leveza, como se o animal tivesse duas naturezas, uma aérea e outra terrestre. No filme, a girafa encontra correspondência em Dallas (Elsa Martinelli). Olhando com atenção, pode-se perceber que a montagem sugere essa correspondência. No momento em que a girafa é aprisionada, alternam-se planos dela e de Dallas. A sequência significa – pelo simples encadeamento de recursos cênicos – que Dallas também foi apanhada por Sean (John Wayne), o líder do grupo de caçadores. Mais difícil é a caçada ao rinoceronte. É também a sequência mais bela entre todas as magníficas cenas de caça desse filme. Na verdade, existem duas tentativas. A primeira, logo no início, é frustrada. Mas contém uma frase capital, dita por um dos caçadores, a respeito do animal que perseguem em seus carros: Deve ser uma fêmea. Não sabe para onde vai. É uma dessas frases que criaram a mítica da misoginia hawksiana. O desenvolvimento do filme, contudo, diz o contrário. A mulher sabe aonde vai com mais precisão do que o homem. Ao menos do que Sean, o homem-rinoceronte, cuja afetividade está envolta numa carcaça tão resistente quanto a do rinoceronte. Hatari! se propõe, ao primeiro olhar, como filme de caçada. Vendo-o com mais atenção, as coisas não são tão simples assim. Entre a razão masculina e a instintividade feminina, o ar e a terra (os exteriores são enquadrados com a linha do horizonte aproximadamente na metade do quadro), os homens e os animais desenvolve-se a trama. A palavra trama não deve ser entendida aqui no sentido de enredo. Hatari! não tem enredo. É a química do encontro de uma série de sequências, ao longo das quais define-se o equilíbrio entre os elementos que compõem o universo. Essa arte do equilíbrio, que Hawks desenvolveu desde os anos 1920, antecipa a modernidade cinematográfica: a história sempre foi um fator subsidiário em seus filmes. Em Hatari! esse procedimento chega a uma radicalidade sem precedentes. À luz do futuro (Antonioni, Nouvelle Vague, etc.), esse passado mostra com mais desenvoltura o tamanho de sua modernidade. Não é por nada que, quanto mais passa o tempo, mais Hatari! se torna atual. Fibra de Heróis É o Faroeste em Estado Puro 26 de março de 1991 FIBRA DE HERÓIS / Buchanan Rides Alone (1958), de Budd Boetticher De todos os realizadores de westerns, dois podem ser lembrados de imediato como puros: Budd Boetticher e Anthony Mann. Vendo qualquer um de seus filmes se tem a impressão de que nunca tiraram os pés do Oeste, de que não existiriam para o cinema não fosse pelo faroeste. O fato de essa impressão ser falsa só aumenta o interesse por seus filmes. Boetticher, por exemplo, se deu muito bem no filme de gângsteres. Mas a série com Randolph Scott é que marcou sua passagem pelo cinema. Em Fibra de Heróis, que a Record exibe hoje, a primeira virtude a apontar é a existência simultânea de uma direção pessoal, que tira boa parte de seus méritos da impessoalidade do gênero. Não existe qualquer tentativa de estar acima do faroeste, de fazer psicologia a partir dos personagens, de emitir mensagens elevadas. Esse estado de pureza, é difícil encontrá-lo mesmo em realizadores de primeiríssimo time, de John Ford a Samuel Fuller. Eles são excepcionais, mas ainda é possível imaginar as intrigas que desenvolvem em outro cenário ou outra época, sem grande prejuízo para os filmes. Em Boetticher, ao contrário, o espectador é como que engolido pelo Oeste. Não há dúvida de que boa parte dessa virtude depende de Randolph Scott. Ele ostenta no rosto imutável um semissorriso quase permanente. Mesmo à beira de um enforcamento. Scott é uma espécie de ator em grau zero. Não gera sentidos, mas os absorve. De tal modo que a inexpressividade absoluta torna-se uma virtude também absoluta. Em seguida, há de se dar crédito à excelente equipe: do produtor (Harry Joe Brown) aos roteiristas (Charles Lang, no caso), passando pelo diretor de fotografia (o excepcional Lucien Ballard), tudo se harmonizava às maravilhas. À ausência de Scott corresponde a luz seca de Ballard. A esta, uma direção sem efeitos, sem poeira nos olhos. A esta, um roteiro sem facilidades ou concessões. O encaixe desses fatores determina o encanto, discreto porém seguro, do filme. Segundo o enredo, Buchanan é um texano que volta do México cheio de dinheiro (foi mercenário) e cai num vilarejo de fronteira, onde todos os poderosos (xerife, juiz, etc.) são membros de uma mesma família, os Agry. O pequeno vilão, que é morto pelo irmão de uma moça mexicana que ele matara, também é da família. O jovem assassino, Juan, é condenado à forca. Buchanan entra na roda como suposto cúmplice. Mas o pai de Juan oferece ao juiz uma montanha de dólares para livrar seu filho. O xerife quer a montanha de dólares para ele. De maneira que os condenados acabam se vendo num jogo de entra e sai da cadeia, em que todos tentam enganar a todos. Boetticher explora um dos temas clássicos do faroeste, a oposição entre a moral e a lei, sem dúvida. Mas é a maneira límpida como o faz que torna seu trabalho memorável. Ao final, não existe um duelo, mas uma troca de reféns sobre uma ponte, tendo como pivô uma bolsa carregada de dinheiro. É uma cena exemplar, pelo timing, pela construção e pela originalidade. É o epílogo que dá a Fibra de Heróis o gosto de teorema, demonstrado com uma limpidez exemplar. E tanto maior quando se lembra a modéstia da produção. É um filme que tira ouro de pedra. Bogdanovich Encontra Beleza em Streisand 4 de abril de 1991 ESSA PEQUENA É UMA PARADA / What’s Up, Doc? (1972), de Peter Bogdanovich Quis o destino que o melhor filme de Barbra Streisand fosse lançado em vídeo ao mesmo tempo que um Cyrano de Bergerac, o que torna inevitável a comparação não entre os filmes, mas entre os narizes em cena. Esse viés tem o inconveniente de ser várias vezes injusto. Primeiro, porque o diretor Peter Bogdanovich encarou nesse filme problema considerável: fazer o remake de uma comédia clássica (Levada da Breca, de 1938) sem passar vergonha. Conseguiu, embora na comparação perca, o que é normal. Segundo, porque trabalhou com Barbra Streisand a partir de uma concepção diferente da que caracteriza a sua carreira. No filme, não se finge que ela é um poço de graça, beleza e talento. Ao contrário, se existe encanto nela – e existe –, ele vem da imperfeição. A história é a de uma moça um tanto amalucada que o acaso coloca em contato com um tímido musicólogo (Ryan O’Neal), devidamente comprometido com uma noiva chata de galochas. Uma troca de malas num aeroporto anarquiza a vida organizadíssima de Ryan e o envolve seja com Barbra, seja com um grupo de gângsteres furiosos. Não resta dúvida de que Barbra lhe parece uma ameaça mais palpável do que qualquer gângster. Com razão, pois é ela que mudará sua maneira de ver as coisas. Streisand tinha nesse filme um problema não menor do que o de Bogdanovich: retomar um papel que, originalmente, esteve nas mãos impecáveis de Katharine Hepburn. Bogdanovich deu uma bela mão. Atriz habitualmente pesada, desta vez Barbra está leve como Pernalonga. Seu encanto confunde-se com a agilidade (o que não era um dado de Hepburn em Levada da Breca). E a agilidade favorece a sucessão de gags visuais concebidas para o filme. Essa Pequena é um filme que se pergunta sobre a beleza. Pode-se dizer que sua resposta não teria muito alcance, se se tratasse de um livro, por exemplo. Falar de uma beleza interior é evocar um clichê tão rasteiro, ou mais, que o glamour hollywoodiano. Mas o cinema funciona diferentemente: não se trata de falar, mas de mostrar. Mostrar significa atualizar, tornar visível e partilhável uma ideia: isso é o que o filme consegue fazer. Bogdanovich não emboneca Barbra Streisand, não faz os personagens partirem do princípio de que ela é encantadora. Mas leva Ryan O’Neal a esquecer os possíveis defeitos de Barbra. Que o espectador também os esqueça, é o sinal mais palpável de que este é um bom filme. A Marca do Gênio Está em A Marca da Maldade 18 de abril de 1991 A MARCA DA MALDADE / Touch of Evil (1958), de Orson Welles Mesmo quem prefere as virtudes da discrição fica de queixo caído ao ver o plano de abertura de A Marca da Maldade. São aproximadamente 3 minutos e 20 segundos em que a câmera executa mais ou menos todos os movimentos de que é capaz: panoramiza, vai à frente, sobe, desce, recua, está ora em plongée (posição elevada em relação ao personagem), ora em contraplongée (o inverso). Não é tudo. Nesse que é um dos planos mais excessivos e assombrosos do cinema, Orson Welles atravessa quarteirões e quarteirões de uma cidade na fronteira entre México e EUA. Só esse plano já valeria ao filme figurar em qualquer antologia, pelas dificuldades que coloca (para a iluminação de Russell Metty, sobretudo, pois se trata de um noturno) ou pela orquestração de movimentos que envolvem personagens, figurantes, carros, bombas, vítimas, assassinos, blocos de prédios e ruas. Esse plano-sequência se revelará a seguir apenas um detalhe de um dos filmes mais alucinantes de todos os tempos. Convém, contudo, olhá-lo com atenção: é por meio dele que Welles situa o espectador no centro de um labirinto. Nele, cada segundo resolve questões expositivas que um cineasta menos talentoso levaria minutos para resolver. Metade da intriga está lançada, metade dos personagens está apresentada, o clima de mistério está todo desenhado. Ali estão a noite e as sombras (portanto, o imprevisível), a fronteira, Vargas (Charlton Heston) – o policial mexicano – e sua mulher (Janet Leigh). No mesmo plano está a bomba sendo colocada num automóvel e a sua explosão (em off), no exato momento em que Heston e Leigh começam a se beijar. O que vem a seguir é a história propriamente dita. Mas, o que é essa história? De um lado existe Quinlan, o velho detetive norte-americano composto por um Welles gordo, barbudo, largado. Uma composição histriônica, que levaria ao ridículo qualquer outro ator (até Marlon Brando). Quinlan é um mito entre seus pares, o homem que resolveu todos os casos que investigou. Agora, cuida desse assassinato. Mas a questão está longe de ser a solução de um crime. Em Welles, o problema central é outro: onde está e o que é a verdade? Em A Marca da Maldade, isso se delineia claramente pelos diferentes métodos de Quinlan e Vargas. Este é um legalista para quem a polícia deve preservar os direitos de vítimas e criminosos. Já Quinlan é adepto de práticas menos ortodoxas, tais como pressionar os suspeitos de todas as maneiras legítimas e também ilegítimas. As duas formas de buscar a verdade determinam os personagens e seus destinos. Não estragará o prazer de ninguém adiantar a conclusão de Welles (que não coincide com o fim da história): a verdade está em toda parte ou em nenhuma. Participa de cada ser e de sua ação no mundo, ao mesmo tempo que lhe escapa miseravelmente. Assim como nenhum dos investigadores detém a verdade, também o narrador não a detém e, por conseguinte, o espectador. O espaço é um labirinto. Mal se sabe quando a ação está no México e quando passa para o outro lado da fronteira. Esse labirinto se reproduz nos personagens – em particular em Quinlan, personagem caleidoscópico, inapreensível – e na estética de Welles. Cada imagem parece ter sido criada para desorientar o espectador, incapaz de adivinhar se a câmera vira para a esquerda ou para a direita, se se movimenta ou corta. Não há um segundo no filme em que o espectador não se deixe arrastar pela imaginação diabólica do diretor. Filme em que tudo funciona convulsivamente (exceto a música de Henry Mancini), explosivamente, sobretudo a montagem, A Marca da Maldade dá a justa medida de Orson Welles. Não convém abusar das hipérboles, mas não cabe outra palavra para defini-lo: é um gênio fazendo um filme genial, deixando uma marca que o cinema não esquecerá tão facilmente. Mas a isso talvez seja necessário acrescentar um pequeno, mas não insignificante detalhe. Este filme apresenta um Welles envelhecido, alcoólatra, alquebrado. Ele tinha 42 anos ao fazê-lo. Ao contrário de Cidadão Kane – que abre sua obra em 1941 –, não há sinal de glória, triunfo ou riqueza em seus personagens. A Marca da Maldade é um filme personalíssimo, que segue a trajetória de seu autor, ele também um dejeto hollywoodiano àquela altura dos acontecimentos. Antonioni Prevê Crise do Moderno em Blow-Up 25 de abril de 1991 BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO / Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni Com o lançamento de Blow-Up fica completa e disponível em vídeo a admirável trilogia sobre o cinema e suas épocas que, quase imperceptivelmente, urdiram entre 1954 e 1981 Alfred Hitchcock (Janela Indiscreta), Michelangelo Antonioni (Blow-Up) e Brian De Palma (Blow Out*). Janela Indiscreta – o primeiro na cronologia – viu o cinema sob a forma narrativa (o surgimento da trama a partir do imaginário de um fotógrafo que acompanha a vida dos vizinhos com binóculos e das especulações em torno do que vê). Blow-Up examina a hipótese de captação do real (um crime, no caso) pela fotografia. E vai um pouco além. O fotógrafo de plantão, David Hemmings, descobre o crime a partir da ampliação das fotos que tira em um parque. O processo a que se dedica é de montagem: do distante ao próximo e do geral ao particular, Hemmings decupa o espaço, dispõe dimensões e intensidades. Organiza-o. No Blow Out de Brian De Palma, por fim, trata-se de sincronizar som e imagem, e encontrar a correspondência exata entre uma imagem e um ruído (um tiro ou um grito). Se a filiação é evidente, mudam as épocas e a maneira de ver as coisas. Começando pelos extremos, em Janela, Hitchcock identificou o lugar do espectador ao do personagem: em termos de percepção, ambos participam da vida enquanto voyeurs; existem pelo olhar. Em Blow Out, ao contrário, o desespero dá o tom: investigar um crime, para John Travolta, implica envolver-se nele de maneira extrema; tornar-se vítima de sua própria busca. Já Blow-Up afunda-se nos anos 1960. Não por acaso, toma Londres como cenário. A capital da Inglaterra foi também a capital de uma mudança na percepção à qual não estava alheia a busca de novos estados de consciência. Em Blow-Up, a fotografia é uma metáfora da percepção: o instrumento capaz de registrar o real. Mas uma metáfora enganosa, e Antonioni logo abrirá o jogo, naquela que é a melhor sequência do filme: quando Hemmings blow up seu filme, a partir de uma série de imagens estáticas, embalsamadas, diria André Bazin, introduz na fotografia a dimensão do tempo. Não o tempo real, do acontecer, mas o da narrativa. Ambos não coincidem: a montagem é uma organização lógica, a partir da qual o assassinato é esmiuçado e esclarecido. Pela ampliação das fotos (e a descoberta dos detalhes), o fotógrafo cria uma cronologia, um desenvolvimento clássico da ação. Mas Antonioni é um moderno. De tal modo que a série de imagens será ainda confrontada ao real do crime propriamente dito e se revelará uma alucinação verdadeira. A imagem já não produz a verdade, mas sua sombra, uma impressão fugaz. Rever Blow-Up hoje quase impõe a necessidade de revisar impressões sobre o filme e sua época. O que foi a era da maconha (e do LSD) aparece hoje sob uma luz mais clara. Um momento em que se abriram as famosas portas da percepção, é verdade. Mas se abriram para onde? – pergunta Antonioni com todas as imagens. De uma era que cultivou ciosamente (e ociosamente, a bem dizer) a ideia da própria onipotência, Antonioni teve o mérito de captar as fragilidades em pleno voo. O conhecimento não se faz de alucinações, diz Antonioni, ao mesmo tempo em que anuncia a crise da modernidade. Ao mostrar o ponto máximo do otimismo industrial, numa cidade que é o próprio símbolo da industrialização, ele caracteriza também seu ponto de inflexão, aquele em que o otimismo se transfigura em ilusão. Num filme permeado, do início a fim, de quadros dentro do quadro (assim como Janela Indiscreta), é também o poder do cinema como máquina de sedução (pela imposição de um real elaborado) que se questiona. Blow-Up abre caminho serenamente para o desespero de Blow Out. * Lançado no Brasil como Um Tiro na Noite. Homem Errado Expõe Catolicismo de Hitchcock 15 de maio de 1991 O HOMEM ERRADO / The Wrong Man (1956), de Alfred Hitchcock Hitchcock deixou uma obra espantosamente coerente, cujo apoio central é o catolicismo. Poucas vezes, porém, a religiosidade do diretor esteve tão exposta quanto em O Homem Errado, filme que produziu por conta própria, baseado em um fato real. Balestrero (Henry Fonda) é um músico acusado por uma série de assaltos praticados por um homem parecido com ele. Preso e processado, ele sai em busca das raras testemunhas capazes de comprovar sua inocência, o que faz em companhia da mulher (Vera Miles) e do advogado (Anthony Quayle). O que Hitchcock descreve é o calvário de Balestrero, cuja fé católica se explicita nos momentos – marcantes – em que puxa o terço e afirma sua crença, mesmo em condições as mais adversas. Assim como Fritz Lang (na Alemanha) acreditava num destino que envolvia o homem, Hitchcock afirma que o destino humano escapa ao próprio homem e à sua vontade. Se o acaso deve decidir a sorte de Balestrero, a vontade que guia o acaso é superior, embora essa vontade deva se manifestar – em maior ou menor escala – nos próprios homens: a determinação de Balestrero em provar sua inocência é ligada à fé; o fraquejar de sua mulher corresponde à negação de um Deus cruel. O filme tem menos suspense e menos humor do que o habitual no cineasta inglês. Isso é fartamente compensado pelo que explicita na obra de Hitchcock, já definida como um cinema da alma, instância que participa ao mesmo tempo da matéria e do espírito; alma que o suspense dilacera, colocando diante de dois futuros simetricamente opostos (a salvação e a perda). O Homem Errado é também o filme que mais intensamente clarifica a função do olhar em Hitchcock. A escolha do ator é determinante. Henry Fonda tinha uma imagem ambígua: forte e fraca ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, possuía um olhar interiorizado. A capacidade de ver, em Balestrero, está associada diretamente à de fixar-se no vazio. E fazer com que o vazio seja uma forma de plenitude, de ocupação do ser por uma instância superior. Este é um dos mais belos filmes sobre o olhar já feitos em todos os tempos. A Vida É um Romance Exalta Imperfeição 31 de agosto de 1991 A VIDA É UM ROMANCE / La Vie Est un Roman (1983), de Alain Resnais A Vida É um Romance é um desses filmes que traz no título uma condensação de suas ideias. Viver é entregar-se à imperfeição, à intervenção do acaso, à desorganização daquilo que o homem procura controlar. Para expor essa ideia, Alain Resnais serve-se basicamente de dois quadros. Num, o nobre Forbek (Ruggero Raimondi) reúne seus amigos, em 1914, para comunicar-lhes a criação do Templo da Felicidade, onde todos esqueceriam suas experiências passadas e abririam a mente a um novo entendimento das coisas. No segundo, contemporâneo, um grupo de professores encontra-se (no mesmo local) para um colóquio sobre Educação da Imaginação (ou vice-versa). Trata-se de discutir como encaminhar a formação da sensibilidade da criança, no sentido de despertá-la para um leque amplo de experiências. O resumo das intenções de cada encontro é necessariamente redutor. Existe, em ambos, um absoluto colocado como objetivo: o controle e encaminhamento da experiência humana por caminhos a um tempo seguros e inovadores. O contrassenso é evidente. E Alain Resnais não faz qualquer esforço para disfarçar esse problema. Seu filme funda-se sobre a constatação do limitado da experiência humana: nenhum ser é capaz de orientar o outro sem eleger a própria experiência como um absoluto. Isole-se o conturbado Forbek. Sua obsessão consiste em impingir aos amigos uma ideia pessoal (personalíssima) de felicidade, que se relaciona a sua experiência, não à dos que se submetem à experiência. Resnais aproveita esse tipo de tirania para aproximá-lo do absolutismo da experiência pedagógica. Em ambos os casos, preconiza uma vitória da liberdade romanesca. Isto é, o imperfeito deve triunfar sobre o perfeito, o falível sobre o infalível. A experiência, em suma, não é algo que se adquire por ideias feitas, sobretudo quando diz respeito aos afetos (e eles estão implicados em tudo). A Vida É um Romance é um filme no qual a atitude confunde-se com o que tem a dizer. Em vez da perfeição hierática de um O Ano Passado em Marienbad (1961), por exemplo, o Resnais mais recente parece encarar a arte mais como prazer do que como tour de force. Existe uma voluntária recusa da noção de obraprima, como se esta, em arte, equivalesse a bárbara felicidade preconizada por Forbek ou aos volteios pedagógicos. O Resnais recente convida a rever com olhos críticos seus primeiros filmes, nos quais a perfeição da arte substituía a imperfeição humana. É um cineasta mais livre, menos preocupado em agradar e, sobretudo, em submeter o espectador a uma engrenagem infalível. É também um cineasta maduro, que fala ao tempo presente com desenvoltura. Cinemateca Exibe 15 Filmes de Jean Renoir 19 de setembro de 1991 Os 15 filmes de Jean Renoir que a Sala Cinemateca exibe de hoje até o dia 1º de outubro formam um panorama significativo da arte do mais clássico dos cineastas franceses. Estão representados nessa retrospectiva sua fase muda (começando por Naná), o primeiro período do sonoro (A Cadela, Boudu Salvo das Águas), a fase engajada do pré-guerra (A Marselhesa), a plenitude (A Grande Ilusão, A Regra do Jogo), a maturidade dos anos 1950 e início dos 1960. Só faltou uma amostragem dos filmes que fez nos EUA entre 1941 e 1950. Vem, em compensação, o curta La P’tite Lilie, de Alberto Cavalcanti, com Renoir como ator. Jean Renoir foi um cineasta simples e cada um de seus filmes é, já se disse, uma espécie de ovo de Colombo: ao sair da projeção, tudo parece claro demais, evidente demais para que ninguém tenha pensado naquilo antes. E, no entanto, ninguém pensou. O que Renoir tem de simples, tem também de raro. Se certos cineastas interessam porque compõem, ao longo de suas obras, cuidadosas variações sobre as mesmas ideias (Hitchcock, Ozu), outros, como Renoir, interessam pela amplitude e liberdade do seu olhar. Ele variou do naturalismo de Naná ou A Besta Humana ao gracioso anarquismo de Boudu Salvo das Águas, foi precursor do Neorrealismo (em Toni) e generosamente engajado (em A Marselhesa). Essa obra múltipla, cheia de sensualidade e leveza em todos os momentos, tem a unificá-la um olhar seguro sobre o humano. Filme após filme, Renoir parece empenhado em reescrever os lugarescomuns mais comuns da sabedoria humana. Mas, em suas mãos, o tédio do já sabido, do já consentido, cede lugar à novidade: ele pode falar mil vezes sobre a simplicidade da vida. Cada vez, o espectador a sentirá como se estivesse pisando na Lua pela primeira vez. Nos filmes que a Cinemateca mostra a partir de hoje – cinco deles vindos da Cinemateca Uruguaya, como a versão restaurada de French Cancan – Re-noir identifica a obra de arte à arte de viver, e faz da felicidade humana um objeto plausível. Obra do Diretor Arma-se como Jogo de Máscaras É difícil escolher, em Jean Renoir, o que interessa mais. Diretor de atores muito forte, em suas mãos era difícil um bom intérprete se dar mal: de Michel Simon em A Cadela a Ingrid Bergman em As Estranhas Coisas de Paris, passando pelo Erich von Stroheim de A Grande Ilusão. Renoir tinha também o sentido da composição e do equilíbrio: a leveza de seus enquadramentos em geral atravessava todo o filme, criando um tom em que secura e poesia andavam lado a lado. Nem por isso deixava de variar seus registros: to-cava o trágico de A Besta Humana com a mesma sem-cerimônia que debochava da moral burguesa em Boudu Salvo das Águas. Podia tanto ir a uma aldeia e filmar com amadores, num prefácio ao Neorrealismo (Toni), como se dar bem em Hollywood. Essa versatilidade tem tudo a ver com sua maneira de ver o mundo. Renoir não tinha um tema específico, era um observador do humano. Nesse sentido, sua obra parece um jogo de máscaras, em que a multiplicidade de tipos surge menos do esforço para fugir à monotonia do que resultante de uma atitude contemplativa. Essa aceitação do humano não implica uma aceitação indiscriminada do mundo. Vendo Boudu, constata-se a que ponto podia opor a liberdade de um clochard à prisão das convenções. Vendo As Estranhas Coisas de Paris, percebe-se como desprezava os jogos de interesses. Acima deles, entretanto, vislumbrava a hipótese de superação das misérias humanas. Ou, como escreveu Eric Rohmer, para Renoir, vivemos ao mesmo tempo no melhor e no pior dos mundos. O essencial de sua contribuição, porém, vai para o que o crítico André Bazin definia como realismo: Este realismo não é o da cópia, mas uma reinvenção da exatidão que sabe, fora de toda convenção, dar o detalhe a um tempo documental e significativo, escreveu Bazin. Essa operação consiste em distinguir, no real, o que interessa ou não. Contemplar é flanar, fugir ao olhar convencional e, nessa medida, recriar a vida por meio de imagens. A tensão entre imitação e invenção talvez seja sua pedra de toque. Em seus filmes, seres, cenário, objetos, paisagens são entregues ao estado bruto, cheio de sobressaltos, de reações imprevisíveis, como escreveu Rohmer. Essa vitalidade que distingue o clássico do acadêmico garante também que o interesse por seus filmes permaneça intacto, quarenta ou cinquenta anos depois de feitos. Gertrud Mostra Martírio de uma Mulher 4 de outubro de 1991 GERTRUD (1964), de Carl Theodor Dreyer Gertrud é uma Joana D’Arc em tom menor. Não existe comparação entre o destino da heroína do último filme de Dreyer e o da santa francesa, cujo julgamento ele filmara em 1928. Existe, no entanto, uma continuidade de pensamento. Em Dreyer, o martírio caminha ao lado da integridade e esta passa pelo rigor do pensamento. Gertrud é, assim, um filme em que a luz invade as trevas, da mesma forma como Gertrud invade a vida com a divisa amor omnia e recusa-se a dar um passo atrás na sua busca. Um filme sobre o amor, certamente. Mas em termos. Se suas ideias sobre as coisas vêm de seu primeiro amante, o poeta Lidman, Gertrud o abandonará ao perceber que em Lidman as belas palavras caem no vazio, na medida em que o som não confere com o sentido. Também abandonará o marido, Kanning, que em uma de suas primeiras réplicas pergunta-lhe o que acha de ser mulher de um ministro. Ele se tornará ministro; Gertrud, porém, não será a mulher do ministro. Da mesma forma, Gertrud sofrerá com o jovem músico Jansson, mas não terá complacência com a leviandade do rapaz. Gertrud, o filme, mas também a personagem, dis-cute a oposição entre livre-arbítrio e fatalidade, a hipótese de o homem fazer ou não seu próprio destino. Gertrud move-se por suas paixões e por seu espírito. O que não impede o filme de ser invadido por algo que parece superar os personagens. Como no cinema de Douglas Sirk, a força do homem opõe-se à cólera dos céus. Gertrud seria, no mais, um magnífico melodrama caso colocasse por um momento os sentimentos acima da razão. Aqui, porém, os dois devem andar lado a lado. Existe em Dreyer uma deliberada negação do trágico, talvez por acreditar que a tragédia precede o filme, os movimentos e pensamentos das personagens: é a queda do paraíso que parece habitar o filme, condenando os seres a errar entre ideias e gestos cuja honestidade e precisão remetem, afinal, à honestidade e à precisão. Desenham a integridade de Gertrud com a mesma desenvoltura com que dão a ver o contorno de sua inutilidade. Inutilidade também em termos. Com Gertrud, Dreyer compôs uma mulher inesquecível. Talvez essa seja uma prerrogativa dos humanos e de sua impureza: ocupam corpos que não pediram para ocupar; são o que não desejaram ser. Resta-lhes a hipótese de lançar, na treva, uma centelha de luz. É o que faz a Joana D’Arc (de A Paixão de Joana D’Arc), contra a intolerância. É o que faz Gertrud em relação ao amor, também, mas sobretudo à ideia de que é possível ao homem ser íntegro, honesto e fiel a si mesmo. Que Gertrud não é um filme para todos, é evidente. Haverá quem se aborreça com os longos diálogos, com a secura da composição dos personagens. Mas haverá também quem se encante com a doçura dos movimentos e a precisão dos gestos e palavras. Wenders Filma Paixão e Morte de Nick Ray 21 de outubro de 1991 O FILME DE NICK / Lightning Over Water (1980), de Nicholas Ray e Wim Wenders Existem vários filmes em O Filme de Nick. Existe o real filmado dos últimos dias de Nicholas Ray (1911 – 1979) e a ficção que encena essa morte. Existe o filme de Nick e o filme de Wim. Existe a representação e a verdade, o espaço do mestre e o do discípulo, o tempo da vida (a encontrar) e o da morte. Essas instâncias que se comunicam de maneira estranha resultam em um filme estranhamente bem-sucedido. Primeiro, Nicholas Ray é objeto de Wenders: aquele que expõe seu corpo canceroso para que Wenders o filme. Aos poucos, Ray tornase sujeito do filme e Wenders, o objeto. Exibido sábado no Auditório Arthur Rubinstein, O Filme de Nick foi recebido com relativa frieza pela plateia, o que é explicável. O referencial do filme é bem mais do que um homem que morre. Esse homem é um dos maiores cineastas da segunda metade do século, o autor de Johnny Guitar, Juventude Transviada, A Bela do Bas-Fond e tantas outras obras-primas. Mas é Paixão de Bravo, filme de 1952, que ocupa aqui as preocupações de Nick/Wim. Ali, Robert Mitchum é o homem que erra, de cidade em cidade, em competições de rodeio. Depois que sofre um acidente, torna-se treinador de um jovem cavaleiro (Arthur Kennedy). As relações edípicas entre ambos ocupam boa parte do filme. Se Wim Wenders fez de Ray o seu mestre – e fez –, Paixão de Bravo é talvez o filme que mais os aproxima: o ato de errar, a impossibilidade de fixar-se, a solidão são temas que Wenders retomou em diversas ocasiões. Ray também foi alguém que se preocupou com as relações entre o real e o filmado – preocupação que atravessará o filme. Wenders fará autocrítica, em determinado momento, do esteticismo das primeiras tomadas: quando isso acontece é porque não se sabe bem o que filmar. Ray sabe: é um homem que teve seus dias de glória, foi abandonado, pretende usar seus últimos dias para se reencontrar. Essa temática proustiana converte-se, no cinema, em gestualidade: a voz, os movimentos, a evolução cruel da doença. A cada sinal da morte contrapõe-se um sinal de vida, até que se chegue ao último, doloroso, espantoso plano: um longo close de Nick, ao fim do qual ele dará pela última vez sua ordem de cut (corta). Como dois vampiros, Nick busca forças na juventude de Wim; Wim busca forças na beleza de Nick. O Filme de Nick rastreia o cinema e suas buscas (a vida, a verdade, a beleza). É o testamento de Nicholas Ray a todos os que amam o cinema e, por conseguinte, o amaram. Começa na Cinemateca Ciclo de Max Ophüls 15 de novembro de 1991 Max Ophüls (1902 – 1957) gostava das mulheres de má fama. Cortesãs como Lola Montès, prostitutas como as de O Prazer ou até jovens ingênuas como a de Carta de uma Desconhecida povoam seus filmes com a mesma sem-cerimônia com que o mundo ao redor atribui-lhes a fama de frívolas, traiçoeiras ou aventureiras. Ophüls vira essas ideias pelo avesso, como se poderá verificar na exemplar retrospectiva que começa hoje na Sala Cinemateca, em que estão programados 13 de seus 22 filmes. Onde se vê aventura, ele mostra insatisfação, onde se lê traição, ele rebate com a paixão. De todos os cineastas que fizeram da sexualidade seu objeto, Max Ophüls é aquele que mais reconheceu a busca como um atributo feminino. Atributo a bem dizer infernal. Se a sociedade é organizada para e pelos homens, a mulher existe em situação contraditória. As regras (masculinas) que dispõem sobre a busca do prazer são muito mais restritivas para ela do que para o homem. Ao mesmo tempo, e pelo mesmo motivo, o prazer é – em princípio – dado ao homem, mas não à mulher, com quem ficam todos os riscos da procura. Essa é a primeira formulação. Basta para ver que Ophüls não veio ao mundo do cinema a passeio: seus filmes pegam pesado, vão direto à questão do desejo sexual (e sua satisfação). E nesse terreno a única vantagem com que o homem pode contar é a hipocrisia. Não muita coisa, na verdade, como bem mostram o primeiro e o terceiro episódios de O Prazer. Num segundo movimento, a obra de Ophüls parece dizer, como Baudelaire, que a carne (mais do que fraca) é triste. Como essa tristeza não tem forma apriorística, seus filmes tratam de seres perdidos num labirinto em que a ordem social existe para ser desafiada pela paixão, e esta para sofrer as consequências de uma organização inevitável. É normal, portanto, que Ophüls tenha sido chamado de cineasta do triste amanhã após o baile. É improvável que alguém, mais do que ele, tenha sabido criar a ideia de uma sensualidade que se confunde com a dor, do prazer que já contém em si a catástrofe, do positivo que absorve o negativo, da dança que leva ao infarto. Mesmo em um filme em que a temática central passa longe da sexualidade, como A Comédia do Dinheiro, Ophüls vê no humano essa ambiguidade inicial. Um pobre e honesto funcionário de banco que perde por acidente uma quantia considerável de dinheiro passa a ser visto como escroque e desonrado com todas as honras. Mas, graças a sua má fama, é chamado a dirigir um importante empreendimento imobiliário. No cinema de Ophüls, a má-fé está longe de ser personagem secundário. Ninguém se enganará ao fazer a aproximação entre Ophüls e Mizoguchi. Ambos foram cineastas da mulher e mestres absolutos no uso da câmera. As diferenças também são significativas. Em Mizoguchi, a câmera ágil tinha como virtude principal a objetividade: não cortar, chegar o mais rapidamente (e sem perder o realismo) ao ponto. Ophüls explicava seu gosto pela câmera exuberante de maneira muito prática. Percebera que os atores, quando em movimento, mostram menos o rosto para a câmera. E que, por isso, esforçavam-se para fazer melhor o seu serviço se a câmera estivesse em movimento. Pode ser, mas com certeza não é tudo. Ophüls criou alguns dos planos mais exuberantes do cinema, que lhe valeram por algum tempo a fama de cineasta decorativo. Nada mais injusto. Se fazia sua câmera atravessar salões, subir escadas, era muito mais porque tratava o espaço como a pele de suas heroínas, cuja dor compensava com uma ternura só igual à compreensão que procurava ter por seus destinos. Alemão de nascimento, francês por opção, Ophüls acabou fazendo carreira internacional. Fugiu da Alemanha quando os nazistas chegaram ao poder; sumiu da França (para Hollywood) quando Hitler chegou a Paris. A retrospectiva tem obras-primas de todas as suas fases, de Uma História de Amor a Lola Montès, passando por Carta de uma Desconhecida, O Prazer, O Carrossel do Amor, filmes de sobra para demonstrar que Ophüls, com sua câmera ofuscante, não é só o discípulo que não faria vergonha a Murnau, não é só o cineasta de cabeceira que Godard, Truffaut ou Rivette igualavam a Jean Renoir. É um dos grandes autores de cinema de todos os tempos. Desejo é um Delito na Visão de Bellocchio 10 de janeiro de 1992 O PROCESSO DO DESEJO / La Condanna (1991), de Marco Bellocchio O título brasileiro – O Processo do Desejo – exprime com ambígua felicidade o que o novo filme de Marco Bellocchio elabora: a maneira como o desejo se processa, mas ao mesmo tempo a maneira como é processado (socialmente). Bellocchio não ficou famoso pelas meias-palavras ou pelas meias-imagens. Seu filme de estreia, De Punhos Cerrados (1965), entrava de sola na questão do incesto e, por extensão, da família. Em 1986, Diabo no Corpo provocou escândalo pelas cenas de sexo explícito. Estes são aspectos espetaculares – mas também superficiais – de um projeto a que não faltam coerência nem consistência. À suposta pornografia de Diabo no Corpo, Bellocchio responde com uma enxurrada de sexo verbal no filme que estreia hoje em São Paulo. Não é menos constrangedor, se se quiser ver as coisas assim. O ponto de partida é, já, provocativo: uma moça, Sandra (Claire Nebout) se perde no interior de um museu que está fechando. Lá, ela encontra o arquiteto Lorenzo Colajanni (Vittorio Mezzogiorno), que a força a fazer amor. Forçada, ela aceita. Chega ao orgasmo. Em seguida, descobre que o arquiteto possuía a chave do museu e o denuncia por violência sexual. O caso vai a tribunal. Até aí as coisas já são complicadas o bastante. As sutilezas do desejo colocam-se no paradoxo entre violência e orgasmo, entre não consentimento e prazer. É então que Bellocchio (que outra vez trabalhou em colaboração com o psicanalista Massimo Fagioli) introduz com maestria outro elemento de provocação. Giovanni, o promotor que faz sua acusação no tribunal, é incapaz de dar a sua companheira, Monica (Grazyna Szapolowska), um orgasmo. Em crise, procura aquele a quem tenta colocar na prisão para descobrir a maneira certa de agir. A situação é absurda para padrões realistas. É eficaz para o platonismo de Bellocchio. Assim, enquanto o promotor acusa o arquiteto de anormalidade, Monica acusa o promotor de normalidade. O arquiteto não se defende. Para ele, o território do desejo coincide com o da anormalidade e se opõe, por conseguinte, ao Direito. O desejo é o desafio por excelência às normas aceitas de convivência humana. Vista por esse viés, a sexualidade humana é, em si, criminosa (o arquiteto sequer estranhará o fato de que seja punível). Vista pelo olhar de Monica, o que falta ao promotor é, justamente, ânsia de violação, de posse, de desejo. Essa dupla perspectiva instaura a crise e também fundamenta o filme. A descoberta do desejo do outro é, segundo Bellocchio, a raiz de todo o tormento humano. Ela contém o mais primitivo (a sexualidade) e o mais sublimado (a arte). Ela visa a sexualidade, a um tempo, como negação e perfeição do ato artístico. Negação, porque relega a arte à categoria das coisas mortas, das representações. Perfeição, porque a presentifica, lhe dá um sentido vivo. Curiosamente, não é a parte negativa dessa situação tormentosa que O Processo do Desejo coloca em relevo. Bellocchio poderia dizer, com Georges Bataille, que a passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser construído na ordem descontínua. Viagem para fora (na direção do outro), o desejo pressupõe viagem interior: conhecimento de si e dilaceração, solidão e ruptura. Transgressão, na medida em que contato amoroso implica em si pressão de limites. Passagem da perfeição da morte à imperfeição da vida, o desejo é o território da incerteza e do desconhecido, do sórdido e do sublime. Bellocchio deu forma ao que a existência humana tem de mais tortuoso. Não é pouco. O Que Sair por Último, por Favor Apague a Luz 27 de janeiro de 1992 Por que tantos filmes europeus são chatos? – pergunta Marcelo Coelho já no título de seu artigo da última quarta-feira na Ilustrada. A ser levada a sério, a questão serviria apenas para enriquecer a galeria das petições de princípio. Equivale a indagar por que os pretos são mais feios do que os brancos; por que os judeus são mais pãesduros do que os não-judeus; por que os americanos são burros; por que os silvícolas são indolentes, etc. Qualquer dessas formulações encerra em si mesma a resposta a uma hipótese não verificável, exceto no horizonte do sujeito que a formula. E improvável que Marcelo Coelho caísse numa armadilha dessas. É quase certo que, com uma provocação, esteja lançando a dúvida: será que todo falar sobre cinema não se faz às cegas? A proposta é pertinente. Envolve a história inteira de uma arte e como, ao longo do tempo, formaramse juízos e ideias, fizeram-se e desfizeram-se reputações. Se o espaço do jornal não é ideal para discutila, nem por isso é menos pertinente suscitá-la. O que nos leva a crer – nós, os que frequentamos mostras, etc. – que Ordet de Dreyer seja um filme superior a, digamos, A Era de Uranus, de Claude Berri? Uma boa explicação pediria uma visita à história do cinema, com direito a comentário paralelo sobre a incapacidade brasileira de agregar essa história (e que nos leva a um desconhecimento crônico das virtudes ou não do que é produzido aqui mesmo). A mim parece, apenas, que ao questionamento pertinente segue-se uma argumentação nem tan-to, pontuado por intervenções que Marcelo por certo não leva a sério, mas que não arriscaria em uma arte com história mais comprida. Quando se pensaria em negar As Meninas de Velásquez por que os personagens lhe parecem feios? Quando alguém diria que Proust não sabe escrever por que suas frases são demasiado longas? No fundo, o artigo é uma variante da queixa formulada há semanas sobre a dificuldade de encontrar critérios no moderno. O.K. É desejável encontrar critérios sólidos. É preciso buscá-los nos clássicos. O.K. Mas, nesse caso, Não Matarás é um exemplo infeliz, justamente porque está tão próximo da tradição – embora de outra maneira – quanto Spielberg. Tradição americana, aliás, porque é a ela que remetem as elipses brutais, as reviravoltas da ação, o determinismo, a insistência no momento do crime, o abismo entre o homem e seu meio, os lapsos infantis transformados em revelações, o flerte com o expressionismo e sua simultânea negação, etc. Procedimentos típicos de Fritz Lang, do Fritz Lang da América. Felizmente, a tradição no cinema não é ainda uma camisa-de-força capaz de distinguir categorias. Não há cineastas eruditos e populares, como em música. E não há por que negar Spielberg em nome de Kieslowski, ou vice-versa. Então, por que julgar o ritmo lento ou o investimento nos tempos fracos como mero aparato terrorista a partir do qual se pretende parecer profundo e artístico? Tomemos a intriga de Não Matarás, que é muito simples: um garoto boçal mata um taxista também boçal, é condenado à morte e desencadeia uma crise de consciência em seu jovem advogado. O problema de Não Matarás não é a profundidade, mas justamente sua ausência. Por que Jack mata? Talvez porque queira um carro para namorar. Talvez para justificar seu nome, Jack (o estripador). Talvez por tédio. Talvez, ainda, porque o chofer de táxi é, como ele, opaco. A construção dessa opacidade ocupa boa parte do filme e sem ela é improvável que os momentos fortes causassem a impressão que causam. É evidente que se Varsóvia aparecesse ali como uma cidade festiva e limpa, se os atores fossem glamurizados, algo soaria muito esquisito num filme que se empenha em mostrar um mundo sem graça (no sentido religioso, mas também no físico e no penal). Na verdade, não é esse filme o problema. Ele apenas desdobra a formulação de Marcelo, segundo a qual gosto se discute, sim. Sim e não. O gosto é, em certo sentido, indiscutível. Daí criar, no dizer de Lionello Venturi, opiniões arbitrárias e subjetivas, que nunca deixam de ter razão, mas também nunca a têm. Discuti-lo significa trocar ideias, conhecer o outro e admiti-lo. Pode significar, num segundo momento, a mera afirmação do irrefutável. Massa ou carne? Loiras ou morenas? Kieslowski ou Spielberg? Sirva-se. A partir desse instante, beira-se perigosamente o terreno da cegueira, corteja-se o acriticismo e o anti-historicismo. Admite-se que qualquer opinião é válida (ou não é), porque todas padecem igualmente de critério. A partir daí, não será difícil reduzir Griffith a um mero chato, até plebiscitariamente. Seria injusto não reconhecer em Marcelo o propósito de colocar em questão as unanimidades e lançar luz sobre um assunto que parece destinado ao arquivamento. Mas tudo é questão de medida: o excesso de luz cega. Fragmentos de uma Autobiografia Faz a Ponte entre Vida e Ideias do Criador do Neorrealismo 1 de fevereiro de 1992 FRAGMENTOS DE UMA AUTOBIOGRAFIA, de Roberto Rossellini Ao entrar nesse livro, pede-se deixar de fora toda esperança de frivolidade. Roberto Rossellini não revela detalhes picantes de relações com estrelas como Anna Magnani ou Ingrid Bergman, evita fazer fofocas sobre o meio cinematográfico, não se detém longamente sobre aventuras no campo de filmagem, não promove acerto de contas com possíveis desafetos. Se, por tudo isso, Fragmentos de uma Autobiografia escapa às convenções do gênero, para quem ama cinema e as questões de cultura em geral o livro transmite a emoção que o credencia a ser lido de uma tacada. E, em seguida, relido detidamente. Em uma palavra, para Rossellini o essencial é a passagem, que executa ao longo do livro, da experiência pessoal à aventura coletiva. Não seria absurdo descrever esses Fragmentos, escritos no ano de sua morte, como uma teoria ligeira do cinema, por um de seus maiores expoentes. Rossellini (1906 – 1977) inaugurou com Roma, Cidade Aberta (1945) o Neorrealismo italiano e, com isso, a mais influente tendência do cinema europeu. Ao tirar as câmeras dos estúdios, dar papéis importantes a atores amadores (tipos, mais do que atores), investir no plano-sequência (contra a montagem, que julgava um artifício de má-fé), fez discípulos não apenas na Europa (a Nouvelle Vague francesa em particular), mas em todo o mundo (a começar do Brasil, onde o Cinema Novo deve-lhe quase tudo). Depois de alguns flertes com Hollywood (devidos, segundo ele, muito mais ao fato de estar casado com Ingrid Bergman do que aos seus filmes), termina por se dedicar à televisão, sobretudo nos anos 1960. Essa experiência não é gratuita e constitui, de certo modo, o nó mesmo do livro. Ao reconhecer a existência de uma ordem audiovisual, de um enorme potencial tecnológico dedicado à nadificação do público e ao desperdício planificado, Rossellini faz a ponte entre o audiovisual e a cultura. Define-se como um dos cineastas simultaneamente mais conhecidos e mais desconhecidos de seu tempo, critica impiedosamente o mundo do espetáculo em que vivemos, a que atribui uma natureza meramente especulativa (faz uma distinção entre o capitalismo, como sistema em que se investe dinheiro para fazer frutificar um patrimônio, e a especulação, exaltação do instante). Mas, sabe-se, a paixão de Rossellini era a câmera, instrumento graças ao qual o olho humano está equipado com um olhar que lhe permite, pela primeira vez na história, ultrapassar sua própria finitude para alcançar a realidade sob todos os aspectos. Para Rossellini, sobre a imagem podemos fundar um novo projeto de homem. Na verdade, o livro todo – mesmo quando fala da família, do fascismo ou da Índia – é atravessado por essa ideia. Ela é que determina, ao mesmo tempo, a influência e a sua assumida solidão. A solidão que o leva a criticar tanto Hollywood quanto seus discípulos da Nouvelle Vague. De todos os pensadores que invoca, de Marx a Jesus, o que mais o impressiona é o checo Comênio. No século XVII, Comênio ensinava que é preciso usar uma enorme quantidade de palavras para descrever, por exemplo, um elefante. Mas, por mais que acumulasse detalhes, cada um poderia imaginar algo diferente. Se apenas pudesse mostrar a imagem de um elefante, todos saberiam de imediato do que estava falando. É por aí que Rossellini começa, na verdade, a responder à questão o que é cinema?, que todo cineasta moderno minimamente digno se empenha em responder. A diferença é que as respostas, de 1945 em diante, não podem ignorar as ideias de Rossellini. Para ele, a sociedade moderna gira em torno de sua incapacidade de acesso ao real, ao qual mesmo a estética seria um obstáculo. Opinião radical, à altura de sua vida e da contribuição que trouxe para o cinema. De fato, a obra de Rossellini é um paradoxo, pois continua muito mais reconhecida do que conhecida. Fragmentos de uma Autobiografia é a preciosa ilustração do processo e das ideias que levaram a essa obra. É também uma súmula de sua contribuição para o cinema. Mas é, sobretudo, um relato da batalha em que se empenhou para que o cinema fosse um modo de conhecimento do real, e não a linha avançada de um mundo espetacular, isto é, de aparências. A Noite É um Apanhado de Intrigas Virtuais 28 de março de 1992 A NOITE / La Notte (1961), de Michelangelo Antonioni Rever A Noite trinta anos depois leva a questionar, de início, uma interpretação que se impôs a respeito de Antonioni. Ele seria o cineasta da incomunicabilidade, de um universo existencial em que o entendimento entre humanos oscila entre a insignificância e a impossibilidade. Existe aí uma meia-verdade, se aplicada a este filme. A história de A Noite, centro de uma trilogia sobre o casal (composta ainda por A Aventura e O Eclipse), pode ser resumida em duas linhas. O escritor Giovanni (Marcello Mastroianni) e a mulher Lidia (Jeanne Moreau) entediam-se em conjunto, ao mesmo tempo em que seu amigo Tommaso agoniza em um hospital. Numa festa, Giovanni paquera Valentina (Monica Vitti). Moreau também encontra uma paquera. A noite termina. Giovanni fica sabendo que o amigo morreu. Fim. Primeira questão: existe aí uma história? A rigor, não. Tudo oscila entre aceitar e rejeitar a história, embarcar ou não. A Noite não é bem uma história, mas um apanhado de intrigas virtuais. Mensageiro de Antonioni, ao menos em certos instantes, Giovanni diz, sobre sua crise criativa (ele não consegue mais escrever): o problema não é o quê escrever, mas como. Em A Noite, o o quê não tem precisão. A rigor, 90% dos diálogos poderiam ser substituídos. A história, se é que existe, poderia ser outra. O como, ao contrário, é exatíssimo. E ele consiste em suspender o tempo, reduzir a ação ao mínimo e esticá-la ao máximo. O que se filma são as bordas, as margens da existência, não para melhor mostrá-las, mas para notar o vazio. Se em Hitchcock a alma permanece suspensa entre salvação e danação, em Antonioni, seu discípulo, a alma é uma possibilidade entre a vida e a morte, a plenitude e o vazio. A Noite é, nesse sentido, um filme entre a penumbra e a aurora, feito de imagens admiráveis que resistem ao sentido e palavras que se perdem no vazio. Jacques Rivette Cria Sua Obra-prima 8 de maio de 1992 A BELA INTRIGANTE / La Belle Noiseuse (1991), de Jacques Rivette Há cineastas de filmes e cineastas de obras. Jacques Rivette talvez não faça parte de nenhuma das duas categorias: é um cineasta cuja obra inteira parece convergir para um único e irretocável momento. O momento, no caso, chama-se A Bela Intrigante, acaba de entrar em cartaz no Belas Artes, tem cerca de quatro horas de duração e é, no mais, um prodígio. Dessas quatro horas, o espectador (ao menos o que não se contenta com o fast food cinematográfico) sai ao mesmo tempo leve e esgotado. Esgotado por um filme que o solicita a cada minuto de projeção. Leve, porque de algum modo tocado pelo encanto da obra que vê surgir à sua frente. E A Bela Intrigante não é outra coisa, a rigor, do que um filme sobre o fazer artístico. Ali um pintor, Frenhofer (Michel Piccoli), trabalha diante de sua modelo Marianne (Emmanuelle Béart), com ela, contra ela e nela. Trata-se, para ele, de pintar um quadro chamado A Bela Intrigante, projeto de sua vida. Jacques Rivette segue a criação passo a passo. Aí está, precisamente, o prodígio: durante alguns minutos, ele mostra as mãos de Frenhofer executando um desenho. O espectador segue seus movimentos e estranha o tempo, a recusa de elipse. O pintor vira a página, recomeça o trabalho. A essa altura, o espectador já discute, por assim dizer, com os esboços de Frenhofer. Rivette toma o seu tempo. Ignora o standard (de 90 a 120 minutos). Joga o espectador dentro da obra (o quadro), mas também dentro de seu filme: enreda-o como num filme de Hitchcock. O nascimento de um quadro é um ato de suspense. Cada vez que o corpo da modelo é forçado, violentado, subvertido, o espectador acompanha com o fôlego preso. A Bela sairá ou não? O que ela é? O espectador está, enfim, diante do desnudamento implicado na criação. Desnudamento físico (da modelo), a princípio, mas também do pintor. Não existe qualquer sofrimento aí. Não visível. Ele só é perceptível no namorado da modelo (Nicolas, também pintor) ou em Liz, mulher de Frenhofer (Jane Birkin, sublime). Ambos passam, de maneiras diferentes, pela experiência do ciúme. Conhecem a dimensão pornográfica da criação, a intimidade que une o pintor à modelo, na qual todos os sentimentos estão implicados. Para Liz, é pior. Ela percebe que criar não é um ato de memória, mas de esquecimento: o gesto que engendra o quadro engendra também a morte. O movimento que fará surgir, por um traço, o sangue na tela é, adivinhase, o mesmo de um assassinato. Daí a suspensão hitchcockiana. No ateliê, o tempo inexiste. Ele é vivenciado fora, por Liz e Nicolas. Dentro, o que existe é uma guerra: a secreta cumplicidade que leva a modelo, em dado momento, a tornar-se a criadora do pintor. Mas todos esses estágios são também fantasmas amorosos. Liz, a mulher, sabe que a morte não é o menor dos riscos em jogo: ela já foi, no passado, modelo de Frenhofer. Ela foi A Bela Intrigante. Entende que, para chegar ao quadro, à imagem que ilumina a superfície da tela, será preciso que Frenhofer busque, no trabalho com a modelo, ir de fora para dentro. Ela será excluída, desta vez. E aí está colocado mais um tema rivettiano, que é a fugacidade do amor (tratada em A Religiosa). Inútil dizer que, ao falar de arte e amor, Rivette fala de cinema. Na grande geração dos Cahiers du Cinéma, ele foi uma espécie de mestre de gente como Trutfaut, Rohmer, Chabrol, Godard. De todos, foi até aqui o que menos sucesso conseguiu como diretor. Talvez tenha sido o mais crítico e o mais espectador. Seus filmes anteriores colocaram com frequência a criação como problema (evitando tratar de cinema). De algum modo, A Bela Intrigante é o acabamento dessa procura e a prova de algo que já se disse: não é o crítico que é um criador frustrado. O criador, sim, é um crítico realizado. A Bela Intrigante é, ainda, a análise detida, apaixonada, febril de um transe que coloca essa hipótese tão indispensável quanto absurda: a de um ser humano partilhar suas ideias, sentimentos, passado, vergonhas com outros (ou algum outro). É tudo a que um cinema crítico pode aspirar: fazer do espectador a sua própria arte. Por isso A Bela Intrigante é algo de uma grandeza que não se vê todo dia. Isso não se demonstra. O filme é, ele mesmo, a demonstração. O Cinema no Cerne da Violência 11 de outubro de 1992 RETRATO DE UM ASSASSINO / Henry: Portrait of a Serial Killer (1986), de John McNaughton Nada parece fácil na história de Retrato de um Assassino. Filme de estreia, realizado em 1986 com um orçamento minúsculo (US$ 120 mil), recebeu da Motion Picture a classificação X. Com as portas fechadas nos grandes circuitos norteamericanos, Retrato fez o tour dos festivais de cinema, nos quais acabou, com o tempo, criando uma reputação. Em São Paulo, o filme está em cartaz há dez dias, conseguiu a façanha de sobreviver a um lançamento massacrante (no Cine Olido 3) e, desde sextafeira, está sendo exibido também no Cinearte. Em uma palavra, Retrato de um Assassino vai conseguindo impor a estreia de John McNaughton na direção como um acontecimento, contra a lógica da indústria, mesmo num mercado como o brasileiro, que se pauta pelo que acontece nos EUA. Essa lógica fica mais clara quando se verifica que o recém-estreado 1492, uma superprodução de US$ 45 milhões, não passou pelos mesmos problemas. No filme de Ridley Scott, a violência às vezes é estetizada pelo uso da câmera lenta, à Sam Peckinpah. Às vezes, ela é apenas obscena, como nas cenas de execução, em que a câmera se aproxima do rosto dos condenados no instante mesmo em que a corda em seus pescoços se aperta, tira-lhes o ar, desfigura seus rostos e, por fim, força-os a expelir uma baba que parece sair de suas bocas apenas depois que a última reserva de ar deixou os pulmões. Obscena ou estetizante, a violência fala em 1492 a linguagem do espetáculo. Ela é perdoável na medida em que a ideia de entretenimento triunfa sobre o fato mostrado e em que a realidade está lá para servir ao cinema. Em Retrato, ao contrário, o cinema serve à realidade. Em mais de um nível, até porque o filme apoiase num fait divers: a história de um criminoso que confessou o assassinato de cerca de 300 mulheres. Entenderá a história do filme com mais facilidade quem conhece a expressão pegar uma mulher, que designa a maneira como homens entendem o relacionamento sexual. Henry (Michael Rooker) leva a expressão às últimas consequências. Sai de casa alegando que precisa tomar um pouco de ar, convida uma garota para entrar em seu carro, mata-a e volta para casa. Henry precisa matar, da mesma forma como precisa respirar. Tudo é simples, direto e limpo, movido mais por uma meticulosidade implacável do que por um impulso irracional e irrefreável. A seu amigo Otis, ele revela que é possível matar quantas pessoas quiser, desde que se proceda cada vez de uma maneira diferente. O que pode virar os sensíveis estômagos do establishment cinematográfico, já se vê, não é a cota de violência implicada em um crime ou em uma execução. É, bem mais do que isso, o que se chama mise-en-scène. Quando serve ao espetáculo, parece erguer-se uma barreira entre a violência e a realidade. Afasta-se o fantasma do contágio cinematográfico (como se as ideias antissociais se difundissem mais ou menos como a catapora). Quando, ao contrário, a imagem está a serviço do real, ela deixa de ser puramente verossímil, perde a característica de representação, desprega-se da tela como verdade. O cinema já não toma o real por empréstimo para forjar uma ilusão. É o real, ao contrário, que toma o cinema como meio para se expor. O título Retrato de um Assassino resume à perfeição o que o filme é. O que se espera de um retrato – em pintura, por exemplo – é o silêncio do autor. Como se ele não pensasse. Como se todas as virtudes (ou defeitos) viessem do personagem e não de quem as capta. Da mesma forma, McNaughton registra o cotidiano singelo e bestial de Henry, como se não houvesse câmera à sua frente – não há efeitos, não há comentários, não há espetáculo. Só o cinema, em sua natureza de arte cuja violência está em apenas ser, isto é, mostrar. Eastwood Reencontra o Gênio do Faroeste 23 de outubro de 1992 OS IMPERDOÁVEIS / Unforgiven (1992), de Clint Eastwood O último cowboy pisa no Oeste como se fosse o primeiro: Clint Eastwood é ao mesmo tempo clássico e original, ortodoxo e inovador. Vendo Os Imperdoáveis não se tem a impressão, nem por um instante, de que o faroeste um dia declinou: é como se sempre tivesse estado lá. E aí está boa parte da magia deste filme, que ao mesmo tempo faz lembrar Sergio Leone e John Ford, Henry Fonda e John Wayne, mas nunca transmite a ideia de nostalgia. O paradoxo já se encontra na figura de William Munny (Clint), pistoleiro que deu adeus às armas quando encontrou a mulher de sua vida e converteu-se em criador de porcos, pai de família exemplar e, no mais, viúvo. O clichê parece pular da tela. Não será o único, e justamente aí está a genialidade do filme. O clichê nem sempre é uma facilidade, mas uma convenção que se sedimenta ao longo do tempo, como um saber coletivo. O importante é ser capaz de trabalhá-lo. E isso Clint faz magistralmente em seu novo filme. Tomemos a história: na cidade de Big Whiskey, uma prostituta é desfigurada por dois cowboys. O xerife Little Bill Daggett (Gene Hackman) condena-os a dar alguns cavalos ao proprietário do bordel. Trata-se, assim, de uma mera ação de perdas e danos. Aqui, o clichê está excluído: em meia dúzia de cenas, Eastwood compõe um quadro irrepreensível da brutalidade, tanto pior porque emanada da lei (lei do Oeste, consensual, mas lei), para quem as prostitutas são seres infra-humanos. Longe dali, um jovem pistoleiro propõe a Munny que se junte a ele para irem até Big Whiskey matar os criminosos e rachar a recompensa que as prostitutas ofereceram pela façanha. Munny topa a oferta e coloca no pacote seu velho amigo Ned Logan (Morgan Freeman). Daí por diante o filme terá de tudo, ou quase: um pistoleiro incapaz de enxergar um palmo adiante do nariz, um homem baleado enquanto defeca, tortura, dor, grandeza, arrependimento, fanfarronice, humor, amargura. Haverá o encontro entre Munny e a prostituta desfigurada, e ele dirá a ela que ambos são muito parecidos (trazem no rosto cicatrizes). É em torno dessas marcas da maldade, dessas máculas que saltam atrevidamente das almas para os corpos, que Os Imperdoáveis se desenvolve. Ali está o escritor, W. W. Beauchamp, ridícula testemunha de um Oeste em que o heroísmo passa muito mais pela lenda do que pela verdade. Ali está Little Bill, tentando constituir sua biografia. Ali está Munny, às voltas com dois passados conflitantes: o de ex-demônio e o de ex-viúvo exemplar, que um dia jurou à mulher que nunca mais pegaria em armas, mas pega, e por dinheiro. É preciso dizer mais? Na verdade, é. Neste filme de ambientação e fotografia exemplares, cada cavalgada parece saída de um filme de John Ford, assim como o duelo final – seco, arbitrário e magnífico – parece vir de um filme de Sergio Leone. Clint, já se sabia, é um dos grandes diretores americanos contemporâneos. Mas desta vez foi mais longe. Como Pierre Menard, o personagem de Borges que se aplicou a reescrever o Quixote, linha por linha, palavra por palavra, Clint reelabora uma tradição e uma história. Não imita, revive. Daí vem a verdade assombrosa deste grande filme. Irmãos Marx Trazem Seu Melhor 12 de novembro de 1992 OS QUATRO BATUTAS / Monkey Business (1931), de Norman Z. McLeod Nos filmes, costuma-se apreciar normalmente o trabalho dos atores. Nos filmes dos irmãos Marx, não há nada a apreciar nesse sentido: o trabalho, para eles, iguala o prazer. É coisa que algum cinéfilo percebeu inteiramente em maio de 1968 e registrou na frase célebre (Sou marxista. Tendência Grouxo). Quem alugar ou comprar Os Quatro Batutas perceberá que não existe contradição entre conceitos clássicos do marxismo (como o de trabalho alienado) e as gags verbais de Grouxo. Desde os primeiros fotogramas de Os Quatro Batutas, o fazer iguala o prazer. E, se não estamos às voltas com uma revolução proletária, em todo caso as regras aceitas da convivência social são plenamente subvertidas. Menos pelo fato de os quatro irmãos serem, aqui, clandestinos em um navio de luxo. Muito mais por, a cada sequência, botarem abaixo qualquer expectativa que se tenha sobre o que vem a seguir. Assim, quando Harpo enfia a mão no bolso de um passageiro para roubar seu passaporte, o homem o pilha e diz: Tem que levantar mais cedo para me pegar. Grouxo não se aperta: Ele levantou, mas você não estava lá. Quando, numa festa chique, o anfitrião diz a Grouxo que se divirta, porque será uma festa e tanto, ele responde na lata: E isto é uma festa? A cerveja está quente, as mulheres são frias e eu estou com calor. Nunca estive num churrasco como este. Não é tudo. Os Marx fazem da bagunça um exercício de subversão da ordem, de toda ordem, sobretudo daquela que se convencionou chamar ora de marxismo, ora de socialismo real. Não há qualquer realidade, assim como não existe nenhuma continuidade dramática. Ora eles são clandestinos, ora estão na alfândega tentando se fazer passar por Maurice Chevalier (todos os quatro), ora são capangas de gângsteres e, obviamente, arruínam todos os planos de quem quer que se ponha à sua frente ou ao seu lado. O filme foi o terceiro dos irmãos e não se espere dele o mesmo vigor de O Diabo a Quatro (1933), em que seu gênio humorístico encontrou o do diretor Leo McCarey. Mas seria injusto não lembrar a sequência do teatro de marionetes, que é exemplar e dá a medida do talento quase inigualável de Harpo como mímico. Mas corre-se o risco, ao escrever sobre isso, de chover no molhado: todos, ou quase, conhecem de um modo ou de outro o humor anárquico dos Marx. Revê-los em seu ambiente natural (isto é, longe da organização paramentada que seus filmes teriam na Metro, a partir de 1935, que não os prejudicava, mas os modificava) remete quase obrigatoriamente à frase inscrita nos muros de Paris. 1968 – o ano dito rebelde pela TV – não foi o de um início, como se imaginava, mas de um crepúsculo: os jovens que enfrentaram o governo De Gaulle enfrentavam, na mesma medida, o stalinismo. Propunham, à moda dos irmãos Marx, a substituição do possível pelo impossível, do real – socialista ou capitalista – pela irrealidade de alguns dias de barricada, em que a organização social foi posta em xeque. Os Marx são isso: uma interferência absolutamente indesejável na ordem das coisas, um apelo contra o bom senso, e, mais amplamente, contra o desprazer. Seu efeito pode durar o tempo de um filme, não importa: é um tempo em que o humor iguala a pura magia, em que o mundo se reflete numa sucessão interminável de gags e não gosta do que vê. Bengell e Lara Brilham em Noite Vazia 5 de fevereiro de 1993 NOITE VAZIA (1964), de Walter Hugo Khouri Noite Vazia não é um filme comum. Nem tanto pelo sucesso que fez, nem pelo escândalo que gerou quando passou meses preso pela censura, nem mesmo porque um general – o regime militar se iniciava – queria queimar seus negativos. Noite Vazia foi, sobretudo, o filme que consagrou a imagem negativa de Walter Hugo Khouri como imitador de Antonioni. Esse era, em todo caso, o argumento que seus desafetos usavam para desqualificálo, numa época em que o debate sobre os destinos do cinema brasileiro era, para dizer o mínimo, feroz. Com o tempo, é possível perceber que as coisas não eram bem assim. É certo que Khouri passava ao largo das questões sociais e falava como individualista. Mas não deixa de haver um vínculo com a realidade brasileira na história dos dois rapazes (o rico é Mário Benvenutti; Gabriele Tinti, nem tanto) que passam uma noite em companhia de duas garotas (Norma Bengell e Odete Lara). A diferença de categoria social é determinante para as relações que se estabelecem entre eles – sem as quais o filme não existiria –, muito embora o filme pareça se colocar primordialmente questões que variam da solidão ao vazio. Mas – diferentemente de Antonioni ou Bergman – o filme é atravessado por uma frivolidade que, no Brasil, é um apanágio de classe, sim. Nesse sentido, um filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol, revisto hoje, parece muito mais interessante pelo delírio glauberiano (marcado pela procura do pai) do que pela, digamos, luta de classes. Enquanto em Noite Vazia o abismo de classes parece mais central do que as questões existenciais. Noite Vazia permanece, até hoje (e a meu ver), como o momento mais agudo, acabado e complexo do cinema de Khouri (uma raridade no cinema brasileiro: fez 22 longas até o momento). Para chegar a isso, não há como esquecer as duas notáveis interpretações femininas de Norma Bengell e Odete Lara. Não há também como deixar de lembrar a admirável fotografia do húngaro Rudolf Icsey. Não será demais dizer, por fim, o que hoje já não se coloca em discussão: Khouri é, antes de tudo, um dos cineastas que melhor dominam a técnica. Pode-se gostar ou não de seus filmes. O resultado é o que ele quer. Herbie Volta à Linha de Montagem 10 de maio de 1993 AS NOVAS AVENTURAS DO FUSCA / Herbie Rides Again (1974), de Robert Stevenson VIAGEM INSÓLITA / Innerspace (1987), de Joe Dante As Novas Aventuras do Fusca, que a Globo exibe hoje em matinê, é muito mais do que uma referência à ressurreição dos velhos Fuscas. O filme dos estúdios Disney de certa forma explica o caráter simbólico da operação há pouco patrocinada pelo governo. As Novas Aventuras remete ao idílio entre máquina e razão. A ideia que se desenha ali é a da técnica a serviço do homem. Herbie é o fabuloso Fusca que conduz o homem a seu porto seguro, contra as incertezas do momento. Na contramão, encontra-se Viagem Insólita, de Joe Dante. Ali, trata-se de executar a experiência científica que consiste em reduzir um homem a dimensões microscópicas e injetá-lo em outro corpo. Como o homem em questão é um astronauta, percebe-se já que voar para a Lua ou para o interior de outro corpo tem, em linhas gerais, a mesma dimensão cósmica (e cômica). Viagem Insólita é um filme atritivo, aflitivo. Todo novo passo – apesar do humor – é incerto. O mundo do Fusca é bem outro: designa um pacto confortável entre natureza e cultura, o homem e suas obras. Esta segunda-feira oferece, pelo recurso à fantasia, duas maneiras de olhar o mundo presente, às quais o Brasil se tem confrontado dramaticamente. Com Collor, a incerteza do mundo degenerou em caos. Com o novo governo, o Fusca voltou à ativa. Simbolicamente, ressuscita a era do humanismo juscelinista: homem e progresso. Com o Fusca na linha de montagem, salta-se do simbólico ao real. O problema já não é mais como se vê o mundo, mas como se delira para não ter de encará-lo. Spielberg Desafia a Técnica 8 de junho de 1993 ENCURRALADO / Duel (1971), de Steven Spielberg Filme de começo de carreira, Encurralado jamais faria imaginar o Spielberg do futuro: com um ator (Dennis Weaver), um carro e um caminhão, ele se vira para contar a história do homem que começa a ser perseguido por um caminhão a cada cena mais ameaçador e mastodôntico. Mas, olhando bem, todo Spielberg está lá. A questão central, quase única deste pequeno filme, versa sobre as relações entre homem e técnica. E nesse diretor – tido tão frequentemente como comercial, no mau sentido – nada parece interessar, exceto a capacidade de dominar o conhecimento correto, diante de um problema específico. Tanto faz que a ameaça seja um peixe (Tubarão) ou a ignorância (A Cor Púrpura). O enfrentamento homem/máquina em Encurralado é sintomático da cisão entre as ideias de progresso e evolução. O que rola na estrada não é mais o senhor do universo. É o humano falível, às voltas com monstruosidades geradas por ele mesmo. Os perigos que o espreitam a cada curva não são fantasmas, mas a imagem de um desafio: já não se pode olhar para trás; tudo a fazer é dominar as questões lançadas. Uma delas, diga-se, Spielberg matou: o cinema americano andava bem a perigo, quando ele entrou em ação. Encurralado é o prefácio dessa história. Loucura Triunfa em De Palma 17 de junho de 1993 VESTIDA PARA MATAR / Dressed to Kill (1980), de Brian De Palma Ninguém precisa esperar o final para perceber o gênio de Vestida para Matar. Desde o início, De Palma impõe uma tensão incomum, ao expor sua primeira personagem principal, Kate Miller (Angie Dickinson), a um desnudamento moral completo. Sua insatisfação com o marido, a tentativa de seduzir o psicanalista (Michael Caine), a busca de um amante num museu, a constatação de que o amante sofre de doença venérea – tudo isso é narrado em 20 minutos, mais ou menos, sustentados à força de pura imagem. De Palma vai atrás de Hitchcock, como de hábito. O filme remete ora a Um Corpo que Cai, ora a Psicose, ora a Janela Indiscreta. Mas não é de imitação que se trata. De Palma trabalha fisgando e trazendo à tona certos elementos de Hitchcock, mas a composição é original. Ali onde em Hitchcock há elegância, sensatez mesmo na loucura, racionalidade, em De Palma tudo se inverte. Os dois pisam mundos diferentes. O de De Palma é feérico, excessivo, atrevido. Nada clássico. Garotos e prostitutas, travestis e psiquiatras (ou similares), todos compõem uma massa de pulsões jogadas no mundo quase anarquicamente. Em Hitchcock existe uma ordem, que é abalada e até contestada, mas está lá. Em De Palma, as instâncias da desordem e da ordem misturam-se, tornam-se irreconhecíveis. Assim, em Nancy Allen fundem-se a prostituta e a investigadora (a perversão e a norma). Não é que em De Palma não exista pecado. É que, ao contrário de Hitchcock, em seus filmes o pecado tem uma expressão antes de tudo física, num mundo intrinsecamente sórdido. Não há resgate para seus personagens, nem triunfo da razão sobre a desrazão. Amor é Experiência-limite 30 de junho de 1993 OS CAMINHOS DO AMOR ou AMANTES / Love Streams (1984), de John Cassavetes Os Caminhos do Amor constrói-se no limite entre a guerra e o riso. A guerra vem do desejo, da beligerância própria às pessoas que querem amar e ser amadas. Mas, como tudo o que envolve desejo, há estratégias mal traçadas, erros de cálculo grosseiros, ataques precipitados, defesas retardadas. John Cassavetes fez aqui um dos mais belos filmes de amor dos tempos modernos. Em primeiro lugar, porque os personagens são idiotas. Não idiotas viscerais, mas por amor. Isto é, são como todos nós, espectadores do filme. Em segundo lugar, porque aqui se encontram um tema e um estilo. Cassavetes é um realista, um herdeiro do Actor’s Studio. Mas, diferentemente de um Elia Kazan, por exemplo, que parece trazer cada emoção calculada de casa, Cassavetes abre-se às incertezas do presente: como se o filme viesse não do diretor, mas do momento, determinado não por uma vontade, mas pela fatalidade. Se existe algo a reprovar em Kazan – mesmo neste monumento que é Clamor do Sexo – é esse perfeccionismo que parece preceder o filme. Em Cassavetes, o desarranjo essencial do humano revela-se no correr dos fotogramas, na flutuação dos sentimentos, na incapacidade de apreender tanto os gestos como a corrente desigual que os contém. Cada gesto amoroso seria perfeitamente ridículo, caso não fosse amoroso. O que faz de Caminhos um grande momento de cinema é a capacidade de revelar o dentro e o fora desses gestos, o sublime e o ridículo. É se mostrar surpreendente a cada segundo, porque mostra gestos únicos, precários, erráticos, sublimes. Isto é, humanos. Hitchcock Faz Imagem Falar em O Ring 2 de setembro de 1993 O RING / The Ring (1927), de Alfred Hitchcock Se fosse preciso uma prova de que a cultura cinematográfica anda rastejante no Brasil, bastaria lembrar que a Sala Cinemateca ficou quase às moscas, quando, há algum tempo, apresentou uma série de filmes mudos de Hitchcock. Isso talvez prefacie uma carreira comercial modesta para o lançamento em vídeo de O Ring. Mas a fantástica cegueira cinematográfica que atinge o País está diretamente ligada ao módico interesse que despertam maravilhas como esta, sobretudo entre pessoas que têm a obrigação de saber o que é a narrativa. Hitchcock permite, aqui, que se entre em contato com a narrativa em estado puro. O ring do título diz respeito ao ringue de boxe. Mas também ao bracelete que adorna Lillian Hall-Davies, a heroína. O duplo sentido mostra como ele criava o sentido: não linearmente, mas por uma espécie de acumulação em camadas. Na história, um sujeito decide desafiar um boxeador de feira famoso por destroçar seus adversários logo no primeiro assalto. Ora, o desafiante vence essa barreira. Como Hitchcock mostra o que acontece? Em frente ao lugar onde se realizam os combates, existe um placar com a cartela indicando o número 1. Quando o desafiante passa ao segundo assalto, um homem remove a velha cartela. Entra, no lugar, uma cartela com o número 2, novinha, já que nunca fora utilizada. Tudo está dito. Todo o conflito que permeará o filme está lançado, graças a essa invenção onde o toque de gênio é evidente. Mas o que dizer do bracelete em forma de serpente usado por Davies? A história é sobre dois lutadores que se apaixonam pela mesma mulher. Como o bracelete não é só adorno, mas também objeto simbólico, não é preciso que se fale. Ele significa união, mas é também um cúmplice da beleza feminina. Com isso, a sexualidade é posta em escandalosa evidência. A traição torna-se uma possibilidade sempre presente e a inconstância é enfatizada como componente do desejo. Bastariam essas duas ideias para fazer de O Ring um filme de antologia. São, apenas, os exemplos mais agudos da arte de narrar por imagens, que o cinema falado em absoluto não perdeu. Como o próprio Hitchcock demonstraria no sonoro, ela é o fundamento do cinema: a arte que não diz, e sim que mostra. Robert Aldrich Brilha no Crepúsculo 7 de outubro de 1993 O ÚLTIMO BRILHO DO CREPÚSCULO / Twilight’s Last Gleaming (1977), de Robert Aldrich Em O Último Brilho do Crepúsculo não faltam imagens. Ora a tela é dividida em duas partes, ora em quatro, como se Robert Aldrich (1918 – 1983) quisesse mostrar tudo da ação. Quando se fala ao telefone, por exemplo, é possível ver os dois interlocutores ao mesmo tempo, suas reações e silêncios. Mas aí mesmo reside o paradoxo do filme: as únicas coisas importantes são aquelas que não aparecem, as que não se pode ver. Logo no início, o ex-general Dell (Burt Lancaster) foge da cadeia com alguns presidiários, disposto a forçar o governo americano a publicar uns tantos documentos secretos sobre a guerra no Vietnã. Sua providência é tomar um silo com projéteis nucleares e chantagear o presidente. Para tanto, ele se vale não só de sua competência profissional, como do conhecimento que tem sobre as câmeras que monitoram o local. Ou seja, Dell sabe que o sistema de câmeras possui um ponto cego, incapaz de ver a ação. É por onde ele passará. A questão do ponto cego voltará à cena, e desde já é possível ver que O Último Brilho trabalha a ideia de que o cinema é feito de duas realidades paralelas e centrais: o que está em cena e o que não está. A ausência de um elemento em cena pode ser tão significativa quanto a sua presença. Isso é um filme: uma série de escolhas por meio das quais as coisas são incluídas ou não na tela. Feliz encontro entre forma e conteúdo, o filme de Aldrich trata, precisamente, de documentos secretos de governo. Eles determinam a vida de uma nação (do mundo, quando se trata dos EUA), mas obedecem a uma lógica da qual os interessados – as buchas de canhão que vão para o fronte, por exemplo – permanecem excluídos. O filme é uma ficção, claro. Mas não é preciso ir longe para saber que a história da humanidade é feita de uma série de segredos de Estado do mesmo gênero. Não é bem essa a questão, mas a possibilidade de verificar que o olho humano é, ele próprio, portador do engano; que o cinema, sucedâneo mecânico do olho, reproduz e sistematiza esse engano. Filme de maturidade, feito num momento em que Aldrich já não tinha a mão explosiva de seu início de carreira, de um Vera Cruz (1954), nem as preocupações ultracomerciais de um Os Doze Condenados (1967), por exemplo, O Último Brilho não chegou a ser o último momento em que o talento do diretor apareceu em sua plenitude. Garotas Duras na Queda (1981) é um filme pequeno, mas formidável. Mas marca o encontro entre um diretor veterano e um elenco idem, como a afirmar sua natureza crepuscular. É quando um homem já pode pôr de lado os compromissos e ser absolutamente verdadeiro. É também sua força. Há Imagens Duras na Queda 11 de outubro de 1993 DURO DE MATAR 2 / Die Hard 2 (1990), de Renny Harlin A MOSCA / The Fly (1986), de David Cronenberg Ninguém tenha dúvida: estamos na era da inflação das imagens. Elas são muitas e valem pouco. Duro de Matar 2, que a Globo exibe hoje, é um caso limítrofe. O filme tem competência, efeitos especiais, um herói simpático com uma mulher idem. No mais, acontece uma infinidade de coisas. É a fórmula encontrada para garantir sucesso junto a um público inquieto, acostumado à rapidez dos comerciais de TV. A vantagem e a desvantagem de Duro de Matar (qualquer um) é a moral das imagens. Existe ali uma exatidão dos efeitos que não bate muito com a precisão das causas. A ideia é encher os olhos, evitar o tédio a todo custo. Mas existe tédio em A Mosca, que a emissora exibe de madrugada? Em definitivo, não. À diabólica aventura do cientista a quem o destino destitui de sua humanidade também não faltam efeitos. Mas não é um filme que se veja comodamente. A Mosca em determinados momentos é francamente repulsivo. Mas essa repulsa epidérmica desdobrase de maneira curiosa: o horror com que somos confrontados não se detém nas imagens. Por isso mesmo, suas imagens não passam. A aventura que se vê ali, por terrível que seja, engaja o espectador de outro modo. Ela desperta os fantasmas referentes a uma ciência que força os limites da natureza. Os dois filmes são populares. Duro de Matar 2 é digestivo e inconsequente. A Mosca é indigesto e consequente. Suas imagens intrigam porque são o resultado final de uma cadeia de acontecimentos. O homem e seu futuro estão questionados ali, num estágio de angústia máxima. Daí essas imagens serem deflacionárias: terríveis, mas únicas. Cortina Continua Novinha 19 de novembro de 1993 CORTINA RASGADA / Torn Curtain (1966), de Alfred Hitchcock Cortina Rasgada é um dos filmes menos amados de Hitchcock. Parece que qualquer argumento é bom para atacá-lo, mesmo o mais banal e desimportante (por exemplo, há cenas em que o fundo projetado é perceptível). Há um pouco de verdade nisso. O filme está cercado de obras-primas do diretor: Marnie, Os Pássaros, Frenesi, etc. Mas é difícil invalidar, apenas por isso, essa história em que Paul New-man faz um dublê de cientista e espião, que se infiltra na Alemanha Oriental em busca de uns tantos segredos. Passemos pela fascinante construção do persona-gem de Newman, em que a curiosidade do espião mistura-se à (e é até superada pela) curiosidade científica. Também vamos deixar de lado a melhor sequência (a do assassinato numa casa), suprimida da cópia para TV no Brasil. Há outro momento marcante. Primeiro, Newman chega a Berlim Oriental junto com uma famosa dançarina (Tamara Toumanova). Toda a imprensa dá atenção a Newman, e não à mulher. Mais tarde, Newman esconde-se no teatro onde ela se apresenta. Enquanto dança, ela será capaz de reconhecê-lo, no meio de uma plateia cheia. Do ponto de vista de um realismo estrito, trata-se de um absurdo. Hitchcock interrompe os movimentos de Toumanova, faz seus olhos se fixarem na plateia e suspende o tempo até que o reconheça e possa denunciá-lo. A verdade da cena está em seu aspecto delirante. Hitchcock recorre ao mais puro arbítrio para mostrar, simplesmente, como reage uma mulher – uma estrela, no caso – com o narcisismo ferido. É uma liberdade a que só um gênio completo pode se permitir, um desses momentos que valem o filme: leva o espectador à plenitude do sonho e, ao mesmo tempo, a um recorte profundo da realidade. Nesse filme já reprisado cem vezes em TV, alguns instantes, como esse, permanecem sempre novos, inéditos, originais. Isto é, únicos. Paixão pela Geometria Domina Rio Lobo, Último Filme de Hawks 22 de dezembro de 1993 RIO LOBO (1970), de Howard Hawks Em dado momento de Rio Lobo, alguém reclama de um personagem, que toca todo o tempo uma mesma nota em seu instrumento. Eu treino essa nota porque é a única que eu conheço – responde o homem. Quem fala por intermédio do personagem é Howard Hawks, cuja obra inteira gira em tomo de alguns poucos temas e de umas tantas situações que se renovam a cada filme (e, graças à imaginação com que são desenvolvidos, parecem sempre novos). Rio Lobo, último filme da trilogia de Hawks sobre os homens do Oeste – que começa com Rio Bravo (também chamado Onde Começa o Inferno) e prossegue com El Dorado – é a demonstração desse princípio. A história é uma variante das primeiras. Desta vez, John Wayne é um oficial da União que, durante a Guerra de Secessão, perde um carregamento de ouro por obra e graça de um traidor. Terminada a guerra, ele e o oficial sulista que lhe passou a perna unem-se para combater o traidor. Alguns dados se invertem. Em Rio Bravo, havia um bandido preso e os demais vilões empenham-se em pegar um homem da lei para promover a troca de reféns. Aqui, a própria lei é corrupta e mantém preso um inocente. Aos heróis cabe apanhar o refém para promover a troca. Existe nesse tipo de procedimento um ostensivo desprezo pela originalidade do tema. É como dizer que a riqueza de um filme não está na história. A narrativa, diferentemente, é quase tudo. Rio Lobo sempre foi considerado o mais fraco dos filmes da trilogia. Revisto em vídeo, isso perde qualquer importância. Desta vez, Hawks trabalha com um John Wayne envelhecido, mais pesado e lerdo. Problema que assume e compensa levando às últimas consequências a cerebralidade tanto da ação como do próprio personagem. A sequência inicial é um bom exemplo. Wayne é o oficial da União responsável por um carregamento de ouro. Os sulistas preparam uma emboscada para roubar a carga. Nenhum sinal de violência – ataques de surpresa, força superior, etc. Apenas uma astúcia infernal. O trem é parado numa subida graças à graxa colocada no trilho. Os soldados que fazem a guarda do ouro, no interior de um vagão, não são expulsos a bala, mas por uma caixa de marimbondos atirada pela ventilação. Por fim, o vagão é freado com o uso de um sistema de cordas presas às arvores que cercam a ferrovia. Parece a simples execução do trabalho de um bom roteirista. Nada disso. Cada centímetro da tela é tomado por uma paixão pela geometria, pela imaginação de formas puras (círculos, retas, confronto de forças, submissão do tempo ao espaço ou vice-versa). Rio Lobo é o belo canto de cisne de um cineasta magnífico. É pena que a copiagem faça lembrar o tempo dos vídeos piratas. Eastwood Filma Inferno em Cores Claras 18 de janeiro de 1994 UM MUNDO PERFEITO / A Perfect World (1993), de Clint Eastwood Num mundo perfeito, as pessoas que escrevem sobre cinema chegariam sempre às mesmas conclusões sobre os mesmos filmes. A mesma imperfeição do mundo que, como lembra Sérgio Augusto em seu artigo de sexta-feira na Ilustrada, conduz a filmes melhores e piores, também nos leva a não reconhecer virtudes evidentes, ou a reconhecê-las excessivamente diante dos filmes. Um Mundo Perfeito, de Clint Eastwood, recémestreado em São Paulo, parece um desses filmes destinados a suscitar visões contraditórias. No sábado, era Bernardo Carvalho quem invectivava o filme na Ilustrada. Duas opiniões que me levaram ao cinema disposto a cumprir o pedregoso exercício de ver um filme que já se sabe, de antemão, um aborrecimento. Tanto mais que, tendo gostado muito dos últimos filmes de Clint, restava a suspeita de que voltasse a fazer um Raposas de Fogo da vida. Desde as primeiras sequências, Um Mundo Perfeito me pareceu um filme intrigante. A definição que Sérgio Augusto dá dele, no entanto, está longe de ser inexata: algo que não se define como thriller ou filme intimista; que pega vários atalhos, mas não chega a parte alguma. Embora não consiga aderir à parte final da proposta (não chega a parte alguma), todo o resto é justamente o que me encanta. Sergio faz, inclusive, uma lista de filmes já feitos que justificariam sua impressão de déjà vu: de O Fugitivo até A Louca Escapada, de Shane até Robin Hood ou A Testemunha. Ao longo da sessão, lembrei de vários outros filmes que Um Mundo Perfeito evoca de um modo ou de outro: As Vinhas da Ira, de John Ford, High Sierra, de Raoul Walsh, Sargento York, de Howard Hawks, Pretty Baby, de Louis Malle, E.T., de Spielberg. E mais: qualquer road movie, um faroeste de Sergio Leone, o Alcatraz de Don Siegel, qualquer burlesco do cinema mudo. A lista não é fechada. A cada espectador podem ocorrer outros filmes. O que ela sugere, de imediato, são duas hipóteses: ou bem Clint Eastwood é um ignorante da história do cinema, e seu filme não passa de uma salada, ou trabalha a partir dessa história e, então, as coisas fazem sentido. Vejamos uma cena, em que o fugitivo Butch Haynes, aliás Edgar Poe (Kevin Costner), e seu pequeno refém, Phillip (T.J. Lowther), chegam a uma pequena cidade do Texas. Locação antológica, quase uma cidade morta, ali fica a loja Friendly, onde as balconistas se esforçam por ser as mais gentis do país (em troca de um prêmio de US$ 20). Elas derramam-se em mesuras até descobrir que os clientes não são exatamente quem pensam que são. No momento seguinte, os rostos tão sorridentes escandem fúria e ódio. Nessa rápida notação de um mecanismo comercial, Clint observa uma sociedade que trocou a relação com as coisas pela relação com puros signos, dentro de uma codificação ao mesmo tempo rígida e superficial. Não importa o que você demonstre ser. Importa o que o rádio diga que você é. Nesse universo dominado pela mídia, Clint mergulha na mitologia das aparências por excelência, que é o cinema. Com efeito, repassa a história do cinema americano. Não como ignorante, mas com a mesma desenvoltura com que restabeleceu, há menos de dois anos, os princípios do faroeste, em Os Imperdoáveis. Sabe que o sonho americano está construído sobre filmes. É com o cinema que deve dialogar. Aqui, portanto, o caminho é inverso ao de Os Imperdoáveis. Os gêneros sucedem-se. Passamos do intimismo ao thriller, da comédia à tragédia. Os gêneros se arrebentam, as figuras na tela não ganham fixação, escapam ao nosso conhecimento. Quando pensamos que algo vai em um sentido, é atropelado por outro, que o nega e desloca. Costner é um criminoso, mas não é bem isso; o pequeno Phillip é Testemunha de Jeová, mas não é só isso. Um pode evoluir para a pureza, às vezes, da mesma forma como o outro se deixa contagiar pelo mundo, seus detritos e proibições (de comprar uma fantasia até atirar em um homem). O mesmo se poderá dizer de Clint (o xerife), ou Laura Dern (a assessora do governador), ou qualquer outro personagem. Todos estampam pelo menos duas faces contraditórias. Não é de estranhar que o filme se constitua como uma deriva, tão mais bucólica quanto, no final, encaminha-se para a tragédia: no homem que, minutos e minutos, sangra na barriga, aproxima-se da morte, concentra-se toda a ironia do filme. Não há perfeição alguma no mundo. O olhar de Clint é de um pessimismo atroz. Não há harmonia, exceto no tempo precário da deriva, que ocorre, ela mesma, num espaço labiríntico, portanto infinito: estamos diante de uma tragicomédia de erros, onde armas, fantasias (em todos os sentidos), veículos são apenas um simulacro de existência, uma imitação da vida. Nesse sentido, pode-se ver Clint Eastwood fazendo trabalho de moralista. É um mundo de indiferenciação, de pessoas ocultas sob insígnias, vestimentas, crachás sob os quais não existe nenhum real, nenhuma verdade, nada que o movimento seguinte não anule. Nem certos, nem errados: todos os movimentos são em falso. É o inferno em cores claras, o puro horror de um mundo que Deus parece ter abandonado a tal ponto que até a religião já não se distingue da superstição. Um Mundo Perfeito me parece, desde já, um dos mais belos filmes deste ano. Rio, 40 Graus Cria Imagem Real do Brasil 11 de fevereiro de 1994 RIO, 40 GRAUS (1955), de Nelson Pereira dos Santos Rio, 40 Graus ainda não é um filme do mestre que surgiria com Vidas Secas (1963). Em sua estreia (que abre a mostra Nelson por Nelson, com sete filmes, copatrocinada pela Folha), Nelson Pereira dos Santos é, antes, o discípulo que traduz a estética neorrealista em termos brasileiros. Longe de diminuir o interesse pelo filme, essa particularidade serve para intensificá-lo. Tratava-se de mostrar a vida da gente pobre do Rio de Janeiro, numa espécie de crônica. Assim, o espectador notará a desenvoltura com que a câmera transita, em dado momento, de um grupo de crianças para um casal de namorados em litígio. O plano não muda; o espectador é levado de um foco de interesse a outro por um movimento de câmera, sem que a unidade do espaço seja afetada. Não se trata de um procedimento estético: tratava-se de, ao longo de várias histórias, criar uma visão única do Rio e de sua gente. Nesse sentido, é um filme inaugural, um prefácio do Cinema Novo. O que o orienta é a necessidade de encontrar e fixar a imagem do Brasil (como Rossellini havia feito na Itália). O segundo ponto é: que imagem é essa? À luz do que se transformou o Rio, em particular a favela, Rio, 40 Graus parece um exercício de ficção científica: quem pode imaginar, hoje, uma favela delicada, inocente, em que o sonho dos garotos é comprar uma bola de futebol? Talvez haja um quê de idealização nesse olhar (de um paulista que estava radicado no Rio havia apenas dois anos). Mas nem tanto: se logo a seguir o cinema trataria as imagens em termos de aspiração (a construção do País, suas perspectivas), aqui é o momento de gestação pré-juscelinista: um mundo ainda em aberto, em estado original (daí sua inocência). Com tudo por criar, Pereira dos Santos nos dá algumas imagens de uma beleza seca e singela. É um de seus grandes trabalhos. Poucas vezes o Brasil terá se aberto tão plenamente à compreensão quanto por meio desse entrelaçamento de imagens e histórias, em que o Rio (e por extensão o Brasil) se abre como um coração em busca de um corpo onde exercer seus sentimentos. O que este filme nos mostra é a soleira do moderno, o momento que precede a definição de um destino. É, por isso, uma obra dramaticamente atual. A Marquesa d’O Conserva Sua Beleza 20 de fevereiro de 1994 A MARQUESA D’O / La Marquise d’O (1976), de Eric Rohmer Existe uma arte de rir, de soluçar, de ajoelhar-se. Esses pequenos gestos cotidianos definem uma época e é a eles que Eric Rohmer mais parece dar atenção em A Marquesa d’O, o filme que fez baseado na novela publicada pelo escritor Heinrich von Kleist em 1810. Pode-se ir mais longe: sem esses gestos, sem o cuidado quase maníaco de reproduzir a iconografia da época (a ação começa no fim do século XVIII) com absoluta fidelidade, esse filme não existiria. Ou seria outra coisa. Tudo obedece ao conhecido princípio de Rohmer, segundo o qual para ser contemporâneo, ao se adaptar um texto de época, é necessário manter uma fidelidade absoluta à época enfocada. Preceito feliz. Porque a interferência do tempo presente, a tentação de modernizar são armadilhas fatais, que servem para datar cruelmente um filme. A Marquesa d’O que a Cinemateca exibe hoje é o mesmo filme de 1976: nenhuma ruga, nenhum sinal do tempo vêm se interpor entre o espectador e o filme. E havia motivos para isso, na história da infeliz marquesa (Edith Clever), violentada (durante o sono) no mesmo dia em que a cidade governada por seu pai é invadida pelos russos. Grávida, é repudiada pelo pai, ao mesmo tempo em que um simpático oficial russo (Bruno Ganz) tenta a todo custo casar-se com ela. É melhor não se deter muito sobre as intrincadas reviravoltas da trama, sob risco de esclarecer prematuramente os mistérios que envolvem esse estranho romance. O importante é situar o filme em uma linha histórica. Rohmer é um cineasta católico. Não é de estranhar que todo o filme gire em torno da fé (embora essa não seja uma questão obrigatória em seus filmes contemporâneos). Não a fé em Deus, mas na palavra. Tudo consiste em saber se a marquesa diz ou não a verdade. Se o apaixonado oficial russo diz ou não a verdade (quando sustenta que a violentou, por exemplo). Estamos diante de um caso extremo. A concepção imaculada de um filho não é um fenômeno cotidiano. Mas essa é a hipótese que atravessa todo o filme. Estamos, então, no domínio do milagre (aqui apenas evocado, é verdade), como em Ordet do protestante Dreyer. Mas estamos também no território do jansenista Robert Bresson. Porque a humanidade vista por Kleist/Rohmer é, essencialmente, decaída. Incapaz de crer na palavra, faz da dúvida e da descrença um sistema. Essa tensão entre abandono e remissão, pureza e sordidez ocupa todo o filme e é levada com uma convicção tão grande que, com dez minutos de espetáculo, pode-se perfeitamente esquecer que estamos no século XX. A Marquesa conduz seu espectador docemente à época que mostra, desenvolvendo a ideia de Rohmer de um cinema transparente, em que nada deixe entrever o trabalho de realização do filme (não esquecer que em 1976, época de semiologia e marxismo ferozes na teoria cinematográfica, Rohmer colocava-se em plena contracorrente). Não é demais, falando de um filme que procura extrair o máximo de beleza da discrição, mencionar a fotografia de Néstor Almendros: é tão modesta e precisa quanto a mise-en-scène de Rohmer. Em ambos os casos, não falta modéstia à grandeza. Espírito de Aventura Triunfa sobre Personagens 11 de março de 1994 A LISTA DE SCHINDLER / Schindler’s List (1993), de Steven Spielberg Todo mundo sabe como acaba A Lista de Schindler: os judeus são massacrados e os nazistas perdem a guerra. O pouco que não se sabia, a publicidade encarregou-se de espalhar aos quatro ventos. Oskar Schindler (Liam Neeson) era um católico de origem alemã que, embora membro do Partido Nazista, evitou a morte de cerca de 1.200 judeus nos campos de extermínio da Polônia. Todo o interesse de A Lista de Schindler consiste, portanto, em descobrir como e por que essas coisas aconteceram. Spielberg dá conta da primeira parte da tarefa de maneira mais que satisfatória. A segunda é mais problemática. A primeira diz respeito ao como, e não há maneira de negar a força descritiva das imagens que revelam o confinamento dos judeus em guetos, o progressivo massacre a que são submetidos, primeiro em campos de concentração, mais tarde em locais destinados ao seu extermínio em massa. A Lista reconstitui o clima a princípio opressivo, mais tarde cada vez mais demencial que envolve a perseguição dos judeus pelo nazismo. É nessa parte que estão quase todas as sequências fortes do filme: a evacuação do gueto de Cracóvia; os embarques em trens destinados aos campos de extermínio; o horror de Auschwitz. O filme se estrutura aí em espiral: as cenas praticamente repetem-se, com a diferença de que a cada vez a repressão torna-se mais brutal. Existe, porém, o outro lado, o do por quê, e nesse aspecto A Lista mostra seus limites. Oskar Schindler é um personagem raro. De início, usa o seu incrível poder de sedução para ganhar influência junto à cúpula do regime. Seu objetivo é fazer fortuna fabricando panelas para o exército, usando os judeus como mão de obra barata. Schindler não é apenas homem de cama e mesa dos chefões nazistas. Não é alheio à realidade dos campos de concentração e, em certa medida, participa dela. Ora, é este homem de absoluta confiança das autoridades que, a horas tantas, decide enterrar sua fortuna, conseguida com calculada sordidez, na nobre missão de salvar tantas vidas quanto possa. O que aconteceu na cabeça de Schindler? E por quê? Nesse particular – e esse particular é quase tudo, no caso – o filme beira a omissão. Spielberg prefere desenvolver os aspectos emocionais de sua estranha aventura. Com isso, ao final do filme sabemos quase tão pouco sobre Schindler como quando entramos no cinema. O segundo personagem que o filme falha ao desenvolver é Amon Goeth (Ralph Fiennes), o responsável pelo campo de trabalho de Lublin. Goeth é um sádico de caricatura, capaz de usar seres humanos em suas práticas de tiro ao alvo. Mas não importa que essa categoria de pessoas tenha existido ou não. Tudo o que interessa saber é como um tipo de entendimento das coisas leva indivíduos a se comportarem de forma bestial. Ou seja, o nazismo não é propriamente uma anomalia que surge da terra. É uma maneira de ver as coisas com raízes na história alemã e no cristianismo, que busca se legitimar por meio de um discurso científico (por insano que seja), que escande sua ideologia por meio de uma propaganda inteligentíssima (não por acaso, Goebbels supervisionava pessoalmente os principais filmes alemães). Breve, por incrível que pareça, o mais espantoso em tudo isso é que aos alemães não parecia nem um pouco anômalo que os judeus fossem exterminados da maneira mais infame de que se tem notícia na história da humanidade. Com Goeth, Spielberg tinha a chance de expor para plateias imensas essas ideias (mostradas de forma exemplar no documentário Arquitetura da Destruição) e o processo de sua formação. Como A Lista se estrutura em espiral, o subdesenvolvimento desses dois personagens leva a um desequi líbrio: ao crescendo da perseguição aos judeus não corresponde o crescimento proporcional do conhecimento que temos dos germânicos. É nessa medida que A Lista se assemelha muito aos outros filmes sérios de Spielberg: a partir de dado momento, as ideias se repetem, reafirmam o já dito, as retomadas não aprofundam o tema, uma certa monotonia instalase. A Lista de Schindler mostra bem um episódio da era nazista. Mas ao mundo importa mais prevenir os nazismos futuros, e sobre isso o filme silencia. Lúcio Flávio Denuncia Crimes da Polícia 26 de março de 1994 LÚCIO FLÁVIO, O PASSAGEIRO DA AGONIA (1977), de Hector Babenco O Esquadrão da Morte foi um dos subprodutos mais indesejáveis do regime militar no Brasil. Esses grupos de extermínio formados por policiais tentavam passar para a população a ideia de que, com métodos radicais (isto é, a matança de supostos marginais), seria possível eliminar a criminalidade. Lúcio Flávio, o filme de Hector Babenco, trata desse fenômeno, a partir da história de um bandido consciente, que seria vítima da polícia e se manifesta contra seus métodos. Babenco, diretor nascido na Argentina, pode ser considerado o mais hollywoodiano dos cineastas brasileiros (já que sua obra nasce e se desenvolve no Brasil, em torno de problemas brasileiros). Tem, mais do que ninguém, a capacidade de isolar as questões de que trata dentro de uma perspectiva em que bem e mal se opõem claramente (dado central no cinema clássico de Hollywood). Vêm daí os méritos e os limites de seu filme. Lúcio Flávio apresenta-se como uma denúncia dos métodos mágicos de solução dos problemas e procura mostrar como a mentira, o autoritarismo, a tortura e mesmo a corrupção acabam sendo o fundamento dos esquadrões da morte. Sem contar que o assassinato, mesmo que de bandidos, nem por isso deixa de ser crime, com a agravante de estar acobertado pela instituição. Disso o filme dá conta, praticando uma espécie de inversão em relação ao molde convencional: o bandido passa a herói, enquanto a polícia encarna o mal. O método é claro e boa parte do êxito do filme deve-se a ele. No entanto, podia-se questionar já na época o seu valor didático. A quem se dirige Lúcio Flávio? Apenas àqueles que, antes mesmo de entrar no cinema, já acreditam no que o filme reafirma. Quando opta por levar à tela um mocinho exemplar, Babenco passa de raspão pela questão policial e deixa de trabalhar a crença da população em soluções mágicas, do tipo extermínio de criminosos, reais ou supostos. Suprime uma aparência – a de que a ordem se garante por meio da concessão de poderes ilimitados à polícia – mas institui outra: a de que somos todos inocentes diante de um poder ditatorial. Dissociar o espectador da realidade que o circunda pode ser confortável, mas está longe de dar conta da complexidade da situação. Isso vale para a época e também para hoje. Godard Inventa o Futuro na Fria Alphaville 23 de abril de 1994 ALPHAVILLE / Alphaville, une Étrange Aventure de Lemmy Caution (1965), de Jean-Luc Godard A pior maneira de abordar Alphaville é por seu conteúdo explícito. A ideia de um futuro no qual tudo é frieza e os computadores ordenam uma existência humana desprovida de sentimentos é, para dizer o mínimo, datada. Mas a aventura do agente secreto Lemmy Caution (Eddie Constantine), que vai aos planetas exteriores em busca do professor Von Braun, tendo como guia a filha deste, Natacha (Anna Karina), tem outros encantos, e não são poucos. O primeiro, e mais persistente, diz respeito à concepção de futuro. Em vez de queimar fortunas com cenários esdrúxulos, Godard filmou, pura e simplesmente, Paris. Com a luz de Raoul Coutard, porém, a cidade transfigura-se. Os ângulos escolhidos a dedo criam um ambiente de estranhamento absoluto, sem que se gastasse um centavo em cenografia. Mesmo Alpha-60, o célebre cérebro eletrônico que controla tudo e todos, não é mais que um ventilador. Essa possibilidade do cinema, de transfigurar a realidade, é o que Godard explora em seu filme. Com uma vantagem: como não investe em previsões sobre o futuro e suas engenhocas, Alphaville já beira os 30 anos de idade sem qualquer risco de se ver ultrapassado. O futuro é apenas um quadro no qual, a rigor, exacerbam-se certas preocupações do diretor na época. A central diz respeito à proibição de uma frase Eu te amo. O tempo passou, muitas coisas mudaram, mas essa continua sendo uma expressão complicada. Alphaville, um dos filmes mais simples e lineares de Godard, continua inteiro e notável. E suas imagens são de uma limpidez rara. O Alvo É uma Vitória da Imaginação 5 de maio de 1994 O ALVO / Hard Target (1993), de John Woo O Alvo não é apenas um filme de ação. É também, e sobretudo, um filme sobre a ação. Daí não haver fundamento profundo nas críticas que se fazem ao roteiro do primeiro filme norte-americano de John Woo, diretor chinês de Hong Kong. A intriga não importa, exceto pelo que ela permite ao filme ser. Em todo caso, aí vai: em New Orleans (EUA), uma gangue dedica-se a buscar alvos humanos entre veteranos de guerra reduzidos à mendicância e sem família. O objetivo, não propriamente digno, é vender esses alvos a ricaços que querem experimentar a sensação de matar alguém. Essa engrenagem sinistra sai dos trilhos quando aparece em cena a filha de um desses veteranos, que acaba de ser morto. Pior: quem se dispõe a ajudá-la nessa busca é um certo Chance Boudreaux (Jean-Claude Van Damme). Começa então uma luta que não é exatamente do bem contra o mal. É apenas contra o mal – algo sem outra natureza, sem densidade, sem nome: o mal em pessoa. A partir daí, o filme obedece a todas as convenções do gênero. Luta-se pela sobrevivência em meio a uma violência assombrosa, que não permite tempos mortos, em que os demônios (o inimigo) parecem surgir da terra, infernais e infindáveis. É esse clima que John Woo escolhe e estabelece para realizar seus prodígios. Ele pode contrair o espaço com a zoom (lente teleobjetiva) e, no instante seguinte, abri-lo e deformá-lo (com a lente grande angular). Pode fazer os personagens surgirem misteriosamente no campo abarcado pelo olhar da câmera. É como se todas as magias do cinema estivessem liberadas. Um salto de Van Damme pode comportar três andamentos, três velocidades: normal, câmera lenta, acelerada. Mas não é por acaso que, logo na primeira briga, Van Damme faz pose de Clint Eastwood nos faroestes de Sergio Leone. É como se Woo quisesse render um tributo a um mestre, embora o andamento que impõe a seu filme seja quase o inverso dos de Leone (o italiano trabalhava os tempos longos, o não acontecer, a inação, o vazio, o que não é o caso de Woo). É quando chega o conflito final, em um barracão de carros alegóricos, que todos esses elementos se encontram: a liberdade da câmera, a apreensão física das coisas, os voos de Van Damme ou de uma pomba, a explosão de uma máscara gigantesca. São 20 minutos que lembram os grandes musicais. É um balé em que o movimento dos corpos é dissecado pela objetiva e, no instante seguinte, reencontra sua plenitude misteriosa. Há ação, sempre, mas uma ação que só existe pela imaginação e para ela, como triunfo do corpo sobre a inexistência e sobre a morte. O Alvo é um achado e uma evolução espantosa na carreira de Van Damme, até aqui dedicada a filmes iníquos. Leva a esperar ansiosamente pelos outros filmes de John Woo, que alguns dizem ser ainda melhores. Western Traz a Tragédia ao Século XX 19 de maio de 1994 POR UM PUNHADO DE DÓLARES / Per un Pugno di Dollari (1964), de Sergio Leone O que foi o western spaghetti, que este Por um Punhado de Dólares inaugurou? Num primeiro momento, uma heresia: como, então, um cineasta italiano podia abordar um gênero norte-americano por excelência, em que a história e o mito do nascimento de uma nação se tocam? Pior: filmava na Espanha, com um bando de atores europeus se fazendo passar por mexicanos e um caubói obscuro, embora americano (Clint Eastwood). Nada mais natural, porém. Leone vinha de uma tradição de filme popular (o peplum, produção baseada na antiguidade greco-romana), em que o mito, a história e a imaginação também se encontravam. Parêntese: não seria demais esperar que alguma distribuidora esperta trouxesse para o Brasil esses primeiros filmes de Leone, ou os de Vittorio Cottafavi. No mais, o faroeste – pelo que representa para a América, para o cinema e para a indústria – é o sonho de todo cinéfilo. Mesmo quem não tenha posto os pés nos EUA tende a um amor natural pelo gênero. A operação que Por um Punhado de Dólares inaugura é, portanto, singela e complexa. Em um primeiro nível, trata-se de uma imitação pura e simples do faroeste americano. Em um segundo nível, mais complexo, existe a impossibilidade dessa imitação. É a partir daí que as coisas se tornam interessantes. Vejamos o enredo: Clint é um forasteiro que chega a uma cidade de fronteira dominada por duas famílias sanguinárias. Ficar com uma ou com outra é impossível. Clint está no meio de ambas. E convém que seja arisco o bastante para não virar alvo privilegiado. Mas essa cidade é uma abstração. Ali não parece haver vida real. Não existem comerciantes, fazendeiros. Nada. Tudo é uma formidável fantasmagoria. O lugar exato e perfeito para exercitar um sonho e tornar real as fantasias de cinéfilo. Poucos pistoleiros no mundo atiraram tão bem quanto Clint neste filme (todos vieram depois dele). É capaz de abater meia dúzia de vilões num piscar de olhos, antes que eles pensem em sacar suas armas. A velocidade do pistoleiro não tem nada de real. É uma arbitrariedade a que apenas os sonhos e os sonhadores se permitem. Da mesma forma, essa cidade impalpável, com seus vilões dementes, seu mocinho sem outra razão de ser exceto estar lá. Por um Punhado de Dólares é um magnífico ponto de partida, a invenção de um subgênero tão mais importante quanto parecia pressentir a decadência do faroeste americano (que substituiria por um bom tempo). É verdade que Sergio Leone faria melhor, a seguir (não tão melhor assim, em todo caso). Isso não diminui em nada o prazer desta revisão: Por um Punhado de Dólares é o luxo da mais pura, mais livre e mais talentosa imaginação. Dúvida entre Verdade e Mentira Define o Autor 10 de junho de 1994 Tudo em Orson Welles passava pela mentira. Vejamos a célebre história de A Dama de Shanghai. À beira da falência, Orson Welles ligou para Harry Cohn, o chefão da Columbia, dizendo que tinha uma ótima história. Que história?, perguntou Cohn. Junto ao telefone, havia uma banca que vendia livros de bolso. Chama-se A Dama de Shanghai, disse Welles, batendo os olhos ao acaso no romance de Sherwood King. Harry Cohn mandou o dinheiro de que Welles precisava, comprou os direitos do livro e o filme foi realizado. Quem conta o caso é o próprio Orson Welles. E qualquer um está no direito de perguntar se isso é verdade ou mentira. É tudo verdade – diria Welles. Porque é essa, precisamente, a ideia que pontua sua obra: a de que tudo é verdade. Orson Welles (1915 – 1985) não é o único a fazer da verdade o problema central de sua vida. A ruptura dos anos 1940, isso que se convencionou chamar modernidade em cinema, passa toda por aí: o falso e o verdadeiro, o real e o irreal. É possível que desde o nascimento do cinema ela tenha existido. Mas os cineastas que vieram do mudo eram dotados de uma espécie de inocência face àquilo que mostravam. Nos anos 1940, essa inocência é questionada e Cidadão Kane (1941) permanece como o ícone maior das mudanças que se verificam. Já não se trata de contar uma história, na tradição narrativa do mudo. Kane afirma a impossibilidade de contar uma história, de mostrar em imagens quem é um homem: Kane é um labirinto, seu mistério é inatingível. O mesmo com Orson Welles. A mais perfeita homenagem que se fez a ele vem de Brian De Palma. Em O Homem de Duas Vidas (1972), lhe deu o papel de prestidigitador: aquele que transforma o irreal em real, que dá consistência à falsidade. Em seu Verdades e Mentiras (1973/1975), Welles lança o espectador no centro desse redemoinho. Qual a diferença entre o pintor verdadeiro eo falsário, pergunta o filme. Nenhuma, desde que a falsificação seja boa. Ou antes: o bom falsário é um artista tão verdadeiro quanto o original. Orson Welles não era um farsante que teria se apossado da autoria de Cidadão Kane, como chegou a sugerir a crítica norte-americana Pauline Kael. Era, sim, alguém que tomava a farsa como questão e a arte como uma espécie de farsa. Todos os seus filmes consistem em negar a ideia do artista demiurgo, um quase Deus que organiza a matéria. Ninguém melhor para nos introduzir nessa ideia do que o inspetor Quinlan, de A Marca da Maldade (1958): se falta uma verdade para resolver um caso, ele cria uma. Mas essa falsa verdade interfere na realidade, transforma-a. Essas transformações mesmo acabarão por destruir Quinlan. Welles faz o papel de Quinlan no filme. Não por acaso: é um artista que debocha da arte e do ideal romântico do artista. Quinlan é ao mesmo tempo megalomaníaco e pobre coitado. Figura magnífica e bêbado. Sábio e idiota. Em síntese, um ator que conhecia muito bem a multiplicidade de papéis que um homem desempenha ao longo de sua vida. Mito e antimito, Quinlan resume Welles: tudo é verdade desde que exista. E tudo o que se pode transformar em imagem é real. Mesmo o sonho, a ilusão, o falso. Mortos Vivos Voltam para Aterrorizar 21 de julho de 1994 A NOITE DOS MORTOS VIVOS / Night of the Living Dead (1968), de George Romero Deveria haver uma diferença entre o filme de terror e filme de susto. Nessa segunda categoria está uma imensidão de produtos recentes que fazem de aparições inesperadas, associadas a figuras que, na falta de assombrar, impressionam pela feiura. Na primeira categoria, a dos filmes de terror, fica este formidável A Noite dos Mortos Vivos. A história é muito simples. Certa noite, pessoas que se encontram em uma casa distante, começam a ser atacadas por zumbis. Como combater esses seres? Uma das providências é saber o que ocorre no mundo. Descobrirão assim que os efeitos de uma operação espacial desastrada provocaram uma onda de radiação que atinge os cadáveres, reativando-lhes o cérebro e despertando-os para ser terríveis canibais. Daí por diante estão lançados os dados. O que devem os personagens fazer para enfrentar os monstros? Não há resposta. Ou, por outra, a resposta precisa ser buscada passo a passo, pois A Noite dos Mortos Vivos coloca o homem face ao desconhecido, na melhor tradição clássica, embora num registro atualizado. Com um ponto de partida tão forte, Romero não precisa dar-se ao trabalho de aplicar um susto sequer: a imprevisibilidade não vem de um truque sujo, de um uso extravagante da maquiagem. Ao contrário, por vezes acontece até de o espectador se antecipar aos fatos. Isso não significa que o filme seja previsível, nada disso, apenas que se move por uma lógica implacável, não raro cruel. É a partir dela (e de um grande talento) que Romero, com poucos meios, constrói uma atmosfera opressiva e aterrorizante, no sentido em que organiza o filme como uma representação de nossos mais profundos terrores. A Noite dos Mortos Vivos é uma obra-prima e um desses filmes que se podem qualificar como clássicos, sem fazer uso abusivo da palavra. Cineasta Iraniano Surpreende pela Sofisticação 17 de outubro de 1994 Quando a China era um furacão no universo do cinema, na virada dos anos 1980/1990, o nome de Abbas Kiarostami começou a surgir na Europa. A China, vá lá. O Irã era algo mais inesperado. O país havia passado, nos anos 1970, pela revolução dos aiatolás. Depois, por uma prolongada guerra contra o Iraque. Não era, até onde se sabia, uma cultura direcionada às coisas do cinema. Kiarostami foi uma dupla surpresa. De uma hora para outra, o cinema parecia ter ganho um novo Roberto Rossellini: E a Vida Continua, seu filme exibido na Mostra Internacional de Cinema em 1993, mostrava duas pessoas, pai e filho, procurando um sobrevivente do terremoto de 1990 no país. Talvez exista aí um duplo sentido. O terremoto é o que Kiarostami chama de ato de Deus, um fenômeno da natureza. Ao lado dele, há o destino das pessoas, de cada um dos implicados nos acontecimentos, a ruína dos que perderam parentes ou casas. Kiarostami não filma para denunciar. Nem a Deus, nem aos homens. Se alguém quiser ver nos destroços que filma uma metáfora das questões políticas no Irã, terá de fazê-lo por conta e risco. Ele não gosta nem mesmo de tocar no assunto. Seu cinema ajuda a desfazer o mito de um Irã meramente retrógrado, povoado de religiosos fanáticos. Quando mostra a metrópole, nos coloca frente a cidades desenvolvidas, congestionadas, turbulentas. Torna necessário aos ocidentais reconhecer que se trata, ao menos, de uma cultura desconhecida. A elegância de seus planos não tem nada a ver com um cinema inculto. Revela um perfeito domínio das imagens. Em 1994, Kiarostami, 65, voltou a Cannes, com Através das Oliveiras. Não levou a Palma de Ouro, mas novamente ganhou o reconhecimento dos cinéfilos. Nesse filme, trabalhou pela primeira vez com um ator profissional (Mohamad Ali Keshavarz), que fez o papel de um diretor de cinema. Seu problema com atores profissionais é que considera muito difícil uma pessoa virar outra. Ele acha que Keshavarz conseguiu essa proeza. Kiarostami gosta de filmar itinerários. O filme que mais o influenciou foi A Estrada da Vida, de Fellini. E a Vida Continua já era um road movie turbulento. Ao longo do trajeto em que o diretor de cinema procurava um jovem ator com quem havia trabalhado anteriormente. Essa intervenção do diretor não é narcisista. O diretor e o filme, seus trajetos e destinos, se identificam. Ambos percorrem o país à deriva, topando com estradas intransitáveis, casas destruídas, pessoas que sobrevivem à catástrofe. O diretor toma o rumo que o filme toma e vice-versa. A realidade os arrasta. Não uma realidade que preexiste ao filme, mas que se forma junto com ele. Esse caminho, Kiarostami percorre com elegância exemplar, sem nunca perder o sentido da beleza. Uma beleza cujo fundamento é o homem. Não se trata de um retorno puro e simples ao Neorrealismo italiano. Mas a herança de Rossellini, de um cinema essencial, em que só se filma o necessário e em que se transita da realidade física do homem para a espiritual, estão lá. Ninguém tenha dúvida: Kiarostami não é um desses meteoros exóticos, que fazem estilo, jogam poeira nos olhos do espectador e desaparecem sem deixar sinal. É um diretor de cinema grande, simples. A retrospectiva com seis de seus filmes será, com toda certeza, um dos pontos altos da Mostra Internacional deste ano. Ford Compõe a Maior Tragédia do Oeste 20 de outubro de 1994 RASTROS DE ÓDIO / The Searchers (1956), de John Ford É difícil imaginar um modo melhor de abrir o ciclo de clássicos reconstituídos da 18ª Mostra: Rastros de Ódio é hoje uma unanimidade mundial. O melhor John Ford. Um dos melhores faroestes de todos os tempos. É verdade que já foi muito visto em TV ou vídeo. No cinema é outra coisa. Desde o momento em que Ethan Edwards (John Wayne) chega à casa de seu irmão, voltando da Guerra de Secessão, um clima de cisão, de coisa fraturada parece se estabelecer. Não demora até que seu irmão e a cunhada sejam massacrados pelos índios. As duas sobrinhas são raptadas. Resta a Ethan, vendo seu sangue destruído, a enorme solidão e uma determinação de ferro, que o levará a correr o Oeste, anos a fio, em busca das garotas (sobretudo de Debbie/Natalie Wood, que ele sabe estar viva). Para que a solidão seja mais completa, ele tem a companhia do jovem Martin (Jeffrey Hunter), mestiço que ele odeia pelo simples fato de ser mestiço. Amargo, Ethan seguirá em busca de seu sangue. Esse o centro do filme: a identificação de um ho mem com o grupo familiar, que o constitui, mas também o isola. Assim como mostra seu personagem por inteiro – belo e detestável –, Ford enuncia a dilaceração que marca a própria conquista do Oeste, a contradição que faz do confronto entre brancos e índios uma verdadeira tragédia. É o ponto de virada da obra fordiana. Se desde os anos 1920 cantou em prosa e verso a ampliação do território dos EUA pelo avanço ao Oeste, se mostrou tantas vezes a maneira como os pequenos personagens, seus heróis anônimos, contribuíram para construir uma nação, Rastros de Ódio enuncia o negativo dessa épica. A fusão entre o branco e o índio, o simples contato que pode se estabelecer entre eles, é a circunstância em que a tragédia se mostra em sua plenitude. A destruição está em toda parte, nos atos como na organização mental (insanidade, por vezes) dos protagonistas. Filme de maturidade, Rastros de Ódio sabe melhor do que nenhum outro associar o deserto e o estranho desenho de Monument Valley à aridez de um Ethan que, após fazer história (na Secessão), agora é a encarnação dos impasses dessa história. John Woo Cria Sonho de Imagens Violentas 24 de outubro de 1994 FERVURA MÁXIMA / Lat Sau San Taam / Hard-Boiled (1992), de John Woo Fervura Máxima chega ao Brasil na confortável condição de mito. É um dos filmes que lançaram internacionalmente a carreira de John Woo, chinês de Hong Kong que já se instalou em Hollywood e deu novo fôlego à carreira de Jean-Claude Van Damme com O Alvo. No mais, a mitologia é justificada. Woo trabalha num quadro de gênero (o filme policial de violência), do qual tira todas as consequências. Aqui, um policial impulsivo e durão (o hard boiled do título original) dispõe-se a enfrentar sozinho uma gangue de contrabandistas de armas. Aliás, o filme já começa com um tiroteio memorável no interior de um restaurante, no qual Woo exerce sua capacidade coreográfica. Não é uma questão de tiros ou de mortes (embora elas aconteçam às pilhas), mas de uma dança finíssima, em que personagens, extras, câmera se movem como se o ruído do tiroteio fosse música. O que vem a seguir não desmente o início: a guerra de gangues; alguém que tira o revólver do interior de um falso livro (um volume das obras de Shakespeare) e fuzila o traidor; novas carnificinas. Seguem-se: traições e histórias de jogos duplos, súbitas rupturas, depois um quase sossego. Em cada um desses movimentos nota-se a mão de um diretor que detém o pleno controle tanto do roteiro rocambolesco como dos elementos em cena. Como isso acontece, concretamente? Alternâncias de ritmo brutais, que fazem o filme ora correr rápido como um sonho, ora ralentar e chegar próximo ao realismo. Mas, quando parece ter chegado a esse registro, um novo sobressalto: no meio de uma sequência, Woo congela a imagem por um breve instante, volta a movimentá-la em seguida. Depois, uma sequência de explosões. Nada a ver com o standard do cinema americano: são explosões estéticas. É como se nesses momentos (e tantos outros), a ideia de sonho comandasse o espetáculo. Mas não o sonho clássico, que se pode assimilar ao cinema clássico. Fervura Máxima de certo modo reflete sobre a ideia de sonho cinematográfico: o espetáculo ilusionista de certa forma decompõe-se diante dos olhos do espectador, submetido a um arsenal vastíssimo de recursos cênicos. Um erro de continuidade é sintomático dessa opção. A horas tantas, um personagem mergulha na água com o paletó de uma cor, sai logo em seguida vestindo um paletó de outra cor. Pode ter sido mesmo um erro. Mas o espectador o percebe naturalmente, da mesma forma como nos sonhos as coisas se transformam magicamente e ao mesmo tempo são percebidas naturalmente. Haveria muito a dizer sobre a maneira como John Woo trabalha a percepção, distorcendo as imagens ou multiplicando os seres envolvidos numa ação quase ao infinito. Num primeiro instante, porém, o que se deixa registrar é o filme de um dos cineastas mais sofisticados em atividade no momento. Ford Analisa Lenda Americana 25 de outubro de 1994) O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA / The Man Who Shot Liberty Valance (1962), de John Ford Um dia, durante as filmagens de O Homem que Matou o Facínora, John Ford perguntou a James Stewart o que achava das roupas do personagem interpretado por Woody Strode. Stewart torceu o nariz. Ford não perdeu a pose. Disse ao ator que ele mesmo tinha desenhado os trajes. Stewart percebeu a gafe, mas a coisa não ficou por aí. Ford reuniu a equipe e, em altos brados, contou a todos que Stewart não gostava das roupas de Woody Strode. John Wayne, que já conhecia o diretor de trás para frente, explicou então a Stewart que o melhor era aguentar, que Ford era assim mesmo. A história, contada por Peter Bogdanovich (e aqui miseravelmente resumida), dá conta da personalidade do diretor, famoso por sua afabilidade com os atores coadjuvantes e com a equipe e pela ferocidade com que tratava suas estrelas. Mas também explica muito sobre o filme. O Homem que Matou... é a história de um senador que volta à sua cidade de origem para os funerais de um desconhecido pistoleiro (John Wayne). O senador tornou-se famoso por ter eliminado o temível pistoleiro Liberty Valance. Ele mesmo se encarregará de mostrar que as coisas não se passaram bem assim. As diferenças entre um homem culto e corajoso, porém sem nenhuma intimidade com o revólver, e um outro, obscuro bamba no gatilho, fazem o encanto do filme. Na verdade, são dois opostos necessários que se fundem numa só lenda, como se Ford dissesse, em um nível, que a construção dos EUA passa por uma espécie de fusão entre as duas personalidades. Mas, como na história de filmagem contada acima, a preferência do diretor fica com o herói anônimo, para ele o verdadeiro responsável pela edificação da América. No final da história, os jornalistas concordam que, entre a lenda e a realidade, deve-se imprimir a lenda. Mas não é bem essa a conclusão do filme. Ele manda imprimir a lenda, mas o que expõe aos espectadores é a realidade, o que efetivamente aconteceu. É um filme que de certo modo ilustra bem a trajetória de John Ford. O diretor chegava ao final de sua carreira e faz um filme reflexivo sobre seu país e sua obra (que até certo ponto se confundem). É o momento em que o maior edificador do mito americano no cinema cruza o fato e a lenda, aquilo que se passou e aquilo em que se acredita. É um registro de certo modo próximo a Orson Welles, de certo modo oposto. Welles procede como se retirasse camadas para chegar à verdade. Ford, ao contrário, superpõe apreensões diversas do mesmo acontecimento para apreender sua verdade. Rio Bravo Volta à Tela Grande 26 de outubro de 1994 ONDE COMEÇA O INFERNO / Rio Bravo (1959), de Howard Hawks A primeira vez que a filha, Barbara, ouviu-o dizer que a amava, ele estava no leito de morte. Barbara começou a chorar. O pai a interrompeu com um corta essa. A cena não é de nenhum filme de Howard Hawks: era ele em pessoa que estava morrendo. Mas quem conhece seu cinema sabe que as pessoas também morriam e amavam assim em suas histórias. Fiquemos um pouco no amor, mesmo porque em Rio Bravo/Onde Começa o Inferno, sendo um faroeste, as pessoas morrem a bala, sem tempo para conversa. Ali, a bela jogadora Feathers (Angie Dickinson) passa o tempo atrás do xerife John T. Chance (John Wayne). Enquanto isso, John T. (com T de tormento, ela dirá) tenta curar o porre de seu exassistente Dude (Dean Martin), a fim de combater uns tantos bandidos. Hoje, a Mostra oferece a oportunidade de ver este filme em tela grande (ele existe em vídeo e passa em TV). É um desses momentos que justificam o evento. Ao longo do filme, Feathers espera ouvir justamente isso de Chance: que ele a ama. Compreenderá que o xerife tem maneiras estranhas de dizer essa frase bem simples. Ou, por outra, o que Hawks faz é justamente demonstrar o quanto essa frase é complexa. E o quanto a irrupção do desejo pode ser um fenômeno de maturação lenta, que acontece à revelia da vontade de cada um, enfrentando inúmeras resistências. No caso de Chance, a principal resistência é mais ou menos a mesma de todos os filmes de Hawks: primeiro, a mulher é um acontecimento indesejado na vida do homem, na medida em que desorganiza uma ordem masculina construída em torno do trabalho. O trauma de Chance, assim como o de tantos personagens masculinos hawksianos, diz respeito a uma mulher que, no passado, o abandonou por não entender sua profissão. Aqui, entra o mais polêmico aspecto da filmografia de Hawks, para muito construída em torno da masculinidade. É uma meia-verdade. O que Hawks constrói, plano após plano, é a tensão entre o masculino e o feminino. Nesse sentido, talvez seja o primeiro ou, em todo caso, o cineasta que mais profundamente percebeu a mulher moderna. A companheira de Chance é, ela também, uma profissional, que se integra à vida do homem, mas não renuncia à sua. Ela o entende e o força a entendê-la. É claro, este é apenas um aspecto entre os muitos deste que é um dos melhores faroestes de todos os tempos, feitos por esse diretor que, não sem razão, Godard chamou um dia de o maior artista americano do século. John Wayne Desce aos Infernos 20 de dezembro de 1994 RASTROS DE ÓDIO / The Searchers (1956), de John Ford Em seu 1.001 Noites no Cinema, Pauline Kael descreve Rastros de Ódio como um filme formal e afetado. Ela chama a atenção para a porta que emoldura o Ethan Edwards (John Wayne), que seria uma das marcas dessa afetação. É um ponto de vista idiossincrático e, ao longo de seu texto, a crítica norte-americana não cansa de atribuir ao filme o que julga defeitos do persona-gem, tais como ser grosseiro e machista. Ethan também é racista: detesta índios e, se agride em tempo integral Jeffrey Hunter – o jovem que o acompanha anos a fio na busca da sobrinha sequestrada pelos índios – é porque ele é um mestiço. Bem, Ethan não é um cavalheiro de salão. É um ser amargo, um solitário completo, cuja única ligação no mundo são as pessoas massacradas durante sua ausência. Todo o seu trajeto – de uma obstinação exemplar – consiste em buscar as marcas vivas de seu sangue, sua ligação no mundo. O que parece desagradar especialmente a Kael é um aspecto evidente: embora Ethan seja John Wayne, está muito longe de se assemelhar a qualquer coisa que se possa chamar de herói. E um dos méritos de John Ford no filme é justamente introduzir na mitologia do Oeste esse homem com muito mais fraquezas do que virtudes. De certa forma, seu heroísmo consiste em ir ao extremo da vida, descer ao inferno de si mesmo e voltar com uma centelha de vida, em transformar o negativo em positivo, a morte em vida. É um filme que se afasta dos padrões hollywoodianos, de seus clichês, em cada imagem. E que também parece apontar os limites do método crítico de Pauline Kael: o conteúdo nem sempre está onde finge estar. Arquitetura Disseca os Ideais do Nazismo 6 de janeiro de 1995 ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO / Undergångens Arkitektur / The Architecture of Doom (1989), de Peter Cohen Conhecemos o nazismo pelos seus efeitos: a guerra, os campos de concentração, o genocídio – em suma, um período de trevas sem precedentes na História. Conhecemos bem menos seus fundamentos. É sobre eles que trabalha este documentário realizado pelo diretor Peter Cohen. Cultiva-se a ideia do nazismo como decorrência da história alemã (a derrota na 1ª Guerra, a crise que se seguiu a ela, o orgulho nacional ferido). Admitese, então, que um grupo de dementes tomou o poder em 1933 e promoveu as anomalias que se poderiam esperar dessa categoria de pessoas. Mas essas explicações têm caráter pleonástico. Um acontecimento histórico (a derrota na 1ª Guerra) torna-se justificativa de outro; a demência justifica a demência. Peter Cohen aborda a questão por outro ângulo. Procura entender como raciocinavam Hitler e seus seguidores, a partir da missão que se atribuiu o nazismo: embelezar o mundo. Não é um ponto de partida inédito. Sabe-se que Hitler tinha a obsessão de regenerar a Alemanha – e a Europa – a partir dos conceitos de beleza e saúde. A demonstração, ao contrário, é. Cohen evita a costumeira identificação entre Hitler e o mal. Ao contrário, o paradoxo nazista, para ele, é: como conceber um mundo dominado pelos ideais de beleza e saúde e chegar aonde chegou? Para bus-car uma resposta convincente, o diretor revirou arquivos em toda a Europa, EUA, Israel. Aqui, entra o papel das imagens. Conhecem-se muitas ideias de Hitler: seu culto à Antiguidade, o temor do caos (representado pela arte moderna), a alergia ao que considerava degeneração (doenças mentais, sobretudo). Mas como elas constroem um pensamento político, um sistema de crenças? Como, enfim, arquitetam a destruição? É a isso que só as imagens podem responder. Basta ver artistas, médicos, arquitetos com uniformes militares (bem antes da guerra) para entender o caráter nefasto da proximidade entre arte, ciência e poder. Mas, como também é insidioso, esse caráter se evidencia sobretudo na propaganda produzida pelo nazismo. Cohen justapõe essas peças: uma exposição de arte purificada e outra de arte degenerada, um documentário sobre os efeitos tenebrosos da miscigenação (difundia-se a crença de que ela era responsável por deformações e criava-se disposição favorável à eliminar essas vítimas do passado) e outro conclamando a população a confiar em seus médicos. Mais adiante, confrontam-se as ruínas de Atenas aos projetos arquitetônicos de Albert Speer. À medida que se acumulam, as imagens criam um retrato do Reich, não a partir do que nós possamos pensar, e sim a partir de como ele idealizava o mundo. Desse ponto em diante, o horror nazista, a maneira como soube difundir-se insidiosamente entre os alemães, começa a surgir aos nossos olhos menos como uma anomalia do que como uma concepção das coisas que logo se transfigurava em percepção particular dos fenômenos. Daí a propor a extinção dos judeus, a volta da escravatura, a eliminação de civilizações inteiras é um passo. E essas ideias não se tornam menos monstruosas só porque se mostram em seu funcionamento sistemático. Ao contrário. É quando mostra a sua face humana (as exposições de arte com idílicas cenas campestres) que o nazismo é mais tenebroso. Nos faz lembrar que os caminhos do mal são bem menos lineares do que tendemos a acreditar. Pior, que não existe um nazismo morto e exorcizado. Ele foi um fenômeno cotidiano, em certos aspectos ameno, quase delicado. Expor essa natureza e os perigos que traz – para o futuro –, fazê-lo com clareza e inteligência são aspectos que tornam Arquitetura da Destruição um trabalho documental e histórico primoroso. Sábado Observa Contradições do Brasil 7 de abril de 1995 SÁBADO (1995), de Ugo Giorgetti A melhor sequência de Sábado talvez seja aquela em que a mulher do zelador (Luiza Helena), após descobrir algumas relíquias preciosas, pertencentes a um antigo nazista, atira pela janela fotos, papéis e até uma condecoração de guerra. É uma cena curta e um dos momentos de atriz mais memoráveis do cinema brasileiro nos últimos anos: ela consegue transmitir, ali, a mistura espantosa de ignorância e autossuficiência que define, em um nível, o olhar que Ugo Giorgetti lança ao Brasil em Sábado. Trata-se de mostrar um país ineficiente, atabalhoado, boçal, incapaz de decifrar os signos culturais elementares. Quase sempre, também, predisposto a jogar o tempo (e outras riquezas) pela janela. Nem por isso o filme é expressão de um desses brasileiros que renegam o País para alardear as virtudes de, digamos, Miami. Seu esforço em cap-tar essas características nos gestos cotidianos dos diversos personagens de Sábado não tem também a intenção de fazer um papel de polícia e juiz das coisas. É como se dissesse: isto acontece; pense o que achar melhor. Mas esse não é o aspecto central do filme, que se passa em um antigo edifício da região central, onde uma equipe de cinema faz um comercial para a TV. Nesse nível, o da trama, Sábado contrapõe um Brasil real (esse da boçalidade) ao imaginário criado pelos anúncios. Os anúncios estabeleceram, como se sabe, a ideologia do glamour, da perfeição, das coisas que funcionam. Elas não supõem fracasso e depressão nem no conteúdo (a conquista amorosa é sempre bem-sucedida, graças a tal ou tal produto), nem na forma (os filmes não admitem defeito). Essa oposição entre real e imaginário é propícia a acertos de contas. Mostrar a realização de um comercial todo certinho e colocá-lo em oposição a uma realidade bem mais áspera poderia ser uma maneira de criticar a artificialidade dos comerciais de televisão. Ainda uma vez, porém, Giorgetti suspende o juízo, quase como um zen-budista: o comercial está lá porque está, é da ordem das coisas e pronto. No entanto, resta esse abismo desconfortável entre duas instâncias que não se conectam: o real vai para um lado, o imaginário para outro. Eventualmente, elas se cruzam dramaticamente. Por exemplo, quando o elevador em que viajam uma diretora de arte pernóstica (Maria Padilha), um cadáver, dois funcionários do Instituto Médico Legal (Otávio Augusto, Tom Zé) e um gordo que só ia comer um churrasco com uns amigos do prédio (André Abujamra). Começa então a convivência obrigatória – que atravessa o filme inteiro – entre seres desiguais e diferentes, forçados a partilhar um mesmo espaço. É esse o quadro escolhido por Giorgetti para situar o problema que mais parece interessá-lo: o tempo e seu escoamento. O filme se passa num sábado, que é uma mistura de feriado e dia útil. Nesse dia (e na situação descrita acima) colocam-se urgências exasperantes, como a necessidade de terminar as filmagens ou de consertar um elevador. Paralelamente, obstáculos colocam-se a esses objetivos e produzem o desperdício de tempo. Giorgetti insere aí tanto o ganho engendrado pela perda (a conversa, o humor, a troca), como a monumental perda gerada pela eficiência (o comercial resulta, no fim, uma futilidade). É nesses paradoxos que Sábado baseia seu encanto de filme que não tenta impressionar com brilharecos. Traz, em troca, uma vivência e um olhar bem paulistanos, ao juntar no mesmo espaço experiências contraditórias, opostas, em que dois brasis se espelham e se interrogam. É um filme de humor inquieto, que assume seus riscos e sabe administrá-los. Só Se Vê um Filme com os Próprios Olhos 10 de maio de 1995 Eu tinha 9 anos e escutava a conversa dos mais velhos quando uma moça perguntou aos adultos presentes como era possível se fiar nos críticos de cinema se, num jornal, ela lera que um filme era absolutamente notável e, em outro, que era perfeitamente intragável. A resposta já não interessa. O fato é que essa moça exprimia sua perplexidade num momento, os anos 1960, em que em que se tornava corriqueiro entre nós o ritual de consultar os críticos antes de ir ao cinema. o cinema não é uma ciência, por isso é natural que Se fosse possível dar uma resposta óbvia, ela seria: as pessoas pensem coisas diferentes – até opostas – diante de um filme. Mas seu questionamento vai mais longe. O cinema e sua crítica até hoje suscitam paixões que não têm paralelo, digamos, na literatura. Os parâmetros para avaliar um escritor são infinitamente mais claros do que para julgar um cineasta. Gosta-se mais ou menos de Joyce ou de Proust. Mas suas virtudes estão de tal modo estampadas em seus textos que não podemos ignorá-las. No cinema, ao contrário, todas as tentativas de criar normas de como um filme deve ser tendem a se tornar ultrapassadas rapidamente. A importância dada pelos russos à montagem hoje parece tão arbitrária quanto as restrições de André Bazin à mesma montagem. Ninguém pode dizer que o certo seja empregar o foco forçado de Gregg Toland ou não. Que o Hitch-cock certo está nos planos-sequência de Festim Diabólico ou nos muitos planos em que Anthony Perkins retalha Janet Leigh em Psicose. Da mesma forma, esta lista da Folha com os melhores filmes escolhidos por cem críticos não é um absoluto. Como disse o italiano G. C. Argan, o prazer proporcionado por uma obra é tanto subjetivo como objetivo, remete tanto à experiência pessoal quanto à história da própria arte. No cinema, a fronteira entre essas duas instâncias é mais fluida que nas outras artes. O próprio fato de apresentar imagens reais às vezes parece tornar irreconhecível aquilo que, paradoxalmente, se mostra em toda a sua evidência. Daí a experiência do cinema ser mais íntima e a mais pública. Pede conversa, troca de ideias, o bar depois do filme, mas é de certa forma intransmissível. Integra a história, mas, de algum modo, a rejeita. Cria, com igual desenvoltura, o entendimento e o mal-entendido. A isso, todos estão sujeitos. E talvez por isso o último dos conselhos dados por François Truffaut aos cineastas seja o mais importante: não aceite conselhos. Poderia ter acrescentado: mas escolha sua tribo. Este é, de algum modo, o subtexto desta lista. Só se vê um filme com os próprios olhos. Ganga Bruta Mostra Homem Integral 5 de julho de 1995 GANGA BRUTA (1933), de Humberto Mauro Estranho destino, o de Ganga Bruta. Levou mais de dois anos para ser filmado. Quando ficou pronto, o som, gravado no sistema movie-tone (em que a sincronização era feita por meio de discos), já era uma antiguidade. Assim, não é de espantar que as plateias tenham torcido o nariz. Nem que Henrique Pongetti tenha chamado Humberto Mauro (1897 – 1983), desdenhosamente, de Freud de Cascadura. A história diz respeito a Marcos (Durval Bellini), um engenheiro que, na noite de núpcias, mata a mulher (Lu Marival). Absolvido, vai para o interior, onde cuida da construção de uma fábrica. Lá, conhece Sônia (Dea Selva), adolescente, cheia de manhas e, no mais, noiva de Décio (Décio Murilo). A crítica de Henrique Pongetti era de uma crueldade absurda, cujo objetivo na verdade era atingir o produtor Adhemar Gonzaga. Mas num ponto ele tinha razão: o argumento de Ganga Bruta cabe em uma caixa de fósforos. Isso não desqualifica o filme. Ver Ganga Bruta a partir de sua história é mais ou menos a mesma coisa que ver uma natureza morta a partir das frutas que a compõem: simplesmente não tem fundamento. A ideia do Freud de Cascadura, entretanto, faz sentido apesar de sua maldade exemplar. O primeiro ponto de interesse do filme – o mais evidente – é a óbvia conotação erótica. Basta olhar a vegetação, que carrega o esplendor da sexualidade feminina. Ou as imagens da fábrica em construção, que investem nas linhas verticais de maneira despudorada, a significar o masculino (em ereção). Esses elementos tão freudianos servem de quadro, na verdade, para as reinações de personagens lançados no que há de mais primitivo dos seres. É estranho como Mauro, um cineasta delicado, conseguia transitar entre a construção sofisticada de seus personagens e esse primitivismo radical: pula-se do reino da cultura para o da natureza sem qualquer cerimônia. Da mesma forma, pula-se de um ambiente burguês para uma briga de bar (antológica, por sinal). Num instante, estamos em plena sublimação. No outro, puxa-se a faca. Ganga Bruta é um filme do Brasil. O atraso tecnológico é sua marca indelével. É um filme em que os personagens querem falar, em que a a própria linguagem já pede o sonoro, mas aí entra o primitivo sistema movie-tone. Ao mesmo tempo, existe uma explosão de talento tão evidente que compensa essas dificuldades. O homem que Mauro vê neste filme é algo que se poderia chamar de integral: o melhor e o pior dele, o sublime e o deletério, o afetivo e o sádico, como se todo o tempo, nesses seres, a vida e a morte travassem um duelo que, na tela, eclode no esplendor da violência. Jerry de Terror É Vanguarda 24 de julho de 1995 O TERROR DAS MULHERES / The Ladies Man (1961), de de Jerry Lewis O Terror das Mulheres é, em parte, a quintessência de Jerry Lewis. Ou, quem mais seria possível imaginar-se na seguinte situação: um rapaz tem uma decepção amorosa e adquire verdadeiro horror às mulheres. Mas, quando parte em busca de emprego, acaba conseguindo-o numa pensão só para moças. E não quaisquer moças. São belas e alegres candidatas a atriz, das quais Jerry será o servente. Se isso é motivo para uma série de gags de primeira, o Terror se afirma sobretudo como filme reflexivo. Por que não poderia ser? O trauma amoroso não é necessariamente assunto para gênios tipo Ingmar Bergman, o sueco. E, vamos convir, Jerry não passaria vergonha frente a Bergman, ou qualquer outro, graças a um invento notável: o cenário teatral que introduz no filme e que, numa tacada, revela o que acontece em uma série de cômodos na pensão (o achado foi reaproveitado recentemente, de resto, pelo argentino Alejandro Agresti). Se, com frequência, Jerry desdobra seus personagens, desta vez empenha-se em desdobrar os espaços. É como se, ao fazê-lo, tornasse as garotas – essas viscerais inimigas – mais tentaculares, mais onipresentes. Fazendo assim, Jerry trabalha o amor (mesmo que negativo) como princípio, a simultaneidade por base e a desordem por fim. É um filme de humor, um filme acessível a qualquer público e, também, um filme que mostra bem como Jerry estava, naquele momento, na vanguarda do cinema norte-americano. Godard Faz Autorretrato de Dinossauro 20 de outubro de 1995 JLG POR JLG – AUTORRETRATO EM DEZEMBRO / JLG / JLG – Autoportrait de Décembre (1994), de Jean-Luc Godard Jean-Luc Godard já foi o cineasta da modernidade, o revolucionário da linguagem, o enfant terrible que mudou a cara do cinema mundial. Como os anos 1960 estão cada vez mais distantes, todas essas imagens um tanto vagas, com cheiro de lugarcomum, agora parecem peças de museu. Godard, hoje, é apenas um fantasma incômodo no reino de Spielberg. Godard parece saber disso muito bem. JLG por JLG – Autorretrato em Dezembro não foi feito no torvelinho parisiense, mas na solidão de uma Suíça que parece mais um lugar de exílio. De solidão. O inverno: Godard percebe muito bem que não há mais lugar para ele neste momento de indústria cultural triunfante. Excludente. Resta-lhe o direito de morrer gritando e afirmar ainda uma vez o direito de fazer cinema sem concessões, como um artista. Este é, em boa parte, o significado do prêmio Theodor W. Adorno que lhe foi concedido neste ano na Alemanha. Este é também o ponto central da reflexão que se desenvolve em JLG por JLG. Existe a regra, diz Godard. A regra é tudo: a guerra, o turismo, as camisetas. E existe a exceção. A regra é a cultura. A exceção é a arte. E a regra quer por natureza, sustenta Godard, a morte da exceção. Pode-se pensar em um autorretrato paranoico. Não é verdade. JLG por JLG é uma espécie de manifesto discreto contra a mitologia do Godard incompreensível que se instalou na cultura cinematográfica de alguns anos para cá. Godard não é incompreensível. É, antes, um artista que rejeita os sentidos dados, que identifica com a tirania. Mas, se seguirmos sua obra, poderemos ver – longe de simbolismos obscuros, tão frequentes no cinema de arte – uma clara postulação documental. Ano a ano, ali estão expostas as modas, as ideias, as angústias daquele momento. Nada obscuro. Como aqui, em JLG por JLG, é presente a preocupação com o poderio americano (não só no cinema), com os sistemas de identidades que – mesmo quando se postulam democráticos – impõem um sentido obrigatório às coisas. Nesse sentido, Godard é um dinossauro para quem a arte é o negativo da cultura, a exceção que desmonta as expectativas, ousa, experimenta. Por esse lado, também, JLG por JLG pode ser visto como mais um filme difícil. É quase impossível não se deixar levar – a cada novo filme do cineasta – por uma espécie de nostalgia. Ou pela frustração de não estarmos vendo um novo Viver a Vida ou O Desprezo, ou Alphaville. Mas é uma frustração que se pode reverter – sem sofrimento, até com prazer. Primeiro, é bom lembrar que esses filmes continuam vivos. Em seguida, basta não embarcar na viagem de JLG por JLG como o usuário que compra seu ingresso e quer ver, na tela, o valor desse dinheiro. Quanto a isso, Godard é jacobino. O que aparece na tela é o filme não-mercadoria. Seu valor é de uso, não de troca. Isto posto, o cineasta nos coloca diante de uma sucessão de imagens límpidas, belas (como as dos anos 1960), em que faz seu autorretrato não autobiográfico. São imagens invernais, saturadas de uma solidão que não surge ali como forma de piedade, mas como constatação: é o negativo, de onde sai o positivo. É o Inverno, mas nem sempre: há, ali, também, um anúncio de Primavera. Godard não está morto. O Pirata Põe Teatro de Minnelli em Ação 8 de novembro de 1995 O PIRATA / The Pirate (1948), de Vincente Minnelli O Pirata de certa forma resume as ideias de Vincente Minnelli sobre a arte e o cinema. Para tanto, basta conferir, em linhas gerais, sua trama. Manuela (Judy Garland) é uma garota das Caraíbas que vive sonhando com a hipótese de ser raptada pelo pirata Macoco. Quem aparece na ilha é o comediante Serafin (Gene Kelly). A fim de melhor seduzir a garota, Serafin se faz passar pelo pirata em questão. Essa interferência do espetáculo na vida é frequente em Minnelli, como assinalou Martin Scorsese no episódio norte-americano da série Cem Anos de Cinema, que a Rede Manchete está apresentando aos domingos. Interferência não é bem a palavra: trata-se dessa propriedade do espetáculo de apropriar-se da vida, tomando o seu lugar. A palavra absorção aplica-se melhor ao caso. Essa operação não implica sujeição de uma pela outra. O espetáculo é sublimação da própria vida, sua transformação em arte. Daí, Serafin ser a encarnação dos sonhos da garota. Só essa encarnação fazia sentido, já que entre o pirata real e a ideia que ela se fazia há léguas de distância. O comediante e o espetáculo expressam, assim, uma verdade bem mais profunda do que a proposta pela realidade. Com isso, transitamos do escapismo (que é, teoricamente, o destino dos musicais) a uma notável reflexão sobre o ser e suas ilusões, a realidade e suas mutações. O estágio teatral das coisas, longe de meramente protocolar ou convencional, é algo que agrega ao vivido uma reflexão. Dessa reflexão nasce a possibilidade de transformação das coisas. No caso, o comediante usurpa a identidade do pirata para, num terceiro momento, poder ser ele mesmo. E Judy, de garota sonhadora a iludida (pelo comediante), enfim torna-se mulher. É, no mínimo, exemplar. Iraniano Através das Oliveiras Vence Má Copiagem 15 de novembro de 1995 ATRAVÉS DAS OLIVEIRAS / Zire Darakhatan Zeyton / Through the Olive Trees (1994), de Abbas Kiarostami De início, há uma perda. Em vídeo, Através das Oliveiras não é o mesmo que na tela grande. Em seguida, a imagem da edição brasileira (ao menos a das cópias que chegaram à imprensa) é um fantasma do que o filme mostra. Essesinconvenientesprejudicam seriamente trabalhos que têm a exatidão como princípio. É o caso, também, em que se encontram os filmes de Abbas Kiarostami. Há um terceiro obstáculo ao prazer de assistir a este filme, no mais notável. Kiarostami desenrola suas histórias um pouco à maneira de Sherazade. Primeiro, ele fez Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, que era a história de dois meninos, alunos de uma escola no norte do Irã. Em 1990, houve um grande terremoto na região. Kiarostami filmou então E a Vida Continua, em que um cineasta e seu filho partem em busca de sinais de vida dos dois jovens atores do filme anterior. Através das Oliveiras, de 1994, retoma uma ramificação do trabalho anterior. Aqui, vemos um diretor de cinema escolher atores para um filme (E a Vida Continua, justamente). Ele encontra um rapaz e uma moça que farão o papel de marido e mulher. Na vida real, porém, os atores têm um problema. Eles se amam, mas são de classes sociais diferentes. Ou seja, a moça sabe ler e tem casa; o rapaz é analfabeto e mora em uma tenda (sua casa foi destruída pelo terremoto). O amor entre os dois é interditado por regras segundo as quais o homem e a mulher devem pertencer a uma mesma classe social para poderem se casar. Mas uma grande tensão atravessará toda a narrativa, em torno de uma questão: cederá ela aos apelos do jovem ou não? Ora, essa é em larga medida uma falsa (embora bela) questão. Na verdade, o trabalho cinematográfico de Kiarostami consiste em acoplar dois níveis de realidade: o da representação (o filme que está sendo rodado) e o da realidade (a história dos apaixonados). Esse segundo nível não é tão inocente quanto possa parecer. O que chamamos de realidade já é – no momento da filmagem – uma nova ficção. O cinema, parece nos dizer Kiarostami, está condenado a nunca chegar à realidade, por mais realista que seja. Mas, se a realidade referencial (exterior ao filme) sempre escapa, existe uma outra hipótese: a de construir uma realidade a partir do diálogo entre esses referenciais e o que se produz diante das câmeras. Em suma, é ao remeter uma à outra que Abbas Kiarostami articula um jogo de espelhos que não será exagero chamar de magistral. É na medida em que põe em dúvida o estatuto do cinema como arte capaz de captar a realidade que o autor iraniano se eleva ao ponto mais alto desta arte e se afirma como um dos grandes (talvez o maior) cineastas contemporâneos. Em Através das Oliveiras, num primeiro momento o cinema é colocado nesse espelho. No instante seguinte, é o espectador que se vê refletido nas imagens que correm à sua frente. Essa arte de espelhar a realidade e de criar, a partir da duplicação dos seres, um novo estado das coisas, é a contribuição maior de Kiarostami. É o que leva o espectador a esquecer até as deficiências da tela pequena e da copiagem em vídeo. Existe, ainda, uma outra questão. Ao colocar a tensão que atravessa as relações entre os namorados, Kiarostami está, obviamente, falando do Irã. Falando da tensão entre a tradição (casamento arranjado, impermeabilidade de classes sociais) e uma modernidade possível. Esse viés com certeza interessa menos ao espectador brasileiro. Mas, pela arte que ali está implicada, interessa muito mais do que nada. Belle de Jour Ganha Cópia Nova 26 de abril de 1996 A BELA DA TARDE / Belle de Jour (1967), de Luis Buñuel Em Belle de Jour, Luis Buñuel aboliu os ataques à burguesia, o deboche contra a religião, as ideias libertárias, a reflexão sobre o desejo, um relativo desleixo com a estrutura. Tudo o que constitui o conhecido ideário desse grande cineasta sai de cena. Mas é possível que nenhuma de suas ideias tenha sido desenvolvida de forma tão clara, contundente, livre e até mesmo radical quanto neste filme. Daí sua revisão nos colocar diante de um produto de uma atualidade que 99% dos filmes feitos recentemente invejam. O que é, enfim, Belle de Jour? É o ato de despir uma mulher: a frígida Séverine (Catherine Deneuve), casada com um médico gentil (Jean Sorel) com o qual não se relaciona sexualmente. É por conta disso que termina em um bordel, com o nome de Bela da Tarde. O nome não é inocente. Entramos numa variante de A Bela e a Fera, com a diferença de que Deneuve faz os dois papéis: convivem nela toda a fria doçura da cultura (da repressão) e a animalidade de suas fantasias. E o que Buñuel faz – com uma contenção e um sentido de estrutura que a maior parte de seus filmes despreza – é, lentamente, despir essa mulher. Tira-lhe não propriamente a roupa, mas a carapaça que a protege, ao mesmo tempo, do contato com o outro e consigo mesma. Nesse sentido, continua o filme mais sem-vergonha jamais feito. A Malvada Descreve Mundo de Aparências 21 de junho de 1996 A MALVADA / All About Eve (1950), de Joseph L. Mankiewicz Uma feliz coincidência faz com que o clássico A Malvada reestreie enquanto ainda está em cartaz o filme mais demolido do ano, Showgirls. Explica-se: o crítico Anthony Lane, da The New Yorker, percebeu com muita pertinência que Show-girls é a refilmagem de A Malvada em versão topless. A comparação revelará tanto semelhanças quanto disparidades. Uma semelhança importante é a ideia de arrivismo, lançada por Joseph L. Mankiewicz em A Malvada. Lá está Margo Channing (Bette Davis), estrela teatral que vive seu apogeu, isto é, está no limiar do declínio. Lá está Eve Harrington (Anne Baxter), jovem candidata a atriz que idolatra Margo. Mas essa paixão obsessiva não esconde seu objetivo, que é tornar-se, também, uma estrela. Ela chegará lá. O principal objeto de cena do filme é uma escada. Por ali se entra no palco. Por escadas também se sobe e desce. A Malvada tem um claro quê fatalista: observa o meio teatral como metáfora da mobilidade social, em que para que um suba na escala é preciso que outro desça. Mas, no mundo do espetáculo, nunca estamos lidando com as pessoas propriamente ditas, mas com máscaras, silhuetas que se botam e se tiram conforme as exigências do momento. Nesse sentido, A Malvada usa o meio teatral como paradigma. Seu discurso, preciso, constata que cada pessoa é, antes de tudo, aparência. Uma proposição que Showgirls, sua releitura, torna bem mais angustiante: será que esse mundo de aparências ainda existe ou já entramos no registro da inexistência pura e simples? Itália Dá Sinal de Vida 14 de agosto de 1996 CARO DIÁRIO / Caro Diario (1993), de Nanni Moretti LOVE STORY – UMA HISTÓRIA DE AMOR/Love Story (1970), de Arthur Hiller Há uma série de filmes exibidos recentemente que merecem ser levados em conta, sem dúvida, mas dois filmes perfeitamente opostos chamam a atenção de maneira particular. O primeiro é Caro Diário, de Nanni Moretti, um dos melhores filmes dos anos 1990. Nos três episódios do filme há humor, captação ao vivo, observação do cotidiano, elaboração do observado. E há, no terceiro episódio, a descoberta e cura de um câncer. O outro é Love Story, outro caso de câncer. Fenômeno dos anos 1970, o que se narra aqui é uma história de amor interrompida pela doença. Fez chorar multidões. Caro Diário exemplifica as mudanças da tradição neorrealista, quando seus princípios são usados para a inovação: até o câncer vira motivo de descoberta, num filme feito mesmo como um diário, que leva às últimas consequências a hipótese narrativa contida nesse gênero tão tradicional. Love Story exemplifica o cinema como chantagem: a doença é usada para forçar a adesão do espectador, pelo choro, pela solidariedade, até pela identificação. Mas, em hipótese alguma, o leva a conhecer algo mais sobre o homem, sobre si mesmo ou sobre a doença. Carpenter Desafia Fast-food de Imagens 28 de agosto de 1996 A CIDADE DOS AMALDIÇOADOS / Village of the Damned (1995), de John Carpenter Agora, quando Independence Day quebra recordes e recordes de bilheteria nos EUA, é quase obrigatório lembrar A Cidade dos Amaldiçoados, de John Carpenter, lançado em vídeo com a mesma discrição com que entrou nos cinemas. Filmes como este são quase um estraga-prazeres na Hollywood contemporânea. Apontam para a possibilidade de um cinema de gênero fantástico que se empenha em especular sobre o presente e o futuro dos homens, em vez de fazer fast-food em imagens. Não é de hoje que Carpenter se empenha em recuperar temas dos 1950: O Enigma do Outro Mundo ou Starman, nos anos 1980, já iam nessa direção. Depois veio Eles Vivem, pequena obra-prima. Em todos, há uma disfunção original: não apenas os seres de outro mundo nos invadem, como têm os humanos como cúmplices, quando menos por omissão e cegueira do que acontece. Em A Cidade dos Amaldiçoados não é diferente. Estranhos acontecimentos abalam uma pequena comunidade. Meses depois, nasce uma leva de crianças. E quanto mais elas crescem, mais se tornam estranhas e destrutivas. O que faz esse filme ter uma atmosfera tão particular é o fato de todos nas imediações saberem que estão às voltas com um fenômeno desconhecido e, no entanto, o absorverem com naturalidade. Carpenter trabalha o espaço off como um mestre. No filme, não importa exatamente o que está acontecendo diante da câmera, mas a conexão que se cria entre a imagem e o sentimento da plateia. Somos chamados a pensar, desde o início, por que aquelas pessoas não se dão conta de tudo o que está acontecendo. Minutos depois, essa indagação se torna mais incômoda. Passamos a pensar no que nos cerca. Em fenômenos nem tão evidentes quanto essas crianças: imagens de TV, computadores, filmes como Independence Day. Ou seja, nessa avalanche de informação (imagens, sobretudo) que entra em nosso mundo de forma avassaladora, demolindo resistências e espírito crítico. Esse parece ser o segredo: o filme toma um ponto de partida em princípio antiquado (não por acaso, é refilmagem de A Aldeia dos Amaldiçoados, de 1960) e o usa como referência para a interação que estabelece com o espectador. É verdade que hoje a palavra interação parece só comportar o diálogo entre humanos e videogames. Em todo caso, o filme faz sua parte e luta para restabelecer o antigo conceito. Showgirls É Robocop de Topless 11 de setembro de 1996 SHOWGIRLS (1995), de Paul Verhoeven Showgirls chegou ao Brasil com a fama de pior filme do ano estabelecida nos EUA. A fama pegou e o estigma difundiu-se. Nesses casos, qualquer argumento serve: há excesso de erotismo ou falta dele, a atriz é péssima, a história é cafona, etc. Não é tão simples assim. Showgirls é um A Malvada de tanga, um Robocop de topless. Do filme feito por Joseph Mankiewicz em 1950 (A Malvada), Showgirls tira a história. É uma refilmagem, a rigor, da história da aspirante a atriz que usa de todos os meios para subir na vida. Mas o essencial vem provavelmente de Robocop, filme dirigido pelo próprio Paul Verhoeven em 1987. Ali, como se sabe, um policial morto é recuperado, dotado de uma armadura, recheado de chips e colocado de novo a serviço da polícia, só que agora com poderes quase sobrenaturais. Showgirls retoma essa ideia de armadura. A diferença – sensível – é que desta vez a nudez será a couraça das garotas que batalham, no palco, pelo estrelato. É claro que ninguém se lembrou de considerar ridícula a atuação de Peter Weller em Robocop, ou de reprovar-lhe a imobilidade facial. No caso de Showgirls, não faltou quem enfatizasse a incompetência, ou suposta incompetência, de Elizabeth Berkley. Ora, Berkley (aliás, Nomi Malone, sua personagem) é mesmo de uma inexpressividade inquietante – por nascença ou virtude. Só não se pode dizer que essa inexpressividade não seja funcional. Nomi Malone é de um vazio atroz. É um Robocop com o rosto mascarado por quilos de purpurina, no qual não se vê sinal de humanidade. Seus mo vimentos, mesmo quando dança, são robóticos, de um autômato. É estranho que esse filme tenha sido condenado por erotismo. Seu parti pris é notoriamente antierótico (o inverso de Instinto Selvagem, do mesmo diretor). A bailarina pode estar no mais sórdido palco de Las Vegas, ou no mais triunfal dos grandes hotéis: não há sensualidade nos gestos, nem nos propósitos. Tudo o que ela quer é vencer na vida. Em relação a A Malvada, Showgirls opera um ressecamento dos personagens a dimensões mínimas. No filme de Mankiewicz, Anne Baxter era alguém de uma ambição desmedida. No de Verhoeven, Berkley tem a mesma ambição, mas não é certo que seja alguém, ou que possua outros atributos de humanidade. Showgirls é um filme crítico a um estado de coisas em que o interesse mínimo e máximo das pessoas se equivale: triunfar. Em vez da armadura do Robocop, Nomi Malone arma-se renunciando à alma, ostentando um corpo de boneca, puro artefato de indústria (de diversão). Showgirls é um filme inquietante, nada acomodatício, na contracorrente, a quilômetros da insignificância. A Crítica diante da Barbárie 22 de setembro de 1996 TIETA DO AGRESTE (1996), de Cacá Diegues Desde que Tieta entrou em cartaz, até antes, a cena se repete. Pelos jornais, pelos cantos, pelos bares, acusa-se Diegues de oportunismo, por adaptar Jorge Amado, por usar um romance que já foi até novela de televisão. Além disso, com que direito chamar Sonia Braga para o papel principal? Por que perversa razão usar Ocimar Versolato como figurinista? Por que voltar ao velho cinemão e fazer um filme de US$ 5 milhões? Por que os jornais dão espaço a Caetano Veloso, o músico do filme? Não são propriamente questões. É um desejo pessoal de linchamento, uma torcida para que o filme seja ruim, que se transforma num corpo de superstições. Ainda que somadas, não chegam a articular um pensamento minimamente racional. Expressam no máximo uma desconfiança em relação ao marketing do filme. Os mais espertos ao menos reclamam disso mesmo: o filme é um vasto exercício de marketing. Essas vozes indignadas não se manifestam quando os mesmíssimos jornais entrevistam Tom Cruise, quando se lança Missão Impossível (um filme notável, o que é outra história). Essas vozes intrépidas não se fazem ouvir quando James Cameron gasta US$ 100 milhões para fazer um filme. Mas Cruise, Cameron, são Hollywood. Outra realidade, como se diz. Uma realidade que não se conhece. Com o filme brasileiro é diferente. Conhecemos, ou julgamos conhecer, a realidade. Nos achamos um pouco coautores dos filmes, pensamos poder dizer como o roteiro deve ser, como os atores devem interpretar, qual deve ser o orçamento. Ignoramos alegremente que o cinema nacional vem de dez anos de estagnação e mais cinco anos de inexistência completa. Que Tieta é uma das primeiras produções a sair do circuito Espaço Unibanco/Cinesesc. E que os filmes feitos recentemente ainda tateiam, em busca de uma sintonia com o espectador. São questões críticas, que envolvem modos de produção, internacionalização ou não, revisão de caminhos, etc. Mas sobre esses aspectos de fundo, silencia-se. A única preocupação – imitando a moda publicitária – é gritar mais alto, como se o grito pudesse ocupar o lugar do raciocínio. O caso mais recente é o de Marilene Felinto. Romancista de prestígio, Marilene teria plenas condições de pegar a câmera, à maneira de Marguerite Duras, e dizer o que tem a dizer em imagens. Mas não. Opta por arremeter com fúria sanguinária contra filmes brasileiros em geral (ou, pior, que acredita serem brasileiros. Marilene fala, por exemplo, de O Monge e a Filha do Carrasco como um filme brasileiro falado em inglês, quando é uma coprodução, com capital americano, feita por atores e diretor brasileiro, o que é algo diverso, senão oposto). Voltando a Diegues, cujos movimentos parecem despertar suspeita automática. É mera ridicularia pretender aprioristicamente que existe facilidade comercial em filmar Tieta. Pergunte ao mais ingênuo dos seres na rua se ele tem uma ideia de Tieta. Ele tem. Ele viu a novela. Ou leu o romance. Ou ambos. É a essas imagens que o filme terá de suceder e de certo modo se contrapor, para existir. No que consiste a facilidade disso? Da mesma forma, que mal existe, em si, em contratar tal músico ou tal figurinista? Eu entenderia quem dissesse que, por vezes, o filme para, para que a música entre. Ou que certos personagens parecem ter sido sacrificados na montagem, de tal modo que entram em cena quase para constar, mas não chegam a existir. Eu assinaria embaixo, aliás. Mas não é isso que se diz. Acusa-se Caetano de interessado no filme (como se ele devesse gostar do filme porque fez a música, e não fazer a música porque se interessou pelo filme – é ao menos uma hipótese a considerar). Acusa-se Diegues de fazer marketing, como se essa fosse uma atividade criminosa, como se cineastas devessem fazer filmes, cruzar os braços e pular de alegria ao ver as salas vazias. Não é informativo, esse tipo de coisa, nem crítico. É só uma maneira de endossar o acriticismo vigente, a mania do acho/não acho, a desinformação. Sejamos claros: assim como o cinema ainda desconhece um academismo triunfante – algo que se imponha em definitivo como a maneira certa de filmar ou narrar –, também comporta uma parte de acho/não acho. Como toda arte, a menos que se exclua a subjetividade, o que é literalmente impossível, nossa experiência pessoal é um ponto de referência básico. Mas não pode ser o único. Chega a ser patético ver pessoas habitualmente inteligentes reclamarem das imagens turísticas de Tieta. O.K. Mas o que são as imagens do Tabu de Murnau, então? E isso por acaso impede que Tabu seja um dos filmes mais belos jamais feitos? Diante de um objeto artístico – precário ou não – o mínimo que se exige de alguém que tem a insana coragem de emitir um ponto de vista crítico é... que esse ponto de vista seja crítico. Que se procure entender o que alguém realizou e, dentro dos parâmetros desse entendimento, perceber o que há de bem ou malsucedido na empreitada. Inevitavelmente erraremos, no mais. Inevitavelmente voltaremos atrás sobre alguns julgamentos, anos depois. Ainda assim, esse é o único solo plausível que se pode pisar, nessa matéria. Caso contrário, vamos confundir a propaganda do filme com o filme, faremos mera contrapropaganda, cometeremos diatribes rancorosas, cheias de palavras ocas (cinema nacional, nacionalismo, renascimento, mundialização), já que aplicadas a conteúdos apenas imaginados, não apoiados em qualquer fato. Tieta, por ora, é só um filme. Nem o renascimento do cinema. Nem o esmagamento do cinema barato. Nem sinal de uma industrialização indesejável (ou desejável, tanto faz). Daqui a dez ou vinte Tietas, talvez se possa saber se um filme caro suscita sobras de capital para produzir filmes mais modestos e eventualmente mais criativos. Ou se, ao contrário, o Brasil tenderá a fazer três ou quatro filmes grandes por ano e, com isso, aniquilar jovens talentos. Saberemos se isso é bom ou mal para o conjunto da produção. Poderemos discutir, até, se é desejável o Brasil produzir imagens ou não. Por ora, é tudo chute. Não trata de um filme, nem de um sistema de produção, nada. É um festival de sentimentos ofendidos pela simples existência da coisa. Seria justo, desejável, que essas pessoas se encontrassem, fundassem cineclubes, revistas, enfim, praticassem cultura cinematográfica, em vez de se darem por ofendidas. Não vejo artigos indignados porque as cinematecas vivem na tanga. Ninguém se alarma porque se perdem negativos e cópias de filmes. Ninguém fica ruborizado quando aparece publicado que Antonioni se tornou famoso por suas imagens espetaculares (como se fosse uma espécie de Spielberg italiano). Ao mesmo tempo, inchamos de orgulho quando O Quatrilho, com sua fraqueza atroz, concorre ao Oscar. Basta, no entanto, estrear um filme que suscite desconfianças e uma multidão de andrés bazins surge do nada, com a última palavra a dizer. Tieta é um caso atual e paradigmático. Não é o único, nem esse hábito se restringe a filmes nacionais. Quando Francis Coppola fez O Poderoso Chefão 3, só faltou ser recebido a pedradas. Não interessava o filme. O fato de retomar a saga de Michael Corleone era, em si, prova de oportunismo, de comercialismo. Quando Brian De Palma adaptou A Fogueira das Vaidades, o filme foi execrado a partir da opinião do autor do livro, sem que, ao menos, se concedes-se que a adaptação foi feita contra o livro. Nesses casos, como no de Tieta, pode-se aceitar muito bem que haja restrições aos filmes, ou que não se goste deles. Mas não é bem disso que se trata: em todos esses casos renunciamos à visão em troca de um prato pronto. Quando Nelson Rodrigues era vivo, costumava ser tratado como um pornógrafo sem vergonha. Agora, imita-se desavergonhadamente seu estilo (sem suas ideias, claro). Glauber Rocha, vivo, era um fantoche do Golbery, vendido, canalha. Agora é um santo, um íntegro, que se opôs às mazelas da Embrafilme e condenou os rumos do Cinema Novo. Queremos lendas, heróis, não pessoas de carne e osso, que podem errar ou acertar, fazer filmes que se aprecia ou não, mas que, antes de tudo, sejam vistos. Tudo isso seria risível se não fosse tão rastaquera, se a cultura cinematográfica não agonizasse. Não dá para respeitar essa cultura do descompromisso, do comodismo. Ela desemboca na falta de critérios, de pontos de vista e, em última análise, de ética: na barbárie. A Técnica Faz Sofrer 23 de setembro de 1996 A CONVERSAÇÃO / The Conversation (1974), de Francis Ford Coppola A Conversação é o filme de um homem só: Harry (Gene Hackman), técnico em gravações que aceita o trabalho de registrar, em sigilo, as conversas de um casal. O trabalho logo se revela um desafio de caráter técnico: como fazer para violar a intimidade desse casal? Primeiro, o espectador se vê diante de uma espiral tecnológica, com Harry batalhando para captar os sons mais improváveis de serem captados. Em seguida, existe uma espécie de crise de consciência: como se chegasse à conclusão de que a técnica não é algo inocente, de que o homem não pode renunciar a si mesmo em nome dela. Segue-se um suspense que Francis Ford Coppola se encarregou de transformar em um de seus principais trabalhos. Mas, antes de tudo, é o filme de um homem fascinado pela técnica (cinematográfica), pela necessidade de usá-la até o esgotamento, e ao mesmo tempo desconfiado dela. Uma tensão frequente no cinema de Coppola, embora nem sempre o mesmo filme dê conta dos dois aspectos, como aqui. Cantando na Chuva Traduz Euforia de Viver 22 de novembro de 1996 CANTANDO NA CHUVA / Singin’ in the Rain (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly Se um filme pudesse resumir toda a alegria do cinema e da vida seria, sem nenhuma dúvida, Cantando na Chuva, que reestreia em nova cópia. Alegria do cinema, primeiro. Estamos em 1927. Don Lockwood (Gene Kelly) e Lina Lamont (Jean Hagen), dupla de sucesso, prepara quase burocraticamente mais um de seus filmes mudos, quando a Warner lança O Cantor de Jazz e muda a história do cinema. De uma hora para outra, os outros estúdios têm de sair atrás do prejuízo. Às pressas, uma história concebida para ser muda torna-se sonora. Mas quem faz os diálogos? Todo mundo e ninguém. O resultado é constrangedor. Os ruídos saltam descontrolados da tela, percebe-se que Lina Lamont tem uma péssima voz. Que fazer? A ideia vem de Cosmo Brown (Donald O’Connor), comparsa de Gene Kelly: transformar a história em um musical. Operar esse milagre implica introduzir na trama Kathy (Debbie Reynolds), uma candidata a atriz com uma bela voz, que será encarregada de dublar Lina. Em linhas gerais, o momento de passagem do mudo para o sonoro está condensado em Cantando na Chuva. Desde problemas técnicos até pessoais (Lina Lamont sintetiza uma série de atores que não passaram para o sonoro). Cantando na Chuva compõe a mais eufórica história de amor, tendo como ponto alto a dança de Gene Kelly sob a chuva. Momento de encanto que resume toda a alegria de um homem. Mesmo antes de chegar aí, o filme é pródigo em euforia. Seja ao evocar o cinema ou ao criar um hábil jogo em que história e ilusão se tocam quase todo o tempo. É o momento em que o cinema dobra-se sobre si mesmo, reflete sobre seu passado e medita sobre o que pode legar ao futuro. É também obra de uma América que saía da 2ª Guerra Mundial confiante em seus valores. É verdade que, ao mesmo tempo, uma caça às bruxas ocorria, atingindo Hollywood mesmo. E que o fantasma do comunismo ratificava essa confiança. E ainda que uma nova geração de realizadores (Nicholas Ray, Kazan, etc.) trocava o otimismo por uma visão crítica dos EUA, do homem. É claro que isso não está em Cantando na Chuva. Um filme não pode ser tudo. E o que este é já não é pouco. Psicose Chega às Locadoras Brasileiras 5 de dezembro de 1996 PSICOSE / Psycho (1960), de Alfred Hitchcock Psicose foi a aposta de um homem magoado. Al-guns filmes muito caros a Alfred Hitchcock haviam decepcionado na bilheteria, como O Homem Errado (1956) e Um Corpo que Cai (1958). O espaço que parecia cativo do grande mestre do suspense começava a ser ocupado por filmes baratos e sensacionalistas. Nessas circunstâncias, o cineasta julgou que era preciso ser ainda mais sensacionalista, aterrador e surpreendente. Psicose é tudo isso, embora esteja longe de representar uma renúncia à sutileza. Hoje mais ou menos todo mundo sabe quem é o culpado pela morte de Marion (Janet Leigh) e quem é a mãe de Norman (Anthony Perkins). Na época, Hitchcock armou um sólido aparato para insuflar temor e medo em seus espectadores. Por exemplo: ninguém podia entrar no filme com a sessão começada. As surpresas são inúmeras. A primeira delas, capaz de desestabilizar o universo de expectativas do público, foi a ideia de assassinar cruelmente a estrela do elenco – Janet Leigh, justamente – logo no primeiro terço do filme. Desde aí, Psicose pode ser visto, de certa forma, como a luta do diretor contra as expectativas. E não é um assassinato qualquer. Marion morre em um chuveiro, alvo de uma chuva de punhaladas, no tão sinistro quanto decadente Bates Motel. O impacto da sequência pode levar a esquecer o início deslumbrante. A cena de amor proibido (por extramatrimonial) entre Marion e Sam Loomis (John Gavin); o desfalque que ela dá na firma; sua fuga incerta. Toda essa sequência é de uma sensualidade raras vezes igualada. Até o assassinato, Psicose é um filme. Daí começa outro. No início, Hitchcock propõe um crescendo dramático, que começa com a cena de amor – a de abertura – e evolui até Janet Leigh entrar com seu carro numa estrada soturna e encontrar o sinistro Bates Motel e seu proprietário, Norman. Nesse segundo ato, dá-se uma inversão. Sai Marion e entra Arbogast (Martin Balsam). Saem o instinto, a paixão, o pecado (pois o furto que cometeu é um pecado, assim como o amor em que está envolvida) – em suma, a feminilidade. Entram o raciocínio, a frieza, a inteligência, representadas por Arbogast, o detetive. Entra também Lila (Vera Miles), irmã de Marion, mas logo sabemos que nada lhe acontecerá. Lila é inviolável, já que destituída de paixão. Arbogast nos leva ao território da razão masculina, o único capaz de transmitir segurança ao público. O resultado é o que veremos. O certo é que a quebra imposta à narrativa com a morte de Marion – bem mais emocional que dramática – dá à história um novo início. E, como tudo o que aconteceu nas sequências iniciais deixa de ter sentido com a morte, o espectador agora já não sabe a que se agarrar para espantar sentimentos como insegurança e pavor. Hitchcock vingou-se do público que o abandonava. Tratou-o com sadismo explícito, como a dizer: é isso que você queria, então tome. Era o que o público queria. Psicose foi o maior sucesso da carreira do diretor. O melhor, porém, vem agora, 26 anos depois, quando suas práticas foram imitadas ou copiadas. As surpresas que o filme reservava ao espectador não são mais inéditas. Mas permanecem únicas e, nessa medida, intactas. O pavor será menor, mas o prazer de Psicose, hoje, é o da pura obra-prima. Comer, Matar, Viver 5 de dezembro de 1996 FRENESI / Frenzy (1972), de Alfred Hitchcock Frenesi tem a cara de Hitchcock, embora seja quase um filme atípico. Primeiro, os assassinatos que ocorrem em Londres, e que são seu objeto, ocorrem na zona do mercado. Esse aspecto gastronômico não é inconsequente. A prova virá mais tarde, quando o inspetor Oxford praticamente matará a charada sobre quem é o assassino à mesa, enquanto ouve os palpites de sua mulher sobre o assunto e experimenta a continental food que ela prepara. No mais, come-se como se mata em Frenesi. As pessoas (mulheres) aparecem mortas como se isso fizesse parte de uma espécie de rotina. Ou então se mata como quem troca de roupa. E com uma peça de vestuário (a gravata). Os gestos mais banais do ser humano – os gestos de sobrevivência, como comer e se vestir – são, assim, os mesmos que anunciam a morte. Da mesma forma, humor e assassinato parecem indissociáveis. Hitchcock tanto nos assusta como nos faz rir com o mesmo objeto. Isso não é absolutamente novo em sua obra. Mas o humor, que era uma área de escape na maior parte de seus filmes, aqui aparece como um objeto lançado entre outros. Porque o segredo de Frenesi talvez consista em nos dar a impressão de um filme feito quase ao acaso, por prazer, em que Hitchcock esqueceu o sólido sentido de estrutura que caracteriza seu cinema. Mas, no fim das contas, não há um só fotograma lançadoao acaso. Pernas e Beijos Arrebatadores 27 de abril de 1997 Não é impossível que Humberto Mauro tenha se dedicado no fim da vida a reescrever sua biografia ou, ao menos, a colocar em relevo certos traços e toldar outros, de maneira a legar para o futuro a imagem que julgava mais conveniente. A imagem que se disseminou do diretor liga-se à terra, ingenuidade, pureza, natureza, como se Mauro tivesse procurado assegurar seu lugar de precursor na história do cinema brasileiro, recorrendo aos signos da ruralidade como iguais aos da brasilidade. É de 1953, salvo engano, a célebre definição que consolida esse olhar sobre sua obra: Cinema é cachoeira. Definição enigmática, pois o que é, afinal, cachoeira? Fiar-se na palavra de Mauro seria ignorar que o cinema, o seu cinema, não é só cachoeira, em todo caso. E a ideia de movimento contida nas corredeiras que soube filmar tão bem está longe de esgotar o repertório maureano. Que se observem as pernas femininas dos primeiros filmes, como Brasa Dormida ou Sangue Mineiro. Elas se movimentam como cachoeiras, como saias balançando. São objeto de uma contemplação extática, boquiaberta, em que a forma e o movimento sugerem a irrupção do desejo sexual como constitutivo do drama, da beleza e da miséria humanos. O feminino em Mauro dialoga com as formas da natureza, que tanto o agradavam – isso também é inegável. Da cachoeira às montanhas – imagem análoga à exuberância das formas femininas – inúmeras figuras maureanas remetem ao feminino como centro de suas mais caras preocupações. A contemplação da natureza nunca foi um fim do cinema de Mauro, nem a natureza que aparece neles exclui a sexualidade. Ao contrário, ela é abertamente sexualizada. Não será preciso lembrar mais que a cena da serpente no Éden, em que se beijam os protagonistas de Brasa Dormida, para demonstrá-lo. Humberto Mauro foi originalmente um técnico, um eletricista, alguém que apreciava a intervenção humana sobre a natureza. Talvez a cachoeira seja efetivamente o mais sintomático dos elementos da natureza em seu cinema, na medida em que é o correr das águas que produz movimento e energia. Existe um encontro entre água, energia, transbordamento sensual e transformação que é evidente em seus filmes, sobretudo nos de juventude. Ao contrário do Tabu de Murnau (também de uma sensualidade desconcertante), o jovem Mauro não observa uma natureza intocada e intocável. Sua observação já é transformação, o mistério que define a passagem do estado de natureza ao de cultura. Da mesma forma, não existe um elogio da sexualidade natural, que fosse orientada pela pura e simples ordem das pulsões. A inspiração bíblica da sequência da serpente em Brasa Dormida é, nesse sentido, eloquente: Mauro é conforme ao ideal da sublimação ou, ao menos, da sexualidade organizada. Mas, em um de seus primeiros filmes, Tesouro Perdido, ele mesmo encarna o vilão, isto é, aquele que encarna a desordem na cultura, que rapta a mocinha e briga de faca. Nesses primeiros filmes, ao menos até Ganga Bruta, estamos sempre na iminência de uma tragédia organizada em torno da tensão entre sexualidade e cultura. Não que isso se altere tanto assim nos longas da maturidade, como Argila e Canto da Saudade. Neste, Mauro volta a figurar como ator, mas agora, na pele do coronel Januário, as antigas tendências vilanescas tornam-se vontade de organização (política) e de tutela sobre o desejo sexual dos outros. Em todo caso, o triângulo amoroso está presente nos dois filmes. E, com certeza, Canto da Saudade reveste-se de um aspecto trágico de que os filmes de juventude passavam ao largo. Passemos pelo uso evidente – talvez evidente demais – de símbolos fálicos em Ganga Bruta, filme em que a sequência mais memorável é a de explosão de animalidade num botequim. O caráter fálico é igualmente claro, embora muito mais decisivo, em um filme de que as mulheres são ausentes (por razões óbvias), como O Descobrimento do Brasil, em que velas e mastro da caravela de Cabral figuram todo o esplendor de uma ereção, no momento em que os portugueses avistam a terra. O roteiro do Descobrimento, sabe-se, é de uma fidelidade canina à carta de Pero Vaz de Caminha. Se observarmos esse filme apenas do ponto de vista do roteiro, seu interesse é restrito. A miseen-scène, no entanto, contraria o tom oficial do roteiro, ao orientar-se pela exploração do encontro entre estado de cultura e estado de natureza. É uma mise-en-scène exemplar, uma das melhores do diretor mineiro. É estranho que Mauro tenha sido, aqui e ali, censurado por criar uma ideia excessivamente cortês dos portugueses e pela visão a um tempo submissa e primitiva dos índios – crítica que Graciliano Ramos fez ao Descobrimento –, pois o que dá um lugar único a este filme na história do cinema brasileiro é justamente sua abordagem do encontro entre portugueses e índios. A fidalguia é, com efeito, um aspecto marcante da representação dos portugueses. Mas toda a ênfase de Mauro tende à composição de tipos essencialmente masculinos. Existe neles não apenas uma aspereza de gestos, como um afã transformador. Trata-se de um grupo ativo, que vem instaurar a civilização, doá-la ao novo mundo. Os índios, ao contrário, são feminilizados por Mauro: sua característica principal é uma certa fragilidade de modos, uma receptividade que os torna o verdadeiro objeto de conquista (e não a terra recém-descoberta), além de receptáculos de cultura. Todo o filme gira em torno dessa passagem: do contato à conquista, da abordagem à Primeira Missa, que na verdade não passa de metáfora do casamento entre o branco e o índio, civilização e natureza, masculino e feminino. Assim, a fidalguia dos portugueses do Descobrimento é a de um noivo às vésperas do casamento. Não será demais observar como Mauro concilia as notações de caráter sexual e religioso, fazendo da subida da cruz, clímax do filme, uma sequência de rara ambiguidade. Ao mesmo tempo se erguem o signo da cristandade e o símbolo fálico, masculino, enquanto, do ponto de vista dos índios, o mais marcante ritual em que se envolvem denota o caráter feminino que Mauro lhes atribui – vistos do alto, dançam até formar uma espécie de círculo, como que configurando o local da penetração, um órgão sexual feminino. É estranho que Ganga Bruta seja visto como o filme de Mauro especificamente influenciado pela psicanálise, quando O Descobrimento o é de maneira bem mais enfática, na medida em que a direção produz o masculino e o feminino, ao sobrepor, no auge da conquista do Brasil pelos portugueses, as ideias de casamento e cópula do branco com o índio. * Humberto Mauro foi um cineasta do desejo, que celebrou o ato amoroso com a mesma intensidade com que filmou a natureza ora dolorosa, ora trágica, ora feliz das relações homem/mulher. Foi o cineasta das cachoeiras e das montanhas, sem dúvida, mas tanto quanto o foi das pernas sensuais e dos beijos arrebatadores. Se esses aspectos de sua obra permanecem um tanto soterrados, é em grande parte porque Mauro colocou ênfase na ruralidade de seu trabalho, em uma espécie de suposta inocência, no anti-intelectualismo e mesmo na ingenuidade. Mauro foi, na verdade, um dos mais intelectuais dos cineastas brasileiros, e, com certeza, o mais sofisticado, o que melhor compreendeu as possibilidades poéticas e expressivas de sua arte. Conheceu-as o necessário para cultivar a imagem que lhe parecia convir: a de patriarca generoso de um país ainda infantil. Isso não é inteiramente mentira. Mas a verdade é um pouco maior do que isso. Riefenstahl Continua um Problema 27 de abril de 1997 O TRIUNFO DA VONTADE / Triumph des Willens (1935), de Leni Riefenstahl Leni Riefenstahl, autora de O Triunfo da Vontade, ainda é um problema. Como situá-la? É artista ou propagandista; nazista ou testemunha de seu tempo? Cada nova visão do Triunfo embaralha as cartas. Esse documentário não é, em princípio, mais do que o registro filmado do congresso de 1934, em Nuremberg, onde se reuniram os líderes nazistas e seus adeptos. Basta a introdução, no entanto, para o espectador ser jogado nas nuvens. É de lá, do céu, que desce o Führer. E, só de ver a conjunção de música, paisa-gens aéreas (nuvens, cidade) e pessoas articuladas por Riefenstahl, dá para entender (não justificar) a adesão quase demente dos alemães a seu líder. Do céu, baixamos à Terra. Hitler desce, desfila em carro aberto. A câmera de Riefenstahl atrás dele. O povo aplaude em delírio. Nesse instante, O Triunfo da Vontade tem o mérito de ser as duas coisas: propaganda e registro de um momento. E esse registro contém um passado remoto e grandioso, um passado imediato de miséria, um presente que exorciza a humilhação recente e prepara um futuro radioso. Tudo isso é propaganda, sem dúvida, mas também está no rosto de cada um. O que vem a seguir é menos interessante, mas não menos intrigante. Desfiles, discursos, bandeiras. Aos poucos, percebe-se que a guerra já está inscrita no renascimento prometido por Hitler. Cada gesto, cada plano evoca e reproduz a disciplina militar. E a estética de Riefenstahl é nazista. A beleza dos planos baixos não exalta o homem – essa instituição falível –, mas a perfeição do homem. Perfeição física, pois o nazismo recalcava as imperfeições, dando-as como indesejável consequência da miscigenação. Os planos de massa criam a ideia de unidade popular, superando a subjetividade, o individualismo. Até a arquitetura majestosa submete todos à vontade maior, esmagadora, do Reich. É precisamente por realizar o ideal estético nazista – de beleza impessoal – que o Triunfo só se deixa apreender como propaganda. A forma, no caso, é a mensagem. Mas, justamente por representar o máximo dessa arte tão miúda, é difícil vê-la como artista. Até hoje, a realizadora se defende e diz que nunca foi nazista. É possível. Mas o seu sentimento era. Talvez ela fosse – como quer – uma mulher que não entendia de política. Mas é por isso mesmo que seu filme exprime tão bem a Alemanha de 1934, do alvorecer do Reich. Riefenstahl é um paradoxo. Uma grande cineasta – qualquer um teria o que aprender com ela –, mas não uma artista. A beleza que, inegavelmente, era capaz de criar só faz sentido no quadro referencial nazista – uma leitura muito específica do romantismo. Por tudo isso, O Triunfo da Vontade interessa pelo talento, nunca pelo pensamento. Fascina como propaganda, não como arte. Importa pelo registro da vontade coletiva, não como questionamento das coisas. É um documento precioso, que mostra a identificação do alemão com o novo sistema. Mas, sobretudo, mostra como o processo de identificação acaba por absorver o talento da cineasta. O pecado capital de Riefenstahl talvez seja representar tão bem o seu tempo. Kiarostami Extrai Força do Caos em Vida 1º de maio de 1997 VIDA E NADA MAIS – E A VIDA CONTINUA / Zendegi va Digar Hich (1991), de Abbas Kiarostami Quando fez Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), Abbas Kiarostami mandou construir um caminho sinuoso, numa montanha, para ser percorrido pelos personagens. Era uma maneira de dizer que a vida não é uma linha reta ou um percurso em que estejam excluídas a deriva e o acaso. E que maior acaso pode haver do que um terremoto? Vida e Nada Mais (apresentado em festivais como E a Vida Continua, que virou subtítulo) trata, justamente, do terremoto que destruiu parte do Irã em 1990. É à região devastada que vai um diretor de cinema, a fim de localizar os jovens atores que, anos antes, haviam participado de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? Kiarostami desenvolve, em princípio, a ideia de deriva. O que no passado era organização e previsibilidade converteu-se em caos: estradas destruídas, caminhos cortados, vilarejos arruinados. O que poderia ser uma imagem de morte, no entanto, converte-se em inesperada força de vida. O que antes do terremoto seria corriqueiro (encontrar água para beber, por exemplo) transforma-se em uma pequena odisseia. Mas, depois do terremoto, aquilo que sobrevive ganha vida suplementar. Cada personagem que entra em cena parece dotado de uma luz especial. O simples ato de viver se torna poético, na medida em que não está dado previamente. Há que conquistá-lo passo a passo. Com isso, Vida e Nada Mais forma um conjunto tão estranho quanto poderoso: para que sua épica exista, é preciso que esteja estritamente ligada ao cotidiano, à simplicidade das coisas. Ou seja, o que há de épico no filme é o que prescinde de mito. Esse é o primeiro assombro a que Kiarostami nos introduz. É evidente, no entanto, que o filme também compõe uma metáfora do Irã. Antes de ser abalado pelo terremoto, o país foi abalado pela revolução fundamentalista dos anos 1970. É improvável que a devastação tenha sido menor. A ela, Kiarostami opõe ora a virtude da regeneração pela infância (as crianças de Onde Fica...), ora a observação livre e desmistificadora das coisas (Através das Oliveiras, já exibido no Brasil). Em Vida e Nada Mais, a regeneração está ligada à sobrevivência (e nada mais). Com isso, o cinema adquire um tom de despojamento e simplicidade proporcional a seu objeto. Kiarostami compõe aqui um moderníssimo manifesto contra o virtuosismo. Vida e Nada Mais também poderia ser descrito como a história de um cineasta que se apaga em favor de suas imagens, que cala para que seus personagens existam. É um momento alto do cinema dos anos 1990. Ostra Sugere Brasilidade 23 de julho de 1997 A OSTRA E O VENTO (1997), de Walter Lima Jr. Walter Lima Jr. recusa, com certa razão, a diferença que se faz entre filme brasileiro e outros filmes, como se fossem duas coisas diferentes, talvez opostas. Com efeito, não existe uma linguagem nacional do cinema, e um close-up é um close-up no Paquistão, em Berlim ou em Hollywood. Ao mesmo tempo, no entanto, os filmes deixam sinais quase imperceptíveis de sua origem. Mesmo no caso de A Ostra e o Vento, este filme que se passa numa ilha e conta a história de um faroleiro (Lima Duarte) que tenta impedir sua filha, Marcela (Leandra Leal), de conhecer o mundo, apesar dos apelos de um dos raros amigos da família (Fernando Torres). Desde o sentimento de posse – exacerbado até a tragédia – até o elo dos personagens com a natureza, sente-se a nacionalidade brasileira carimbada no passaporte do filme. O delicado fantástico que invade o longa (Marcela fantasia o vento como seu amante) é brasileiro, embora o talento para nos fazer crer nisso seja pessoal. É justo que Walter Lima queira ser julgado pelo que faz, e não pela nacionalidade que tem. O belíssimo plano inicial – a ilha iluminada pela luz do farol –, por exemplo, é obra de puro cinema. Outros aspectos, nem tanto. É improvável que os atores – em especial Fernando Torres, em interpretação assombrosa – atingissem as intensidades que atingem se fossem estrangeiros. Circo Reflete Vida em Lola 8 de agosto de 1997 LOLA MONTÈS (1955), de Max Ophüls Revisto hoje, Lola Montès contém alguns achados preciosos, jogados quase de passagem ao longo do filme. Por exemplo, quando Peter Ustinov, o empresário-apresentador do show, lembra à sua distinta plateia que Lola fuma os charutos da marca tal, que aliás estão à venda no próprio circo. É um merchandising, versão século XIX. Há mais: a horas tantas, Ustinov oferece aos cavalheiros da plateia a honra de chegar perto e beijar a mão da famosa cortesã, por um extra de apenas US$ 1. Sem dúvida, era um avô do sistema pay-per-view. O circo – que se apresenta nos EUA – não é um personagem contingente de Lola Montès. Ele é até seu princípio: a vida é um espetáculo barato, a não ser por ela própria. Sua conversão em espetáculo – circo ou cinema, não raro é quase igual – consiste de imediato em um rebaixamento, como acontece com Lola Montès (Martine Carol), célebre cortesã européia que, no século XIX, seduz e dilacera uma quantidade incontável de homens. No momento, porém, é apenas a protagonista de sua própria decadência. Max Ophüls, cineasta que iniciou a carreira na Alemanha, filmou em vários países europeus, após a chegada do nazismo, e terminou nos EUA, onde realizou o belíssimo Carta de uma Desconhecida (1948). Lola Montès, seu último filme, feito após o retorno à Europa, trata seu argumento folhetinesco de maneira quase fria. Diferentemente da Carta, em que toma o partido da mulher, aqui parece disposto a mostrar o mistério do feminino, sem abrir mão dele. Lola em momento algum se explica. Nada do que faz (ou do que lhe fazem) ajuda a entender a sua vida audaz e livre. Não há um mínimo de psicologia que venha em nosso socorro. Em compensação, o espetáculo dentro do espetáculo é armado de forma quase assombrosa. A câmera se desloca com agilidade e leveza, em travellings que parecem nunca mais terminar. A isso, Ophüls contrapõe o caráter quase selvagem dos personagens: Lola, o apresentador, quem seja, podem até trafegar em cenários sofisticados. Isso, no entanto, só ajuda a pôr em relevo os traços animais de que parecem dotados. No entanto, quando chegamos ao momento do salto acrobático de Lola Montès, o filme se supera: é quando, após igualar a vida e o circo – lugares de saltos mortais –, Ophüls acrescenta uma das mais secas, desconcertantes e completas declarações de amor jamais filmadas. Lola Montès é também filme de um homem cosmopolita, que compreende as sutilezas de um negócio como o cinema, que começa sendo vida, se desnatura em representação, termina como negócio. Como no circo. Como nos grandes avanços tecnológicos, tipo pay-per-view. Ophüls tinha o estofo para fazer um filme como este, onde se encontram a aparência e o discurso sobre a aparência. O Exílio, os Amores e a Prosa Vulcânica de Glauber Rocha 19 de agosto de 1997 CARTAS AO MUNDO, de Glauber Rocha e Ivana Bentes (Org.) Filosofia, sim, estou lendo. Schopenhauer (Dores do Mundo), Nietzsche (Assim Falava Zaratustra)... Porém, como dizer-te que nunca seguirei o ponto de vista deste ou daquele? Nunca serei superior como Nietzsche, pessimista como Schopenhauer, ou cínico como Voltaire, isto não!. O trecho acima está na primeira carta de Cartas ao Mundo, escrita por Glauber Rocha em 1953, aos 13 anos. Ela já dá uma ideia do que se lerá a seguir no alentado volume de 265 cartas depositadas no Acervo Tempo Glauber, selecionadas e organizadas por Ivana Bentes, num calhamaço de 730 páginas (sem contar os índices) que sai agora pela Companhia das Letras. Já estão ali a inteligência, a determinação e, sobretudo, a necessidade de discriminar, hierarquizar, classificar, enfim, de encontrar o devido lugar para cada coisa. O que vem a seguir é um painel invulgar da vida cultural e política brasileira, composto a quente entre os anos 1950 e 1980. Invulgar, antes de tudo, pela inteligência do protagonista e por sua determinação em pensar o Brasil por vários ângulos (o cinema, a escrita, o poder, a paixão, o sonho, a revolução). Mas também um painel irônico. Carta após carta, linha após linha, os textos comunicam essa necessidade vital de compreender, discriminar e agir no sentido da transformação do cinema e do País. Ao mesmo tempo, Glauber Rocha (1939 – 1981) parece não raro atropelado pela história. Se Cuba torna viável a utopia revolucionária no início dos 1960, o regime militar soterra essa esperança em 1964. Se, ao longo da década, o Cinema Novo se impõe mundialmente e Glauber conhece o apogeu de seu prestígio, o fechamento no final da década leva-o ao exílio. E quando, nos anos 1970, a esquerda luta contra os militares, Glauber abre uma dissidência solitária, entende que a ideia de revolução prevalece sobre os conceitos de esquerda e direita e sustenta a hipótese de a revolução nacional ser produzida pelos próprios militares (sem por isso excluir políticos como Miguel Arraes). O que menos importa, nesse movimento incessante, é saber quando ele está certo e quando está errado. Como disse o crítico Paulo Emílio Salles Gomes (1916 – 1977) a seu respeito, o dever do profeta é profetizar, não é acertar. E a profecia glauberiana é, como ele, como seus filmes, transbordante, barroca, contraditória, autoritária, generosa, idiossincrática. Não raro, tudo isso a um só tempo. Em uma palavra, o que essa correspondência expõe é um Glauber vulcânico, uma máquina de pensar, um homem tumultuado de um tempo idem. Para Ivana Bentes, 33, professora de Comunicações da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a seleção das cartas obedeceu a três critérios: a expressão do seu pensamento político (o objeto inicial de sua pesquisa, com vistas a uma tese de doutorado); o interesse para a história cultural do Brasil contemporâneo; e o mapeamento da vida do autor. Talvez o terceiro item seja o mais apaixonante. Pelas cartas, pode-se seguir não apenas o movimento do pensamento de Glauber Rocha, mas sugerir mesmo a ideia de uma autobiografia, capaz de dar conta não só de suas andanças pessoais (filmes, amores, exílio, armações políticas, afetos e desafetos), como de toda a sua geração. Quase sempre, o que ficou de fora é a correspondência comercial ou burocrática, diz Bentes. O volume traz ainda uma rica correspondência passiva, como se diz das cartas recebidas. De Paulo Emílio a José Guilherme Merquior, de Gustavo Dahl a Alfredo Guevara e tantos outros, em várias épocas, desfila em Cartas um grupo de coadjuvantes que, como Glauber, oferecem um testemunho irrecusável, pelo que tem de significativo, sobre uma época. Ivana Bentes julga que Cartas pode dar outra medida de Glauber, não mais apenas como cineasta: A história do Brasil contemporâneo passa por ele. E vice-versa, já que nessas cartas estão as várias fases da vida (e obra) do cineasta, respondendo aos vários momentos da história brasileira. Quanto ao Brasil, que não raro desacreditou do Glauber cineasta, poderá agora entrar em contato com um pensamento que, se tem a virtude de esclarecer muito do que está em seus filmes, tem também a de compor um retrato por inteiro de uma época, no que teve de grandeza e miséria, sonhos e equívocos, busca e perplexidade, autossuficiência e deterioração. Glauber Rocha, até por sua origem (eu sou um pau-de-arara) e por seu nomadismo, talvez seja o intelectual que melhor expressa as muitas nuanças da segunda metade do século no Brasil (mas não só nele). Não tateava. Ia de cabeça. Daí, talvez, esse vaivém cheio de tumultos, certezas precárias, frases cortantes, em que se misturam o pensador, o panfletário, o militante ou o xerife – conforme a hora e o humor. Luz É uma Lenda do Passado 29 de agosto de 1997 O BANDIDO DA LUZ VERMELHA (1968), de Rogério Sganzerla O crime é o que nos revela, dizia Fritz Lang. É aquele momento em que o homem decide passar os limites, romper a lei, assumir o seu destino. Não tem um interesse apenas pessoal ou jurídico. Cada criminoso revela o mundo em que vive. Nesse sentido, a libertação do Bandido da Luz Vermelha é um ato de justiça elementar, pelo tanto que ele nos ensinou, ao inspirar o filme de Rogério Sganzerla, O Bandido da Luz Vermelha, que reestreia hoje. Não importa que essa obra-prima seja fartamente ficcional, e não biográfica. Ao contrário: Sganzerla pôs na boca do seu bandido aquilo que ele talvez nunca tenha formulado, mas certamente pensou. O enunciado central de seu discurso era: Quem não pode fazer nada, avacalha. Basta ele para saber que o Luz não é o diabólico dr. Mabuse de Fritz Lang, nem, como Roy Mad Dog Earle, de High Sierra, um predestinado ao crime. A frase também ajuda a lhe conferir um lugar especial na galeria dos grandes bandidos nacionais, como Lampião ou Tião Medonho. O Luz é tão criminoso quanto madame Bovary foi adúltera. Ou seja: é claro que é (ou foi), mas observá-lo por esse prisma equivale a não ver nada. Lampião foi um bandoleiro do Brasil rural, enturmado, uma outra face do coronelismo e do latifúndio. Tião Medonho foi um aplicado burocrata do crime, uma espécie de funcionário público em busca do tesouro do trem pagador que assaltou. O Luz é, diferentemente, um solitário, um franco-atirador, niilista, o sujeito da demência urbana, industrial. Lampião podia aspirar ao poder, ostentar o título de governador do sertão. Tião colocava o crime em perspectiva: tudo o que lhe importava era um devir, um futuro – breve, era um criminoso construtivo, se é que se pode falar assim. O Luz, não. O Luz é a desconexão, por um lado, mas também uma leitura particular do existencialismo: a escolha pessoal, o aqui-agora é que rege sua vida. É quase certo que o cidadão João Acácio Pereira da Costa nunca leu Sartre ou Huxley, mas as ideias viajam, e não necessariamente em livros. Se Lampião representa o banditismo do Nordeste e Tião Medonho o do Rio/capital federal, o Luz é o marginal paulistano, caótico e boçal, perdido entre as seduções da mídia, do desejo, do status. Ele não aspira ao poder, nem pensa em aposentadoria. É um bandido agônico, sem eira nem beira. Só vale o aqui-agora. Nisso, a ficção do filme e a realidade coincidem plenamente. Para onde vai João Acácio? Não tem muito aonde ir. O importante é tomar um guaraná e comer um chocolate. Experimentar a liberdade. Ele e sua imagem revelam e reconstituem a vida urbana dos anos 1960. Ajudam a compreender essa mistura de anseio por liberdade, imediatismo e desespero (político, sobretudo) que caracterizaram aqueles anos. O que o Luz ilumina vale certamente, para a cultura brasileira, mais do que mil promotores de Justiça, como essa que agora queria porque queria interná-lo como maluco. O Luz sabia que a loucura é apenas um modo de controle cultural. Se não sabia, Rogério Sganzerla sabia. Captou isso em suas aventuras criminais com uma sensibilidade raramente igualada, e traduziuas em imagem. Hoje, a cultura urbana é construída sobre isto (e o Luz, apenas um tímido precursor): assalto a mão armada, estupro, assassinato gratuito. Qualquer menino de esquina é um Luz ao quadrado: sua existência se confunde com o instante em que vive; cada instante, com a brutal ausência de perspectiva (a mesma brutalidade e covardia que usam para roubar mulheres nos sinais de trânsito). Esse tipo de situação cultural não é um acaso. Se O Bandido da Luz Vermelha é um grande filme, isso se deve em parte ao fato de perceber com nitidez para onde iam as coisas. Tomado sob o ponto de vista exclusivo da criminalidade, o Luz hoje seria um acadêmico. Sua ótica era exclusivamente a da marginalidade. Não teria cabeça, jamais, para o crime instituído e organizado, que é o que vigora atualmente (quadrilhas de tráfico de entorpecentes, prostituição infantil, caixa dois de campanha política, etc.). É um homem-sintoma, um homem de seu tempo. É improvável que, hoje em dia, represente algum perigo. O Luz faz parte de uma cultura individualista; não tem nada a dizer num mundo dividido entre gangues e corporações, como o de hoje. O Luz de hoje é a lenda de um mundo que se foi. Quais foram os seus feitos, quais as suas perversidades? Já não interessa. Como dizia John Ford: se a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda. Apenas como PS: a correspondência de Glauber Rocha, recém-lançada, expõe, entre outros aspectos relevantes, certas maquinações de Glauber contra O Bandido. Elas ajudaram a confinar o precioso filme de Sganzerla no estranho gueto do udigrudi. Na verdade, é um filme de linhagem popular, que fez sucesso quando de seu lançamento em cinemas. Ozu Observa Convenções em Bom Dia 29 de agosto de 1997 BOM DIA / Ohayô (1959), de Yasujiro Ozu O inconveniente de Bom Dia deixa-se ver de imediato: a cópia antiga, desbotada, às vezes riscada. Mas os filmes colossais resistem a esses pequenos inconvenientes. De certo modo, o desconforto representado por eles ajuda mesmo a afirmar o filme. E quem souber ver suas belezas perceberá em Bom Dia um filme invulgar, de um cineasta colossal. Para isso, será preciso esquecer a noção de intriga. Ela praticamente inexiste. Ou antes, o que há é um grupo de vizinhas fofoqueiras falando da vida dos outros; duas crianças que fazem uma greve de silêncio, exigindo uma TV em casa e reclamando que os adultos falam coisas inúteis (bom dia, boa tarde, como vai, etc.), um professor de inglês que não consegue declarar seu amor por uma garota. As pequenas tramas que se armam obedecem ao que se pode chamar de dialética de Yasujiro Ozu. Ele filma a aparência da vida (o que, no caso do Japão, abrange uma série de convenções razoavelmente rígidas, entre as quais o cumprimento diário entre vizinhos). É na fissura dessas aparências – e por meio delas – que, pouco a pouco, vai se revelando uma essência: um modo de vida. Aos poucos, podemos ver o Japão do fim dos anos 1950. Ainda pobre – mas já se reerguendo –, em processo de americanização, entrando timidamente na cultura do consumo. As contradições entre a convenção (a tradição aí incluída) e a experiência de cada personagem (incluído seu contato com a modernidade) vão de terminar a tensão que se estabelece ao longo dessa comédia, quase como se a uma tese se opusesse sua antítese. Daí surgirá a síntese, que consiste em um novo ajuste entre essência e aparência. De certo modo, portanto, Bom Dia não está longe do modelo clássico americano, por exemplo, em que o filme pressupõe uma normalidade que é abalada por um incidente para, no final, essa normalidade se restabelecer. A diferença está no ritmo e na maneira de observar as coisas. Em Yasujiro Ozu, não há uma normalidade que se restabelece, mas um retorno à aparência, às formas superficiais. Mas, como essa superfície é espelho de uma essência, a crise que se instaura leva a uma aparência transformada. Ensaio sobre a mutabilidade das coisas, crônica sobre um momento específico do Japão, série de pequenos contos sobre a educação e as relações entre adultos e crianças: Bom Dia é tudo isso, mais a originalidade de Ozu, que o torna único no cinema mundial: a filmagem sempre em planos fixos, baixos, longos, em que os atores não raro dialogam olhando diretamente para a câmera. Um cinema que não julga, não critica, não tem mensagem: observa, apenas, mas como poucos. Profeta Está entre o Moderno e o Arcaico 30 de setembro de 1997 José Mojica Marins é o cineasta-antropófago por excelência. Inventou o terror brasileiro, mastigou a influência recebida desde que via filmes, na infância. Criou uma obra original. O terror de Mojica, o Zé do Caixão, remete a lendas que correm nos lugarejos interioranos. Zé do Caixão é antes de tudo um iconoclasta que pratica atos como comer carne na Sexta-Feira Santa. Na época, anos 1960, o território da crendice popular era amplo e profundo – embora nas metrópoles já estivesse em decadência. É na tensão entre velho e novo, crendice e industrialização que se instala o terrível terror de Mojica. Diferentemente do horror anglo-saxão, Mojica não mobiliza nossos fantasmas. A ênfase de seus filmes não vai, digamos, para os mortos que voltam à vida; ao contrário: a passagem para o mundo dos mortos é que é problemática. Esses aspectos convivem com a mania de grandeza do Zé, que vive em busca da mulher perfeita para procriar o filho perfeito. Não se trata de uma variante do super-homem, seja qual for. É mais a versão delirante do velho sabe com quem está falando. Mojica fala a uma população pobre, a quem os poderosos infundem horror. Ele observa as crendices como formas contraditórias: são defesas contra o poder dos poderosos, mas inviabilizam a esperança de alforria. Daí o ar ambíguo de Zé do Caixão: com sua imensa cartola negra, ele é um pouco o iluminista que exalta as descobertas da ciência contra o atraso religioso. É, ao mesmo tempo, uma representação cruel do atraso nacional: é uma caricatura do discurso bacharelesco, de uma oligarquia que se acredita aristocracia. Zé do Caixão é bem menos profeta da fome do que profeta de uma modernidade sempre vislumbrada e nunca alcançada. Eastwood Questiona Poder do Absoluto 17 de outubro de 1997 PODER ABSOLUTO / Absolute Power (1997), de Clint Eastwood Às vezes, o espectador se pergunta, durante a projeção deste filme, a qual Poder Absoluto Clint Eastwood se refere. Seria o do presidente dos EUA? Do ponto de vista político, isso seria um óbvio contrassenso: pode-se pensar o que quiser dos EUA, menos que não sejam um país em que o poder é repartido de maneira sensata. Talvez seja o poder de que dispõe o presidente (Gene Hackman), no momento em que seus jogos de amor violento com uma mulher são interrompidos pelos tiros dos seguranças (que matam a moça). Mas nem esse poder de vida e morte é tão absoluto assim. O presidente que vemos – por meio de um espelho de uma face, guiados pelo olhar do ladrão Whitney (Eastwood) – não é um poderoso. Ao contrário, ele é pilhado na intimidade (portanto, na fraqueza) e, pior, acaba de se envolver em algo que, se vier a público, fatalmente o destruirá. O que seria então esse poder? O de apagar as pistas que revelam sua presença no local? O de, em seguida, dar uma entrevista coletiva na TV, compungido, em companhia de seu melhor amigo (aliás, o marido da mulher com quem estava transando), prometendo que fará tudo para encontrar o criminoso? Vamos um pouco para trás. Whitney assiste à cena de amor e, depois, de assassinato porque estava roubando uma casa. Quando ouve o ruído de pessoas se aproximando, ele se esconde num armário, atrás do espelho de uma face. Whitney consegue fugir com o produto do roubo – uma fortuna – e planeja deixar o país, quando vê por acaso a entrevista na televisão. Diante daquela manifestação de hipocrisia presidencial, Whitney/ Eastwood muda de ideia e decide combatê-lo. É o que fará, no mais, ao longo desse thriller de suspense notoriamente hitchcockiano. Como bom ladrão de casaca, uma espécie de Arsène Lupin moderno, Whitney colocará sua incrível capacidade de observação a serviço do desvendamento do crime. Nesse sentido, pode-se pensar que o poder absoluto a que o título se refere não é o do presidente, nem da TV, nem da CIA, nem do FBI, etc. O poder absoluto seria, então, o do olhar. A capacidade de ver as coisas em plena liberdade, que Whitney/Eastwood postula como manifestação superior da espécie: algo que não se deixa subjugar pelos poderes terrenos, pelo imediato, mas se guia por valores. Vistas assim, as coisas poderiam ser simples. Mas um ladrão, um cara que largou a família, que mal consegue se relacionar com a filha, parece mal colocado para levar adiante essa cruzada moral. É aqui que entra em cena uma instância frequente no cinema de Clint Eastwood: o passado. Recentemente, vimos o ator em Os Imperdoáveis (a mulher morta servindo como inspiração de vida para o ex-bandoleiro) e em As Pontes de Madison (a mãe morta lega uma lição de vida e amor a seus filhos, por carta). Dessavez,sabemos quea mulherde Whitneytambém morreu há pouco, que viveram afastados em função da atividade dele. E, em vista disso, Whitney tem uma dívida com a filha. Esta, por sua vez, não quer ser ressarcida. No seu entender, o pai é um imperdoável. Nesse sentido, o poder de que fala Eastwood é o da morte sobre a vida. Não se trata de necrofilia, mas de afirmar o precário (o humano) como memória e permanência – o poder do absoluto. Não é de estranhar que Eastwood busque inspiração em Hitchcock (o católico) e no suspense para falar a seus contemporâneos. Ou que evoque John Ford, reduzindo os poderosos a facínoras e elevando o obscuro ladrão a herói. Nem é estranho que Poder Absoluto se apresente como um suspense cuja segunda face (oculta) é a de um faroeste. Porque esse filme também poderia ser descrito como a epopeia do homem só que enfrenta uma cidade (Washington, no caso) dominada por bandoleiros, munido apenas de coragem e da certeza de ser o real detentor dos valores que criaram e justificam a América. Resumindo, outra vez Eastwood surpreende e se supera. Morte de Fuller é como Perder o Pai 3 de novembro de 1997 Há o cineasta que se admira e há o cineasta que se ama. Para os fãs de cinema, Samuel Fuller certamente estava nessa segunda categoria, e sua morte, aos 85 anos, na última sexta-feira, soa como uma catástrofe. É um pouco como perder o pai ou a mãe. Mesmo que tenham 120 anos, nada nos consola da perda. O que colocou Fuller nessa posição tão única? Em parte, o fato de nunca ter tido seu talento plenamente reconhecido, de ser uma espécie de pária, de trazer no sangue, nas ideias e nas imagens esse lado popular, plebeu mesmo, do cinema. Defender Fuller, bater-se por seus filmes, torná-los inteligíveis era (ainda é) uma causa da cinefilia universal, porque os fãs de cinema sabiam que amar Fuller e compreender o cinema é quase a mesma coisa. Embora fosse escritor, o cinema de Fuller não devia nada à literatura. Devia tudo ao jornalismo – também um gênero popular, não raro grosseiro, porém imediato. Assim também são os filmes de Fuller. Não estão interessados na arte, mas no assunto, não são feitos para a posteridade, mas para agora, para hoje. Fuller era um jornalista nato. Não escondia que seu maior sonho era possuir e dirigir seu próprio jornal. Isso não quer dizer que em seus filmes não haja arte. Os longos e complexos planos que costumava utilizar dão bem ideia das dificuldades técnicas que se propunha a enfrentar. Mas conferem aos filmes essa fluência típica do texto jornalístico, que precisa acomodar o heterogêneo num espaço único e homogêneo. E, sobretudo, essa sensação de urgência característica do jornalismo. Dito isso, Fuller era um cineasta de longo alcance. Para começar, um crítico feroz do hollywoodianismo, que era para ele sinônimo de cinema não adulto. Exemplo: para Fuller, Consciências Mortas (1943), de William Wellman, era o exemplo típico de um filme adulto. Ali, um grupo de fanáticos lincha um homem. E, ao constatar que era inocente, o que fazem? Tomam um trago. Exemplo contrário: em Fúria (1936), de Fritz Lang, ao constatarem que haviam tentado matar um inocente, os linchadores se põem a chorar e a pedir desculpas. Para Fuller, fanáticos linchadores não pedem desculpas e choram. Eles simplesmente não aprendem, não têm a dimensão do que fazem. Lang fora hollywoodiano e convencional. Wellman mostrara seres reais. No entanto, é Fritz Lang a grande referência de Fuller, sua baliza. Estilisticamente, pode-se situar Fuller ao lado dos cineastas com influência expressionista, como Lang e Hitchcock, cuja essência é a manipulação do espectador por meio da imagem. Detalhe não desprezível: Fuller achava Hitchcock mera perfumaria. Basta ver as intrigas de seus filmes para entender a razão. Em Matei Jesse James (1949), filme de estreia, ele conta a história de Bob Ford, o homem que trai Jesse James e mata-o pelas costas para, com o dinheiro da recompensa, poder casar. Em O Barão Aventureiro (1950), o herói é o fulano que se põe a grilar o território inteiro do Arizona. Em Paixões que Alucinam (1963), talvez seu melhor filme, a história é a de um jornalista que entra em um hospício para fazer uma grande reportagem; ganha o Prêmio Pullitzer, mas fica catatônico. Em Cão Branco (1982), a trama gira em torno de um cachorro racista, treinado para atacar negros. Etc. Nos mais de 20 filmes, feitos entre os anos 1940 e os 1980, Fuller sempre escolheu entrar pela porta dos fundos, pelo aspecto mais desimportante e menos óbvio da história. Isso sempre deu a seus filmes um aspecto retorcido, conturbado, turbulento. Pouco otimista, claro, e, em definitivo, nada glamouroso. Ao definir sua arte, em Pierrot le Fou, de Godard, ele afirmará que o cinema é um campo de batalha. Mas, ao refletir sobre a guerra em Agonia e Glória (1980) – sobre sua experiência de soldado durante a 2ª Guerra Mundial –, dirá: não há qualquer heroísmo na guerra, o único heroísmo é sobreviver. Seus filmes sem heróis, agônicos, têm uma beleza e uma poesia que irrompem na tela levados pela força, consistência e originalidade de seu olhar. Fuller costumava dizer, com toda consciência, que 95% dos filmes existem por motivos puramente comerciais. Os outros 5%, os únicos que contam, existem porque alguém tinha algo a dizer e disse. Para fazer parte desses heroicos 5%, Samuel Fuller dispensou os grandes orçamentos, as produções feitas com prazos e orçamentos confortáveis. Encarnou um modo de ser do cinema, o mais puro, o menos estetizante. Talvez por isso seja o maior cineasta de uma geração – a do pós-guerra – que virou o cinema americano pelo avesso e teve gigantes como Nicholas Ray, Elia Kazan, Robert Aldrich. Com Samuel Fuller, o Tio Sam, o cinema perde mais que um cineasta. Vai-se um pouco, talvez muito, de sua juventude, de sua integridade e de sua beleza. O Suspense e a Suspensão 11 de janeiro de 1998 Talvez a pergunta básica proposta pelo cinema de Abbas Kiarostami possa se formular assim: onde se forma o filme? Ele existe na cabeça que o concebe? Na realidade que a câmera apreende? Ou no olhar do espectador? A resposta, simples e complexa ao mesmo tempo, pode ser a seguinte: em todos esses lugares. Ao cineasta cabe organizar um material capaz de sugerir ideias ao espectador. À câmera, apreender fragmentos de um real que preexiste ao filme. Ao espectador, por fim, partir dessas sugestões e fragmentos para compor algo que possa se chamar de uma realidade. Kiarostami não inventou esse modo de fazer cinema. Ele se insere numa longa tradição, que se abre com o dinamarquês Carl T. Dreyer e o japonês Yasujiro Ozu, que se afirma nas teorias de André Bazin sobre a natureza realista do cinema e desemboca em obras como as de Robert Bresson e Eric Rohmer. Mas Kiarostami é também original diante de qualquer um desses cineastas. Todos eles se enquadram no que Paul Schrader definiu como cinema transcendental, todos manifestam pendores religiosos. Kiarostami, talvez por reação ao fato de viver em um Estado religioso, o iraniano, afirma-se como um cineasta laico, o que implica certas peculiaridades em seu modo de filmar. Em Dreyer, um milagre é milagre mesmo, sem metáforas; Ozu permite-se a intrusão dos sentimentos na ordem do cinema; Bresson observa a hipótese da redenção com o desespero de um jansenista, etc. Kiarostami afasta-se de todos eles, de um modo ou de outro. Não há nenhuma interferência de ordem superior no milagre que acontece (ou não) diante de nós. O milagre é entre aspas: ele decorre do encontro entre um fato, seu registro e um olhar (como em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?). Também não existe a intrusão dos sentimentos, cara a Ozu. Kiarostami pode mostrar, obsessivamente, o crescendo de um sentimento amoroso (como em Através das Oliveiras), mas não se permite em momento algum devassar o coração de seus personagens, torcer para que o caso amoroso que mostra se concretize, lamentar-se caso não dê certo. Da mesma forma, a tortura e o desespero humano não fazem parte de seu repertório – diferentemente de Bresson. Se mostra um homem desesperado (como em Gosto de Cereja), não lhe cabe julgar a origem ou o destino desse desespero. Visto assim, Kiarostami está mais próximo de Eric Rohmer. Mas Rohmer não usa um modo de ser do cinema caro a Kiarostami, que é o suspense. Os filmes de Rohmer são lisos na elaboração. Mesmo quando acontece um milagre (caso de O Raio Verde), ele não se faz esperar: ele é da ordem da natureza ou da existência, antes de estar na ordem do filme ou da fé. Já Kiarostami nos leva a observar e torcer ao mesmo tempo. Seu suspense é tão técnico, nesse sentido, quanto o de Hitchcock. Mas em Hitchcock o catolicismo é um dado central. Seus filmes organizam-se a partir da culpa e da punição (o herói é sujeito de um pequeno pecado e, em vista disso, corre o risco de pagar uma pena imensa, proporcional à culpa que sente, não ao pecado que cometeu). Kiarostami trabalha, ainda que marginalmente, com figuras como a transferência de culpa (em Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, por exemplo), característica de Hitchcock, mas o procedimento mais típico é a suspensão do sentido: será que o cineasta encontrará os meninos que procura (em Vida e Nada Mais)? Será que a garota atenderá aos apelos amorosos do rapaz (em Através das Oliveiras)? Será que Badii vai se suicidar (em Gosto de Cereja)? Uma outra diferença é marcante: Hitchcock, narrador clássico, coloca a dicotomia entre inocência e culpa como um fim em si de seu cinema; para Kiarostami, o fim é a dúvida. É a ela que se chega. Nada mais característico de seus filmes do que os caminhos sinuosos, que se percorrem exaustivamente, a pé ou de carro, conforme o filme, como que significando a diversidade da vida, a errância humana. Esses caminhos mal traçados têm outra função: criar uma oposição entre o tempo e o espaço. Quanto maior a urgência do personagem em transpor certo espaço, menor o tempo disponível para fazê-lo. A ideia de urgência é tão acentuada em Kiarostami quanto em Hitchcock: é preciso percorrer certo espaço para manter viva a possibilidade de conjurar um perigo que ameaça o herói ou alguém a quem ele ama. No entanto, em Hitchcock a vida é um valor dado, indiscutível. Já Kiarostami é um moderno do fim do século: a vida não é um valor absoluto, dado previamente. Daí ele se permitir pôr em discussão até mesmo a hipótese do suicídio. Diferentemente de Hitchcock, mas próximo de Ozu ou de Rohmer nesse particular, o vazio é uma instância fundamental no cinema de Kiarostami. De início, partimos de um realismo radical: tudo o que está na tela anuncia-se como real. À medida que o filme se desenvolve, no entanto, percebemos que esse real não é monolítico. Ele comporta buracos, vazios, silêncios. Esses vazios conformam a distância fundamental entre o diretor, a câmera e o olho do espectador. Entre o aparelho que rouba fragmentos da realidade e a cabeça que os organiza existe uma separação: uma não consegue aderir inteiramente à outra. Entre o filme que se vê projetado na tela e o nosso olhar de espectadores, verifica-se outro hiato: por mais que nos identifiquemos com o drama que se desenrola à nossa frente, ele não é nós mesmos. Existe uma zona vaga, que nunca se pode anular inteiramente. Ao mesmo tempo, é a fatalidade desse vazio que abre a uma esperança de comunicação. É a partir da diferença, da distância entre nós e os outros que podemos compreender e aceitar aos outros, a nós mesmos e ao mundo. Quanto mais se distancia do início de sua carreira, mais Kiarostami formula essa ideia das distâncias, mais seus personagens são seres em situações extremas, e somos, com isso, solicitados a compreender alguém difícil de ser compreendido. O suicida Badii, de Gosto de Cereja é, nesse sentido, o mais radical de seus heróis, já que não faz qualquer esforço para ser compreendido e, em princípio, coloca-se nos antípodas do espectador, já que a negação da vida é que o estrutura. Isso leva a crer que a vida seja o princípio-motor do cinema de Kiarostami. Ali, a vida não nos chega de Deus ou algo assim. É um atributo e, eventualmente, um fardo humano. Ela não nos é dada: é algo que se faz no dia a dia, nos pequenos gestos, em cada uma de nossas decisões. Viver, amar, devolver um caderno, mudar de identidade, sobreviver a um terremoto, etc. são decisões que cada um toma diante dos infinitos perigos que nos rondam. Trata-se, a cada momento, de optar entre a vida e a dissolução, entre a beleza e o nada. Nesse ponto, é preciso dizer que as sugestões lançadas por Abbas Kiarostami são francamente positivas. Em meio aos atropelos, reveses e infortúnios por que se passa, é sempre possível vislumbrar a beleza – o filme pelo menos a mostra; o persona-gem chegar a apreendê-la é outra história. Pode-se falar, assim, de um otimismo kiarostamiano, mais próximo de Dreyer do que dos demais citados. Mas um otimismo contido, pois prevê a limitação humana. O cineasta não é um deus. É um ser limitado. Ele pode mostrar a beleza. Não pode forçar seu personagem a vê-la ou o espectador a partilhá-la. O filme não é puro produto da ideia de um diretor. Ele é o encontro entre o cineasta, a tela e o olhar do espectador. É um produto do encontro entre essas três instâncias, e esse é, afinal, o milagre enunciado pelo cinema de Abbas Kiarostami: a frágil possibilidade de entendimento humano a partir do vazio de cada ser, da impossibilidade de ser uma plenitude, de existir sem o outro. E para que esse entendimento possa se manifestar, é preciso que o cineasta abdique de si mesmo, de suas ideias, retorne ao estrito real. Vemos, assim, que Kiarostami não é uma novidade absoluta. Sua originalidade, porém, é clara, inscreve-se na história de sua arte, sobre a qual reflete, e que incorpora à sua compreensão das coisas. É possível que, pelo realismo e pela maneira positiva de encarar o mundo, sua obra possa se aproximar de cineastas como Roberto Rossellini ou Jean Renoir. Mas é sobretudo entre os discípulos de Howard Hawks que Kiarostami também deve ser, afinal, incluído. Pois, conforme a definição clássica de Jacques Rivette, caminhando, Hawks prova o movimento, respirando, Hawks prova a existência. O que é, é. Uma definição que se aplica bem ao realismo do iraniano. Mas à qual ele acrescentaria uma dúvida final: Será?. Um Cineasta com Alma de Desperado 9 de abril de 1998 FRANÇOIS TRUFFAUT – UMA BIOGRAFIA, de Serge Toubiana e Antoine De Baecque François Truffaut é um romance, antes de ser uma biografia. E que romance! Existe ali o filho de mãe solteira, mal amado pela mãe e incompreendido por seu pai legal (que lhe deu o sobrenome). Existe também o menino apaixonado por livros e filmes, o menor infrator que frequenta reformatórios. E o jovem que se alista no Exército para logo em seguida desertar. E cujo grande amor pelas mulheres o leva a contrair sífilis. Por sorte, François Truffaut é uma biografia, de maneira que seus autores, Serge Toubiana e Antoine de Baecque, não podem ser acusados de acumular episódios rocambolescos a torto e a direito, ou de plagiar um romance do século XIX. E, se os primeiros anos da vida de Truffaut são extremamente romanescos, o que se segue – tudo o que se segue – parece ser uma longa reflexão sobre essa infância e juventude turbulentas. O Truffaut adulto – a partir de 18 anos, digamos – é o homem que de algum modo busca tirar, desse alvorecer caótico, uma personalidade. Tem uma alma de desperado, escreverá a ele Jean Genet, o dramaturgo, a quem fascina no momento em que vive seu último drama juvenil: a deserção do Exército e a prisão. É também o momento em que Truffaut procura mais intensamente a amizade e a tutela de homens mais velhos: além de Genet, o poeta Jean Cocteau, André Bazin, o mentor dos Cahiers du Cinéma, Henri Langlois, o fundador da Cinemateca Francesa. Mas a alma de desperado é dotada de um profundo espírito de independência, o que o leva a tornarse o crítico mais polêmico da história do cinema. De uma penada, pode decretar que o cinema francês morre sob as falsas lendas, e com a mesma desenvoltura assume a defesa dos cineastas desprezados pela crítica da época: Max Ophüls, Jean Renoir, Sacha Guitry. Após viver a infância e a adolescência sob a Ocupação, não tem uma visão muito favorável da França durante a guerra, nem de sua intelectualidade. A época ajuda-o a forjar uma forte desconfiança quanto à solidez da intelectualidade francesa. Nasce um polemista temível, que, ao atacar o cinema francês, está, na verdade, combatendo a boa consciência francesa, que maquiara a vergonhosa história do país durante a 2ª Guerra Mundial. Como disse alguém, se não fosse um grande cineasta, Truffaut teria sido um grande jornalista. Tinha um raro sentido da notícia e uma escrita aguda, vibrante e virulenta. Mas, para chegar aonde quer, não raro abdica da hipótese de ter um caráter impoluto. Suja as mãos para abrir seu caminho. Talvez por isso seu casamento, aos 26 anos, com a filha de um grande distribuidor tenha sido visto por seus muitos inimigos como um belo golpe do baú, de que se originaria seu primeiro filme, Os Incompreendidos. A partir daí, no entanto, existe um novo Truffaut, aquele que se tornaria conhecido como o cineasta oficial por excelência. Truffaut esculpe, ele próprio, sua imagem, adocica-a. Sai de cena o marginal, triunfa o sedutor, o homem que amava as mulheres. Haverá percalços nessa trajetória, sem dúvida, como o momento da ruptura com o velho amigo Jean-Luc Godard, em que Truffaut retoma a veia de polemista para endereçar ao ex-amigo uma carta amarga e demolidora. Essa ruptura de certo modo consagra o fim da Nouvelle Vague, num momento em que toda a intelectualidade inclinava-se para a esquerda e a obra de Truffaut era vista como um divertissement talentoso, porém inócuo – estigma de que o cineasta só veio a se livrar após sua morte. François Truffaut é, para resumir, um romance, uma biografia, uma história da melhor crítica de cinema que já houve, uma viagem detalhada pelo trabalho de um grande cineasta. Mas é um pouco mais. O livro de Toubiana e De Baecque nos conduz aos complexos meandros da alma de um homem que em sua história pessoal e intelectual encarna como poucos a história, as contradições, a tradição, a fraqueza e a força da França neste século. Toubiana e De Baecque nos mostram com grande fineza como Truffaut é um autor integral, que em cada filme reprocessava os momentos amargos de sua infância, empenhando-se em transformá-los em momentos de leveza, humor, elegância. Nesse sentido, não é impossível que a imagem de si mesmo construída por Truffaut corresponda menos ao desejo de mostrar-se como homem de bem do que a um ideal artístico que consiste em transformar a experiência dolorosa em beleza. O Luxo do Lixo 25 de abril de 1998 MALDITO – A VIDA E O CINEMA DE JOSÉ MOJICA MARINS, O ZÉ DO CAIXÃO, de André Barcinski e Ivan Finotti Seus bundas-moles! Vocês não têm uma unha do talento desse homem!. A frase de Luís Sérgio Person, dirigida aos alunos da Escola Superior de Cinema, que acabavam de humilhar José Mojica Marins num debate, resume a conturbada trajetória do diretor e ator, criador do Zé do Caixão. Corriam os anos 1960, mas Mojica já começava a merecer o título da biografia que André Barcinski e Ivan Finotti lançam: Maldito. Zé do Caixão acabava de explodir, com À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964). Lá estava o coveiro, meio analfabeto, meio nietzschiano, instaurando um inferno à brasileira: improvisado, feito com trucagens primitivas. Mas dotado de uma compreensão visceral do cinema. E, para completar, um arrasador sucesso de público. Um gênio ou uma besta? As opiniões dividiram-se. Barcinski e Finotti narram a cena ocorrida em um cinema do Rio. Havia um tumulto na sala. O lanterninha saiu desesperado: Tem um maluco gritando lá dentro. Era um cara de cabelos desgrenhados, camisa aberta, berrando: Puta que pariu, esse cara é um gênio. O maluco da plateia era Glauber Rocha, que desde então integrou-se ao seleto grupo de defensores de Mojica: além de Person, Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e o crítico Salvyano Cavalcanti, entre outros. Apesar de encontrar defensores de peso, havia um problema: como integrar Mojica a um cinema então dominado pelas preocupações sociais do Cinema Novo? Talvez a melhor análise da situação tenha sido feita por Cavalcanti no extinto Correio da Manhã: (...) analistas desapaixonados irão reconhecer: a eclosão do cinema de Marins representa fato novo, da mesma dimensão que hoje se tem como pacífico a respeito de Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em sua brasilidade e na abordagem formal – e durante tantos anos subestimado pela crítica, então preocupada em discutir as teorias alienígenas, enquanto descriam (...) das coisas brasileiras. A questão de como inserir Mojica numa tradição é, em parte, o assunto desta biografia. O que fazer com um fulano criado na Vila Anastácio, que nem escrever um roteiro conseguia? No mais, um possível trambiqueiro, dono de uma suspeita escola de interpretação? Isso é gênio que se apresente? Barcinski e Finotti demonstram que não existe incompatibilidade entre a inteligência, a capacidade de compreender o cinema e apreender o Brasil e tudo o mais. Não existe incompatibilidade nem mesmo entre as suas virtudes artísticas e a capacidade autodestrutiva, que acabou por levá-lo quase à miséria justamente nos momentos em que, com o sucesso, tinha tudo para enriquecer. Então, fez de tudo: TV, quadrinhos, marchas carnavalescas – sem falar dos filmes e da escola de atores. Enfiava os pés pelas mãos e saía do negócio com mãos abanando, um processo nas costas ou a fama de picareta reforçada. Não era um homem confiável, sobretudo para a censura, com quem teve relações tensas, a ponto de uma censora afirmar, em seu parecer, que, se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor. O censor Augusto da Costa – beque da seleção brasileira de 1950 – tomou até mesmo a liberdade de reescrever a cena final de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Ali, quando Zé do Caixão afundava em um lago, bradando Eu não creio!, Mojica foi obrigado a redublar a cena, acrescida agora de uma declaração de fé: Sim, Deus é a verdade!, etc. Foi a censura, desde que o regime militar endureceu, com o AI-5, que acabou decretando a morte de Zé do Caixão e a decadência de Mojica, então forçado a fazer filmes de encomenda. Zé só ressurgiria nos anos 1990. Enquanto Mojica batalhava no Brasil, inutilmente, para filmar, Zé do Caixão emplacava nos EUA, com o nome de Coffin Joe. Essa é a sina do aventureiro. Damas Brinca de Deus 18 de setembro de 1998 AS DAMAS DO BOIS DE BOULOGNE / Les Dames du Bois de Boulogne (1945), de Robert Bresson As Damas do Bois de Boulogne é provavelmente a melhor porta de entrada para o cinema de Bresson e talvez seja mais que uma feliz coincidência o fato de estar programado logo para o primeiro dia. A intriga diz respeito a Hélène (Maria Casarès), mulher rica desprezada pelo amante e que decide se vingar dele. Para tanto, passa a sustentar Agnès, uma jovem bailarina que a nobreza transformou em mundana. O plano de Helène é fazer com que Jacques se apaixone por Agnès – garota puríssima, apesar da existência mundana. Por meio de Agnès, portanto, ela deseja dominar – e a longo prazo destruir – o antigo amante. O filme utiliza vários procedimentos que mais tarde Bresson abandonará, como o roteiro de outro au-tor – no caso, Jean Cocteau, a partir de Diderot, o que permite a existência de diálogos poéticos, barrocos, excessivos (que no futuro Bresson renegaria). A câmera move-se com uma frequência bem maior do que nos filmes da fase madura do diretor. A cena em que Maria Casarès desce uma escadaria às carreiras, acompanhando o elevador em que viaja o amante, é talvez a mais bela e comovente do filme. O que mais chama a atenção, no entanto, é o caráter vingativo de Hélène, em que a perversidade das ações é revestida de uma singular pureza – a pureza da própria vingança. Hélène é uma mulher que tenta tomar o destino em suas mãos, como se fosse a diretora do filme, moldando a vida de seus comparsas como bem lhe apraz, o que é outro aspecto comovente das Damas. Ao fazê-lo, Hélène (assim como os ficcionistas em geral) tenta substituir a Deus, tomar seu lugar, atribuir um destino a alguém. Estamos, desde então, às portas do mundo trágico. Nos tempos modernos, esse mundo nasce com o racionalismo e o individualismo, no qual, após a destruição do mundo hierarquizado da Igreja, os seres se acham sós no mundo. Para os trágicos, como Bresson, trata-se de um mundo sem futuro. É o que se poderá ver ao longo das Damas e, mais acentuadamente, dos filmes que vêm a seguir. (Texto escrito sobre uma retrospectiva de sete filmes de Bresson. O Dinheiro Contrapõe Justiça ao Enredo 18 de setembro de 1998 O DINHEIRO / L’Argent (1983), de Robert Bresson O Dinheiro daria um bom filme de humor negro inglês. Mas como Bresson é possivelmente o único grande cineasta sem nenhum senso de humor, o que se destaca é a absoluta gravidade da narrativa, que gira em torno de uma nota falsa passada de maneira quase irresponsável e que acarretará a desgraça do único ser íntegro da história: Yvon. Por repassar a nota, ele é preso e condenado. Na prisão, será abandonado pela mulher e receberá a notícia da morte da única filha. Como sempre em Bresson, o mal é a essência dos homens. Desta vez, no entanto, o mal é impessoal e anônimo. O primeiro a passar a nota nem saberá das consequências nefastas de seu gesto. Bresson parece propor um contraponto entre o próprio filme e os rituais da Justiça. Embora acompanhe o destino de Yvon, não julga nenhum dos personagens envolvidos na trama. A Justiça, ao contrário, julga. E o faz à luz da lei, o que a torna cega, incapaz de perceber as nuanças dos acontecimentos, as nuanças de uma alma. Embora sejam poucas as cenas de tribunal, são decisivas. Se durante todo o filme o colorido é discreto, quase monocromático, é impressionante a violência do vermelho das togas explodindo na tela. Nesses momentos, O Dinheiro procura o choque, menos para condenar a Justiça do que para realçar sua vacuidade. Na verdade, essa história de um criminoso poderia ser vista quase como uma continuação de Pickpocket. Em Pickpocket, no entanto, prevalecem um quê romântico e a hipótese de remissão, enquanto O Dinheiro talvez seja mais facilmente definível por seu sereno pessimismo. Formalmente, é também um momento em que o cineasta dispõe do controle completo de sua arte. Não são apenas as elipses ousadas, o uso da parte pelo todo ou a precisão da cor e da direção de atores que impressionam. É, mais que tudo, a capacidade de fazer cada plano trazer em si a causa e a consequência, o passado e o futuro, de tal modo que cada momento da cadeia de acontecimentos que se cria é absoluto neste filme discreto e impecável. Coração Iluminado Tem a Poesia do Imperfeito 13 de novembro de 1998 CORAÇÃO ILUMINADO (1996), de Hector Babenco Logo no início de Coração Iluminado, Juan, o protagonista, pergunta ao velho fotógrafo Jacobo como se faz para ser diretor de cinema. E Jacobo responde algo como: Saber contar histórias. E viver. A frase – em princípio óbvia – soa como uma espécie de autodefinição do que seja o cinema por Hector Babenco, em que a postura clássica e a simplicidade narrativa são aspectos dominantes. Essa autodefinição completa-se com a exibição de trechos de Jules e Jim, de François Truffaut, o que acrescenta às características anteriores sensibilidade moderna, coloquialidade e – sobretudo em se tratando desse filme – abertura para a audácia, a imperfeição, o amadorismo. Sabe-se que Truffaut, mesmo depois que dominava a técnica cinematográfica à perfeição, gostava de deixar uma marca de precariedade, de amadorismo, em seus trabalhos. Nessa sujeira inscrevia-se mais ou menos o que Jacobo chamava de viver: algo que a técnica, os altos orçamentos, os atores impecáveis não conseguem abarcar, mas de onde tantas vezes surge, misteriosamente, a poesia dos filmes. É bem nesse caso que se encontra Coração Iluminado. É o mais audacioso, o mais poético e, portanto, o mais belo dos filmes de Hector Babenco. Do que fala? De praticamente nada, a não ser de um grupo de visionários de Buenos Aires dispostos a fotografar a alma humana, literalmente. Nas tentativas a que se dedicam, sob o comando de Jacobo, a iluminada do grupo é Ana (Maria Luisa Mendonça). Sua aura é a única captável pela câmera. Ana é uma garota que mantém relações turbulentas com o mundo real. É louca, segundo a família, e despertará em Juan (interpretado por Walter Quiroz) um amor também louco. À parte o relato de um belo caso de amor, dominado pelo sofrimento que Ana experimenta diante das coisas (mas também pela revelação de Maria Luisa Mendonça, soberba, para o cinema), essa primeira parte do filme define Juan como um caçador de auras, que é outra forma de definir o narrador clássico. Na segunda parte, Juan é um cineasta famoso que vive em Los Angeles e volta 20 anos mais velho (interpretado por Miguel Ángel Solá) a Buenos Aires, para acompanhar a morte do pai. Ainda uma vez, no entanto, se deixará levar pela busca por uma mulher misteriosa (Xuxa Lopes) e aparentemente dotada do mesmo coração iluminado que Ana revelara na primeira parte do filme. É verdade que na segunda parte as soluções são menos interessantes que na primeira, ao menos à primeira vista. Juan passa a ser o centro dos acontecimentos e mostra-se um tanto vago para ser o condutor da história. No mais, a superposição de Lilith – a segunda mulher – e Ana – a primeira – quase lança o filme no registro do fantástico, no qual Babenco parece se sentir menos à vontade do que no realismo estrito (não por acaso, a sequência mais forte da parte final do filme é a do reencontro de Juan com um velho companheiro do grupo de caçadores de auras). De todo modo, a coerência da narrativa mantém-se intacta, e mesmo o final enigmático – uma audácia para os padrões contemporâneos, em que a maior parte dos espectadores exige soluções sempre claras – aponta para a tensão, existente ao longo do filme, entre o ficcionista e suas personagens. Ainda uma vez, Babenco sente-se compelido a dar destaque a estas últimas. São elas os seres excepcionais, a quem o ficcionista existe apenas para servir. Ele, em si, é um homem banal, cuja existência só se justifica pela possibilidade de trazer à luz seres excepcionais. E fazer um filme, para Babenco, talvez seja isso: captar esses seres. Concluir a tarefa, porém, equivale a matá-los. Falei no princípio dos defeitos poéticos de um filme. O truncamento da primeira história, os desequilíbrios da segunda parte talvez estejam nessa categoria. Nunca, como aqui, Babenco cultivou tão carinhosamente esses defeitos, como a dizer que, se a vida é tão absurdamente imperfeita, como poderia um filme aspirar à perfeição sem flertar com a nulidade? Tudo o que pode recolher são flashes, fragmentos de um absoluto que o humano persegue. Nunca, antes, Hector Babenco falara com tanta desenvoltura, ao mesmo tempo, sobre a vida e o cinema, o que os liga e os separa, sua doçura e amargor, razão e insânia, mínimo e magnífico. Coração Iluminado é um chamamento à vida, enfim, num mundo de coisas mortas. O que se pode pedir mais? As Lições de Hitchcock 12 de dezembro de 1998 HITCHCOCK POR HITCHCOCK, organizado por Sidney Gottlieb Em Hitchcock convivem o cineasta comercial e o autor, o técnico e o artista, o mestre do humor e o gênio do suspense, o tímido e o publicitário. Não é de estranhar que, nos últimos 50 anos, seja ele o cineasta sobre quem mais se escreveu no mundo, de ensaios sobre sua obra a biografias detalhadas. Assim, a primeira questão que a publicação de Hitchcock por Hitchcock suscita é sobre a pertinência dos textos e entrevistas reunidos no volume por Sidney Gottlieb: não seria a maior parte deles apenas veículos com que polia cuidadosamente sua imagem? Sim e não. Boa parte dos textos encontrados por Gottlieb parecem ter intenções autopromocionais evidentes (e o próprio Gottlieb admite que uma parte deles não deve ter sido escrita diretamente por Hitchcock, embora todos tenham tido sua aprovação). Mas a personalidade sinuosa do cineasta, à parte ser ela própria reveladora, jamais permite que intenções dessa ordem apareçam de maneira unívoca, ou mesmo que se sobreponham à reflexão sobre cinema, que pratica em cada um desses textos. Com isso, Hitchcock por Hitchcock começa por ser informativo sobre o próprio cinema. Nenhum cineasta clássico tornou público o seu pensamento com tanta desenvoltura e frequência quanto ele. De maneira que os textos publicados neste volume podem ser vistos, para começar, como um precioso complemento ao clássico Hitchcock/Truffaut, com a diferença que, aqui, podem ser encontrados vários textos dos anos 1930, escritos num momento em que Hitchcock, embora já famoso, estava longe de ser o autor mundialmente consagrado que viria a se tornar a partir dos anos 1950. Se Hitchcock/Truffaut pode ser visto como um manifesto da era do autor – na medida em que o controle da obra pelo diretor constitui o subtexto que atravessa todo o volume –, os escritos agora reunidos remetem a uma questão mais atual e reiteradamente colocada na era pós-autor em que vivemos: quem é o verdadeiro responsável pelo filme? Será o diretor, o produtor, ou o cinema é essencialmente uma arte – por seu próprio modo de produção – produzida socialmente? Mesmo nos momentos mais febris da política dos autores, essa sombra pairou sobre o pensamento cinematográfico. Ainda que se possa considerar o cineasta (ou alguns cineastas) como autor de uma obra, isto é, responsável por sua unidade e concepção, ainda assim seria preciso repartir essa autoria com os atores, os técnicos, os produtores, enfim, todas as pessoas que, de um modo ou outro, colaboram para o seu resultado final. Hitchcock vai um pouco mais longe e sustenta, em alguns de seus textos, que o verdadeiro diretor de um filme é o público. De certa forma, esse é o pensamento corrente na indústria na era clássica, não existe muita novidade nisso. Mas Hitchcock é um dos raros, se não o único, cineasta a ter ideias muito claras sobre a interação dos três elementos constituintes do filme: a câmera (realização), a tela (projeção) e o público (o destinatário). O encontro desses três momentos define o cinema em seu conjunto, na concepção hitchcockiana. Assim, o cineasta dirige seu projeto de maneira pessoal, preservando-o tanto quanto possível da interferência de estúdios e financistas, mas é ao mesmo tempo dirigido pelo público. Ao cineasta cabe manipular esse público (e Hitchcock é antes de tudo um manipulador consciente de emoções), mas apenas dentro dos limites em que ele deseja ser manipulado. De maneira que o cineasta existe, antes de mais nada, como depositário e executor desse desejo. Daí não ser estranho que rótulos como cineasta comercial ou cineasta de suspense tenham aderido tão fortemente a sua imagem, de modo a constituir quase uma prisão (contam-se nos dedos os projetos pessoais que Hitchcock levou adiante, como O Homem Errado, um drama soberbo, mas que, por fugir ao sistema do suspense, teve acolhida tímida quando de seu lançamento original, em 1956). E não deixa de ser estranha, igualmente, a maneira franca como se dispõe, em vários dos seus artigos, a comentar com os espectadores aquilo que se passa por trás das câmeras, da decupagem técnica ao roteiro, ou mesmo a teorizar sobre produção e construção de estúdios. Não é levado a isso por algum tipo de adesão ao jornalismo de fofoca. Trata-se, para ele, de conversar abertamente com o espectador sobre o que acontece numa filmagem, dos lances inesperados à maneira como se relacionava com os atores. Não há nesses textos intenção mistificadora. Quando escreve sobre as atrizes inglesas, por exemplo, dispensa eufemismos: Se mergulharmos uma atriz inglesa num banho de água fria, ainda assim ela vai emergir tentando parecer altiva e digna. Essa frase cheia de humor resume boa parte de seu cinema, sem dúvida (para não falar da tensa relação que teve, durante toda sua carreira, com as atrizes, inglesas ou não). É impossível deixar de ver nela, contudo, uma intenção pedagógica, como se suas palavras pudessem levar o público a uma maior intimidade com a própria criação cinematográfica. A intenção de intervir na relação câmera/tela/ público é evidente, o que leva os seus artigos – especialmente os dos anos 1930 – a serem lidos hoje como generosas lições, em que discute os princípios de sua arte, embora não raro de maneira indireta e sem abdicar de sua personalidade sinuosa. Isso não o impede de, em determinados momentos, trocar sua postura distanciada por um tom francamente polêmico, ocasiões em que produz artigos marcantes, casos de Os Indigestos Filmes Britânicos, no qual a comparação entre a vivacidade dos filmes americanos e a ausência de variedade no drama inglês faz lembrar o polemismo de um François Truffaut. Menos polêmico, embora não menos incisivo, em outros textos chama a atenção para algo que ainda hoje preocupa a nós, brasileiros: a necessidade de explorar personagens, cenários e situações que definam o caráter nacional do cinema que se faz e ao mesmo tempo chamem a atenção para o cinema como modo de conhecimento. Se o tripé câmera/tela/público mantém-se do começo ao fim do livro, vale frisar que isso não ocorre de maneira estática: existe uma tensão permanente entre essas três instâncias, e não raro Hitchcock se coloca na pele de um outro (Se Eu Estivesse à Frente de uma Produtora), na tentativa de pensar o cinema de diversos ângulos. O conjunto de textos reunidos em Hitchcock por Hitchcock termina, assim, por traçar o perfil de um cineasta que reflete permanentemente sobre sua arte, sem dúvida, mas também que, ao fazê-lo, manifesta ideias claras sobre o seu tempo. Não será demais, nesse sentido, dar atenção ao duro ataque contra o crítico teatral Harley Granville-Baker, que não aceitara a adaptação para cinema de Romeu e Julieta, feita por Hollywood nos anos 1930. Se usa mais de sarcasmo do que de ironia ao fazê-lo, não é tanto por causa do pedantismo implícito nas posições do crítico, que procura sacralizar Shakespeare, confinando-o aos palcos. É mais por perceber que esse elitismo termina por obscurecer, a um só tempo, Shakespeare, o cinema e o século XX. Porque essa é a questão que apaixona Hitchcock, no fim das contas: o cinema, com seus vários compromissos, é uma arte impura, precária, submetida a imperativos não artísticos, mas, por isso mesmo, uma expressão forte do homem e do tumulto modernos. O Olhar do Poeta 16 de fevereiro de 1999 ORFEU / Orphée (1950), de Jean Cocteau Um dos principais méritos de Jean Cocteau é ter quebrado o corporativismo do cinema e realizado seus filmes, entre eles Orfeu, embora fosse poeta de origem. A primeira vantagem, como se verá em Orfeu, é que o cinema ganha quando lhe são acrescentadas outras experiências. A segunda é que o filme não sai redondo, profissional, milimétrico (e, não obstante, sobrevive melhor do que a maior parte dos filmes profissionais). A terceira é que demole o mito da técnica cinematográfica (e essa bobagem de pontuar currículo de diretor em concursos, muito em uso no Brasil). Cinema não é uma técnica, é um olhar. Benigni Arrisca Tornar o Holocausto uma Ficção 18 de fevereiro de 1999 A VIDA É BELA / La Vita È Bella (1997), de Roberto Benigni Em artigo publicado ontem, Murilo Gabrielli discute e questiona alguns aspectos do texto escrito por mim na Ilustrada, sobre A Vida É Bela, por ocasião de seu lançamento. É uma feliz oportunidade para esclarecer certos aspectos do que foi escrito ali. Embora concorde que é uma maneira de ver as coisas, não acredito que aspectos éticos e estéticos sejam tão facilmente dissociáveis, como pretende Gabrielli. Em primeiro lugar, porque distinguir o falso do verdadeiro é uma atribuição da estética. A tendência de transformar o Holocausto em espetáculo, inaugurada por A Lista de Schindler, não coloca questões meramente estéticas (que versariam sobre a eficácia do filme), nem publicitárias (a difusão do Holocausto serviria para nos lembrar sobre o que ocorreu nos campos de extermínio durante a 2ª Guerra). Em relação ao Holocausto, isso é tão mais delicado quando é possível lembrar que o documentário Arquitetura da Destruição demonstra precisamente os fundamentos estéticos do nazismo. É um ideal de beleza e higiene que justificou o extermínio de seres desviantes (isto é, dados como tal por seus algozes), fossem doentes mentais, judeus ou ciganos. Em segundo lugar, está longe de ser esquecido o episódio do chamado revisionismo histórico, que pretendeu sob vários pretextos passar a borracha sobre o episódio e atribuí-lo à propaganda judaica. Ainda há pouco tempo, Le Pen, o líder da extrema direita francesa, queria ver no Holocausto apenas um detalhe da 2ª Guerra. Quando Roberto Benigni situa uma comédia num campo de extermínio, portanto, é no mínimo prudente pôr o pé atrás. Quando se decide fazer gags em um campo de concentração, de duas, uma: ou se assume o esquecimento dos fatos lá ocorridos – porque se tornaram distantes, porque já não nos parecem importantes ou porque se pretende minimizá-los –, ou favorece-se a sua lembrança. O filme de Roberto Benigni é tão inusitado, tão surpreendente, que não fecho questão por uma hipótese ou pela outra. O que considero, e que talvez não soube comunicar, é que me parece mais adequado preservar locais como os campos de extermínio da vulgarização. Ontem, Spielberg contou ali uma história virtuosa, introduzindo o glamour em Auschwitz; hoje, Benigni faz uma comédia; amanhã, por que não, pode-se muito bem pensar em fazer uma novela das oito, comerciais de sabonete, o que for. Tudo isso tem o efeito de dar ao real um ar de irrealidade, isto é, de levar-nos a crer, ao longo do tempo, que o Holocausto tem muito mais de imaginação do que de realidade e, no final das contas, muito mais de falso do que de verdadeiro (que foi, no fim das contas, o intento dos historiadores revisionistas). Por bem-intencionadas que sejam, essas empreitadas engendram o risco de acrescentar ainda algo mais à irrealidade e ao absurdo do mundo contemporâneo, que já me parecem suficientemente grandes. Dito isso, o filme de Benigni permite muitas outras leituras. Entre elas, parece-me sedutora a hipótese de um homem que responde ao absurdo do mundo com um absurdo ainda maior. Talvez, passado o oba-oba publicitário do Oscar, seja mais fácil conversar sobre elas. TV não Compreende o Cinema de Glauber 14 de março de 1999 A comemoração dos 60 anos do nascimento de Glauber Rocha na TV evidencia a incompreensão profunda que existe entre cinema e televisão no Brasil. À parte a programação do Canal Brasil – que é especializado em filmes brasileiros –, só a TV Cultura anuncia eventos especiais dedicados ao cineasta (em compensação, não exibe nenhum de seus filmes). A TV não leva em conta que Glauber foi talvez o cineasta que melhor compreendeu a televisão, tendo virado um sucesso quase tão grande quanto Chacrinha, nos tempos em que fazia um quadro no programa de TV Abertura. Era um quadro anárquico, tempestuoso, não desprovido de humor, mas de um humor tenso, de fricção, de contenda. Glauber usava e até abusava da grandiloquência, mas não uma grandiloquência de doutor, e sim de visionário, de demente. Não era claro, como seus filmes também não eram claros. Mas a apresentação paralela desses programas de TV levados ao ar pela TV Tupi e de seus filmes ajudaria a compreender melhor a natureza de seu trabalho cinematográfico. Porque, afinal, não existe razão alguma para ser claro quando o mundo não se afigura claro a nós mesmos. E só sabia abordar o Brasil, sua paixão, num turbilhão de imagens grandiosas, inquietas, surpreendentes. Talvez seja difícil contextualizar Glauber, hoje em dia. Sua fama vem do tempo em que Hollywood, mergulhada numa crise profunda, não impunha sua maneira de filmar e produzir como a verdadeira, e os filmes eram atos de guerrilha contra a ocupação das estéticas oficiais (dos EUA, da URSS). O público não era consumidor. Era antes um cúmplice dos filmes (não só os de Glauber, na verdade). Glauber foi um dos grandes subversivos da lingua-gem. Distorcia o espaço conforme sua conveniência. Nas suas mãos, cangaceiros falavam como poetas (Deus e o Diabo), os evangelistas ressurgiam no Brasil como cavaleiros do Apocalipse (A Idade da Terra). Um OVNI fílmico, nem mais, nem menos, diria o crítico francês Serge Daney sobre ele. Nos estranhos anos 1960, esse OVNI ainda podia ser aceito, ao menos por uma parte dos espectadores. Já em meados dos 1970, não: A Idade da Terra não só fracassou no exterior como foi recebido com hostilidade pela esquerda brasileira (Glauber agora apoiava uma facção dos militares no poder, a do general Golbery do Couto e Silva). Desde então, Glauber Rocha tem sido cada vez menos compreendido. O que era audácia no tratamento dos espaços, hoje parece incompetência. Os delírios grandiosos e poéticos de seus personagens são assimilados como incapacidade de dialogação ou qualquer coisa assim. Não estamos em tempo de utopias ou profetas. Glauber é hoje um cadáver incômodo, que nos lembra continuamente que o mundo não é uma bela imagem publicitária. E as homenagens a ele estão nessa balada: são mais protocolares do que qualquer outra coisa. Mesmas Imagens Mostram Quem Somos 18 de março de 1999 Prêmios internacionais são um reconhecimento artístico importante, além de criar belas chances de diálogo entre culturas distantes e modos diferentes de olhar as coisas. Mas só o Oscar, por ser um fenômeno midiático – é transmitido para 1 bilhão de espectadores –, desnuda completamente a carência da pátria de celuloide. Estaremos diante da TV, pela terceira vez em quatro anos, na esperança de que desta vez vamos. A pátria de celuloide é, claro, alusão à pátria de chuteiras, que é como Nelson Rodrigues chamava a seleção brasileira de futebol. A aproximação não é fortuita. O futebol era um viés, um pretexto para Nelson Rodrigues enaltecer o brasileiro. Ele não falava tanto de esporte quanto da agônica descrença do brasileiro em si mesmo, do fóbico temor que nutria pelos branquelos europeus até 1958. Embora tentadora, a aproximação entre as duas pátrias, a de chuteiras e a de celuloide, é um pouco limitada. As chuteiras calçam pés reais, representam uma afirmação quase racial do Brasil. O celuloide, diferentemente, não comporta nada além de sombras, de fantasmas. São esses fantasmas, porém, que há mais de um século atravessam nossas mais sombrias dúvidas sobre a viabilidade do Brasil. A questão que, entra ano sai ano, permanece intacta, enigmática, é: o que vemos, quando vemos um filme nacional (sobretudo quando ele não corresponde a nossas expectativas)? Não esperamos da literatura, por exemplo, que nos engrandeça diante do mundo. Ver Machado de Assis ou Guimarães Rosa traduzidos, aqui e ali, são fatos recebidos com frieza quase glacial. Com o cinema, ao contrário, somos deliciosamente passionais. Qualquer filme malsucedido vira a prova final de nossa incapacidade para a coisa. Isso não é novo. Já nos anos 1920 havia quem recomendasse a vinda de cineastas estrangeiros para filmar o Brasil. No fim dos 1940, a Vera Cruz trouxe Alberto Cavalcanti de volta ao País na esperança de que nosso único cineasta internacional até então mostrasse o caminho das pedras e montasse uma verdadeira indústria. No fim dos 1980, auge da descrença no País, alimentou-se a superstição de que, para fazer filmes de verdade, deveríamos fazê-los em inglês. Todas essas tentativas mostraram-se penosamente ilusórias. Filmado por Chick Fowle – o fotógrafo inglês da Vera Cruz – ou por Zé das Couves, o problema maior é que o Brasil continua sendo o Brasil: desdentado, mal vestido, mal alimentado. É essa imagem torturante que bate em nossos rostos, cada vez que vemos um filme brasileiro. Por maior que fosse o empenho no sentido de domesticar essa imagem, sempre existiu uma espécie de retorno do reprimido: das chanchadas às pornochanchadas, de Mazzaropi a Zé do Caixão, etc. Filmes pobres, muitas vezes desprovidos de talento, não raro meramente oportunistas, sem intenções artísticas. O mais estranho é que esses filmes, sempre combatidos pela crítica, anos depois de seu lançamento, acabam se tornando referenciais históricos muito fortes. Conhecemos o Rio dos anos 1950 graças a Oscarito e Grande Otelo; sabemos mais sobre o caipira paulista graças a Mazzaropi, entendemos muito de nosso comportamento sexual vendo as pornochanchadas. Passado o impacto do momento, eles já não nos cobrem de vergonha e mostram muito do que fomos ou somos – em parte, precisamente, por não serem produtos de qualidade. Nada disso significa que devemos dar as costas ao Oscar ou a Cannes. Uma vitória de Central do Brasil no Oscar pode até ter um efeito benéfico para o cinema nacional (como teve a de O Pagador de Promessas em Cannes 62). Pode até lavar a alma dos brasileiros, nesse momento de aguda depressão, e nos levar a pensar que não somos, afinal, a escória do mundo. Mas, mesmo ganhando, enfim, o Oscar, a questão da imagem do Brasil continuará dolorosamente intacta. Porque Central do Brasil encantou o País menos pelo que mostrava dele e mais pelo que idealizava e, em certa medida, propunha: a regeneração nacional. Ganhando ou não o Oscar, ficará como o grande filme da era do Real, cujas aspirações captou com muita sensibilidade. Mas, assim como o Real revelou seus limites, Central não é a panaceia universal, nem a salvação da lavoura, nem o encontro de uma fórmula que, enfim, viabilizaria uma indústria de cinema. A indústria supõe certa impessoalidade, um consenso sobre o que seja o País e até um resgate de nossas muitas dívidas passadas – em suma, uma consolidação da cultura que, por muitas razões extracinematográficas, está longe de existir entre nós. Nesse sentido, estamos fadados, para o bem e para o mal, ao artesanato e ao caso a caso. Não há uma imagem certa, há apenas uma certa imagem, pode-se dizer, mal traduzindo Jean-Luc Godard. Não existe a imagem final, redentora. Mesmo fora daqui. Temos de conviver com nossas infinitas precariedades, olhá-las de frente, engolir os Trapalhões, reconhecer que eles são o que somos, muito mais do que gostaríamos de admitir. Podemos ganhar o Oscar, não fará mal. Nem por isso os fantasmas de Canudos, da escravatura, da República mal parida deixarão de nos atormentar. A pátria de celuloide são sombras na tela, uma ilusão, assim como a digna pobreza que mostra o filme de Walter Salles – nossa verdade continua dolorosamente mais bem representada por pivetes assassinos, por exploradores de vendedores ambulantes, etc. É bom ter filmes que concorram ao Oscar. É importante também que exista um outro cinema, aquele que nos parece inepto (à luz do cânone letrado). Este último nos ensina a conviver com essa imagem e a estimá-la – não porque tudo isso seja desejável, mas porque a única chance de eliminá-la é compreendê-la. E, no fim das contas, o Oscar não pode virar o FMI do cinema brasileiro: aquela porta na qual batemos todo ano, na tentativa de resolver, na emergência, os problemas que somos incapazes de encaminhar por conta própria. O Terror Somos Nós, Diz Vampiros 16 de abril de 1999) VAMPIROS / Vampires (1998), de John Carpenter Eu acredito em Deus. O que não sei é se ele está a meu favor. A frase poderia estar no texto de um filósofo jansenista. É mais surpreendente na boca de Jack Crow (James Woods), caçador de vampiros. Crow tem boas razões para questionar a Deus. O primeiro, de ordem íntima, é o fato de ter matado o próprio pai (transformado em vampiro). O segundo, de interesse geral, consiste em viver num universo agônico, prestes a ser invadido pelas tropas de Valek (Thomas Ian Griffith), o terrível líder dos mortos-vivos. Jack Crow é obrigado a ter fé num mundo em que todos a perdem (mesmo os homens da igreja, como veremos), em acreditar em princípios quando todos se movem por interesses pessoais (mesmo que a imortalidade seja um deles). Em suma, na visão diabólica que nos oferece John Carpenter em Vampiros, não é Deus que está morto. É a simples possibilidade de conceber a existência humana que se encontra em xeque, ou por culpa dos próprios homens, ou por culpa de um Deus que brinca perversamente com o destino de suas criaturas. Ou por ambos. Está certo, a saga dos vampiros nunca se notabilizou pelo otimismo, desde Nosferatu (1922). Ela nos conduz aos desadaptados da Terra. Mas, ao contar a estranha aventura de Jack Crow, Carpenter não só consegue insuflar vida a essa Hollywood tomada pelo comércio, como cria imagens inesquecíveis. Apenas dois exemplos: os mortos-vivos irrompendo da Terra na hora do crepúsculo e a lenta e dolorosa transformação da bela Katrina (Sheryl Lee) em vampira. Toda a maldição do mundo parece emanar dessas imagens de um universo turbulento, em que céu e inferno, bem e mal, já não se distinguem. O terror somos nós (e Deus), parece dizer Carpenter, no mais belo filme fantástico feito, provavelmente, desde A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero (1968). Fácil de Admirar e Difícil de Amar 2 de setembro de 1999 DE OLHOS BEM FECHADOS / Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick Pouco após a projeção para a imprensa de De Olhos bem Fechados, alguém da plateia se perguntava: Mas será que eu vou ter vontade de ver esse filme pela terceira vez?. A pergunta resume um sentimento sobre quase toda a obra de Stanley Kubrick, e vale também para este seu último trabalho. O gênio desse cineasta é evidente. Quantos mais colocariam uma estrela como Nicole Kidman sentada em uma privada? Ou faria um galã como Tom Cruise contracenar com mulheres invariavelmente mais altas do que ele? Poucos. Qual diretor de cinema é capaz de mover a câmera com o steadycam (aparelho introduzido por ele em Barry Lyndon, em 1975) com tanta segurança, desenvoltura e discrição? Nenhum. E quem colocaria o Casal 20 de Hollywood (Kidman e Cruise, justamente) numa situação delicada como esta: Kidman (Alice Harford), casada com Cruise (Bill Harford) há nove anos, fuma um baseado e abre o jogo sobre a paixão fulminante que sente por um homem que só viu uma vez? E Bill, até ali visto como um médico exemplar, simpático, íntegro – isto é, superficial como um príncipe de conto de fadas –, lança-se, meio desarvorado, em uma estranha aventura noturna. Não sabemos em que dimensão estamos. A trama é uma espécie de Alice no País das Maravilhas vivido a dois. Um sonho que pode ser real. Uma realidade que pode não passar de pesadelo. Ambos. O certo é que nessa dimensão todos nos reconhecemos como seres mascarados; vivemos – e mostramos aos outros, inclusive aos mais próximos – aquilo que não somos intimamente (embora nada leve a crer que aquilo que não somos intimamente seja mais verdadeiro ou relevante do que a parte de nós que se deixa ver publicamente). Voltando à questão lançada pelo espectador: de fato, não dá para saber se vamos querer ver o filme pela terceira vez. Mas será preciso vê-lo pelo menos pela segunda vez, pois assim o exige o gênio de Kubrick. A maneira como fecha o quadro em seus personagens, como cada momento se faz relevante, vital, torna obrigatória a admiração (e, portanto, a revisão). Mas os filmes que assistimos infatigavelmente, três, quatro, dez vezes, são filmes que amamos, e talvez esteja aí o problema do cinema de Kubrick. Ele se deixa muito mais admirar do que amar. Mesmo quem não gostou de seu Lolita, por exemplo, reconhecerá instantaneamente seu gênio ao ver o patético remake perpetrado há pouco por Adrian Lyne. O.K., a comparação, no caso, é covarde: em Kubrick não há um fotograma sequer que se possa chamar de vulgar. Em Lyne, tudo é vulgar: a luz, o som, os enquadramentos, os atores (nem Jeremy Irons resiste ao massacre). Em De Olhos bem Fechados há inúmeras sequências inesquecíveis: a garota de programa que quase morre de overdose; a moça que declara sua paixão pelo médico junto ao corpo do pai, recém-morto; a visita de Tom Cruise a uma loja de fantasias; a bacanal dos mascarados; um homem que segue Cruise pela rua, etc. Tudo isso poderia sofrer de uma sobrecarga onírica (pecado de After Hours, de Martin Scorsese, que está muito longe de ser um incompetente). Mas não. Tudo nos parece perfeitamente real. Real como um sonho é real. Essa a magia incontestável do filme. Não é só: um simples diálogo, o mais banal do mundo, entre marido e mulher, ganha realce pelas mãos de Kubrick. É fácil compreender o adjetivo perfeccionista, lugar-comum inescapável a respeito de seu cinema. Kubrick é profundo, por vezes frio, como se contemplasse o espetáculo do humano e suas precariedades à distância. Não do alto, como se não estivesse implicado nele, mas a uma distância que não deixa dúvidas quanto a seu desgosto: é admirável. Mas é como se isso roubasse do cinema essa ponta de vulgaridade, de espetáculo bastardo, que está em suas origens e que habita todo homem, tanto quanto as fantasias que vivem os personagens de De Olhos bem Fechados. Um filme admirável e enigmático, cujo gênio, de alguma forma, nos soterra e afasta dele. Filme que não se pode deixar de rever. Mas que, como quase todos os outros de Kubrick, seja pelo que tem de aflitivo ou de extremamente cerebral, não se deixa amar. Meu Tio Apresenta Jacques Tati, o Eterno 24 de setembro de 1999 MEU TIO / Mon Oncle (1958), de Jacques Tati Em Meu Tio, a família do industrial Charles Arpel vive em uma mansão que, antes de suntuosa, é um templo da modernidade. Ali estão todos os gadgets que os anos 1950 admiravam, mais alguns imaginários. A noção chave para compreender a casa dos Arpel não é conforto, nem beleza. Nessa casa, tudo existe em função da eficácia (a competitividade dos dias atuais). A sra. Arpel é uma espécie de sacerdotisa da modernidade, a cada instante colocando em ação os muitos aparelhos de que dispõe e que parecem prometer ao homem um mundo em que o trabalho se restrinja à tarefa de ligar e desligar mecanicamente os aparelhos (nesse sentido, Meu Tio seria uma espécie de Tempos Modernos, de Chaplin, versão vida burguesa). Mas, como nem tudo nesse mundo é perfeito, a sra. Arpel tem um irmão incapaz de se integrar a esse universo utópico: Monsieur Hulot (Jacques Tati). Hulot é um pouco mais que isso, pois é um desses seres dotados de incompetência cósmica, incapaz de se adaptar ao mundo do trabalho, vocação para a vagabundagem. É claro que Gérard, o filho de 9 anos dos Arpel, vai se apaixonar pelo tio simpático, dotado de enorme fantasia, um companheiro que não apenas partilha de seus prazeres como se mostra capaz de tirá-lo fora do mundo árido proposto pelos seus pais. Até aí, Meu Tio pode ser visto como uma comédia clássica, em que o herói, Hulot, é um inadaptado ao mundo, com o humor nascendo de sua inaptidão. Mas, ao contrário de Chaplin, para lembrar um paradigma do humor crítico, Hulot não está às voltas com um mundo precário ou injusto. O mundo de que trata é cuidadosamente colorido (e Jacques Tati pode ser visto como um colorista). Em suas cores, ele carrega a utopia da modernidade. A casa dos Arpel nada mais é do que um aperfeiçoamento caricatural da máquina de morar preconizada por Le Corbusier. Assim, se Chaplin atacava a imperfeição da máquina (seu aspecto opressivo), Tati ataca a sua perfeição. E é isso que lhe dá um lugar privilegiado no cinema moderno. Em 1958, a crítica da modernidade estava longe de ser feita – Brasília, por exemplo, só existia na prancheta –, mas Tati já manifestava um pensamento solidamente crítico a respeito de um presente que endeusa a si mesmo e, ao mesmo tempo, rejeita a experiência passada por simplesmente ser passada. Hulot representa esse mundo passado que irrompe no meio da utopia do presente e, por sua simples presença, tende a arruiná-la, a mostrar seus limites. Nesse sentido, rever o filme de Jacques Tati é uma experiência paradoxal. Hoje, a crítica da modernidade está feita, de tal modo que o filme (e o casal Arpel) pode parecer um arcaísmo: algo que soube captar com precisão o espírito de seu tempo, mas que hoje nos interessaria sobretudo como história, como passado. Ao mesmo tempo, Meu Tio conserva esse frescor típico dos grandes comediantes do cinema. Hulot representa esse personagem eterno, o deslocado, aquele que não compreende nem quer compreender as transformações do mundo, sem por isso ser um reacionário. Ele apenas não adere às mudanças que renegam a experiência passada – a tradição. Jacques Tati, como era de imaginar, acompanha-o perfeitamente. Quase perversamente, pode-se dizer, observa (ou prevê) o ruir silencioso da utopia surgida do nada com um sorriso irônico. É isso que dá ao filme boa parte de sua atualidade deslumbrante. Tati não está no passado, mas no futuro, na medida em que é um espírito crítico afiado. Assim, seu passadismo não o leva a confinar-se rancorosamente no passado, mas a prever e vaticinar o caos a que a modernidade está fatalmente condenada. Daí decorre um novo paradoxo: para fixar na mente do espectador a imagem de um mundo maquinal, feito de repetições, Meu Tio nunca se recusa a repetir-se, a insistir em um achado, como se a própria mise-en-scène devesse mimetizar o mundo de que trata, em lugar de apenas descrevê-lo. Não apenas vemos o moderno, mas experimentamos sua maquinalidade, a estandardização, a por vezes irritante repetição a que nos condena. Daí também o humor do filme ser desigual. Ao menos visto hoje, Meu Tio é metade comédia, metade ficção científica. A comédia nos situa em 1958 e nos projeta no futuro. A ficção científica nos situa em 1999 e nos leva ao passado. O espectador tem de aceitar de saída essa divisão que o filme propõe e, como num quebra-cabeças, botar cada peça em seu lugar: o humor e a gravidade, o futuro e o passado, a observação e a reflexão – todos esses elementos que fazem de Meu Tio um grande filme, desde que o espectador aceite seu desafio: nunca permanecer passivo diante das imagens. Um desafio difícil para o espectador contemporâneo – tão envenenado pela repetição catatônica da indústria cultural –, mas que também pode ser compensador. Filme Inventa o Cinema de Investidor 15 de outubro de 1999 MAUÁ – O IMPERADOR E O REI (1999), de Sérgio Resende Logo nos primeiros fotogramas, Mauá – O Imperador e o Rei deixa claro a que tipo de cinema adere. Não é ao de autor, nem ao industrial, mas a algo que se poderia chamar cinema de investidor. Um sinal disso: ali, antes ainda da primeira imagem, estão escrupulosamente estampados os nomes de todos aqueles que investiram no filme. Na verdade é uma praxe, desde que o Estado decidiu delegar à iniciativa privada (e não à sociedade, vale lembrar) a inteira responsabilidade sobre o que pode ou não ser filmado no Brasil. Não é na apresentação, portanto, que Mauá inova, mas na perfeita identidade entre forma e fundo: é possivelmente o primeiro filme patrocinado pelo empresariado que interessará estritamente ao empresariado. Significaria isso uma conversão ao neoliberalismo por parte de Sergio Rezende, que ainda na década de 1990 foi biógrafo de Carlos Lamarca, o militar guerrilheiro, ou cantou o martírio de Canudos? Certamente, não. Pelo menos o cinema praticado em Mauá continua o mesmo. Imita servilmente a realidade, quando se trata do presente, e ilustra o passado à maneira daqueles desenhos de livros didáticos de história. Aqui, trata-se de fazer a apologia do progresso industrial contra o atraso rural, do homem de iniciativa contra a abulia monárquica, do trabalho burguês contra a ociosidade aristocrática, etc. O homem-chave desse pensamento é o Barão de Mauá (Paulo Betti), exemplo de self-made man jogado no século XIX brasileiro, dono de empreendimentos tão variados quanto ferrovias, estaleiros ou bancos. Em oposição a ele encontram-se D. Pedro II (Rodrigo Penna) e sua sombra, o Visconde de Feitosa (Othon Bastos), político conservador; o primeiro, encarnação do Estado ineficaz; o segundo, representante da ideia de destino agrário do Brasil. Passemos pela banalidade que consiste em separar o mundo em personagens bons e maus, a pretexto de obter a empatia do público. A utilização da história constitui, no caso, não um modo de conhecer o presente e suas dificuldades, a partir daquilo que vivemos no passado, mas seu exato inverso. Vista pelo filme, a démarche de Mauá é tão clara, evidente e justa que... até parece pauta de reivindicações da Fiesp. A rigor, o filme não se importa com o nosso século XIX, nem com Mauá, a não ser na medida em que sirvam para ilustrar ideias bem contemporâneas: o liberalismo como fator de expansão da riqueza e distribuição de renda; o Estado como empecilho ao homem empreendedor. Quanto à forma, Mauá difere em um aspecto dos trabalhos de Sergio Rezende nesta década. Lamarca e Guerra de Canudos definem-se como filmes de ação. Seu fundamento é o acontecer das coisas. Já Mauá é substancialmente um filme sobre as ideias do Barão de Mauá, de modo que raramente estamos diante do acontecer e quase sempre do acontecido. A câmera chega não no momento do fato, mas de sua repercussão. Com isso, temos uma obra em que o diálogo é o fundamento. Ou deveria ser, já que a palavra diálogo supõe relativa igualdade entre os personagens. Em Mauá, um dos personagens em cena serve qua-se sempre como escada para o outro, aquele que deve proferir o seu monólogo. Em certo instante, uma criada levanta a bola para que May, a mulher de Mauá, fale sobre os problemas do casal. Mais adiante, Feitosa discursa no Senado, ou o imperador em pessoa ouve Mauá discorrer sobre suas obras e dificuldades. Etc. Trata-se, em suma, de uma forma confortável para uma explicação confortável da história, em que, à parte cenários, vestuários e certas circunstâncias específicas (a escravatura, por exemplo), no fundo só existe um tempo, o presente, presente perpétuo, presente bem anos 1990, anos do fim da História. O que já era lamentável em Lamarca e em Guerra de Canudos – o sacrifício da especificidade e do pensamento de cada época, em favor de uma ideia geral e não histórica sobre certas instituições (nos dois casos, a vítima preferencial eram os militares) –, aqui deriva para a própria caricatura. Mauá não afirma um desejo pessoal ou obsessões que caracterizam um autor (o que se poderia suspeitar que motivasse Lamarca), nem tem as qualidades de espetáculo de Guerra de Canudos (apesar do roteiro não raro ridículo). Seu único sentido é promover um casamento tão perfeito quanto estéril entre um filme brasileiro e a maneira como as elites desejam se ver representadas na tela. O espírito privatista encontra em Mauá sua mais perfeita (e assustadora) expressão até aqui. A Aridez Santificada 17 de outubro de 1999 SÃO JERÔNIMO (1999), de Julio Bressane Em certos filmes de Julio Bressane dos anos 1990, o referencial tem mais importância do que o aspecto fílmico propriamente dito. Foi assim em Sermões – A História de Antônio Vieira, dominado pela fala e pela presença do padre Vieira. É assim também em São Jerônimo, e talvez até de forma mais radical: com exceção das claquetes iniciais, que funcionam hoje como uma espécie de assinatura do diretor, portanto pouco significativas em si, é a presença do santo e sua trajetória que pontuam o filme. Isto é, a realidade filmada é mais importante do que a filmagem. Esta está a serviço daquela. É uma escolha de bom senso. O interesse de São Jerônimo existe independentemente do cinema. Mas dá-lo a ver não é um mérito menor. É verdade que o espectador ganhará em não chegar inteiramente despreparado para ver o filme. Bressane retoma episódios da vida do santo, mas está longe de mastigá-los, de maneira que não constarão do filme informações elementares, como o fato de São Jerônimo ter vivido entre os séculos IV e V. Em compensação, suas ideias estão na tela, em particular os episódios envolvendo seu retiro no deserto e o fato de ser ele que produziu a Vulgata – a tradução da Bíblia para o latim que sistematizou o livro, novo e antigo testamentos, tal como se tornaram conhecidos e, posteriormente, traduzidos para as demais línguas. Esse é o personagem que interessa a Bressane. Interessa é dizer pouco. Fascina talvez seja uma palavra mais adequada. Desse fascínio talvez se origine a maneira como o filme observa o sertão nordestino – onde foi filmado. Não propriamente como um lugar dominado pela aridez, mas um solo de alguma forma santificado por essa aridez. Não mais um lugar de morte e miséria, simplesmente, mas de retiro e elevação espirituais. Esse solo desértico é dominado por uma grande pedra, que parece conter todo o equilíbrio do mundo, ao mesmo tempo sólido e precário. Uma pedra no meio do caminho, talvez, mas de um caminho que leva ao conhecimento. E onde está esse conhecimento? Na imagem. Talvez na mais bela cena do filme: aquela em que uma nuvem, em dado momento, descobre o sol, deixando passar a inteireza da luz, como se algo mais do que a luz chegasse ao sábio. A própria presença de Deus, quem sabe? Talvez esse sertão lugar permita uma interpretação arbitrária do filme. De algum modo, Bressane retraçou o caminho de Glauber Rocha em Sermões, ao escolher Othon Bastos – o Corisco de Deus e o Diabo na Terra do Sol – para fazer o padre Vieira. Agora, é como se nos jogasse no outro sertão, o do Santo Sebastião, o beato que no filme de Glauber pretende levar para o céu o corpo e a alma dos inocentes. Na aridez, o beato garante que do outro lado do Monte Santo existe uma terra onde tudo é verde. Lá, como cá, não veremos esse outro lado. Em Glauber, ele é uma aspiração, talvez, nacional. Em Bressane, esse outro lado, mais abstrato, parece ser o conhecimento, atributo que pode nos livrar da miséria e nos levar para o outro lado. Esse conhecimento, o de São Jerônimo, é exato, preciso. Sobre ele, constrói-se a supremacia do cristianismo (portanto, o solo que pisamos). Com ele, com os fatos da vida do santo, com a vasta iconografia que gerou, Bressane se entregará a um corpo a corpo apaixonado que, interpretações à parte, é a alma de seu filme. A Carta Faz Encontro entre Rock e Jansenismo 28 de outubro de 1999 A CARTA / La Lettre (1999), de Manoel de Oliveira Um dos maiores pecados que o Brasil pode praticar, no aspecto artes, é persistir na ignorância de Manoel de Oliveira, apesar das inúmeras chances que lhe têm sido oferecidas (em geral pela Mostra de Cinema, mas não só). Maior será o equívoco a colocar de lado o magnífico A Carta, que não é um dos filmes mais marcantes do ano apenas porque o é da década. Oliveira detém-se ali na malfadada história de amor entre uma aristocrata francesa, a Mme. de Clèves, e um roqueiro português, Pedro Abrunhosa. A audácia temática talvez fique mais clara se lembrarmos que Oliveira não liga dois mundos distantes (o da aristocracia e o do pop), mas dois séculos distantes: o XVII e o XX. Pois o XVII é o século de Princesa de Clèves, romance sobre uma mulher que se casa sem amor com um homem que muito respeita (exatamente como a personagem de A Carta). Oliveira não faz nenhum esforço para atualizar o mundo de Mme. de Clèves. A austeridade de seus princípios a leva até Port Royal, convento das religiosas jansenistas, onde é recebida por uma amiga à sombra do retrato da madre Angélique Arnauld. Ora, como se sabe, o jansenismo foi banido como herético ainda no século XVII, e a abadia de Port Royal, destruída. Bastaria essa contradição para deixar os espectadores com olhos e ouvidos abertos. Pois Oliveira faz com que dois mundos – um extinto, ao menos teoricamente – convivam no mesmo espaço e no mesmo tempo. Essa sensação de estranheza que qualquer espectador sentirá, com razão, ao ver o filme, prolonga-se na curiosa figura de Abrunhosa, o roqueiro, que também se apaixona pela mulher e se vê carregado por essa circunstância a um outro século. Haverá quem pergunte: e daí? Daí que todo o nosso mundo de fim da História vê-se subitamente abalado pela constatação de que o presente e o passado mantêm entre si relações mais curiosas e profundas do que imaginamos habitualmente. Ao proceder a essa torção sutil do tempo, Oliveira não mistura dois mundos e duas épocas perfeitamente diferentes, dois modos de sentir e experimentar as coisas, mas subverte a noção de tempo, permitindo-lhes conviver num mesmo espaço – que não é o da Paris contemporânea propriamente, mas o do filme. Um artifício que lhe permite refletir sobre o que, na vida, é mutável e imutável. Não somos seres simples. O solo em que pisamos é formado de muitas camadas, que se vão acumulando. Seria insuportável pensar que a última – o rock, no caso – devora e destrói todas as demais. Em cada um de nós existe um lado Abrunhosa – o presente, a libertação, a irracionalidade, a revolta – e um lado Clèves – o passado, a fé, a resignação, a razão. Cada ocidental carrega em si essa carga contraditória, composta pelos vários momentos de sua história e de seu pensamento. Esse é o fundamento profundamente realista do filme, em que o arbitrário irrompe com toda força, apenas para chegar com mais força e evidência à demonstração de uma verdade profunda. É verdade, Mme. de Clèves e Abrunhosa estão fadados a um amor impossível. A um amor de perdição, para lembrar o título de outro soberbo filme do cineasta português, na medida em que esses dois mundos – o do passado e o do presente – devem de algum modo permanecer irreconciliáveis. Mas é na soberba capacidade de promover o seu encontro – ainda que precário – e de dele arrancar uma beleza segura e seca que está o gênio de Oliveira, um dos maiores realizadores do cinema moderno. Massacre É uma Vitória do Blockbuster * 8 de novembro de 1999 É verdade, como bem lembrou Amir Labaki na Folha do último dia 5, que toda vez que acontece uma grande anomalia o cinema vai a processo, suspeito de provocar estupros, estrangulamentos e terrorismos. É fato, também, que nunca se demonstrou uma relação de causa e efeito entre as duas coisas, isto é, que quem veja um filme de Rambo, por exemplo, esteja mais predisposto a sair matando gente por aí do que os outros. O cinema seria, sustenta Labaki, muito mais um reflexo de uma realidade violenta do que seu agente. No mesmo dia, porém, Contardo Calligaris lança uma pergunta inquietante: se não é o cinema que influencia a nossa vida moderna, quem é? Nessa questão controversa, me parece que Amir – por medo de um retorno da censura – toma apressadamente a defesa do cinema, ou da liberdade de criação, sem deter-se mais amplamente sobre o fenômeno em causa. Que o cinema americano reflete a vida americana, não há dúvida. Mas no estágio atual convém pensar que vida é refletida (até porque o reflexo não é uma coisa morta, ele vai e vem). Não será, com certeza, a vida dos pesquisadores de Harvard, digamos. Em 90% dos casos, o que nos é dado ver é a vida de serial killers, de seres altamente perversos. Por que isso ocorre? Em parte, porque a América está em guerra desde os anos 1960, desde o Vietnã, uma ferida ainda não cicatrizada. O Vietnã, como todos sabem, determina o fim da crença em uma sociedade nascida da luta do bem contra o mal, do certo contra o errado, do justo contra o injusto. A sociedade lendária do faroeste, em suma. O faroeste não era apenas um gênero violento. Era antes de tudo épico e essencialmente moral. O que o sucedeu? A era do blockbuster, um cinema baseado na aventura de alta violência, porém destituído seja de épica, seja dessa moralidade essencial que caracteriza o classicismo americano. Será o blockbuster imoral ou amoral? O certo é que ele expressa (reflete, como diz Amir) um desarranjo essencial da cultura norte-americana, transformada em civilização do mal-estar, na medida em que não mais ancorada em valores minimamente positivos. É possível arguir, com razão, que o mais característico da era do blockbuster é sua irrealidade. No passado, os filmes americanos procuravam manter uma razoável sintonia com a realidade. Hoje, descolar-se dela é quase pré-condição para o êxito. Dou alguns exemplos em filmes: o momento em que Harrison Ford, em O Fugitivo, dá um salto de uma altura de mais de cem metros para fugir de seus perseguidores. Ou, ainda, a cena de True Lies em que Arnold Schwarzenegger voa, literalmente, de um prédio a bordo de sua motocicleta. A doença americana está mais nesse tipo de imaginário do que no exemplo direto que possa ser dado pelos criminosos dos filmes. O cinema deixou de ser um lugar aonde íamos em busca de imagens que refletissem nossa vida ou nossa realidade. Não existe nenhuma relação entre a maneira como Scarface ou O Inimigo Público descreviam a criminalidade nos anos 1930, por mais violentos que fossem, e o caráter doentio de um Seven. Nos primeiros, havia uma sociedade consciente e segura de seus valores, refletindo sobre fenômenos que lhe pareciam anormais. Hoje (culpa da psicologia?), a doença ocupa o centro, o início e o final dos acontecimentos. Ela não é anomalia, é a própria existência. O crime hediondo não transgride a ordem, mas está inscrito nela. Esse cinema de fantasia, em que presidentes dos EUA podem voar segurando a ponta de uma corda (Força Aérea Um), o é na medida em que não tem valores a propor ao mundo. Tudo o que lhe resta é simbolizar sua própria crise, tão mais evidente quanto não existe mais inimigo exterior (o comunismo). Não por acaso, os cineastas morais, como Clint Eastwood, Martin Scorsese, Brian De Palma, são mais e mais marginalizados e participam com dificuldade dessa cultura da irrealidade. No mais, se aceitamos que o cinema pode nos ensinar a beijar ou aspirar a um mundo de consumo abundante, por que não transmitiria ele o gosto pelo uso de metralhadoras ou o desprezo pela vida dos semelhantes? Isso não significa que qualquer espectador, ao ver Seven, se torne um serial killer. Não é essa a relação, nem é essa a questão. E sim é: como e por que aceitamos, recebemos e exaltamos de maneira tão passiva (quando não ativa!) esse gênero de filmes? Ao menos uma vez por mês somos apresentados a novos e insuperáveis gênios do cinema, cuja genialidade em geral não dura mais do que o espaço de um mês. Sempre mais, somos convocados a partilhar uma crise de valores que não é nossa. É estranho que essa classe média frequentadora de shoppings, e que brandia seu escândalo diante, por exemplo, de nossos filmes eróticos, conviva tão à vontade com o universo de uma indústria cultural em que a vida humana não vale mais do que uma caixa de fósforos. Aqui, ignoramos e, não raro, desprezamos filmes diferentes, por difíceis ou chatos. Bem, o que o caso do shopping center ofereceu-nos, ao vivo, foi essa emoção e essa visibilidade típicas do blockbuster e de sua cultura. Hitchcock dizia que o cinema nos dá a oportunidade de fazermos a catarse de nossa vida psíquica em plena segurança. O caso do shopping demonstrou um sentido agudo da mise-en-scène, do grande espetáculo, ao transpor o terror da tela para a plateia, do simbólico para o real. Sabemos agora que o cinema não é mais o lugar seguro onde se exerce o pacto voyeurista de que falava Hitchcock: a simbologia (pobre) do blockbuster dá lugar à realidade do blockbuster. Não devemos pedir a volta da censura, isso é uma bobagem. Mas talvez fosse útil ter consciência, sim, de que o massacre do shopping é uma tragédia cinematográfica e uma vitória da barbárie que o mau cinema hollywoodiano celebra sessão após sessão. Ou alguém pensava que a violência também não se globaliza? * O massacre do título refere-se ao caso em que um espectador atirou, com uma metralhadora, contra a plateia numa sessão de cinema num shopping de São Paulo, matando três pessoas. Deuses e Homens Encontram-se em Santo Forte 19 de novembro de 1999 SANTO FORTE (1999), de Eduardo Coutinho Eduardo Coutinho é como um psicanalista, cuja virtude principal é escutar. Esse é o seu papel também em Santo Forte: suscitar a expressão de seus personagens, deixar que, à força de falar, revelem não só a si mesmos como o mundo em que vivem. É possível perguntar, hoje, qual a função do documentário cinematográfico, numa época em que a televisão teoricamente ocupou esse espaço, seja com as reportagens, seja com talk-shows. Mas a verdade é que esses programas dão conta apenas de uma parte da realidade. Os talk-shows permitem que se expresse habitualmente a burguesia ou a classe média. Isso que chamamos de povo só é convocado a comparecer como exotismo ou aberração, vítima ou culpado. Em Santo Forte as pessoas são, simplesmente, quem são. Parece fácil. Só parece. A principal virtude de Eduardo Coutinho é apagar a fronteira entre o documentário e a ficção. Quem nós somos? Esta parece ser a pergunta-chave de seu trabalho. Talvez cada um de nós seja apenas a ficção de outras pessoas, daqueles que nos veem e escutam. Nesse sentido, a fronteira entre o ficcional e o documental se dissipa com relativa facilidade. E mais ainda se o assunto é religião e religiosidade. Nesse terreno, Deus, Nossa Senhora, Oxóssi, Pombagira são entidades de que se fala como se fosse do sujeito da venda. Cada personagem contribui para conformar um mundo fantástico e prosaico. Estamos num morro do Rio de Janeiro, mas parece que estamos numa tragédia grega, em que homens e deuses podem, perfeitamente, dialogar. Coutinho apanha uma variante no mínimo curiosa dessa religiosidade brasileira (ou carioca, em todo caso): com a entrada das igrejas evangélicas, hoje o nosso velho sincretismo já não se limita a associar catolicismo romano e cultos de origem africana. A tradicional infidelidade a uma crença parece se expandir. Um dia, o sujeito pode muito bem ser católico, na outra semana adepto da Universal e, por fim, da umbanda ou do espiritismo. As pessoas não enxergam nessas religiões as mesmas contradições que tanto inquietam padres, pastores ou pais de santo: transitam conforme sua conveniência do momento, porque os deuses vivem no morro, a seu lado, de maneira que vida cotidiana e vida espiritual deixam-se permear uma pela outra quase em tempo integral, da mesma forma que a realidade (documental) só se afirma como tal na medida em que nos permite ver a ficção fabulosa que a compõe. Disse no início que a TV era, essencialmente, teatro das crenças e vaidades da burguesia e da classe média, o lugar pelo qual desfilam as crenças de economistas, socialites, artistas – crenças em geral não muito mais fundamentadas que as em Oxóssi, São Jorge, etc. A TV se eterniza pela mudança permanente, pela adesão a modas. Mesmo se fala em religião, o faz de maneira mundana (mais do que laica). A TV mente porque não resta outra alternativa. O assunto de hoje já não existirá amanhã. A TV é inimiga mortal da memória tanto quanto é amiga da publicidade. No mundo audiovisual, o cinema só tem a perder quando tenta imitá-la. Seu espaço é o da verdade, isto é, da permanência. Não é arte, não é ciência – é uma revelação, como disse Godard. É onde existe (ainda) a hipótese de as coisas se mostrarem tais quais. É bastante possível que hoje pouca gente vá ao cinema para ver Santo Forte. Não importa. Daqui a cem anos, quando alguém quiser saber como pensavam e viviam as pessoas – ou certas pessoas – no fim do século XX, esse filme ainda estará vivo. Este é seu tempo. Esta é sua razão de existir. Taxi Driver 20 de dezembro de 1999 TAXI DRIVER – MOTORISTA DE TÁXI / Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese Travis, o herói de Taxi Driver, é o homem mais solitário do mundo. E também o mais insone. Faz dupla jornada como taxista porque não consegue dormir. Quando arranja uma namorada, sua primeira providência é levá-la a ver um desses filmes científicos sobre sexo – o pornô da era pré-pornô. Travis não o faz por mal: ele o assiste como se estivesse vendo O Mágico de Oz. A garota (Cybill Shepherd) abandona-o, dizendo que pertencem a mundos diferentes. Com efeito. Mas o tempo mostrará que Travis não pertence a mundo algum, já que nada nele é partilhável. Tudo começa e termina em sua cabeça. O mistério desse filme é como conseguiu fazer sucesso, de maneira tão duradoura, a partir de um personagem tão raro? Tentemos algumas hipóteses. Em primeiro lugar, Martin Scorsese não se afasta da tradição do herói americano do cinema moderno. Travis é um herói e um delinquente, um santo e um boçal. A essa linhagem que o filme noir desenvolveu com gênio, Scorsese introduz uma variante religiosa. Travis é movido por um sentimento moral extremado, pela necessidade de limpar o mundo de sua podridão. A questão é: ao fazê-lo, estará efetivamente se tornando um herói ou acrescentando mais podridão a esse mundo? Está certo, a horas tantas decide trucidar o gigolô (Harvey Keitel) de Iris (Jodie Foster), uma menina de 12 anos. Por que o faz? Talvez por ter sido largado no cinema pela namorada. Talvez porque para um homem insone tudo se torne um sonho, e isso seja apenas um sonho. Talvez, ainda, porque não suporte a impureza. Scorsese sustenta até o final a ambiguidade de seu santo. Basta atentar a dois planos em que seu olhar é colocado em destaque. Num, o olhar sorri, delicado, angelical. No outro, fecha-se, torna-se duro, ameaçador. A rigor Travis não é diferente de qualquer outro homem que encerra em si contradições. A única diferença é de medida: tudo nele é exacerbado, paroxístico. Revisto hoje, Taxi Driver parece fechar uma era em que o cinema acreditava piamente nas coisas e mostrá-las, não como signos, mas como coisas mesmo. Talvez o católico Scorsese seja o último grande cineasta a cultivar a fé nas imagens (no caso, ajudado pelo protestante Paul Schrader), na possibilidade de revelar o que está nos objetos e nas pessoas. Por mais diferentes que sejam, Brian De Palma, Spielberg ou Coppola enveredaram pelo caminho da fantasia, da citação pós-moderna, da aventura infanto-juvenil à moda dos anos 1930. Scorsese permaneceu fiel ao cinema de feitura clássica, de crença absoluta no cinema como instrumento capaz de recuperar o real. Isso é o que é Taxi Driver. Um documento (não documentário) sobre a sordidez dessa Nova York que Scorsese ama e que sabe filmar como ninguém, em travellings noturnos leves, sorrateiros, em que a música enfatiza a beleza insensata e melancólica. Máfia no Divã Resgatou Sabedoria do Público 17 de janeiro de 2000 MÁFIA NO DIVÃ / Analyze This (1999), de Harold Ramis Mil novecentos e noventa e nove, já se disse, foi o ano de Matrix. Ou de A Bruxa de Blair. Há quem prefira Clube da Luta. É normal que se coloquem as coisas nesses termos, já que esses filmes foram sucessos que começaram e terminaram na mídia. O sucesso de A Máfia no Divã, diferentemente, começou e terminou no público. Se fez no chamado boca a boca; deve muito pouco a experts de qualquer categoria. Experiência pessoal: tentei assisti-lo quando estava ainda nas primeiras semanas de exibição, numa das salas do Estúdio Alvorada. A sessão estava lotada. Impossível vê-lo na sessão seguinte, pois dividia o cartaz com outro filme. Algum tempo depois, A Máfia no Divã tinha sido retirado do Estúdio Alvorada, colocado no Astor, cinema da mesma companhia (Alvorada), no mesmo local (Conjunto Nacional), mas uma sala bem maior, com quase mil lugares, e exibido em todas as sessões. Não estava inteiramente lotada, mas quase. Ser grande destaque de bilheteria não diz muito sobre um filme. Objetivamente, deveria ser importante apenas para seus acionistas ou concorrentes – enfim, uma informação estritamente corporativa. Mas hoje os lançamentos de cinema são atrelados a poderosos esquemas publicitários. O hábito de ir ao cinema foi substituído por obrigações pontuais. Essa é, em suma, a era do blockbuster: lançamentos gigantes, centenas de cópias (milhares, nos EUA) e circulação rapidíssima da mercadoria (o filme e badulaques). Em poucas semanas, com raras exceções, seu poder de fogo deve estar consumido. É a simultaneidade. É o marketing, também. Em vez do boca a boca, existe o silêncio. Não se diz mais vá ver tal filme, é legal. Cabe à mídia esse papel, num sistema de antecipação: anuncia-se a filmagem, divulga-se o orçamento, exibe-se o making of, publicam-se entrevistas com os atores. Enfim, criam-se expectativas que pouco têm a ver com o cinema propriamente dito. Exemplo: o interesse por A Bruxa de Blair é apriorístico, nossa curiosidade é mobilizada não pelo filme, mas por seu entorno. Não é algo inédito. Mas aquilo que em Hitchcock, por exemplo, era intuição genial, hoje tornou-se ciência eficaz. Já A Máfia no Divã resgata algo que parecia desaparecido: a velha sabedoria do público. Pressionado por esquemas publicitários, o espectador de hoje raramente escolhe o que vai ver. Responde à publicidade, dizendo-lhe sim ou não. Raramente tem tempo de dizer vá ver tal filme ao amigo. Quando o encontra, o filme já saiu de cartaz. A Máfia no Divã entra nessa festa como um ato falho do velho sistema. Como deveria ser anunciado? Os programetes da TV por assinatura, por exemplo, poderiam resumi-lo ao encontro entre Robert De Niro e Billy Crystal. Mas, embora os dois estejam muito bem no filme, não é isso o que seduz o espectador na comédia de Harold Ramis. O que ele explora é, antes de tudo, a hipótese de contato entre um gângster (De Niro) e um terapeuta (Crystal), com todos os mal-entendidos que podem se originar de um encontro entre duas formas inteiramente diversas de entender o mundo. Duas formas de que cada um de nós participa. Podemos ser boçais e machistas como o gângster, ou compreensivos como o terapeuta, conforme a ocasião. Nada revolucionário, em princípio. A sabedoria do filme de Ramis é da ordem do classicismo, isto é, não aspira à originalidade, mas a recolher aspectos dispersos do mundo e reordená-los de forma inesperada. Ao contrário dos terapeutas de Woody Allen, o de Ramis é abruptamente tirado de seu paraíso artificial – paraíso da interpretação –, onde é onipotente, para o mundo da ação, com todas as suas vicissitudes. Já o gângster é deslocado ao mundo da reflexão e do autoconhecimento – o que, em poucas palavras, significa participar de um universo de incerteza e dúvida. Harold Ramis consegue neste filme aproximar dois modos dominadores e de algum modo inumanos de ser, e mostrá-los em sua vulnerabilidade. Mostrá-los em sua humanidade, isto é, nessa precariedade que, por profissão e crença, cada um deles deve esconder. É também um encontro entre o sujeito suposto saber, como Jacques Lacan definiu o psicanalista, eo sujeito suposto poder, como se poderia definir, paradoxalmente, o gângster. O saber é o poder do terapeuta e a ruína do gângster. E vice-versa. Ao mostrá-los tão supostos, Ramis fez um filme memorável. Sua aceitação e sucesso mostram que a cultura cinematográfica está, de certa forma, mais viva do que parece e menos sujeita à oposição dilacerante entre blockbuster e filme de arte. Merece ser lembrado não como fenômeno, não pelo gênio, mas como, talvez, o filme mais divertido e um dos mais inteligentes que passaram em 1999. Filme de Saraceni É um desses Anacronismos Magníficos 4 de fevereiro de 2000 O VIAJANTE (1999), de Paulo Cesar Saraceni Com todo o respeito pelo Rio, não há lugar mais cinematográfico do que Minas Gerais. Ali não é somente a terra dos morros e cachoeiras. É, também, o lugar do não-dito, das coisas que revelam e silenciam simultaneamente, de desejos tão intensos que se envergonham de existir, da incapacidade de ser, de singelezas e brutalidades, do catolicismo profundo e das perversões hediondas, onde monstros e anjos se confundem e o mundo mental e o físico se interligam tão misteriosamente que podemos nos perder, sem saber que dimensão observamos. Minas também é, convém não esquecer, terra da liberdade ainda que tardia, a que aspiram a viúva Donana (Marília Pêra) e a adolescente Sinhá (Leandra Leal), protagonistas de O Viajante, filme de Paulo Cesar Saraceni que estreia hoje em São Paulo. Ambas são seduzidas pelo estranho do título (Jairo Mattos), uma espécie de anjo exterminador que chega ao lugarejo onde vivem (mas em certos momentos parece mais o boto de Ele, o Boto, de Walter Lima Jr., mais leve e sensual do que exterminador). A viúva matará de maneira infame seu próprio filho retardado, como quem se livra do passado ingrato ou se liberta do Deus cruel, que a esqueceu. A menina será igualmente seduzida, terá sua beleza maculada, se tornará um corpo vazio, sem valor – como ela mesma diz. Ou seja, a libertação não virá assim tão fácil. É em torno desses elementos que Saraceni desenvolverá suas ideias sobre um universo em que desejo e repressão se entrelaçam estreitamente. O espectador poderá perder-se com facilidade, caso não conheça alguns referenciais que movem este filme. Em primeiro lugar, O Viajante é decididamente fora de moda. Não pertence ao ano 2000, a esse momento em que os filmes bajulam o público descaradamente, oferecem em regra narrativas tão evidentes, tão fáceis, que às vezes nem é preciso entrar no cinema para conhecê-las. O Viajante é difícil, sim. E anacrônico também. Mas trata-se de um magnífico anacronismo, que se mostrará generosamente a quem se disponha a abrir os olhos e contemplá-lo. Talvez seja preciso lembrar a sem-cerimônia com que Buñuel tratava o cinema, para encontrar um equivalente. Nada da perfeição mecânica dos circos de cavalinho. Em certos momentos, há até imagens fora de foco, coisa que o cinema nacional aboliu pela busca da perfeição técnica. Há, por vezes, imagens dispensáveis, arbitrárias (como Milton Nascimento fazendo o homem do realejo a oferecer a sorte num descampado), que a um tempo esvaziam nosso desejo de verossimilhança e afirmam um desejo de autor (aquilo está ali não porque seja funcional, mas porque alguém quer que seja assim). Despojando-se das superstições a que induz o cinema fácil, o espectador será livre para contemplar a beleza das imagens de Saraceni e da luz de Mário Carneiro. Para viajar por esse território secreto e dissimulado que é Minas. Viagem contemplativa, com certeza, mas não de todo, pois sabemos desde Humberto Mauro – nosso primeiro grande cineasta – que essa natureza ao mesmo tempo discreta e ostensiva não se deixa ver simplesmente. Ali, toda natureza já é humana, fala de nós e nos observa, ao mesmo tempo em que a observamos (pois Minas somos nós). Esse é o tom que se impõe, em particular na primeira metade do filme – em que o guia de Saraceni parece ser mais Humberto Mauro do que Lúcio Cardoso –, diferente da segunda, mais interiorizada e noturna. É a esse mundo fantástico, em que se acotovelam a espiritualidade e a carne, no qual os demônios fustigam a santidade, que nos transporta O Viajante. É provável que poucos se habilitem a embarcar. É provável também que o filme seja um rotundo fracasso. Nesse caso, estará de acordo com outra tradição brasileira: a de raramente reconhecer seus tesouros e de correr atrás de esmeraldas; ali, só há o brilhareco das turmalinas. Uma Temporada no Inferno 13 de fevereiro de 2000 A LENDA DO CAVALEIRO SEM CABEÇA / Sleepy Hollow (1999), de Tim Burton O mal dissimula-se na virtude. A ideia é repetida várias vezes por Johnny Depp em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, e não por acaso. Primeiro porque, como veremos no final do filme, isso realmente acontece. Segundo, porque ela afirma a filiação do filme de Tim Burton ao cinema de John Ford. Ela é evidente não apenas nessa frase, como na descrição da sociedade americana e, mais ainda, na perseguição final, calcada em No Tempo das Diligências. Não há melhor tradição no cinema americano do que a de Ford, e No Tempo das Diligências é exemplar a esse respeito. Ford não deposita o mal nem na prostituta, nem no pistoleiro, nem no médico bêbado, nem no homem fraco. O mal está no excesso de virtude (a ideia vem, em parte, de Griffith, o pai de todos), na hipocrisia dos puritanos. Essa filiação não significa que Burton abra mão da originalidade. A Lenda é um filme contemporâneo, discute as intrincadas relações entre o aparente e o verdadeiro, a imagem e o real, como a nos lembrar todo o tempo que nunca podemos nos deixar levar pela primeira impressão, pelo visível. Antes de ser visível, o mundo é legível, isto é, apresenta-se a nós como um enigma a ser decifrado (daí A Lenda ser mais que tudo um filme de detetive). Diante dele não podemos baixar a guarda nem por um segundo: a todo momento, uma imagem pretenderá fixar-se como real, uma aparência tentará se impor como verdade. Ninguém domina a aparência plenamente, assim como ninguém domina a verdade, a começar pelo próprio detetive Ichabod Crane (Johnny Depp), que vira o século (XVIII para XIX) munido das certezas iluministas da ciência. Sua trajetória, porém, suporá um amargo deslocamento, começando por sua crença na impossibilidade de um cavaleiro sem cabeça, devidamente morto, se pôr a matar pessoas da cidadezinha de Sleepy Hollow. Logo veremos que o criminoso é mesmo um cavaleiro sem cabeça. O interessante, porém, é que essa concessão da razão à fé se mostra antes de tudo como um ato razoável: o aparelhamento científico e, sobretudo, o raciocínio lógico o levarão a concordar com a crença disseminada no lugarejo, embora muito diferentes sejam as conclusões a que chega e as consequências que tira de sua existência. Crane não cede ao delírio místico, pois esse delírio só pode levar – correto ou não – à perpetuação do mistério e ao encobrimento da verdade. Essa atitude positiva levará o herói, a cada passo, a uma tortuosa aventura interior. Cada momento de seu passado, cada passo do presente têm de ser revistos, repensados, pois não pode conhecer o mundo quem não conhece a si mesmo. Para chegar à verdade, portanto, é preciso errar, saber mudar, estudar as aparências, as imagens, e associá-las numa série, reconstituir o encadeamento dos fatos sem abrir mão de seus princípios, mas também sem mostrar-se dogmático. Um detetive precisa ser permeável aos fatos, por mais fantásticos que sejam. Mas, ao investigar a si mesmo, Crane mergulha nas desditas da própria sexualidade. Pois a castração é o que o ameaça (a decapitação é um equivalente da castração), e por trás do perigo de castração está a mulher (um de seus problemas será deduzir quem é a mulher castradora; só resolvendo essa questão poderá aceder à sexualidade). Essa ordem de observação nos leva à segunda grande referência de Tim Burton neste filme, que é Raoul Walsh. Não por acaso, a cena de assassinato de uma família cita diretamente cena similar de Sua Única Saída (Pursued), o magnífico faroeste de Walsh. Walsh foi, mais do que rei do cinema de aventura, o cineasta por excelência do homem livre, entendendo-se por livre aquele que busca seu próprio destino. Não o destino como predestinação, mas aquele que se faz passo a passo. A ação é autoconhecimento, e o caminho que se apresenta à frente só se abre graças a um movimento interior. Se A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça se afirma como um grande filme do presente, não é por certo apenas pela herança que recebe e dignifica de seus antepassados cinematográficos. É, em especial, pela capacidade de surpreender-nos e de se mostrar contemporâneo. Pois o que é essa lenda, afinal, senão um produto sincrético, em que a aventura, o faroeste e o filme de detetive encontram o fantástico e, eventualmente, o terror? Junção inesperada, borgiana, em que Burton afirma o pleno direito à fabulação, ao conto, à crença de que as coisas só existem no campo da imaginação e das ideias. Portanto, se a virtude é o disfarce preferido do vício, e o real é o disfarce da aparência, resta uma variante a considerar: a verdade que se dissimula como imaginário. Todos os filmes de Tim Burton comportam, à sua maneira, um elogio do imaginário. Mesmo quando assume sua forma negativa – em Marte Ataca!, crítica feroz à banalização promovida pelos filmes de ficção científica –, esse é seu território. Em A Lenda, Burton promove o encontro entre razão e imaginação com uma desenvoltura só encontrável, até hoje, nos filmes de Jean Cocteau (Burton cita os filmes de terror da Hammer como uma forte influência; embora seja verdade, no que diz respeito à ambientação, me parece uma influência menos profunda). No início, coloca seu espectador diante de um mundo dominado pela magia e, imediatamente, apresenta seu personagem desviante, na figura do detetive que sustenta só ser possível distinguir culpados e inocentes com métodos científicos de investigação e detecção da verdade. Um pouco por castigo, por professar publicamente esse tipo de ideia, ele é enviado a Sleepy Hollow para investigar a série de crimes misteriosos, em que as pessoas aparecem com a cabeça decepada. Crane imediatamente duvida da explicação mágica difundida no local: um cavaleiro cruel, que tinha tido a cabeça decepada anos atrás, voltara do reino dos mortos para se vingar. Ao mesmo tempo em que é lançada a explicação, Burton planta uma expectativa em torno da culpabilidade dos notáveis do lugar. O detetive rejeita a explicação mágica. No entanto, os crimes continuam a acontecer, inexplicáveis, de tal modo que ele é forçado a ceder e aceitar a explicação, embora não inteiramente. Aceitá-la inteiramente significaria renunciar à investigação, à possibilidade de entendimento. O detetive precisa jogar o jogo do criminoso (como em todo bom conto do gênero), aceitar a instabilidade do olhar, compreender a mente do criminoso. No caso, Burton não trabalha com a figura clássica do detetive que tem (ou cria) um criminoso dentro de si. O que ilumina Crane (ou por vezes turva seu raciocínio) é o amor de uma mulher. Como nos filmes de Cocteau, em A Lenda não existe terror propriamente dito, embora a trama não seja mais do que um desvio pelo inferno, rito iniciático: aceder à vida, à sexualidade, implica essa visita ao inferno, lugar onde o falso e o verdadeiro não se distinguem. No que é essencial, ao final da travessia, poderemos perceber que a verdade não está nas imagens, em cada imagem dada a ver ao espectador, ou nas imagens do crime que o detetive vai criando para tentar entender o caso. O real não se confunde com o visível, ele se desenha na articulação entre as imagens – na maneira como as compreendemos, em suma. Godard é um Guerrilheiro das História(s) do Cinema 6 de março de 2000 HISTÓRIA(S) DO CINEMA / Histoire(s) du Cinéma (1988-98), de Jean-Luc Godard Ninguém espere que, com História(s) do Cinema, Jean-Luc Godard abandone seu gosto pela ambiguidade. Já o título dá uma ideia disso: história ou histórias? É possível existir uma só história, ou o cinema é uma experiência adquirida ao longo de muitas histórias? Ninguém espere, igualmente, por certezas. Godard é um cineasta da indagação. Por isso, perguntará o que é o cinema: indústria da evasão ou lugar da memória? Mas o que é evasão? O que é memória? O que guardam os fotogramas? Godard não é um cineasta da comunicação. A comunicação não é seu campo. É um pouco como um Chacrinha erudito, que viesse mais para confundir do que para explicar. Por que então parecem tão necessários os oito episódios dessa série que o Eurochannel mostrará em março e abril? Em primeiro lugar, por isso mesmo: neste mundo de comunicação ampla e fácil, onde todos se entendem com todos, algo existe de evidentemente errado. Nada muito fácil vale a pena. A própria informação, abundante demais, vira desinformação. Godard não aceita isso, está claro. Fala do cinema, do passado, mas esse passado não está lá, mumificado. É vivo e capaz de nos surpreender a cada instante. Veja, por exemplo, a cena de Duelo ao Sol, de King Vidor, com a música de Um Corpo Que Cai, de Hitchcock. Suspense no Oeste. King Hitch. Raras vezes se vê uma só imagem ou escuta-se um só som. Como se surgissem inquietas na memória de Godard, as imagens surgem, disseminam-se, subvertem-se, são invadidas por palavras, palavras que compõem jogos de palavras, músicas e ruídos que afogam a narração por alguns instantes. Tudo isso parece sugerir uma série para professores da ECA, especialistas especializadíssimos. Nada disso. Mesmo o espectador para quem os nomes de filmes ou os fotogramas que explodem na tela não signifiquem nada poderá se entregar agradavelmente à montagem que Godard propõe. Claro, não alguém que busque a evasão pura e simples. Mas basta ter noção da beleza para entrar nessas histórias, tão espantosos são os efeitos que Godard arranca das superposições de imagens, da organização da banda sonora, das palavras do narrador que se escondem sob ruídos. Mas não é de um exercício meramente formal que se trata. Godard evoca e amplifica a célebre máxima de um dos irmãos Lumière: o cinema é uma arte sem futuro. Portanto, do presente. Uma arte que tira mais do mundo do que dá. Talvez seja esse o fundamento dessas História(s). Diferentemente das outras artes, o cinema é um ladrão do mundo: ele não cria, e sim retira coisas do mundo e as acondiciona. As histórias que Godard conta são, hoje, as de um guerrilheiro para quem o cinema falhou na missão de organizar o olhar. São estilhaços de uma possível arte que reivindicam, ainda, sua presença num presente em que a indústria da evasão ganhou, claramente, a batalha. Destino Guia Ciclo sobre Douglas Sirk 10 de abril de 2000 Douglas Sirk poderia ser conhecido hoje como um grande diretor de teatro. Essa foi sua primeira vocação. Poderia ser conhecido como um homem cultíssimo, conhecedor íntimo do teatro clássico, amigo de Max Brod e alguém que conheceu Kafka. O destino no entanto conspirou para que ele fosse levado do teatro ao cinema. Da Alemanha para Hollywood. De Goethe aos melodramas. É portanto na condição de mestre dos melodramas da Universal que o conhecemos e que sua obra pode ser conhecida em conjunto, a partir de hoje, quando o Telecine 5 começa a exibir um ciclo com dez de seus trabalhos. É o destino, justamente, que será o grande assunto desses filmes. Seus personagens estão invariavelmente às voltas com um destino inelutável e maior do que eles. Vejamos Imitação da Vida. Sarah Jane é uma garota negra, que não apenas odeia ser negra (porque é discriminada), como odeia sua mãe pelo mesmo motivo. Sarah Jane voltará as costas a ela para viver como uma branca. Seguirá atrás de uma miragem de vida. É o mesmo que fará Kyle Hadley (Robert Stack) em Palavras ao Vento, embora em sentido contrário: é filho de um magnata de petróleo, rico, casado com uma bela mulher. Mas não consegue vencer o sentimento de inferioridade que o corrói justamente porque tudo na vida o favorece. De acordo, algumas dessas histórias estão entre as piores do mundo. Seu interesse está em permitir que Sirk tire ouro de pedra e as transfigure com um olhar às vezes cruel, às vezes irônico, mas sempre apaixonado pelo destino – por mais estrambótico que seja – de seus personagens. Os personagens de Sirk são, aliás, sempre divididos. Tomemos Tudo o que o Céu Permite: Cary Scott (Jane Wyman) é uma viúva que acredita reencontrar a felicidade nos braços de seu jardineiro (Rock Hudson). Mas ela esbarrará no preconceito das pessoas de sua cidadezinha e, sobretudo, no de seus filhos. Ou ainda, em Almas Maculadas, Roger Shumann (Robert Stack), ás da aviação, herói da 1ª Guerra, corteja a morte em corridas de avião, em vez de cortejar sua linda mulher (Dorothy Malone) e seu filho. No geral, os personagens sirkianos são incapazes de viver porque sua compreensão das coisas é incapaz de abarcar a vida, sempre maior do que eles. Daí um tipo de olhar muito característico deles, que se pode chamar de olhar do cego, pois o personagem olha fixamente para algum objeto, mas não fixa, na verdade, nada do mundo exterior. É um olhar interiorizado. No entanto, seu mundo interior também não lhe mostra nada. Se esses seres divididos marcam profundamente a obra de Sirk, sua mise-en-scène também é carregada de elementos que chamam a atenção para a ambiguidade das coisas: as janelas, por exemplo, são enfatizadas, porque dividem o mundo em dentro e fora; os espelhos são objetos privilegiados, porque subitamente fazem com que esses personagens se contemplem tal como são e vejam com horror aquilo em que se transformaram. Como disse R. W. Fassbinder – seu discípulo mais apaixonado –, a obra de Sirk é antes de tudo uma soberba ilustração da diferença entre literatura e cinema. É na maneira como dirige os atores, seus gestos, suas entonações de voz, maneira de andar, que um mundo se compõe à nossa frente para melhor se decompor em seguida. No fim, esses seres precários, às vezes risíveis, revelam-se, como um espelho, imagens de nós mesmos. É nesse retorcimento último que somos arrastados para dentro do filme, como na cena sublime em que Jane Wyman, após ser obrigada a deixar o amante e a viver na plena solidão, recebe dos filhos, de presente, uma TV para lhe fazer companhia. Este é só um dos momentos exemplares da obra exemplar de Douglas Sirk. Conspirando contra o Quê? 14 de abril de 2000 GÊMEAS (1999), de Andrucha Waddington Contra o que conspira a Conspiração Filmes? Essa é talvez a primeira pergunta que inspiram os filmes dessa produtora, provavelmente a única que chega, no cinema brasileiro atual, a configurar uma corrente. A Conspiração trabalha, antes de mais nada, contra a tradição que o Cinema Novo consagra, a da estética da fome e suas decorrências. Existe uma outra tradição no Brasil a considerar, que não é propriamente industrial (ideia lançada e relançada, que nunca foi entre nós mais que uma caricatura), mas a do cinema publicitário. A publicidade firmou-se como o cinema da qualidade brasileira junto ao público de classe média justamente por evitar aquilo que esse público considerava como deficiências da produção nacional. Por serem anúncios, a luz não era a luz do Brasil, mas dos produtos veiculados. A produção também não remetia às agruras do cotidiano, mas ao universo de consumo (isto é, um mundo entre parênteses). A supervalorização do cinema publicitário no Brasil deveria ser, em todo caso, tema de um estudo antropológico, antes de cinematográfico. O fato é que os jovens cineastas da Conspiração embarcaram nessa via que pode até funcionar durante 30 ou 60 segundos, mas se aguenta mal em um longametragem. Porque a pergunta que o espectador de cinema pode legitimamente se fazer ao longo de Gêmeas é: afinal, este filme está anunciando o quê? A trama explora a semelhança entre duas gêmeas idênticas, Iara e Marilena, a partir de um conto de Nelson Rodrigues, com todas as decorrências presumíveis (uma é introvertida, a outra é saidinha, trocam de namorado o tempo todo, até que se apaixonam pelo mesmo homem, etc.). É um partido que pode ser fértil, como bem mostram As Irmãs Diabólicas, de Brian De Palma, ou Gêmeos, Mórbida Semelhança, de David Cronenberg. Não será justo esperar tanto. Mas, à força de aspirar a ser antes de tudo um filme bem feito, Gêmeas termina apenas por ser simplesmente um filme cosmético. Seu sentido é expor a suposta excelência da cenografia, dos figurinos, da fotografia, da atriz, como se a mise-en-scène fosse a soma dessas particularidades e não, inversamente, aquilo que lhes dá unidade e sentido. Em todo caso, se o ponto da Conspiração é esse, nada a discutir: o filme é bem feito. E se apoia, no mais, em uma belíssima interpretação de Fernanda Torres. Mas o público que reivindica um cinema bem feito é o mesmo que costuma reclamar da falta de ideia de nossos roteiros (embora esse público em geral evite ver filmes brasileiros). E, em matéria de roteiro, Gêmeas tende à nadificação de Nelson Rodrigues. Não é uma atitude inédita. Rodrigues foi, por exemplo, um nacionalista feroz. Hoje é lido e incensado como se essa característica não fizesse parte de seu pensamento. Cita-se – ou copia-se – seu fraseado a três por dois, como se ele não tivesse relação com alguma ordem de ideias. Rodrigues foi um moralista, um católico fervoroso e trágico, para quem o homem nunca estaria à altura dos projetos de Deus. De certa forma, era um jansenista carioca. O que há disso em Gêmeas? Nada, a não ser uma intriga, um pretexto que, à força de trair o dramaturgo, não se aguenta nem pela intriga. Intriga que, no filme, lança todas as suas premissas nos primeiros minutos, deixando tanto a evolução como o epílogo a descoberto – repetições aborrecidas daquelas premissas. Não é propriamente um equívoco técnico (embora também o seja, subsidiariamente): é uma maneira de vivenciar o cinema que ali se cristaliza. Maneira que não leva a lugar nenhum, como o filme bem demonstra. Truffaut Mistura Nostalgia e Modernidade 29 de setembro de 2000 DE REPENTE, NUM DOMINGO / Vivement Dimanche! (1983), de François Truffaut Quem se fiar nas aparências, verá em De Repente, num Domingo, de François Truffaut, apenas um filme acadêmico, que repete fórmulas. Lá estão a ideia de filme noir, transposto para a França, o uso do preto e branco, uma narrativa perfeitamente conforme os cânones tradicionais. Quem pensar assim terá um fundo de razão. Mas não mais do que isso. Com efeito, François Truffaut era, dos cineastas da Nouvelle Vague, o mais apegado ao passado. Seus filmes, não raro, pareciam feitos para manter vivo o cinema, ou antes, uma ideia específica de cinema: o da era clássica. A sensação de nostalgia que transmite esse filme vem menos do fato de ter sido feito em 1983 do que por estar impregnado por um espírito preservacionista. Agora, quem não se fiar nas aparências terá a oportunidade de ver que essa é apenas a capa sob a qual se esconde a modernidade profunda de Truffaut, o que já começa na intriga: Vercel (Jean-Louis Trintignant), corretor imobiliário, se vê, de um momento para o outro, acusado pelo assassinato do amante de sua mulher e, logo a seguir, da própria. Todas as aparências conspiram contra ele. A seu lado, apenas Barbara (Fanny Ardant), a secretária (e atriz amadora) que ele havia despedido nos primeiros cinco minutos de filme. A postulação clássica, evidente, começa pela maneira de dispor essa intriga: uma polícia que só persegue evidências, um suspeito com todos os motivos para eliminar suas vítimas, etc. E, em seguida, uma mulher que coloca uma capa sobre a roupa de atriz e passa a desempenhar o papel de detetive particular sem nem mesmo gritar: Shazan. No entanto, do acadêmico ao clássico vai uma distância. Em 1983, Truffaut faz um filme que, ao longo dos últimos 17 anos, não fez senão se tornar mais atual, justamente porque seu centro são as aparências do mundo. Ou antes: muito pós-modernamente, pois é a um mundo de aparências que somos confrontados. Se num filme de Hitchcock, por exemplo, a polícia já se dedicava, exatamente como aqui, a buscar falsos culpados, podia-se pensar que, sob o engano, existia uma verdade que era a essência desse mundo. Em De Repente, num Domingo, não estamos longe de um Brian De Palma ou de um Orson Welles: cada signo remete a novos signos; estes, a outros, e assim sucessivamente. A intriga é um jogo de espelhos que remete espectadores e protagonistas a outras imagens, mas essas imagens são apenas outra face, outro espelho. Quem é Marie-Christine, a mulher assassinada logo no início do filme? Uma dona de casa, uma esteticista, uma prostituta? O que é um cinema? Uma casa de espetáculos ou a fachada de um negócio ilegal? É nesse território instável que Truffaut instala seu filme. Pode-se dizer que, bem classicamente, ele não leva a ideia de simulacro às últimas consequências. Mas é nessa teia de aparências que vamos mergulhar durante quase duas horas, acompanhando a questão que o cineasta se coloca: o que há de verdade numa imagem e como distinguir, neste mundo, o falso do verdadeiro. A resposta não está propriamente na intriga policial que acompanhamos, mas nas suas bordas. A resposta está na mulher. Ela pode ser vítima (Marie-Christine) ou heroína (Barbara). O falso culpado ou o culpado de fato não se movem senão em razão dela. Talvez por isso De Repente, num Domingo seja um filme exemplar e vivo. Primeiro, porque mobiliza plenamente a paixão de Truffaut pelas mulheres. Segundo, porque entroniza a mulher como a mais bela das aparências do mundo. E a única capaz – em especial a mulher certa – de dar sentido às coisas, de redimir o homem de sua errância, bastando que o olhe, além da aparência, e saiba suscitar a verdade que existe nele. A isso também se costuma chamar amor. Filme Mostra Mundo Povoado por Imagens Vazias 20 de outubro de 2000 O HOMEM SEM SOMBRA / Hollow Man (2000), de Paul Verhoeven É fácil não gostar de O Homem sem Sombra. Pesam contra o novo filme de Paul Verhoeven o tema batido, o roteiro pouco inspirado na segunda metade, atores mal escalados ou que parecem não se interessar pelo que fazem. As virtudes são menos evidentes. Já houve quem condenasse o filme como um show de efeitos especiais. De fato, tanto os efeitos como o show estão lá, claros o bastante para que se possa filiá-lo à mais tradicional corrente do cinema, aquela que o faz sucedâneo e herdeiro do circo. Nesse sentido, é bem compreensível que sobretudo os intelectuais se desinteressem pelo que veem. Estamos na esfera do cinema como puro espetáculo, diversão eminentemente popular, cuja decadência é sensível há pelo menos duas décadas. A história é de uma irrelevância quase tocante. Um cientista brilhante (Kevin Bacon) descobre a fórmula da invisibilidade. Mais em função de seu brilho do que da descoberta, esse homem se julga Deus. Mas ele está longe de ser Deus para a antiga namorada e ainda hoje colaboradora (Elisabeth Shue). Com todo o ânimo do mundo, ela prefere os braços de outro rapaz da equipe. Rejeitado, esse autodenominado Deus se vale do poder da invisibilidade para descarregar seu ciúme desmedido. Breve, estamos diante de um caso clássico de cientista louco. Se O Homem sem Sombra me parece defensável é, em primeiro lugar, porque o cinema não é uma arte do roteiro, mas da imagem. E, naquilo que nos mostra, este filme traz a marca de um cineasta invulgar. Existe ali, antes de tudo, o homem, cuja invisibilidade é relativa, já que a maior parte do tempo usa uma máscara que o torna um contorno vazio. Um homem mais oco do que invisível. Esse demiurgo julga-se no direito de determinar, entre outras, quem pode e quem não pode viver. A imagem vazia tem sido um tema frequente de Verhoeven, em geral pouco compreendida (ou aceita). Foi assim com Showgirls, onde se tomou por corpo pornográfico um corpo (o da corista) cuja nudez funcionava, paradoxalmente, como armadura (não era muito diferente do corpo de Robocop, filme também realizado por Verhoeven). Foi assim com Tropas Estelares, embora por outros motivos. Ali confundiu-se com filiação nazista um filme que se opunha claramente ao absolutismo da globalização. O que tento dizer, em suma, é que os filmes de Verhoeven prestam-se ao fracasso neste tempo em que o cinema trocou sua filiação circense pela arte. Pois não são filmes para pensar, mas para ver. Não são filmes de história, mas de imagem; nem de signos, mas de coisas. O holandês Verhoeven é hoje um dos pilares da tradição americana, que é menos narrativa e mais poética do que parece. Ambos fazem filmes que solicitam nossa capacidade de ver as imagens, de recebê-las como expressão de um estar no mundo, do qual seus filmes tentam dar conta. É um cinema, no mais, crítico, pois trabalha das imagens aquilo que nelas é vazio, ausência. Isto é, aquilo que se esconde no visível justamente por se exibir sem pudor. Nesse sentido, O Homem sem Sombra é uma variação belíssima de Showgirls. Se lá a exibição ostensiva do corpo funciona como escudo, aqui sua ocultação expõe o triunfo cientificista nesta virada de milênio. Também não é por acaso que voltamos ao tema caduco do cientista louco, que teve seus dias de glória nos filmes dos anos 1930. O cientificismo atual não terá um quê de darwinismo social, que supõe a sobrevivência do mais forte? E nesse sentido não responde à organização de poder no mundo globalizado? É isso que mostra O Homem sem Sombra: a imagem de um mundo povoado por imagens vazias (as da TV, por exemplo), de uma perversidade sem par, pois afirmam trazer a verdade do mundo, quando apenas constroem uma imagem desse mundo. O Mercado e a Atividade Artística 12 de dezembro de 2000 O PORTAL DO PARAÍSO / Heaven’s Gate (1980), de Michael Cimino Por que, quando se fala em cinema, logo alguém brande o mercado como instância última? Se um dia for feito um inventário dos fracassos gloriosos, dele constará O Portal do Paraíso, de Michael Cimino, entre tantos outros. Então, qual a relevância do mercado na apreciação de uma atividade artística? Na verdade, isso não tem relevância, exceto por acomodar as coisas numa ordem – neoliberal. Assim como os comunistas nunca souberam o que fazer com a cultura (e a liberdade que implica), por motivos outros os neoliberais também tergiversam sobre o assunto. Supor uma indústria em que competir não é tudo significa que a teoria não vale para tudo. Talvez não valha, então, para nada. Filme Mostra Brasil em Moeda Corrente, sem Perspectivas 15 de dezembro de 2000 XUXA POPSTAR (2000), de Paulo Sérgio de Almeida e Tizuka Yamasaki Xuxa Popstar é o exemplo acabado de certo cinema industrial brasileiro, que alguns preconizam como salvação da pátria: o filme que não tem como dar errado e pode enfrentar triunfalmente a competição desigual no mercado interno. Seria possível dizer que Os Trapalhões, por exemplo, também competem no mercado interno. Mas são bem outros os elementos com que trabalham. Os elementos usados em Xuxa Popstar são, em poucas palavras, um argumento que roça a idiotia, a própria Xuxa (isto é, a TV), uma montanha de conjuntos bregas e outra de desfiles de moda. Trata-se de uma mistura de celebração do universo midiático com a degeneração de todas as utopias (a marxista, a getulista, a positivista – qualquer uma) de construção de um país digno que já se pôde cultivar algum dia. Passemos pela intriga: Xuxa é uma modelo internacional em ocaso de carreira que volta ao Brasil para se tornar executiva de uma agência de modelos, a Popstar. Existe, porém, uma agência inimiga disposta a sabotar seu trabalho. Paralelamente, a solitária Xuxa cultiva um amor virtual (via internet) com alguém que se assina Raio de Luz. A infantilidade da intriga não tem importância, já que o filme se destina a um público infantil. Grave, no caso, é que os seus realizadores tenham tão pouca convicção do que fazem (exceto pelo aspecto argentário) que a história ocupe uns 20 minutos de filme, cabendo o restante aos canto-res bregas e desfiles. Seria possível argumentar que o copioso desfile de músicos faz parte de nossa tradição. A chanchada não era, afinal, muito diferente disso. Existe entre os dois, no entanto, ao menos uma diferença profunda. A chanchada sabia se relacionar com o mundo real, o que Xuxa Popstar recusa inteiramente. Pela chanchada, conhecemos o Rio dos anos 1950, suas tensões (morro/cidade, por exemplo), seu humor, certa disposição das pessoas. Aqui, ao contrário, o mundo exterior só é solicitado a comparecer quando se trata de fazer merchandising de algum produto. É impossível negar que exista aí certo gênio. O Brasil de Xuxa não é propriamente um país. É um lugar propício a negócios, em que o triunfo se resume, em linhas gerais, a alcançar a fama. Esse pensamento é mediado por um fraseado enjoativo, do tipo não se ensina ninguém a vencer (leia-se: todos têm oportunidades, mas só alguns poucos eleitos chegam lá; os que não chegam é por culpa própria) ou por mais longa que seja a noite, o dia sempre chega (entenda-se: a coisa está ruim, mas confie, porque vai melhorar). Seria injusto acusar esse pensamento de conformista. O conformismo é o que ele tem de melhor. O que assusta é o aspecto lobotomizante da empreitada, cujo grande momento está na peroração de Xuxa a duas crianças: se alguém lhes oferecer cigarro ou bebida, recusem; a droga faz mal, não apenas ao corpo como ao espírito. Aí é um pouco mais grave. Se levarmos em conta o caráter infantil da personagem de Xuxa, representada por uma mulher já entrada em anos, podemos ler isso como uma subliminar pregação das drogas, porque será justo a qualquer um, ao ver isso, indagar-se se não é a falta de álcool e nicotina que deixou essa pessoa assim meio abobalhada. O filme é, em suma, um depoimento deprimente, mas muito significativo, sobre a maneira como o Brasil se encara: uma nação sem imagem e sem perspectivas, a não ser o sucesso – entendido aqui como a capacidade de amealhar uma montanha de dinheiro. Em suma, um país sem valores a não ser os que se podem medir em moeda corrente. Kiarostami Esconde Tesouro de Busca por Realidade 15 de dezembro de 2000 O VENTO NOS LEVARÁ / Bad Ma Ra Khahad Bord (1999), de Abbas Kiarostami Abbas Kiarostami não é um diretor de cinema de dar muito sossego aos espectadores. Custou um pouco, mas havíamos nos acostumado a seu ritmo lento, aos percursos repetidos, às histórias minimalistas em que um pequeno acidente significava o que o naufrágio do Titanic ou uma nave espacial à deriva significa para o cinema americano. O Vento nos Levará, de 1999, nos joga no território da abstração. Aqui, o personagem – um engenheiro em uma aldeia no Curdistão iraniano – percorrerá as mesmas estradas sinuosas. Mas podemos nos perguntar: por quê? Em outros filmes, sabíamos o que estava em questão. Aqui, bem menos. Por que o engenheiro está nessa aldeia? Em princípio, é um segredo. Se perguntarem, diga que procuro um tesouro, diz. O que faz o engenheiro? Passeia pela aldeia, desloca-se até o alto de um morro para falar no celular, conversa com seus companheiros de via-gem (a quem nunca vemos), procura leite para o café da manhã, observa um homem cavando um buraco num cemitério. Nos filmes anteriores de Kiarostami sabíamos, bem ou mal, com o que estávamos às voltas. Aqui, o sentido é sugerido, mas em seguida deslocado. Podemos nos perguntar se o homem é mesmo um engenheiro (não poderia ser um cineasta em busca de assunto?). Em síntese, assim como as pessoas da aldeia, ignoramos quem são os protagonistas da história, seus motivos, o que buscam. Só temos contato com o tempo – a duração e a evolução das coisas. Engana-se quem imaginar que Kiarostami tende a mostrar o que é a vida numa pequena aldeia. Ao contrário, de certa forma, postula a impossibilidade do documentário, isto é, da pretensão de mostrar a realidade. A realidade é uma instância que não existe. Só a imaginação dá forma às coisas. Na verdade, o filme trabalha dois polos: a vida em germinação, com seus pequenos dramas, e a morte. Esse é o objeto de interesse do suposto engenheiro. É isso também o que lhe escapa. Como as águas de um rio, a vida e a morte não podem ser apreendidas. São um mistério, um tesouro que busca. Mas o tesouro é a própria busca, não o que se encontra. Nada do que vemos é especialmente significativo. É o correr do tempo, é a sua incidência sobre as coisas que nos hipnotiza e nos carrega. Como a significar a pequenez de nossa compreensão diante da riqueza da vida. Autor Revê Inventário de Utopia 23 de dezembro de 2000 CINEMA DE INVENÇÃO, de Jairo Ferreira Cinema de Invenção (Editora Limiar) não é o mesmo Cinema de Invenção (Editora Max Limonad) de quase 15 anos atrás. Contribuem para isso o novo projeto gráfico, o enxugamento do texto original e o acréscimo de quatro capítulos que atualizam esse clássico da bibliografia cinematográfica brasileira. Mas o que mais altera a percepção do livro de Jairo Ferreira é provavelmente a passagem do tempo. Em 1986, o movimento de cinema pós-Novo (que se chamou, alternadamente, underground, udigrudi, boca do lixo, experimental e de invenção) era coisa relativamente fresca. Cinema de Invenção tratava do assunto quase como um depoimento sobre o período (basicamente, 1967/1971) e os cineastas do período (20 têm capítulos dedicados a eles, como Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach). O autor trabalhara com vários deles, como roteirista ou assistente de direção. Fora, ao mesmo tempo, um crítico ativo e igualmente marginal (sua coluna no São Paulo Shimbun era praticamente distribuída de mão em mão) e um realizador de super-8 significativo. O tom, como se vê, era (e nesse aspecto continua sendo) bem diferente, por exemplo, do Cinema Marginal, de Fernão Ramos, outra obra de referência sobre o assunto, porém elaborada de fora. Em 1986, seria possível censurar em Cinema de Invenção o ostensivo envolvimento com o seu objeto e o lado não menos claramente cabotino do autor (que tem a audácia de escrever um capítulo sobre si mesmo). Podia-se ver nisso a tentativa de fixar seu próprio nome nessa história. Hoje não há mais esse tipo de percepção. Faz 30 anos, ou quase, que esse cinema já não existe, o que permite, em primeiro lugar, situá-lo historicamente nos chamados anos da utopia e da incerteza, 1967/1971, como faz o autor. Hoje não vem mais ao caso discutir, por exemplo, a relevância desse movimento. Não importa se foi mais ou menos do que o Cinema Novo – cuja oficialização combateu com vigor –, se fez bem ou mal ao cinema brasileiro. Ele existiu, ponto. Os filmes estão aí (nem todos visíveis, é verdade, mas isso é outra história), os cineastas estão aí, alguns ativos, outros retirados. Pode-se discutir se um Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, é coerente com o passado do autor ou não (pessoalmente, penso que sim), ou se a atitude ainda hoje de invenção de Julio Bressane é uma espécie de anacronismo ou não. O fato é que esse cinema, suas características, sua marca histórica e filiações, isso hoje tornou-se bem mais claro, o que permite com frequência ler Cinema de Invenção como relato quase romanesco da trajetória de uma geração cujo voo (não apenas profissional, mas pessoal) foi atrozmente marcado pelos anos de repressão política implacável. Em outros momentos, a distância no tempo nos permite medir com mais justiça o alcance da contribuição crítica do autor. Trata-se de uma crítica engajada, apaixonada, que assume como sua a sintaxe caótica de tantos filmes da época, colagem de texto original com citações. Será mesmo de Jairo Ferreira ou de alguma outra pessoa o trecho a seguir? O negócio é fazer filmes péssimos. Um apanhado crítico da face oculta do cinema nacional... Chegou a hora de massacrar a visão europeizante que impede o cinema nacional de ser como deve ser. A rigor, não importa. Estávamos em pleno AI-5, em plena censura, com os sonhos que haviam produzido o Cinema Novo arrebentados. Se o programa estético do começo dos anos 1960 já não podia vigorar, quem já não podia fazer filme-de-cinema fazia filme-sobre-cinema, passava para a tela o seu desencanto e o seu espanto diante do que lhe era dado viver. Quem não pode fazer nada avacalha, já dizia o Luz Vermelha. Se é impossível não levar em conta a contribuição crítica de Cinema de Invenção (ainda que se possa discutir a metodologia anárquica ou o arbitrário de certas escolhas), que é notável, seria injusto limitar o livro a isso. De seu estilo-estilhaço, em que a conceituação rigorosa convive ora com rasgos poéticos, ora com uma retórica de manifesto, pode-se dizer (o autor mesmo o diz, aliás) que se trata de uma didática sem didática – em que a luz nasce da obscuridade. É um estilo desequilibrado e cintilante, na medida dos filmes de que trata. Mais do que isso, no entanto, Cinema de Invenção mostra-se hoje como o rico inventário de uma geração que cresceu alimentando a ideia do cinema como utopia moderna – arte capaz de ser a um tempo popular e erudita – e amadureceu no desencanto do AI-5 e no limiar do desespero e dos encantamentos da batalha cotidiana pela liberdade, tanto política como pessoal. Alguns dos nomes tratados nesse livro fizeram carreira e tornaram-se bem conhecidos dos espectadores (Reichenbach, Bressane, Sganzerla, Mojica); outros têm carreira incerta, somem e reaparecem de tempos em tempos (Andrea Tonacci, André Luís de Oliveira, Ozualdo Candeias); há ainda os que trocaram o cinema pela literatura (João Silvério Trevisan), que simplesmente sumiram do mapa (José Agripino de Paula, Júlio Calasso Jr.); ou, ainda, que trocaram o longa-metragem pela publicidade (João Callegaro, um talento enorme). Essa diversidade de destinos é normal, mas tratase possivelmente do aspecto mais interessante de Cinema de Invenção. Se é um livro importante para conhecer o cinema gestado pelos anos 1960, à medida que o tempo passa torna-se mais importante para conhecer uma geração, seus anseios, incertezas, crenças e desencantos. Até porque nunca o pensamento cinematográfico no Brasil esteve tão próximo da carne, da imediatez do corpo, quanto naquele momento: os filmes não eram gestos estéticos, mas tentativas de compreender, por imagens, o solo ao mesmo tempo apaixonante e transformador, mas também angustiante, injusto, repressivo e incerto em que se pisava. Primeira Obra-prima do Ano Vem de Taiwan 25 de janeiro de 2001 AS COISAS SIMPLES DA VIDA / Yi Yi (2000), de Edward Yang As Coisas Simples da Vida não são, afinal, nada simples. Crescer, amar, abandonar, ser abandonado, perder, reencontrar, produzir, reproduzir, morrer são coisas pelas quais todos passamos, o que lhes dá um quê de insuperável banalidade. Tocar nesses assuntos implica lembrar-nos de que: 1) não são tão simples assim; 2) constituem o solo comum em que pisamos, aquilo que todos partilhamos. É bem isso o que faz Edward Yang. Existe ali um momento exemplar. Um rapaz e sua namorada vão ao cinema. Ela reclama, ao final, que o filme era muito triste. O garoto responde que o cinema é como a vida, ora triste, ora alegre. Mas, se ele é como a vida, replica a moça, por que ir ao cinema? Estamos aí diante do dilema do cinema contemporâneo. No passado, o cinema fazia isso: elencava gestos do cotidiano. Depois se tornou uma arte de ideias, de tal modo que hoje, ao ver um Jean Renoir ou um Howard Hawks, não é raro algum espectador sair perguntando o que há de tão importante nesses filmes que apenas descrevem pessoas e suas vidas. Existe ainda outro caso exemplar, o de Yasujiro Ozu. Os japoneses não mandavam seus filmes para o Ocidente, com medo de que não fossem devidamente apreciados, a tal ponto lhes pareciam específicos seus assuntos e o modo de abordá-los. Quando esses filmes chegaram aos países ocidentais, o efeito foi inverso. Edward Yang pertence a essa ordem de cineastas, os que aceitam o desafio de tratar daquilo que nos une a cada um e a todos. Se o que o filme nos mostra é igual à vida, como diz em um diálogo do filme, o espectador pode se perguntar qual o interesse de assistir a isso. Em primeiro lugar, as experiências podem ser acessíveis a qualquer um, mas cada um as vive de forma diferente. Aproximar o que é pessoal e intransferível do que é comum não é fácil. Todos, ou quase, vivenciamos a morte da mãe, por exemplo. O fato de essa experiência ser universal não a torna banal. Mostrar isso é fácil. Bem mais complexo é criar a teia que une a infância à adolescência, essa à maturidade e essa ainda à velhice – como faz Yang com desenvoltura espantosa. Tão espantosa que nem vale a pena tentar reconstituir a trama: os personagens são muitos e a intriga não tem importância em si. Mais fácil, e talvez mais eficaz, seja narrar um dos vários momentos cheios de discreta imaginação deste filme. Aquele em que o garoto Yang-Yang sai com uma pequena câmera, fotografando a nuca das pessoas. Quando as fotos são reveladas e os adultos perguntam por que fez isso, Yang-Yang responde, implacável, que nós só podemos ver o que está à nossa frente. Quando fotografa a nuca, ele revela aqueles 50% de verdade que não podemos ver. É uma bela definição do cinema como arte total: essa que mostra das coisas a frente e o avesso, o verso e o reverso. Aqui, essa totalidade é tão mais visível quanto confrontada com a fragilidade dos seres, com sua incapacidade de ser o que são e o que sonharam ser. Ou antes: ao mostrar o curso da vida, da infância à velhice, nos joga na dimensão do tempo: da impossibilidade de sermos ao mesmo tempo o presente e o passado, como se a experiência e a memória, em lugar de nos constituir, levasse ao esquecimento. A Televisão Faz do Espectador um Eterno Torcedor 24 de março de 2001 Diante da fraqueza alucinante de quase todos os filmes indicados para o Oscar 2000, talvez venha ao caso perguntar por que o mundo se mobiliza tão intensamente em torno da cerimônia que se realiza amanhã. A comparação que me ocorre não vem do cinema, mas da TV paga. Ela demonstrou que podemos torcer por qualquer coisa. Sabíamos que era possível sofrer intensamente por um time de futebol. Hoje, torcemos para o que for. Para um nadador, um piloto de automóvel, um golfista ou até para a seleção sub-17. Queremos torcer no Oscar também, por que não? A TV é um aparelho propício à torcida. Um dos programas mais instrutivos da atualidade é o Show do Milhão, do Silvio Santos. Ali, um sujeito claramente humilde, para começar, expõe suas pretensões: precisa comprar uma casa; se ganhar R$ 30 mil, consegue comprar uma em sua cidadezinha. Começam as perguntas, cujo grau de dificuldade não corresponde, aparentemente, ao valor disputado. Imaginemos uma: qual o imperador que pôs fogo em Roma? As respostas possíveis seriam mais ou menos assim: a) Franklin Roosevelt; b) Nero; c) Napoleão Bonaparte; d) Stalin; e) Alexandre, o Grande. O sujeito coça a cabeça, faz cara de sofrimento. Para ele, Nero e Napoleão, Roosevelt e Alexandre são apenas nomes, significantes desprovidos de qualquer significado. Percebemos que o mundo não deu a ele as referências mínimas para estar no mundo. Por isso mesmo torcemos descaradamente para que acerte a pergunta e compre a tal casa. Mas nada. Ele baixa a guarda e, incauto, pede ajuda aos universitários. Justo, pois não é a universidade o templo do saber? Bem, aí vem o universitário, de smoking, e diz mais ou menos o seguinte: Eu acho que foi Napoleão, mas não tenho certeza, então não quero prejudicar o candidato. E assim segue o show (será preciso voltar a ele um dia), pois candidatos, espectadores e Silvio Santos sabem que de ilusão também se vive. O que isso tem a ver com o Oscar? Nada, em princípio, exceto que prêmios nos fornecem parâmetros e chance de torcida. O milhão de SS é um parâmetro (em moeda corrente). A estatueta do Oscar é outro. Por mais alheio que seja a premiações e a seus méritos, o fã de cinema percorre as salas, uma por uma, para ver os concorrentes e, no grande dia, sentar em frente à TV. Suporta as canções insuportáveis, o humor duvidoso do apresentador – que no entanto cativa a plateia do auditório – e aguenta incontáveis intervalos para propaganda. Depois se arrepende por ter ficado acordado até tão tarde. Mas suporta a tudo, como no ano passado e no retrasado. Sabemos que a história está repleta de injustiças. Hitchcock nunca ganhou o Oscar, nem Orson Welles, nem Howard Hawks. Teoricamente, bastaria para desmoralizar qualquer prêmio. Mas o Oscar permanece intocável. Dos concorrentes a melhor filme e direção de 2000, o único que merece figurar entre os postulantes a um prêmio é Traffic. No Show do Milhão, os concorrentes, ao que parece, compram uma revista, depois são sorteados para ir ao programa. A escolha do Oscar dá a impressão de ser quase assim. Ou uma bobagem como Billy Elliot não estaria lá. Mas não é bem assim. O Oscar expressa não necessariamente o que há de melhor no cinema, mas aquilo que a Academia (em linhas gerais, a comunidade cinematográfica dos EUA) projeta para o cinema, o momento político ou social. O espectador, como o candidato do Show do Milhão que aceita o conselho dos universitários, recebe e aceita os parâmetros. Cegamente. Porque esse é um paradoxo da sociedade do espetáculo: tudo é concebido em torno do olhar, mas ao mesmo tempo tudo é feito para que não possamos olhar com os próprios olhos. Uma tonelada de publicidade existe para impedir que isso aconteça. Impotente, o espectador torce. Eu, pessoalmente, acho que o cinema será melhor se Traffic vencer. De ilusão também se vive. Filme é Clássico Moderno com Pertinência Certeira 20 de abril de 2001 OS INCOMPREENDIDOS / Les Quatre Cents Coups (1959), de François Truffaut O nome Nouvelle Vague (onda nova) não veio do cinema, mas do jornalismo, e designava a rápida mudança de costumes que se esboçava na França na segunda metade dos anos 1950. O que o cinema fez foi, de certa forma, cristalizar essa onda jovem, que apontava para uma oposição clara entre o mundo dos adultos e o dos jovens. Nesse sentido, Os Incompreendidos talvez seja o filme que melhor representa a primeira fase da Nouvelle Vague. Em primeiro lugar, porque marcava a estreia no longa-metragem de François Truffaut, o mais polêmico dos jovens críticos franceses da época, que desde o início da década invectivavam o cinema do realismo psicológico, que, segundo eles, representava o triunfo acabado do academismo. Em segundo lugar, porque esse filme rompeu a barreira da classe cinematográfica francesa para ser o primeiro filme da nova corrente a representar a França no Festival de Cannes (o que na época era bem importante). Por fim, porque o filme de Truffaut tratava justamente do conflito entre pais e filhos, alunos e professores, instituições e luta pela liberdade. Tratar é uma palavra leve. Na verdade, Truffaut promoveu um terrível acerto de contas com sua infância, já que seu trabalho é em larga medida autobiográfico. Essa infância é digna de romance: a fraqueza do pai, o desinteresse da mãe, a incompreensão dos mestres, a paixão pelo cinema, as grandes amizades, o flerte com a marginalidade. Tudo isso que está no filme aconteceu. Mas não é o fato de ter acontecido que lhe confere um interesse que permanece atual (aliás, é um desses filmes que podem ser recomendados com entusiasmo a qualquer adolescente). Antes disso, é a absoluta ausência de rancor em relação a fatos doloridos. Truffaut vinha imbuído do gosto pelos clássicos do cinema americano e não estava disposto a dar vazão a nenhuma profundidade, a nenhum estudo sobre a dor de crescer ou sobre o que há de inóspito no mundo. Truffaut evita a ênfase na dor, para depositá-la, ao invés, no imenso humor que certas situações dramáticas propiciam (por exemplo: a sequência em que o retrato de Balzac pega fogo). Humor não significa que Truffaut quisesse fazer piada disso. Trata-se de uma maneira de olhar as coisas pela ótica do que acontece e não de elucubrações intelectualizantes. Portanto, de observar que em cada fato, por mais dramático, existe humor. Truffaut aprendera com o cinema americano, assim como o coloquialismo, a necessidade de observar o mundo sem a mediação de um aparato intelectual. Antes de ser bom ou mau, o mundo é o que é – postulado realista que cada um dos fundadores da Nouvelle Vague desenvolveria à sua maneira, e que não vinha apenas dos americanos, mas, sobretudo, da teoria realista de André Bazin. É preciso acentuar esse aspecto porque hoje Truffaut tornou-se um nome de referência associado com frequência a um cinema complacente ou omisso em relação justamente à realidade (sua mais recente discípula é Sandra Werneck, de Amores Possíveis, o que beira o risível). O cinema de Truffaut foi comercial até o fim de sua vida – no sentido mais elevado dessa palavra. Seu desejo de falar a um público amplo nunca se confundiu com a necessidade de agradar o espectador. Os Incompreendidos é um filme inteiramente bemsucedido. Um clássico moderno, que fala da infância e da juventude com uma pertinência certeira. Domésticas É Retrato da Inocência do Mal 24 de maio de 2001 DOMÉSTICAS – O FILME (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival Talvez não seja por acaso que, enquanto Domésticas – O Filme, emplaca com vigor no circuito dos shop-pings, um juiz de São Paulo condene uma empregada doméstica a mais de quatro anos de prisão por ter dado uns tabefes na criança de quem cuidava. Bater numa criança é, por certo, uma infâmia. Mas quatro anos, com base na Lei da Tortura, parece uma pena e tanto. Digamos que a Febem, para ficar num exemplo próximo, seja uma instituição em que desrespeito aos direitos humanos (tortura incluída) é regular e aplicado a centenas ou milhares de menores. Nesse caso, e tomando por base a condenação da empregada, qual seria a pena aplicável a seus responsáveis (a começar por governadores, corregedores, juízes de menor, etc.)? Quatrocentos anos? É improvável – e até indesejável – que esses castigos sejam aplicados. Sabe-se que a história de iniquidades de certas instituições públicas não começou anteontem. Mas por que a palavra história ocorre quando pensamos em autoridades e não nocasode uma doméstica? O fato que a levou à barra dos tribunais foi documentado pelos pais da criança. A moça foi condenada por uma imagem. Mas até que ponto uma imagem não é apenas uma imagem, como diria Godard? Não existiriam outras imagens possíveis? Por exemplo: a dos patrões responsabilizando a moça e ameaçando-a de perder o emprego caso a criança não comesse. Digamos que isso não tenha acontecido, que os patrões fossem exemplares. Ainda assim, como responsabilizar a esse ponto (quatro anos!) uma jovem razoavelmente ignorante por seu comportamento? Não existe uma história maior, a do Brasil, a nos lembrar da escravidão e do horrendo peso que levamos nas costas por conta disso? Passemos ao filme: Domésticas não mostra nenhuma cena de violência desse tipo. As moças que frequentam o filme são desastradas, ignorantes e burras. São a perfeita representação que as patroas (até mesmo, provavelmente, a maior parte das mulheres de magistrados) fazem de suas empregadas domésticas. As patroas são figuras ausentes do filme, de maneira que mais uma vez a história é escanteada. Será possível narrar a história dos escravos omitindo a existência de senhores ou traficantes? Não. Da mesma forma, é difícil imaginar que se dê conta dessa instituição tão subdesenvolvida omitindo patroas e patrões. Domésticas, um filme do circuito Jardins/Morumbi/ Higienópolis, tem sua cara e mesmo sua competência. É um filme inocente, no sentido em que se poderia falar de uma inocência do mal. Ele não é melhor ou pior do que as patroas que riem com os desastres provocados pelas domésticas. Será o caso de perguntar se não existe também uma Justiça do circuito Jardins/Morumbi/Higienópolis. Ou, se toda a Justiça brasileira não responde a esse circuito e não existe para reforçá-lo. Apenas como esforço de memória: os delinquentes ricos que atearam fogo a um índio, levando-o à morte, tiveram seu crime desqualificado para algo como agressão. Para resumir, conforme o noticiário da época, a pena máxima a que poderiam ser condenados era de quatro anos. Quatro anos de pena máxima. Parece uma desproporção, mas não é: a condenação brutal da moça, a quase inocência dos ricos delinquentes, um filme que nos faz rir da pobreza dos pobres. Tudo se encaixa. O Brasil não vai muito bem. O nosso apartheid vai que é uma beleza. Transitou da esfera da Justiça, na qual existe desde a colônia, e já se instalou na das imagens. Longa Reproduz Ideário de Novelas 8 de junho de 2001 A PARTILHA (2001), de Daniel Filho A Partilha narra a história de quatro filhas (interpretadas por Glória Pires, Andrea Beltrão, Lília Cabral e Paloma Duarte) que habitam universos distantes e se encontram por ocasião da morte da mãe. Trata-se, num primeiro nível, de dividir uma herança. Mas o título do filme tem um segundo sentido que logo se deixa identificar: o que partilham quatro irmãs nessa vida, ou, de forma mais ampla, o que significa a instituição da fraternidade? É esse segundo sentido que pode interessar ao espectador, e ninguém dirá que se trata de um mau ponto de partida. Se o ponto de chegada não é tão animador, resta perguntar o que ocorreu no meio do percurso. O roteiro é a primeira pista. De um filme narrativo, espera-se que tenha um crescendo. Comece por apresentar os conflitos e termine por levá-los a algum lugar. O roteiro de A Partilha opta por criar uma série de cenas praticamente isoladas umas das outras, mas com desenvolvimento quase sempre idêntico: no início, coloca-se o lado humorístico da situação, em seguida se introduz o núcleo dramático e finalmente desenha-se o psicodrama (o conflito entre as moças). A narrativa por núcleos – em vez de linear – não é nova. Autores clássicos, como Howard Hawks, especializaram-se em trabalhar sequências que importam mais em si do que por aquilo que trazem à trama. Ou antes: a trama decorre da soma dessas sequências, e não o inverso. Não se pode dizer, no entanto, que apenas por infelicidade Daniel Filho e seus roteiristas optaram por fazer com que o crescendo se desse praticamente em cada cena, instaurando uma incômoda sensação de monotonia no filme. Talvez pese, em primeiro lugar, a origem teatral da trama (adaptada de uma peça de Miguel Falabella), em que o principal é o contraste entre as várias personalidades (Lília, a mais velha, é uma perua; Glória é a mulher bem classe média, razoavelmente infeliz em seu casamento com um militar; Andrea é a garota que se livrou do marido e tem comportamento moderno; Paloma, a mais nova, é intelectual e lésbica). É normal, e até desejável, que esses contrastes existam para que possa existir conflito. A questão, no entanto, é: esses conflitos existem realmente? Aqui talvez pesem profundamente os longos anos de Rede Globo de Daniel Filho. Seja no jornalismo, seja nas novelas, a dramaturgia da Globo é bastante fiel a uma tradição brasileira, que consiste em expor os conflitos para depois miná-los e, por fim, conduzi-los a um final que de certa forma tende a dissipá-los. O que funciona numa dramaturgia de longo prazo (telejornais, novelas) não é tão eficaz num filme. O que chamamos de tradição aqui mostra outra face: é antes um vício ou um desvio de comportamento. Cena após cena, temos aqui um caso em que a partilha de sentimentos felizes ou infelizes se transforma em uma espécie de acordão (para usar a linguagem da crônica política). Não há melhor exemplo disso do que a cena em que Herson Capri (o marido militar) prepara-se para invadir um apartamento trancado. A gag é banal, mas de efeito seguro: na hora em que vai arrebentar a porta, alguém abre a fechadura e ele se arrebenta. Por que a gag é frustrada? Porque Daniel Filho infla o seu princípio (colocando em câmera lenta) e minimiza o tombo: conflito no início; arreglo no final. Essa gag resume o equívoco de A Partilha, em que, de resto, se poderia esperar um show de boas atrizes. Não é o que ocorre: todas parecem estar fazendo teatro e todas estão muitíssimo abaixo do que se poderia esperar. Candeias Põe a Mão na Cumbuca Boca do Lixo 23 de julho de 2001 UMA RUA CHAMADA TRIUMPHO, de Ozualdo Candeias Durante anos, Ozualdo Candeias fotografou as pessoas na Rua do Triunfo, centro da produção cinematográfica paulista. Durante anos, todo mundo se perguntou o que Candeias queria com aquilo. A resposta está em Uma Rua Chamada Triumpho, livro que editou quase clandestinamente e que a duras penas Fred Botelho, da locadora 2001 Vídeo, conseguiu colocar à venda. Candeias é um dos maiores diretores do cinema brasileiro, destacou-se com filmes como A Margem, Meu Nome É Tonho, A Herança e tantos outros, quase sempre pouquíssimo vistos (o que é uma pena e uma perda enorme). O arranjo de suas fotos serve como comprovação, pois página após página depreende-se a complexidade dessa boca onde se fez cinema intensamente entre os anos 1960 e 1980. É até certo ponto fácil dar conta do que foram a Vera Cruz, a Maristela, a Atlântida, ou mesmo o Cinema Novo. São fenômenos delimitados e relativamente homogêneos. A Boca do Cinema ou Boca do Lixo, diferentemente, emerge das fotos de Candeias como um emaranhado de tendências e influências. É o ponto de confluência por onde circulam inimigos figadais, como Paulo Emílio Salles Gomes e Rubem Biáfora, a Embrafilme e Primo Carbonari, jovens realizadores de vanguarda e outros semianalfabetos, figuras históricas como Adhemar Gonzaga e modestos figurantes, técnicos e atrizes da pornochanchada (ou não). Tudo e todos parecem se encontrar. Com efeito, se encontravam. Foi a maior usina de filmes da história do cinema brasileiro. Ali se produziu de O Bandido da Luz Vermelha até A Menina e o Cavalo. Trata-se de uma herança díspar, que vai do melhor ao pior, do notável ao francamente idiota. Desde aquele tempo, torcia-se o nariz para a Boca, vista muitas vezes como sinônimo de marretagem, o que não é de todo equivocado. Mas ali havia de tudo, luxo, lixo, rebeldia, conformismo, etc. E picaretagem. Muita picaretagem saudável, saída de artistas que às vezes mal sabiam escrever um roteiro (não falo da técnica, mas do mínimo domínio da língua). E no entanto... de tudo isso saía de repente um gênio como José Mojica Marins, um talento não negligenciável como Jean Garret, por vezes um policial inesperado e brilhante de Cláudio Cunha. Quem pôs a mão nessa cumbuca? A fundo mesmo, ninguém, com exceção de Candeias. Seu trabalho evita toda hierarquização. Ali encontramos, lado a lado, estrelas como Vera Fischer e figurantes, fotógrafos e montadores ilustres e técnicos modestos, assistentes de câmera ou maquinistas cujo nome ninguém guarda. E, claro, há o Bar Soberano, personagem central de toda essa história, pois era em frente dele que se davam as grandes reuniões de fim de tarde, quando as equipes em atividade chegavam da filmagem e encontravam as pessoas que esperavam por trabalho. A Boca do Lixo é um fenômeno de cinema bem mais complexo do que em geral se imagina. Quem botou a mão nesse jarro de Pandora do qual sai de tudo um pouco? Ninguém, até hoje, a não ser Candeias. Essa documentação extensa e meticulosa é uma pista importantíssima para quem pretende, daqui por diante, tentar compreender a dimensão e a abrangência desse cinema. Mostra Ajuda a Decifrar Diretor da Classe Média 19 de setembro de 2001 Após uma trajetória de quase 50 anos, Walter Hugo Khouri continua um enigma do cinema brasileiro. É talvez esse enigma que ajude a decifrar a retrospectiva do Centro Cultural Banco do Brasil, que exibirá, até o dia 30 de setembro, 16 de seus 25 longas-metragens (sendo um deles, Na Garganta do Diabo, em vídeo; o negativo do filme está perdido). Convém lembrar que foi a Khouri, 71, que Glauber Rocha recorreu, no começo de carreira, para saber o valor de um de seus curtas. Queria a opinião do melhor diretor do cinema brasileiro. Depois, foi o alvo preferencial do Cinema Novo. Enquanto, nos anos 1960, os realizadores desse grupo se propunham a mostrar o verdadeiro Brasil, Khouri dedicava-se ao universo da classe média e seus problemas existenciais. Vistas as coisas retrospectivamente, a única conclusão é: ainda bem que havia Khouri. Pois o Brasil dos anos 1960 foi um país de utopias políticas, de descoberta das desigualdades e iniquidades sociais – e a visão, ainda hoje muito viva, dessas coisas é um legado importante dos cinemanovistas. Mas o País tinha lá sua burguesia e sua classe média, que experimentavam toda a transformação dos costumes em um país que se modernizava desde os anos 1950 e sacudia a poeira de hábitos arcaicos. É disso que seus filmes, entre outras coisas, dão conta. Nesse particular, Khouri permanece o mais talentoso, mais hábil e coerente dos cineastas brasileiros de sua geração. Paulista e formado na Vera Cruz, Khouri teve uma formação diferente dos cinemanovistas. Foi acusado muitas vezes de mero imitador de Antonioni. Na verdade, absorveu influências tão distintas quanto as do cinema americano (dos filmes do produtor Val Lewton, em particular – o que se pode ver no excelente Estranho Encontro) e japonês (os intimistas, em particular, como Mikio Naruse), sueco (Ingmar Bergman é um de seus ídolos) e italiano (Antonioni). Um dos orgulhos de Khouri é a fidelidade a si mesmo. Mesmo torpedeado durante anos, nunca renegou seu universo de dramas pessoais. Por vezes, usou-os para escarnecer das preocupações políticas (As Amorosas, em especial, um dos melhores trabalhos de Anecy Rocha). Foi notável – e até mesmo social – em Noite Vazia, no qual faz uma demonstração exemplar do sadismo das classes ricas no Brasil, e em O Anjo da Noite, ambíguo, porém fortíssimo comentário sobre o racismo brasileiro, na forma de suspense. A partir dos anos 1970, mas em especial nos 1980, sua obra é não raro reiterativa e tende a diluir a temática do inferno desejante. Há quem condene os filmes desse período por excesso de erotismo. São, em geral, os mesmos que enaltecem o mercado. Pois bem, Khouri sempre foi um cineasta atento ao mercado, o que lhe garantiu chegar à invejável marca de 25 longas-metragens num país de cinematografia instável como o Brasil. Na verdade, o erotismo nunca foi exterior à obra de Khouri, ao contrário: é o centro de suas preocupações. Inegável que o sucesso de seus filmes foi, em diversas ocasiões, garantido por mulheres da moda (tipo Xuxa ou Cláudia Liz), não por atrizes. O que, de fato, não o impede de ser provavelmente o maior diretor de atrizes que o País já teve. Passaram por seus filmes, entre outras, Norma Bengell, Odete Lara, Dina Sfat, Anecy Rocha, Adriana Prieto, Lilian Lemmertz, Vera Fischer, Íris Bruzzi. Convém não esquecer, em todo caso, que Khouri é um diretor eminentemente técnico, e algumas de suas escolhas são incontestáveis. Por exemplo, optou pela fotografia do húngaro Rudolf Icsey e nunca se impressionou com a torrente de elogios ao inglês Chick Fowle. Costuma definir a fotografia de Fowle como encarvoada – e está cheio de razão. A retrospectiva que começa hoje não contará com nove títulos. Oito deles foram produzidos por Anibal Massaini e A. P. Galante – que não cederam os direitos dos filmes para exibição. O nono, O Gigante de Pedra, está perdido: o único rolo encontrado pelos curadores da mostra, mais um trailer, serão exibidos na abertura. Moretti Evoca Todos os Sentimentos do Mundo 19 de outubro de 2001 O QUARTO DO FILHO / La Stanza del Figlio (2001), de Nanni Moretti Mesmo para quem não acompanha a carreira de Nanni Moretti, O Quarto do Filho constitui uma surpresa. Os primeiros minutos do filme resumem o que tem sido a carreira recente do italiano. Giovanni é um psicanalista feliz, com uma família feliz, que escuta os dramáticos relatos de seus pacientes com distância profissional e, caso dê um conselho, é mais ou menos o que encontramos em seus filmes. É o seu procedimento: manter-se aberto ao mundo, deixar as antenas ligadas, permitir que as coisas cheguem a nós. É uma receita de humor: o pasmo, a descoberta, a aventura estão implícitos nela. Suspende-se o juízo para que os olhos (e os sentidos em geral) possam trabalhar, absorver as coisas tal qual são. Eis que essa existência idílica é atingida por uma tragédia: a morte acidental do filho. É difícil conceber dor humana maior. A vida da família transforma-se subitamente. Como estar aberto às coisas, se elas parecem já não fazer sentido? Se falta um lugar à mesa? Moretti transita da comédia ao melodrama sem intermediários. Ou antes: o único intermediário é a própria psicanálise, pois, para Giovanni, coloca-se de imediato a questão de como tratar seus pacientes, se sua cabeça está em outro lugar? A psicanálise é a ciência mais atacada desde o fim do século XX. Contra ela move-se uma verdadeira guerra biológica, com pílulas dos mais variados tipos dispondo-se a varrer o inconsciente para debaixo do tapete. Que sentido tem, pergunta-se, um tratamento longo, caro, desgastante, que coloca o paciente em confronto com a sociedade, quando pílulas prometem solução rápida e rasteira para os problemas e pleno ajuste a uma sociedade que cada vez menos precisa de dissidências de qualquer tipo? Essa questão permeia O Quarto do Filho, pois a dor e o luto se impõem com tal violência que nada parece aliviar o sofrimento familiar, a não ser o tempo, a sucessão de acontecimentos que, aos poucos, nos leva a prosseguir na vida, não esquecendo, mas dando um lugar ao ente perdido. O cinema de Moretti adquire uma gravidade até aqui insuspeitada, pois afirma a vida para além de qualquer ciência humana (embora deixe uma porta aberta à psicanálise). Ao mesmo tempo em que convoca todos os sentimentos do mundo, este filme não configura uma traição aos anteriores. Se Caro Diário era um diário bem-humorado; se Aprile cruzava o momento político italiano com o nascimento de um filho, O Quarto do Filho inverte os dados, mas não os distorce. Até aqui havia um autor sujeito de seus filmes, como que a dominar e contemplar o espetáculo do mundo. Agora o mundo se abate sobre esse autor, atinge-o, frustra-o de modo irreparável. No entanto, esse mundo está lá, e é como se Moretti nos lembrasse de que a dor, a perda, a morte fazem parte dele tanto quanto o riso: ambos sugerem diálogo, postura, vontade de sobrevivência, de superação. Não, claro, a superação proposta pelo mundo da competição em que se vive, mas essa superação que consiste em voltar a si mesmo, em conhecer a si mesmo para conhecer as coisas fora da ciranda de ideias feitas. Obra é Manifesto pela Universalidade 22 de outubro de 2001 DIAS DE NIETZSCHE EM TURIM (2001), de Julio Bressane Desde os anos 1990, os filmes de Julio Bressane deixaram de se preocupar quase exclusivamente com o Brasil e sua cultura. Era assim em Sermões – A História de Antônio Vieira (1989) ou em São Jerônimo (1999), assim é em Dias de Nietzsche em Turim. Essa tendência não designa uma nova fase, até porque o que sempre interessou a Bressane no Brasil é o que podemos ter de universal, não o que eventualmente nos particulariza. Quando, diferentemente, viaja no tempo e, sobretudo, no espaço, como em São Jerônimo, reencontra seu personagem no sertão brasileiro, ou reconstrói Roma no Parque Lage: sinais de um mundo de correspondências, em que tempo e espaço, ideias e imagens viajam sem passaporte. Existe uma sincronia do mundo, na visão de Bressane, que certamente não acredita em ideias do tipo capitalismo tardio ou periférico para designar o Brasil. Somos um centro do mundo, de um mundo quem sabe sem centro, e é isso que nos permite ler um autor como Nietzsche e, eventualmente, filmá-lo. No caso de Dias de Nietzsche, a impressão é que se trata de um filme-manifesto. Para começar, existe o deslocamento geográfico: é fora da Alemanha que Bressane vai encontrar o pensador alemão, em êxtase diante de Turim, de seus costumes e paisagens. Não por acaso os primeiros textos tratam de sua ruptura com Wagner e o wagnerismo, ou seja: com o romantismo, o nacionalismo germânico, o arianismo, o antissemitismo. Em resumo, com a ideia de nação. Nietzsche representa aqui o homem além da particularidade nacional, embora não só: sua aspiração é também romper a barreira do tempo. Certos homens nascem póstumos, dirá Nietzsche em um dos textos reencontrados aqui. São ideias presentes em mais ou menos todo o cinema de Bressane, que ajudam a compreender, no mais, sua oposição ao Cinema Novo, corrente que decorre precisamente de ideias como nação, contemporaneidade e urgência. Se tomarmos O Mandarim (1995), outro filme recente de Bressane, veremos que a evocação de Mário Reis e dos compositores de sua época (Noel, Lamartine, Sinhô) busca menos reencontrar o Rio de Janeiro e uma época específica do que manifestar a permanência dessa época (tanto que os velhos sambistas reencarnam em compositores contemporâneos). Assim também com Nietzsche. Estamos em Turim, por vezes. Mas nem sempre. Quando Nietzsche se refere ao êxtase, é uma paisagem carioca que vemos, expressão de uma beleza que não precisa ter sido vista por Nietzsche para impor sua beleza. Ou antes, para conter o belo (que também dispensa passaporte). Da mesma forma, Nietzsche é o pensador a calhar para um artista, porque um filósofo-artista, poeta, anticristo, dionisíaco por excelência, capaz de se extasiar diante da Carmen de Bizet – o filósofo que não procura, acha, o filósofo para todos e para ninguém. Não será assim que Bressane também se concebe como diretor de cinema? Filme significativo, Dias de Nietzsche talvez sofra pela extrema abstração. Cada imagem, cada palavra (ou signo, preferiria seu autor) parece nos remeter a outro lugar. Cada ideia, a outra ideia. Turim pode ser o Rio ou a Índia, Nietzsche pode ser Bizet ou Bressane. O encontro final com a música não deixa de evocar o cinema de Visconti. Por fim, existe a postulação de uma filosofia experimental por Nietzsche, a designar a filiação do cinema experimental que Julio Bressane sustenta há 30 anos. Coisa bastante para configurar uma viagem magnífica para os que acompanham a obra do diretor. Coisas demais para não deixar indiferente quem não a segue com constância. Valerio Zurlini Exibe a Delicadeza de Sua Obra 27 de outubro de 2001 Não há cineasta mais delicado do que Valerio Zurlini. Pode-se falar na delicadeza dos sentimentos que seus personagens carregam. Mas essa não é, com certeza, a única. Zurlini coloca sua câmera quase como se tivesse pudor de observar a errância desesperada de seus personagens. Jacques Perrin é o seu ator-chave. Ele está em A Moça com a Valise, Dois Destinos e O Deserto dos Tártaros. É um ator que chama a atenção pela doçura, pela beleza triste. Não resta dúvida de que a ingratidão e as incongruências do mundo se abaterão sobre ele. Assim como as cores são distribuídas de maneira discreta – em seus filmes coloridos –, o sofrimento se instala entre os personagens da mesma forma, mas de maneira definitiva. A condição própria do mundo é a assimetria e a incompreensibilidade. Não existe justiça à vista – provavelmente não existe justiça alguma –, portanto não existe remissão. Assim, os irmãos de Dois Destinos estão separados pela vida quando um deles, o mais frágil, morre. Não há como recuperar o tempo perdido. Da mesma forma, o professor de A Primeira Noite de Tranquilidade (Alain Delon) sabe que não existe conciliação possível para um amor que termina (seu casamento), se o novo amor não é senão sintoma de sua própria inquietude diante das coisas. O Deserto dos Tártaros, adaptação do romance de Dino Buzzati talvez superior ao próprio romance, é possivelmente o resumo mais acabado (e o menos sentimental) de suas ideias: o tempo, a inquietação (que aqui se traduz por tédio), a expectativa é o que nos destrói. A vida é sempre maior ou menor do que nós. Ou bem a fantasia nos conduz, e acabamos sendo confrontados a uma realidade moral ou mesmo física que a destrói, ou bem a ausência de fantasia nos avilta. Uma questão que se impõe, portanto, é: qual o lugar de Zurlini no grande cinema italiano do pósguerra? Ele não foi um inovador, como Rossellini ou Antonioni, não foi incisivo como Visconti ou Pasolini, não foi bombástico e popular como Fellini. Esteve próximo do melodrama, mas, diferentemente de um De Sica, driblou-o seguidamente. Zurlini é um intimista, por certo, mas esse é o tipo de qualificação que – Japão à parte – soa quase como desabonadora. Não é preciso diminuir a contribuição dos cineastas maiores (ou mais famosos) para incluir Zurlini entre eles. Seus filmes são como monólitos que, quase 20 anos depois de sua morte, permanecem intocados, legíveis (isto é: ainda a ler), carregados de um mistério que não se desprega de seus personagens, que não se deixa superar. Essa retrospectiva promovida pela 25ª Mostra introduzirá muitos cinéfilos à sua obra invulgar. Ajudará, ainda, outros a aproximarem-se dela de maneira mais completa. E trará a certeza de que Valerio Zurlini está longe de ser um cineasta menor com momentos de gênio. É um autor cuja doçura triste, delicadeza de traço, constância têm muito a nos dizer. Sobre a vida, sem dúvida, mas também sobre o cinema. Se cada vez mais nos deixamos influenciar pelo brilhareco, Zurlini está aí a nos lembrar que o cinema pode passar de impactos fáceis. Ou antes, que tende a ser tão mais duradouro (portanto, importante) quanto menos se deixe contaminar pelos apelos não raro caóticos do momento. Walter Lima Jr. Filma Instabilidade Nacional 13 de novembro de 2001 Só a história de Inocência basta para justificar a visita a Inocência e Delírio – O Cinema de Walter Lima Jr., ciclo que começa hoje no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. Walter Lima viajou a São Paulo em 1982 para visitar Lima Barreto, diretor de O Cangaceiro, que estava à morte. Encontrou entre suas coisas o roteiro de Inocência. Era a adaptação do romance de Taunay feita originalmente por Humberto Mauro, diretor de Ganga Bruta. O projeto original, do fim dos anos 1940, nunca foi adiante. Mauro deu-o a Lima Barreto como presente de casamento, anos depois. Nunca foi adiante, também. Com o roteiro na mão, Lima Jr. fez essa espécie de filme-resgate, uma das obras-primas do cinema brasileiro dos anos 1980. A expressão obra-prima aplicada a esse filme desprezado por muitos pode soar como exagero. Mas vejamos apenas a sua cena final: sobre a cruz no túmulo do médico, Cirino, pousa uma borboleta, versão metamorfoseada de Inocência. Esse momento, que marca o encontro post-mortem do jovem casal, não tem a menor intenção de nos impressionar, nem está lá para isso. Ele é todo impregnado por uma quase delirante crença no cinema, pela certeza de que as imagens podem mostrar mesmo as coisas menos tangíveis. Aponta-se também para o apego à tradição. Não se trata de repetir, mas de constatar que a inovação não aparece do nada. Resgatar Lima Barreto e Humberto Mauro implica, entre outras coisas, afirmar uma história não raro negada, por ignorância, pedantismo ou má-fé. Mas será possível deixar de ver nesse conto romântico a sombra do cinema fantástico produzido por Val Lewton nos anos 1940? Porque afirmar uma tradição brasileira não implica negar a estrangeira, longe disso. Mas não deixa de ser uma atitude original num país que valoriza muito mais as rupturas do que a continuidade e se deixa seduzir com mais facilidade pela poeira nos olhos do que por uma mise-en-scène que busca obsessivamente a discrição. Daí, talvez, A Lira do Delírio, viagem por um Car-naval em que a mão do cineasta aparece com mais ênfase, ser normalmente seu filme mais admirado, em detrimento, por exemplo, de Ele, o Boto, que consegue narrar o que parece inenarrável (um boto se transforma em homem e seduz as mulheres de uma vila de pescadores) como se fosse a coisa mais simples do mundo. O cinema de Lima Jr. conhece toda a instabilidade do cinema brasileiro. Começa no Cinema Novo, com Menino de Engenho (1965), adaptação do romance de José Lins do Rego, passa pelas perplexidades do fim dos anos 1960, com Brasil Ano 2000 (1969), enfrenta os contratempos da coprodução internacional, com Chico Rei (1985). Walter Lima também enfrentará a dura crise do começo dos anos 1990 com outra coprodução, O Monge e a Filha do Carrasco (1995), falada em inglês, em que a Minas do barroco serve de cenário para o lugar qualquer em que se passa a história do romance de Ambrose Bierce sobre o amor maldito de um religioso pela filha de um carrasco. E chegará até o momento mais rico da dita Lei do Audiovisual, com A Ostra e o Vento, outra história de amor impossível (amor de uma menina cujo amante é o vento), brilhante como realização, mas um tanto prejudicada pelo fato de também essa história – no entanto absolutamente brasileira – se passar em lugar nenhum. O ciclo exibe ao todo dez longas-metragens e dois médias em película, além de uma série de vídeos sobre ou de Walter Lima, e se completa com uma oficina sobre realização cinematográfica e um encontro com o diretor. À parte os filmes, são duas oportunidades preciosas de aprender sobre cinema com um dos mais cultos e sólidos realizadores brasileiros. Filme não É sobre Pornografia, mas sobre Mudanças 22 de novembro de 2001 O PORNÓGRAFO / Le Pornographe (2001), de Bertrand Bonello O pornógrafo de que trata este filme não corresponde à imagem que se tem dessas pessoas. Não é o cafajeste que em geral se imagina, nem um depravado ou coisa assim. Jacques (Jean-Pierre Léaud) é um cineasta, apenas. Começou a fazer pornôs no fim dos anos 1960, convencido de que promovia a anarquia e o prazer. Seu imaginário é formado na rebelião de Maio de 1968. Imagina-se – ele não fala a respeito – que deve ter sido um leitor de Sade e Marcuse, de Anaïs Nin e Henry Miller. No entanto, quando o filme de Bertrand Bonello o reencontra, Jacques é um homem derrotado. Está voltando, por falta de dinheiro, à atividade que abandonou em 1984. No set de filmagem, mal se preocupa com o que acontece. Preocupa-se em reencontrar o filho, que não vê há anos. Aos poucos nos damos conta de que O Pornógrafo não é um filme sobre a pornografia, mas sobre as mudanças no mundo, de 1968 para cá. A trajetória de Jacques é ilustrativa: num primeiro momento, é um amador; em seguida, profissionaliza-se. Institucionaliza-se, por assim dizer. A partir de 1984, silencia: o mundo libertário que imaginou foi derrotado. A pornografia já não tem outro sentido, exceto o comercial. Entretanto, existe o estigma, e ele permanece. Uma jornalista procura Jacques com insistência de voyeur. Pergunta sobre seus filmes. Mas não é de seus filmes que o pornógrafo quer falar, e sim de sua vida. Eu falo da minha vida, você pergunta sobre minha carreira, diz. Não se sente ofendido pelas perguntas obscenas. Elas lhe dão apenas a dimensão da derrota de suas ideias e da sua solidão. No reencontro com Joseph, seu filho, as coisas não são muito diferentes: Joseph o perdoa por ser quem é (quando um filho perdoa ao pai, o pai se torna filho do próprio filho, dirá Bonello). Mas quem é esse pornógrafo, a rigor? Como evita que o filme ceda à psicologia, nós nunca saberemos. Jacques será seu silêncio, sua tristeza, seu rosto amargo. O perdão do filho não deixa de ser sintomático: o mundo não perdoa esse cineasta. Porém sabemos desde o primeiro fotograma que existe nele algo de sublime. Estamos diante de um verdadeiro cineasta maldito, e se isso ocorre deve-se ao fato de tratar diretamente com o corpo. Quem não o perdoa por isso é a sociedade, não o cinema. O cinema, como distração dominical, talvez seja apenas um mal-entendido: não estão na sua natureza os bons modos nem a decência. Bertrand Bonello parece dizê-lo explicitamente, quando mostra trechos de filmes de João César Monteiro e Carl T. Dreyer. Poderia mostrar algum trecho de Robert Bresson. Bem mais do que alguns imitadores recentes de Bresson, Bonello exibe corpos para melhor mostrar-lhes as almas. Nosso pornógrafo talvez seja, nesse sentido, um personagem exemplar: alma do anarquismo radical de 1968, penando no mundo organizado, hierarquizado. Talvez nosso pornógrafo tenha bons motivos para estar tão sorumbático. Ele vem do tempo em que se dizia faça amor, não faça a guerra. O pornô saiu de moda. Voltamos ao tempo dos filmes de guerra. Quem tiver alguma dúvida pergunte a George W. Bush ou ao general Sharon. Delírio em Hollywood 19 de abril de 2002 CIDADE DOS SONHOS / Mulholland Dr. (2001), de David Lynch A reação do espectador ao sair de Cidade dos Sonhos pode ser de espanto: será que eu me distraí, perdi algum momento essencial da trama e agora já não sei quem é quem nessa história? Ou pode ser de desconfiança: querem que eu engula esse bricabraque sem pé nem cabeça como se fosse obra de arte. Em ambas as hipóteses (não são as únicas possíveis), o sentimento que se tem ao final da sessão não elimina todos os outros que acontecem durante os 145 minutos de projeção, em que cada cena, cada palavra e cada gesto nos conduzem a um mistério. E cada cena, palavra ou gesto é imediatamente compreensível. Vejamos: um desastre automobilístico acontece em Mulholland Drive, justamente no momento em que uma mulher vai ser assassinada. Ela escapa razoavelmente ilesa, mas, tendo perdido a memória, não sabe quem é nem o que aconteceu. Dará a si mesma o nome de Rita (após ver um cartaz de Rita Hayworth em Gilda). Rita se verá na casa de Camilla Rhodes, jovem pretendente a atriz, que irá ajudá-la a desvendar o mistério de sua identidade. Mais tarde saberemos que Rita na verdade se chama Camilla e que Camilla se chama Betty, se não me falha a memória. De todo modo isso não tem importância por ora, mesmo porque o espectador se verá soterrado por uma série de acontecimentos não menos ambíguos: um diretor de cinema perseguido por (talvez) gângsteres, um teste para Camilla (Betty), figuras ameaçadoras que perseguem Rita (ou Camilla), um assassino profissional, alguém que se denomina Cowboy, etc. Pode-se fazer, mentalmente, a tentativa de remontar esse filme tentando encontrar-lhe a cronologia correta. É inútil. Cidade dos Sonhos nos precipita em um território perigoso, em que real e imaginário são, a rigor, indistinguíveis, inseparáveis, em que não é possível saber, nunca, o que está acontecendo, o que está sendo filmado, o que está sendo sonhado ou imaginado. Mesmo nas cenas mais banais, David Lynch cerca seus atores de um halo de mistério, como se os imaterializasse para melhor mostrar que não estamos vendo pessoas de carne e osso, e sim algo apenas parecido com elas, isto é, um filme (exemplo: a chegada da candidata a atriz em Hollywood – sim, escusa dizer, tudo isso se passa em Hollywood). Somos em seguida projetados no mistério de Rita e nos que a cercam. David Lynch então conduz seu filme como um mistério hitchcockiano (um dos temas recorrentes de Hitchcock é a busca da identidade e seus perigos). Num café, as duas moças topam com uma garçonete chamada Diane. Ela tem o nome estampado no crachá (bem à moda americana). Esse nome evoca algo para Rita. Talvez seu nome seja esse. Não importa se é ou não, mas o efeito que a cena tem sobre o espectador, imediatamente levado a questionar o que significa um nome. Que diferença existe no fato de um crachá mencionar A, B ou C? Quem é essa pessoa que nunca vimos antes e que provavelmente não voltaremos a ver? E, se nosso contato com ela é assim tão sumário, por que devemos conhecer-lhe o nome? Da mesma forma, que nome dar a isso que vemos: alucinação, sonho, realidade, filme? Há um pouco de tudo, talvez porque o cinema seja, em parte, uma arte que materializa o imaterial, que transforma ideias em coisas reais. É a isso que nos acostumamos. É isso que esperamos de um filme. Lynch parece propor algo diferente: imaterializar o material, devolvê-lo ao estágio de ideia, o que consegue ao nos envolver na suposição de estarmos diante de uma ficção tradicional (com a segurança e o conforto de sabermos que vemos uma história). Esses movimentos opostos desconcertam o espectador, tirando-lhe o que mais preza, a certeza. Porque é num mundo de plena incerteza que nos projeta esse filme, em que a angústia dos personagens parece se dissipar junto com suas identidades (ou perda de identidades) e se transferir para o público. Cidade dos Sonhos afirma David Lynch como herdeiro legítimo (isto é, inventivo, não imitador) dos grandes mestres do cinema de mistério (Hitchcock e Buñuel, sobretudo), que fizeram questões como quem somos nós, o que é real, o que é o cinema sempre presentes em sua obra. Por fim, mas não por último: também está em cartaz Cine Majestic, de Frank Darabont, outro filme que faz da perda de identidade seu tema central. Talvez seja coincidência, talvez sinal de uma crise de identidade profunda que os EUA estão vivendo. Godard Documental Faz Elogios do Amor 10 de maio de 2002 ALPHAVILLE/Alphaville, une Étrange Aventure de Lemmy Caution (1965) O DEMÔNIO DAS 11 HORAS / Pierrot le Fou (1965), de Jean-Luc Godard Alphaville e O Demônio das 11 Horas (vulgo Pierrot le Fou) são, ambos, deslavados elogios do amor. São ambos filmes de 1965 e pertencem ao mesmo momento da obra de Jean-Luc Godard. São, também, diferentes. O primeiro é uma ficção científica que narra a visita do agente Lemmy Caution a um mundo totalitário e sua tentativa de libertar dali a mente e o corpo de Natacha von Braun (Anna Karina). O segundo é um road movie sobre um homem que troca seu mundo burguês pelos encantos incertos de Marianne (Anna Karina). No primeiro, o homem liberta a mulher. No segundo, ela é que o liberta. O que chama a atenção em Alphaville, quando revisto hoje, é sua distância em relação ao que entendemos por ficção científica. Não há estúdio, foguete ou roupa futurística. A sensação de futuro vem da luz de Raoul Coutard, que transfigura Alphaville-Paris. O Godard de 1965 acredita no homem, no amor e, sobretudo, na poesia de Paul Éluard. A poesia é o que pode transformar o mundo, torná-lo aceitável. Ela é, no mais, um correlato do amor, e este é capaz de aniquilar o pesadelo totalitário, dando sentido à vida. Parece um pouco J. G. de Araujo Jorge – poeta em outros tempos tão popular quanto Paulo Coelho hoje. E até seria, tal o derramamento romântico, não fosse a secura do preto e branco, o combate entre Lemmy Caution e o supercomputador Alpha-60, a dinâmica de dois mundos regidos pelo livro: o dos planetas exteriores, orientado pela possibilidade de interpretação infinita dos textos, e o de Alphaville, pela interpretação unívoca da bíblia de Alpha-60. Pierrot le Fou não é menos romântico nem menos libertário do que Alphaville. Aqui vigora o colorido e, com ele, a ideia de expansão, bem como o humor – mas a poesia não está ausente. É logo no início, no entanto, que Godard diz a que vem. Com um livro de Elie Faure nas mãos, Pierrot fala de Velásquez, de um momento em que Velásquez já não se interessava em pintar as coisas, mas entre as coisas. Entre é uma palavra-chave no cinema godardiano. Cada plano, cada corte nos lembram de que lhe interessa o que está entre as coisas. Com Pierrot estamos num Godard mais típico: o interesse em contar uma história inexiste. Ela é apenas um fio a partir do qual Godard vai pilhando as coisas do mundo, aqui e ali. Em Pierrot ou Alphaville, apesar de suas diferenças, o espectador experimentará a sensação de regredir a 1965, e esse não é um sentimento extemporâneo. Godard não é um documentarista, mas é o mais documental dos cineastas. O seu tempo, aquilo que o cerca, as ideias, ilusões ou inquietações do momento estão gravadas em cada fotograma, misturadas às suas reflexões, à maneira de ver o mundo. É em Pierrot que Godard nos presenteia com a magnífica definição de cinema de Samuel Fuller (em pessoa), que transcrevo de memória: cinema é amor, ódio, sangue, em uma palavra: emoção. É um campo de batalha. Campo de batalha. E não distração para os olhos. Campo de batalha em que nós, espectadores, temos de lutar em corpo a corpo com as imagens e as ideias que nos trazem. Não casa de repouso. Godard está vivo e pulsante a cada cena que filma e exige que também estejamos vivos e atentos. Não para segui-lo cegamente, mas sim para ver o que há nessas imagens que estão entre nós e a tela, elas também muito vivas. Arte da História e do Invisível Preenche o Filme 15 de agosto de 2002 O PRÍNCIPE (2002), de Ugo Giorgetti Os filmes de Ugo Giorgetti visam habitualmente um país em transformação permanente e frenética, o Brasil, e impõem uma sutil, embora intransponível, distância entre o que se vê e o que não se vê. Essa distância existe em Sábado, história de um velho palacete transformado em pardieiro pela deterioração do centro de São Paulo. Ou em Festa, em que três artistas conversam à espera do momento de se apresentar numa festa que nunca veremos. Isto é: seja pela ação do tempo, seja pela do espaço, o que conta nos filmes de Ugo Giorgetti é menos o que está em cena do que a distância sutil entre o que se vê e o que não se vê. Este é também o princípio de O Príncipe, em que um homem (Eduardo Tornaghi) volta ao Brasil após mais de 20 anos na Europa. Já na chegada, ao entrar na Vila Madalena, pergunta ao chofer do táxi se não errou de rua. Esta é a primeira e mais superficial das mudanças de que trata o filme. A transformação em O Príncipe diz respeito antes de tudo às pessoas. E pessoas não existem sem seus lugares. Não será por acaso que um velho jornalista (Otávio Augusto) se postará aos berros (melancólicos), diante das ruínas do antigo Paribar, na Praça Dom José Gaspar, atrás da Biblioteca Municipal, ela também reduzida à ruína de uma cidade que perdeu seu centro. O que o filme de Giorgetti nos transmite nessa cena não é a sensação aparente de mudança, mas a de distância entre a juventude de um homem e sua maturidade, entre os sonhos que partilhou com uma geração e a corrosão que o tempo lhes impôs. Os demais encontros criam a percepção de que o tempo impõe uma espécie de dolorosa decalagem: como se o protagonista tivesse se tornado a foto não descolorida (longe disso), mas desfocada de si mesmo. Essa decalagem é desdobrada no filme pelo efeito espacial. Viver fora por longo tempo, sabemos, implica, ao retornar, um inevitável estranhamento. E não é o menor dos méritos de O Príncipe fazer com que olhemos coisas que nos são familiares (Teatro Alfa, Bom Retiro, etc.) com os olhos do protagonista: como se nos fossem ligeiramente estranhas. É a possibilidade de partilhar com o protagonista esse hiato que ele experimenta intensamente que faz de O Príncipe um filme da História. Pois o que é a História senão a constatação desse hiato, o reconhecimento da impossibilidade de apreender inteiramente um fato, um momento, uma época, uma pessoa e, simultaneamente, o esforço de apreender tudo isso? No caso, trata-se de indagar o que nós fomos, no que nos tornamos, o que aconteceu conosco, com o Brasil, com São Paulo. Existe uma segunda e não menos relevante trama no filme: a de um professor de história que enlouquece e passa a pregar a formulação de uma história imaginária. Passemos por ela, que mereceria artigo à parte. O essencial, no caso, é que esse personagem introduz outra ideia no filme: a de que a própria realidade contém um núcleo de irrealidade que nos arrasta. Ela é sintomática da sutileza a que chegou o pensamento desse cineasta, do qual é impossível dissociar seu parti pris formal, em que o despojamento nos coloca com mais clareza diante desses pequenos, porém vertiginosos, abismos do dia a dia. Duas Formas de Sensibilizar a Imaginação 21 de setembro de 2002 AMNÉSIA / Memento (2000), de Christopher Nolan Amnésia, de Christopher Nolan, trata da história de um homem sem memória, ou quase isso: ele só tem memória imediata. De maneira que boa parte do interesse do filme consiste em acompanharmos os estratagemas que arma para se recordar de fatos acontecidos há mais de dez minutos ou algo assim. Disso resulta uma história contada de trás para diante. A ideia de Roberto Rossellini, de que a imaginação é um mal a evitar, talvez se aplique com perfeição a esse filme. O problema de Guy Pearce e seus roteiristas é esse excesso de imaginação, que nos desvia dos acontecimentos que existem para fazernos preocupar com coisas que não existem. Ou seja, o filme vale exatamente o que vale um quebra-cabeça. Quebra-cabeças podem ser muito interessantes, aliás. Mas do que trata, a rigor, Amnésia? De um homem em busca de vingança pelo assassinato da mulher. Talvez o comentário mais agudo a respeito desse filme seja o de um inveterado cinéfilo (funcionário da locadora 2001, loja Pinheiros): É o Desejo de Matar montado de trás pra frente. São Paulo Recebe a Modernidade de Eric Rohmer 4 de outubro de 2002 Com Eric Rohmer, não existe amor à primeira vista. Seus filmes não têm o impacto de um Godard, a doçura de Truffaut, a ironia ácida de Claude Chabrol, a beleza dos enquadramentos de Antonioni. De início, eles parecem nem mesmo fazer parte da experiência moderna. Talvez por isso Rohmer foi o último rebento da Nouvelle Vague a ter seu talento reconhecido. Talvez por isso poucos de seus filmes chegaram ao Brasil, o que faz desta retrospectiva do Cinesesc um dos acontecimentos do ano. Até hoje, aliás, não falta quem veja em Rohmer um realizador de talento limitado e excessivamente literário: um mero ilustrador de diálogos. É preciso observá-lo com calma e até mesmo alguma paciência para discernir ali, através das aparências, um dos mais radicais autores do cinema moderno. Vale insistir: através das aparências, não atrás delas (pois em Rohmer nenhuma segunda intenção se insinua entre a imagem e o espectador). Quando o espectador se dá conta disso, começa a notar até que ponto essas histórias são cinematográficas e só fazem sentido quando filmadas. Pois, se seus personagens falam aos borbotões, seus discursos são quase sempre dotados de uma certeza que o correr das imagens virá a desmentir. Nascido em 1920, Rohmer faz parte de uma geração que pôs em questão tradições como a narrativa linear do cinema clássico e enfatizou a importância da linguagem em detrimento da apreensão da realidade. Nesse sentido, ele caminhou na contracorrente do moderno, o que não ajuda em nada a penetração de seus filmes, embora tenha sempre sustentado a modernidade de seu trabalho. Confrontado às sofisticadas análises de linguagem de Pasolini, por exemplo, arguia que o cinema não diz, nem significa, o cinema mostra. Indagado sobre os jogos narrativos de um Alain Resnais, dizia que eles abrem portas, mas essas portas não dão em parte alguma. Quando, por fim, alguém sustentava que a essência do cinema moderno é ser poético, respondia, apenas, que seu cinema é prosaico, sim, mas moderno. Onde estaria então sua modernidade? Rohmer é o mais radical discípulo da teoria realista de André Bazin (1918 – 1958). Para Bazin, a originalidade do cinema consiste em sua capacidade de captar o mundo objetivamente, sem a interferência da mão do artista. Até então, o habitual era considerar o cinema uma arte apesar disso. Ou seja, o que fazia dele uma arte era a capacidade de, graças à técnica, distanciar-se do mundo tal como se apresenta a nossos olhos. Nos filmes de Rohmer, essa ideia se traduz numa simplicidade que, ao olhar desprevenido, beira a ingenuidade. Só a persistência dessa ideia ao longo da obra nos leva a compreender o seu projeto: associar a objetividade do cinema à expressão de uma subjetividade – que, esta sim, caracterizaria o cinema moderno. Para facilitar, a maior parte da obra é agrupada em séries. Contos Morais (1963 – 1972) é sobre a escolha entre trair ou não trair a mulher; Comédias e Provérbios (1980 – 1987) enfatiza as relações interpessoais; Contos das Quatro Estações (1990 – 1998) leva a ambiguidade das relações entre os personagens às últimas consequências. O que já se disse de Howard Hawks também vale para Rohmer: é impossível amar seus filmes sem amar o cinema; é impossível amar o cinema sem amar seus filmes. Nos dois casos, o amor vem com o tempo. Saraceni e o Inferno da Fé 11 de novembro de 2002 O VIAJANTE (1999), de Paulo Cesar Saraceni Em O Viajante, uma mulher tem um filho retardado. Pode acontecer a qualquer um. Mas essa mulher, mineira e católica, tem contas a acertar com Deus. Porque Deus calou-se, deu as costas a ela. Então é da maneira de vivenciar a fé que trata este filme de Paulo Cesar Saraceni, e já se compreende seu fracasso retumbante. Na busca do mercado, não existe lugar para o cinema brasileiro tratar de coisas com tão pouco glamour. E que, no mais, exime-se de retomar velhas questões como identidade nacional, realidade brasileira, viabilidade do País. Não, Saraceni nos leva ao inferno da fé, enquanto Mário Carneiro cria uma luz em que o fogo do inferno parece iluminar os personagens, e Marília Pêra faz uma verdadeira possuída. É um filme para quem ama cinema. Fábula Estranha e Luminosa não Deixa Lugar à Indiferença 15 de novembro de 2002 ÁGUA QUENTE SOB UMA PONTE VERMELHA / Akai Hashi No Shita No Nurui Mizu (2001), de Shohei Imamura Viver é muito difícil, nos filmes de Shohei Imamura. A vida não é algo dado de que podemos ou devemos desfrutar, mas algo por que se luta sem cessar, dolorosamente. Era assim em A Enguia (1997), o último de seus filmes a passar por aqui (nele, um homem rompia todo o contato com o mundo após matar a mulher que o traía). É assim em Água Quente sob uma Ponte Vermelha. Como em A Enguia, existe aqui a sombra da misoginia: além de estar sem emprego, Yosuke é atormentado em tempo integral pela quase exmulher, cheia de críticas à sua maneira de ser e exigências pecuniárias. À beira da morte, um velho filósofo revela a Yosuke um segredo: a existência de uma ponte vermelha onde existiria um tesouro. Yosuke se dirige ao local, mas não encontra nenhum tesouro. Encontra, em compensação, uma estranha mulher, Saeko, que tem a característica particularíssima de reter água em seu corpo e expeli-la em grandes quantidades durante a relação sexual. Ela precisa quase desesperadamente fazer amor para expelir a água de maneira saudável, em jatos. Yosuke vai ajudá-la. Estamos aqui diante de uma espécie de parábola que começa com a alusão do filósofo sobre o tesouro. Yosuke vai à ponte atrás do dinheiro, mas o que encontra não é isso. É, antes, a constatação de que formulava um falso problema e, talvez, propunha a si mesmo um modo de vida inadequado. A ideia de modo de vida inadequado, aliás, perpassa a obra desse cineasta fora de tempo. Pois em alguns de seus primeiros filmes ele já criticava com ênfase (para dizer o mínimo) a permeabilidade dos japoneses à influência ocidental – que o pós-guerra consagrou – e se arrogava o direito de não aceitar os costumes impostos do exterior. Como definir isso politicamente? Nos anos 1960, Imamura seria, talvez, um anarquista. Anarquista de direita. Mas agora, na virada do século, no tempo do pensamento único, o que seria? Existe em Água Quente uma clara postulação contra o capitalismo desvairado de nossos dias, cuja crise já chegou a toda ao outrora inexpugnável território japonês. Daí a alusão inicial aos problemas de Yosuke. A solução desses problemas, no entanto, não remete a uma discussão das sociedades contemporâneas ou algo assim, mas a um território que diz respeito, antes de tudo, ao corpo. Ao corpo de Saeko, mais especificamente, corpo de pura libido. Saeko não faz parte de nosso mundo, pois a única necessidade física que a rege é de natureza sexual. O dinheiro – essa outra força decisiva – não existe em seu horizonte de premências. O que pensar disso? Trata-se de um ideário inconformista, evidentemente. Mas como situá-lo? É um inconformismo progressista ou regressivo? Difícil dizer, a começar pelo fato de que esse tipo de atitude está completamente fora de moda. Esse aspecto, em todo caso, ajuda-nos a nos situar diante deste filme estranho e luminoso: Imamura continua sendo um cineasta que nada contra a corrente, indiferente aos pensamentos do momento. Qualquer outro menos talentoso talvez caísse no ridículo ao contar uma história tão estranha quanto essa. Imamura corre o risco, estica a corda até o último grau, mas não conseguimos permanecer indiferentes à fábula que nos propõe. Filme Apresenta Mundo como Ficção Plena 22 de novembro de 2002 EDIFÍCIO MASTER (2002), de Eduardo Coutinho Quem espera de Edifício Master grandes revelações sobre a vida secreta em um cortiço vertical, esqueça. Tudo se passa como se Eduardo Coutinho tivesse feito este filme antes de tudo para frustrar nosso voyeurismo. Os personagens que habitam esse prédio de Copacabana com mais de 20 apartamentos por andar não têm nada de especial a dizer, e sua diversidade é grande o bastante para configurar uma espécie de representação em escala do que seja o Rio de Janeiro na virada para o século XXI. Moram ali jovens músicos, senhores aposentados, técnicos de futebol, camelôs, prostitutas, mães solteiras. A amplitude da amostragem é desnorteante, e é apenas isso o que credencia o edifício, entre tantos, a se tornar o lugar privilegiado de um filme. Aliás, já nas cenas iniciais o síndico avisa que os tempos de decadência são passado. O Master é um prédio como qualquer outro. O que vem a seguir não irá desmenti-lo. Qual, então, o interesse do filme? Santo Forte (1999), do mesmo Coutinho, tinha a propriedade de atirar o espectador em um registro muito particular: captava discursos de natureza religiosa, isto é, que dizem respeito diretamente ao imaginário, de tal modo que a ficção se instalava no coração das imagens e de certa forma nos arrastava. No Master, nada disso. Lá estão a garota renegada pelos pais por ter engravidado, o senhor que encontrou a mulher nos anúncios de jornal, as irmãs solteiras que passaram a vida juntas (uma delas se ocupando da outra e da mãe, ambas doentes), a poetisa desempregada. Etc. Com exceção do aposentado que emigrou para os EUA quando jovem e, à parte deixar seus três filhos por lá, cantou certa vez com Frank Sinatra, as histórias são prosaicas. Talvez a cena final, noturna, em que os apartamentos são vistos de fora pela câmera, desminta tudo o que foi dito aqui (ou seja, antes, seu corolário). Nesse rápido instante, vemos não mais que silhuetas, figuras que não chegamos a identificar. Existências fechadas em si mesmo, cujo mistério permanece intacto apesar de tudo que, agora, sabemos a seu respeito (a cena lembra um pouco quadros de Edward Hopper que, à força de realismo, acabam nos falando da irrealidade do mundo). Talvez, na verdade, Edifício Master comece depois que termina. Isto é, quando saímos à rua e deparamos com nossos semelhantes. E, por um momento, podemos pensar que habitualmente não conhecemos das pessoas nada mais que a casca, a aparência. E que qualquer uma delas (isto é, qualquer um de nós) tem um discurso, um ponto de vista, uma história a contar. E que qualquer história pode ser interessante, porque todas as vidas o são. É apenas então – já terminado – que o filme nos restitui à atmosfera ficcional de Santo Forte, embora num grau de radicalidade maior. Se neste entrávamos em contato com a ficção que cada um cria para si (sob a forma, no caso, de discurso religioso), aqui é o mundo que se apresenta como ficção plena, fascinante, na medida em que cada corpo é investido de uma história: aquela que cada um narra a si mesmo e que faz de cada ser um mistério. Daí, talvez, o formidável achado que é Edifício Master: cada cubículo contém um mundo particular e fechado em si mesmo. Vistos de perto, esses cubículos configuram um labirinto. Talvez esse labirinto seja cada um de nós, talvez a soma de todos. Talvez, por fim, seja preciso ver Eduardo Coutinho como o criador de um gênero paradoxal: o documentário fantástico. Fellini Acerta as Contas com a Sua Paixão pelo Circo 20 de dezembro de 2002 OS PALHAÇOS / Clowns (1970), de Federico Fellini É possível resumir Os Palhaços como o acerto de contas de Federico Fellini (1920 – 1993) com sua paixão pelo circo e pelos palhaços em particular. Já o início, aliás, não deixa dúvidas a esse respeito. Existe ali um menino e sua primeira experiência no circo. Experiência clandestina, já que deve escapar de casa para chegar perto do objeto de sua fascinação. É o ponto alto do filme: longe de ser um circo real, o que Fellini nos dá a ver é uma fabulosa fantasia. Um circo sonhado, como se o menino não tivesse saído de seu quarto. Fellini sabia filmar sonhos como ninguém. Aqui filma o seu próprio sonho infantil. Talvez o que vem a seguir seja um pouco mais árido – e talvez isso justifique o fato de este filme ter levado 32 anos para sair do ineditismo no Brasil –, pois trata-se de Fellini buscando os palhaços, entrevistando-os, examinando particularidades e estilos. Alguns nos parecerão estranhos, como a figura do palhaço branco, mais rico que a média e, aparentemente, ligado à tradição francesa do circo. Isso importa pouco. Com Os Palhaços estamos de certa forma no coração de Fellini e de seu cinema. Não é por acaso que ele faz uma aparição como documentarista, dando a entender que o fascínio, em vez de se extinguir com a idade, apenas se profissionalizou. Lá estão as máscaras, as maquiagens excessivas, as roupas extravagantes, que deformam os corpos. Lá está a matéria-prima de parte do cinema felliniano. O palhaço é um homem disfarçado. Não muito diferente, por exemplo, do vigarista que se faz passar por padre para passar um conto do vigário em A Trapaça (1955), ou da dupla de bailarinos de Ginger e Fred (1986), que se fantasiam de Ginger Rogers e Fred Astaire – para falar de trabalhos distantes 30 anos um do outro; no meio haverá muitos outros exemplos. O palhaço é ele mesmo e um outro. Como todos nós, talvez. Essa duplicidade talvez seja o motivo do fascínio que desperta em certas crianças e do horror que inspira a outras. Fellini parece ter carregado vida afora tanto o fascínio como o horror dessa fantasia infantil. Sobretudo a ideia de fantasia, muito presente em sua obra. Existe outro aspecto ligado ao caráter infantil dessa fantasia: um certo apego felliniano ao passado, a modos de convivência mais suaves do que aqueles que a guerra e o pós-guerra revelaram. Os anos 1950 foram marcados por vários filmes de circo, o que talvez revele a aspiração de manter viva uma arte que o tempo estava se encarregando de enterrar. Ao longo de sua vida, Fellini criou um correlato do circo em imagens cinematográficas. Em 1970, neste trabalho para TV, fez uma espécie de exumação do circo, buscando os últimos grandes clowns e, neles, a imagem de um tempo que seu cinema procurou, talvez, eternizar. Filme menor? Pode ser. Desigual, com certeza. Mas cada plano tem a pulsação de um cineasta invulgar. Ninguém desprezará. Charles Chaplin Esvazia a Pompa dos Poderosos 25 de dezembro de 2002 O GRANDE DITADOR/The Great Dictator (1940), de Charles Chaplin De onde vem a euforia de O Grande Ditador? Tratase de um filme da 2ª Guerra, e ali existem países sendo invadidos, judeus perseguidos – enfim, tudo o que de pior o nazismo poderia proporcionar no quadro de uma comédia. Mas, acima de tudo isso, 62 anos depois de realizado, o filme ainda deixa transparecer a alegria de seu autor, Charles Chaplin, ao descobrir a possibilidade de criar um sósia perfeito de Adolf Hitler, na pessoa de Adenoid Hynkel. Diz a lenda que Hitler sentiu o filme como um soco no estômago. Não seria de espantar. Lá está Hitler, seu bigode, sua gestualidade, seu tom de voz ao discursar. O que no original provocava devoção ou pânico – conforme o ouvinte – não chega a se tornar ridículo, mas algo talvez pior: insignificante. O vazio é o risco de toda pompa. E o que Chaplin faz é isso mesmo, esvaziar Hitler e o nazismo – e, mais genericamente, todo poder absoluto. O trailer atual enfatiza a atualidade do filme, afirmando que toda semelhança com situações atuais é mera coincidência. Com efeito, ainda que os grandes ditadores estejam em baixa, pode-se ver o filme como uma parábola sobre a busca de subjugar o mundo a seus desígnios. Não faz tanta diferença que o ditador se chame Adolf Hitler, Adenoid Hynkel ou simplesmente mercados. Não faz tanta diferença se, em Israel, os judeus, que eram perseguidos então, hoje não dão trégua aos palestinos. Mas, acima dessas circunstâncias, o que conta é Chaplin. Chaplin, que nasceu em 1889 e morreu em um Natal, como hoje, 25 anos atrás, é um gênio, portanto alguém de quem devemos suportar mesmo os defeitos, como um egocentrismo não muito menor que o de Hitler. Os filmes de Chaplin são Chaplin, giram em torno dele, de sua figura, de suas gags. Se tirarmos Chaplin dali não sobra quase nenhum encanto. Mas não há, justamente, como tirar Chaplin dali. E que importa sua tendência ao sentimental se ele cria uma sequência como aquela em que Hynkel brinca com um globo terrestre, bola levíssima que ele atira para cá e para lá, como a criança fruindo de seu brinquedo? Em outro momento ele se põe a dançar (com uma gordota, mulher de Napaloni – leia-se Benito Mus solini –, ditador de Bactéria) e toda a habilidade de sua mímica se converte em pura elegância. No filme, Chaplin faz ainda outro papel, o do barbeiro judeu sósia de Hynkel. Essa é a pior ofensa que poderia ter feito a Hitler: aproximá-lo de um judeu, de um judeu qualquer, que nem ao menos tem memória. Convém não esquecer que os nazistas viam o cinema – explicitamente – como uma arma de guerra. Isso torna mais compreensível ainda a possível ira de Hitler diante do filme: do ponto de vista da propaganda, tudo isso era um baque considerável. Quando o filme foi lançado, e mesmo depois, o discurso final – cujas circunstâncias convém não revelar, para não estragar a surpresa de quem ainda não o conhece – se tornou uma espécie de coqueluche: discurso humanista, à maneira de Chaplin, conclamando os homens ao amor por seus semelhantes. É o aspecto que mais satisfazia às necessidades da propaganda de guerra. Talvez por isso mesmo – e sejam quais forem as analogias que se possam encontrar entre 1940 e 2002 – ele parece o que o filme tem de mais convencional e ultrapassado. Para Zurlini, o Sofrimento é Nossa Essência 28 de dezembro de 2002 A MOÇA COM A VALISE / La Ragazza con la Valigia (1961), de Valerio Zurlini Valerio Zurlini é possivelmente o diretor de cinema mais triste do mundo. Que isso não desanime, pois, como nos lembra Noel Rosa, saber sofrer é uma arte. Embora italianos, os protagonistas de A Moça com a Valise parecem mergulhados na frase de Noel. Ou pelo menos isso é o que acontece com Aida (Claudia Cardinale), bela garota seduzida por Mar-cello. Marcello é aquele que sabe viver: ganha a garota, marca um encontro e desaparece. Manda em seu lugar o sensível Lorenzo (Jacques Perrin), irmão menor, que imediatamente se apaixona por ela. Não há razão nesse amor: Lorenzo é quase um menino. Mas quem disse que no amor a razão dá as cartas? É como se Lorenzo visse em Aida o seu duplo feminino, alguém destinado à infelicidade e a transformar a própria infelicidade em beleza. Porque se há uma coisa que não falta a Zurlini é o sentido da beleza. É, nesse sentido, um clássico. Isso vale para cada plano que compõe. Mas vale, sobretudo, para os personagens que coloca em cena. Claudia compõe uma figura patética com sua valise à mão, indefesa, bela como nunca, à espera de um sacripanta. A felicidade bate à sua porta. Mas quem disse que os infelizes são capazes de percebê-la? Qualquer um na plateia nota que Lorenzo é mais belo, mais interessante, mais profundo que seu irmão. Basta-ria Aida ser capaz de olhá-lo para que a melancolia se dissipasse do rosto do rapaz. Mas será isso possível? Não, a lógica do melodrama não é essa: a felicidade está ali, ao nosso alcance, e não conseguimos percebê-la. E se conseguimos haverá um fator exterior a impedi-la. Em Zurlini, como em Douglas Sirk, o sofrimento é nossa essência. Ele aponta nossos limites, nossas fraquezas, ao mesmo tempo que nos redime pela beleza que os rostos de Claudia e, sobretudo, Jacques, exprimem tão enfaticamente. Christine Anuncia o Triunfo da Máquina 22 de março de 2003 CHRISTINE – O CARRO ASSASSINO / Christine (1983), de John Carpenter A ideia de um cinema pessoal rareia, quando o preço dos filmes sobe de maneira desmedida e é preciso, antes de mais nada, posicionar-se no mercado. O fenômeno verificou-se de maneira intensiva ao longo dos anos 1980. Nos EUA, os filmes blockbuster introduziram uma nova tendência na exibição dos filmes, que passaram a ser lançados simultaneamente em muitos cinemas e explorados por um período curto de tempo. O velho boca a boca, a propaganda que um fazia para outro, perdeu a importância, enquanto cresceu a do aparato publicitário. Não foi à toa que Hollywood fez renascer o star system (mais um caso de a História se repetindo como farsa), difundiu a cultura do making of (o suposto conhecimento dos bastidores), investiu na difusão de cifras (raciocínio induzido: se rendeu x num fim de semana, deve ser bom). Ou seja, tudo tornou-se muito rápido: tanto a vida útil do filme na tela (que logo devia passar ao vídeo, ao DVD, à TV paga) como a percepção do público sobre virtudes capazes de levá-lo a comprar um ingresso. Com isso, viu-se desaparecer toda uma geração de realizadores pessoais. Que foi feito de Peter Bogdanovich, Paul Schrader, Richard Sarafian, etc.? Outros conseguem manter-se à tona, como Scorsese, Brian de Palma ou, a duras penas, Francis Coppola. Um que ameaça desaparecer é John Carpenter. Convém aproveitar, portanto, e ver ou rever Christine – O Carro Assassino, pequena obra-prima de terror sobre a máquina que assume sua autonomia e volta-se contra o mundo dos humanos. É um filme de 1983 com espírito dos anos 1970. A cada sequência sente-se a mão de Carpenter. Como comparação: Uma Vida em Sete Dias, que está entrando nos cinemas, não poderia muito bem ser dirigido por um computador? Terão as máquinas vencido? Ninguém é Perdoável em O Dia do Perdão 17 de abril de 2003 KIPPUR – O DIA DO PERDÃO / Kippur (2000), de Amos Gitai No início, estamos em uma grande cidade deserta de Israel, em pleno feriado de Yom Kippur. Todos, supõe-se, recolhidos para o grande feriado judaico. Alguém atravessa a cidade fantasma. É um jovem que, com seu carro, vem buscar o amigo para a guerra. Estamos em 1973. Os dois vão para o front de carro. Surpreendente, mas não tanto: ali é tudo pertinho, os sírios atacaram de surpresa, reina certa bagunça. Mas, acima de tudo, os rapazes vão para o front um pouco como quem vai a um piquenique, convencidos da superioridade bélica israelense. Aos poucos, esses momentos iniciais, não isentos de humor, vão sendo recobertos pelos de horror. A guerra não é o piquenique que aparentava ser. O sentimento despreocupado dos jovens, que quase ansiavam por esse momento, logo desaparece. O Dia do Perdão é, antes de tudo, um filme em que Amos Gitai demonstra grande capacidade de observar um campo de batalha e de colocar sua câmera de maneira implacável diante dos acontecimentos: filmagem a frio, direta, sem emocionalidades desnecessárias, sem heroísmos, sem truques para envolver o espectador. O filme mostra. Não é preciso exagerar. Basta ver o grupo de soldados tentando colocar um agonizante na maca e levá-lo através de um terreno em que o barro bate na altura dos joelhos. Uma cena antológica, sem cortes, porque um corte retiraria toda a tensão do momento, talvez tornasse a sequência quase burlesca. A continuidade é que transmite ao espectador a dimensão da agonia por que passam os envolvidos na operação: a duração da cena coincidindo com a duração do acontecimento, é passo a passo que experimentamos na pele a dimensão da catástrofe. Basta a descrição desta cena, um dos grandes momentos do cinema contemporâneo, para dar uma ideia do que nos reserva O Dia do Perdão. Schrader Remete a Cristianismo Angustiado 19 de abril de 2003 HARDCORE – NO SUBMUNDO DO SEXO / Hardcore (1979), de Paul Schrader No Submundo do Sexo não é um filme pascal, embora feito por um homem de fé como Paul Schrader. Schrader, alguns sabem, vem de uma família rigidamente protestante e estava destinado a pastor de almas, até o dia em que, aos 18 anos, entrou no cinema e viu, pela primeira vez, um filme. Foi uma revelação. Nos anos seguintes, conta ele, não saiu das salas escuras. Conversão possível, porque cinemas são, à sua maneira, templos. Isto quando não, após fechar, transformam-se em igrejas neopentecostais, o que tem certa lógica: filmes são, em certa medida, milagres que transformam o implausível em plausível, fazem Moisés abrir o Mar Vermelho, Jesus caminhar sobre as águas, etc. Assim como Cristo, amanhã, desaparecerá de seu túmulo, em No Submundo do Sexo uma adolescente some do ônibus durante uma excursão escolar. The young lady vanishes (a jovem dama desaparece) seria possível se fosse um filme de Hitchcock e se Schrader fosse um homem sem tormentos. Como não é, ele mostrará o angustiante percurso de um pai (George C. Scott, o que ajuda muito) em busca da filha, de sex shop em sex shop. Mas quem é esse pai? Um homem rigidamente religioso, que criou a filha dentro dos mesmos princípios. O que terá acontecido a ela? Todos os indícios levam a crer que esteja na indústria da pornografia. Mas por quê? Não há resposta para isso. Ou antes, a resposta, se houver, está na doutrina. Deus concede a graça a quem melhor lhe apraz. Não basta ter fé. É preciso ainda que Deus não nos dê as costas. Digamos que, como mensagem de Páscoa, essa não é das mais otimistas, embora nos remeta ao nome de Pascal e seu cristianismo angustiado. Em compensação, Paul Schrader buscou aí o que talvez tenha sido o seu filme mais rigoroso e complexo. Quase um milagre. O Mundo Visível Morre em Dançando no Escuro 3 de maio de 2003 DANÇANDO NO ESCURO / Dancer in the Dark (2000), de Lars von Trier O que há para ver? Não há mais nada para ver, diz a heroína de Dançando no Escuro. Durante todo o filme ela arranja um jeito de seu filho ser operado da vista e não sofrer de cegueira progressiva, como ela. A frase tem um segundo sentido cinematográfico evidente, é como um comentário de Lars von Trier, autor do filme, à visibilidade atual do mundo, digamos assim. Se tudo se tornou visível, já não há o que ver. Trata-se assim de propor o que não ver. Em vez de encantar os olhos, Dançando no Escuro (assim como os filmes mais recentes de Von Trier) trata de borrar o visível com o uso de uma câmera trepidante, que parece hesitar propositalmente entre se fixar num personagem ou em outro. A questão onde vai a câmera, que tradicionalmente significava a busca por oferecer ao espectador a melhor visão, parece ter desaparecido: qualquer posição é uma posição, nem melhor, nem pior do que outras. De qualquer maneira estamos condenados a não ver. Ou seja: a ver aquilo que nos forçam a ver, o que dá no mesmo (não foi assim na cobertura da guerra no Iraque, para ficarmos com um exemplo extremo?). O caminho de Björk, a mãe do filme, consiste em constatar isso: as ilusões do cinema estão, de certa forma, mortas. O que se mostra a nós é apenas uma aparência do mundo. Ela vai fazendo sua descoberta ao longo de incontáveis desventuras, entre elas o julgamento a que é submetida, em que a farsa do visível revela-se em toda a sua extensão: tudo o que conta é o cerimonial do julgamento. A verdade mora num poço. Nós, diante do filme, concordamos com ela. A plateia não raro chora copiosamente. E tem motivos: não é apenas um gesto de solidariedade com Björk. Partilhamos seu destino mais amplamente: tudo ali também nos afeta. Evidências de Eric Rohmer Ocupam a Tela 9 de maio de 2003 CONTO DE VERÃO / Conte d’Été (1996), de Eric Rohmer Impossível não perceber o encanto de Margot. Qualquer um na plateia de Conto de Verão percebe, assim que ela entra em cena. Só Gaspard não nota. Só Margot parece notar a existência de Gaspard nessa praia da Bretanha, nas férias de verão (na praia, aliás, Gaspard é uma triste figura). Os pensamentos de Gaspard estão todos voltados para Lena, sua inconstante namorada. Estarão mesmo? Conto de Verão é um filme de Eric Rohmer, portanto tudo se passa entre o ser e o não-ser, o desejar e o não-desejar. Gaspard procura sem saber que procura (o quê ou a quem). Pode ser Lena, que combinou encontrá-lo e nunca aparece. Mas pode também ser Solène, garota impulsiva, de beleza evidente, talvez evidente demais, que também se encanta por Gaspard. De imediato torcemos por Margot. Mas Margot não ajuda muito. Etnóloga e garçonete numa creperie, ela se propõe a Gaspard como amiga. Seu namorado existe: é etnólogo também, está há meses longe e assim permanecerá. Conto de Verão é, em suma, mais um filme de Eric Rohmer e nele acompanhamos a circulação de Gaspard entre essas três mulheres, enquanto se dedica à composição – ele é músico. É mais uma história da série Contos das Quatro Estações, em que a natureza dá o tom, com suas transformações de luz e atmosfera. É previsível, como Rohmer nos acostumou – em sua obra quase tudo se ordena em séries (Contos Morais). Seus filmes não são, em definitivo, para quem busca carrosséis de acontecimentos. Conto de Verão é mais uma dessas histórias sem história: nada, ou quase, acontece. Ao olhar desavisado. Pois tudo acontece: paixões, desencantos, ciúmes e uma busca. Tudo isso, porém, irrompe de maneira quase subterrânea. Como se a vida, a exemplo das séries rohmerianas, devesse obedecer a princípios e a uma certa previsibilidade ditada pela razão, pela crença ou pela moral. Mas há nesses personagens algo que escapa ao seu controle – uma distância sutil entre o que são e o que falam. Daí seu cinema ser tão falado e tão cinematográfico: se não fossem filmadas, essas falas sofreriam de falta de imagens. Elas é que nos trazem as hesitações, as expressões de corpo, os olhares ambíguos – enfim, tudo isso que desmente o que se fala sem desmentir de todo. Sim, é um cinema de imagens simples, tão diretas que parecem quase simplórias ao olhar desavisado, acostumado a crer naquilo que os personagens de cinema (ou da vida real, tanto faz) dizem. Mas como as imagens desdizem o que é dito, impõe-se pensar se simplórios não seríamos nós. É difícil admitir uma coisa dessas. Talvez por isso quase ninguém goste de imediato dos filmes de Rohmer. E quase todos os amem ao vê-los pela terceira ou quarta vez. Compreendemos aí que até então não víamos de verdade os seus filmes, que não tínhamos olhos nem ouvidos para apreciar essa modulação sutil. Assim como Gaspard neste Conto de Verão, aprenderemos então que nada, às vezes, é menos evidente do que a evidência. Eles Vivem Contém a Herança do Filme B 14 de junho de 2003 ELES VIVEM / They Live (1988), de John Carpenter É um engano supor que os filmes B sejam filmes ruins. Eles eram os filmes baratos que compunham o programa duplo dos cinemas, desde que a Depressão dos anos 1930 obrigou os donos de salas a oferecer dois filmes pelo preço de um para atrair público. Eles podiam ser insuportáveis, também podiam ser muito bons. Não é isso o que os torna tão particulares, e sim o fato de terem criado um modo de produção absolutamente original, em que se aproveitavam roupas, cenários e até cenas de outros filmes. O B era rodado sempre em poucos dias. Por isso, os diretores davam tratos à bola para filmar de maneira econômica. Daí o B ser o domínio por excelência dos planos-sequência (toda a cena rodada sem cortes, ou quase). Os modernos fizeram o mesmo. Rossellini e Orson Welles foram mestres do plano-sequência. Nesse sentido, o B de certo modo já contém o cinema moderno. Mas, lembra Alcino Leite Neto, não só: o B também é herdeiro dessa sofisticação única no uso da câmera que é o grande segredo do cinema mudo: falava-se com a câmera. Nessa hipótese, o B detém ao mesmo tempo o passado e o futuro. Mas não é isso o essencial, e sim que: antes do sonoro, o cinema era mais livre (não sofria dos constrangimentos industriais impostos pelo som), e o moderno começa quando o cinema se liberta dessa camisa de força. Ou seja, o essencial do B é a liberdade (que hoje, pósmodernamente, está novamente em xeque). Essa liberdade que seus herdeiros, como John Carpenter, sabem cultivar. E talvez nenhum filme de Carpenter seja melhor exemplo disso do que Eles Vivem. É uma ficção científica (ou terror, ou ambos) feita com migalhas, em que aliens se misturam aos terráqueos de tal modo que ao final não sabemos quem é quem. Carpenter substitui a grande produção por invenção. Faz do precário uma virtude. Tira ouro de pedra. Que mais pedir? Scola Fixa Registro Tradicional em Casanova 23 de agosto de 2003 CASANOVA E A REVOLUÇÃO / La Nuit de Varennes (1982), de Ettore Scola O filme Casanova e a Revolução se passa nos tempos da Revolução Francesa (1789). Narra a fuga de um grupo de nobres, é dirigido por Ettore Scola e é muito digno. Mas não é isso que importa por hoje, e sim o fato de poder compará-lo ao mais recente A Inglesa e o Duque, de Eric Rohmer. Scola faz uma reconstituição histórica tradicional, buscando encontrar paisagens que se aproximem das do final do século XVIII. Rohmer trabalha uma solução radical: manda pintar essas paisagens e as utiliza como cenário (como trabalha com efeitos digitais, pode-se dizer que usa quadros animados, dentro dos quais os atores representam). Diferentemente do que se possa imaginar, a eventual antipatia de A Inglesa e o Duque pelo Terror não tem grande importância, não tem nem muita importância. E, se Scola se pretende à esquerda, contra a aristocracia, é preciso admitir que, cinematograficamente, ele é que está à direita. Pois, ao imitar fielmente (servilmente?) um tempo passado, ele de fato o reconstitui. Já Rohmer procura não reconstituí-lo, mas restituí-lo a si mesmo em toda a sua irredutível ambiguidade. Também há ambiguidade em Casanova, mas, para se manifestar, ela necessita da inteligência dos personagens. A Inglesa, ao contrário, não depende dos pensamentos dos personagens (necessariamente parciais): a época os faz pensar assim, não o brilho de seu raciocínio. Por fim, Casanova é um filme sobre a História, enquanto A Inglesa traz em si a História: ao utilizar os efeitos digitais, remete ao século XXI, ao que há de mais moderno, mas ao mesmo tempo evoca os telões pintados do fim do século XIX, como a nos lembrar de que cada época tem seus critérios de verossimilhança. Ela muda. Já a verdade não muda: deixa-se reencontrar. Mau Gosto em Grande Forma 27 de agosto de 2003 EU, EU MESMO E IRENE / Me, Myself & Irene (2000), de Bobby e Peter Farrelly Em cinema, o bom gosto é quase sempre um atraso de vida. Ele impediu muita gente de ver os encantos do cinema de Zé do Caixão, no passado, assim como hoje não permite notar, por vezes, quanta besteira as belas imagens podem conter. Uma parte da simpatia do cinema dos irmãos Farrelly consiste justamente em evitar ciosamente o bom gosto. Em combatê-lo, mesmo, como em certos momentos do filme Eu, Eu Mesmo e Irene, em que Jim Carrey faz um policial rodoviário. Ele sofre de traumas, de distúrbios da personalidade – enfim, essas coisas que fizeram a glória de Jerry Lewis em outros tempos: glória do imbecil, do incapaz. Pois, mais do que nunca, os tempos pedem a nós eficiência e sucesso – e seu pendant artístico, claro, o bom gosto. Brian De Palma Busca a Verdade de um Grito 14 de setembro de 2003 UM TIRO NA NOITE / Blow Out (1981), de Brian De Palma Tudo se passa em Blow Out – Um Tiro na Noite como se o mundo resistisse à representação. Como se repeti-lo, imitá-lo, fosse uma violência à qual a realidade não se acomoda. Do outro lado, existe o artista. Ou que nome se queira dar a um técnico de som de filmes pornográficos. John Travolta, em suma. Diante da cena em que uma mulher é morta, ele tem a tarefa de descobrir uma voz, um grito correspondente à imagem na tela. A imagem de uma mulher sendo morta. Um mais conformista, ou mais conformado, escolheria uma boa dublagem e encerraria aí sua busca. Mas estaria no domínio do realismo, não do real. Travolta sabe que o verossímil é uma coisa – é o que parece verdadeiro – e a verdade, outra. Eis aí seu dilema: ser verdadeiro, não verossímil, não falsamente verdadeiro. Daí deriva toda a aventura que se segue. Mas o importante é a atitude dos profissionais, sobretudo o técnico de som: ele não está preocupado com o público. Ele sabe, a rigor, que o público está interessado nos peitos da atriz, e não no seu grito. Mas o profissional respeitável não trabalha para o público, e sim para sua arte. É indiferente que esteja fazendo um pornô ou Lawrence da Arábia: ele está em busca do bom filme, da verdade. Ele não se contentará com a mera convenção. Não dá para resumir a história desse filme. Quem não viu perderia a surpresa final. Mas quase todo mundo viu e sabe como, ironicamente, a vida se encarregará de satisfazer às buscas de Travolta, e o quanto isso lhe custará. Blow Out – Um Tiro na Noite é um filme inesperado, pois raramente se fez filmes sobre um grito. É também um dos grandes filmes dos anos 1980 e talvez o melhor feito por seu autor, Brian de Palma. Um filme a ver ou rever, apesar dos intervalos da TNT. Ruído das Armaduras 18 de setembro de 2003 LANCELOTE DO LAGO / Lancelot Du Lac (1974), de Robert Bresson Robert Bresson trabalha a realidade não exatamente como o pintor que foi, mas como o escultor que parte do bloco de mármore para encontrar sua figura: por supressão. Assim é em seu Lancelot du Lac. Não é para todos essa versão muito particular da saga dos cavaleiros da Távola Redonda, em que convém não esperar efeitos especiais delirantes nem, muito menos, música tonitruante. O prazer está reservado para o espectador que, mais modestamente, contente-se em escutar o barulho das armaduras durante uma cavalgada. Já vi uma centena de filmes sobre o assunto, não lembro de nenhum que desse conta desse ruído. Mas é isso que deviam escutar os cavaleiros. No fundo é o único que interessa. Jayne Mansfield Humaniza a Caricatura 4 de outubro de 2003 EM BUSCA DE UM HOMEM / Will Success Spoil Rock Hunter? (1957), de Frank Tashlin Hoje não começamos falando de cinema, mas de silicone. Talvez já sejam quase sinônimos. O silicone é o correlato feminino dos efeitos especiais, com a diferença de que é quase sempre uma desonestidade intelectual inominável, pois bagunça o universo da feminilidade, e o da masculinidade como decorrência. Isto é: quando vemos Catherine Zeta-Jones, ou qualquer outra das musas contemporâneas, não sabemos se Deus criou a mulher ou se algum cirurgião especializado nessas próteses horríveis. No passado, ao menos, sabíamos que Jane Russell era como era, para ficar num exemplo bem evidente. E por que devem as mulheres ter seios necessariamente grandes? Quem inventou isso? Jayne Mans-field é um desses fenômenos. O peitoral colocou-a em evidência. O problema, depois, foi gerenciar esse volume que desequilibrava todo o seu corpo. Frank Tashlin foi um dos raros a fazê-lo, e Em Busca de um Homem resultou numa comédia antológica. Tashlin já tinha sido cartunista, de modo que sou-be aproveitar os atributos físicos de Jayne pelo que tinham de caricatural (mais tarde, alguém se inspiraria provavelmente nela para criar a garota de Roger Rabbit), ou antes, de irreal, ou surreal. Mas todo o conjunto da trama sabe brincar com a televisão e a publicidade (na época duas novidades – o filme é de 1957). Tony Randall é o publicitário que precisa de Jayne para fazer um comercial bem-sucedido. Mas para que isso aconteça eles devem fingir que namoram. Surge daí toda uma série de quiproquós. O essencial é que, ao final deles, Jayne, que começa como caricatura, sai humanizada (não só o personagem, também a atriz). Triunfo tristemente esporádico, pois sobre Jayne sempre pesou o estigma de ser um fenômeno físico mais que uma atriz. Ciclo Segue o Ritmo da Vida de Rossellini 5 de novembro de 2003 Pouca gente sabe, hoje, quem foi Roberto Rossellini (1906 – 1977), e talvez estranhe o fato de o CCSP dedicar um ciclo só a ele. O estranhamento se justifica. Rossellini nunca foi um cineasta assim tão conhecido. À parte o imenso sucesso de Roma, Cidade Aberta e um rumoroso casamento com Ingrid Bergman, teve uma existência artística discreta. Hoje é mais lembrado pela filha – Isabella – do que por seus filmes. Ao mesmo tempo, é difícil lembrar um nome que tenha tido tanta influência sobre os rumos do cinema moderno, nem que o tenha transformado tão profundamente. Rossellini o fez, aliás, mais de uma vez. A primeira, em 1945, quando propôs, com Roma, Cidade Aberta, um cinema até então inédito: feito longe dos estúdios, com recursos mínimos, atores desconhecidos. Essa arte não aspirava mais ser arte – a capacidade da imagem de se distinguir da realidade –, e sim comungar com a realidade, participar plenamente do mundo conturbado do pós-guerra. O cinema de Rossellini tem um caráter liberador; num mundo que valorizava a técnica, ele sustentou que esta não passa de uma farsa cujo objetivo é preservar a hierarquia dos estúdios. E mostrou que se podia fazer cinema sonoro nas ruas, captando o real. Encostou também certas convenções, como o respeitadíssimo tempo cinematográfico. No belo volume Um Filme É um Filme, podemos observar em vários momentos como José Lino Grünewald acusa Rossellini justamente de não controlar o ritmo de seus filmes. A observação faz sentido: Rossellini acreditava que o filme deve seguir o ritmo da vida, não o inverso. Assim, o ritmo cinematográfico seria uma convenção, portanto nada que interesse a esse não-artista que é o cineasta. Essa postura antiartística levou Rossellini a outra atitude inovadora: dedicar-se à TV. Seu raciocínio era que, tendo o cinema sucumbido à ideia de espetáculo, constituindo-se meramente num negócio, a TV seria o local correto para veicular sua arte do real, das imagens do real. Não é demais lembrar que a TV para a qual Rossellini trabalhou era estatal, não dependia de anunciantes nem de audiência; era um espaço de liberdade, invenção e educação visual do espectador. Para Rossellini, o essencial era explorar novos caminhos e nunca sucumbir à engrenagem diabólica do sucesso mundano. Filme após filme, o espectador perceberá o inventor que era Rossellini. Winchester Vê o Mundo a Partir de Luta por Arma 11 de janeiro de 2004 WINCHESTER 73 (1950), de Anthony Mann Tudo é muito simples em Winchester 73: dois irmãos, ambos pistoleiros, mais alguns índios, disputam como dementes a posse de uma Winchester muito especial (do tipo uma em mil). Mas talvez não seja assim tão simples, e o que primeiro nos chama a atenção é o caráter demencial da disputa em que estão envolvidos. Até Anthony Mann, o Velho Oeste era habitado por bandidos e mocinhos. Com ele, a demência e a animalidade entram no circuito. Não dá mais para observar as coisas apenas a partir da distinção entre o certo e o errado, o bom e o mau. E, olhando Winchester 73 com cuidado, talvez observemos algo que, em filmes futuros, se tornaria mais claro: não há, a rigor, dois irmãos – um bom e outro mau: somos todos seres duais, e todos capazes do melhor e do pior. Distinguir o certo do errado não é tarefa fácil, quando se pode optar por ficar com um monte de ouro para si, deixando toda uma comunidade na pior. Diferentemente do faroeste tradicional, o herói de Anthony Mann não é alguémque, de nascença, tenha optado pelo certo e pelo bem, que tenha certeza absoluta do que seja um ato moral e um imoral. Como o paraíso não existe, não é de espantar que o movimento de câmera favorito de Mann seja a panorâmica. É como um olhar que abarca todo o espaço, que busca uma visão de conjunto, porque o bem não é um a priori. Só a observação nos leva a alguma coisa. Portanto, o herói de Anthony Mann não é, ele também, um herói a priori: ele se afirma como tal na medida em que consegue perceber que só o bem comum é capaz de promover o seu próprio bem. A disputa por uma arma em Winchester 73 é bem mais, como se vê, do que a disputa por uma arma. Loja dos Horrores Ensina a Lição da Economia 25 de janeiro de 2004 A PEQUENA LOJA DOS HORRORES / The Little Shop of Horrors (1960), de Roger Corman O cinema tem obsessão de recordes numa dimensão quase tão maníaca quanto no esporte. Aceitemos a diferença: o esporte é feito para isso, o cinema não. A importância de um recorde de bilheteria, por exemplo, é enorme para o produtor do filme, mas bem menor para o público em geral. Que garantia nos dá um grande orçamento de que um filme será bom? No entanto, a toda hora deparamos com cifras que, a nós, nada dizem: tal filme custou US$ 300 milhões, ou custou R$ 8 milhões. Existe um abismo entre as duas cifras, mas é quase impossível ter a dimensão desse abismo. Roger Corman é um caso curioso porque parece ter tomado como especialidade os recordes negativos. Parece que não lhe interessa fazer o filme mais caro, mas o mais econômico. Assim chegou a Loja dos Horrores, tido como o filme mais rápido de todos os tempos. Conforme a fonte consultada, foi feito em dois ou três dias. Não há filme que não sofra com tamanha pressa – este não é exceção. Mas há um jovem Jack Nicholson em ação. E há sobretudo um desejo forte de superar dificuldades que, para voltar ao início, tem muito a ver com o esporte. Não é um grande filme, longe disso. Mas é importante para nós, brasileiros, muito mais dispostos a aprender a lição dos gastos inúteis do que a das economias consequentes. Hoje nossos filmes são quase sempre feitos com equipes e gastos colossais. Mimetizamos o espírito de grandeza de Hollywood, mas relutamos em aprender as lições de Corman e do filme B em geral: usar menos dinheiro e mais imaginação. Só para não esquecer: continuamos um país em desenvolvimento ou, sem eufemismos, pobre. Longa Confirma Irmãos Farrelly na Vanguarda de Hollywood 5 de março de 2004 LIGADO EM VOCÊ / Stuck on You (2003), de Bobby e Peter Farrelly Há o olhar e a cena. No livro de Ismail Xavier, O Olhar e a Cena, há uma figura para a qual chama a atenção, que é a ironia. Apanágio hitchcockiano, maneira de estar dentro e fora do sistema (industrial, clássico). Pensemos, hoje, nos irmãos Farrelly, diretores de Ligado em Você. No filme, eles tratam dos gêmeos siameses Bob e Walt. Tudo começa, portanto, de acordo com o figurino farrellysta, cuja farra consiste em misturar o plausível e o impossível, alternar mau gosto e inventividade. Mas gêmeos siameses não seriam monstros – os freaks que um dia o filme de Tod Browning evocou? Não estes dois. Eles vivem como heróis esportivos em sua pequena cidade, trabalham com hambúrgueres, empregam um retardado mental, etc. Há algo de doentiamente positivo nesse mundo de correção política impecável. Nele tudo é hollywoodiano demais. Em Ligado em Você há um descompasso entre o olhar e a cena: a cena de horror (os freaks siameses) como que se derrete para se converter em cena cômica. Mas o olhar retém algo do horror enunciado originalmente. Não nos acomodamos à comédia; o próprio filme nos impede de fazê-lo. O mal-estar que provoca está entre a comédia e o drama (ou horror). Ou: a comédia dos Farrelly é, de certo modo, o drama (ou horror) mais a ironia. Os Farrelly estão em Hollywood e não o negam, mas também não se rendem a Hollywood, a seus clichês, a sua hipocrisia bom-moço. Por isso constituem hoje, por excelência, a vanguarda de Hollywood. Lynch Destrói Realidade Mumificada 11 de março de 2004 CIDADE DOS SONHOS / Mulholland Dr. (2001), de David Lynch As imagens de cinema são a imagem de nossa credulidade: julgamos que algo existe simplesmente porque a vemos. De certa forma isso é o que também acontece com Betty Elms, a loirinha de Cidade dos Sonhos, que chega a Hollywood disposta a fazer carreira em cinema e se hospeda na casa de uma tia, atriz, que se encontra em Toronto, filmando. Lá, encontra uma mulher que perdeu a memória. Não temos motivo para acreditar que essas coisas não acontecem, pois as vemos. Como Betty, somos sonhadores incuráveis. Mas David Lynch sabe que este é um melodrama dos anos 1940 – uma colcha de clichês: a garota, a tia protetora, a amnésica. Esta última se dá o nome de Rita, simplesmente porque viu o nome de Rita Hayworth num cartaz – o que serve para confirmar que estamos às voltas com os anos 1940/1950 e, sobretudo, com idealizações mumificadas da realidade. É a partir dessa constatação que David Lynch puxa nosso tapete. E o puxa psicanaliticamente. A psicanálise parece, nesse início de século, uma coisa fora de moda. Para que sofrer se uma pílula pode nos dar felicidade? Ao menos esse é o clichê que a indústria farmacêutica vende. Sofre-se por excesso de ilusão, de clichês. Sofre-se por falta de realidade, de memória. Um filme que Lynch realizou antes desse chamava-se A História Real. Impressionou porque, ao contrário deste, era direto, simples. A história do homem que atravessa léguas e léguas num carrinho de cortar grama não é simples como parece: é como se fosse o momento em que todos os dados se juntam e se tornam plenos de realidade. O árduo caminho de Betty até chegar à realidade (à descoberta de que Rita é a estrela que ela queria ser, como interpreta lindamente Vladimir Saflate) é o centro deste filme raro, pleno de sentido, e que, no entanto, nos faz caminhar às cegas (isto é, tendo de duvidar do olhar a cada instante), ao contrário do velho Alvin Straight de A História Real. Jesus não Salva, Vende 19 de março de 2004 A PAIXÃO DE CRISTO / The Passion of the Christ (2004), de Mel Gibson Alguns detalhes em particular chamam a atenção na Paixão de Cristo de Mel Gibson. A caminho da crucificação, uma mulher lhe estende uma toalha. O Cristo enxuga o rosto suavemente, gravando no tecido a sombra de seu rosto sofrido. Depois veremos Jesus ser pregado na cruz. Os pregos cortam sua carne com tal ímpeto que já não vemos a carne nem o sangue: o objeto em si – o prego – é que fica em destaque. Mel Gibson desenvolve, em um nível, uma trama fetichista que coloca em relevo uma série de objetos (reais ou fictícios) que frequentam a imaginação de todos os católicos desde a infância: o sudário, o cálice, a sandália, os pregos, a coroa de espinhos, etc. Ao mesmo tempo, convém não esquecer, toda a mitologia desse filme vem da fé católica (fé suposta, naturalmente) de seu diretor, que o teria produzido com dinheiro do próprio bolso. Não se trataria, assim, de um produto – mas de um ato de fé. Mais tarde, a equipe de marketing do filme divulgou a história segundo a qual João Paulo II, após ver o filme, teria dito que assim se passaram as coisas. À fé, acrescenta-se então a asserção de verdade: a autoridade papal em pessoa garante a veracidade do filme. Não importa que depois a Igreja tenha negado a história e se fechado em copas – essa é a versão que circulou e pegou. Temos então uma operação de marketing como raras vezes se viu. Ela vende, em um nível, não propriamente um produto, mas um ato de fé. Não uma obra de arte, mas o que devemos receber como a própria verdade revelada. No entanto, num outro nível, incômoda, lá está a trama fetichista a atazanar a glória eterna dessa operação perfeita. O sudário, o cálice, etc., essas lembranças de procissão, de visitas a Aparecida, são versões primitivas dos gadgets que a indústria cultural incorporou à operação comercial dos filmes: o carro do Batman, o bonequinho do E.T., etc. Elas nos lembram que esse ato de fé é uma operação comercial gigantesca, que autenticidade é aquilo que cauciona essa operação, e que Paixão de Cristo é nada mais que um produto hollywoodiano, de resto dos mais tradicionais. Por conta da autenticidade, os atores usam o aramaico ou o latim. Tudo mais em matéria de autenticidade vem das convenções hollywoodianas: os carrascos romanos rindo a cada chicotada, as nuvens que se deslocam rapidamente, as quedas em câmera lenta. Santo Deus! É um filme ou uma clicheria? Em suas duas horas e pouco de duração, Paixão não produz um instante de grandeza, ou de beleza, ou de talento. É triste, no mais, a maneira como usa os recursos da montagem clássica para jogar o espectador contra os judeus e produzir, sim, o espetáculo mais antissemita desde que Veit Harlan realizou O Judeu Süss, sob a supervisão de Goebbels. A questão é que o antissemitismo do filme, assim como o sadomasoquismo, não respondem a necessidades profundas. Eles entram, um pouco, como compensação à ausência atual de mito em torno de Jesus. Assim, ao encanto dos milagres ou mesmo da palavra de Cristo substituem-se os shows de chibata. Toda essa dor hiperbólica é, como o uso do aramaico e do latim, sinal de autenticidade. Não o é, contudo, de verdade. Configura Jesus como um produto, não como o Salvador. Como produto e marketing, será um sucesso. Vide a bilheteria. Já a história, grande demais, escapa entre os dedos muito pequenos de Mel Gibson. Amélie Poulain Resume Certa Indústria do Cinema 15 de maio de 2004 O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN / Le Fabuleux destin d’Amélie Poulain (2001), de Jean-Pierre Jeunet Certos filmes chegam ao cinema endeusados, obtêm consagração no instante do lançamento, mas logo são esquecidos. Em parte é assim que nosso tempo é e como, também, concebe o cinema: um passatempo e nada mais. Quem mais incentiva a ideia do cinema como passatempo é a própria indústria, para quem não é conveniente que, sobre essa atividade, paire a sombra da arte, com todos os prejuízos que daí podem decorrer. Pede-se, no entanto, que esse passatempo tenha ideias – ou ao menos finja tê-las –, pois ninguém deseja que o cinema se confunda com coisas como parques de diversão ou circo, por exemplo, o que diminuiria seu valor. Aí é que entra o humanismo como ideologia mais a propósito: é elevada, universal e não faz mal a ninguém. Funciona tremendamente nas épocas do Oscar ou, em geral, em cinematografias periféricas. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, dirigido por Jean-Pierre Jeunet, preenche quase todos os requisitos acima. Amélie é uma moça que teve infância difícil, no entanto se dispõe a fazer o bem e a ver o mundo em cor-de-rosa. Ou antes, a ver uma Paris permanentemente esverdeada. Já houve humanistas sinceros no cinema. Talvez ainda haja algum. A grande maioria, no entanto, parece perceber que, assim como as boas causas, é de um bom negócio que se trata: com ideias gerais e um pouco de sorte chega-se a um Amélie Poulain, a um Chocolate, a algo assim. O que lhes falta? Talvez nada. Cumprem o seu papel na indústria, e de certa forma isso não é pouco. Em geral, são esquecíveis, como Amélie. Mas as exceções existem, e elas é que contam (pois, afinal, o cinema insiste em ser também uma arte). No Cinema, Nossos Preconceitos Nos Dirigem 23 de maio de 2004 TROPAS ESTELARES / Starship Troopers (1997), de Paul Verhoeven Em matéria de cinema, vivemos imersos em preconceitos (em outras matérias, também, mas não vem ao caso). Agora mesmo, o estigma do melodrama foi lançado sobre Valentin, o belíssimo filme de Alejandro Agresti em cartaz em São Paulo. Bem, é verdade que se engole um melodrama, desde que venha de Almodóvar. Mas aí é Almodóvar, não é melodrama – se é que dá para seguir o raciocínio. O critério de autoridade parece muitas vezes determinar nosso prazer. Um caso semelhante é o de Tropas Estelares. Alguém espalhou o boato de que o filme seria nazista, e a coisa emplacou. Talvez porque o diretor se chame Paul Verhoeven – nome suspeito. Talvez porque use imagens à la Leni Riefenstahl, logo no início. Não lhe ocorreu que essas imagens buscam um efeito humorístico? No entanto, é evidente. De modo que não se sabe mais onde termina a ignorância e onde começa a má-fé. O fato é que Tropas é um belo faroeste espacial, protagonizado pelo herói Johnny Rico. O filme não é espanhol nem mexicano. O fato é que Rico mora em Buenos Aires. Mas não existe diferença entre Buenos Aires e, digamos, Oklahoma. Sutil maneira de dizer, em 1997, auge da globalização, que o mundo e a América (os EUA) são a mesma coisa. Rico lidera os terráqueos no combate às hordas de insetos que buscam atacar nossos Fortes Apaches espaciais. Porque nessa luta de vida e morte entre homens e insetos, convém lembrar, os insetos somos nós. Nós, latino-americanos, africanos, talvez asiáticos – todos os que estragam a festa da globalização com sua miséria e eventuais insurreições. Em definitivo, Tropas Estelares é um filme político. Mas um filme de esquerda. Talvez represente o pouco de espírito de recusa que restou no mundo nos últimos anos. Elogio à Paixão 23 de julho de 2004 PASSION (1982), de Jean-Luc Godard Cadê a história? Não é de hoje que os espectadores se perguntam por ela nos filmes de Godard. Mas também os produtores – por que não? Em Passion, os próprios atores formulam com clareza a questão que é o ponto de honra de sua filmografia. Antes de saber onde está a história, talvez fosse conveniente perguntar o que significa a história para um filme. Ela é não só o estágio em que a literatura sobrepõe-se às imagens, como aquele que rege o ilusionismo cinematográfico: a crença de que vemos algo verdadeiro desfilar diante de nós. Verdadeiro, não. Verossímil. Algo que parece verdadeiro, mas é apenas uma imitação. Como relógio de camelô. Quem sabe bem distinguir os relógios de camelô dos autênticos são os ladrões. E com a arte, com as imagens, como isso acontece? Passion é, em um nível, a história dessas dúvidas. História não escrita, mas vivida. Pois, como diz um personagem no filme, histórias não se inventam, é preciso vivenciá-las. É também a história da pintura. O que faz a beleza de uma imagem? Não a violência, mas a solidariedade entre as ideias, diz alguém em dado momento. O filme que está sendo feito em Passion versa sobre a pintura, ou sobre alguns quadros e pintores: Rembrandt, Delacroix, Goya. Tem erros de composição, diz alguém. E um outro responde: procure pelos lábios dos personagens, não pela composição. Onde está a história em Rembrandt? Ninguém pergunta. Mas ela está lá. Estática. Não em sequência, como no cinema, mas nas relações entre cores, posturas, brilhos, claros, escuros. É a luta de Jerzy, o diretor do filme: reencontrar essa história em imagens. Há, claro, alguma história: um caso de amor entre Jerzy e Hanna, outros amores que começam e terminam. Porque esse é o filme de amor de Godard. Há ainda a trabalhadora e o patrão – em conflito. E há, ainda, a Polônia. De onde vem Jerzy. Mas de onde vem, sobretudo, o Solidariedade. Cadê a história? Hoje ninguém mais se interessa pelo Solidariedade. Mas foi esse sindicato que anunciou que o regime soviético estava caindo aos pedaços. Porque Godard é também um documentarista de seu tempo. Cada um de seus filmes reflete profundamente sobre o tempo presente. Presente, no caso, é 1982. Então, tudo bem de uma vez: a reflexão sobre a beleza, ou sobre o cinema, não exclui a política. Pois a arte não é um território sagrado que paira acima das mazelas do mundo. Ela está nelas (lá está Goya), o cinema mais que todas, pois é arte do momento. Do momento e da eternidade, também. Do agora e do sempre. É arte de pegar o mundo desprevenido e descobrir as belezas que podem produzir as associações entre os objetos, entre as cores (Godard, o cineasta das cores mais lindas de todos os tempos), as sombras e as luzes, o silêncio e as palavras, a música e o vazio. No meio disso, sobra uma história meio aos saltos, como sempre em Godard. Não se pode ter tudo. Às vezes é até auspicioso não ter tudo. Por fim: pobre de quem tem o dever de dar conta de tamanha, de tão ampla beleza – melhor é aceitar a derrota com dignidade. Balada do Pistoleiro 21 de setembro de 2004 Aquilo parecia piada: um faroeste feito por diretor italiano, rodado na Europa, com elenco obscuro, colocava-se agora como alternativa à mais cara das tradições do cinema americano – o faroeste. Mas foi assim que aconteceu, em 1964. Com as produções mitológicas, do tipo Maciste, em crise, a Itália começou a investir nesse tipo de faroeste, e Sergio Leone optou por filmar Por um Punhado de Dólares. Não foi apenas um grande sucesso. Foi também o momento em que toda a história do cinema começou a se mover. Não se pode esquecer que rolava a Guerra do Vietnã, e a crença nos valores americanos – que o western representava mais do que qualquer outro gênero – começava a ficar abalada. O gênero agonizava. Mas o que Sergio Leone (1929 – 1989) propunha – e que poderá ser visto na retrospectiva ao cineasta dentro do Festival do Rio – era de outra ordem: filmes de baixo orçamento, feitos por alguém que crescera vendo e sonhando com faroestes. Essa releitura do Oeste tinha particularidades capazes de embrulhar o estômago dos fãs mais tradicionais: a violência extrema, a indigência dos vilões, a descrição de um mundo desprovido de leis (em que, diferentemente do faroeste tradicional, parece que ninguém procurava impor a lei). Em poucas palavras, com o faroeste espaguete proposto por Sergio Leone surge uma metáfora poderosa da vida no Sul da Itália. O que se acreditava uma brincadeira de mau gosto se impôs como um gênero popular de primeira linha. E, em vista da crise do faroeste nos Estados Unidos, acabou mesmo por substituí-lo e garantir sua sobrevivência. Desde o início, já se podia perceber certas características que particularizavam o cinema de Sergio Leone. Em suas mãos, a ação parecia estancar. Podia-se ver durante minutos um homem sentado, conversando com seus botões, tendo por fundo uma paisagem desértica. Mas, quando explodia, a violência era para valer: duelos rápidos, mortais, com tiros certeiros, desferidos de forma original, sem grande compromisso com a verossimilhança. Leone não cultivava a câmera lenta que, mais tarde, consagraria Sam Peckinpah. Quer dizer, não na hora dos duelos mortais. Existe outro tipo de duelo, em que os adversários medem forças, que rendeu uma cena antológica de Por uns Dólares a Mais, entre Clint Eastwood e Lee Van Cleef, em que, durante minutos, um atira no chapéu do outro para ver quem tem melhor arma e pontaria. Este é outro e decisivo aspecto do faroeste leoniano: ele substitui a ação contínua dos velhos caubóis por uma mise-en-scène operística, barroca, que por sinal não deixa de lembrar os filmes de cangaço feitos por Glauber Rocha, especialmente Deus e o Diabo na Terra do Sol. O correr do tempo é decisivo, em todos os sentidos, para o cinema de Sergio Leone. Por um lado, na medida em que se sucedem, os filmes da célebre trilogia (Por um Punhado de Dólares, 1964, Por uns Dólares a Mais, 1965, e Três Homens em Conflito, 1966) permitem ver um realizador forte e original. Com isso, ele acaba se impondo nos EUA e é convidado a dirigir lá mesmo a supercoprodução Era uma Vez no Oeste (1968). O quadro é o momento de construção das ferrovias no Oeste, mas o cerne da questão é outro. Tratase de uma vendetta, mais uma, à moda siciliana. Com recursos e segurança, Leone leva o pendor operístico às últimas consequências. Para puxar um revólver leva-se quase um minuto. A música de Ennio Morricone parece compreender perfeitamente o que o diretor pretende: ela se encaixa no tempo e parece fazer parte do destino mesmo das imagens. Os tempos eram outros, claro. O cinema ainda não era a diversão estritamente infantojuvenil em que se transformaria a partir do fim dos anos 1970. Leone existia ao lado de Antonioni. Em um registro mais irônico e visualmente menos impressionante, sua próxima parada seria o México, palco de Quando Explode a Vingança, em que cria no entanto momentos antológicos. O mais célebre deles é possivelmente aquele em que James Coburn, um mercenário chegado a explosivos, abre sua capa – como um exibicionista poderia ter feito – e dá a ver seu arsenal ambulante. A última parada registra uma ligeira mudança de rota. Era uma Vez na América, em 1984, trata da amizade e rivalidade entre gângsteres judeus nos Estados Unidos, em um tom que associa o grandioso da representação ao lirismo da elegia. No total, a carreira de Sergio Leone limitou-se a meros oito filmes. Na maioria deles, no entanto, o diretor italiano iluminou o cinema com um olhar original, uma força inesperada, uma convicção quase inabalável nas imagens que criava e uma vitalidade que trouxe do cinema popular e que soube restituir ao espectador. Gordo, Leone não caminhava depressa. Mas sabia muito bem aonde ia. Não é tão frequente assim. Simplicidade de História Real é apenas Aparente 25 de setembro de 2004 A HISTÓRIA REAL / The Straight Story (1999), de David Lynch O que têm de tão lancinante os filmes de David Lynch? É difícil compreender como alguém passa de A História Real para Cidade dos Sonhos (ou vice-versa). Mas, olhando com um pouco mais de cuidado, será tão simples e direta assim a história de Alvin Straight? Em Iowa, onde mora, ele recebe a notícia de que o irmão, com quem teve um desentendimento, está à beira da morte. Ele decide que precisa voltar a falar com o irmão antes que este morra. Só que o irmão mora longe, no Wisconsin, e Alvin não tem outro meio de locomoção a não ser seu cortador de grama. É nesse cortador de grama, portanto, que ele começa a sua travessia. Simples, mas não tanto. Ao ver as imagens do homem montado em seu veículo, imediatamente pensamos nos romeiros e suas promessas por cumprir. Existe uma promessa, ainda que laica, na proposição de Alvin. Um reencontro com o irmão carrega a ideia de redenção. Depois, quase todos temos relações ambíguas com nossos próximos. Os amamos e odiamos ao mesmo tempo. Essa morte anunciada permite passar a limpo as desavenças e ficar só com os afetos. Nós, na plateia, nos identificamos com o personagem, partilhamos sua aflição, mas, também, sua determinação de romeiro. Mesmo porque toda vida tem um tanto de milagre. De promessa e de algo maravilhoso que se cumpre. Então a história nos comove. Mas será tão simples? Todo o tempo em que a pequena figura aparece na paisagem é possível pensar no gesto do homem por sua complexidade – não pelo que tem de imediato, direto e simples. Assim como em Cidade dos Sonhos ou Estrada Perdida, o sentido parece recusar-se a assentar, a entregar-se ao espectador de todo. Desta vez não é a narrativa que tem, possivelmente, algo de indecifrável. É a vida mesmo. Claude Chabrol não É Gênio, É Trabalho 28 de outubro de 2004 MULHERES DIABÓLICAS / La Cérémonie (1995), de Claude Chabrol Por que chamam a isso de Noite Nostalgia no Eurochannel? Por acaso Claude Chabrol morreu sem avisar a ninguém? E, depois do documentário sobre ele, passa Mulheres Diabólicas, um filme que não tem nem dez anos. A nostalgia agora anda depressa. Antes que ela chegue, vamos ao especial dedicado a esse mestre do policial moderno. Dos cineastas da Nouvelle Vague, Chabrol é o que menos cultivou o hábito de falar a respeito de si mesmo, de teorizar sobre seu trabalho. No entanto existe ali um pensamento claro, insistente, característico de alguém que deseja chegar a algum lugar. Como ele mesmo diz, quando o cineasta não pensa o bastante, a imagem perde clareza. A imagem é cruel. Talvez tudo comece com o humor. Durante uma filmagem, um ator faz uma piada. Chabrol faz cara séria e avança para ele, como se fosse estapeá-lo. Detém-se e diz, rindo: Clouzot, lembra de Clouzot?. Sessão nostalgia: Henri-Georges Clouzot, antigo diretor famoso por criar um clima de terror no set. Chabrol é seu antípoda. Esse humor transparece nos filmes, evidentemente. Filmes em que a família está quase sempre presente. Por quê? Porque a família é fonte de felicidade, lembra o crítico Jean Douchet. Mas em Chabrol essa felicidade vira seu reverso. A mulher contra o marido, um primo matando outro primo, etc. E tudo por baixo dos panos. Como se não houvesse conflito. Mas ele está lá. Lá está também Isabelle Huppert, talvez a mais favorita de suas atrizes em todos os tempos. E lá está a roteirista, também. É algo que parece importunar a Chabrol: a intriga. Como se fosse um mero incômodo. Ele não cuida disso. Mas, quando a coisa aperta, a roteirista liga para Chabrol. Ele invariavelmente lembra três ou quatro filmes e as soluções dadas para situações idênticas. Chabrol não é gênio, é trabalho. Ele sempre disse isso. Resultado Coloca em Questão o Estado Atual da Crítica Brasileira 4 de dezembro de 2004 PEÕES (2004), de Eduardo Coutinho Peões ganhou o prêmio da crítica em Brasília, mas, é bom que se saiba, ganhou raspando. Empatou em 9 a 9 com a comédia Bendito Fruto, e o prêmio só foi dado ao filme de Eduardo Coutinho porque, em primeira votação, havia conseguido maioria simples, de 8 a 6. Não é Bendito Fruto, uma comédia simpática, honesta e que parece anunciar um cineasta de futuro, que isso leva a pôr em questão, mas a própria crítica de cinema que se pratica no Brasil. A maior parte das pessoas admite que este não é o melhor filme de Coutinho. Pode ser. Ainda assim, existe uma distância abissal entre os dois filmes, a tal ponto que as argumentações a favor de Bendito Fruto não passavam, em geral, de restrições a Peões. E, por vezes, que restrições! Havia quem dissesse que Coutinho se repete. O que isso quer dizer? Que, mais uma vez, coloca a câmera diante de seus personagens para que falem. E daí? Deveria mudar? Há algo errado com o procedimento? Existe algo prescrevendo que diretores de cinema devam mudar seus métodos de trabalho de tempos em tempos? E o que fazer com Howard Hawks, que fez o mesmo filme a vida inteira? Ou com Hitchcock, que fez três ou quatro repetidamente? Não, o argumento não convence a ninguém. O mais provável é que Peões ofenda um preceito cinematográfico pátrio recente (data de Cidade de Deus, em linhas gerais, mas há precursores), segundo o qual pobres ou remediados são pessoas necessariamente brutalizadas, prontas a enfiar a faca no próximo à primeira altercação. Esse tipo de ideário pode ser estendido a outras camadas da população, claro, mas cai melhor em pobres, favelados, etc. Já Peões é descrito como decepcionante (chato, definiu alguém), ao que parece, por trazer personagens simplesmente normais. São pessoas que, no passado, participaram da luta sindical, ao lado de Lula. Qual seu destino, é a pergunta inicial, à qual se segue outra: quem é essa gente? São diferentes. Alguém perdeu o emprego e tornou-se taxista. Outro perdeu a mulher. Alguém tem um filho metalúrgico e orgulha-se disso. São pessoas absolutamente semelhantes ao que se espera da humanidade. Seus autorretratos têm a dignidade daquelas velhas fotos de sala de visitas: não transparece o heroísmo de terem vivido uma situação única, apenas o orgulho de um dever cumprido (não só o dever de grevistas; o principal, surpreendentemente, é o de trabalhar bem e muito). Sim, porque em lugar de marginais permanentes, Coutinho nos mostra (ou antes: deixa que se mostrem) pessoas que trabalham para burro, que cumprem o seu dever e ainda mais um pouco, que vão ao banheiro chorar depois de levar uma bronca de seu superior, para não se descontrolar e perder o emprego. Enfim, parece que esses seres humanos comuns não comovem mais ninguém. Não são novos nem surpreendentes. Da mesma forma, a concepção de mise-en-scène de Coutinho, de um rigor quase religioso (não por acaso chama-se a essa classe de diretores de jansenistas, pelo rigor estrito, metódico, obsessivo), de uma profundidade evidente, parece poder ser encostada em favor da novidade mais à mão. Desta vez, passou. Ganhou no empate técnico. Nem por isso o resultado é menos catastrófico para a crítica. Que dizer? Pode-se, apenas, sugerir ao festival que, nas próximas edições, convide a turma do site Contracampo e algum outro eventual site crítico, já que a ten dência atual na crítica brasileira (ao menos na que esteve presente a este festival) é a de liquidação do senso crítico; indica a tendência a uma destruição de critérios que parece decorrência direta da decadência da cultura cinematográfica. Lanzmann Propõe Tempo da Verdade em Shoah 24 de abril de 2005 SHOAH (1985), de Claude Lanzmann O problema que Shoah coloca ao público brasileiro hoje não é de ordem ética nem política. Este filme monumental, que a TV5 começa a mostrar na terça, sem legendas, constitui um desafio antes de mais nada estético. Isto é: será que esse espectador, massacrado por 40 anos de domínio da TV sobre o imaginário brasileiro, conseguirá apreender o ritmo tão particular que Claude Lanzmann imprimiu a seu documentário sobre o Holocausto? A cada dia, nos telejornais ou nos documentários de TV, somos confrontados a uma noção particular de tempo: tudo tem de ser rápido e interessante – sob pena de perder audiência. Lanzmann não está preocupado com a audiência, mas com a verdade. Para começar, fez um filme com nove horas de duração, o que desafia qualquer critério comercial do mundo do cinema. Mas não creio que isso seja o essencial em seu raciocínio. Lanzmann sabe que a imagem de cinema existe, em princípio, no mundo das aparências. Essas pessoas que aparecem na TV não são mais do que fantasmas desse nosso mundo veloz. E Lanzmann sabe, também, que a verdade é uma questão ligada ao tempo. Ela não está nos videoclipes, de modo geral. Ela emerge do tempo. Nessa medida, seus entrevistados parecem dispor de todo o tempo do mundo. O entrevistador também: é preciso que escute as respostas, raciocine, lance a questão seguinte. O raciocínio é o xis da questão, pois é ele que conduz a curiosidade dos batidos clichês para a observação luminosa. Já disse que Shoah é sobre o Holocausto. Ou melhor, Shoah quer dizer Holocausto, e é esse fenômeno que o filme virará pelo avesso: de Auschwitz a Treblinka, do extermínio quase artesanal dos caminhões de gás à produção da morte em massa, do Gueto de Varsóvia à solução final, dos judeus poloneses aos gregos. O filme não é feito senão com depoimentos de sobreviventes da guerra. E isso enfatiza a necessidade de deter-se sobre esses rostos. Eles lembram. Lembram coisas com as quais é impossível conviver, fatos que não gostariam jamais de recordar. É preciso dar-lhes tempo para que a verdade apareça. E ela surge aos poucos, mas com a violência das coisas evidentes. Chega pelas palavras, pelo tom de voz de cada um. Lanzmann é implacável com seus entrevistados, judeus ou não: esses homens fazem parte da História, e Shoah trata de resgatar uma história ao mesmo tempo secreta e evidente. Ou antes: trata de transformar de uma vez o segredo em evidência. Pois é a evidência dos fatos que emerge daquelas palavras. É para além da linguagem que a verdade se define. A linguagem é, justamente, o instrumento da mentira, que precisa ser torcido e retorcido para revelar o que há por trás das palavras. Shoah é um filme monumental, por certo, e uma obra-prima, não há dúvida. Não apenas porque cumpre seu objetivo plenamente como porque tem a capacidade de deixar seus espectadores pregados na cadeira, como se assistissem a um filme de suspense, tal o fascínio que existe não só naquilo que se conta, como nessa lenta e delicada escansão que permite à verdade dos fatos emergir. Tomemos, por exemplo, uma sequência numa aldeia polonesa: o único sobrevivente das deportações que havia em Chelmo (no castelo, primeiro, na igreja, depois) posa como numa foto de família com as pessoas da aldeia, que ainda se lembram dele. No início, há afagos e palavras amigas. No fim, o veredicto que fala sobre o insuportável antissemitismo polonês: os judeus foram os culpados de sua morte porque, afinal, mataram Jesus Cristo. Dito assim não é muito impressionante, creio. Ver a lenta transformação dos bons sentimentos em indisfarçado ódio racial é. Shoah coloca um problema estético, pois já não estamos acostumados a um tempo lento. Seria de extremo mau gosto aproximar o Holocausto do massacre cultural a que somos submetidos hoje. Mas nunca é demais lembrar que, para dizimar os judeus, os nazistas souberam, antes, esterilizar a cultura e suprimir a informação. Quando a Esquerda Adere ao Gangsterismo 29 de abril de 2005 BOM DIA, NOITE / Buongiorno, Notte (2003), de Marco Bellocchio Com que frequência os negócios determinam as agendas estéticas?. A questão é levantada por Jonathan Rosenbaum, o principal crítico de cinema americano, em seu livro Movie Wars, e vale a pena lembrá-la agora, quando se lança Bom Dia, Noite, em cópia única, em São Paulo. Não é que o filme nos chegue atrasado. Mas não estamos diante de um pequeno filme de Rohmer ou do relançamento de algum velho Godard – nesses casos, uma cópia está até no tamanho justo. Falamos do sequestro e do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas (BV). Ele foi um dos políticos italianos mais influentes do pós-guerra. Democrata-cristão de carteirinha, ficou célebre pelo acordo feito em 1976 com os comunistas, que visava a diminuir a instabilidade política e o entra e sai de gabinetes. Moro era, quando foi sequestrado, a encarnação do Estado italiano. Pode-se alegar que isso seja um passado com interesse não mais que relativo para nós brasileiros. Aceitemos. É mais difícil, no entanto, aceitar o mesmo raciocínio para as BV. Esse grupo de guerrilheiros radicais tentou dar sobrevida ao espírito rebelde de 1968, dotando-o porém de um dogmatismo sem nenhuma relação com o que havia de libertário (ou libertador) naquele primeiro momento. É às brigadas – e seus correlatos – que se dirige o pensamento de Marco Bellocchio. E esses correlatos existem aqui, ao nosso lado (chamam-se Sendero Luminoso e outros), com a mesma tendência ao gangsterismo desenvolvido pelas brigadas. Não faz tanto tempo assim, um grupo chileno sequestrou gente aqui no Brasil e atribuiu seus atos à luta política. No episódio do sequestro de Moro, as BV ainda não estavam em processo de gangsterização. É o momento, parece entender Bellocchio, em que as águas se dividem. Em que da política se transita quase inadvertidamente ao assassinato e ao gangsterismo. Qual a diferença entre os dois? Não a retórica, certamente, que continua a mesma. Mas, neste filme feito entre quatro paredes, é justamente ali que Bellocchio busca sua matéria: no vazio das palavras. Pode-se falar em justiça proletária. Mas quem fala? Um jovem cercado por três companheiros. Existe uma quinta parede na trama: a TV. Por ela fica-se sabendo o que pensa a Itália. Assim, enquanto os brigadistas se ocupam de julgar Aldo Moro, Bellocchio se encarrega de permitir chegar a nós o tipo de ética desenvolvido pelas BV – que era o mesmo de muitas organizações de esquerda –, em que os interesses – supostos – do proletariado justificam mais ou menos tudo. A ação entre quatro paredes dá conta do agônico isolamento do grupo, assim como da incompreensão dessas pessoas sobre os italianos – proletários ou não. Ao mesmo tempo, Bellocchio fixa-se com atenção no modus operandi do grupo, que compreende muito bem certos usos e costumes. Ou seja: é preciso embaralhar as aparências, representar a comédia da respeitabilidade. Se alguém tiver de ir preso, não é quem praticou o crime, é quem desrespeitou as leis da hipocrisia. Em poucas palavras: Bellocchio cria um filme comovente em torno de um assassinato torpe, reflete sobre o pensamento e as práticas das BV e, de passagem, dá uma aula sintética, porém tremendamente eficaz, sobre o peso das aparências na vida italiana. Há alguns anos, entraria num circuito de cinemas dig-no. Hoje, estreia em um só cinema. Os negócios determinam as agendas estéticas, não há como negar. A Arte Realizada com Migalhas 14 de junho de 2005 REINADO DE TERROR / Terror in a Texas Town (1958), de Joseph H. Lewis Será que é indispensável gastar milhões e milhões para chegar a bom filme? Joseph H. Lewis nos ensinou inúmeras vezes a arte de fazer arte com migalhas: uma arte do possível, que seria conveniente a todo cineasta brasileiro aprender um pouco. O último exemplo foi Reinado de Terror, em que um marinheiro sueco desembarca no Velho Oeste em busca da família e acaba trombando com uma gangue perversa. Um sueco no Oeste já é um evento. Depois, há o saloon vazio, aproveitado de outros filmes. Há as ruas desertas, para evitar figuração. E disso se cria clima, atmosfera. E com os atores – pífios, com exceção de Sterling Hayden, o sueco – faz-se o possível. E com engenho e arte prepara-se a fantástica surpresa final. As Deusas Revela um Bom Momento de Khouri 10 de julho de 2005 AS DEUSAS (1972), de Walter Hugo Khouri AS CORÇAS / Les Biches (1968), de Claude Chabrol No número mais recente da revista Cult, o fino crítico que é João Carlos Rodrigues aproxima Walter Hugo Khouri de Antonioni. Rodrigues chama a atenção para a necessidade de reavaliar a obra de Khouri, agora que as disputas políticas que o isolaram do Cinema Novo e o colocaram à margem da história do cinema brasileiro estão extintas. É uma ideia a reter, hoje que a TVE Brasil exibe As Deusas, de 1972 – um dos filmes mais significativos da última fase do diretor paulista. No entanto, é preciso não tirar do horizonte algumas questões conexas: em vida, Khouri renegava essa aproximação com Antonioni, não porque não existisse, mas porque a comparação tendia inevitavelmente a classificá-lo como um imitador. Voltemos à história: que estranha capacidade alimentamos no Brasil de excluir dela bons cineastas e trazer para ela inúmeras mediocridades. Pode-se argumentar que bom e medíocre são categorias subjetivas. Em parte, apenas. Aproxime-se de um Khouri e será fácil ver que seus filmes saíam exatamente como ele queria que saíssem. Enfim, fazia o que poucos fazem como poucos fazem. Seus filmes são oscilantes. Brilham, quase sempre, nos anos 1960. Depois dos 1970, repetemse, quase sempre. Khouri teria lucrado mais se tivesse saído de si mesmo e aceito encomendas de vez em quando. Parece-me que seu trabalho tem não poucas semelhanças com o de Claude Chabrol, que é, no entanto, um crítico social implacável. Como Khouri, seu artesanato é impecável. E num filme como As Corças, ele se mostra capaz de observar o universo feminino com tanta paixão quanto Khouri. Sua vantagem: é um realista e sabe disso. Já Khouri foi um realista malgré lui, em cujos filmes a ambição metafísica foi, não raro, uma solene tranqueira. O Gosto de Hellman pelos Personagens Silenciosos 21 de agosto de 2005 O TIRO CERTO / The Shooting (1967), de Monte Hellman O que se espera de um faroeste não é bem o que O Tiro Certo nos dá. Talvez seja melhor, porque é mais surpreendente. Lá está, de início, um caçador de recompensas, Warren Oates, atualmente com a cabeça a prêmio. Em sua vida aparecerá, portanto, outro caçador de recompensas, mais jovem, Jack Nicholson, e disposto a capturá-lo. Tudo o que o filme é hoje se deve certamente a Jack Nicholson, então um jovem ator, vindo da escola Roger Corman de cinema econômico. Também de lá havia saído Monte Hellman, o diretor. Eles fizeram dois faroestes ao mesmo tempo, este e A Vingança de um Pistoleiro, um pouco menos interessante. De um faroeste espera-se, habitualmente, ação. De O Tiro Certo o que se obtém, a maior parte do tempo, é reflexão: dois homens silenciosos (aos quais virá se juntar Millie Perkins) percorrendo um caminho e traçando sua estratégia de combate. Dessa substituição da ação pela reflexão, da consequente inflexão do tempo em detrimento da trajetória (ou antes, o tempo e a trajetória têm idêntica importância) não decorre uma perda de tensão pelo filme, mas o acréscimo de uma tensão que vem do filme, isto é, não do roteiro, mas da matéria do filme que se desenrola diante de nós (e cuja importância ficará mais clara no final da projeção). O gosto de Monte Hellman por personagens silenciosos, ensimesmados, que não escondem nada, mas simplesmente são assim, ficou conhecido por nós em Corrida sem Fim, que o próprio Telecine passou há alguns anos, em que dois amigos vivem de tirar rachas de estrada. Como lá, em O Tiro Certo também chegamos ao fim da projeção nos perguntando o que aconteceu e por quê, mas com a certeza de termos passado por uma aventura em que a reflexão, os sentidos, a emoção deixam-se levar – quando se deixam – pelo pensamento extremamente original de Monte Hellman, um dos raros vanguardistas do cinema americano. Comédia Exprime a Grandeza do Cinema Clássico Americano 4 de setembro de 2005 NÚPCIAS DE ESCÂNDALO / The Philadelphia Story (1940), de George Cukor Se fosse preciso escolher não o melhor filme de todos os tempos, mas aquele que melhor exprime o que foi o grande cinema americano, Núpcias de Escândalo teria sem dúvida chance de ser o ganhador. Em primeiro lugar, estamos no domínio da comédia – esse gênero normalmente tão pouco prestigiado, que George Cukor sabia manejar como poucos. Estamos num ponto alto da comédia dita sofisticada, em que os personagens pertencem à alta roda, falam e se comportam como a alta roda – mas não se trata de bajular a riqueza ou a tradição, e sim de observá-la, sem rancores, mas com espírito crítico e, não raro, com certa crueldade. Aliás, seria injusto dizer que essa alta sociedade é o alvo principal do filme, quando temos no centro uma revista sensacionalista e um noivo arrivista. Não, esse caso da Filadélfia vai além da alta roda. Vai até a mulher, que é o verdadeiro tema de Núpcias de Escândalo. Tracy Lord (Katharine Hepburn) é a aristocrática jovem que chega a seu segundo casamento aparentemente virgem. Seu segundo noivo (John Howard), por sinal, pretende adorá-la como uma deusa. Descobrir a mulher de carne e osso sob essa figura estatuesca será a missão do jornalista James Stewart e do ex-marido, Cary Grant. Fazer a transição entre a deusa e a mulher será, mais do que tudo, a tarefa a que George Cukor se entrega apaixonadamente. O que somos, além da imagem que fazemos de nós mesmos, é a sua questão central. Que se aplica de forma maravilhosa à mulher aristocrática dos anos 1930 (leia-se: mulher que se pretende acima da existência carnal). O que temos, aqui, é, portanto, o que se poderia chamar de uma comédia libertadora. E nela o aspecto comédia não é nada desprezível: rir é, no caso, uma maneira suave de colocar em questão certos hábitos não apenas vigentes entre as famílias tradicionais – como a repressão sexual intensa de mulher –, como os preconceitos da classe média intelectual (representada por James Stewart) e da classe média em geral (representada pelos leitores da revista Spy). De todo modo, temos aqui, também, o caso de um roteiro em que os personagens se esmeram na esgrima verbal com grande inteligência, sem que isso soe falso ou vindo exclusivamente da cabeça dos roteiristas: os personagens em cena são de fato inteligentes. A essa obra-prima do cinema clássico americano corresponde uma edição admirável, em dois discos, inclusive com documentários dedicados a George Cukor e Katharine Hepburn (ambos com a presença dos interessados). Cinemascope: a Contemplação dos Espetáculos 4 de setembro de 2005 A QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO / The Fall of the Roman Empire (1964), de Anthony Mann Entendemos as superproduções em cinemascope como uma forma de Hollywood se defender dos avanços da televisão em seu território – o que é indubitável. Improvável, contudo, é que este seja o único senti-do do uso da tela larga e do gosto pelos superespetáculos entre os anos 1950 e 1960. Nesse período, os europeus haviam assumido as rédeas do cinema, tomando o tempo como dimensão essencial. O cinema não era mais apenas imagens em movimento. Era a imagem do tempo. Isso é perceptível no Neorrealismo, especialmente em Rossellini, e depois em Antonioni – entre tantos outros. Ora, na América, o cinema continuava sendo movimento. Mesmo em Hawks, o mais ousado dos cineastas americanos em todos os tempos, o tempo decorre da ação. A superprodução em cinemascope é que, com sua grandiosidade, terá o dom de libertar o tempo. Hoje temos a oportunidade de observar, entre outras coisas, o enterro de Marco Aurélio em A Queda do Império Romano. Quantos minutos dura? Há os personagens e a figuração. Há Cômodo e Lívio, os possíveis sucessores, há Sophia Loren de negro e há o vento que os flocos de neve tornam visível. Há as panorâmicas magníficas de Anthony Mann – quem melhor do que ele descortina a paisagem com o movimento panorâmico? Como essas panorâmicas incidiam sobre grandes exércitos em movimento ou sobre cenários magníficos, a dimensão temporal acaba se introduzindo e, insidiosamente, tomando conta do filme. Não só deste, é claro: tanta grandiosidade – cenários, figurantes, etc. – exigem ser vistos, e isso não se faz no vapt-vupt. Assim, talvez, o tempo acaba se instalando como dimensão essencial no cinema americano, no mais insuspeito, tornando-se fator de modernização, libertando os demais cineastas das amarras da ação (por incrível que pareça) e permitindo a um público enorme o prazer da contemplação. Bazin e Truffaut se Complementam na Crítica Moderna 5 de novembro de 2005 O PRAZER DOS OLHOS – ESCRITOS SOBRE CINEMA, de François Truffaut ORSON WELLES, de André Bazin A história é conhecida: François Truffaut (1932 – 1984) estava preso por deserção, quando conheceu André Bazin (1918 – 1958), que, bom pregador, levava o cinema aos presidiários. Bazin envolveu-se a tal ponto com a questão que acabou resgatando Truffaut da cadeia e se responsabilizando por ele. Bazin, o principal teórico do cinema moderno, foi um pai em mais de um sentido para Truffaut, provavelmente o maior crítico de todos os tempos – além de realizador de primeira grandeza. Quis o acaso que, ao mesmo tempo e pela mesma editora, saíssem publicados em português livros de Truffaut e Bazin, em tudo e por tudo complementares. O Orson Welles de Bazin tem a marca de seu autor: a cada página, a cada parágrafo, triunfa uma vontade explicativa, um desejo profundo de fazer com que o cinema seja mais compreendido. Orson Welles (1915 – 1985) é um ótimo exemplo para que Bazin exponha e explique detidamente sua ideia de realismo cinematográfico, pois, não sendo Welles um realista estrito – como Roberto Rossellini, para ficar com outro paradigma da estética baziniana –, trabalhando em estúdios, usando e abusando da fantasia, permite ao ensaísta afastar qualquer ilusão do leitor a respeito do seu conceito de realismo. A questão é apresentada exemplarmente já no prefácio de André S. Labarthe, partindo de um texto em que o próprio André Bazin qualifica o cinema clássico como uma engrenagem, enquanto o moderno seria como as pedras dispostas ao longo de um rio: elas permitem ao viajante que passe até a outra margem, mas será preciso que as pule e, acrescenta Bazin, que molhe um pouco as pernas. O realismo moderno apresenta-se, portanto, como uma dificuldade e como revelação. A verdade não é evidente, e a imagem não pode ser algo fácil. Ao longo do livro, Bazin esquadrinha o método do realizador de Cidadão Kane, desde o seu princípio teatral (o plano-sequência em tudo favorece o trabalho do ator) até a revolução que consistiu no uso sistemático da profundidade de campo. Com isso, o foco ocupava toda a cena: o protagonista e o antagonista, o primeiro plano e o plano de fundo do cenário. Não era mais o cineasta que impunha ao espectador aquilo que devia ver. Cabia ao espectador escolher o que ver no conjunto da imagem proposta. Quem viu Cidadão Kane entende o quanto esse novo método se coaduna com a ideia de Welles de descontar uma história. Chegamos ao fim sem saber quem foi Charles Foster Kane. Ou antes: convencidos de que é impossível mostrar quem foi um homem. Em poucas palavras: Welles combatia o autoritarismo implícito da prática cinematográfica e oferecia ao espectador a liberdade diante da imagem. Esse é (em parte, pelo menos) o conceito de realismo que Bazin desenvolve, enquanto estuda com paixão a biografia e os filmes de Welles, até 1958. Até 1958 porque essa é a data da morte de Bazin. Quem completa a história? Truffaut, naturalmente. Muito justo, já que, em vida, foi o discípulo que mais dores de cabeça deu ao mestre. Basta lembrar, por exemplo, os efeitos da publicação de Uma Certa Tendência do Cinema Francês, em 1957, no semanário Arts. Hoje o artigo é reconhecido como o manifesto que deu origem à Nouvelle Vague. Na época, soou como um duro ataque ao cinema francês do dito realismo psicológico, aos roteiristas Aurenche e Bost, a diretores poderosos como Henri-Georges Clouzot. O texto é um dos pontos altos do polemismo francês no século passado, tanto pelo vigor das ideias quanto por sua exposição, e apenas ele já torna O Prazer dos Olhos um livro obrigatório para quem gosta de cinema (e de boa escrita). Toda a seção Um Pouco de Polêmica não Faz Mal a Ninguém é como um complemento desse texto admirável, em que Truffaut desmonta, com sua escrita corrosiva, o academismo, a falsidade das situações, a dialogação artificial e, sobretudo, a crença de que esse cinema de qualidade francesa poderia se opor ao cinema americano. À parte essa seção, no mais, estaremos às voltas com um Truffaut muito mais empenhado em homenagear mestres, colegas, atores do que em desenvolver uma atividade propriamente crítica. O que não o impede, diga-se, de fazer uma defesa exemplar de Le Diable Probablement. Com frequência, porém, nos deparamos com o Truffaut irredutível de sempre, fazendo apologia de John Travolta, falando de seu Antoine Doinel, dando adeus a Françoise Dorleac. Truffaut podia defender o autor, mas nunca teve medo do lado mundano do cinema – pelo contrário, cultivava o. Pode ter se tornado o cineasta da França,o mais oficial do mundo, no entanto nunca cedeu ao nacionalismo e ao combate fóbico ao cinema americano, que amava incondicionalmente. Se em Orson Welles Bazin passeia exclusivamente pelo terreno das ideias que nortearam o melhor do cinema desde a década de 1940, Truffaut faz da crítica, em O Prazer dos Olhos, um instrumento de compreensão dos múltiplos níveis da atividade cinematográfica, que é ideia e matéria, arte e indústria. Truffaut talvez seja o último grande otimista a acreditar na conciliação possível entre essas duas esferas, e é disso que seus textos dão conta em grande medida. O Prazer dos Olhos é uma série de textos capitais para quem deseja compreender o que foi esse sonho magnífico do cinema. Último Filme de Sganzerla Luta contra o Esquecimento 11 de novembro de 2005 O SIGNO DO CAOS (2003), de Rogério Sganzerla Em O Signo do Caos existe, primeiro, o fato: em 1942, Orson Welles vem ao Brasil para filmar uma parte de seu projetado filme latino-americano. O governo brasileiro, também é verdade, não vê com bons olhos essa história de o gênio americano ficar filmando jangadeiros e Carnaval. Não é a boa imagem do Brasil (o Brasil é obcecado por sua boa imagem – como dizia Rogério Sganzerla, isso faz parte do nosso narcisismo: gostamos de ser vistos, mas não de ver). Depois vem a obsessão. O determinante para o fim do projeto wellesiano foi, provavelmente, menos a interferência do governo Vargas do que o fato de Welles ter caído em desgraça na RKO, com a mudança de direção do estúdio. Para Sganzerla (1946 – 2004), o que conta não é isso. Em sua visão, a coisa se passa assim: o Brasil impede Welles de filmar. Ao fazê-lo, o Brasil renuncia à imagem, à possibilidade de ter um cinema. Renunciar ao próprio cinema significa renunciar a constituir-se como civilização. Pois onde já se viu um país sem imagem? É como um vampiro, que não pode olhar no espelho, pois não há nada para refletir. É em torno disso que Sganzerla desenvolve seu último filme, amargo e bem-humorado. O amargor, de onde vem? O cinema brasileiro moderno tem dois gênios: Glauber Rocha e Sganzerla. Sobre este sempre pesou a sombra da impossibilidade. Após um começo de carreira fulgurante, com O Bandido da Luz Vermelha, é como se tudo tivesse conspirado contra: o Brasil, a burocracia cinematográfica, a elitização do cinema. Sganzerla parecia ter claro que o cinema só poderia ser, no Brasil, uma arte popular, como o rádio e a chanchada. O cinema foi para outro caminho: trocou o povo pela ambição de ser uma arte de classe média. E o Brasil ficou privado de imagem – no entender de Sganzerla (ou de como eu tento entendê-lo, em todo caso). Daí O Signo... se definir como um antifilme. Cheio de humor, também. O filme gira obsessivamente em torno do censor em vias de destruir os negativos de Welles. E na boca de Amnésio, o censor, o cineasta coloca seu fraseado agudo: Quem quer ver uns crioulos dançando? (Amnésio, sobre a insistência de Welles em filmar o Carnaval). Em torno de Amnésio gravita a caricatura de uma elite (em linhas gerais, uma representação realista). Em torno de ambos, os encantos do Brasil, a que o cineasta se recusa a renunciar, e os boçais, acólitos, parasitas, a mediocridade submissa. Mais do que amargo, talvez O Signo... seja um filme mordaz em sua crítica. Tomemos o nome: Amnésio. Porque o censor é o próprio esquecimento. E porque parece ser esse o personagem que sintetiza o Brasil (Sganzerla sempre esteve do lado da metonímia). Proibir, cortar, jogar no lixo, rejeitar – são todas formas de impedir o cinema de existir (pode-se interpretar a coisa paranoicamente, como se todo esse aparato existisse para impedir não Welles, mas Sganzerla de ser ouvido). Contra esse impulso negativo do esquecimento, resta o filmar. E filmar lindamente. Pois esse antifilme que recusa as facilidades do que chamamos de comunicação se impõe, afinal, pela evidência e pela beleza de suas imagens. O Sucesso Garantido da Ku-Klux-Klan 19 de dezembro de 2005 MISSISSIPI EM CHAMAS / Mississippi Burning (1988), de Alan Parker Quem não gosta, de vez em quando, de ir ao cinema (ou ligar na TV, no DVD) e ver um filmão hollywoodiano, comendo pipoca e tudo? Godard gosta, para quem duvida de sua humanidade. Pelo menos diz que gosta. Mississipi em Chamas é o protótipo desses filmes. Ali, Alan Parker remete-nos a uma realidade que pouco conhecemos (o Sul dos EUA), o que é sempre atraente. E, mais, às atividades de uma sociedade secreta, a Ku-Klux-Klan. O Klan no cinema é sucesso garantido desde, pelo menos, O Nascimento de uma Nação, e já se vai quase um século. Por fim, estamos diante de um crime de racismo, que é, em certo sentido, a coisa mais confortável do mundo. Favor não entender mal: o crime de que são vítimas jovens ativistas da igualdade racial é odioso. Ele é confortável exclusivamente do nosso ponto de vista de espectadores. Quem seria, hoje, a favor do racismo? Então, estamos num campo em que bem e mal, mesmo nesse mundo conturbado, opaco, em que vivemos são coisas facilmente distinguíveis. É isso que torna Mississipi em Chamas um programa mais que aceitável para quem não pode ou não quer ir ao cinema. Eis um filme (ou um caso) em que o justo também é confortável, o que é uma exceção. Esse fenômeno ocorre de tempos em tempos. Po-demos imaginar, por exemplo, o que passou Émile Zola quando se pôs a defender Dreyfuss, contra a maior parte da opinião pública francesa e, pior, contra o Exército francês. Foi uma luta de foice ao fim da qual se declarou a inocência do capitão israelita (no fundo era esse seu pecado: ser israelita). No entanto, quando vemos os filmes sobre o assunto, aquela justiça parece tão óbvia, tão evidente, tão confortável. Eis o limite desse tipo de filmes: podemos ficar sinceramente do lado dos heróis e, diante de uma circunstância, fechar com os linchadores. Não é raro, ao contrário, é a coisa mais corrente do mundo. Amor pelo Corpo Divergente é Chave no Enigma de Beto Brant 26 de janeiro de 2006 CRIME DELICADO (2005), de Beto Brant Primeiro existe Antonio Martins (Marco Ricca), severo crítico teatral, e as peças que vê. Há o olhar, primeiro, e o juízo, em seguida. Antonio é, em seu negócio, um homem poderoso, na medida em que de seu olhar depende o destino não só de espetáculos como de carreiras. Mais consciente do seu poder que de seus limites, esse homem descobre que o olhar pode ser recíproco. No espetáculo que se transporta do palco para um bar, enquanto observa o mundo, também é observado. Inês diz que Antonio a olhava. Antonio diz o in-verso. Quem olhava para quem? Seus olhares se cruzam para dar origem à estranha aventura que o envolve com essa mulher, cuja característica mais marcante é não possuir uma das pernas. Já no primeiro encontro ela pergunta a Antonio o que ele primeiro observa nas mulheres. Ora, uma perna a menos não é coisa que se deixe de observar. Antonio deixa-se fascinar. O que o arrasta para ela, precisamente? Existe a hipótese de que, em busca da perfeição estética, esse homem se deixe encantar pelo seu contrário: pela falta, pela impossibilidade. Inês não deixa de ser como essas estátuas antigas, cuja perfeição imaginamos com maior desenvoltura se lhes faltam braços. Ou ainda, Inês introduz a ruína e a desordem na vida desse homem cerebral, porém amputado do mundo. O que é a beleza, afinal? Ou seja, o novo filme de Beto Brant nos fala de estética e pode mesmo ser vis-to como uma apaixonada discussão sobre a arte e seu significado neste mundo. Ora, o mundo que Antonio é dado a percorrer parece todo o tempo contrapor-se ao ideal de beleza. A começar pelos quadros de que Inês é modelo, sem dúvida, passando por vernissages, conversas de boteco, discussões judiciais – tudo indica que estamos diante de um mundo em decomposição, ruínas que a cada passo vão marcando o rosto a princípio quase angelical do crítico. É claro, críticos não pairam acima das obras – e de certa forma Antonio deverá pagar por sua soberba de intelectual. Afinal, sua obra – seu amor por Inês, que embute provavelmente o desejo de reconstruíla – revolta-se contra esse desejo tirânico, preferindo entregar-se ao pintor que a quer tal qual, que compreende seu corpo, que sabe vê-la, enfim. Um estranho e complexo filme, o mais desenvolto de Beto Brant, cuja imagem final se propõe como um enigma surrealista. O corpo divergente de Inês, um pouco à maneira dos filmes de Cronenberg, não deixa de ser esse corpo mutante que põe em parafuso essa ordem de que a arte, afinal, é uma parte significativa. Feito em Seis Dias, Clássico de Ulmer Constrói Labirinto 26 de fevereiro de 2006 CURVA DO DESTINO / Detour (1945), de Edgar G. Ulmer Curva do Destino é filme-mito por excelência. O filme feito em seis dias, o série Z que se tornou clássico. Mas também o filme a que ninguém mais assistia há muito tempo. Sua produtora é a PRC. Os poucos que já ouviram falar dela sabem que ficava do lado pobre de Poverty Row nos anos dourados de Hollywood. Seu diretor, Edgar G. Ulmer, estava destinado, no entanto, ao lado rico da cidade. Foi o assistente que F.W. Murnau trouxe da Alemanha, o roteirista de Tabu (1931). Começou uma carreira promissora de diretor na Universal, fez um terror originalíssimo chamado O Gato Preto (1934). Mas foi pego na curva do destino: tirou a mulher de um parente de Carl Laemmle, o dono da Universal. Laemmle era conhecido pelo nepotismo e pelas vinganças. O empresário jurou que Ulmer nunca mais botaria os pés em Hollywood. E foi mais ou menos isso que aconteceu. Talvez Ulmer tivesse terminado seus dias dirigindo filmes iídiches em Nova York. Mas o destino fez nova curva: Laemmle foi à falência. Não que isso tenha beneficiado Ulmer tanto assim. Mas pelo me-nos pôde voltar a dirigir alguns filmes de verdade, inclusive a obra-prima Madrugada da Traição, um dos melhores faroestes já realizados. Em Curva do Destino (1945), Al, um sujeito duro, consegue carona com um tipo estranho e parecido com ele. Quer ir até Los Angeles encontrar a noiva, que tenta a sorte no cinema. Misteriosamente, o sujeito que lhe deu carona morre. Por cálculo, toma o seu lugar e o seu dinheiro. Por azar, topa com uma chantagista que conhecia o finado. É o detour. A prova de que Pascal tinha razão: de que entre um ponto e outro existem infinitos pontos e que, portanto, não chegamos nunca a lugar nenhum. Essa a verdadeira história do filme: a do labirinto em que se mete Al, que só parecia ser uma linha reta. A travessia, no entanto, é um tormento. Esse tormento é que faz a grandeza deste filme de menos de 70 minutos: o sentimento que temos de estar numa roda sem fim e sem princípio, perdidos num espaço a cada minuto mais complexo. O sentimento trágico que perpassa o filme é a sua riqueza. Talvez nunca fique claro porque a chantagista chantageia aquele sujeito. Mas isso não perde importância, diante da maneira encarniçada como Ann Savage dilacera sua presa. Talvez tudo isso não fosse tão perceptível caso Ulmer não usasse a câmera com tanta maestria, usando os deslocamentos constantes (e muito apropriados) para evitar cortes, ganhar tempo (ou seja: economizar) e impor essa atmosfera pesada que caracteriza o seu filme. Curva do Destino é uma constante luta contra a adversidade. Nisso, aliás, o personagem e o autor se igualam. Talvez venha daí o sentimento de estarmos contemplando uma dessas obras raras, em que cada fotograma parece carregar o combate de seu diretor para se exprimir. Uma obra não perfeita, mas na qual até as imperfeições conspiram para torná-la imperdível. A Virtude da Comunicação 14 de março de 2006 ELE, O BOTO (1987), de Walter Lima Jr. O que diferencia um longa-metragem de sucesso de Walter Lima Jr., por exemplo, de um filme de Roberto Farias dos anos 1970 ou 1980? É que a imagem de Lima Jr. tem a virtude da comunicação, mas não se apresenta como mercadoria. A mercadoria é um bem de troca: pelo preço de uma entrada eu te explico a repressão no Brasil durante a ditadura militar. Tomemos, ao contrário, Ele, o Boto. Lá está a lenda do peixe que se transforma em homem para seduzir as mulheres. Sem nenhuma explicação. O encanto da dança do Arara, uma das melhores partes do filme, por exemplo, não se explica, nem se traduz em palavras: é algo que só pode existir no cinema. São imagens de intensa comunicação, mas seu valor é de uso, não mercantil. Hawks Faz do Heroísmo uma Farsa em York 19 de março de 2006 SARGENTO YORK / Sergeant York (1941), de Howard Hawks Era uma figura, o sargento Alvin York, arruaceiro e cachaceiro que um dia se converte à religião e decide nunca mais beber ou agredir pessoas, além de se ocupar devotadamente de seu casamento. York, esse caipira de carteirinha, tenta cair fora quando é convocado para a 1ª Guerra, em 1917, mas não consegue. Segue para a Europa e lá se torna o protótipo do herói de guerra: mata um bando de alemães, captura uma montanha deles antes de voltar para casa. Sargento York é a biografia de York. Foi feito em 1941, portanto na época em que os EUA estavam em cima do muro, entre entrar na 2ª Guerra ou não. Obviamente, é um chamado belicista e contra os pacifistas. Trata-se de demonstrar como a defesa dos princípios pacifistas passa pela necessidade de enfrentar o inimigo e, eventualmente, matá-lo. Isso quanto ao fundo, isto é, o chamado conteúdo. Mas vale lembrar que o filme se deve ao diretor Howard Hawks, o profeta do vazio, de maneira que ele consegue habilmente esvaziar o conteúdo patriótico da história, minguando o heroísmo de York (com o que, aliás, o próprio York concordava). Assim, em vez das grandes cenas de guerra, o que nos interessa neste filme é a caça ao peru – esporte que York pratica em sua cidadezinha com extrema classe. Mais tarde veremos o peso que isso tem na guerra: é graças ao hábito de caçar perus que York se mostra capaz de, na guerra, caçar o inimigo. Hawks não chega ao ponto de um Fuller, para quem na guerra o único heroísmo é sobreviver. Talvez mais bem-humorado, talvez mais perverso, Sargento York constata que o heroísmo é, em geral, uma farsa. Demy Nos Arrasta ao Reino da Fábula 15 de abril de 2006 PELE DE ASNO / Peau d’Âne (1970), de Jacques Demy Jacques Demy foi um cineasta do encantamento. Talvez o último dessa linhagem feita de momentos tão envolventes quanto os filmes de Jean Cocteau e Vincente Minnelli. E certamente Demy foi o mais delirante de todos, pois, tendo tudo contra, conseguiu elevar o musical europeu à altura do de Hollywood. Com isso, a volta de Pele de Asno ao cartaz, com som e imagem restaurados, nos traz essa arte que hoje parece morta, já que baseada numa crença quase sem fim na verdade de seu objeto e na possibilidade de sua arte de abordá-lo e traduzi-lo em imagens. Pele de Asno é a transposição para imagens cinematográficas de um conto de Perrault, sobre a princesa que, por intervenção de sua fada, foge de seu reino para escapar ao desejo incestuoso do pai. Vive na floresta, como criada, suja e escondida sob uma pele de asno, até ser localizada por um príncipe que se apaixona por ela. Eu disse acima que eram imagens cinematográficas porque contos de fada envolvem imagens de maneira aguda. Só os vivenciamos por elas. Transformar imagens mentais em imagens físicas não é coisa fácil, mas é aquilo a que o filme se propõe desde o primeiro fotograma: vemos o livro e, nele, como ilustração, um castelo. A câmera se aproxima da ilustração e uma fusão nos joga no castelo real, que na verdade é tão imaginário quanto o outro. O mesmo, aproximadamente, se passa com os atores. Catherine Deneuve, a princesa, Jacques Perrin, o príncipe, Delphine Seyrig, a fada, e Jean Marais, o rei, são figuras capazes de participar ao mesmo tempo do mundo concreto e do imaginário. Eles nos arrastam para dentro da fábula com tal intensidade que, ao fim de certo tempo, vemos a doce princesa executar uma receita de bolo como se fosse a coisa mais fantástica do mundo (na verdade, no interior da fábula, é mesmo). Pele de Asno é uma variante da história do sapo que era príncipe, narrada com uma convicção que, no cinema de hoje, movido pelo cinismo, a muitos soará anacrônica. Demy faz um caminho inverso à maior parte dos filmes: parte da abominação (o incesto) para chegar ao amor sublime. Vai do inusitado ao clichê e realiza este clichê com tal convicção que ele, dobrando-se ao artista, mostra-se a nós com o frescor das coisas recém-inventadas. E, se chega pelos ares, invadindo o filme com a modernidade, isso pode nos surpreender, mas não quebrar o encanto. Para Jacques Demy, uma princesa, um poema, um helicóptero são todos entes imaginários. Mazzaropi Continua a Ser o Signo de Nosso Atraso 23 de abril de 2006 O JECA CONTRA O CAPETA (1976), de Amácio Mazzaropi e Pio Zamuner Na bagunça crítica em que vivemos, não há impostura que não tente emplacar – e emplaca. Nos últimos tempos existe uma moda Mazzaropi que se sustenta sobre o interesse, digamos, sociológico que o personagem do Jeca desempenhado por Mazzaropi desperta. É claro que não pode ser menosprezado. E Mazzaropi, embora um comediante limitado (fez a mesma coisa a vida inteira), tinha a virtude de perceber com precisão o que seu público queria ver. Sabia que repetir-se era inteligente, do ponto de vista comercial. É improvável que, se necessário, fosse capaz de criar outro tipo. Mazzaropi, de O Jeca contra o Capeta, é mais um produto do momento de êxodo rural do que seu intérprete. Mas seu carisma era inegável: bastava entrar em cena para o público no cinema parar de conversar, para que o ruído das pessoas comendo pipoca cessasse, substituído por risadas. Por que então este revival? Ele é autorizado, em grande parte, pelas nossas pretensões industriais. Ele faria o cinema indústria, isto é, que dá dinheiro. Ele fazia dinheiro, é fato, com uma regularidade que ninguém manteve no Brasil por tanto tempo. Mas indústria? Ah, não mesmo. Mazzaropi mantinha seu parque de luz e câmera parado por todo o ano, com exceção do momento em que fazia o seu filme. Sabia controlar a distribuição (e fiscalização de bilheteria) como ninguém. Mas nunca capitalizou o seu sucesso e foi melhor assim, pois não tinha cabeça para isso. Mazzaropi é muito mais um sinal do atraso brasileiro – e nesse sentido é que precisa ser compreendido – do que outra coisa. Nossos sonhos industriais, nesse sentido, estão à altura dele: são mazzaropianos pela irrelevância, por apelarem à sorte mais do que à estratégia e à reflexão. Não pelo sucesso. Cinema de Zurlini Traz a Beleza dos Vencidos 15 de maio de 2006 A MOÇA COM A VALISE / La Ragazza con la Valigia (1961), de Valerio Zurlini Mal dá para acreditar, hoje, que Claudia Cardinale tenha sido uma das mulheres mais admiradas do mundo por sua beleza. Quem a vir em A Moça com a Valise pode se surpreender com essas formas arredondadas que poderiam passar, hoje, por pecado capital. Claudia foi uma das últimas estrelas cheinhas com direito a virar sex symbol. Logo depois entrariam em cena as Veruschkas e outras modelos, colocando suas ossadas em evidência. Jean Renoir é um que havia de odiar a era das modelos. Ele achava mulher magra uma coisa triste. Fim da digressão: não estamos com Renoir, e sim com Zurlini. São sensibilidades diferentes. Renoir era capaz de extrair alegria de qualquer coisa. Sabia localizar a vitalidade até na mais soturna tragédia. Zurlini, ao contrário, parecia perseguir a tristeza. E A Moça com a Valise (1961) é um filme sobre pessoas tristes. Existe, é claro, Aida (Claudia), a moça da maleta, de quem o rico Marcello pretende se aproveitar. E existe Lorenzo (Jacques Perrin), o irmão adolescente, belo e triste, encarregado de livrar-se de Aida, quando ela se torna um aborrecimento para Marcello. Ocorre que as sensibilidades de Aida e Lorenzo sintonizam, os dois começam a desenvolver um diálogo. Algo de humano se manifesta. Então ocorre o que há de mais fantástico no filme. Se alguém quiser contestar o arredondado de Claudia, que o faça. Sua beleza continuará inegável. O mesmo se pode dizer de Jacques Perrin. Mas a beleza desses dois seres, nas mãos de Zurlini, e à medida que o filme se desenvolve, se espiritualiza. Pensamos: foram feitos um para o outro. Um pode tirar o outro da situação de tristeza em que se encontra, a tal ponto suas almas parecem sintonizadas. Eles são dois vencidos. Eis aí outra coisa que nosso tempo abomina. Queremos apenas vencedores. Mas Zurlini sabe que a poesia pode estar na derrota, assim como nas formas arredondadas. Um Entusiasta do Cinema Lixuoso 10 de junho de 2006 CRÍTICAS DE INVENÇÃO, de Jairo Ferreira (organização: Alessando Gamo) Jairo Ferreira (1945 – 2003) ficou conhecido como autor do livro Cinema de Invenção e como crítico da Folha, onde trabalhou entre o final dos anos 1970 e o início dos 1980. O que o organizador Alessandro Gamo recupera em Críticas de Invenção, volume editado pela Imprensa Oficial, é um momento que passou em branco para quase todo mundo: o período, entre 1967 e 1971, em que militou como crítico do jornal São Paulo Shimbun. A excentricidade era completa: tratava-se da única coluna escrita em português no principal diário da colônia japonesa em São Paulo e, fora dela, ninguém o lia. O próprio crítico passeava com os recortes, que distribuía aos amigos. De início, a coluna destinava-se a criticar o cinema japonês – na época havia quatro cinemas especializados em São Paulo –, mas quando Jairo Ferreira a herdou do poeta Orlando Parolini o cinema paulista começava a experimentar uma efervescência única. Formado na tradição artesanal da Vera Cruz, pela primeira vez deixava-se permear por toda uma geração de jovens intelectuais formados na admiração pelo Cinema Novo e na leitura dos Cahiers du Cinéma: Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, João Callegaro, João Silvério Trevisan, Márcio Souza, Andrea Tonacci, entre outros, chegavam ao pedaço naquele momento, dispostos a enfrentar a adversidade de produzir cinema. Jairo Ferreira chegava junto e tornou-se o grande cronista desse momento, do qual se tornaria importantíssimo inventariante (com O Cinema de Invenção). O que era desvantagem (a semiclandestinidade do Shimbun), com o tempo se torna um trunfo: ninguém censurava o jornal, de modo que Jairo podia, por exemplo, espinafrar ao mesmo tempo o grande sucesso Coração de Luto, de Teixeirinha, e o presidente da República: Quanto ao cinema propriamente dito, Coração de Luto não deveria ter lugar numa coluna de crítica, pois a crítica não pode falar sobre o que é inclassificável. (...) Coração de Luto é certamente o filme que agrada ao presidente desta republiqueta surrealista: (...) o marechal Costa e Silva recomendou que o cinema brasileiro fizesse filmes ‘construtivos’, onde o ‘bandido sempre morre no fim’, pois o público ‘gosta disso’. Essa liberdade se transfere ao aspecto cinematográfico. O momento é um dos mais ricos da história do nosso cinema. O Cinema Novo existe, já cheio de contradições, mas forte. O cinema paulista busca se afirmar, num momento de censura sólida, juntando a reflexão sobre cinema, sobre o País e a necessidade de chegar ao público: O negócio é fazer filmes péssimos. Um apanhado crítico da face oculta do cinema nacional. Filmes péssimos, mas necessários. Chegou a hora de massacrar a visão europeizante que impede o cinema nacional de ser ele mesmo. Jairo sempre foi radical e militante. Tanto avacalha o Glauber de O Dragão da Maldade, quanto o Rubem Biáfora de O Quarto (de quem fora assistente, por sinal), o Joaquim Pedro de Macunaíma, o Khouri de As Amorosas. Mais do que nunca, o cinema brasileiro é, naquele momento, um campo de batalha – conforme a definição de Samuel Fuller. Não só o cinema, mas o Brasil propriamente dito. E o epicentro dessa batalha, dessa carnificina, no cinema, está na obra de José Mojica Marins, nosso Goya primitivo. O estilo é sempre incisivo, militante, sabendo que a crítica não é uma questão de neutralidade diante de um objeto inefável, mas de escolha. O pior partido é não tomar partido – como sustentava Francis Ponge. Jairo opta pelo cinema da Boca do Lixo e quase produz um manifesto essencial, em que o neologismo lixuoso ajuda a definir os filmes pobres filmados pelos jovens cineastas da época: O cinema da Boca do Lixo não é um movimento gregário, razão pela qual não tolera demagogias e/ou teorizações de porta de boteco. O Lixão é apenas um background onde se reúnem os jovens cineastas de São Paulo, independentes e marginais. Não começa coisa nenhuma onde terminou o cinema novo. É anti-ideológico, renega as éticas e estéticas até então conhecidas e está explodindo como nunca. Raramente uma definição foi tão exata em sua obscuridade. Com exceção, talvez, do final: o cinema do Lixão foi implodido. Dessa batalha perdida, Críticas de Invenção surge agora como uma magnífica relíquia. Segredo Aprisiona a Ladra de Hitchcock 23 de julho de 2006 MARNIE, CONFISSÕES DE UMA LADRA / Marnie (1964), de Alfred Hitchcock Num canal pago, uma senhora ensina tudo o que fazer com o clitóris da companheira. E a ela dá todas as dicas para uma relação anal saudável. É uma filha do dr. Kinsey, sem dúvida. Para ela, o sexo é uma função biológica que deve ser exercida. Hitchcock não a conheceu. Marnie, também não. O que poderia dizer a vovó erótica à heroína de Marnie, Confissões de uma Ladra? A sexualidade, para Marnie, é pura angústia. O sexo não é uma função biológica. O sexo carrega, para ela, todo o mal do mundo. É preciso entender por quê. Ao menos é a isso que se propõe Mark Rutland, seu pretendente. Marnie é uma ladra. Mark é podre de rico. Marnie quer roubar Mark. Mas como roubá-lo se ele se tornou seu marido? Mark é perverso; casar com uma ladra para vê-la tentar roubar a si mesma não é fácil. Ele, que quer descobrir o segredo de Marnie, conhece Freud e sabe que, para chegar à verdade, ela deverá sofrer. Essa verdade é vermelha e surgirá a horas tantas. Pois Hitchcock é um discípulo de Freud e acredita nas virtudes catárticas da psicanálise e do cinema. Com a verdade, virá a libertação de Marnie. Com o dr. Freud (ou o dr. Kinsey), o século XX acreditou que verdade era igual a salvação. Hoje, só programas de TV postulam a salvação; o contraponto é o dr. House, da série homônima, para quem a verdade é necessária, mas nunca suficiente. Resnais Leva à Perplexidade em Filme sobre o Holocausto 13 de agosto de 2006 NOITE E NEBLINA / Nuit et Brouillard (1955), de Alain Resnais As gerações mais recentes conhecem o Holocaustoespetáculo de Spielberg (A Lista de Schindler), o Holocausto burlesco de Roberto Benigni (A Vida É Bela) e até mesmo o Holocausto populista de Olga. Todos eles nos desviam de um mesmo assunto – o Holocausto – e, pior, praticamente o reduzem a uma ficção. Por sorte, existem os 30 minutos de Noite e Neblina (1955), que, com as nove horas de Shoah (inédito entre nós), recolocam as coisas em ordem. Aqui, Alain Resnais nos restitui nada menos que o Holocausto, com uma das montagens mais precisas do cinema moderno. Daí nascer um filme desconcertante. À descrição minuciosa dos campos, com sua arquitetura, diversos departamentos, divisões sociais, clínicas e prisões – feitas a partir das ruínas preservadas dos campos de extermínio, dessas ruínas da morte –, intercalam-se as imagens que Godard um dia, e para sempre, definiu como pornográficas: as imagens dos prisioneiros, em filmes ou fotos, em seu caminho para a morte. Os cabelos ou óculos perdidos na rota para o cadafalso. A intercalação entre o presente (o de hoje ou qualquer outro) e a memória deixa o espectador em estado de perplexidade e impotência. Elas são signos do acontecido, do irreparável. Diante dessas imagens só podemos chorar e lembrar. Ou, antes, podemos chorar e não podemos deixar de lembrar. Elas servem para isso. Para a memória. Para que o intolerável não se repita. Para que alguns de nós, ao menos, nunca mais aceitem a ordem unida. São cenas documentárias, filmadas quase todas pelos próprios nazistas. Algumas pelas tropas aliadas, ao chegarem. Muitas delas nós já conhecemos. Continuam inacreditáveis, tão mais inacreditáveis quanto carregam a evidência do irrepresentável. O que será isso? Um documentário? Um filme de terror? (Que pensar da imagem da cabeça de mulher que vemos e que, ao se distanciar, revela o corpo diminuto, diminuído pela fome e pelo sofrimento? Que pensar dos corpos dos homens sem cabeça, de um lado, e do cesto de cabeças, de outro?) Um filme poético? Sim, pois em vários momentos o texto de Jean Cayrol, em sua beleza, nos consola, nos lembrando da capacidade humana de superar a própria monstruosidade. E, sobretudo, este filme atualiza com rigor e poesia a brutalidade do maior de todos os desastres da guerra. Noite e Neblina é um filme que governos responsáveis, em qualquer nível, deveriam tornar de visão obrigatória para estudantes. Poderia, em sua preciosa meia hora de duração, ensinar algumas coisas sobre a vida, o sadismo, a irresponsabilidade. Ensinaria, com certeza, a diferença que existe entre a arte, marginal, do cinema e a arte oficial da distração em que se está transformando o cinema. Duas questões conexas: 1) Vale a pena comprar um filme de 30 minutos pelo preço de um longa? Vale, acho eu; 2) Os extras correspondem à grandeza do filme? Não, já que dava para buscar, no exterior, material complementar. Questão... Passa Sensação de Segurança 14 de agosto de 2006 QUESTÃO DE HONRA / A Few Good Men (1992), de Rob Reiner Filmes de militar têm um encanto certo. Eles nos reconfortam, fazem crer numa ordenação das coisas que ultrapassa as pessoas e se situa nas instituições. Esse tipo de filme (mesmo com tudo de traumático que, na América Latina, vivemos) trans-mite ao espectador mais ou menos o mesmo tipo de segurança que a monarquia inspira às pessoas. A farda, o ritual, as continências – todos esses signos ganham relevo em Questão de Honra. Mais ainda se levarmos em conta que ali um jovem oficial (Tom Cruise) e uma mulher (Demi Moore) se juntam para demonstrar as culpas de uma figura poderosa (Jack Nicholson). Ou seja, o drama da caserna, que começa pelos uniformes, vai acabar numa situação do tipo Davi versus Golias. E, nesse caso, o conforto é completo: logo sabemos a quem amar e a quem odiar. Questão de Honra não pode ser classificado como bom, mas ninguém poderá dizer que é desconfortável. Tsai Ming-liang Faz Filme Contagiante Carregado de Gostos Estranhos 1º de setembro de 2006 O SABOR DA MELANCIA / Tian Bian Yi Duo Yun (2005), de Tsai Ming-liang O Sabor da Melancia começa por este título brasileiro inusitado. É um nome antipoético. Adivinhamos no filme algo do grotesco que ele carrega – e o espectador não será decepcionado nessa expectativa: numa das primeiras cenas há uma mulher, pernas abertas, com uma melancia sobre a vagina. Um homem entra em quadro, por baixo, e começa a tocar a melancia como se fosse uma vagina. A mulher excita-se como se fosse... a melancia! Existe o sexo, abundante, mas algo estranho se passa com ele. Logo depois saberemos que estamos cercados de melancias. A seca assola Taiwan. Só se bebe água de garrafa. Uma mulher leva uma melancia para casa em sua barriga. Estaria grávida de uma melancia? Nessa altura já nos perguntamos o que é, afinal, este filme de Tsai Ming-liang: um drama, uma comédia? Podemos tentar relacioná-lo a outros filmes chineses. Mas, só de Chinas há três, para efeito de cinema. A mulher da melancia encontra um homem. Pergunta-lhe se ele não vendia relógios. Ele diz que sim. É verdade, mas isso foi em outro filme. Esse Tsai deve estar me gozando. Os dois fazem amizade. Juntos, perseguem caranguejos pela cozinha e depois os almoçam. Não se falam, qua-se. Mas normalmente não se fala nesses filmes. Come-se a melancia, na qual, por trás do sabor, há o segundo sabor: de água. A mulher está sozinha em sua casa. Em sua cama, vista através de uma lente grande-angular: os pés enormes. Tenta dormir, mas é impossível, já que ouve os gritos de gozo de outra mulher. Estamos por aí quando entra um número musical. Drama, comédia, musical, pornô: o que será isso? Outro número musical. Quatro mulheres diante de uma estátua de bronze. Elas proclamam amor ao homem ideal. O homem ideal é o da estátua, risonho e solene. Tsai Ming-liang toma liberdades com tudo: com Taiwan, com o amor, com a água (ou a falta de). Com o cinema, sobretudo. Joga seu espectador de um lado para o outro, parece não fazer questão de ser compreendido. Mas existe ali uma energia evidente, contagiante. Por fim as coisas ficam mais claras. No prédio onde mora a mulher (grávida da melancia) roda-se um filme pornô, da qual seu amigo é o protagonista. Se a melancia é um fruto cujo gosto final é o da água, a ela corresponde o sexo como pornografia. Não como existência, mas como morte ou catalepsia. Não como presença, mas como ausência e exercício trabalhoso. Que mundo é esse de Ming-liang e de O Sabor da Melancia? Um mundo em que as pessoas se cruzam sem que nenhuma relação se estabeleça, em que se amam estátuas ou imagens grotescas. Mundo estranho, amargo, ao que parece. Cheio de humor, também – negro, eventualmente. Um filme carregado de gostos, que se mostra aos poucos, preserva seu sentido. Um filme para ver e rever. Jovial, Oliveira Ri da Vaidade Humana 7 de setembro de 2006 ESPELHO MÁGICO (2005), de Manoel de Oliveira Em seus filmes, Manoel de Oliveira já fez drama e comédia, já viajou no tempo, percorreu a história do Ocidente e deixou-se levar pela melancolia portuguesa, enveredou pelo teatro e pela poesia. A cada novo filme não sabemos o que esperar. E ele sempre termina por surpreender. No caso de Espelho Mágico, as surpresas se acumulam ao longo da trama. Tudo começa em tom grave no interior de um presídio onde, basicamente, se discute filosofia. O diretor, que cultiva cactos, gosta de palestrar com o suave presidiário Luciano (Ricardo Trêpa). Este, por sua vez, aprecia as conversas com o vingativo Américo. Parece que vamos assistir algo à maneira de Robert Bresson. Subitamente, porém, o curso é desviado: Luciano sai da cadeia e é levado pelo irmão a trabalhar na casa de Alfreda (Leonor Silveira), uma milionária que dedica o essencial de seu tempo à fé e a receber conselhos de teólogos como o professor Heschel (Michel Piccoli) e o padre Clodel (Lima Duarte). É do primeiro que vem a teoria de que Nossa Senhora poderia muito bem ser uma mulher rica como Alfreda. Tal ideia embala o sonho maior da carola: receber uma aparição da Virgem Maria. Boa teoria: se ela apareceu até para uns pastorzinhos em Fátima antes, por que não para ela? Aos poucos, enquanto cresce a obsessão de Alfreda, muda o registro do filme. E Oliveira parece contemplar sorrindo este mundo meio fora do tempo, em que a riqueza é só um atalho para o reino de Deus. Um mundo fútil, a rigor, e vaidoso, mas antes de tudo mimado: Alfreda quer ver a Virgem Maria assim como uma criança quer o brinquedo da vitrine ou seu marido quer financiar futuros músicos. É então que aparece em cena Filipe Quinta (Luís Miguel Cintra), o falsário, velho conhecido da cadeia, a quem Luciano conta sobre as manias da patroa. Cínico, Filipe trata de transformar a obsessão em realidade e sai à cata de uma Virgem Maria, que encontra na pessoa de Vicenta (Leonor Baldaque). O filme divide-se em três partes. A primeira, dedicada à cadeia; a segunda, à casa de Alfreda; a terceira, a Filipe Quinta. Nenhum desses três momentos narrativos se completa. Da primeira parte, restará Luciano, mas o diretor e Américo desaparecerão sem deixar rastro. Da segunda, restam Alfreda e o marido, mas desaparecem os padres, tão marcantes no início. Por fim, a própria Virgem de Filipe Quinta, se não desaparece, passa por uma espécie de desvio de função. Se ri da fé vaidosa de sua rica carola – e, por extensão, da importância que certas pessoas dão a si mesmas –, Oliveira também ri da ortodoxia narrativa: ao truncar a história, ao abandonar certos fios, ele se desfaz das regras que oprimem o cinema tanto quanto podem oprimir os homens. Em troca, postula a liberdade, o prazer, o gosto pela amizade, pelos personagens que ali estão apenas porque os ama (ou aos seus atores, o que dá quase no mesmo). Não é só porque se passa de clichês que um homem é sério. Aos 97 anos, Manoel de Oliveira parece cada vez mais inventivo e moleque. Cineasta Alcança Grande Momento com uma Bela Epidemia de Tramas 6 de outubro de 2006 DÁLIA NEGRA / The Black Dahlia (2006), de Brian De Palma A parte dos espectadores que desconhece a tradição do filme noir não sabe o quanto é difícil seguir a emaranhada intriga de O Falcão Maltês, por exemplo, ou de À Beira do Abismo, que, conforme a anedota célebre, nem o roteirista (William Faulkner), nem o diretor (Howard Hawks), nem o autor do livro (Raymond Chandler) sabiam bem do que se tratava. Dália Negra não chega perto disso, mas ali existem dois amigos policiais e uma loira misteriosa, um assassinato sem resolução, mortes em ação que poderiam ser, na verdade, crimes, mulheres fatais assassinadas, milionários sórdidos, política na polícia, a imprensa e suas repercussões. É uma bela epidemia de tramas e subtramas, capazes de dar um bom filme, com mistério, ação, drama. Algo como Los Angeles – Cidade Proibida (1997). Para Brian De Palma, no entanto, isso parecia pouco. Pois para ele o interesse de um filme vem de alguns enigmas que o fascinam. O que é a verdade é um deles. E o que é a verdade num filme noir, no qual todos se movem entre aparências, já é um problema e tanto. Em todo caso, essa é a menor parte da questão. O que fascina De Palma é como promover o encontro entre verdade e cinema. Quando os dois coincidem? Quando uma imagem deixa de ser mera aparência para se tornar verdade? A trama não é complexa. É apenas complicada. Uma boa parte das coisas que acontecem ali interessa muito aos personagens, mas nada a nós, espectadores. Houve um assassinato. Trata-se de esclarecê-lo. Ponto. Sim, mas estamos em Hollywood, cidade dos sonhos, onde um bom policial precisa, a cada passo, distinguir a ilusão da realidade, a amizade da traição, o amor do interesse. No passado, esse tipo de história nos mostrou o lado sombrio dos homens – e, com ele, um sonho americano que se revelava pesadelo. Hoje é diferente: as aparências tomaram conta de tudo. São elas que contam. Buscar a verdade é um ato de bravura, sem dúvida, mas beira a insensatez, pois desafia as leis que governam o mundo. Isso vale para os heróis policiais, mas vale, sobretudo, para o autor de Dália Negra, pois não existe acomodação possível para quem busca vencer a barragem das aparências que organizam o poder e o mundo. A verdade custa caro, como sabia o velho Scottie, de Um Corpo que Cai (de Hitchcock). É o que descobrirá também Bucky, paralisado junto de uma escada, enquanto seu parceiro Lee tenta escapar da morte, lá em cima: uma das mais belas cenas filmadas por De Palma em muitos anos e também um desses momentos em que o diretor reencontra uma ideia clássica e a restitui ao tempo presente inteiramente nova. É quase desnecessário falar aqui da dúzia de outros planos preciosos criados por Brian De Palma, da precisão das composições, da audácia semvergonha dos diálogos, do à vontade no trato do submundo (e mesmo da baixeza). Para resumir, talvez seja este o melhor, o mais profundo De Palma desde o começo dos anos 1980. Nem todos verão as coisas assim, claro. Para quem gosta de cinema, Dália Negra será uma festa; para quem só quer saber da pipoca, um tormento. Estranheza de Obra de Resnais Desafia a Passagem do Tempo 19 de novembro de 2006 MURIEL / Muriel ou le Temps d’un Retour (1963), de Alain Resnais É possível, no caso de Muriel, começar por esse lugar-comum – eis aí um filme que chega com mais de 40 anos de atraso – com o qual se pretende enfatizar nossa categoria de país periférico. O atraso, aliás, é o fundamento deste filme de Alain Resnais. O atraso ou antes o descompasso. Estamos em Boulogne, na Normandia, cidade destruída durante a 2ª Guerra e agora reconstruída. Há ruínas e prédios modernos, passado e futuro misturados. Lá Hélène recebe Alphonse. Saberemos que existiu entre eles um amor de juventude. Logo antes da guerra. O que aconteceu? Nem eles sabem direito, mas se afastaram. Hélène permaneceu na cidade. Alphonse foi para a Argélia, onde viveu até pouco tempo atrás. Que sabemos de um e de outro? Muito pouco. O que dizem e o que mostram. Hélène é uma antiquária, vende os móveis em sua própria casa, o que significa viver em um edifício moderno atolada por velhos móveis – de antes da guerra. Ou seja, eis o que há de irônico na afirmação de que este filme nos chega com atraso. É que, em Muriel,o tempo não passa, ou talvez não exista. Neste roteiro escrito por Jean Cayrol – mais próximo da linearidade do que O Ano Passado em Marienbad ou Hiroshima Meu Amor, ainda que muito mais fragmentário –, é como se o tempo fosse criando camadas de experiência que se superpõem umas às outras. No entanto, a dor do passado não se perde nunca – não passa. Ela se desdobra, reflete-se nas roupas, nos objetos, nos gestos dos personagens, mas não se perde. O segundo aspecto paradoxal envolvendo o tempo diz respeito ao próprio cinema. O filme é de 1963 e sucede a Marienbad na obra de Resnais. O começo dos anos 1960 é aquele em que a linguagem cinematográfica mais foi remexida, mais provocou e foi provocada. Não será absurdo dizer que, hoje, estamos 40 anos atrasados em relação a 1963 (o tempo não passa só para a frente, afinal). Ou seja, a proposta de Muriel, com sua estranheza (os cortes rápidos, a busca arbitrária de objetos, o comportamento estranho dos personagens) está à nossa frente o bastante para que este filme nos apareça hoje enigmático, provocador, atraente – em suma, muito moderno. Enquanto Hélène e Alphonse não passam a limpo seu amor passado – porque é impossível passar a limpo, e porque o passado não se manifesta como tal –, o enteado de Hélène ora passeia com a sobrinha de Alphonse (que depois se revela sua amante), ora sai em visita a Muriel, sua noiva – que nunca vemos. No espaço e no tempo, Muriel é um filme da solidão, do deslocamento (todos ocupam um espaço indevido ou são ocupados por ele) – ali, o próprio da condição humana é o desencontro. Visto hoje, o filme permite, ainda, alguns questionamentos. Exemplo: não seria Muriel um caso de abstração extremada? Não seria o ponto radical de uma estética inovadora na qual, como disse Eric Rohmer, abrem-se portas, mas portas que não dão em parte alguma? Dúvidas como essa nasceram nos 43 anos que nos separam da feitura do filme. Não existiriam na época. Talvez seja, afinal, uma enorme vantagem Muriel estar chegando a nós só agora. Nicholas Ray Filma Universo Marginal 19 de novembro de 2006 A BELA DO BAS-FOND / Party Girl (1958), de Nicholas Ray O Party Girl que o canal TCM anuncia para hoje é o mesmo A Bela do Bas-Fond, de Nicholas Ray, isto é: um dos mais belos filmes morais dos anos 1950, talvez de todos os tempos. Cyd Charisse é uma party girl – leia-se call girl – que presta serviço a uns tantos gângsteres. Entre eles, o advogado Robert Taylor. Existe um abismo entre as qualificações intelectuais e as físicas do advogado, que é brilhante, porém manco. Cyd é o inverso dele: suas pernas são irrepreensíveis, como se sabe, mas ela é forçada a exercer um papel pouco digno na vida. O encontro dos dois, no entanto, resulta em uma consciência do mundo que nem um nem outro parece possuir individualmente. Taylor começa a perceber que o brilho dos seus argumentos não serve para nada se não é acompanhado de um gesto de caráter. Cyd descobre algo parecido e, na verdade, é o encontro com ela que o leva a desafiar Lee J. Cobb, amigo de infância. Como de costume, a mulher faz o homem. O final, veremos qual é. O importante é, primeiro de tudo, essa luta pela libertação de antigas amarras levada por pessoas que são, a rigor, marginais entre marginais. Os americanos vivem falando em liberdade. Ray preferia falar em libertação. Existe sempre um passado a nos oprimir. É com ele que é preciso lutar. Essa luta Ray narra menos com ideias do que com cores, posturas, gestos. Como o mestre que foi, enfim. Merchandising Leva Caçada quase à Comédia 11 de dezembro de 2006 CAÇADA SANGRENTA (1974), de Ozualdo Candeias Não há instituição mais corrente no cinema do que o merchandising. A marca de um fone de ouvido, do automóvel que se usa, do cigarro que se fuma. Tudo é objeto de negociações comerciais – e o aparecimento do produto deve, evidentemente, dar a impressão de ser fruto do acaso, de uma escolha do personagem ou algo parecido. Os americanos sabem trabalhar com isso. Os brasileiros, nem sempre. Em Caçada Sangrenta, de 1974, o intransigente Ozualdo Candeias trabalhava com produção um pouco mais confortável do que, no seu caso, era o habitual (quer dizer: a miséria quase total). Em troca, tinha de inserir uns merchandisings no filme. E o fez tão ostensivamente, ao longo de uma trama policial que se passa, salvo algum engano, para os lados de Mato Grosso, que daí resulta um efeito quase cômico. Pior que cômico: a ostensiva exibição do produto é como uma denúncia da miséria que o cerca. Um achado. Eastwood Discute Mito do Heroísmo 2 de fevereiro de 2007 A CONQUISTA DA HONRA / Flags of Our Fathers (2006), de Clint Eastwood Iwo Jima, uma ilha do Pacífico, foi o local de uma das mais sangrentas batalhas no front oriental da 2ª Guerra. Tratava-se, para os japoneses, de evitar a qualquer custo a entrada dos americanos na ilha. E, para os americanos, de conquistar uma posição estratégica, já em território japonês. Após duros combates, os americanos conseguiram tomar uma parte do território e ali erguer sua bandeira. Clint Eastwood utiliza o episódio em dois filmes, A Conquista da Honra, que estreia hoje, e Cartas de Iwo Jima, forte concorrente ao Oscar, que entra em cartaz no dia 16. O diretor trata, em A Conquista..., não bem da guerra, nem da batalha. É a bandeira que importa. Ou melhor: a foto da bandeira, sendo fincada em terra estrangeira, e a repercussão que o fato teve internamente. É claro, Clint pensa em guerras mais atuais. Mas a 2ª Guerra é o palco ideal para colocar sua indagação: O que é um herói? A pergunta é, de certo modo, clássica. E, como está longe de ser um tolo, Clint aproveitará fontes centrais do cinema americano em busca de uma resposta contemporânea. Convivem neste filme três tons distintos e complementares: o amargor do John Ford de O Homem que Matou o Facínora, a crispação de Samuel Fuller (da escola de Fritz Lang) em Agonia e Glória, a frieza e a ironia de Howard Hawks em Sargento York. É perfeitamente possível gostar do filme sem nunca ter ouvido falar dos ilustres nomes acima. Clint sabe nos deixar completamente envolvidos na narrativa em torno do grupo de soldados que aparece na foto. A conquista é ainda mais relevante do ponto de vista simbólico do que do militar, pois a foto daquele feito, publicada em todos os jornais, mudará o ânimo dos americanos sobre os rumos da 2ª Guerra Mundial. Ciente disso, o governo tratará de repatriar seus heróis para que se tornem garotospropaganda da venda de bônus de guerra. Aí, porém, começam os problemas. Heróis quem? Heróis como? Aqueles a quem a opinião pública reconhece como heróis não são senão os rapazes que ergueram a bandeira na hora da foto. Que heroísmo pode existir nisso? Clint começa por aí a esquadrinhar a questão proposta. É fascinante. Tão fascinante quanto a operação que desenvolve em relação ao cinema americano. Como falar de heroísmo sem lembrar, com Fuller, que na guerra, o único heroísmo é sobreviver? E como falar de verdade sem lembrar o enunciado de O Homem que Matou o Facínora (quando a lenda é mais forte que a verdade, imprime-se a lenda)? E Ford, que cultivou mais do que ninguém os mitos da América, imprimia a lenda, mas mostrava a verdade que desmentia o fato. Por fim, como omitir Sargento York, em que a fabricação do herói e do heroísmo é como que colocada num microscópio por Hawks? Não se trata de homenagear esses cineastas clássicos, nem de evocar o fantasma desse belo passado do cinema, e sim de saber que o presente do cinema se faz com seu passado. É como se, a cada cena, Clint quisesse voltar nesse admirável filme a um passado yorkiano, no qual o herói, feliz e sem ambiguidade, caía nos braços do povo. Mas, a cada vez, é como se esse movimento fosse interrompido pelas sombras da história, pelas mentiras que ficamos conhecendo, por tudo aquilo que se omitiu para que a vitória se tornasse possível. Rossellini Lança Seu Olhar de Fascínio sobre Nação Zerada 11 de fevereiro de 2007 ALEMANHA ANO ZERO / Germania Anno Zero (1948), de Roberto Rossellini Roberto Rossellini não era nenhum santo. Mas achava que a imagem podia salvar os homens, e fez filmes pensando nisso. Ou seja: não era o lucro nem a glória que o seduziam e o levavam a filmar. Era a imagem. Achava a imagem do cinema uma espécie de milagre do século XX, pois podia com ela tocar a todas as pessoas, ricas ou pobres, sábias ou analfabetas. Talvez por isso tenha considerado o sucesso de seu Roma, Cidade Aberta (1945) um mal-entendido, tenha virado as costas aos produtores de Hollywood que lhe ofereciam fortunas (mas não o direito a controlar os filmes) e tenha, por fim, concluído que o cinema, arte prostituída, merecia ser trocado pela TV. Quem quiser ver um exemplo de seu trabalho para a TV (estatal) pode ficar com seu Santo Agostinho, que a Versátil lança no mês que vem. A mesma distribuidora agora lança Alemanha Ano Zero, de 1948, filme raro do mestre italiano. Raro e também dos melhores exemplos de seu tipo de cinema. Estamos numa Berlim destruída pela guerra. A câmera passeia por ela, em longos planos, com frequência seguindo um menino, Edmund. Berlim está esmagada. Parece não sobrar um prédio. Mas a questão desse católico é: o que mais se destruiu além de Berlim? Existe possibilidade de salvar a alma quando todo empenho está em salvar o corpo? Edmund passeia por Berlim quase em desespero. O irmão que tanto admira, Karlheinz, é um názi que recusa a se entregar às novas autoridades. Com isso, na sua casa, é preciso dividir por quatro a comida de três. E a comida para três já é exígua. A irmã de Edmund sai com oficiais aliados para levantar um pouco de bem-estar material. O pai está preso a uma cama. Como bem diz o comentário no início do filme, não se trata de recriminar ou de perdoar os alemães. Isso não está ao alcance do cinema. O cinema constata: eis as coisas, é tudo o que pode nos dizer. E Rossellini nos mostra o rosto intrigante de Edmund, um mistério que, quanto mais é perscrutado, mais se mostra fechado: é um monstro, ou um anjo, não se sabe. E, a rigor, podemos perguntar que diferença isso faz numa terra arrasada como a que vemos. É o ano zero da Alemanha, quando tudo recomeça. Depois viriam a separação, o milagre econômico, a reunificação: a Alemanha Nove Zero que Godard fez em 1991, celebrando este novo zero alemão. Pois é o fascínio do zero, também, que anima este filme em que Deus parece ausente: nenhum movimento é ascendente; nenhuma salvação parece possível. Os caminhos que se fecham são os mesmos que se abrem. O ano um virá depois. Antonioni Apresenta Sua Realidade Fugaz 18 de fevereiro de 2007 O DESERTO VERMELHO / Il Deserto Rosso (1964), de Michelangelo Antonioni Estamos no início de O Deserto Vermelho. Corrado (Richard Harris) e Ugo (Carlo Chionetti) conversam ao lado da fábrica quando uma espessa fumaça branca começa a sair. Ela toma toda a tela. Os homens, estáticos, ficam a observá-la. A cena leva quase um minuto. Que outro cineasta, a não ser Michelangelo Antonioni, para nos fazer ficar a ver fumaça durante todo esse tempo? Talvez exista ali um sentido tão forte que nos mobiliza. Ele capta a matéria no instante de sua dissolução – a água passando ao estado gasoso. Todo o tempo, nesse deserto, as coisas parecem em transformação, de tal modo que não podemos captá-las. As formas parecem sempre a caminho da dissolução. A realidade é impalpável – como uma nuvem. É verdade que assim também é Giuliana (Monica Vitti). Em um extra do DVD, Antonioni refere-se a ela como uma neurótica. Pode ser. Que ela não lida tranquilamente com a realidade, é evidente. Mas a realidade que vê Antonioni nunca parece ser mesmo tranquila. Monica, linda e estilhaçada – como nunca antes ou depois –, lida com esse mundo em que podemos ter a sensação de ouvir um grito. Mas, como o grito se perde, nunca saberemos se existiu. Os médicos dizem que o problema de Giuliana é voltar à realidade. Mas há algo de terrível na realidade, e eu não sei o que é, diz ela. A realidade é difícil, para Antonioni. É fugidia. Talvez seja um produto da imaginação. Trata-se de algo para pôr em dúvida. Podemos perguntar se aquilo que vemos atrás de Giuliana, quando ela passeia no cais, é mesmo um navio ou quadro abstrato. Não é Giuliana que precisa voltar à realidade, mas Antonioni. O problema é que ele não acredita nela tanto assim. Não, pelo menos, como algo com a fixidez suficiente para ser captada. Foi seu penúltimo filme com Monica. Após esse pa-pel difícil, ela cansou (só trabalhariam juntos novamente nos anos 1980, em O Mistério de Oberwald). Ele foi fazer Blow-Up. Ambos ficaram mais alegres e soltos do que neste lindo e soturno Deserto. Um Berreiro Repartido com o Público 22 de fevereiro de 2007 LUZES DA RIBALTA / Limelight (1952), de Charles Chaplin Para mim é pessoalmente difícil falar de Luzes da Ribalta. Minha irmã me arrastou para ver esse filme quando ela era aprendiz de bailarina, e eu, aprendiz de gente. Ela devia imaginar que, sendo um filme de Charles Chaplin, era uma comédia. Não era. O palhaço Calvero sofre como um condenado, assim como sua protegida, Claire Bloom. Para completar o depoimento pessoal, digo que armei um berreiro como poucas vezes o Cine Metro, em São Paulo, terá visto, de modo que minha irmã se viu forçada a me levar embora antes que a sessão fosse irremediavelmente arruinada. Anos mais tarde tentei rever o filme e, curiosamente, a impressão que retive foi muito parecida com aquela inicial: a de um melodrama choroso e pesado. Imperdoável. Essa é uma impressão subjetiva. Mas talvez tenha sido naquela remota sessão que pretendi, pela primeira vez, partilhar o que sinto ao ver um filme. Cassavetes Busca Verdade na Aparência 9 de março de 2007 SOMBRAS / Shadows (1959), de John Cassavetes No fim dos anos 1950, Hollywood já era a capital do cinema. Detinha o monopólio das convenções cinematográficas e de um modo (custoso e, então, deficitário) de produzir filmes. Talvez por ser ator em Hollywood, John Cassavetes compreendeu com precisão esse mundo e o quanto sua qualidade de sistema podia afastar os filmes da verdade. Professor de atores em Nova York, é lá – e com eles – que inicia uma das mais fascinantes aventuras pessoais da história do cinema. Sim, porque se em Paris a Nouvelle Vague começava um movimento amplo de renovação, isso se dava após muita reflexão – e em grupo. Nos EUA, Cassavetes avançará praticamente só com Sombras. No centro da história, existe uma garota negra (Lelia Goldoni), seu amor por um rapaz branco (Anthony Ray) e suas relações com os irmãos. Não há muito mais história do que isso, na verdade. O filme se organiza a partir de algumas situações de base – como esse amor e as relações inter-raciais –, mas não evolui de modo tradicional. Ao contrário, o filme parece vagar pelas ruas, pelos bares, pelos apartamentos de Nova York, muito mais interessado no que cada um desses lugares possa revelar do que em contar uma história. Da mesma forma, quando se trata dos persona-gens, é a verdade de cada situação que Cassavetes parece perseguir obstinadamente. O improviso é o que dá o tom ao filme – como aconteceria ao longo da carreira de Cassavetes como diretor –, mas é preciso compreender o improviso, aqui, como uma disciplina desenvolvida pelos atores, por esses atores em quem Cassavetes confiava infinitamente. Do improviso deriva esse frescor que ainda hoje (melhor dizendo: hoje – reinado da indústria cultural – mais do que nunca) impressiona. Quando Lelia e Tony vão para a cama (primeira relação sexual dela) não parecem dois atores, parecem dois amantes. Os lugares públicos não têm cara de estúdio, são lugares vivos. Cassavetes começava a criar aqui, neste filme sintético (diferentemente da maior parte de sua obra, Sombras tem menos de 90 minutos), essa forma de realismo vertiginoso e de certa forma inimitável que caracteriza seus filmes: nada é símbolo, nada remete a outra coisa ou outro lugar, tudo é afirmação de um aqui e agora inescapável. Um realismo inimitável, mas que acaba marcando o cinema, especialmente o americano. Nem falemos dos cineastas da geração das escolas ou dos chatos independentes (que reduziram o improviso realista a uma codificação acadêmica). Mas em certas cenas nas quais se manifestam os intelectuais nova-iorquinos, podemos perceber de onde vem o melhor de Woody Allen: não vem de Bergman, nem de Fellini. Vem de Cassavetes. Seria muito bom se, em vez de olharmos esse filme como um monumento, o víssemos como ele é, uma lição de algo que, a cada filme, precisa ser reencontrado: a verdade que está nas aparências. Colateral Oferta ao Público uma Viagem Divertida 21 de março de 2007 COLATERAL / Collateral (2004), de Michael Mann Amigos vivem tentando me convencer da genialidade de Michael Mann. Pode ser, não descarto. Mas devo admitir que não a compreendo, ao menos até agora. Isso não me impede de ver em Colateral um dos filmes americanos mais divertidos dos últimos anos. O que temos lá? Uma viagem em que desconhecemos os objetivos, mais ou menos como o chofer de táxi (Jamie Foxx) contratado por Tom Cruise. Este último é um matador com agenda cheia: vai de um ponto a outro para executar sua tarefa. A diversão vem em grande parte de nossa ignorância: o que acontece, de fato? E por que acontece? Não sabemos, ou sabemos tão pouco quanto o taxista. E será que o próprio matador sabe muito? Nossas vidas talvez sejam isso mesmo: pura alienação, como a deles, um deslocamento, uma vida colateral à vida. Não importa. Importa embarcar, viajar, ver no que as coisas vão dar. Aliás, talvez não haja alternativa. Rosselini Retrata Santo com Vigor 9 de abril de 2007 SANTO AGOSTINHO / Agostino d’Ippona (1972), de Roberto Rossellini Enquanto seus colegas se dedicavam, nos anos 1960 e 1970, a consagrar o cinema italiano como um dos mais criativos e consequentes do mundo, Roberto Rossellini explorava outro campo, o da TV. Rossellini, pai de todos do cinema italiano, não achava correto o rumo que a indústria impunha à arte: ela se tornara um ramo do mundo do espetáculo. Tornara-se cara, luxuosa, desnecessariamente perigosa (o perigo do fracasso). Na TV, podia endereçar-se a todos os espectadores, dar sequência à sua ideia de cinema como arte democrática, aberta a todos. Ninguém pense, por isso, que ele estava disposto a fazer concessões: a ideia de filmar para a televisão (estatal, é necessário precisar) permitia-lhe, justamente, não fazer as concessões comerciais que outros tinham de fazer para conquistar o público. Tomemos o seu Santo Agostinho, de 1972. Quem se interessa pelo personagem? Um santo do século IV, ainda que com reputação de sábio e alguns livros clássicos, ainda que com muita influência na vida espiritual do Ocidente, até hoje não chega a ser um assunto para multidões. Rossellini pouco se importa com isso. Primeiro, nos seduzirá pela beleza. Não essa beleza que vem do desejo de fazer bonito. A beleza vem das coisas, não da filmagem. Nesse sentido, certas imagens fazem lembrar as de Pier Paolo Pasolini, seu ilustre discípulo. Em segundo lugar, Rossellini trata Agostinho e sua época com rigor. Lá está ele, a partir do momento em que é elevado a bispo de Hipona, na África. É um momento de paixões: ao lado dos cristãos, há os hereges (são mencionados com insistência os donatistas, sejam quem forem) e os pagãos com quem tratar. Há um Império Romano em decadência, assaltado por bárbaros, e o risco de a culpa cair nos cristãos. Esse momento Rossellini ilustra com frieza, apenas expondo com a maior exatidão possível a infatigável busca do bispo para impor a sabedoria num mundo convulsionado, em crise, em que as verdades absolutas tendem a ser varridas por meiasverdades ou oportunismos vários. Ao falar de Agostinho de Hipona com tanto rigor e vigor, Rossellini não deixa de se endereçar, no entanto, ao mundo cheio de meias-verdades da atualidade. Ele não tem uma mensagem para nós. Agostinho é que tem. Rossellini cala para que o santo fale. Limita-se a mostrar. É o que fazem os grandes cineastas. Daí resulta um filme grande e raro. George Romero Cria Zumbis com Angústias Terrenas 20 de abril de 2007 TERRA DOS MORTOS / Land of the Dead (2005), de George Romero Quem são os mortos na Terra dos Mortos? Desde A Noite dos Mortos Vivos, nos anos 1960, George Romero deixou solta, em seus filmes, essa ambiguidade entre o vivo e o morto, a vida e a morte. Com isso, de certa maneira ampliou o território do filme de terror, até então estritamente metafísico, acrescentando-lhe angústias e questões terrenas. Por exemplo, quem são esses zumbis de Terra dos Mortos, que fez em 2005? São mortos-vivos dilacerados que os vivos-vivos conseguem manter à distância de sua cidade graças ao uso sistemático do espetáculo de fogos de artifício. O que acontece, eis a questão do filme, quando o espetáculo para de ter efeito? Romero recria Metrópolis, a célebre cidade que Fritz Lang inventou em pleno expressionismo. Estamos quase um século depois, e, na cidade de Romero, os ricos vivem fechados em seus shoppings e os pobres são chamados não mais de proletários, mas de zumbis. O mundo anda de lado. Filme-catástrofe Beira o Realismo 22 de abril de 2007 O DIA DEPOIS DE AMANHÃ / The Day After Tomorrow (2004), de Roland Emmerich O filme blockbuster tem uma sabedoria que muitas vezes nos escapa. Quando Independence Day foi feito, na segunda metade dos anos 1990, enunciava a paranoia americana diante da perspectiva de um ataque alienígena (isto é, estrangeiro). O pânico das pessoas em Nova York, no 11 de Setembro, não foi assim tão diferente do que se via no filme. Nem o pânico, nem o sentimento. Não faltaram pessoas para dizer que, naquele dia, sentiram-se como se estivessem dentro de um filme. O sentimento pode ser mais profundo. Se Titanic foi o sucesso que foi, isso não se deve tanto ao fato de contar uma história ocorrida no começo do século XX, mas à sensação que James Cameron conseguiu transmitir aos espectadores de – tanto num caso como no outro – um mundo à deriva, andando para frente, soberbo, mas sem saber aonde vai. Há três anos, quando foi feito O Dia Depois de Amanhã, podia-se ter a ilusão de que a invasão de uma cidade pelas águas fosse uma ficção tão longínqua quanto a invasão da Terra pelos extraterrestres de Independence Day. Diferentemente de Titanic ou de Independence Day, que se baseiam em intuições notáveis, O Dia Depois de Amanhã baseia-se em dados que, sabemos hoje, já existiam há muito tempo. Só não lhe dávamos atenção. E continuamos a não dar. O filme se vende como uma ficção científica. É quase um caso clássico de realismo. Hitchcock Nos Ensina a Ver nas Aparências 1º de junho de 2007 INTRIGA INTERNACIONAL / North by Northwest (1959), de Alfred Hitchcock O que mais dizer de Intriga Internacional? Ele talvez seja o mais perfeito dos filmes de perseguição de Hitchcock, esses em que o inocente foge da polícia para buscar provas da inocência e, para tal, precisa, ao mesmo tempo, procurar o verdadeiro culpado e fugir de suas investidas. É o destino de Cary Grant diante de James Mason. Hitchcock desenvolveu, assim, uma arte especial, em que proclama o cinema como arte da aparência – e duvida dela. Por que a polícia se engana e persegue inocentes? Pois é incapaz de olhar as aparências. O cinema seria a arte de ver na aparência o que existe de realidade. Para tanto, não se trata de ir do superficial ao profundo, mas o inverso: o evidente é algo a conquistar. Cineastas deviam ver Hitchcock e ler A Carta Roubada, de Edgar Allan Poe. John Ford Faz Sentido de Dever Parecer Tragédia 13 de junho de 2007 RIO GRANDE (1950), de John Ford John Ford teria sido um soldado exemplar – foi, por sinal, um intrépido cinegrafista do Exército, durante a 2ª Guerra –, pois em seus filmes o sentido do dever sempre está presente. Está mais ainda nos poucos filmes que produziu, como Rio Grande. Diga-se ainda: os filmes que produziu tendem a ser mais tristes e mais secos que a média de sua obra. Em Rio Grande, esse sentido de dever parece tragédia de Corneille: o protagonista deve mandar o próprio filho para a guerra contra os índios; precisa tomar decisões cruciais, que o levarão a pôr a própria honra em sério risco; precisa, no meio disso tudo, reconquistar o amor da mulher de quem o dever o afastou. O crítico Sérgio Augusto costuma dizer que Ford é o Homero do Oeste. Sem prejuízo da comparação, Ford é também, e por excelência, o Corneille do século XX: aquele que pinta os homens tal como deviam ser, pois seus heróis são, como o coronel Kirby (John Wayne), humanos, mas também sobre-humanos. Garotas do ABC Resume o Brasil Atual 3 de julho de 2007 GAROTAS DO ABC (2003), de Carlos Reichenbach Poucas vezes vi um filme ser tão mal amado quanto Garotas do ABC. E, com efeito, eis aí um filme estranho: na sua história existem uma fábrica no ABC e suas operárias, existe o clube onde elas vão dançar. Há os sindicalistas, os nordestinos e também os fascistas que os perseguem. Existe ainda um branco racista que, no entanto, se apaixona por uma garota de cor. Há matadores e policiais. É estranho que, apenas ao nomear uma parte dos elementos que transitam neste filme do diretor Carlos Reichenbach, eu sinta uma súmula muito significativa da atualidade brasileira. Ah, mas essas coisas entram às vezes de cambulhada, estridentes, sem equilíbrio. Sim, porque vivemos no Brasil, neste Brasil abecedário, mas gostamos que os filmes brasileiros pareçam sinfonias de Mozart. Azar, Garotas... tem essa cara de barbárie, de filme de Samuel Fuller. Quem não souber apreciar pode, talvez, tentar um outro país – ou uma outra arte. O Grande Golpe Ataca Inércia do Olhar 15 de julho de 2007 O GRANDE GOLPE / The Killing (1956), de Stanley Kubrick A história, numa biografia de Kubrick, trata do único desentendimento que teria havido entre Lucien Ballard e ele, quando faziam O Grande Golpe. Foi no primeiro dia de filmagem. Kubrick indicou onde queria os trilhos e qual a lente a usar (25 mm). Saiu e, ao voltar, encontrou os trilhos postos mais para trás e outra lente (50 mm). Ele perguntou a Ballard por que fizera assim. O fotógrafo respondeu que, deslocando a câmera para trás e colocando uma lente mais fechada, o espectador veria a mesma coisa. Mas o que me interessa são as linhas, disse Kubrick, pois lentes grande-angulares como a 25 mm distorcem as linhas. Ballard viu que Kubrick não era bobo e pôs a viola no saco. Mais: Kubrick não pretendia deixar intacto o hábito corrente nos EUA de deixar que os fotógrafos decidam sobre a lente e a posição da câmera. Qualquer obra dele, como O Grande Golpe – história de um criminoso que, após sair da cadeia, arma o assalto a um hipódromo –, tem essa marca da lente estirando as imagens, como que combatendo a imagem naturalista e impedindo a imagem de se acomodar a uma espécie de inércia do olhar. Sem esse uso das lentes, um filme como Laranja Mecânica não seria a obra-prima que é. O que é central: bons diretores de cinema têm uma ideia do que querem de seu maquinário e dos colaboradores. Sem isso, O Grande Golpe não seria o filme que conhecemos. Antonioni Criou Cinema de Incertezas 1º de agosto de 2007 Roberto Rossellini fundou a moderna escola italiana sobre a crença de que o cinema é a arte capacitada a captar a realidade. Foi esse o princípio do que se chamou Neorrealismo. Quando se perguntou certa vez a Michelangelo Antonioni se ele negava os princípios neorrealistas, ele disse que não, que fazia um Neorrealismo sem bicicleta (alusão a Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica). Em outras palavras, se Rossellini acreditava no poder da câmera de fixar a realidade, coube a Antonioni introduzir uma nova questão: o que é a realidade? Com Antonioni, a partir daí, o cinema desloca-se decisivamente da esfera da ação – que Rossellini já havia rarefeito – para a do tempo. O tempo substitui francamente a ação: ele é aquilo que faz e desfaz as coisas. Com isso, inicia-se também uma busca desse real, e talvez seja ela que tenha feito de Antonioni um mestre das distâncias, aquele que mais se preocupou em captar não as pessoas, mas o ar que existe entre elas. Quem mais poderia filmar aquela cena de A Noite (1961) em que Jeanne Moreau, andando sozinha pela cidade, depara com fogos de artifício? Imediatamente ela chama seu amante, Marcello Mastroianni. Ele vai até o local, só para constatar que já não há fogos. Em O Eclipse (1962), a Bolsa de Valores cessa a atividade por um minuto em homenagem a um corretor que havia morrido. Durante um minuto não se escuta nada. Quando soa a sineta anunciando o final, volta o ruído infernal do pregão. A cada filme, o cineasta parece perguntar-se o que é real, imaginário ou alucinação. Diante das calamidades do pós-guerra, Rossellini se perguntava por que isso acontece?. Antonioni, mais novo, olhava esse mesmo mundo (ou quase o mesmo: já é uma Itália recuperada da guerra) e sua questão era: o quê, afinal, acontece? Para Rossellini, católico, a baliza desse mundo, por terrível que fosse, era Deus. Para Antonioni, materialista, Deus estava morto. O homem, portanto, está livre. Mas a que leva a liberdade? À crise. Antonioni filmou, quase sempre, crises, momentos de passagem (até mesmo passagem da vida à morte, uma constante nada gratuita). Depois de sua célebre trilogia, Antonioni acrescentou as cores a seu vasto repertório de imagens, em O Deserto Vermelho (1964) – lançado no Brasil como O Dilema de uma Vida –, antes de partir para o exterior, Inglaterra, onde Vanessa Redgrave tomou o lugar de sua ex-mulher Monica Vitti como estrela em Blow-Up – Depois daquele Beijo (1966). A Inglaterra de Beatles e Rolling Stones talvez lhe parecesse o lugar ideal para dar sequência às ideias de outro mestre, Alfred Hitchcock, que em Janela Indiscreta mostrara como é delicada a linha que separa a realidade da imaginação. O fotógrafo de Blow-Up, diferentemente do de Janela Indiscreta, capta a realidade com sua câmera. Ele passa da fabulação à materialidade: tem provas do assassinato que captou. Ou será que o crime teria sido apenas uma ideia construída pela montagem de imagens? Se as dúvidas a respeito do real prosseguiram nas décadas seguintes, com Profissão: Repórter (1975) ou Identificação de uma Mulher (1982), até seu último filme Michelangelo Antonioni tratava de uma arte capaz de se aproximar como nenhuma outra das coisas, das pessoas, do tempo, mas que, quanto mais chega perto, menos nítida se torna, mais instaura a incerteza. Com Antonioni, já não existem certezas. O homem, que mesmo em Rossellini ainda é senhor do espaço, agora tateia um mundo que não domina, no qual o sentido já não está dado, em que é preciso buscar, sem saber ao menos o que buscar. A crise do homem moderno passa por esse cinema moderno, do qual Antonioni foi um dos grandes mestres. A Menina Santa Vai Aonde o Cinema Brasileiro Teme Ir 30 de agosto de 2007 A MENINA SANTA / La Niña Santa (2004), de Lucre-cia Martel O.K., agora vamos ao outro lado. A Menina Santa é, de certa maneira, a súmula da superioridade do cinema argentino sobre o nosso. Quem poderia pensar num filme de tantas ocultações, em que um grande médico gosta de molestar meninas, em que a santinha molestada é bem uma cúmplice de tudo isso. Não, aqui a primeira ideia seria mandar prender o diretor, enquanto o Ministério da Justiça acionaria seus sabujos para colocar empecilhos à possibilidade de ver o filme. Etc. Não é culpa de ninguém. É cultural. Afinal, eles peitaram uma ditadura cem vezes pior do que a nossa e mandaram os torturadores para a cadeia. Nós fizemos uma bela pizza disso tudo. Eles têm uma livraria por esquina. Nós transformamos as nossas em butiques que sobrevivem de vender ridicularias de autoajuda. Por que os nossos cineastas conseguiriam sobrepor-se a tantas adversidades? Pode aparecer um gênio da raça, uma exceção. Será pouco e improvável. Hitchcock Faz Mistura entre Erudito e Popular 18 de setembro de 2007 O HOMEM QUE SABIA DEMAIS / The Man Who Knew Too Much (1956), de Alfred Hitchcock Em geral se faz a música para um filme. Precisava ser Hitchcock para inverter tudo e fazer um filme para uma música. Ou, talvez, para duas. Uma delas, popular, é a que Doris Day canta nas horas de alegria e nas de desespero. A outra é a sinfonia que Bernard Herrmann rege e durante a qual, no momento do bater de pratos, deve se consumar um assassinato. Tudo isso em O Homem que Sabia Demais. Hitchcock sabe que o mundo da cultura divide-se entre erudito e popular, mas acredita que essa divisão não faz muito sentido. Daí se empenhar em nos fazer compreender a emoção que uma sinfonia pode transmitir (por emoção entenda-se, no caso, suspense) e a profunda angústia contida em uma canção despretensiosa. O cinema já trabalhava com essa dicotomia havia décadas (não só essa: ser arte e indústria, artesanal e técnico são outras), quando Hitch fez seu filme, nos anos 1950. A diferença é que ele o fez em plena consciência, dissecando a questão. Natal da Portela Vê Contradições de um Homem 20 de setembro de 2007 NATAL DA PORTELA (1988), de Paulo Cesar Saraceni Há filmes tortos e há personagens tortos. Ao Natal de Natal da Portela faltava um braço. Mas isso não o impedia de dominar Madureira, de animar a Portela, de controlar o jogo do bicho e de construir hospitais para a comunidade. Natal foi um dos maiores fracassos da história do cinema brasileiro. Deve ser porque é magnificamente bem dirigido, porque Milton Gonçalves tem uma interpretação inesquecível. E, sobretudo, porque Paulo Cesar Saraceni cria o retrato de um homem com suas mil contradições sem a menor preocupação de harmonizá-las, suprimi-las ou aplainá-las. VivemosfalandomaldomaniqueísmodeHollywood, mas gostamos mesmo é de distinguir heróis de vilões. Não raro, nossos filmes forçam a distinção – e da maneira mais tola possível. Em geral, são os que fazem sucesso. Natal restitui um homem, seu tempo e suas circunstâncias em sua inteireza e ambiguidade. Foi tido por mau filme. Azar o nosso. Samurai de Kurosawa É Metáfora do Cinema 21 de outubro de 2007 KAGEMUSHA – A SOMBRA DE UM SAMURAI / Kagemusha (1980), de Akira Kurosawa Em Kagemusha – A Sombra de um Samurai, o que existe em princípio é o chefe do clã Takeda ferido em combate. Neste filme de 1980 estamos no século XVI e nos eternos conflitos entre senhores feudais no Japão. Um pobre coitado, condenado à morte, tem a sorte de se parecer com Takeda, de maneira que é escolhido para fazer o seu papel, para que o inimigo não saiba que o chefe guerreiro foi atingido. Enquanto isso, o filho de Takeda deve provar seu valor em combate. O destino dos homens pode ser caprichoso – especialmente o das dinastias. Akira Kurosawa, que nunca foi muito apegado às tradições, nos mostra que esse homem destinado a ser mera sombra, não mais do que a aparência do guerreiro, pode de repente encarnar os valores de seu senhor. O tortuoso destino desse homem ganha, nas mãos de Kurosawa, uma encenação suntuosa. Não por gosto do luxo, mas por necessidade: é preciso ter sentido de grandeza para dar a medida do destino de nosso Kagemusha, o homem que passa de impressão à realidade. Não será este, também, o destino do cinema? Ser uma cópia vulgar do mundo que, pelo empenho e pela arte, toma em determinado momento o lugar do mundo, duplica-o, oferece-lhe algo melhor do que ele é? Algo que o torna mais habitável – como a arte, por exemplo? Kurosawa chegava, aos 70, ao final de sua obra. Sabia do que estava falando. Índice No Passado Está a História do Futuro – Alberto Goldman 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 A Crítica Vista pelo Crítico 11 Artigos – Folha de S. Paulo 27 Notas para um Cinema sem Crédito 27 Uma Aula de Faroeste pelo Mestre King Vidor 34 Obra-prima de Walsh, de Inspiração Psicanalítica 37 Samuel Fuller, um Criador de Anti-heróis 40 Imitação da Vida, ainda um Filme Atual 43 Pornô, Beco sem Saída para o Cinema Nacional 45 A Crítica de um Cinema em Crise 48 Em Debate, a Ideologia do Cinema 52 Um Diretor Fiel à Linguagem da Tela 55 A Comédia e Seu Avesso 61 A Maldição de um Olhar além do Humano 64 Um Grande Clássico do Faroeste 68 Lang, a Energia e a Destruição 71 Decifração Apaixonada e Furiosa do Mundo 73 Murnau, o Gênio e a Audácia 76 Invenção e Aventura do Cinema 78 Obra de um Mestre, em Filme Comovente 80 O Movimento e os Mistérios da Vida 82 Uma Radiografia do Cinema 85 A Saga dos Heróis da América 87 No Domingo, Três Filmes para não Esquecer 91 Um Cinema Moderno, entre o Real e o Delírio 95 As Imagens Perfeitas de Ozu 97 O Vampiro Ressuscita na Era da Televisão 100 Hitchcock-Truffaut, o Suspense sem Mistérios 104 Cobra, um Vampiro dos Anos 1950 109 Terra dos Faraós Faz Howard Hawks Falar 112 Lente de Fuller Disseca o Racismo em Cão Branco 115 Estilo de Lubitsch Mantém Ninotchka Atual 118 Michael J. Fox É um Roqueiro em Filme Inédito 121 Sirk Constrói Retrato Trágico da Classe Média 124 Jean Renoir Faz Cinema com Palavras 127 Vertigem de Hitchcock Une Cinema e Paixão 131 Gary Cooper Faz Western sem Heroísmo 135 Hawks Revisita o Pesadelo da Juventude 138 Agonia e Glória Traz Relato Autobiográfico 142 Drugstore Cowboy Usa Drogas na Medida Certa 145 Oliveira Faz Épico com Derrotas Portuguesas 149 Clint Discute Vida e Cinema à Sombra de Huston em Coração de Caçador 152 Ozu Revolve Códigos e Aparência do Japão 155 Globo Mostra Obra-prima Ecológica de Ray 158 Coppola Faz Épico da Decadência em Tucker 160 Ata-me! Dá Nó em Conceito de Normalidade 164 Gazeta Exibe Melodrama Preciso de Douglas Sirk 168 Princesa de Mizoguchi Ensina o Plano-sequência 170 Última Sessão Evoca Cinema Clássico 172 Monstro de Corman Enfrenta Hollywood 174 Wajda Usa Danton para Criticar Socialismo Real 178 Chabrol Leva Mulheres à Linha de Frente 180 TV Mostra Show do Conflito 183 Allen Perde o Humor e a Graça em Interiores 186 Professor Aloprado Prova Gênio de Lewis 189 Elia Kazan Filma o Desejo em Clamor do Sexo 191 Fuller Revolve pela Última Vez o Cinema 194 Gazeta Mostra América Fuleira de Aldrich 197 Hatari! Torna-se Cada Vez mais Moderno 200 Fibra de Heróis É o Faroeste em Estado Puro 202 Bogdanovich Encontra Beleza em Streisand 205 A Marca do Gênio Está em A Marca da Maldade 207 Antonioni Prevê Crise do Moderno em Blow-Up 210 Homem Errado Expõe Catolicismo de Hitchcock 214 A Vida É um Romance Exalta Imperfeição 215 Cinemateca Exibe 15 Filmes de Jean Renoir 218 Gertrud Mostra Martírio de uma Mulher 221 Wenders Filma Paixão e Morte de Nick Ray 224 Começa na Cinemateca Ciclo de Max Ophüls 226 Desejo é um Delito na Visão de Bellocchio 229 O Que Sair por Último, por Favor Apague a Luz 232 Fragmentos de uma Autobiografia Faz a Ponte entre Vida e Ideias do Criador do Neorrealismo 236 A Noite É um Apanhado de Intrigas Virtuais 240 Jacques Rivette Cria Sua Obra-prima 241 O Cinema no Cerne da Violência 245 Eastwood Reencontra o Gênio do Faroeste 248 Irmãos Marx Trazem Seu Melhor 250 Bengell e Lara Brilham em Noite Vazia 253 Herbie Volta à Linha de Montagem 255 Spielberg Desafia a Técnica 256 Loucura Triunfa em De Palma 257 Amor é Experiência-limite 259 Hitchcock Faz Imagem Falar em O Ring 260 Robert Aldrich Brilha no Crepúsculo 262 Há Imagens Duras na Queda 264 Cortina Continua Novinha 266 Paixão pela Geometria Domina Rio Lobo, Último Filme de Hawks 267 Eastwood Filma Inferno em Cores Claras 270 Rio, 40 Graus Cria Imagem Real do Brasil 274 A Marquesa d’O Conserva Sua Beleza 276 Espírito de Aventura Triunfa sobre Personagens 279 Lúcio Flávio Denuncia Crimes da Polícia 282 Godard Inventa o Futuro na Fria Alphaville 284 O Alvo É uma Vitória da Imaginação 286 Western Traz a Tragédia ao Século XX 288 Dúvida entre Verdade e Mentira Define o Autor 290 Mortos Vivos Voltam para Aterrorizar 293 Cineasta Iraniano Surpreende pela Sofisticação 295 Ford Compõe a Maior Tragédia do Oeste 298 John Woo Cria Sonho de Imagens Violentas 300 Ford Analisa Lenda Americana 302 Rio Bravo Volta à Tela Grande 304 John Wayne Desce aos Infernos 306 Arquitetura Disseca os Ideais do Nazismo 308 Sábado Observa Contradições do Brasil 311 Só Se Vê um Filme com os Próprios Olhos 314 Ganga Bruta Mostra Homem Integral 316 Jerry de Terror É Vanguarda 319 Godard Faz Autorretrato de Dinossauro 320 O Pirata Põe Teatro de Minnelli em Ação 323 Iraniano Através das Oliveiras Vence Má Copiagem 325 Belle de Jour Ganha Cópia Nova 328 A Malvada Descreve Mundo de Aparências 329 Itália Dá Sinal de Vida 331 Carpenter Desafia Fast-food de Imagens 332 Showgirls É Robocop de Topless 334 A Crítica diante da Barbárie 337 A Técnica Faz Sofrer 343 Cantando na Chuva Traduz Euforia de Viver 344 Psicose Chega às Locadoras Brasileiras 347 Comer, Matar, Viver 349 Pernas e Beijos Arrebatadores 351 Riefenstahl Continua um Problema 357 Kiarostami Extrai Força do Caos em Vida 359 Ostra Sugere Brasilidade 362 Circo Reflete Vida em Lola 363 O Exílio, os Amores e a Prosa Vulcânica de Glauber Rocha 365 Luz É uma Lenda do Passado 369 Ozu Observa Convenções em Bom Dia 373 Profeta Está entre o Moderno e o Arcaico 376 Eastwood Questiona Poder do Absoluto 377 Morte de Fuller é como Perder o Pai 381 O Suspense e a Suspensão 385 Um Cineasta com Alma de Desperado 391 O Luxo do Lixo 395 Damas Brinca de Deus 398 O Dinheiro Contrapõe Justiça ao Enredo 400 Coração Iluminado Tem a Poesia do Imperfeito 402 As Lições de Hitchcock 406 O Olhar do Poeta 411 Benigni Arrisca Tornar o Holocausto uma Ficção 412 TV não Compreende o Cinema de Glauber 415 Mesmas Imagens Mostram Quem Somos 417 O Terror Somos Nós, Diz Vampiros 422 Fácil de Admirar e Difícil de Amar 423 Meu Tio Apresenta Jacques Tati, o Eterno 427 Filme Inventa o Cinema de Investidor 431 A Aridez Santificada 434 A Carta Faz Encontro entre Rock e Jansenismo 437 Massacre É uma Vitória do Blockbuster * 440 Deuses e Homens Encontram-se em Santo Forte 445 Taxi Driver 448 Máfia no Divã Resgatou Sabedoria do Público 451 Filme de Saraceni É um desses Anacronismos Magníficos 455 Uma Temporada no Inferno 458 Godard é um Guerrilheiro das História(s) do Cinema 464 Destino Guia Ciclo sobre Douglas Sirk 466 Conspirando contra o Quê? 469 Truffaut Mistura Nostalgia e Modernidade 472 Filme Mostra Mundo Povoado por Imagens Vazias 475 O Mercado e a Atividade Artística 479 Filme Mostra Brasil em Moeda Corrente, sem Perspectivas 479 Kiarostami Esconde Tesouro de Busca por Realidade 483 Autor Revê Inventário de Utopia 485 Primeira Obra-prima do Ano Vem de Taiwan 490 A Televisão Faz do Espectador um Eterno Torcedor 492 Filme é Clássico Moderno com Pertinência Certeira 496 Domésticas É Retrato da Inocência do Mal 499 Longa Reproduz Ideário de Novelas 501 Candeias Põe a Mão na Cumbuca Boca do Lixo 504 Mostra Ajuda a Decifrar Diretor da Classe Média 507 Moretti Evoca Todos os Sentimentos do Mundo 510 Obra é Manifesto pela Universalidade 513 Valerio Zurlini Exibe a Delicadeza de Sua Obra 516 Walter Lima Jr. Filma Instabilidade Nacional 519 Filme não É sobre Pornografia, mas sobre Mudanças 522 Delírio em Hollywood 525 Godard Documental Faz Elogios do Amor 528 Arte da História e do Invisível Preenche o Filme 531 Duas Formas de Sensibilizar a Imaginação 534 São Paulo Recebe a Modernidade de Eric Rohmer 535 Saraceni e o Inferno da Fé 538 Fábula Estranha e Luminosa não Deixa Lugar à Indiferença 538 Filme Apresenta Mundo como Ficção Plena 541 Fellini Acerta as Contas com a Sua Paixão pelo Circo 544 Charles Chaplin Esvazia a Pompa dos Poderosos 547 Para Zurlini, o Sofrimento é Nossa Essência 550 Christine Anuncia o Triunfo da Máquina 551 Ninguém é Perdoável em O Dia do Perdão 553 Schrader Remete a Cristianismo Angustiado 555 O Mundo Visível Morre em Dançando no Escuro 556 Evidências de Eric Rohmer Ocupam a Tela 558 Eles Vivem Contém a Herança do Filme B 560 Scola Fixa Registro Tradicional em Casanova 562 Mau Gosto em Grande Forma 564 Brian De Palma Busca a Verdade de um Grito 564 Ruído das Armaduras 566 Jayne Mansfield Humaniza a Caricatura 567 Ciclo Segue o Ritmo da Vida de Rossellini 569 Winchester Vê o Mundo a Partir de Luta por Arma 571 Loja dos Horrores Ensina a Lição da Economia 572 Longa Confirma Irmãos Farrelly na Vanguarda de Hollywood 574 Lynch Destrói Realidade Mumificada 575 Jesus não Salva, Vende 577 Amélie Poulain Resume Certa Indústria do Cinema 580 No Cinema, Nossos Preconceitos Nos Dirigem 582 Elogio à Paixão 583 Balada do Pistoleiro 586 Simplicidade de História Real é apenas Aparente 590 Claude Chabrol não É Gênio, É Trabalho 591 Resultado Coloca em Questão o Estado Atual da Crítica Brasileira 593 Lanzmann Propõe Tempo da Verdade em Shoah 596 Quando a Esquerda Adere ao Gangsterismo 599 A Arte Realizada com Migalhas 602 As Deusas Revela um Bom Momento de Khouri 603 O Gosto de Hellman pelos Personagens Silenciosos 605 Comédia Exprime a Grandeza do Cinema Clássico Americano 606 Cinemascope: a Contemplação dos Espetáculos 609 Bazin e Truffaut se Complementam na Crítica Moderna 610 Último Filme de Sganzerla Luta contra o Esquecimento 615 O Sucesso Garantido da Ku-Klux-Klan 617 Amor pelo Corpo Divergente é Chave no Enigma de Beto Brant 619 Feito em Seis Dias, Clássico de Ulmer Constrói Labirinto 621 A Virtude da Comunicação 623 Hawks Faz do Heroísmo uma Farsa em York 624 Demy Nos Arrasta ao Reino da Fábula 626 Mazzaropi Continua a Ser o Signo de Nosso Atraso 628 Cinema de Zurlini Traz a Beleza dos Vencidos 629 Um Entusiasta do Cinema Lixuoso 631 Segredo Aprisiona a Ladra de Hitchcock 634 Resnais Leva à Perplexidade em Filme sobre o Holocausto 636 Questão... Passa Sensação de Segurança 638 Tsai Ming-liang Faz Filme Contagiante Carregado de Gostos Estranhos 639 Jovial, Oliveira Ri da Vaidade Humana 642 Cineasta Alcança Grande Momento com uma Bela Epidemia de Tramas 644 Estranheza de Obra de Resnais Desafia a Passagem do Tempo 647 Nicholas Ray Filma Universo Marginal 649 Merchandising Leva Caçada quase à Comédia 651 Eastwood Discute Mito do Heroísmo 652 Rossellini Lança Seu Olhar de Fascínio sobre Nação Zerada 654 Antonioni Apresenta Sua Realidade Fugaz 657 Um Berreiro Repartido com o Público 658 Cassavetes Busca Verdade na Aparência 659 Colateral Oferta ao Público uma Viagem Divertida 662 Rosselini Retrata Santo com Vigor 663 George Romero Cria Zumbis com Angústias Terrenas 665 Filme-catástrofe Beira o Realismo 666 Hitchcock Nos Ensina a Ver nas Aparências 667 John Ford Faz Sentido de Dever Parecer Tragédia 668 Garotas do ABC Resume o Brasil Atual 669 O Grande Golpe Ataca Inércia do Olhar 670 Antonioni Criou Cinema de Incertezas 671 A Menina Santa Vai Aonde o Cinema Brasileiro Teme Ir 674 Hitchcock Faz Mistura entre Erudito e Popular 675 Natal da Portela Vê Contradições de um Homem 676 Samurai de Kurosawa É Metáfora do Cinema 677 Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Débora Duarte – Filha da Televisão Laura Malin Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz Erika Riedel Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa Fernando Peixoto – Em Cena Aberta Marília Balbi Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Isolda Cresta – Zozô Vulcão Luis Sérgio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert Jorge Loredo – O Perigote do Brasil Cláudio Fragata José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra Alberto Guzik Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro e Eu Não Sei Ler Eliana Pace Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silnei Siqueira – A Palavra em Cena Ieda de Abreu Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana? Maria Thereza Vargas Stênio Garcia – Força da Natureza Wagner Assis Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Theresa Amayo – Ficção e Realidade Theresa Amayo Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Walter George Durst – Doce Guerreiro Nilu Lebert Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista © 2010 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Araújo, Inácio Cinema de boca em boca: escritos sobre cinema / Inácio Araújo; organização e pesquisa Juliano Tosi – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 712p. : Il. – (Coleção Aplauso. Série cinema Brasil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 978-85-7060-942-7 1. Crítica cinematográfica 2. Roteiros cinematográficos – História e crítica I. Tosi, Juliano II. Ewald Filho, Rubens. III. Título. IV. Série. CDD 791.437 5 Índices para catálogo sistemático: 1. Crítica cinematográfica 791.437 5 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 712 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria