O Teatro de Marici Salomão Bilhete Impostura Maria Quitéria Território Banal O Teatro de Marici Salomão Bilhete Impostura Maria Quitéria Território Banal Imprensa Oficial São Paulo, 2010 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Alberto Goldman Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador-Geral Rubens Ewald Filho No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo à memória de minha mãe querida ao meu pai e às minhas irmãs aos mestres Luís Alberto de Abreu e Antunes Filho com carinho e gratidão. Marici Salomão Prefácio Profissão: Dramaturga A dramaturgia, no dizer de Patrice Pavis, é definida, em sua acepção teórica contemporânea, como a instância que se pergunta como estão dispostos os materiais da fábula num espaço textual e cênico, segundo uma determinada temporalidade. O gênero dramático estuda ao mesmo tempo a estrutura ideológica e formal da obra, a dialética entre a forma cênica, um conteúdo ideológico e o modo específico de recepção do espetáculo. Assim, a escritura teatral não se refere ao texto escrito unicamente, ela também pressupõe um conhecimento do código estético ou ideológico a partir do qual se constrói. A dramaturgia se problematiza e renasce e, com ela, o dramaturgo. Seus velhos e novos problemas se apresentam com incitante fluidez: o drama deve reproduzir a imagem da realidade social ou abandonar essa pretensão? Qual o papel do dramaturgo aqui e agora? Qual o estatuto do texto dramático entre nós? Existe uma dramaturgia feminina? Como unir nossa tradição teatral e a dramaturgia contemporânea? Desse ponto de vista, a dramaturgia implica uma revisão e adequação da matéria literária à sintaxe cênica e ao contexto da representação e da recepção, e a realidade feminina não pode estar alheia a esse processo de construção de mundos simbólicos que é o teatro, nem ao processo comunicativo que toda representação implica. É nesse espírito de reflexão constante sobre o teatro que se formou a dramaturgia de Marici Salomão, influenciada por seu primeiro mestre na matéria, o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, coordenador do Núcleo dos Dez, do qual participou. Posteriormente, foi coordenadora do Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), com a supervisão de Antunes Filho. A representação da mulher pela autora em particular e pelas dramaturgas brasileiras contemporâneas, de um modo geral, implica uma revisão crítica de nossa sociedade e dos modelos culturais vigentes. Lembrando que tal representação em nossa dramaturgia foi predominantemente modelada pelo homem. Portanto, a criação de tais modelos culturais corresponde à ideologia masculina do poder patriarcal. Suas peças incluídas nessa edição (BILHETE, IMPOSTURA, QUITÉRIA e TERRITÓRIO BANAL) partem de uma situação extrema e poderíamos distinguir nesse conjunto, rico e variado, algumas correntes: • o mergulho numa atmosfera onírica em BILHETE, onde o esforço de síntese entre subjetividade e intersubjetividade parece entrever como premissa ética básica para o trabalho criativo (tal esforço se expressa na peça através de uma rede sociocultural e de um sedimento histórico que, atuando como espectros, dão boa parte de sua particularidade); • a ironia centrada na tensão das emoções humanas em IMPOSTURA; • a reflexão sobre a história e a História resgatando importante figura de nosso passado em QUITÉRIA, uma espécie de Diadorim (destaque para a precisão com que maneja a realidade histórica, o que revela a tremenda investigação antes de criar sua peça); • e a reflexão metateatral, em TERRITÓRIO BANAL, onde joga com a metateatralidade e explora os limites do gênero e da teatralidade. Cada uma dessas peças faz emergir, reconhecível e próximo, o mundo do e para o qual foram escritas, apostando em gerar experiências de comunhão com seus espectadores e leitores. Pela extrema variedade dos temas abordados, chega aos temas privilegiados: a solidão e a dificuldade da comunicação humana. Pela multiplicidade de procedimentos empregados, uma busca da comunicação com o receptor. Os personagens se delineiam pela situação na qual se encontram — o marco referencial ao qual respondem — e a dinâmica de relação que estabelecem com o estado de coisas em que existe. Eles lançam um olhar cáustico sobre o mundo, no qual a relação das mulheres com seu corpo constitui uma metáfora da relação do ser humano com o seu espaço político. Interessa à autora a sociedade em conjunto aceitar que a mulher tem uma história paralela à dos homens, e que é preciso começar a escrever um capítulo novo, no qual a dramaturgia produzida por mulheres tenha um lugar no imaginário coletivo. Seu compromisso é com a inovação, a ruptura dos estereótipos e a análise do papel da mulher no teatro e na sociedade atuais. Assim, acredita num feminismo íntimo que permite lutar contra comportamentos adquiridos e tidos como naturais. De seus diálogos emergem falas originais, subversivas e perturbadoras que dizem não somente o feminino, mas o próprio humano. O que se depreende deste teatro é menos um feminismo militante e agressivo que a recon quista pelas mulheres de uma identidade e um espaço próprios. Suas peças atestam que existe sim uma dramaturgia feminina, definida pela especificidade de sua motivação e com uma força surpreendente para construir um espaço dramático próprio em função de sua problemática, expressa na complexidade das relações políticas, sociais e culturais existentes entre mulheres e homens. Não se pode esquecer que por suas atividades pedagógicas e sua paixão pelo ensino, junto à força de sua escrita, sempre ávida por explorar as margens do teatro tradicional, Marici Salomão é uma autora que também favorece a emergência de novos dramaturgos. Faz seu o lugar que habita, não simplesmente por haver nascido e, ou, por nele viver e tampouco por representá-lo, mas justamente por se atrever a dialogar crítica e publicamente com ele, tomando para isso o teatro como veículo de expressão. Uma mulher de teatro que escreve da cena e para a cena e, ao fazê-lo, ao mesmo tempo estrear, publicar e lecionar, conseguiu dar vida a um projeto tão atrativo como particular. É importante destacar a contribuição feminina e saber apreciá-la quando sua visão aparece. A expressão feminina também diz respeito ao universal e suas melhores expoentes transcendem as barreiras sexuais. Luís Cláudio Machado Fortuna Crítica BILHETE – Publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, no dia 24 de janeiro de 2003 Bilhete emociona e faz valer o texto dramático Peça de Marici Salomão define seu tom pela economia de recursos visuais e interpretativos Mariangela Alves de Lima É noite, o lugar é uma estação em um ponto qualquer de uma linha ferroviária e as persona-gens são duas mulheres de gerações diferentes em um encontro casual. Da mais moça, sabe-se que vem da cidade grande e está de passagem. Quanto à mulher velha, mais loquaz do que a sua interlocutora, está há três décadas na cidadezinha à beira da estação. Partindo dessa indeterminação temporal e espacial, a peça Bilhete, de Marici Salomão, inicia um movimento dramático de superposição das duas personagens. O diálogo, que de início se apoia no reconhecimento das personagens por meio da definição dos contrastes, conclui-se ao final como um jogo de interação. O velho e o novo, a ânsia de partir e o desejo de enraizar-se, o fio de esperança e a resignação são, dentro dessa concepção, aspectos conflitantes de um único ser, ou de uma única existência. Em vez de desprender-se uma da outra ou de se distinguir por meio de oposições crescentes, as figuras convergem ao final para um ponto fixo. A ideia de que na arena da psique individual há matéria suficiente para produzir a faísca dramática, faz parte da tradição da dramaturgia ocidental. Não é preciso opor o homem à sua circunstância para forjar conflitos. Basta romper uma fresta da psique para que se manifestem os impulsos contraditórios, as encarnações fantasmagóricas dos desejos, as vastas paisagens intuídas e sonhadas. É esse o campo que a peça de Marici Salomão procura explorar através da indeterminação do tempo, do espaço e das circunstâncias concretas. Todos os elementos de composição do texto são sutilmente despojados de verossimilhança: a luz é inconstante, a estação de trem tem sinais de ter sido desativada há muito tempo e mesmo a caracterização da mulher jovem, de chapéu e maleta, sugere a iconografia das viagens imaginárias. Somam-se a esses componentes as referências a temores vagos como a região selvagem no prolongamento da via férrea e as revoadas de insetos. Não há fatos, mas rumores, ilações, suspeitas que a mais velha semeia, tentando impedir a partida da outra. Mas é na caracterização das falas que se reconhece a simbiose das personagens. O modo de expressão não distingue gerações e a fala metropolitana se assemelha à fala interiorana. Ambas se aproximam pela sintaxe e pelo vocabulário, embora invoquem cosmogonias diversas. Nas reações da moça há frágeis tentativas de reduzir o misterioso e simbólico a uma dimensão cotidiana, enquanto sua interlocutora reveste de simbolismo as circunstâncias e a natureza. São, contudo, concepções de mundo que partem de um mesmo ponto, aparentemente da mesma consciência. A impressão final que resulta desse encontro bem articulado, econômico e sóbrio na expressão dos tumultos da vida interior é de controle. Alguma coisa é bem explicada, ou seja, o modo com as vozes interiores se articulam e, por fim, se harmonizam produzindo um resultado existencial. Uma vez que se trata de oposição binária, somam-se, com precisão matemática, todos os fatores mobilizados na feitura da peça. Há uma lógica teatral aplicada sobre o tumulto psíquico e a evidência desse artifício faz com que o texto se torne um enigma decifrável. A virtude ponderável da sobriedade garante o interesse da peça, mas talvez faça falta, para ressonância poética, a sugestão de um ponto de partida mais instável, em que, apesar do esforço da dramatização artística, permanecem em estado de fusão conteúdos imponderáveis. Somos, a bem da verdade, mais de 300, e algo dessa multiplicidade, escapando à rede da boa ordem dramatúrgica, pode funcionar como um elo de identificação com as figuras em cena. Sob a direção de Celso Frateschi, o espetáculo equilibra as intersecções entre a atmosfera onírica e o tom sóbrio e coloquial do confronto. O uso das luzes, o trato cenográfico, os figurinos e • o som são concebidos para sugerir a irrealidade do encontro, enquanto a postura das atrizes e • o tom suave do colóquio sugerem proximidade com o realismo. O realismo arranhado no início pela ênfase na decrepitude da Velha interpretada por Nádia de Lion) e na infantilidade da Moça, representada por Rennata Airoldi. Ao longo do espetáculo, esse exagero inicial se dissolve, mas é notável nas primeiras falas. Pode ser que a intenção seja a de criar uma similitude gradual entre as duas personagens para que, ao final, se aproximem por meio da coincidência de faixas etárias. De qualquer modo, a acentuação da idade avançada, feita com recursos exteriores, acaba produzindo um resultado farsesco. E é preciso considerar que a proposta do texto é centrar o conflito em uma mulher madura e não em uma jovenzinha com evidentes resquícios da infância na voz e nos gestos. Alguns acréscimos ao simbolismo, como a exposição de figuras feita pela mulher mais velha e um dramático pedaço de papel picotado e jogado ao vento são efeitos dispensáveis em um bom espetáculo que define o seu tom por meio da economia de recursos visuais e interpretativos e pela intenção de fazer valer o texto dramático. CRÍTICA MARIA QUITÉRIA – Originalmente publicada no Jornal da Tarde, SP Variedades, no dia 16 de setembro de 1997 Maria Quitéria, da História para o Palco Alberto Guzik A história do Brasil é uma ilustre ausente no teatro brasileiro. Contam-se nos dedos as tentativas de levar para o palco, de forma competente, episódios tirados dos livros ou da experiência real. É o caso da fascinante história da combatente baiana que inspirou Marici Salomão a escrever Maria Quitéria, em cartaz no Teatro Itália. Durante as guerras da Independência, Maria Quitéria, filha de agricultor baiano, disfarçou-se de homem para alistar-se no Exército. Tornou-se heroína. Como recompensa, não pediu muito. Quis ser apresentada ao imperador Pedro I. Foi um erro. Quitéria saiu da experiência humilhada. Entrou para a história não só como heroína, mas também como ótima alegoria das relações que nosso País mantém com seus cidadãos. O texto de Marici Salomão surpreende o espectador ao apresentar a personagem em sucessivos desdobramentos. A ordem cronológica é evitada. A peça vai construindo o perfil de Maria Quitéria por meio de flashes. Dessa forma, a personagem se torna humana, controversa, viva. O espetáculo foi dirigido por Fernando Peixoto, que imprimiu fluência e clareza ao conjunto. Se a direção de atores e as marcações são bem desenhadas, o mesmo não se pode dizer dos cenários e figurinos de Carlos Colabone. O dispositivo concebido pelo cenógrafo mostra-se pouco eficiente. E os figurinos não escapam do convencional. No elenco, Suia Legaspe vive Maria Quitéria com habilidade e ímpeto. Graça Berman, que faz Maria Graham, preceptora dos filhos do imperador, também tem atuação marcante. Já Alberto Amorim, que interpreta Pedro I, parece não ter tido confiança no tom caricatural que Marici Salomão imprimiu à personagem e reforçou a farsa. O resultado é forçado, pouco convincente. CRÍTICA MAU ALCÂNTARA (revistabacante.com. br, 2007) Virar a madrugada de um dia qualquer, no meio da semana, apenas bebendo e conversando, na maioria das vezes é uma das coisas mais gostosas de se fazer, curtindo a companhia dos amigos, sem se preocupar com o sono ou a ressaca que sentirá no dia seguinte. Isso quando existe o dia seguinte, e a madrugada insone tem seu fim. Não é exatamente o caso dos três personagens de Impostura, peça de Marici Salomão, dirigida por Fernanda D´Umbra. Em uma madrugada de quarta-feira, uma mulher chega a seu apartamento acompanhada de uma garota que acabou de conhecer. Ambas estão bêbadas e excitadas, e não parecem estar nem um pouco preocupadas com o marido/ namorado/ roommate de uma delas, um desagradável escritor fracassado e alcoolizado sentado no sofá com uma garrafa de uísque quase no fim. Então o casal alcoolizado (o escritor e sua roommate) começa um bombardeio de ofensas e farpas, provocações que vão crescendo e se tornando cada vez mais agressivas. Um jogando na cara do outro seus problemas, defeitos, frustrações e humilhações. Nem mesmo a visitante, que nada tem a ver com a relação dos dois, totalmente deslocada e sem a menor chance de reagir ou fugir, é poupada do furacão daquela relação que há muito deixara de ser saudável. E os três ficam ali a madrugada inteira, imersos em um turbilhão de rancor, álcool, desejo e cigarro (nada de amor, nada de bons sentimentos). Uma sujeira corruptora se alastra para todos os lados e corrói tudo o que encontra pela frente, em uma avalanche imunda que não é freada nem mesmo por uma grande fatalidade, naquela noite que parece que jamais terá fim. Um espetáculo curto, de dramaturgia minimalista, porém intensa, com uma direção bem conduzida, focada no texto e nas atuações, sem frescuras e firulas. A trilha sonora é bem escolhida apesar de passar um pouco da medida, e a maior ressalva está na iluminação, um tanto exagerada para uma montagem essencialmente contida, mas que acaba interferindo muito pouco no resultado final. Destaque para a atuação de Fernanda D´Umbra, que mais uma vez tem a plateia inteira em suas mãos com seu vozeirão e sua presença em cena, em uma das melhores atuações da mostra. Em resumo, uma peça tensa, suja e desagradável, que a plateia torce para que acabe logo, seja para acabar com tamanha angústia, seja também para aplaudir a um dos melhores espetáculos do projeto E se fez a Praça Roosevelt em 7 dias. Bilhete Ficha Técnica Texto – Marici Salomão Direção – Celso Frateschi Assistente de direção – Eliel Ferreira Cenário e figurinos – Sylvia Moreira Assistente de cenário e figurinos – Izabel G. Ferreira Música – Aline Meyer Iluminação – Eliel Ferreira Programação visual – Pedro Moreira Becker Fotografia – João Caldas Assessoria de imprensa – Nádia De Lion Produção RS Realização de Eventos Ltda. – ME Elenco Carolina Machado Nádia De Lion Bilhete Estação ferroviária de uma pequena cidade. Vê-se apenas um banco de madeira e um poste de luz tremulante. Entra mulher, cerca de 30 anos, bem vestida, mas com aparência cansada. À cabeça, um chapéu, com que se defende dos insetos. Porta um casaco comprido e uma maleta. Depois de limpar o banco, senta-se para aguardar o trem. Checa a hora que consta na passagem e guarda-a no bolso do casaco. Apesar da oscilação da luz, folheia seu livro – Cartas a Théo – e tenta concentrar-se na leitura. Sua figura contrasta de forma gritante com a inospitalidade local. Ergue os olhos, sobressaltada, quando a luz do poste ameaça apagar. MULHER (lendo, didaticamente. Depois repetindo.) – Esquecer-se de si, realizar grandes coisas, atingir a generosidade e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a existência de quase todos os indivíduos. (Surge uma mulher velha, vestida com roupas puídas e escuras. Aproxima-se de mulher, que em princípio não percebe sua presença.) VELHA – Posso me sentar um pouco? (Mulher observa-a) Aí, onde a senhora está. (Sentandose) Os outros estão ocupados, de cachorro ou titica de passarinho. Ai, ai, a velhice é como erva daninha, traiçoeira: primeiro um nozinho aqui, depois outro mais acima e vai subindo, subindo... Mas a senhora não sabe do que estou falando; na sua idade o sangue ainda é quente. (Pausa) Parte hoje, filha? MULHER – Sim, hoje mesmo. VELHA – De volta pra casa? MULHER – Não, ainda não. Infelizmente. VELHA – Por que infelizmente? MULHER – Por nada. VELHA – Não está a passeio? MULHER – Não senhora. VELHA – A trabalho? MULHER – Também não. VELHA – Então, vou adivinhar. Quer adivinhar alguma coisa sobre mim? MULHER – Não, obrigada. Meu trem vai chegar daqui a pouquinho. VELHA – E daqui a pouquinho é quando? MULHER – Já era para estar aqui. VELHA – Mas nossos trens não cumprem horário, são independentes. Chegam a hora que querem, vão a hora que querem. E dizem que isso é vida moderna. (Mulher busca olhar para o relógio de pulso) Não faça isso! MULHER (Estancando o gesto no ar) – Por que não? VELHA – Vou adivinhar que horas são, sem relógio. Só pelo prazer. Quer ver? (Concentra-se) Nove e meia. Acertei? (Mulher consulta o relógio) Acertei, não é? (Depois de assentir com a cabeça, mulher olha para a lua) Não, não foi pela posição da lua, porque ela está coberta. Foi o barulho das cigarras, a essa hora estão que nem loucas. Escuta! (Baixo) Escutou? (Mulher apenas esboça um sorriso educado) Mas deixa eu ver: se a senhora não está a trabalho nem a passeio e não vai voltar pra sua cidade, então vai continuar se embrenhando mato adentro. MULHER – É. Me embrenhando é uma boa expressão. (Pausa) Vou ver uma pessoa. VELHA – A senhora é missionária? MULHER – Não, só vou visitar uma amiga. VELHA – Só? Ela vale tão pouco assim? MULHER – Modo de dizer. VELHA – E ela mora longe? MULHER – Na próxima parada. VELHA – Uh, a próxima parada... Uma eterni dade. O trem leva horas até a próxima parada. Veja bem, aqui você tem o fim do mundo, mas lá na frente vai encontrar os precipícios. Cuidado! MULHER – Como assim, cuidado? VELHA – Faz tempo que ela está doente? MULHER – Quem? VELHA – Sua amiga. MULHER – Como sabe? VELHA (Rindo) – Para uma moça bonita deixar a cidade grande para escarafunchar nessas bar ranqueiras, só mesmo em caso de vida ou morte. MULHER – Não é um caso de vida ou morte. Ela é muito nova. VELHA – E daí? Gente nova vive morrendo, a torto e a direito. E o mundo esquece rapidinho, de velho ou jovem, tanto faz. O mundo só não se esquece das crianças quando morrem. Ou já se esquecem? MULHER – Eu não sei. Nunca pensei nisso. VELHA – Pois não é porque é sua amiga... Ô filha, nada de ilusões. Por aqui, doença quando vem é grave, remédio quando tem é pouco. Médico, então, não tem... E lá na frente vai ser um pouco pior, porque não tem nada, nada.... Além dessa sua amiga. (Faz gesto de desprezo com a mão, lembrando-se de nova coisa) E dizer que houve um tempo – juro para você – que as pessoas brigavam pra vir pra estas bandas. É, sim! Muita gente esperou que o governo cumprisse o prometido. MULHER – O prometido? VELHA – O progresso em troca do voto. MULHER – Se vê que o projeto não foi mesmo em frente. VELHA – Eu também deixei a cidade grande – assim como a senhora —, pensando que tinha chegado ao lugar mais precioso do mundo. Em cada terreno – e só tinha terreno – havia uma placa: futuras instalações do banco tal; início das obras do hospital municipal; aqui, obras de canalização do esgoto; lá, instalação dos poços artesianos. Eu gostava de ver a estrada de ferro crescendo naquela direção. A gente parecia estar vivendo num cenário. E era um cenário mesmo. Logo, tudo foi parando, sumindo, uma caixa de prego abandonada aqui, uma viga de ferro enferrujando lá, um dia vi os operários dando adeus desta estação. Não sobrou nada, só a gente trouxa que nunca sabe pra onde ir. MULHER – Uma cidade que nem nasceu. VELHA – Sem indústria nem comércio. Nada. Nada. MULHER – E a energia elétrica? Fica sempre assim, oscilando? VELHA – Sempre. Hoje até que você está com sorte. Ainda não apagou? MULHER – A luz? VELHA – Tem medo do escuro? MULHER – Num lugar que não conheço... (Pausa ligeira) Não, não tenho. VELHA – Não vou mentir. Às vezes apaga, às vezes não apaga. Apaga e não volta. Às vezes, volta. Às vezes, só no dia seguinte. É o que digo: cidades são como pessoas: algumas dão certo, outras não. MULHER – É uma pena. VELHA – Uma pena, uma pena, uma pena, mas não importa; importa ter um campo no coração e o coração no seu campo. MULHER – Bonito. VELHA – Obrigada. (Pausa) Sabe há quanto tempo eu moro aqui? MULHER – Nem imagino. VELHA – Trinta anos. Me lembro do dia que cheguei. Tinha o rosto quente de tantos planos. Vim com meu marido, sabe? Mas ele morreu cedo. Homem é mais fraco que mulher, não é? Por fora, a força, mas por dentro não suportam muito bem o desgosto. (Pausa)A senhora deve estar pensando que eu devia sair daqui, não é? MULHER – Eu não estava pensando nada. (Pausa) Mas quer dizer, a senhora nunca pensou em sair daqui? Conhecer outros lugares? VELHA – E pra quê? Tudo tão igual. E eu já conheço tudo, cada pedaço de terra, cada porquinho vindo à luz – são tão lindos —, não me escapa um batente de porta, uma cor de cabelo. Puf! Nada muda muito. (Pausa. Tom) Vou confessar uma coisa: eu mesma... Como a gente chama o trabalho de contar as pessoas de um lugar? MULHER – Recenseamento? VELHA – É. Eu mesma faço isso aqui. De casa em casa, pessoa a pessoa, todos os anos. Da ponta do meu lápis, não escapa um habitante. Faço um risquinho pra cada um. Depois vou contando. Levo três dias, entre a contagem e a recontagem. MULHER – Deve dar um trabalhão. VELHA – É pouca gente. MULHER – Mesmo assim. A senhora é paga pra fazer isso? VELHA – Que nada. MULHER – Mas devia. Se distrai, pelo menos? VELHA – Isso não. No começo até que sim, não tinha mesmo o que fazer por aqui. É, eu não tinha o que fazer, depois não tinha nem o que querer. Essas coisas acontecem. (Lentamente, olhando nos olhos de mulher) Um dia a gente tem um monte de sonhos, depois não tem mais nada. (Pausa curta) De repente, comecei a dar importância a tudo o que não tinha importância. Então pensei: recenseamento. Ninguém mesmo fazia isso por aqui. (Ri) Engordei uns vinte quilos. Parava num casebre, era bolo de fubá feito com leite de cabra; no outro, me enchia de queijo branco de Minas com goiabada. A vida parecia até boa só por se poder comer. Mas depois de uns anos tudo não passava de obrigação. Logo virou chateação. Hoje é só hábito. (Tom) E assombro também. MULHER – Assombro? VELHA – Ah, esquece. MULHER – Esquece o quê? VELHA – Eu não devia ter dito. MULHER – Não estou entendendo. VELHA – Não tem o que entender. Nem eu mesma entendo. MULHER – O que pode ser tão assombroso por aqui? Uma epidemia? Uma praga? VELHA (dramática) – Não, filha, não! MULHER – Puxa. VELHA – Pois eu vou contar. MULHER – Se quiser... VELHA – Mas que fique bem claro que nunca co mentei essa história com ninguém. Mesmo que um funcionário do governo se interesse por este fim de mundo um dia, eu não vou contar esse segredo por mim mesma, ouviu? Conte você, se quiser. MULHER – Eu? (Rindo) Por que eu? VELHA – Porque vou repartir esse segredo. Ouça, filha: (Com suspense) O número de habitantes não muda há trinta anos. MULHER – Sei. E...? VELHA – Isso não choca a senhora? MULHER – Por que chocaria? VELHA (Irônica) – É mesmo, a senhora não é galinha, não é? MULHER – Estou levando a sério. VELHA – Então pense: Uma cidade onde o núme ro de habitantes não muda. Não muda. MULHER – Mantém-se estável. VELHA – Estou dizendo. Não é horrível? MULHER – Ninguém nasce ou morre? VELHA – Pior que isso! Moça, estou dizendo que toda vez que nasce uma criança, um velho se vai. Cabongo! Pra sempre na espiral do tempo. (Pausa. Sentindo cada palavra do que diz agora) Ontem nasceu uma criança. Eu mesma ajudei no parto. E agora, alguma coisa vai acontecer... MULHER – A senhora quer dizer... VELHA – Que ainda hoje um velho... (Faz um gesto que entende por morte) Cabongo! MULHER – Cabongo? VELHA – Exatamente. MULHER – Isso é um absurdo. VELHA – Não acredita? MULHER – E o contrário não ocorre? Dos velhos morrerem antes das crianças, das crianças morrerem junto com os velhos, ah, sei lá? VELHA – Filha, é sempre o novo que empurra o velho. Você acha que o sol gosta de se pôr? Hem, acha? Não, não gosta. MULHER – Sim, mas espera aí! VELHA (Sem ligar para a interrupção) – Mas em 12 horas, coitado, ele fica velho e a lua, que é nova na primeira hora da noite, empurra o sol e, por justiça, vive. Mas depois é a vez da lua ficar velha e não querer ceder seu lugar... MULHER – Mas... VELHA – Mas o sol... MULHER – Isso é ciência! VELHA – ... já refeito no leite novo das nuvens, volta a nascer, com vigor, empurrando aquela que já é a velha lua. MULHER – No caso dos seres humanos... VELHA – É a mesma coisa. MULHER – São duas coisas totalmente diferentes. Uma coisa é a poesia, isso que a senhora diz a respeito do sol e da lua. E que é só muito bonito. Mas no caso dos seres humanos logicamente que a ciência não se daria ao trabalho... A ciência não prova nada, nada! VELHA (Rindo) – A ciência! Uh, a ciência não sabe... Não de tudo, filha. Estou falando de uma outra coisa. MULHER – Lendas!? Misticismo, crendice popular. VELHA (Com gravidade) – Já vi que a senhora ainda não sabe das coisas. JOVEM – Isso tudo é coincidência. VELHA – Coincidência nada! (Pausa) MULHER – E a senhora conta direito todos os anos? Não esquece de ninguém? VELHA – Mas é claro! Como é que ia fazer mal se é a única coisa que eu faço por aqui? Estou velha de corpo, não de cuca! Sou capaz de pôr no papel todos os palavrões que gosto de dizer quando fico irritada. MULHER – Me desculpe, não quero irritar a senhora. (Incomodada, olha comprido para a plataforma) É, está bem atrasado. VELHA – Filha, me ouça. MULHER (Sem vontade) – Sim? VELHA – O que estou dizendo só tem uma explicação: é coisa do diabo. MULHER (Rindo) – Diabo? Fique tranquila, diabo não existe. VELHA – Como, não existe? O diabo odeia as imperfeições! Então aqui, onde nem Deus nem os anjos põem os pés, pra dividir força, o diabo reina, o diabo como gosta e pode. (Luz trêmula. Ambas se assustam, cada uma à sua maneira) É tocar no assunto e ele tenta castigar a gente. (Voz alta, para disfarçar a iminência, por ela sentida, do perigo) Mas me conte do seu marido! MULHER – Não sou casada. VELHA (Confidencialmente) – Vamos mudar de assunto. Qualquer coisa. (Alto) Me fale dessa sua amiga. MULHER – O que a senhora quer saber? VELHA – Como é que ela foi parar naquele lugar? MULHER – Como assim? VELHA – Não vivia bem na cidade grande? MULHER – Cansou da vida que levava. VELHA – Mas por quê? MULHER – Porque cansou. Essas coisas acontecem, não acontecem? Um dia se quer tudo, outro dia não se quer mais nada. Tinha, sim, tudo o que queria: um bom emprego, namorado, bons móveis num apartamento pequeno, mas próprio... E um dia desapareceu. VELHA – Como assim, desapareceu? MULHER – Basta um só pensamento diferente um dia, e você abandona tudo. O emprego, a família, os amigos – até o gato de estimação, de repente, você dá pra uma vizinha. Fiquei anos sem ter notícias dela. Mas há três dias recebi uma carta. Não era uma carta, mas um bilhete, dizendo onde foi morar e que tinha ficado doente. (Pausa) Não sei porque se lembrou de mim e pediu minha ajuda. Eu não podia recusar essa ajuda. VELHA – E qual a doença dela? Difteria, febre amarela, hanseníase? MULHER – Hepatite. VELHA – Aaaah, é grave. MULHER – Não fale assim. VELHA – Mas é muito grave! MULHER – Ela vai sair dessa. VELHA – Vai, sim, desta pra melhor. MULHER – A senhora está sendo indelicada. VELHA – Realista! Pra viver aqui a gente tem que ser realista. Você sabe, essa hora, já está morta. MULHER – É minha amiga! VELHA – Os amigos morrem. MULHER (Tocada) – Não dou o direito de a se nhora falar assim. VELHA – Filha, só estou tirando suas ilusões, não suas verdades. Só quando ficar velhinha vai entender. MULHER – Não preciso ficar velhinha para en- tender o que eu quiser entender. VELHA – Me desculpe. Eu não quero irritar a senhora. (Pausa) Mas só preste atenção numa coisa, conselho bom é aquele que é seguido: pense bem antes de partir. MULHER – Eu já estou partindo. VELHA – Isto é o paraíso perto da barranca onde está sua amiga. Lá não tem luz elétrica nem rede de esgoto. Água, só da lagoa. (Zombeteira) Ah, já sei, a senhora quer viver que nem índio, não é? Inseto à noite anda em revoada, é horrível! MULHER – A senhora já foi lá? Como é que sabe, se nunca saiu daqui? VELHA – Ouvi dizer. Gente que passou por esta estrada de ferro, horrorizada, de volta pra qualquer lugar do mundo, menos pra lá. Ninguém quer ir pra lá. (Começa a rir) MULHER – O que foi agora? Alguma piada? VELHA – Lembrei da senhora ontem. MULHER – De mim? Como? A senhora me viu ontem? VELHA – Vênus já estava no horizonte, quando vi a senhora passando. MULHER – Sei. VELHA – Passando é jeito de dizer. Correndo. MULHER – Correndo? VELHA – Pela rua principal. Carregava essa mesma mala. MULHER – Ah, claro, eu procurava uma pousada. VELHA (Rindo) – Dava gosto ver. Corria de alguém? MULHER – Corria do vento. VELHA – É verdade. Aqui, quando o sol se põe, sobe um lençol de poeira vermelha, capaz de cobrir meio homem. O vento aqui é impetuoso. MULHER – Parece que por aqui é tudo muito impetuoso. VELHA – É um vento muito macho. Engravida os campos, pastos, jardins... Mas a senhora não precisava ter medo, gente ele não engravida assim tão fácil. MULHER – Não tive medo. Só me protegi. VELHA (Olhar comprido para o casaco) – Ia bem protegida nesse casaco bonito. Bonito. (Pausa curta) Mas sabe o que mais me impressionou? Hein? (Mulher não reage) Foi ver a senhora se batendo, no rosto, no cabelo, nos braços. Parecia que tinha o demônio no corpo. MULHER – Eu só tentava afastar os insetos. VELHA – Não dá para afastar insetos quando são muitos. MULHER – Mas que coisa mais interessante: a senhora estava me espionando? VELHA – Estava sim. Aqui a diversão é se pendurar na janela. E sabe o que foi mais divertido? Foi ouvir você gritar daquele jeito. Até agora eu me pergunto: por que ela gritou daquele jeito? MULHER – Eu gritei? VELHA – Um grito que parecia ter saído da boca de uma montanha. MULHER – Acho que senti alguma coisa no meu cabelo. Tenho pavor de insetos voadores. (Baixo) Baratas. VELHA (Apontando a linha de ferro) – E mesmo assim vai seguir viagem? Onde sua amiga mora é o paraíso delas. MULHER – Senhora, esqueça minha amiga. VELHA – Não estou preocupada com ela; eu me preocupo com você. MULHER – Não precisa! (Tom) Eu agradeço, mas não precisa mesmo. Eu sei muito bem me virar sozinha! (Olhando para o relógio) Ah, se eu pudesse ir voando. VELHA – Está levando repelente? (Mulher irritase com velha que continua se divertindo) Vai precisar. Os insetos, eles fazem os bailes dos sábados à noite. MULHER (Levantando-se) – Bem, foi um prazer, mas vou andar um pouco por aí. Está frio. VELHA – Não faça isso. MULHER – O quê? VELHA – Não ande por aí. MULHER – Por que não ande por aí? VELHA – É perigoso. MULHER – Não mais do que onde moro. VELHA – Ah, é sim; a luz pode apagar e é quando os demônios costumam sair... MULHER – A senhora está tentando me assustar, mas eu não tenho medo do escuro. VELHA – Ah, tá bom. (Pausa. Velha espreguiçase) Bom, eu só queria descansar um pouquinho e agora que me sinto melhor, vou voltar pra minha casa. MULHER – Boa noite. VELHA – Boa noite. (Velha levanta-se e começa a caminhar. Mulher volta a sentar-se no banco, aliviada de não ter mais a presença da velha. Mas velha volta. Olhando para o livro por trás) Gosta de ler, não é? (Mulher assusta-se. Velha rindo) Se importa de dizer que livro é esse? MULHER – A senhora não conhece. São as cartas... VELHA (Subitamente magoada) – Não conheço? Por que não conheço? Eu não devo conhecer esse livro? MULHER – Não é isso. VELHA – A senhora me acha miserável pra conhecer esse livro? MULHER – Claro que não quis dizer isso. VELHA – Então velha, burra ou feia? MULHER (Dura) – Por favor, senhora! VELHA – Eu não compreendo porque está fazendo isso comigo. MULHER – Fazendo o quê, minha senhora? Não fiz nada. VELHA – Porque está me tratando com tanto desprezo? MULHER – A senhora tem coragem de dizer isso? Eu não trato ninguém com desprezo. VELHA – Eu não posso conhecer livros. MULHER – Não quis dizer isso. VELHA – O que quis dizer? Por que conheço porcos e admiro Vênus não posso ser uma boa leitora de livros? MULHER – Se coloque no meu lugar. Eu não vi por aqui nenhuma livraria, nenhuma biblioteca. Nem banca de jornal eu vi. VELHA – Não viu porque corria feito louca. MULHER – Tem razão, eu estava morrendo de medo de sujar minha roupa e, mais ainda, de que uma barata enroscasse no meu cabelo ou (Certa ironia) entrasse dentro da minha boca. VELHA – Seu pavor não diminui minha mágoa. MULHER – Mas já me expliquei, estou pedindo desculpas. VELHA – Da boca pra fora. MULHER – Não é... VELHA (Saindo entristecida) – Esta cidade é como uma prisão... Uma cela... Vou voltar pra minha cela. MULHER (Subitamente, levanta-se) – Espera! (Velha para. Oferecendo o livro para ela) Olha, fique com ele. VELHA (Voltando-se) – Para mim? MULHER – É, fique com ele. A senhora vai gostar. VELHA – Há anos não ganho um presente. Mas não posso aceitar. MULHER – Por que não? (Pausa curta) Eu compro outro, fique tranquila. VELHA (Lendo o título, com a ajuda de mulher) – Cartas a Theo, de Van Gogh. Ah, Van Gogh, já ouvi falar. MULHER – Ele morou numa pequena cidade, assim como esta. VELHA – Vou ler, vou ler. No fim ele foge? MULHER – Como assim, foge? VELHA – Ou ele morre? MULHER (Divertida) – Há-há! A senhora gosta de pensar nisso. VELHA – Ele pelo menos começa a se conhecer melhor nesse lugar? Assim como sua amiga? MULHER – Não terminei a leitura. E minha amiga, espero que sim, não é? Vamos saber, vamos saber... (Última olhadela para o seu ex-livro) Bem, vou andar um pouco pela plataforma, para esquentar... VELHA – Que Deus a proteja, mesmo ele não gostando de andar por estas bandas. Torço para que seu trem chegue logo. MULHER – Está bem atrasado, é uma pena. VELHA – Fique tranquila, eles acabam chegando. MULHER – Eu espero! Não há outra alternativa... senão esperar. VELHA – Boa noite! MULHER (Sem olhar para a velha, carregando seus pertences) – Boa noite! (Depois de um ou dois passos, luz apaga. Mulher grita) VELHA – Não se assuste. Foi o vento. MULHER – Mais essa. Que breu. VELHA – Escureceu a cidade. MULHER – Não me diga. MULHER – Calma, filha, é sempre assim. Eu disse. Me dê a mão. MULHER – Não precisa. VELHA – Está muito escuro. MULHER – Eu sei que está escuro. VELHA – E você está com medo. MULHER – Já disse que não estou. Eu não es tou com medo. (Silêncio profundo) Senhora! Senhora! VELHA – Estou aqui. MULHER – Haaa! VELHA – Se assustou? MULHER – Não, é que sua voz tão perto de mim. VELHA – Não estou perto. É que no escuro a gente se confunde. Alto, baixo, perto, longe, dá no mesmo. MULHER – Demora pra voltar? VELHA – Agora sim, estou pertinho da senhora, me dê a mão. Isso. Vem. Vamos sentar, enquanto ela não vem. Não há um dia em que a luz não apague. Quando isso acontece, ficamos olhando as estrelas. Ai, como é bom. Vênus, por exemplo, olhe só para Vênus! MULHER – Eu não quero olhar para Vênus, obrigada. VELHA – Vênus não é uma estrela, mas... MULHER (Subitamente) – Cadê minha maleta? VELHA – ... um planeta tão cheio de luz. MULHER – Não estou encontrando. VELHA – Estou falando de Vênus e você preocupada com uma maletinha? MULHER – Não consigo achar. VELHA – Claro, está escuro. MULHER – Cadê minha maleta? VELHA – Está comigo! MULHER – Me dê! VELHA – Estou tomando conta dela e da senhora. MULHER – Não precisa! Onde é que está? VELHA – Não sou digna de segurar sua maleta? MULHER – Não é isso. Onde é que está? VELHA – Está aqui. MULHER (Seca) – Obrigada. (Pausa) VELHA – Você tem muitos planos para a sua vida? MULHER – Torço para que a luz volte logo e o meu trem chegue correndo. Está tudo tão escuro que não vejo minha própria mão. VELHA – E o que é que você vê? (Pausa) (Volta a luz) MULHER – Ah, que alívio. VELHA – Eu não disse que voltava? MULHER – Que alívio. VELHA – Está chorando? MULHER – (Enxugando os olhos) Não. VELHA – Tome. (Estende um lencinho de papel tirado do bolso do casaco de mulher, que vestiu no escuro. Mulher não aceita o lenço, mas percebe que o casaco não está com ela. Sem olhar para a velha.) MULHER – Agora isso. VELHA – O quê? MULHER – O meu casaco. VELHA – Ah, senti frio. Está frio, não está? MULHER (Sentindo-se fraca, levanta-se. Tenta ir até a plataforma. Titubeia) – Não, não está. VELHA – Eu ia avisar, mas você... tão nervosa. MULHER – Eu não... VELHA (Grandiloquente) – Mas eu vou devolver. Estou vendo que não gostou... Um casaco bonito desses. Eu também não ia querer emprestar. MULHER – Não precisa. VELHA – Não está certo. MULHER – Fique com ele. VELHA – Como? MULHER – Fique com ele. VELHA (Emocionada) – Filha, eu nunca ganhei um presente tão bonito antes. MULHER – Não me chame de filha. (Mulher caminha com dificuldade para frente, com mala na mão) VELHA – Onde você vai? MULHER (Aproximando-se da plataforma) – A lugar nenhum. VELHA – Cuidado, é perigoso. MULHER – Perigoso? (Ri) É perigoso. VELHA – Vamos embora daqui. (Velha pega mala de mulher) MULHER – O quê? VELHA – Vamos para casa. MULHER (Rindo, nervosa) – Casa? Que casa? VELHA – A minha casa. MULHER – Não, obrigada. VELHA – E vai passar a noite aqui? A luz pode apagar de novo. MULHER – Estou muito bem aqui. VELHA – Ah, que pena. Onde moro é simples, mas é quente, bem quente. E depois, o trem não vem mais. MULHER – Claro que vem. (Imitando a velha) Acabam sempre chegando. Mas só na hora que querem. Vão na hora que querem. Não cumprem horário. VELHA – Eu levo sua mala. MULHER – Não! VELHA – Eu protejo você. MULHER – Não preciso da proteção de ninguém. VELHA – Todo mundo precisa. MULHER – Está enganada! A senhora não co nhece todo mundo, então não pode dizer. Aliás, não deveria dizer mais nada! VELHA (Carinhosa) – Por fora, parece tão forte, mas por dentro... uma criança... uma criancinha igualzinha à que veio ao mundo hoje. MULHER – De novo essa história? (Silêncio) – Então é por isso que quer que eu fique? A senhora acredita que, se eu ficar, a regra dos números muda? VELHA – Não. MULHER – Se uma pessoa a mais ficar na cidade onde a regra dos números não muda, (Falando como a velha) não muda!, a senhora não morre. Não morre! VELHA – Eu não quero morrer. MULHER – Uma grande bobagem. E acho melhor a senhora ir embora, porque está esfriando. Muito obrigada pela companhia. VELHA – Quer que eu me vá? MULHER – Adeus. VELHA – Quer que eu saia da minha própria cidade? MULHER – Deste pedacinho, quero sim. VELHA (Subitamente abraça mulher) – Não posso deixar você. MULHER (Desesperada) – Me larga! VELHA – Eu quero cuidar de você. MULHER – Me larga! VELHA – Eu posso fazer tudo. MULHER – Não pode. VELHA – Por que não posso? MULHER – Porque já está morta! (Nesse momento, vê profundamente a velha, com seu livro, seu casaco, sua mala na mão – talvez seu chapéu, também.) VELHA (Vai até o fundo dos olhos de mulher) – Eu não estou morta, eu vejo os meus olhos jovens quando olho para os seus. MULHER (Titubeante, cobre os olhos com as mãos) – Não, não vê. Não vê, não sabe, não escuta, porque está morta. Morta, morta, morta, morta, morta... VELHA – Esquecer-se de si, realizar grandes coisas... Esquecer-se de si, realizar grandes coisas... Esquecer-se de si... MULHER – Esquecer-se, realizar, atingir a generosidade, ultrapassar a vulgaridade na qual... VELHA E MULHER – se arrasta a existência de quase todos os indivíduos. VELHA – É bonito. (Barulho do trem que se aproxima ao longe.) VELHA – Vem, minha filha. MULHER (De repente, saindo do torpor. Nervosa) – Ah, até que enfim, o trem, o trem, o meu trem! Olha, eu vou indo. Espero que fique bem. Adeus. Adeus. (Acompanha com olhos agitados o trem) Mas está parando na outra plataforma! Estou na plataforma errada. (Acena com a mão) Espera! Como faço para chegar lá? Eu não posso perder...! Como faço para chegar lá? (Trem se põe novamente em movimento) Espere! Espereeee! (Estanca a mão no ar, abafando um pequeno grito. Trem parte. Mulher fica prostrada, de frente para o público. Atrás, a velha, imóvel) FIM Impostura Ficha Técnica A peça participou do Projeto E Se Fez a Praça Roosevelt em 7 Dias, do Satyros, que estreou em 6 de abril de 2007, no Satyros 1, com as montagens de textos de sete autores convidados. Texto – Marici Salomão Direção – Fernanda D´Umbra Elenco – Mário Bortolotto, Patrícia Leonardelli e Fernanda D´Umbra Assistência de direção – Samya Ennes Iluminação – Celso Melez Trilha sonora – Fernanda D´Umbra Operação técnica – Alessandro Bartel (Robocop) Impostura Personagens Ele Ela A outra CENA I Observação: os personagens têm cerca de trinta e poucos anos. Importante demarcar que em vários momentos falas dos personagens devem se sobrepor, se misturar umas às outras; outras vezes deverão ser repetidas, envelhecidas por trejeitos, envelopadas por espasmos, sussurros, murmúrios, resmungos, tal como na vida real. Época atual. Uma velha sala gasta e suja. Há poucos móveis: um sofá, duas cadeiras, uma vitrola sobre uma mesinha e muitas coisas espalhadas pelo chão: livros, roupas, maços de cigarros amassados, garrafas vazias, algumas quebradas. Um quadro em que nada se reconhece pende solitário na parede do fundo. É madrugada. Elas dançam sensualmente, alternando passos graciosos a descoordenados. Além de estarem meio bêbadas, a outra não dança tão bem. Afundado num roto sofá, ele observa-as. Os olhos semicerrados denunciam o ciúme, por vezes a raiva, mas também um desejo de seduzir, de estar no meio delas. Ele também está embriagado e fuma. Vez ou outra anota algo numa cadernetinha que tirou do bolso. A certa altura, a outra escorrega e quase cai no chão. Ambas riem. Largam-se, mas continuam movimentando-se, observando-se com interesse. A outra procura uma bebida. Encontra um resto numa garrafa. Oferece a ela, que bebe. Depois ela muda a faixa do disco. Ele está agora totalmente imóvel, olhos fechados. A OUTRA (A ela) – Afinal, quem é ele? ELA – Ele quem? A OUTRA – O cara. ELA – Que cara? A OUTRA – Que cara? ELA – Não tem nenhum cara. A OUTRA – Então aquilo é uma abstração? ELA – É uma natureza-morta. A OUTRA (Rindo) – De que tipo exatamente? ELA – Do tipo não penduraria mais na minha parede. (Riem. Agora é ela quem tenta encontrar uma bebida pela casa. Sai de cena. A outra vai até ele.) A OUTRA – Oi, quem é você? (Silêncio) Qual o seu nome? (Silêncio) O que você é dela? Vocês são... (Silêncio) Tá, eu preciso ir, ainda vou trabalhar. Eu escrevo, sabe? (Ela volta com uma garrafa de vodka, um finzinho. Bebe, oferece à outra, que já não aceita, mas não a ele.) ELA – Conversaram? A OUTRA – Ele não fala? ELA – Sobre o quê? A OUTRA (Rindo) – Eu sei lá. ELA – Não conversaram? A OUTRA – Não abriu a boca. ELA – É um idiota. A OUTRA – Idiotas falam muito mais que a boca. ELA – Tem os que não servem nem pra isso. A OUTRA – É seu namorado? ELA (Sem ouvi-la) – Podem até falar, mas não dizem nada. A OUTRA – Então eu já vou indo. ELA – Você tenta espremer um sentido e nada. A OUTRA – A minha bolsa. ELA – Então, no fim das contas o que vale é o prazer. A OUTRA (Apontando sofá) – Deixei aqui. ELA – Concorda comigo? A OUTRA – Sobre? ELA – Bebe? A OUTRA – Já parei. ELA – Fica aqui. A OUTRA – O banheiro? ELE (A ela) – Sou eu o idiota? A OUTRA – Finalmente, ele falou. ELA – Não temos banheiro. A OUTRA – Como? Toda casa tem um. ELA – Ah sim, se fosse uma casa. ELE – Precisamos de um pouco de bebida. ELA – Precisamos de um pouco de vergonha na cara. (Pausa) ELE (A outra) – Mas então você escreve. A OUTRA – Eu tento. ELE – E sobre o que você tenta? A OUTRA – Eu tento escrever sobre mim. ELE – Tem algum livro publicado? A OUTRA – Não. ELE – Um romance? A OUTRA – Não. ELE – Uma peça de teatro? A OUTRA – Não. ELE – Poemas? A OUTRA – Não. ELE – Mas você escreve. A OUTRA – Eu já disse que tento. ELA – Ela já disse, ela tenta escrever sobre ela. Sobre as coisas que acontecem com ela. E você devia fazer o mesmo, escrever, escrever. Mas a parte doente não deixa, não é? E se a parte doente não deixa, a boa não se mexe. ELE – Diagnóstico perfeito. Obrigado. ELA – De nada. A OUTRA – Eu já vou indo. ELE – O banheiro é lá. A OUTRA – Onde? ELE – Nos fundos. A OUTRA – Onde são os fundos? ELE – Há-há! Você devia saber mais de geografia. ELA – Ele quis dizer: geometria. ELE – Geografia! Eu quis dizer geografia! ELA – Cuidado, ela é artista plástica e escritora. ELE – E eu falo do ponto de vista do planeta. OUTRA – Afinal, onde é? ELA – E ele se diz um escritor, mas não conhece as palavras. ELE – Ali. ELA – Não, lá! A OUTRA – Certo. Não vou morrer por isso. ELE – Ela insiste no assunto. A OUTRA – Que assunto? ELE – Um charuto? A OUTRA – Charuto? ELE – Não. (Repetindo) Eu disse: Um-cha-ruto? A OUTRA – Não fumo charuto. ELE – Eu também não. A OUTRA – Por que pediu um? ELE – Eu não pedi. Falei, não ordenei. A OUTRA – Ordenar. Não parece muito militar? ELA – As palavras, as palavras. ELE – Eu militarizo as palavras? A OUTRA – Há palavras militarizadas. ELE – Prefere só as civis? A OUTRA – As descivilizadas. ELE – Com ou sem sentido? A OUTRA – No sentido de sentido-volver? (Rindo. Ironicamente) Quando chegar em casa, eu vou tentar descrevê-lo. ELE – Faça-me o favor. ELA – Ele não é interessantemente desinteressante? ELE – E vocês, já se tornaram amantes ou ainda...? ELA – Somos seres éticos, meu bem. Estamos esperando você morrer. A outra ri. A OUTRA – Isso foi muito engraçado. (Tempo) A OUTRA – Pode ser a bebida. ELA – Pode ser. (Tempo) ELE (A outra) – Mas então você conhece os homens. ELA – Não responda. A OUTRA – Por que não? (A ele) Sim. ELE – E as mulheres, suponho. ELA (A outra) – Não vale a pena, não, não, não. A OUTRA – Qual o problema? (A ele) Suponha que sim. ELA – Ele não chega nunca em lugar nenhum. ELE – E prefere as mulheres aos homens. ELA – Não vale a pena, não vale a pena. A OUTRA – Ideologicamente, sim. ELE (Rindo) – Por que, ideologicamente? A OUTRA (Subitamente séria) – Porque elas não riem quando digo isso. A outra procura sua bolsa, em atitude de partir mesmo. Ela começa a aplaudir o nada, de lento para forte e rápido, com empenho, rindo. ELE – O que foi agora? ELA – Se todo mundo parasse de beber, o mundo ia ficar bem sem graça, não ia? A OUTRA – Alguém viu a minha bolsa? (Ela ri ainda mais) A OUTRA – Isso é engraçado? ELA – Claro que é. A OUTRA – Procurar uma bolsa? ELA – Patético. ELE – Não é a coisa em si. O patético está em confrontar uma coisa com outra. Isso é que dá tom à realidade. A OUTRA – Ah, muito interessante. ELA – Diagnóstico perfeito. ELE – Obrigado. ELA – De nada. (Subitamente) Então por que não escreve sobre isso? Ideias sobre o patético! Até que é bom. (Explodindo) Que merda! Escreva alguma coisa se não vou enlouquecer de vez! ELE – Mas eu estou escrevendo. ELA (Gritando) – Não me diga. (Toca-a.) A OUTRA – O que foi? ELA – Vamos embora daqui. A OUTRA – Está chorando? ELA – Preciso de ar. A OUTRA – Vamos sair por aí. ELA – Me leva pra longe. A OUTRA – Pra onde? ELA – Pro México. A OUTRA – O quê? ELA – Não ouviu? A OUTRA – Por que o México? ELA – Porque eu não conheço o México. Você conhece o México? Só dá o México. México aqui, México ali, todo mundo só quer o México. A OUTRA – Não é verdade. ELA – O que é verdade? A OUTRA – Você está legal? ELA – Não, eu estou doente. A OUTRA – E o que tem no México? ELA – Mexicanos, eu espero. (Sentindo-se subi tamente derrotada) É ele quem me deixa assim, esse monstro. Eu não quero ir ao México, o que eu faria no México? O México não me interessa. Eu odeio o México! A OUTRA – Mas você não conhece o México! ELA (Exageradamente irritada) – E tenho raiva de quem conhece! (Pausa. A outra a aconchega.) A OUTRA – Eu entendo você. Os homens descontrolam a gente. (Ele ri) ELA (Acende um cigarro. A outra) – Você ainda não me ouviu. A gente se conheceu ontem, não foi ontem? Dia de estreia e muito trabalho, gente bebendo, gente se espremendo, dei duro naquele balcão, você viu, quase quebrei uma garrafa, e a gente se olhou, não se olhou? A gente encaixou pupila com pupila, esse pequeno segredo comprado pelo olhar, mas eu não te contei, no caminho, atravessando a praça, agora há pouco, eu ia te contar, porque eu esperava, quer dizer, ele prometeu... espera, do que estou falando? Claro, do manuscrito que ele tinha prometido entregar hoje, entendeu? – hoje, quarta, hoje não é quarta? Três meses – três meses foi o prazo pra escrever um simples manuscrito que fosse um bom manuscrito – nem precisava ser uma grande ideia vinda de um grande escritor • não, uma simples ideia ficcional – uma simples descrição. Um descritor que descrevesse alguma coisa já estava bom. Nem isso: um inscritor que inscrevesse algo sobre o mundo – sobre a casa ou sobre mim em qualquer merda de papel que pudesse traduzir algo de sua própria essência • mas enquanto isso eu – enquanto isso – você sabe – você me viu dando duro naquele bar – olha os meus calos e bolhas nos pés – veja – olhe com compaixão os meus calos e bolhas – foi o que eu ganhei pra sustentá-lo sobre as quatro patas e dar toda a força que ele precisava pra se tornar um escritor – e olha só – tudo o que nasceu foram bolhas e calos – e um babaca no lugar de um artista. ELE – Você não entende nada. ELA – Entender? Eu preciso de ar. A OUTRA – É melhor você ficar calma. ELA – Me deixa calma saber que você escreve. A OUTRA – É, eu tento. ELA – E sobre o que você tenta? A OUTRA – Eu já disse, tento escrever sobre mim, sobre as coisas que acontecem comigo. ELA – Tem algum livro publicado? A OUTRA – Não. ELA – Um romance? A OUTRA – Não. ELA – Mas você escreve. A OUTRA – Eu já disse que tento! (Pausa) Mas depois jogo tudo fora. (Ele ri) ELA – Joga fora? A OUTRA – Isso não me torna menos escritora. ELE – Nem mais. ELA – Mais ou menos. Porque você quer ser lida, não quer? Você não tem uma missão? A OUTRA – Minha missão é viver. ELA – Mas isso é lindo. É maravilhoso. (A ele) Você devia fazer o mesmo. ELE – Jogar tudo fora? ELA – Escrever! Ela tira um cigarro do maço e fuma com volúpia. ELA – Está muito quente aqui. A OUTRA – Você não devia fumar. ELE (A ela) – Você pensa que é fácil como acen der um cigarro? Acha que a inspiração brota do nada? ELA – Brota de onde? ELE – Acha que é sentar a bunda e escrever? A OUTRA – Hemingway escrevia em pé. ELE – Estou falando de escritores. Não sei nem quero saber o que você considera um escritor. Para ser um escritor não adianta ter olhos normais. Com olhos normais, você é no máximo um repórter. Na minha opinião, Hemingway estava no limite entre ser um escritor e um repórter, com a diferença que ele tinha vocação para ir um pouco além dos fatos. (Subitamente a ela) Você se lembra de Rada Mansour? ELA – O quê? ELE – Rada Mansour. ELA – Rada Mansour? ELE – Não se lembra? ELA – Não sei de nenhum Rada Mansour. ELE – Uma promessa como escritor. Abandonou faculdade, a casa da família e se trancou numa quitinete. Ele só queria escrever. Escrever. Escrever. ELA – Sei. E deu tudo errado? ELE – Claro que não. Ele escrevia tanto que qua-se já não tinha um corpo. Ele estava acima do corpo, será que você consegue entender? Ele se envolveu totalmente com a literatura e escreveu três livros. Três livros muito bons. Ele não sentia o corpo, mas tinha o corpo dos livros que escreveu. E foram publicados. Nada mal, não é? Crítica, prêmios, artigos assinados em jornal, essa coisa e tal – essa coisa e tal. Um dinheirinho – pra ir vivendo. Mas aí deu um clique na cabeça dele, um negócio esquisito, porque de repente o corpo começou a falar mais do que tudo no mundo e ele não queria mais nada daquilo, ele precisava viver. E sabe o que ele fez? ELA (Sem muito interesse) – Eu sei lá. ELE – Sabe o que ele fez? ELA – Não. ELE – Parou. Fuuuu. Soltou o fio da pipa que estava quase perto das nuvens – largou. Então comprou um terreninho numa cidade do interior e foi plantar couve. ELA – Couve? ELE (Rindo) – Flores. Dedicou-se às flores. Todo tipo que podia vingar naquele tipo de solo, de acordo com as estações do ano. E tudo isso por quê? Isso é que me pergunto sempre: por quê? ELA – Ele gostava de flores. ELE – Não. Tudo o que Rada Mansour fez foi de sistir. Mas por quê? (Pausa) Porque ele percebeu que a literatura não fazia a menor diferença. ELA – Que diferença? ELE – Você não entendeu nada. ELA – Como continua? Ele ganhou muito dinhei ro com as flores? ELE – Vai rindo. ELA – É uma pergunta muito séria. ELE – Sabe o que um verme disse a outro? ELA – Nem imagino. ELE (Careta) – Nem eu. ELA – Que horrível. Que monstro. Você é horrível. Ele ri. Acende um cigarro. ELE – Que atriz disse: eu não procuro peças para mim, mas peças que precisam ser montadas? A OUTRA – O que significa? ELE – Como assim, o que significa? Exatamente o que eu disse que ela disse. A OUTRA – É um assunto que me interessa. Você podia ser um pouco mais generoso com assuntos que interessam ao outro. ELE – É verdade, generosidade não é meu forte. (Frívolo) Incrível você não se lembrar de Rada Mansour. ELA – E você lembra da Janice Joplin? ELE – Janice o quê? ELA – Joplin. ELE – A atriz? ELA – Não, a atriz é June Joplin. Janice Joplin é a irmã dela. ELE (Pouco interessado, por isso mesmo enfático) – Ah, e o que tem Janice Joplin? ELA – Ela é médica. ELE – Sei. Que especialidade? ELA – Psiquiatria. Cuida de gente doente, com dificuldade de lidar com o mundo real. ELE – Muito bom. (Silêncio) A OUTRA – Engraçado, toda a vez que vejo ou escuto uma ambulância, eu penso que um dia eu é que... (Aponta para si mesma) Eu tenho esses pensamentos sinistros, às vezes eu me sinto um gato magro e sarnento, eu sinto uma pena de mim. Mas tudo isso é besteira. Que adianta essa percepção esquizofrênica de ser outro que sofre se você já é você mesmo? Mas eu preciso ir agora. Passa das três? ELA – Tantas palavras. (Subitamente, para não parecer uma crítica a ela) Eu me refiro a ele, você viu todo esse discurso? Radan não sei que lá, Mansour não sei das quantas? E pra quê? Ele não move uma palha. ELE – Afundamos em sordidez físico-espiritual. ELA (Irônica) – O que é agora? Sordidez o quê? ELE – Físico-espiritual. ELA – Física e espiritual? ELE – Físico-espiritual. A OUTRA – Físico-espiritual. ELE – Físico-espiritual. A OUTRA – Físico-espiritual. ELA (A outra) – Então vá. A OUTRA – O quê? ELA – Antes que seja tarde. A OUTRA – Agora quer que eu vá? ELA – Imediatamente. Senão vai ficar como ele, um quadrúpede idiota. A OUTRA – Eu não vou deixar você assim. ELE – Ela não vai morrer. ELA – Eu já estou morta. Ela puxa outro cigarro do maço, acende e traga com a mesma volúpia. A OUTRA – Eu disse: você não devia... ELA – Parar de expirar e inspirar? Mostra os pés agora descalços. ELA – Olhe, bolhas e calos e bolhas e calos e bolhas e calos. A OUTRA – Não, não vejo nada disso. ELA – É horrível. Olhe como é horrível. A OUTRA – Não. Não é. Não tem nada disso. ELE – Você precisa olhar bem de perto. Isso, bem de perto. Mais perto. Olhe só o que minha cabeça doente fez nos pés perfeitos dela. Olha só. Não são lindos os pés dela? Você gosta de pés? Eu gosto. Eu perco a cabeça por um par de pés, eu morreria pelos pés dela, eu ainda morro por eles. Eu morro pelos pés e pelas mãos e pelos peitos e pelo rosto e pelo pescoço e pela bunda e pelas pernas dela. Você reparou nas pernas dela? A outra sorri constrangida. ELE – Todos reparam – e todas. Você devia conhecer bem as pernas dela. Por que não mostra as pernas a ela? ELA (A ele) – Como são as minhas pernas? ELE – Não tenho palavras para descrever. Ela parte para cima dele com ódio, batendo nele. ELA – Como não, se você é um escritor? Você sabe como me magoar, inconscientemente ou não, você sabe; você nunca está completo, nunca para mim! Pode estar ao meu lado, mas não comigo, não adianta. (Insinuando-se à outra) Se eu mostrar minhas pernas a você, você descreve as minhas pernas? A OUTRA – Eu tento. ELE – Cuidado: tudo o que ela quer é ser eternizada. A OUTRA – Eu nunca descrevi um par de pernas. ELA – Depois de tudo o que eu fiz por você? ELE – Tudo o quê? Posso saber o que é esse tudo? A OUTRA – Acho que estamos cruzando linha. ELA – Eu vou dizer o que é tudo. ELE – A imundície deste lugar, por exemplo? ELA – Ah! Cala a boca. Sou eu que saio pra traba lhar e sustentar você sobre as quatro... (Desiste) ELE – Não, você me paga ou diz que paga pra eu escrever sobre você. O problema é que o mundo é muito, é infinitamente maior... (Desiste) A OUTRA – Eu vou embora. ELA – Não, você vai ficar. A OUTRA – Você não disse agora há pouco: Vá!? ELA – Eu preciso de você. A OUTRA – Pra quê? ELE – O jeito é encher a cara e escavar nossos lençóis imundos. (Pausa) Acha que dessa maneira eu posso ser um escritor? ELA – Quantos não foram? ELE – Em que época? A OUTRA – Lençóis imundos podem ser só uma desculpa. ELA – Desculpa, querida, isso é entre eu e ele. A OUTRA – Achei que queria ir embora comigo. ELA – Quero, mas não deixando roupa suja de baixo do tapete. (A outra) Ok, já chega! É só o tempo de arrumar minha mala. ELE – Vocês têm muito que fazer. ELA – Você é um grosseiro. ELE – E você uma bêbada. ELA – O quê? ELE – Bêbada. A OUTRA – Vamos embora daqui. ELA – Repita se for homem. ELE – O clichê dos clichês. ELA – Seu gigolô de quinta. ELE – O quê? A OUTRA (A ela) – Não adianta correr atrás do rabo. ELA (A outra) – O que você disse? A OUTRA – Nada de agressivo, eu espero. ELA – Você me chamou de rato? A OUTRA – Claro que não. ELA – O que quer dizer correr atrás... A OUTRA – Ratos não correm atrás do rabo. ELA – Ah, não? A OUTRA – Não. ELA – Não mesmo? A OUTRA – Eu não sei, vamos embora. ELA – Eu odeio você. ELE – Cuidado agora. A OUTRA – Não fiz nada! Ela começa a rodar em torno de si mesma. Começa a rir, continua rodando até ficar tonta e cair no chão. Começa a chorar. A outra, horrorizada com a imprevisibilidade dela, senta-se e respira com dificuldade. Ele levanta ela, senta-a ao lado de a outra. Ele também se senta. Os três sentados, exaustos, no velho sofá. ELE (Depois de um brutal esforço. A ela) – Escrever não é fácil como girar sobre si mesmo. Mas não adianta, tudo o que eu disser serve como uma condenação. E por que nos deixamos condenar? Com que objetivo? Eu não sei, mas sinto que por trás de cada fase horrível se esconde um futuro promissor. (Pausa) E você me enchendo o saco com essa história de eternidade. Eu não posso eternizar os seus pés, porque eles me escapam. O que não escapa para um escritor é exatamente aquilo que escapa. Então só você não percebe o quanto estou trabalhando, dia a dia, incansavelmente. ELA – E pra escrever qualquer merda precisa de anos de ócio dedicado? ELE – Às vezes mais. ELA – Isso é desculpa. ELE – Você não entende. Não adianta, por que forçar, não é? Vai até ela e beija sua face. ELA (Gravemente) – A Roosevelt inteira floresce – menos você. Silêncio, imobilidade. Tempo. Tempo. Tempo para respirar, olhar para o nada, coçar os olhos. Subitamente a outra reage, como se o tufão tivesse passado causando muita destruição ou como se tivesse acordado de um terrível pesadelo. A OUTRA (A ela) – Que tal amanhã? Nos encontramos no bar – conversamos. Que dia é amanhã? (Interrompendo-se) Que diferença faz? Eu preciso ir, ainda tenho muita coisa pra fazer. ELA (Voz estrangulada) – Não vá. Daqui a pouco vamos jogar baralho. Ele ri. A OUTRA (Levantando-se) – Não, obrigada. ELA – Senta aí agora. A OUTRA – Você não manda em mim. ELA – Idem. Não, eu peço. A OUTRA – Não peça. ELA – Faço o que eu quero. A OUTRA – Não com minha vida. ELA – Com a sua e a de todos. A OUTRA – Na minha mando eu. ELA – O quê? A OUTRA – O que o quê? Ela vai até a outra e a beija longamente na boca. A outra se entrega depois de alguma resistência. O coração dele bate forte, ele sente ciúme e ódio, mas fica imóvel, olhando. Depois ele estala os dedos como se chamasse um garçom. Elas se desvencilham. ELE – Um hambúrguer duplo com bastante ketchup ia bem. Há um tempo até que outro momento se estabeleça. Ele vai até o toca-disco, coloca uma música infernal. Depois senta-se calmamente tirando o seu bloco de anotação. Fica apenas olhando para o bloco. Ela tira rapidamente a agulha do disco. Ninguém olha para ninguém. (Tempo) ELA – Eu faço para você. ELE – Não faça nada para mim. ELA – Não tem hambúrguer mesmo. A OUTRA – Eu posso sair e comprar. ELE – Não, não pode. A OUTRA – Eu posso ir. ELE – Você não pode ir. A OUTRA – Achei que estava com fome. ELE – Sim, mas daqui você não sai. A OUTRA – Ah, é? Estou presa? ELE – Enquanto continuar me inspirando. É que nós combinamos, você sabe, deve ter percebido. A OUTRA – Não sei. Combinaram o quê? ELA (A ele) – Por que não cala sua boca? ELE – Porque idiotas falam mais que a boca. A OUTRA – Combinaram o quê? ELA – Não combinamos nada. ELE – Você sabe, você também escreve. Às vezes a gente paralisa; para sair da crise, nada como forjar novas situações. ELA – Mentiroso. É mentira dele. ELE – A grande impostura. Você finge que não sabe que eu finjo que não sei que você finge. A OUTRA (A ele) – Eu não acredito em você. ELA (A outra) – Ele é o impostor. (A ele, como se não fosse capaz de dizer isso olhando para a outra) Eu gosto dela de verdade. A OUTRA – Mas o que tem se fosse tudo mentira? ELA – Não diga isso. A OUTRA – Por quê? Acha que estamos aqui para brincar de quê? De amor? Eu vou indo. ELE – Você precisa ir ao banheiro. A OUTRA – Já ouvi a piada. ELE – É aquela porta – confie em mim. A OUTRA – Eu já nem sei se quero mijar ou... (Segura a ânsia de vômito) ELA – Corra, querida. Quer que eu vá com você? A OUTRA – Não! E não me chame de querida. A outra corre em direção ao banheiro. Ele olha para ela, tristemente. Ela desvia o olhar, até que, como que atraída, volta seu olhar para ele. Silêncio e imobilidade. Luz apaga. CENA II Luz acende. Ela e ele estão sentados, mas passou um tempo, que pode ser alguns dias. A mesma sala, os mesmos velhos e gastos móveis, dispostos na mesma estrutura. Talvez haja um pouco mais de sujeira ou uma luz mais fraca. O quadro não está mais na parede. Pode estar num canto da sala, no chão. Uma diferença fundamental: tem um corpo coberto por um lençol branco, alvíssimo, no sofá. A cor do lençol é gritante contraponto à sujeira local. O rosto do corpo coberto não aparece. Ela acende um cigarro e fuma em silêncio. Ele a observa. Ela observa o corpo. Acaricia o lençol. Volta a se sentar. ELE – Às vezes eu... Às vezes eu me sinto dividido. Só que eu não estou dividido. Então a questão é: por que eu sinto que estou dividido se eu não estou dividido? ELA – Shhhh. Não fale, pelo amor de Deus, cale a boca. ELE – Só estou tentando dizer algo. ELA – Se você está dividido ou fodido, quem se importa, quem quer saber? ELE – Você não? ELA – O quê? ELE – Não se interessa? ELA – De jeito nenhum, são coisas confidenciais. ELE – Então tá. ELA – Ótimo. ELE – Puta. ELA – Shhhhhhh. (Pausa) ELA – O que é óbvio? ELE – Eu não disse nada. ELA – Quem foi então? ELE – Quem foi o quê? ELA – Eu ouvi. ELE – Um de seus fantasmas? ELA – Não converso com eles. ELE – Conversa com quem então? ELA – Eu NÃO-converso-com-eles-em-voz-alta. ELE – Não grite. ELA – Eu não gritei. Eu falei alto. ELE – Há coisas que não se falam. ELA – O que, por exemplo? ELE – Não sei. ELA – Tá. ELE – Será que tem café? ELA – Vai ver no banheiro. Eles não se mexem. Parece que já se esqueceram do dito. Ou parecem morrer de preguiça ou padecer – na sequência à fala – de uma imensa falta de vontade. Ela olha para o corpo coberto e se levanta novamente para acariciá-lo por sobre o lençol alguns segundos. Como se acariciasse a cabeça de um cachorro. ELA – O que você disse agora há pouco? ELE – Eu não disse nada agora há pouco. ELA – Você me chamou... chamou de quê? ELE – Não sei. (Pausa) ELA (Rindo) – Ah, sim, claro. ELE – Puta. ELA – Puta. ELE – Gosta? ELA – Gosto. ELE – Que bom. ELA – É gentil. ELE – Que bom. ELA – Carinhoso. ELE – Claro que é. ELA – Que bom. Ela vai até ele e dá-lhe um tabefe na cara. Ele mal se defendeu. Agora ele coloca a mão na face. Ela volta a se sentar como se não tivesse feito nada demais. ELE – Eu senti. ELA – Você não sente. ELE – Eu não sinto? Quando eu sinto muito eu não estou sentindo? ELA – Ah, por favor, eu não quero saber das bobagens que você fala. ELE (Ironicamente) – Eu não sinto. ELA – Não sente. Não sente nada. ELE – Eu sinto tudo. ELA – Ah é? Então, quer sentir de novo? ELE – Eu quero sentir muito. ELA – Então sinta muito. Ele vai até ela. ELA – Vai me bater, é? ELE – Não, vou te dar um beijo. Ela fica em dúvida. Mais em dúvida, ainda. Depois relaxa um pouco, deixa os lábios mais à vontade. Ele se abaixa até ela e morde seus lábios depois de um rápido beijo. ELA – Monstro! Ela passa as mãos nos lábios como se alisasse a pele de um animal abatido. ELA – Seu monstro! Eu não sou um hambúrguer. Como é que pessoas nascem com a sina de monstros? O pior é que não se regeneram nunca. (Ela tira um cigarro do maço sobre a mesinha) Eu nem devia oferecer. ELE – Você gostaria mais é de me queimar. ELA – Eu não sou uma incendiária. Eu não sou mais uma incendiária. Eu já fui uma, quando havia um sentido. ELE – Sentido? ELA – É. ELE – Sentido-volver? (Mostrando que quer um cigarro) Um. ELA – Não seja mesquinho com as palavras. (Tempo) É, havia um. ELE – Um cigarro. ELA – Quer um? ELE – Só um. ELA – Claro que é só um. Ela acende um cigarro para ele. Ele não vai bus-car. Ela fuma um e outro, um em cada mão. Ele e ela parecem estar muito longe. ELE (Com certa pompa) – Descobri os segredos do mar meditando sobre a gota de orvalho. ELA – O que é isso? ELE – Não é meu. ELA (Irônica) – Claro que não. De quem é? ELE – Um poeta árabe. ELA – O que um árabe tem a ver com essa história? ELE – Que história? ELA – Você não acha impossível descobrir tudo? ELE – Como assim? Do que você está falando? ELA – Um poeta não vale nada. ELE – E deveria valer quanto? ELA – Meu deus! Quantas perguntas. Pergun tas, perguntas, perguntas. O quê? O quê? Todo mundo pergunta tanto. Por que todo mundo pergunta tanto? Sabe por que todo mundo vive perguntando? Sabe ou não sabe? ELE – Só se for você. Eu não estou perguntando nada. ELA – Porque todo mundo já tem uma resposta preparada. ELE – Você está delirando. ELA – Exibicionismo. E onde você acha que a gente chega com isso? Não me venha com uma respostinha nojenta. Quem está fazendo o que por quem? Quem está olhando para quem? Não, ao invés de ver, estender a mão a quem..., assim, como quem pega um cigarro, só formulação, formulação de perguntas, perguntas, perguntas, para o si mesmo responder. ELE – Que si mesmo? Que si mesmo é esse? ELA – Não interessa. ELE – Ah, que ótimo! Ele desvia o olhar para o corpo coberto. ELA – Não! Você não deve olhar para ela. Você odeia olhar para ela. E depois fica tudo para mim. A sina de cuidar de tudo. Não olha para ela, não! ELE – É que às vezes eu não me lembro. ELA – Você fica procurando um sentido. ELE – Não, não. (Tempo curto) É, pode ser. (Tempo curto) Não, não o sentido: o encadeamento. Ela ri como se ouvisse essa palavra pela primeira vez na vida e fosse uma palavra muito engraçada. ELA – O encadeamento. ELE – A lógica. ELA (Divertindo-se ela mesma com a palavra) – Encadeamento. (Subitamente) Você já percebeu que quando não tem mais jeito não tem mais jeito mesmo? ELE – Obrigado. ELA – De nada. (Pausa) ELA – Eu já te dei o encadeamento milhões de vezes. ELE – Às vezes eu esqueço a ordem. ELA (Rindo sarcástica) – A ordem, ele quer a ordem. (Ruminando) A ordem. Eu não acredito que ele quer de novo a ordem. (Subitamente)E para quê? Que você faz com ela? (Didaticamente/Austeramente) Banheiro! Volta! Retorno! ELE – Sangue. ELA – Espere. (Novamente, didática/austera) Banheiro! Retorno! (Melhor que volta) ELE (Tentando decorar de novo) – Banheiro retorno. ELA – Banheiro! Retorno! Sangue! Bolsa! ELE – Bolsa! ELA – Bolsa! ELE – Bolsa! ELA – Espere. (Didática/austera) Bolsa! Discurso! ELE – Discurso? ELA – Cale a boca! (Didática/austera) Discurso! Meia-volta, volver! Cigarro! Ele rindo, sarcástico. ELE – Meia-volta, volver, só da sua cabeça. ELA (Didática/austera) – Vá embora, não vá embora! Ele meneia a cabeça. ELE – Nada disso. Nada disso! Ele começa a gritar. ELE – Banheiro! Retorno! Sangue! Discurso! Cigarro! Cigarro! Porta! ELA (Lembrando-se) – Ah, porta! ELE – Porta! ELA – Porta! Prosseguem gritando porta! Um parece querer gritar mais que o outro. Disputam no grito até se cansarem, fisicamente. ELA – Cala a boca! ELE – Cala a boca você! ELA – Eu-não-me-calarei-nunca! Ele levanta a mão para bater nela, ela segura o punho dele. A outra mão dele segura o punho dela com força. Ela reage. Ele olha para o punho dela, usando de força até ela ceder. ELE – Você tem um punho interessante. ELA – Um punho, um punho: todos iguais. ELE – Não, não são. Posso descrever seu punho. ELA – Quem se interessa por um punho? ELE – Eu me interesso pelo seu punho. ELA – Você é mesmo monstruoso. ELE – Eu sou. Ela acende um cigarro. Ele senta-se. ELA (Depois de um tempo) – Eu queria ir embora para bem longe. Mas eu não sei para onde. Você entende? ELE – Entendo, claro. Eu também queria que você fosse embora para bem longe. ELA – É? ELE – Bem longe. ELA – Seria bom a gente se levantar. ELE – Caminhar um pouco. ELA – Isso é bom, caminhar. ELE – Por aí. ELA – É. Andar, caminhar, suar. Andar-caminharsuar. (Tentando encadear) Espera. (Tempo curto) Le-van-tar-ca-mi-nhar-su-ar. Isso. Levantarcaminhar-suar! Levantar-caminhar-suar. Porque andar e caminhar dá no mesmo. ELE (Meio canastra. No tom dela) – Ver o sol nascendo na praça. (Tempo curto) A aliteração é boa, não é? ELA – É péssima. ELE – Você não tem ouvido musical. ELA – Pra quê? Pra ouvir o que você diz? Ele se levanta. ELE – Você não precisa ouvir o que eu digo. Enquanto ela responde, ele tira e acende um cigarro do maço sobre a mesa. ELA – Ah, obrigada. ELE – De nada. Ele se espreguiça. ELA – O que é, vai caminhar? ELE (Com o cigarro em riste, como uma arma) – Não, eu vou te queimar. ELA (Enfrentando) – Vem! Frêmito de movimento dele na direção dela. Luz apaga. Fim da cena. CENA III A outra, que havia ido ao banheiro, volta à cena, sangrando. Olhos alterados, roupas e cabelos em desalinho. Eles estão sentados como ao final da cena I. Localizador do tempo: o quadro está de volta ao lugar, como na primeira cena atestando retorno à parte I. A OUTRA – Que foi, nunca viram? A outra vai atrás de algo, resolutamente. ELA – Olha só para você. A OUTRA – Não quero olhar para mim. ELA – Você está sangrando. A OUTRA – É ketchup. Vai de quatro ao chão. ELA – Vai desmaiar. (Vai até a outra. Tenta levantá-la. A ele) Me ajuda! ELE – A escritora é sua. ELA – Monstro! A OUTRA (Encontra algo) – Ahhhhh. (Puxa de debaixo do sofá sua bolsa) Eu sabia. (Levanta-se com alguma dificuldade. Sangra ainda mais. A ela) Não me toque! Não chegue perto. (A eles. Irônica) Por favor, sintam pena de vocês, não de mim. Se pelo menos tivessem a coragem de cair. (Muda tom) Mas vocês são maravilhosos, eu vivi a madrugada mais deliciosa da minha vida, mas... (Entre cantando e falando) Vamos blindar os olhos, enquanto o seu lobo não vem... Eu preciso ir embora. ELA – Não, não vá. A OUTRA (Passando a mão pela testa) – É sangue ou merda? Eu bati com ela na privada. ELA – Ah, que merda. ELE – Põe merda nisso. ELA – Não tem a menor graça. A OUTRA – A saída, onde... É lá. ELA – Você não pode sair assim, estragada. A OUTRA (Amarga) – Estragada. Mas não estou estragada, eu estou ótima. – (A outra começa a cantar, enquanto caminha em direção à saída. Está um tanto cambaleante. Não muito.) ELA (Muito sinceramente, desesperada até) – Fique comigo! Eu não suporto passar a madrugada com ele. (A ele) Você não vai fazer nada? Diga que é mentira, que nós não combinamos nada. Diga que o impostor é você! É você quem atropela cachorros na estrada e foge em seguida. ELE – Eu não dirijo. ELA (Tomando fôlego) – MAN-DE-E-LA-FI-CAR! ELE (A outra) – Espera! A outra para de cantar. Estanca no lugar. Talvez aceitasse ficar, pelo pedido sincero dela ou porque está mal mesmo. Vira-se para ele. ELA (Esperançosa) – Você não pode sair nesse estado. A OUTRA (A ele) – O que é? ELE (Tempo) – Me vê um cigarro. O meu acabou. (Tempo). ELA – Monstro! Monstro, monstro. (Continua xingando) ELE (Enquanto a outra sorri amarga) – O que é, quer dizer alguma coisa? A OUTRA (Tempo) – Não. Não vale a pena. Volta-se para a porta de saída, mas lembra dos cigarros. Coloca a mão no bolso e deixa cair um maço, bem a seus pés. Recomeça a cantar, baixinho. A personagem ela chora porque não consegue sair do lugar; sabe que quer ir com a outra, mas não consegue desfixar do lugar ou dele. A outra estende a mão para girar uma maçaneta imaginária. Para de cantar. Meio segundo de congelamento. Desmaia. Luz apaga. FIM Maria Quitéria Ficha Técnica Texto – Marici Salomão Consultoria – Iztván Jancó e Fernando Novais Direção-geral – Fernando Peixoto Assistência de direção – Ângelo Brandini Cenografia e figurinos – Carlos Colabone Iluminação – Simone Donatelli Trilha sonora – Tunica Adereços – Luis Rossi Cenotécnica – Jorge Ferreira Silva Costureira – Maria José de Castro Fotografias – Alexandre Diniz Administração da peça – Sonia Botture Bilheteria – Cotinha Assessoria de imprensa – Fato Paulista (Nanete Neves) Cadastramento de público – Eduardo e Eugênia Matina Administração do teatro – Roberto Mars Júnior Produção executiva – Suia Legaspe Produção e administração-geral – Graça Berman Realização – Cia. Letras em Cena da Cooperativa Paulista de Teatro Maria Quitéria Prólogo Som de batuque contagia atores em cena, que rodam como numa incorporação do candomblé. Um ator é Dom Pedro I, outro um carteiro. Ambos ficam suspensos sobre outros atores, como se estivessem sobre cavalos. É a rememoração do quadro do grito do ipiranga. ATOR – Sete de setembro de 1822! CARTEIRO – Majestade! D. PEDRO – Quem és? CARTEIRO – Um fiel mensageiro de Vossa Alteza Real. Trago despachos de Lisboa. D. PEDRO – Antes fossem de macumba. Seriam menos perigosos que as forças ocultas do alémmar. (Ao carteiro) Lê! CARTEIRO – Sou cheio de boa vontade, mas não sei ler, não senhor. ATOR (Lê) – Pedro, volta imediatamente, a fim de completares tua educação com viagens pela Europa. Estás destituído da Regência... D. PEDRO (Toma a carta para si. Continuando) – Estás destituído da Regência do Reino Unido a Portugal e Algarves. Com a Constituição, o Brasil volta a ser Colônia de Portugal. ATOR – Segundo depoimentos de várias testemunhas, depois de ler os despachos humilhantes, (Reações de D. Pedro) Dom Pedro pareceu comover-se; em seguida afetou calma, seguida de profunda angústia. Depois, enchendo de ar os pulmões, levantou a espada, entusiasmado, gritando: D. PEDRO – Independência ou Mort... ATOR (Interrompendo) – Espera aí! D. PEDRO – Eu, por acaso, errei o texto? ATOR – Eu só quero lembrar que a Proclamação da Independência não se fez só do grito de um português. Brasileiros e portugueses guerrearam nove meses antes e nove meses depois do grito de Dom Pedro. ATOR – Os primeiros choques começam em janeiro de 1822. Lisboa pretendia reforçar sua posição em Salvador, na época a maior cidade do Brasil. Luta-se na Praça da Piedade, na Mouraria e nas Mercês. Dessas primeiras lutas, o Brasil lembraria para sempre a morte de sóror Joana Angélica de Jesus. ATOR – Era noite em Salvador. Os marinheiros portugueses, enraivecidos e bêbados, derrubam o grande portão do convento da Lapa. Querem encontrar brasileiros escondidos na abadia. SÓROR – Para trás, bárbaros! Respeitai a casa do Senhor! Esta passagem está guardada por meu peito e não passareis senão sobre o cadáver de uma mulher. ATOR – Houve um só instante de silêncio. ATOR – Logo a baioneta atravessa-lhe o peito. ATOR – E passam por cima do cadáver dela. ATOR – 20 de fevereiro de 1822. ATOR – A tragédia contagia o espírito patriótico dos brasileiros. Em Cachoeira, a resistência continua: ATOR (Inflamado) – Porque queremos um governo central no Rio de Janeiro, e nosso exército e nossa própria marinha! E queremos um tribunal superior de Justiça e uma universidade digna! Queremos a garantia da liberdade de comércio e a tolerância religiosa aos cidadãos brasileiros! (Tem início som de tambor, clima de guerra. Tocado pelo tambor-mor soledade) Patriotas, sobre nossas mesas, não mais o pão e o vinho da Europa, mas a farinha de mandioca e o aguardente nacional! Aclamemos Dom Pedro Regente Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil! D. PEDRO – Independência ou Morte! ATOR – E, com esse grito, Dom Pedro libertaria oficialmente o Brasil. ATOR – Que entre Dom Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, o novo imperador do Brasil! ATOR – Julho de 1823! (Atores varrem a cena, deixando Dom Pedro e conselheiro) CENA 1 Julho de 1823. Palácio imperial de são cristóvão, rio de janeiro. Num aposento real estão dom pedro e seu conselheiro. D. PEDRO – Repete, repete, até meu coração acreditar! CONSELH. – É verdade, a guerra acabou, finalmente! Os seis mil soldados do comandante português Madeira de Melo embarcaram na madrugada de dois de julho, de volta a Portugal. Pelas ruas e ladeiras, o povo agita bandeiras verdes e amarelas e grita o nome de Vossa Alteza Real. Até os negros, contagiados pela ideia de liberdade, esganiçam a voz, invocando Dom Pedro I! D. PEDRO – Gritam o meu nome? CONSELH. – Dom Pedro I, rei do Brasil! D. PEDRO – Povo generoso. Acata a liberdade concedida, aclama um rei português. CONSELH. – Um rei português, mas de alma brasileiríssima. D. PEDRO – Isto lá é verdade. Esta terra deu-me as mais lindas paisagens e formas que a natureza pode conceder a um homem. E José Bonifácio já sabe? CONSELH. – Acaba de saber. Contudo, pondera. D. PEDRO – Mas o Zé pondera demais. CONSELH. – Sabeis que o ministro nunca quis romper laços com a Metrópole. D. PEDRO – Eu também tentei me manter fiel ao meu pai. Bem me disse ele, antes de deixar o país: Pedro, se o Brasil se separar, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros. Talvez ele não esperasse que fosse eu a separar o Brasil de Portugal; mas talvez ele também não espere que eu possa tornar este país tão unido e livre como os Estados Unidos, lá da América do Norte. Já se pensa na festa da vitória? CONSELH. – Sim, majestade. O campo de Santana vai brilhar com as bandeiras verdes e amarelas. D. PEDRO – Eu quero um desfile das tropas baianas, com as presenças de lorde Cochrane e do comandante Lima e Silva. CONSELH. – Sim, majestade, e ministros, senadores, deputados, e, claro, o povo, estarão presentes ao campo de Santana. Mas, Majestade, há um assunto do qual necessito falar-vos. D. PEDRO – Pois, fala. CONSELH. – Trata-se de um combatente que quer dar-vos a notícia pessoalmente. Recebi carta do comandante Lima e Silva, pedindo este favor especial. D. PEDRO – Que bobagem, a notícia da vitória pessoalmente tu já me deste. Mas de quem se trata? CONSELH. – De um soldado. Um pouco diferente dos outros. Não se parece bem com um soldado, vós me compreendeis? D. PEDRO – Não. Com o que se parece? Com uma mula, com um jegue? CONSELH. – Parece-se... com uma mulher. Quer dizer, é uma mulher. Uma combatente. D. PEDRO – Uma combatente? Não! Do sexo feminino? CONSELH. – Exatamente, majestade. D. PEDRO – Mas isto não é possível. Na guerra, só os homens. CONSELH. – Pois esta é a questão. Ela se meteu em roupas masculinas e lutou como tal. Dizem que mostrou mais valentia que mil soldados juntos. D. PEDRO – Valha-me Deus. Um perigo à solta, uma ameaça aos homens. CONSELH. – Todo ato de coragem é um perigo, majestade, com vossa permissão. Pois a pátria saiu ganhando com os serviços dela. D. PEDRO – O que levou esta tresloucada a agir assim? CONSELH. – Diz o comandante Lima e Silva que foi a admiração por vossa pessoa. Por vosso ato de coragem lá no dia 7 de setembro. D. PEDRO – Custa-me acreditar. Em que posição ela lutou? CONSELH. – No batalhão de caçadores Voluntários do Príncipe Regente, a brigada dos periquitos, por causa da gola e dos punhos verdes. D. PEDRO – E permaneceu nesta condição até o fim da guerra? CONSELH. – Na condição de periquito? D. PEDRO – Na condição de homem. CONSELH. – Não, Alteza. Depois de algum tempo descobriram que era mulher; mas pela valentia demonstrada, deixaram-na ficar. Foi até elevada ao posto de cadete, ganhando farda e espada. Quando as tropas vitoriosas entraram em Salvador, ela vinha à frente de todos. O povo aplaudia e gritava seu nome. Aqui no Rio de Janeiro, já se comenta os atos de bravura da tal moça. D. PEDRO – E de onde saiu esse colosso? CONSELH. – Bem, com vossa permissão, da barriga da mãe dela. D. PEDRO – Falo sério. CONSELH. – De um lugarejozinho do Recôncavo Baiano. São José das Itapororocas, próximo a Cachoeira, onde se concentraram as forças brasileiras. D. PEDRO – E é feminina ou um tanto assim? (Faz pose masculina) CONSELH. – Isso não sei, Alteza. D. PEDRO – E qual o nome dela? (Surge, em outro plano, Maria Quitéria. Conversa com Maria Graham, a preceptora inglesa, que faz anotações em seu diário) QUITÉRIA – Maria Quitéria de Jesus. A senhora se incomoda d’eu acender um charuto? É costume meu depois das refeição. As pessoa acha estranho, porque mulher é proibida de fumar. Proibida, hoje. Mas eu vivo no amanhã. (Sorri) D. PEDRO – É um caso delicadíssimo. Se a recebo pessoalmente, o povo me achará por demais condescendente com uma mulher; se não a recebo, passo por déspota. O que achas, meu conselheiro? CONSELH. – Com vossa permissão, misturai as duas coisas para que não bem se perceba nem uma nem outra. D. PEDRO – Bonito. Agora, traduz. CONSELH. – Podeis tê-la como hóspede no Paço Imperial, mas só vê-la na festa da vitória, quando devereis condecorá-la, pois o povo gostará da atitude. Mas não permitais que seja ela a darvos pessoalmente a notícia do fim da guerra. Os nobres, os políticos e os jornalistas, com certeza, fariam pesadas críticas, desfavorecendo o início do período monárquico. Para efeito de boa repercussão, que seja um homem a anunciar o fim da guerra. D. PEDRO – Perfeito. Que seja Cochrane. E que a tal heroína não apareça mais do que o necessário, nem menos do que o ideal. E quando é que ela chega? CONSELH. – Se ela vier a bordo do Leal Português, no próximo dia 24. D.PEDRO – Coloque Maria Graham para dar-lhe as boas-vindas e acompanhá-la no tempo em que permanecer no Paço. Quero que a soldada baiana seja muito bem recebida. E que durma na melhor cama do Palácio. CONSELH. – Mas a melhor cama é a vossa, Majestade. D. PEDRO (Rindo) – Que durma comigo, algum problema? CONSELH. (Condescendente) – Não, majestade. (Cena pode fechar com som de navio) Nenhum. CENA 2 Presente. Maria Quitéria e Maria Graham, a primeira fardada, segurando seu charuto; a segunda, divertidamente ensina Maria Quitéria a curvar-se perante o imperador. É uma inglesa, da idade de Quitéria, cerca de trinta e poucos anos. Tem sotaque inglês. Estão num aposento do palácio real. GRAHAM – Então dobre o joelho direito, assim, não tanto, dona Maria Quitéria. Assim a senhora vai se desequilibrar. Sem exagero. Muito naturalmente. Look at me! (Graham ajoelha-se discretamente) Agora, a senhora. Cuidado, o charuto vai queimar sua roupa. Give me it, give me it.(Segura o charuto de Quitéria) Novamente, com a suavidade de uma bailarina. Oh, (Rindo) melhorou. QUITÉRIA – A senhora está rindo de mim? GRAHAM – No. É que a primeira vez é realmente difícil. Bem, depois vem o beija-mão. A senhora segura levemente a mão direita do imperador – pegue na minha mão -, ai, (Quitéria segura em sua mão) assim não, assim a senhora vai quebrar a mão dele. (Quitéria segura desajeitadamente a mão de Graham e dá um leve beijo) Isto. Agora, a senhora diz alguma coisa ao imperador. Vamos. QUITÉRIA – Dizer o quê? Dom Pedro... GRAHAM (Cortando) – Majestade. QUITÉRIA – Majestade Dom Pedro. GRAHAM – Só Majestade. QUITÉRIA – Tá bom. (Nervosa. Imitando levemente o sotaque de graham) Majestade, eu... eu... (Desmancha pose) Eu estou tremendo. Não dô pr’essas coisa. GRAHAM – Mas se a senhora quer conhecer o imperador, tem que aprender a se comportar corretamente. De qualquer modo, aprender coisas novas é sempre muito agradável. QUITÉRIA – A senhora quer aprender a fumar charuto? GRAHAM – Oh, isso não, obrigada. QUITÉRIA – Ah! Eu tô cansada de esperar. Ele num quer me receber? GRAHAM – Não, dona Quitéria, o imperador é um homem muito ocupado. QUITÉRIA – Eu também me ocupei dele durante a guerra. Por isso estou aqui. (Pausa) Escuta, eu não vou dizer nada, só vou olhar pra ele. Vam’fazer assim. Eu entro na sala do trono, olho pra ele e a senhora começa a falar atrás de mim. Enquanto me ajoelho, pode dizer que lutei por ele, que lutei muitcho pelo Brasil, lutei até meu coração virar pedra e não saber mais a diferença entre matar e morrer. GRAHAM – Pois diga isso, é bonito. (Pausa) O que levou a senhora a se alistar? QUITÉRIA – Ôchi! Taí pergunta que nunca me fiz. Sei de ir vivendo, não de ir me perguntando. A senhora sabe por que veio para o Brasil? GRAHAM – Oh, of course. QUITÉRIA (Sem entender) – Por causa de quê? GRAHAM – Oh, dona Maria Quitéria, eu sempre amei viajar pelo mar. A vida do homem do mar é essencialmente poética. Sua vida é como um barco atirado de um lado para o outro; porém, ele nada pode fazer senão resignar-se à vontade de Deus. QUITÉRIA – Do que a senhora está falando? GRAHAM – Ah, dona Quitéria, perdi meu marido, capitão Graham, em uma viagem pela América do Sul. Nessa viagem, eu conheci o Brasil, um país que me mostrou coisas que jamais havia visto: cidades em estado de sítio, escravos famintos morrendo pelas ruas. Mas, por outro lado, dona Maria Quitéria, eu conheci um povo de uma beleza e de uma força especial, e vi as mais belas paisagens que um pintor poderia pedir a Deus. Quando meu marido morreu, senti que estava tudo acabado. Eu estava só e tinha um hemisfério inteiro a me separar de meu país e de minha família. QUITÉRIA – A senhora sente falta da família, tão longe daqui? GRAHAM – Como sinto. Principalmente de meu pai. Ele me ensinou a gostar do mar. QUITÉRIA – O meu me ensinou a gostar do mato. (Quitéria emociona-se) GRAHAM – Oh, a senhora ficou triste. QUITÉRIA – Não. GRAHAM – Oh, dona Maria Quitéria, o que aconteceu? QUITÉRIA (Chorando) – Nada. GRAHAM – A senhora está chorando. QUITÉRIA – Tô não. GRAHAM (Dá-lhe um lenço) – Seque as lágrimas. QUITÉRIA – Agradecida. (Assoa o nariz) GRAHAM – A senhora lembrou-se de seu pai? QUITÉRIA (Afirma com a cabeça) – Tantos mês que não vejo meu pai. GRAHAM – Ele morreu? QUITÉRIA – Eu morri pra ele. Por causa d’eu ter ido lutar na guerra. Mas eu num fui só lutar na guerra, fui viver meu sonho. Sabe, quando o emissário chegou lá nas nossas banda, soube que alguma coisa ia mudar na minha vida. Eu bem que tentei não pensar mais naquilo, mas quando o fogo arde dentro da gente, o melhor jeito de apagar... não tem, é deixar ele viver. O emissário chegou no nosso pedaço de sertão dois mês depois do grito de Dom Pedro... GRAHAM (Indignada) – Levou dois meses? QUITÉRIA – Chegou cedo. Notícia no interior da Bahia caminha no passo do jegue, se ele estiver de bom humor. Ah, meu pai, um cabeçudo. Que se vai fazer? Saí igual a ele. Ou pior. Acho que pior. CENA 3 EMISSÁRIO – Pior. Muitcho pior. E posso assim dizer, porque sou o emissário que foi bater naquela secura, ô lonjura de mundo que é São José das Itapororocas, lugarejo muitcho difícil de chegar e quase impossível de sair. Meu nome é Arexenedes Cipriano de Jesus, muitcho prazer. Sou Jesus, mas só por coincidência, porque na Bahia quem não é Jesus, leva como sobrenome dos Santos. Não tem muitcho jeito. Pois como ia dizendo, tive nobre missão na vida, só não tive a sorte de virar herói. Varri o Recôncavo, levando notícia do grito do Ipiranga e requisitando voluntário pra lutar na guerra da libertação. O fato é que numa tarde muitcho quente, fui parar no furúnculo da Bahia. São José não fica perto de nada, a não ser de sua própria solidão. Tava lá eu chegando, com um sol de quarenta e cinco graus à sombra, fritando no cangote e suando nas partes, e montadinho num jegue difícil, que lá pelas tantas resolveu virar meu inimigo. A certa altura empacou e não havia quem convencesse o animal a andar. Ordenei, empurrei, bati; nada! Gritei, soquei, chutei; menos, ainda. O bicho tava é com inveja de mim, porque eu sou um animal que anda sobre duas pata. Mas logo caí de quatro e implorei: Vai, meu benzinho, bota uma patinha na frente da outra, pelamordedeus; o jumento me olhou, eu olhei pra ele, e não é que quando me dei conta o bicho tava de novo caminhando? É, inveja é a tristeza que o sucesso alheio provoca, já dizia São Tomás de Aquino. (Sorrindo) Então chegamo naquele sitiozinho, no alto da serra da Agulha. O dono da casa era pai de muitas mulheres, alguns escravos, um pouco de gado e algodão. Depois do jantar, conversamo. (O pai de Maria Quitéria, Gonçalo, está em cena. Maria, em algum canto, ouve a conversa) GONÇALO – Satisfeito, senhor Arexenedes? EMISSÁRIO (Decepcionado com o jantar) – É. GONÇALO – Então, agora, vamo direto ao assunto, que em casa de gente trabalhadora se acorda com o canto dos passarinho. O senhor falou, durante o jantar, da ruína do nosso comércio e da nossa navegação, falou dos imposto arbitrário cobrados pela Metrópole sobre mercadoria nacional, falou da exploração do povo, da miséria dos soldados, e falou essa palavra, aí, difícil, depos... despois... EMISSÁRIO – Despotismo. O despotismo das cortes sobre o Brasil. GONÇALO – Pois é. E eu falo que, apesar disso tudo, com a guerra não posso colaborar. Nunca dependi de governo, nem de majestade, pra comprar meu rancho de taipa, minha roda de ralar mandioca, meu gado e meus escravo. Infelizmente, moramos num país injusto, seu Arexenedes. Aqui rico tem terra e escravo; pobre vira padre ou militar. EMISSÁRIO – Pois com a Proclamação da Independência, há de se acabar toda injustiça. GONÇALO – Ah, é? Onde está escrito isso, seu Arexenedes? EMISSÁRIO – Dom Pedro quer o melhor para o Brasil. GONÇALO – Eu também quero. Mas fico aqui no meu cantinho, trabalhando de sol a sol pra dar de cumer à minha família. É, meu amigo, meu mal é ser um cabra desconfiado, que se fez sozinho à custa de muitcho trabalho, e sendo assim nunca esperei auxílio algum de rei, monarca, brasileiro ou português. EMISSÁRIO – O Brasil será uma grande nação, seu Gonçalo! Basta acreditar. QUITÉRIA – Eu acredito, eu acredito! GONÇALO – Maria Quitéria, vai já pro quarto, como tuas irmãs, que aqui só cabe conversa de home pra home. EMISSÁRIO – O senhor tá se apercebendo que a ideia de liberdade contagia até o espírito das mulheres? Os patriota são em menor número que as tropa portuguesa, mas a vontade de vencer é tão grande que devemo logo receber notícia do reconhecimento da independência lá do Maranhão e do Piauí, da Cisplatina e até aqui da Bahia. GONÇALO – Deus te ouça, num torço contra não. EMISSÁRIO – E em todos os lugarejo que tenho passado, seu Gonçalo, os dono de terra, por miudinho que seja, tem colaborado com a causa patriótica, seja com mantimentozinho, seja com voluntários. Tem gente que está até dando um pouquinho de sal pra manter as provisões das tropa, porque afinal sem cumer é difícil de lutar, né, seu Gonçalo? Pois que o povo está colaborando, está. GONÇALO – Infelizmente, daqui vai sair com nada. Estou velho para lutar e não tenho filho homem. Escravos, tenho cinco, mas eles não se interessam pela guerra. Se pudesse dava alguma coisa, mas só damos o que não nos custa. QUITÉRIA (De um canto) – Pai. GONÇALO – O que ocê quer agora, Maria Quitéria? Já num disse pra ir pro quarto? QUITÉRIA – A conversa d’ocês mexe comigo, pai... GONÇALO – É conversa de home, menina. QUITÉRIA – Se é de home, como é que eu entendo tudo? GONÇALO – Maria, minha fia, despois conversamo. Pois, é como digo, seu Arexenedes, a visita foi boa, mas... QUITÉRIA (Toma coragem) – Num quero atrapaiá, mas eu pensei... eu pensei que... GONÇALO – Pensou o que, Maria? QUITÉRIA – Quem sabe eu posso... (Silêncio) GONÇALO – Pode o quê? QUITÉRIA (Enfática) – Quem sabe eu posso ir pra guerra, lutar do lado dos patriota. EMISSÁRIO (Rindo) – Seu Gonçalo, que filha corajosa. Ela quer lutar. GONÇALO – Não foi isso que ela quis dizer. EMISSÁRIO – Ouvi tão bem quanto um cego ouvindo a própria mãe: ela disse que quer ir pra guerra, quer lutar. É mais corajosa que muito marmanjo por aí. QUITÉRIA – Pai, o senhor me ensinou a andar no mato, o senhor sabe que atiro bem. GONÇALO – Lá isso é verdade. Bom, mas já é hora de dormir que amanhã o dia é longo como véu de noiva. QUITÉRIA – Eu falo sério, pai. GONÇALO – Eu mais ainda. (Os dois ficam se encarando) EMISSÁRIO – A minha mulher, outro dia, também veio com esses tremelique de querer lutar na guerra. Porque minha vida não tem emoções, ela. Ah, dei-lhe uns três cascudo muito bem dado, que foi pra encher de emoção a vida da minha mulher. Depois disso, ficou boazinha. QUITÉRIA – Eu quero lutar; sinto o coração arder no peito. GONÇALO – Umas boas palmada e ele vai arder em outro lugar. EMISSÁRIO – Bem, me desculpe pelo adiantado da hora. Já vou pegando estrada. GONÇALO – Agradecido pela visita. Espero que o senhor seja mais bem-sucedido em outras banda. EMISSÁRIO – Eu também espero. (Coloca chapéu) Então, até mais ver e parabéns pela filha corajosa que o senhor tem. É isso aí, menina! A guerra é dos valentes! (Sai rindo) CENA 4 Gonçalo e Maria Quitéria. GONÇALO – O meu pai sempre dizia que eu era calmo quando pequeno. E que continuei assim quando jovem. Hoje sou um homem cansado e velho, e tem que haver muito pra me tirar do sério. Ocê é uma mulherzinha que teima em viver como jagunço, que aos trinta ano não pensa em casamento, não para um dia dentro de casa. Rezei pra Deus pra que me desse mais paciência e pudesse confiar no tempo, que é senhor das boas mudança. Mas que nada, só foi piorando e hoje passou dos limite. Pois bem, Maria Quitéria, se ocê quer viver como homem... QUITÉRIA – Não! Não é nada disso! GONÇALO (Sem prestar-lhe atenção) – ... e sair lutando por aí como homem, então está mais que na hora, criatura. (Tirando a cinta) Que as parede não ouça e as janelas não veja o que vai acontecer nesta casa! Ocê quer lutar como homem, então vai aprender a apanhar como homem. Arria as calça, moleque, e se ajoelha! Se ajoelha na frente de teu pai! (Quitéria não se ajoelha) Nunca se curva perante teu próprio pai, não é? Mas quer fazer isso diante do imperador. Ocê tá me obrigando a descer a mão contra ocê. Nem fugir ocê quer? Num quer fugir da minha mão? (Quitéria não responde. Cego de ódio) Pois então vai ter de aprender a segurar o grito na garganta e a engolir a dor como se engolisse aguardente. Não chore, criatura! Limpa as lágrima! Ainda não sabe a lição? Um homem não chora! (Chicoteia a filha. Ela não solta um lamento, mas se contorce de dor. Luz apaga) CENA 5 O negro Antônio Congo tem à sua frente uma bacia de algodão, no celeiro do rancho de gonçalo. Beira os 50 anos. Tem o ar cansado, mas sabe que não pode parar de trabalhar, senão será castigado. Está sentado num banquinho. É notável o contraste entre sua pele negra e o branco do algodão. Entra Alexandrina, moça negra, com um prato de comida intacto. Seu semblante traz desgosto e desânimo. NEGRO – Ela não quis cumê? NEGRA (Entregando-lhe o prato) – Não. NEGRO (Faminto) – Ôchi. Tô ôco de fome; (Comendo com as mãos, com afoiteza) Mai’ocê insistiu? NEGRA – Inté esfreguei casca de goiaba fresquinha no nariz dela. Não quis, não posso obrigar. NEGRO – Seu Gonçalo nunca açoitou um negro. Foi fubecar assim a fia. NEGRA – Num diz um ai. NEGRO – Vai ver morreu. NEGRA (Grita) – Vira essa boca, Congo! NEGRO – Vai ver num morreu. NEGRA – Por Nagô! Dona Maria Quitéria pode ser esquisita, mas é boa. NEGRO (Comendo) – Se é. Essa comidinha também. NEGRA – Ma vê se isso é jeito de vivê. Parece selvagem, vive pro mato que nem jagunço. Já viu os bicho morto que ela traz pra casa? Fica feliz da vida. Pensa que é caçador. NEGRO – Ela deu de passar dia no mato despois que a mãe morreu. Como num se dá com a madrasta... NEGRA – Pra dizê verdade, também preferia ir pra guerra que guentá as bomba de dona Maía Rosa. Ô bicho ruim de egoísta, quando dá de falá, não para mais. Reclama de tudo, ocê já percebeu? NEGRO – Ih, eu tô ficando veio, Xandina. Repaio em tudo, não. NEGRA – Pois eu repaio. Em tudo. E até ouvi dona Maía Quitéia dizê que quer lutá na guerra. NEGRO – Cada qual com seu destino. NEGRA – Mai é poibido! Muié é muié, soldado é soldado. Ô, Congo, que sururu de guerra é essa? NEGRO – Se me der uma goiabinha, conto. (Alexandrina ri e tira uma goiaba de dentro do vestido. Joga para ele. Congo morde a goiaba com vontade) A guerra, bom, a guerra é dos que querem o Brasil livre dos pé de chumbo. Dizem que até o fio do rei... NEGRA – Que rei? NEGRO – O rei de Portugal, a Majestade... NEGRA – Ah, sei. Que tem? NEGRO – O fio do rei tá do lado do Brasil. Pois ele até deu um grito! (Silêncio dos dois) Ele gritou. NEGRA (Sem entender o sentido do grito) – Gritou por quê? NEGRO – Num sei bem. Sei que tava a cavalo andando por umas terra aí. NEGRA – Então gritou com o cavalo. NEGRO – Num sei bem, gritou qualquer coisa de morte. NEGRA – Ih, matou o cavalo, tadinho. NEGRO – Num sei bem, é o que se conta, né? Que ele gritou. NEGRA – Gente pobre vive gritando, ninguém fala nada. Escravo leva cinquenta chibatada, ninguém fala nada. Mas se o fio do rei grita, todo mundo fica sabendo. NEGRO – Acho que foi grito importante, porque despois virou essa quizumba. Eu, se eu fosse um eu e não um escravo, também ia. NEGRA – Ia pra guerra? Ma ocê tá ficando veio, num ia ter força pra lutá. NEGRO – Num tô ficando veio, tô ficando sábio. NEGRA – Nagô te ouça. NEGRO – Tem até índio lutando, por um pouco de aguardente e um punhado de farinha de mandioca. Eu também prefiro morrer lutando que jogado num canto com fome. Na guerra, cum certeza, a gente tem que cumê bem pra lutá e inda deve de botá sapato no pé. Pela primeira vez na vida eu ia usá um. (Seu rosto se ilumina. Larga o trabalho) Já pensou? Nem precisava ser dois, um só pra ostentar minha liberdade e eu tava feliz. NEGRA – Pois ocê sonha com o seu sapato que eu vou é tratar de salvar dona Maía Quitéia. Tem só uma pessoa que ela ouve do fundinho do coração. É a irmã. (Luz acende sobre um canto, onde está Maria Quitéria, de costas. Entra Tereza, um pouco mais moça que Maria Quitéria, talvez uns 26 anos. Envolve Quitéria com carinho e cuidado. Permanecem abraçadas até o final da primeira cena) NEGRO – Qual? Josefa? NEGRA – Que Josefa? Igual às outra. Tereza é que é diferente, a única que gosta da dona Maía do jeito que ela é. Ma como é casada e mora a duas légua daqui, num tá sabendo de nada. Se correr bastante, chego lá antes do primeiro canto do galo e volto antes do segundo. A irmã pode tirar essa ideia maluca da cabeça dela. Lutá na guerra, isso lá é coisa pr’uma muié? (Sai. Congo, distante, sonhando com a guerra e o sapato no pé. Larga o algodão com desprezo. Sai.) CENA 6 Num quarto, Maria Quitéria e Tereza, a irmã. Esta, grávida, está abraçada a Maria Quitéria. Trouxe consigo um embrulho de roupas. De repente, a algo que Quitéria lhe disse, levanta-se numa atitude impetuosa. TEREZA – Não! Isso, eu não posso! QUITÉRIA – É que eu não consigo ser com’ocê, que vive pro marido, pro fio que vai nascer, dentro de casa sem achar que é bicho enjaulado. Não sei o que tá acontecendo, que quero gritar meu nome fora dessas quatro parede, quero ver o mundo, quero lutar pela pátria, quero conhecer o imperador. Quero ser alguma coisa mais, Tereza. TEREZA – Ser mulher num é bastante? QUITÉRIA – Quando se é livre, ser qualquer coisa é bastante. É que esse não do pai dói mais que a surra que levei. Tenho cada vez mais vontade de fugir, de lutar nas fileira do imperador. (Pausa) Ô, Tereza, ocê gosta da vida que leva? TEREZA – Se gosto? E dianta a gente gostar ou desgostar? É a vida que se tem. QUITÉRIA – Vida que num se escolhe num é a melhor vida. Eu tento ser que nem as outras, mas num consigo. TEREZA – Eu sei que é difícil pr’ocê. Da última vez que tentou costurar, juntou dois pé de meia. QUITÉRIA – Eu dou ordem pras minhas mão: ocês têm que aprender a pegar numa agulha. Mas elas só querem saber de segurar uma espingarda. TEREZA – Desde que tua mãe morreu, antes mesmo de nosso pai casar com minha mãe, ocê abraçou o mato como tua casa e tua escola. Nos finais de tarde, com a noite chegando, a gente saía por aí preocupada com tua falta. Maria Quitéria! Por onde ocê anda? Andava longe, pelo teu mundo de sonho. O pai sempre dizia: Essa menina não sai mais de casa sozinha. Mas chegava o dia seguinte e era tudo de novo. Maria Quitéria, por onde ocê anda? Mas a culpa não é tua; é de Deus, que te moldou no mesmo barro de Adão. Acho que pra te fazer de modelo, não sei. QUITÉRIA – Me ensina a ser com’ocê. TEREZA – Isso não posso, não sei. Ocê gosta de caçar, de enfrentar perigo. QUITÉRIA – Tem muitas outras que andam por aí com arma a tiracolo. TEREZA – Pra se defender dos índio bravo, não pra ir atrás da caça. Até nos teus sonho, ocê é diferente. Tu sonha alto. QUITÉRIA – Como é que sonha rasteiro? TEREZA – Sei lá, sonhar é livre, virgem de comando. Quem vai te proibir de sonhar com o imperador? QUITÉRIA – Que história é essa? Só quero lutar por ele. TEREZA – Antes era com aquela freira. Gritava esganiçado: Pra trás, bárbaros!, e a baioneta furava teu peito. QUITÉRIA – Num é verdade. TEREZA – Agora ocê sonha com o imperador e se ajoelha na frente dele como um soldado. O pai num gosta disso. Ocê nunca se ajoelhou na frente dele, nem pra pedir benção. QUITÉRIA – Chega, Tereza. Dava todo meu orgulho em troca de ser mulher doce e sossegada. TEREZA – Bom, vou pegando meu rumo que inda vou lavar umas roupas do Medeiros no riacho do Caquende. Passo amanhã pra te ver. (Antes de sair) Mas eu se fosse você, eu ia. QUITÉRIA – Se eu fosse homem, eu também ia. Guerra num me põe medo não. TEREZA – Se eu fosse você, ia como homem. QUITÉRIA – Se eu fosse ocê, eu ficava quieta. TEREZA – Então, vou indo. (Saindo) QUITÉRIA – Tereza! (Tereza volta-se) TEREZA – O que é? QUITÉRIA – Se eu me vestisse de homem, me parecia com um? TEREZA – Num sei, nunca te vi metida em roupa de homem. QUITÉRIA – Se eu cortasse os cabelo, ficava ou num ficava parecida? TEREZA – Sei não. Me deixa ver (Levanta os cabelos de Quitéria) Acho que podia enganar. QUITÉRIA – E enganar é pecado? TEREZA – Eu sei lá de pecado? Sei de ir vivendo. Por que num faz isso? Eu te corto os cabelo, te empresto uma muda de roupa do Medeiros e ocê vai. QUITÉRIA – De qualquer jeito, me descobriam. TEREZA – Mas ocê é boba. Taí uma ideia boa e ocê quer jogar fora. Vai de home, boba, eu te ajudo. QUITÉRIA – Me descobriam, Tereza. TEREZA – E daí? Se descobrirem, ocê volta, acabou. Mas pelo menos, num amarga esse gosto na boca. Vá, Quitéria! Se quer vencer desafio, vai ter que costurar tua roupa no corpo e lutar pelo desejo. Vá, Quitéria, pra que eu sinta orgulho d’ocê. QUITÉRIA – Tenho medo. TEREZA – Então passa por cima dele e vai. QUITÉRIA – Você me dava cobertura? TEREZA – E não? Se eu pudesse também ia. QUITÉRIA – Eu vou. TEREZA (Cai em si. Reprime um grito) QUITÉRIA – O que foi? TEREZA – Foi nada. Nada, não. QUITÉRIA – Amanhã, eu parto. Passo na tua casa, ocê me corta os cabelo, me empresta as roupa do Medeiros e vou. TEREZA – Ocê deve partir de madrugada, quando o mundo tiver mergulhado em sono profundo. (Ao fundo surge louca. Estende os braços para Quitéria) E quando despertar, o mundo vai ser o mesmo, mas ocê, ocê vai tá virada de cabeça pra baixo, pronta pra nascer de novo. LOUCA – Vem. QUITÉRIA – Será que é errado? TEREZA – E será que existe o certo e o errado? LOUCA – Não perde mais tempo, vem! QUITÉRIA (Olhando para louca, tenta prestar atenção em Tereza. Vozes das três se misturam) – O quê? LOUCA – Vem, a guerra é sua mãe, vem! QUITÉRIA – Eu não tenho mais mãe. Ela morreu quando eu era pequena. TEREZA – O que ocê disse, Maria? LOUCA – Maria? Bonito nome. Ninguém foge de uma boa guerra, Maria. QUITÉRIA – Ai, Tereza. LOUCA – É bom ver o mundo de cabeça pra baixo. Pelo menos uma vez na vida. TEREZA – Ocê volta, Quitéria? Jura que volta? LOUCA – Um dia, quem sabe. QUITÉRIA – Um dia. Um dia eu volto, quem sabe. (Tereza e Quitéria abraçam-se, com Quitéria ainda olhando, como que enfeitiçada, para louca. Ao fundo surge Gonçalo. Traz a cinta pendendo na mão direita, como se tivesse esquecido de largá-la. Maria Quitéria encara-o, ele timidamente tenta estender os braços para ela, ela para ele, mas não conseguem. Ela corre e sai de cena.) CENA 7 Ambiente de guerra. Cachoeira, pequena cidade colonial, margeada pelo rio paraguaçu. Soldados entram dançando. Talvez um maculelê, que é a dança dos bastões. Louca surge, também dançando. Depois de a louca expulsar todos de cena, permanecem comandante e soldado e, num ponto mais ao fundo, Maria Quitéria, ou melhor, soldado medeiros, que dorme afundado numa carreta de guerra. Está esgotado, um dia depois de ter participado da batalha de itapuã, quando invadiu uma trincheira inimiga, fazendo dois prisioneiros portugueses. LOUCA (Depois de dançar, para, decidida)– Agora, sai todo mundo, que essa vila é minha! Querem brincar de guerra? No quintal da casa da mãe de vocês! COMDTE. – Evacuar área! LOUCA – Evacua ocê, que eu num tô com vontade! Vê lá se sujo chão de minha Cachoeira, minha vila heroica. Heroica, sim; não porque aqui se faz guerra, mas porque aqui o sol nunca deixou de nascer. COMDTE. – Quem é essa? SOLDADO – É a louca de Cachoeira. As boas e as más línguas dizem que é bruxa perigosa, que já nasceu e morreu cem vezes. LOUCA – Vi de tudo, desde que o mundo é mundo. E em cada trajetória dessa vida, as ideia dão a impressão que o mundo muda. Muda não. É sempre a mesma coisa. COMDTE. – Soldado. SOLDADO – Sim, senhor. COMDTE. – Tira a mulher daqui. LOUCA – Alegria, tristeza, fome, guerra... COMDTE. – Atire, se for preciso. LOUCA – ... nascimento, casamento e morte. Ih, já vi de tudo. SOLDADO – Senhor, ela é perigosa. COMDTE. – Aqui é campo de guerra, não de balbúrdia. LOUCA – Só juízo é que num vi. Juízo em cabeça de gente é coisa rara. COMDTE. – Mata. LOUCA – Viram? SOLDADO – Cruz-credo, senhor, castigo vem a galope. COMDTE. – Tá com medo, soldado? SOLDADO – N’é medo, não; é respeito. COMDTE. – Me dá essa arma, ô, caga-moita. Vamo ver se esse galinheiro conta ou não com um galo de verdade. LOUCA – Tão vendo? Cadê o juízo? Có-có-rócóóóóó!!! (Depois de pegar arma de soldado, aponta para louca) COMDTE. (À louca) – Se não sair, atiro. LOUCA – Atira, eu nasço de novo! SOLDADO – Viu, comandante? Vai ser a centé sima e uma veiz. COMDTE. – Chega! (Atira. Louca cai no chão, como morta. Quitéria grita, ainda dormindo, como se a imagem fosse parte de um pesadelo. De repente, louca renasce, gargalhando) SOLDADO – Num falei, senhor, num falei? COMDTE. – Cala a boca e corre, cangalho! (Soldado e comandante fogem, assustados. Fica em cena Maria Quitéria, em roupas masculinas. Seu aspecto é andrajoso. Debatendo-se em seu pesadelo) LOUCA – Já vi de tudo nesse mundo, de tudo. (Entra Furriel João José Luís. Louca sorri e desaparece) FURRIEL (Entrando) – Acorda, Medeiros! (Cha coalha o companheiro) Vamo home. QUITÉRIA (Acordando assustada) – Num me mata! FURRIEL (Rindo) – Tá pensando que sou o quê? Num sou portuga, home, sou teu amigo. E amigo que se admira num se mata. Eu nem devia de te admirar ansim, pois quando vi ocê na fila do alistamento se aproximar de mim, promode ser recrutado como voluntário, eu pensei um pensamento esquisito, que num se deve pensar por num se ter nada com isso: que é que um homenzinho tão fragilzinho ansim veio fazer no meio das bomba e dos tiro? Ôchi, mais num teve dura, pois quando fomo guarnecer a Ilha da Maré, vi o jeito como ocê marchava, se destacando à frente da homenzada, dos negro e dos índio... Mai que homezinho arretado, pensei, vai marchando e levando emblema de coragem no peito. Entonce comecei a admirar tua esquisitice. QUITÉRIA – Onde quer chegar com essa ladainha, home? FURRIEL – Quero chegar que num fui só eu que te observei. E meia tropa dos periquito procura por ocê agora, pra dar notícia. QUITÉRIA – Que notícia? FURRIEL – Notícia que muitcho vai mudar as coisa. QUITÉRIA – Que foi que fiz? Tô aqui só pra lutar pelo imperador, nada mais, num quero confusão com ninguém, só quero lutar, só isso. FURRIEL – Ma que foi? Vez em quando o homenzinho dá pra se defender feito bicho acuado. Ei, vem cá, ocê tá sendo citado na ordem do dia. QUITÉRIA – Citado por quê? Que foi que eu fiz? FURRIEL – Ô, home esquisito, tu num sabe que ser citado é coisa de primeira? Ocê tá virando herói, Medeiros. Senta pra num cair. QUITÉRIA – Desembesta logo qual a situação. FURRIEL – Calma, cadete! QUITÉRIA – Cadete? Que história é essa? Tá mangando de mim, por quê? FURRIEL – Tô mangando não. (Mostrando um papel) Lê ocê mesmo. QUITÉRIA – Sei ler não. FURRIEL – Ah, é. (Lendo) Vinte e dois de fevereiro de 1823. O Exército Pacificador destaca o heroísmo do combatente José Cordeiro de Medeiros, na batalha de Itapuã. O general Labatut lhe conferirá as honra de primeiro-cadete. QUITÉRIA – Tá havendo engano. FURRIEL – Tá, sim. Já deviam de ter feito isso antes. Num é qualquer um que invade trincheira inimiga e faz dois prisioneiro português ao mesmo tempo, como ocê fez e ainda gritando: Viva o imperador! Num vou me esquecer disso, num dá! Ocê até ria enquanto cutucava os portuga com o cano da espingarda vindo em direção ao nosso acampamento. (Mais bravo) Ocê num tem noção do perigo, não, home? Podia ter morrido! Da próxima veiz tem que tomar mais cuidado, que num quero perder amigo tão valoroso como ocê. Dá cá um abraço! (Eles quase se abraçam. Furriel se afasta abruptamente) Mas que é isso? Agora dei de abraçar home? Já deram de fazer brincadeira de verem a gente grudado de hora em hora. QUITÉRIA – Ocê tem que me ajudar, João. FURRIEL – Ajudo, no que tiver ao meu alcance; no que num tiver também. QUITÉRIA – Num posso ser cadete. FURRIEL – Pode sim. O general quer. QUITÉRIA – Eu digo que eu num quero. Que num posso. FURRIEL (Pausa) – Num pode? Mas isso é alta honraria e negar uma honraria é traição. Ocê num é um traidor, é? QUITÉRIA – Num sou traidor. Só vim pra guerra pra lutar pelo imperador. FURRIEL – Fica tímido, não. Num vai ter que fazer discurso nem nada. É só aceitar a patente e continuar lutando. Ocê é esquisito mesmo, às veiz perco meu tempo pensando n’ocê. Ai, que quando num entendo uma coisa, tenho vontade de sair batendo em tudo que vejo na minha frente. QUITÉRIA – Num tem nada pra entender, não. FURRIEL – Por que é que ficamo andando emparelhado que nem roda de carroça? Num tenho nada a ver com tua vida. Num tenho porque me preocupar com ocê. QUITÉRIA – É bão memo, que cada um por si e o imperador por todos. FURRIEL – Deu de mudar comigo agora que vai virar cadete? QUITÉRIA – Num é isso. É que vamo ter que desemparelhar, só isso, pra evitar as más língua. FURRIEL – É, mai carroça desemparelhada num anda. QUITÉRIA – Que foi que ocê disse? FURRIEL – Disse nada, não! Disse nada! (Sai correndo) CENA 8 Presente. Palácio São Cristóvão. No mesmo aposento da cena 2, Maria Quitéria é retratada pelo pintor Faillut. Está com o uniforme completo e porta-espada, com orgulho. Maria Graham, sentada, com uma xícara de chá à mão, observa a cena, enquanto ouve Maria Quitéria contar suas aventuras. QUITÉRIA – Eu podia ser o homem mais feliz daquela guerra, tinha subido de posto, ganhava farda e espada. Mas a vida tava virada de cabeça pra baixo, rindo de mim. GRAHAM – No, a senhora é que ria da vida. Uma vida nova, original. QUITÉRIA – Sim, eu ria por fora, mas chorava por dentro. O amor num manda recado. E quando me dei conta... GRAHAM – ...a senhora já estava apaixonada. QUITÉRIA – Eu gostava muito do João. Nunca tinha gostado de verdade de um homem. Era triste e engraçado ao mesmo tempo, vestida assim e apaixonada. É, a vida é o que é, num depende só da gente, não. Eu não aguento mais ficar parada desse jeito. E Dom Pedro? Eu vim pro Rio de Janeiro pra falar com ele! GRAHAM – Calma, dona Maria Quitéria. Monsieur Faillut. FAILLUT (Entre assustado e irritado) – Oui? GRAHAM – Pouvon-nous arrêter un pêu? FAILLUT – Mais, madame... La peinture c’est fraîche... GRAHAM – S’il vous plaît, monsieur Faillut, s’ il vous plaît. FAILLUT – Oui, madam.(Saindo) Merde. Lês brésiliens sont fous. (SAI) QUITÉRIA – Ele me xingou? GRAHAM – No, no, apenas ficou nervoso. QUITÉRIA – A senhora tem razão. Aprender coisas novas é sempre muito interessante. GRAHAM – Escute, dona Maria Quitéria, a senhora não é a única a ter problemas no palácio. Desde que cheguei, sinto que este lugar e esta corte não me querem. Estaria mais feliz se não estivesse aqui. Eu não fui feita pra isso. QUITÉRIA – Pra isso o quê? GRAHAM – Oh, a senhora me obriga a falar. Vivo aqui dias melancólicos e atormentados. Sofro todo tipo de hostilidades de uma corte grosseira, mal-educada e intrigante. Minha única amiga é a imperatriz Leopoldina. QUITÉRIA – Mas a senhora não fala com o imperador? GRAHAM – Eu quase não vejo o imperador. QUITÉRIA – Mas entre o quase e o nunca, eu ainda prefiro o quase. Estou cansada de esperar. Se num puder ver o imperador, entonce, também num quero ganhar essa tal medalha de Cavaleiro do Cruzeiro. Também num preciso do soldo de alferes que querem me dar. É melhor que eu vá me embora de volta pras minha terra. GRAHAM – Pois a única coisa que não me faz voltar para a minha terra é a possibilidade de conhecer e entender melhor a sua terra. Talvez eu tenha a chance de ver a sua terra se transformar num verdadeiro país. Eu torço para que isso realmente aconteça. QUITÉRIA – Num tô entendendo. GRAHAM – Está bem, dona Maria Quitéria, a senhora veio para ser recebida pelo imperador e deverá ser recebida por D. Pedro. Portanto, deverá ser recebida por ele. Vou falar imediatamente com o conselheiro do imperador. (Sai. Maria Quitéria fica sozinha, olha para sua espada com orgulho e também sai) CENA 9 Dom Pedro e conselheiro. Imperador experimenta trajes de gala, para a festa da vitória. CONSELH. – Insolente, impertinente, arrogante, majestade! D. PEDRO – Quem? CONSELH. – Ora, quem? Com vossa permissão. A baianinha do Recôncavo. D. PEDRO – Baianinha? Não estou a me lembraire. É caso recente? CONSELH. – Majestade, com vossa permissão, não estou falando de raparigas da noite, mas da soldada baiana que lutou por vós. D. PEDRO – Ah. Antão porque não disseste a soldada baiana? Qual é mesmo, pois, o nome dela? CONSELH. – Maria Quitéria de Jesus. D. PEDRO – Não me esquecerei. E qual o problema? CONSELH. – Quer conhecer vossa majestade a todo custo. Ameaçou não participar da festa da vitória, amanhã, caso vossa majestade não a queira receber. D. PEDRO – E já se encontra no palácio? CONSELH. – Oh, majestade, há mais de dez dias. D. PEDRO – E até o presente momento uma soldada que lutou por mim, não teve o privilégio de beijar-me a mão? CONSELH. – Vossa Alteza ponderou... D. PEDRO (Cortando, irritado) – Chega desta palavra! Ponderar. O tempo todo ponderou, ponderaste, ponderamos. Chega de tanta ponderação. Não sou o Zé Bonifácio de Andrada e Silva. Eu decido quando ponderar ou não. CONSELH. – Sim, Majestade. D. PEDRO – Pois proponho que neste momento ponderemos acerca da baianinha do Recôncavo. Disseste-me que ela é impertinente, intolerante, rebelde? CONSELH. – Sim, Majestade, eu mesmo já a vi revoltosa, com ares muitissimo superiores a uma mulher. Maria Graham, aliás, pede um favor especial à vossa alteza, que receba dona Maria Quitéria, nem que seja para uma curta vista d’olhos. D. PEDRO – Agora, o mais importante: é bonita? CONSELH. – Majestade, não me sinto capaz de julgamento. D.PEDRO – Cá isto é verdade. Pois quando foste-me arranjar esposa nas Europas, acabaste por me presenteaire com Maria Leopoldina. Tu contavas-me nas cartas que era mocetona de truz, formosa flor. Deve ter murchado a caminho do Brasil. Quase tive que pedir autorização ao ministro da guerra para casar-me com a bomba que trouxeste-me. CONSELH. – Ristes na cara dela. D. PEDRO – Sabes que tenho o riso frouxo. Encolerizei-me depois. Não, não digas nada, mesmo, que não és capaz de discernir uma mulher de um bacalhau. CONSELH. – Não gosto mesmo de bacalhau. Prefiro sardinha. D. PEDRO – O que disseste? CONSELH. – Que nenhuma mocinha, nobre ou cortesã, queria estar cá, ao Brasil. D. PEDRO – É que tu não soubeste bem anunciar as vantagens que as moçoilas teriam em casar-se com minha pessoa. Arruinaste-me a ponto d’eu buscar vida útil em outras paragens. A propósito, Domitila, a minha formosa Titila, já se encontra no palácio? CONSELH. – Espera por vós na antecâmara real. D. PEDRO – Diga-lhe que seu fogo-foguinho está indo. Antes, preciso falar a Zé Bonifácio. Tenho urgência urgentíssima em que apressemos a Constituição do Brasil... E também preciso de um tempo para acabar de compor esta música. CONSELH. – Sim, majestade. E quanto à baianinha... D. PEDRO – Que baianin...? Ah, sim. A soldada do Recôncavo. Diga-lhe que terei imenso prazer em conhecê-la pessoalmente. Marque para amanhã uma brevíssima audiência, onde ela terá a honra de me ver. Vamos conhecer esta mulher que lutou com tanto entusiasmo pela minha nobre, embora singela pessoa. CENA 10 Presente. O mesmo aposento da cena 8. Entra Maria Graham, com seu diário. GRAHAM – Amanhã ela conhecerá o imperador. Até que ponto eu me sacrificaria tanto para conhecer o rei da Inglaterra? Hoje, nós, ingleses, vivemos tão tranquilos e indiferentes, como se nunca tivessem existido desgraças no mundo. Porém, sei que nem todos os ingleses vivem bem. A verdade é que temos habitantes demais na nossa pequena ilha. Mas o Brasil... o Brasil é tão grande. Cada um poderia ter sua terra e seu trabalho e viver livre neste belo país. Mas o que tenho visto? Um país de negros cativos por fora e brancos algemados por dentro. (Entra Maria Quitéria. Tem um charuto entre os dedos) QUITÉRIA – Dona Maria Graham! GRAHAM (Saindo do devaneio) – O quê? QUITÉRIA – A senhora quer falar comigo? GRAHAM – Oh, sim! Eu consegui, dona Maria Quitéria! A senhora será recebida em audiência exclusiva pelo imperador. QUITÉRIA – Quando? GRAHAM – A senhora finalmente conhecerá o imperador amanhã! E antes da festa da vitória! QUITÉRIA – Amanhã? E agora, o que é que vou dizer pra ele? GRAHAM – Diga o que a senhora sabe, o que a senhora viveu e não se preocupe: a senhora tem a sabedoria da terra. QUITÉRIA (Um tanto desanimada) – Amanhã? Finalmente, amanhã, num é? Amanhã, amanhã... CENA 11 Campo de batalha. Em cena, Maria Quitéria e o furriel João José Luís pulem suas espadas. Estão à vontade. QUITÉRIA – Ocê me pergunta do meu amanhã. Num sei, o amanhã vai se fazendo. Hoje num é mais importante que amanhã? FURRIEL – É que ocê sempre diz que num alimenta sonho. Mas quando tiver um, aí o amanhã é que vai ser importante. Ôchi, se vai. Sorrir a cada pensamentozinho parado lá na frente e gostar de esperar, porque todo tempo desconhecido é bom, é um tempo por se fazer, um tempo cheio de esperança. QUITÉRIA – Esperança minha é ganhar guerra. FURRIEL – Também. Mas ocê num pensa em casar com uma muié bonita, ter teu cadinho de terra, teu gadozinho e algodão, num pensa? QUITÉRIA – Gente pobre num pode querer muitcho. FURRIEL – Pois vai ser graças a Dom Pedro I que o Brasil, quando for pacificado, e dizem que agora só falta os patriota expulsar as força de Madeira de Mello na Bahia, este vai ser um grande país. Ô, se vai. Vai acabar a exploração, é o que pro-mete Dom Pedro I. Quando lembro da partida de Dom João, levando, além da família dele, os cofre brasileiro, me dá um ódio por dentro. Luto por causa desse ódio. E ocê? QUITÉRIA – Acho que luto por amor. FURRIEL – Vixe Maria. QUITÉRIA – É amor pela terra que piso. FURRIEL – Se Dom Pedro num tivesse alma brasileira, num lutava nessa guerra, num lutava pra reconhecer independência nenhuma. Ia esperar que nossos deputado nas corte de Lisboa lutasse por nossa constituição e nossa independência. QUITÉRIA – Ocê sabe das coisa. FURRIEL – Sei pouco; mal sei ler e escrever, mas tenho ouvido bom. No quartel se ouve muitcha coisa. Daí precisa formar opinião. Eu formei a minha. Quer ouvir? QUITÉRIA – Já tô ouvindo. FURRIEL – Quando penso no que fazem os ingrês, os holandês, os português aqui na nossa terra, o que já levaram de riqueza, o que já mataram de índio. Mas se todas as província brasileira se mantiver unida no grito do Dom Pedro, vai acabar a exploração. QUITÉRIA – Deus te ouça. FURRIEL – O Brasil é tão grande, mas levaram tanto ouro e tanta pedra preciosa, que daqui só sobrou a forma; agora é preciso encher o país de riqueza de novo. Tiradentes sabia disso tudo, mas nóis também sabemo, é por isso que lutemo, num é? QUITÉRIA – Ocê num ri se eu contar? FURRIEL – Num sei. QUITÉRIA – Então num conto. FURRIEL – Deixa de tonteira. Num rio. QUITÉRIA – Promete? FURRIEL (Beija os dedos cruzados, ironicamente) – Prometo. QUITÉRIA – O único sonho que tenho é conhecer a corte no Rio de Janeiro. Conhecer Dom Pedro. Me curvar pro imperador e dizer que lutei por ele. FURRIEL – E diz que num tem sonho. QUITÉRIA – É o único. COMDTE. (Entrando com um homem mais atrás. Este cobre a cabeça com um chapéu. É Gonçalo) – Soldado Medeiros! QUITÉRIA – Sim, senhor! GONÇALO (Tirando o chapéu) – É ela! Procurei muitcho, mas agora num há dúvida que encontrei. COMDTE. – Um de nossos melhores soldados. GONÇALO – Maria Quitéria! QUITÉRIA – Pai! GONÇALO (Pausa) – Ocê sabe quantos dias de trabalho perdi por tua causa? Te procurando feito um desesperado. Sonhava toda noite que ocê tinha morrido e eu tentava enterrar ocê dentro de mim. Mas passava um, dois dias, e lá tava eu de novo sobre o cavalo a caminho de Cachoeira, procurando, que era o único lugar que ocê devia de estar. Acordava todo dia com uma vontade de te surrar. Mas hoje, não, hoje tô tão feliz de te encontrar aqui, Maria, que sou todo afeição. Vam’bora, minha fia, que até São José é uma boa puxada. QUITÉRIA – Pai, eu sou um soldado. GONÇALO – Tá se vendo, mas essa roupa num cai bem n’ocê, minha fia, num cai. QUITÉRIA – Desculpa, pai, mas quem decide o meu futuro hoje... GONÇALO – Sou eu, inda tenho direitchos sobre minha fia mais velha. QUITÉRIA – Não, pai, tô sob as ordens do comandante Silva e Castro. GONÇALO – Ah, tá brincando de guerra, né, menina? QUITÉRIA – Não, pai, luto de verdade. Num sou mais menina. GONÇALO – Vam, minha fia, que temo que chegar em São José inda hoje, que amanhã o dia é longo feito véu de noiva. COMDTE. – Ela fica. GONÇALO – Vam’bora, fia. COMDTE. – O senhor é surdo? GONÇALO – Não! Tenho o ouvido muitcho bom. COMDTE. – Entonce num preciso gritar pra falar com o senhor! Nós já desconfiávamo que se tratava de uma mulher, logo despois que recebeu farda e espada, porque tinha umas atitude feminina, andando sempre de parelha com João José Luís... GONÇALO – João José? Quem é ele? FURRIEL – É este pobre coitado que nunca desconfiou de nada. COMDTE. – E à noite, seu Gonçalo, depois de guarnecer e atacar, ela cantava pros soldados, e num conseguia disfarçar de todo essa voz que acalma os home e faiz dormir os mais jovens. Mas foi sempre tão valente e destemida, mais que muitcho marmanjo de culhão grande, que resolvemo fechar os olhos e os ouvidos pro fato, porque o que queremo, seu Gonçalo, é ganhar a guerra contra os lusos. É isso que queremo. De modos que ela é um dos nossos e vai continuar na tropa, a menos que num queira ficar. Pois vamo dar a chance dela mesmo escolher. COMDTE. – Soldado Maria Quitéria! QUITÉRIA – Sim, senhor. COMDTE. – Ocê ouviu a conversa. De modos que pode escolher ficar ou voltar com teu pai. QUITÉRIA – A pátria agora é meu pai. GONÇALO – Este é o dia mais triste de minha vida. QUITÉRIA – Vai haver melhores, pai. GONÇALO – Não use mais este nome, pai! De hoje em diante num tenho mais filha de nome Maria, num tenho mais nada, só essa angústia atravessando o peito feito flecha. Ocê morreu pra mim, Quitéria, ocê finalmente morreu. (Sai) COMDTE. (À Maria Quitéria) – Soldado Maria Quitéria, o exército se orgulha de contar com vossos serviços nas fileiras do imperador! (Sai. Em cena, Maria Quitéria e Furriel, este com a cabeça entre as mãos) FURRIEL – Esta cabeça num tem peso, num tem. Eu sou burro, burro! Ocê me enganou, Medeiros..., eu sei lá teu nome. Ocê me enganou, soldado de merda! Quase me fez acreditar que eu tava apaixonado por um homem, e eu já tava inté me acostumando com a ideia. Eu já me dizia: e daí? É todo mundo amigo, é todo mundo irmão. Os meus companheiro era riso o tempo inteiro; só eu num sabia mais o que eu era. Ficava numa confusão de dar dó quando tava do teu lado, quando ouvia ocê cantar, quando conversava comigo, quando me abraçava e me chamava de amigo. Ah, aquele sangue esquentando por dentro, aquela vontade doida de te beijar. QUITÉRIA – Agora pode. FURRIEL – O quê? QUITÉRIA – Ocê pode agora me beijar. FURRIEL – Depois de tudo o que ocê fez comigo? Por isso nunca tomava banho na mesma hora que a gente, num é? Agora eu tô entendendo tudo. Ocê me enganou. Não! Ocê me traiu! QUITÉRIA – E o que eu faço agora? Peço perdão, rezo um terço, me chicoteio? Quer que eu me afaste d’ocê? FURRIEL – Eu só quero uma coisa. QUITÉRIA – Pode falar. FURRIEL (Furriel beija-a) – E qual mesmo teu nome? Teu nome de mulher? Entrecho OFF (Voz do capelão Bento Damásio, do batalhão dos periquitos) – Maria. Maria Quitéria de Jesus, aceita o senhor João José Luís como seu legítimo esposo? OFF (Maria Quitéria) – Sim, sinhô. OFF – Senhor João José Luís, aceita dona Maria Quitéria de Jesus, como sua legítima esposa? OFF (Voz de João José Luís) – Ô, se aceito. OFF – Eu, Frei José de São Bento Damásio, capelão dos Periquitos, vos declaro marido e mulher. (Sons de comemoração, com o aumento dos sons de tiros e bombas. Quando luz acende, aparece Furriel, morto, sendo carregado por soldados. Louca fica com as botas dele e entrega-as a Maria Quitéria.) CENA 12 Maria Quitéria toca numa viola. Seu semblante é triste e/ou saudoso. Ao seu lado o par de botas de soldado, uma mochila, pequenos apetrechos de acampamento. Quando termina de cantar, deixa a viola de lado e tira do bolso um charuto. Surge Antônio Congo. CONGO – Que bonitcho, dona Quitéria. Toca mais. QUITÉRIA – Quem é? CONGO – Já num sei quem sou ieu. QUITÉRIA – Congo? Antônio Congo! CONGO – Se a senhora tá dizendo que sou ieu, sou ieu. QUITÉRIA – O que faz por aqui, home, também está guarnecendo a ilha da Maré? CONGO – Vagueio daqui pra lá, de lá pra cá. Ouvi falar muitcho da senhora, dona Quitéia, ouvi sim. QUITÉRIA – Tem nada pra falar. CONGO – Os home fala. Que na batalha da foz do Paraguaçu senhora entrou no mar pra ex-pulsar um barco português que queria invadir Itaparica. E que atrás da senhora muitas muié, dessas que acompanham os home na guerra, pra dar de alimento e de remédio, ficaram todas tomada com vossa força e coragem, e todas juntas conseguiram expulsar o barco inimigo. Ouvi falar da senhora, ouvi sim. E vim presses lado porque agora, perdido do jeito que tô, qualquer lado é um lado. QUITÉRIA – Guerra tá pra acabar. CONGO – É, ouvi dizer. QUITÉRIA – Informação é que todos os marinheiro português já embarcou nos navio de volta a Portugal. Inté o comandante deles, o Madeira, que já chamam de madeira podre, quer partir. Tá tudo morrendo de fome e de doença; não conseguiram vencer a resistência dos patriota não. Congo, ocê fugiu de São José? CONGO – Fugi não, fui alforriado. QUITÉRIA – Meu pai alforriou ocê? CONGO – É, foi. QUITÉRIA – E por quê? CONGO – Pra cuidar da senhora. Ih, num era pr’eu contá. Mas agora é tarde e eu num cuidei mesmo. Ele perguntou: Qué ser livre, negro? Como assim, sinhô? Quer ganhar alforria e um par de sapato? Quero, sinhô. Entonce vou te alforriar, mas ocê vai procurar Maria Quitéria na guerra e tomar conta da cabra. Ele disse: ela num quis vir comigo. Depois disse: Vai e fica de olho na menina. Ela é minha fia e, apesar do que feiz comigo, eu amo minha fia. Entonce, se depois da guerra, eu conseguisse levar a senhora de volta, ganhava sapato pra tentá vida na cidade do Salvador. Mas num procurei senhora não. QUITÉRIA – E feiz o quê, Congo? Lutou? CONGO – É, foi sim, senhora. Quase morri, num sabia bem de que lado lutava. Se do lado português, se do lado dos patriota. Entonce arresolvi lutar do lado dos negro. Fizemo rebelião e muitchos agora estão mortos. Foi uma carniceira. Vi coisa que num se faiz nem com animal, os negro amarrado nos poste sem cabeça, dona Quitéria. (Pausa) E chamam isso de guerra de libertação. Liberta uns, escraviza outros. Entonce agora tô andando de um lado pro outro, sem saber pr’onde ir. Sou home livre, mas continuo escravo da miséria. Num é fácil prum negro ter liberdade e num ter o que fazer com ela. QUITÉRIA – Se ocê quer sapato pra começar vida na cidade do Salvador, que é teu sonho, tome, são teus. (Entrega sapatos do Furriel a Congo) CONGO – Ôchi, sapato de verdade? Mai num vão fazer falta a alguém? QUITÉRIA – Foram de alguém que já falta. Fique com eles. CONGO (Chorando) – Dona Quitéia, nunca pus sapato na vida. Um só e eu tô feliz. QUITÉRIA – Leve os dois, home, ocê num tem dois pé? Entonce, faiz teu caminho sem machucar os pés. CONGO – Nunca vou esquecer o favor. QUITÉRIA – Num é favor, é presente. Calça. CONGO – E quando tiver feito minha vida, dona Quitéia, devolvo os sapato. Juro que devolvo. QUITÉRIA – Presente num se devolve. CONGO – Num entendo, dona Quitéia. Nunca ganhei um presente antes. Ieu devolvo, num sô ladrão. Agora vô. Vô fazer meu caminho sem machucar os meus pé. (Com os sapatos nos pés) Oia só que beleza. QUITÉRIA – Congo! CONGO – Ai, dona Quitéia. QUITÉRIA – Ai, o quê? CONGO – Senhora quer sapato de volta? QUITÉRIA – Quero um abraço, home. Vem cá! CONGO – A senhora quer abraçar um negro? QUITÉRIA – Quero abraçar alguém com um coração que bate. Ou teu coração num bate? CONGO – Sei não, nunca abri meu peito pra saber. (Abraçam-se) Obrigado, dona Quitéia, nunca vou esquecer o favor. (Sai. Fica Quitéria sozinha em cena. Sons de batida de coração) CENA 13 QUITÉRIA – E agora? LOUCA – E agora, Maria Quitéria? Você vai ter que inventar novas batalhas pra continuar viva, pois você num sabe viver no leito silencioso da paz. Você prefere uma tempestade em alto-mar, quando então tem que mexer os braços e as pernas pra continuar respirando no alto. Quando uma guerra acaba, começa outra. Paz tem sempre pouca dura. AMBAS – Quando termina uma guerra, coração bate mais leve, mais cheio de esperança. QUITÉRIA E aí a gente volta a sonhar. É, João, ocê tinha razão, é bom sorrir a cada pensamentozinho parado lá na frente, e gostar de esperar, porque todo tempo desconhecido é bom, é um tempo por se fazer, um tempo cheio de esperança. CENA 14 São José das Itapororocas. Música do início pode invadir cena, o canto meio lamento de lavadeiras, por exemplo. Alexandrina avista um vulto chegando. É Maria Quitéria. NEGRA – Dona Tereza, oia lá que coisa esquisita! TEREZA (Que pode estar sentada, com sua criança no colo) – O que foi, Alexandrina? NEGRA – Oia lá, gente forasteira mais estranha. TEREZA – É um soldado. NEGRA – Traz penacho na cabeça e saia na cintura. TEREZA (Apurando a visão) – Minha santa Engrácia, num é possível! É Maria Quitéria. NEGRA (Assustada) – Dona Maía Quitéia?O esp’rito dela voltou montado a cavalo, dona Tereza? TEREZA – Esta que volta é outra. É mulher vitoriosa; vê só como brilha medalha no peito! (Entra Maria Quitéria. Mulheres vão aos gritos em sua direção. Gonçalo entra pelo outro lado) GONÇALO – Mas que barulheira é essa? Viram assombração? (Avista Maria Quitéria. Vira-se de costas para ela) QUITÉRIA – Sou eu, pai. GONÇALO – Tereza, minha fia, vou me deitar, que amanhã o dia é longo feito véu de noiva. QUITÉRIA – Estou só de passage. Preciso falar com o senhor. GONÇALO (Ignorando Maria Quitéria) – Se tudo correr bem, e com a benção dessa chuvarada de agosto, vamo colher umas quatrocentas arroba de algodão, o que deve dar uns cinco ou seis mil réis. Nada mal prum cabra chucro feito eu, num é, Tereza? QUITÉRIA – Eu sempre tive orgulho do senhor, pai. GONÇALO – É, Tereza, teu pai num nasceu em berço esplêndido, nem recebeu a fina educação das corte, mas de uma coisa ele pode se orgulhar: esses braço nunca tiveram medo do trabalho. QUITÉRIA – Pai, eu só vim pra pedir perdão. (Ajoelha-se) GONÇALO – O que ocê falou, Tereza? QUITÉRIA – Me perdoa, pai. GONÇALO (Virando-se aos poucos para a filha) – Um soldado nunca se ajoelha. QUITÉRIA – Num sou soldado. Sou tua filha. GONÇALO – Ocê sempre fez o que quis e o que num quis. Pra quê o perdão agora? QUITÉRIA – Porque a gente aprende aos poucos com a vida, pai. GONÇALO – Hoje ocê é heroína! É tarde pra se ajoelhar na frente de um home chucro feito eu. Levanta! (Levantando-se, desgostosa, quase pronta para partir) Ocê conheceu o imperador, se curvou na frente dele como sempre sonhou? QUITÉRIA – Eu me desgostei, pai, me desgostei desse sonho. GONÇALO – Mas conheceu pessoalmente o imperador? (Fazendo sinal afirmativo) E por que se desgostou? Era o imperador. QUITÉRIA – Num quero falar sobre isso. O passado é passado; o feito é feito. (Ambos ficam em pé, olhando-se. De repente, dão-se um abraço, enquanto cresce som de música.) CENA 15 (Atores entram trazendo uma cadeira onde Maria Quitéria se senta, de costas.) ATOR – Um ano depois da Proclamação da Independência, Dom Pedro dissolveu a Assembleia Constituinte. Expulsou Zé Bonifácio do Brasil e criou uma constituição que dava excessiva atenção aos assuntos portugueses. ATOR – Mas em 1831 foi a vez de Dom Pedro deixar o poder e voltar a Portugal. ATOR – Maria Quitéria casou, teve uma filha, mas continuou lutando. Desta vez contra a madrasta, tentando sua parte na herança do pai. A luta durou mais de oito anos. ATOR – Maria Quitéria perdeu. ATOR – O inventário nunca foi feito, ela nunca recebeu nada. ATOR – Aos 56 anos, já era velha. Doente do fígado, cega e pobre. (Revela-se uma Quitéria velha) ATOR – O soldo de alferes mal dava para as refeições. ATOR – Um dia antes de morrer, recebeu uma visita. (Atores permanecem em cena. Congo, filha e louca se vestirão ao entrar no espaço da representação. Maria quitéria, é claro, já está vestida). QUITÉRIA (Voz fraca) – Quem é, filha? FILHA – Nada, mãe. Descansa. QUITÉRIA – Quem está aí? FILHA – Um velho, mãe. Está plantado aí na frente, querendo ver a senhora de todo jeito. QUITÉRIA – Que entre. (Entra no espaço da representação o velho Congo) CONGO (De preferência o mesmo que fez Congo) – Dona Maria Quitéria. QUITÉRIA – Conheço tua voz. CONGO – Se lembra de mim? FILHA – Ela já não enxerga. QUITÉRIA – Antônio Congo... CONGO – Procurava pela senhora, perguntando aqui e acolá. Eu dizia: Soldada valente, foi heroína de guerra. Perguntavam: Mai que guerra? Ê, ninguém sabe de nada. Mas eu sei. A senhora me ajudou a fazer meu caminho. Comprei meu cadinho de terra, plantei meu cadinho de algodão e tenho meu cadinho de comida. Hoje vim devolver os sapatos, mai também quero oferecer ajuda. ATOR – O tempo, porém, é implacável e pouca ajuda se pode oferecer na despedida. ATOR – Naquela noite, Maria Quitéria disse à filha suas últimas palavras: ATRIZ (Que fez Quitéria)– Fia, ocê é o único bem que deixo no mundo. ATRIZ – Não fala assim, mãe. Poupa o sofrimento. ATRIZ – Sempre achei que vivia no amanhã. Mas é no hoje que se transforma a vida. Por isso, se quer crescer, tire a venda dos teus olho. ATOR – Naquela noite, apesar de cega, viu uma mulher que se aproximava e dizia: ATRIZ (Que fez a louca) – Já vi de tudo, desde que o mundo é mundo. E em cada trajetória, as ideia dão a impressão que o mundo muda. Muda não. ATRIZ (Atriz que fez Quitéria) – Quem é? ATRIZ (Louca) – É sempre a mesma coisa. ATRIZ (Quitéria) – O que é a mesma coisa? ATRIZ (Que faz a filha) – Com quem ocê tá falando, mãe? ATRIZ (Louca) – Alegria, tristeza, fome, guerra... ATRIZ (Filha) – Mãe. ATRIZ (Louca)... – nascimento, casamento e morte. ATRIZ (Filha. Chorando) – Fala comigo! ATRIZ (Louca) – Vem. ATRIZ (Quitéria) – Pra onde? ATRIZ (Filha) – O que ocê disse? ATRIZ (Louca) – Vem! ATOR – Pra onde? ATRIZ (Louca) – Pra onde? Pra morte. A morte agora é tua mãe! (Maria Quitéria sorri. Blackout) Epílogo Maria Quitéria e D. Pedro I. Ele, de costas, com capa, cetro e coroa. Ela, em pé, boquiaberta, sem conseguir dizer nada, a não ser balbucios. D. PEDRO – Então és a soldada do Recôncavo. (Quitéria abre a boca, mas não consegue emitir um som) Gostas de minha vestimenta? QUITÉRIA – Ahhhh... D. PEDRO (Virando-se) – Como? (Olha-a de relance. Depois, observa-a bem; logo não consegue conter uma gargalhada que vai tomando corpo aos poucos, uma gargalhada imperial, em tom libertinamente jocoso – era realmente uma característica de Dom Pedro —, quando vê Maria Quitéria vestida de homem com a junção da calça com o saiote à escocesa. Ele tenta parar de rir, mas é a muito custo que consegue. Quitéria apenas deixa as lágrimas rolarem, sem um gesto de reprovação, dor ou revolta) Mil perdões, senhora, a senhora... como é mesmo vosso nome? (Ela não responde) Não me leves a mal, embora muitos me critiquem por isso e já tenha perdido amigos por ter este riso frouxo, que não se segura. Não faço por mal, faço por jeito. Mas a senhora está a chorar. Oh, meu São Sebastião, o que estou a fazer? Eu não devia ter conhecido a senhora, só amanhã, amanhã, quando misturada à multidão e às tropas de soldados, receberia o soldo de alferes e a Medalha do Cruzeiro Imperial, por mim criada. (Sensibiliza-se) Oh, criatura, pare de chorar, senão inundaremos este pequeno palácio com as lágrimas de uma sertaneja. Eu ri e pronto. Esqueçamos. É que quando vi a senhora vestida assim, meio homem, meio mulher, caí a pensar em coisas engraçadas, como a liberdade e a escravidão, a revolução e a monarquia, a luta e a ignorância, tudo convivendo aqui, no chão deste imenso Brasil, de forma tão pacífica. Ah, será este o país do futuro, onde tudo é possível e permitido? Não me leves a mal. Não me leves a mal. Não me leves a mal. (Ficam os dois, assim, na mesma posição, enquanto atores, sob som crescente, percussivo, terminam de desencorporar os personagens) FIM Território Banal Ficha Técnica Texto produzido como integrante do Núcleo Dramáticas em Cena, contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro, ano 2008. A peça foi lida em 26 de novembro de 2008, no Satyros I, com direção de André Garolli e interpretação de Georgette Fadel. Território Banal Ou Uma Pequena Lição De Amor (Quando começa a apresentação, o público já terá entrado no espaço do teatro e se ajeitado nas cadeiras. Palco nu. Luz apaga. Sobe som. No escuro, entra uma personagem, que em princípio será percebida pela plateia apenas pela voz). MULHER – Eu preciso de luz! (Música está abafando sua voz) Por favor! Luz! (Técnico acende luz. Tira trilha sonora. Mulher está em posição estranha, meio de lado para a plateia, realmente sem saber da geografia local. Técnico aumenta luz, quando percebe que quem entrou não faz parte do espetáculo. Mulher recompõe-se. Veste um paletó claro, masculino, abotoado errado, visivelmente um figurino que, aliás, não foi feito pra ela. Olha para a plateia. Num primeiro momento, com ansiedade, timidez. Depois sabe que terá que enfrentá-la.) MULHER – Eu... Eu não estou aqui para decepcionar ninguém, mas não vai haver mais apresentação. Eu não devia dizer. É que houve uma briga, uma briga monstruosa lá dentro. As consequências... Eu não deveria. Não deveria contar. Mas alguém tinha que avisar. Vocês não têm nada com isso. Eu também não tenho. Não faço parte do elenco, não dirigi o espetáculo, não escrevi o texto, nada! Fui ao camarim cumprimentar... Mas vocês tinham que saber por alguém. A estreia... Não vai ter nenhuma estreia. Houve uma briga monstruosa lá dentro e as consequências... Vocês têm que saber... (Pausa) O diretor não fala mais com o autor, que não dirige a palavra aos atores, que brigaram com o figurinista, que atacou o cenógrafo, que discutiu com o iluminador, que abandonou o local em silêncio, não sem antes gritar em alto e bom som que NUNCA MAIS, NUNCA MAIS trabalharia com eles. E que era um alívio, ele disse, um ALÍVIO, abandonar o clã dos guerreiros medíocres. Disse sentenciando, como se tivesse alguma ascendência moral sobre todos eles Sobretudo quando se tratava Não de criar Estando a serviço de um público Mas de se impor, de impor Ideias e razões — sobretudo razões — sobre todas as coisas em nome de uma vaidade e de um orgulho, aliás, totalmente injustificáveis. (Pausa) Eu sei que algumas coisas não devem ser faladas, nem contadas... Mas... (Pausa) Eu estava lá quando a briga começou. Estava no camarim meia hora antes da estreia, quando a briga começou. Eu estava no camarim não como profissional, porque já não trabalhava mais com a companhia, mas como amiga, uma amiga sincera, que vai ao camarim cumprimentar todo mundo e desejar merda, muita merda. Porque o teatro é o único lugar do mundo que faz da merda sinal de sorte. Mas acho que não me notaram. Eu cheguei meia hora antes do espetáculo. Numa estreia. Não, nada profissional. Cumprimentar a todos como amiga, uma amiga verdadeiramente sincera, que se põe à disposição sem interesse, por puro exercício do hábito: Ser gentil ser leal ser solidária (Pausa pensativa) Só as verdadeiras amizades resistem a qualquer tipo de prova. (Mas por que estou dizendo isso?) (Mudança brusca de atitude. Puxou pela me mória) Eu dizia que estavam todos eles no camarim, quando eu cheguei, e estavam bastante excitados quando eu cheguei. Talvez, muito provavelmente sim, eu acho que sim, uma excitação normal de estreia, de quem em pouco tempo vai estar na frente de todo mundo, e de alguma forma sabe que vai ser julgado, em todos os sentidos, por todos. Normal que não tivessem me notado. Mas a excitação sempre me pareceu um parente próximo da animosidade. O degrau que antecede o comportamento agressivo. As pessoas excitadas normalmente falam o que não devem, agem como não deveriam, mostramse como se estivessem atrás de uma grande lente de aumento. Aparecem demais, vibram demais, são gigantes no gesto, excessivas na emoção. As pessoas excitadas normalmente são inconvenientes. Daí para o erro, o caminho sempre me pareceu muito curto. Mas a verdade é que quando entrei no camarim, dei de cara com a Atriz Jovem, que foi a minha melhor amiga nos tempos da faculdade, mas que agora para mim era só simplesmente a Atriz Jovem, já que depois que decidi não trabalhar mais com a companhia, ela resolveu se afastar de mim, como se eu... como se eu tivesse desvalorizado a força e importância do clã, da companhia, e de um teatro que, ela sempre disse isso, um teatro que só essa companhia era capaz de fazer: um teatro sincero, original e transformador. E quando eu olhei pra ela, mas pelo reflexo do espelho, ela – eu senti isso – fingiu que não me viu e continuou passando o batom nos lábios (talvez até mais sensualmente e mais agressivamente quando me viu, mas eu não tenho certeza), e notei que ela sabia que estava sendo observada, não por mim, mas antes pelo ator mais velho da companhia, o Velho Ator, que comia ela com os olhos. Ele já devia ter uns cento e cinquenta anos, e dizem que tinha sido um bom ator na juventude, mas, também dizem que ele tentou ir com tanta sede ao pote, buscou tão enlouquecidamente o sucesso, pisou em tantas cabeças pra tentar chegar ao topo, que acabou, não só não chegando, como ficando com a sensibilidade totalmente embotada. É claro que quando se é jovem, o medo que o futuro não seja como se sonhou é tão grande, que a recusa a qualquer frustração já é o início de um longo caminho de frustrações. Mas do medo à frustração, a pisar nas cabeças das pessoas pra encurtar o caminho, ah, tem uma grande diferença... (Pausa curta) Era uma pena ver um ator que um dia teve talento pra encantar pessoas, demonstrar que a única coisa que sobrava agora era a obrigação de provar sua libido, dizendo com os olhos que sentia muita fome, muito apetite, de boca feminina, de bunda e seios, e que era capaz de, com aqueles cabelos cor de caju, comer uma mulher, comer não: devorar, e muitas ao mesmo tempo, sem demonstrar qualquer cansaço. Era uma pena de ver. O velho macho murcho. Já a Velha Atriz, conhecida nos bastidores como maçãs de botox, porque tinha as bochechas inchadas e brilhantes (tinha a expressão dura, assim), também olhava pra Atriz Jovem, (aquela que estava passando batom nos lábios) mas ela estava esperando alguma outra coisa. O diretor andava de lá pra cá com um rolo de papel higiênico, arrancando de tempos em tempos pedacinhos de papel pra assoar o nariz. O cenógrafo examinava as cadeiras e a mesa que iam entrar no segundo ato, e uma fumaça carregada saía da boca do autor, enquanto os figurantes, sentados todos próximos uns dos outros, meninos e meninas, tossiam, meio intoxicados com a fumaça que ia direto na cara deles. E lá num canto, com uma habilidade inconfundível, estava o figurinista dando os últimos retoques com linha e agulha no vestido de uma atriz magrela. Eu estava ali, mais pra uma mobília sem importância, mas que também não dá muita importância ao entorno – eu só observava. De repente, ouvi uma frase ríspida, em desarmonia com a agitação, que era homogênea. Era qualquer coisa como ... mas nunca traz o seu batom. Não, não, não, foi mais ríspido do que isso: ... MAS NUNCA TRAZ O SEU BATOM. Então vi a Velha Atriz responder, com o dedo longo e magro apontando na direção da Jovem, enquanto a outra mão segurava o batom: Uma grosseria dessas só porque pedi o batom emprestado? Então a Atriz Jovem riu com um certo deboche, deixando transparecer uma indiferença idiota, aquela indiferença fabricada pra magoar e ofender, e respondeu: Não é o batom, é sua grosseria, o seu jeito mal educado de pedir as coisas. Então Maçãs de Botox destapou de vez a rolha que guardava um resto de alguma polidez, e possessa como se o demônio tivesse ido tomar chá com ela num dia de chuva, foi gritando: Pois eu te ensinei tudo sobre teatro, minha filha, até tentar descobrir onde morava o seu talento, apesar de ter andado muito e descoberto muito pouco; e agora vem você colocar as tetinhas de fora por causa de um cu de um batom? Então ouvi um Shhhhhhhhhhhhh, que acho que veio do Jovem Ator, conhecido como o Dissimulado, em mais uma manifestação de sua calma cadavérica. Ele podia estar diante de um cachorro atropelado, de uma criança em crise de epilepsia ou de uma velha sendo estuprada na frente dele, nada tirava o Jovem Ator de sua relação com o palco e a arte. Naquele momento, com o espelho. Shhhhhhhhhh – não atrapalhem minha concentração, imagino ele pensando. Isso esgotou a Velha de vez, e aí, no lugar de devolver o batom à Jovem, jogou o negócio longe e ele foi bater bem na testa do diretor. Imediatamente ele pareceu um touro provocado num desses rodeios criminosos e não ponderou: Se eu estou aqui pra dirigir um bando de animais de circo, então é melhor acabar logo com o espetáculo. E continuou falando e falando, e rasgando pedacinhos de papel higiênico que ele ia jogando no chão do camarim, até que, como se todo líquido do corpo dele tivesse secado, começou a pedir quase histericamente: Água, eu preciso de água! Então, como quem carrega o fogo de Prometeu, ou a tocha olímpica, o Velho Ator saiu do banheiro com um copo de plástico na mão. Depois só vi a cara do diretor encharcada. Claro que ele partiu pra agressão física ao Velho e aí o cenógrafo teve que apartar a briga, mas usou de tanta força que o Velho Ator caiu no chão e – acho que todo mundo ouviu – o cléqui na sua perna. Deu aquela abalada geral, todo mundo estremeceu, menos o Dissimulado. Ele continuou se olhando no espelho e fazendo exercício de respiração, como se tudo aquilo estivesse acontecendo numa estação lunar, não ali. Continuou impassível, provavelmente sonhando com o futuro e o sucesso, ou o sucesso e o futuro – a ordem dos fatores no caso dele não alterava o produto. O Diretor não devia ter dito aquilo. Bando de animais de circo. Foi a trombeta de Jericó. O Autor amassou o cigarro no chão do camarim e perguntou, em altos brados, se ele também era um animal de circo. Nessa altura ninguém conseguia se ouvir direito, porque os atores começaram a se pegar, de tapas a mordidas. A Atriz Jovem chacoalhou a Velha pra ter o batom de volta, e esse batom ninguém mais sabia onde estava, porque depois de acertar a testa do Dire-tor, ganhou um novo destino parabólico. Nesse momento, entrou o iluminador no camarim, sem perceber o Velho no chão, ainda pisou na perna dele, a quebrada, e, vendo tudo aquilo, disse que nunca mais, nunca mais trabalhava com um elenco daqueles, e que era um alívio abandonar o clã dos guerreiros medíocres. Então, virou as costas e foi embora. Não conto em detalhes, porque na confusão a gente se atrapalha um pouco. Mas foi mais ou menos assim. (Enumerando com distanciamento) Depois disso, só borrões na cabeça. O figurinista furando os próprios braços com a agulha de costura, como se praticasse contra ele próprio uma sessão de vodu. Um rolo de papel higiênico entrando na boca de uma camareira. Os figurantes, meninos e meninas, rindo e se divertindo como se estivessem passando férias interessantíssimas em Bagdá: transformavam objetos de trabalho, antes inofensivos, como textos, sapatos, figurinos, em armas muito perigosas, e iam atirando com toda a força e vontade os objetos uns nos outros, revelando prazer em acertar o alvo inimigo. Eu vi um ator de idade média, não mais que cinquenta, não menos que quarenta, arrancar das mãos de outro velho, outro velho, um figurante bondoso, uma gravata com que tentou enforcar o colega. E eu vi entre os dedos esbranquiçados e finos da Maçãs de Botox, já com o rosto desfigurado pelas lágrimas, transformado agora numa pintura canhestra, eu vi um tufo de cabelos pretos, arrancado provavelmente da Atriz Jovem. Essa, então, andava de quatro pra lá e pra cá, como num surto, procurando obcecadamente o batom perdido. E dizia: Se eu não encontrar esse batom, eu acabo com tudo isso. Acabo com o circo! (Pausa) Mas felizmente não vi mortos quando saí de lá, ao que me parece, se é que querem saber, o que me parece um bom sinal. Claro que me refiro aos mortos reais e não aos simbólicos, porque estes somos todos a cada instante, até onde se pode dividir o tempo, como diria Bergson, até onde se pode dividir... o tempo, estamos mudando – simbolicamente renascemos bilhões e bilhões de vezes, até onde se pode dividir..., já não somos no instante seguinte, como diria Bergson, o que éramos no instante anterior, ainda que não nos damos conta disto, porque vivemos agitados no mundo das agitações, falsificados pelas luzes que transformam a noite em dia, na constante mutação dos mesmos objetos de consumo, como se nada mudasse, como se tudo só se disfarçasse. Mas... Como eu dizia... (Pensando. Pausadamente). ... Não, não havia mortos quando eu saí de lá. Só os feridos, quando eu saí de lá, alguns jogados ao chão, outros sentados em cadeiras baixas, que seriam usadas no segundo ato do espetáculo. Eles cobriam com as mãos os olhos sangrados ou as partes do corpo machucadas. Seguravam com um braço o outro braço partido ou se arrastavam à procura de um lugar seguro pra proteger as pernas quebradas. (Pausa) O que aconteceu na sequência, eu não sei quem começou. Mas eu carrego comigo as imagens do horror. Eu carrego comigo as imagens do fogo. Eu não sei quem tentou incendiar o cenário e os figurinos, mas eu consegui controlar. Controlar o fogo. Não apaguei totalmente, mas domestiquei o fogo até que os bombeiros cheguem pra checar se foram apagados todos os focos. Enquanto eles brigavam, eu corri ao banheiro com figurinos arrancados dos cabides, molhei tudo com a água do chuveiro e joguei sobre todos os focos. Eu consegui controlar o fogo. Evitei que o estrago fosse maior... um incêndio de proporções inimagináveis, com dezenas de corpos carbonizados, eu imagino.... e sem querer assustá-los, incluindo os de vocês. Eu não sei quem teve a ideia, mas agora cenários e figurinos estão inutilizados. (Tocando seu paletó) Mas este eu salvei. (Toca-o, traindo um sentimento de discrição orgulhosa. Nem percebe que ele foi abotoado errado) Eu o peguei com um gesto pequeno, em meio à grande confusão. Eu vi o momento em que ele descrevia uma parábola no ar, até cair sobre mim, depois de ter sido pisado por alguém, não sei quem, exatamente aqui, mas eu não consegui limpar, eu tentei vindo pra cá, mas eu não consegui... a mancha não sai... O que importa é que ele está comigo agora, ele está em mim agora, ele é meu agora. (Alisa o paletó ou o toca como se tocasse a vida). O curioso é que a peça de hoje era baseada numa lição de amor. (Pausa, depois de olhar a plateia) Insisto. A peça de hoje, como devem saber, era baseada numa lição de amor. O título era Uma Pequena Lição de Amor, com o drama de uma família brasileira que se unia pela dor, demonstrando ter muito amor e caráter. E o tema foi trabalhado com foco na própria experiência do grupo. Eu sinto muito. Eu sinto muito. Eu vou sair daqui hoje, querendo continuar acreditando na força do teatro. Mas não de um teatro construído sobre a hipocrisia, em nome da sobrevivência material. Eu espero que vocês também continuem acreditando na força do teatro e que exijam mais verdade do teatro, que exijam a volta da força vital que criou o próprio teatro. Chega de mentiras. Chega de mentir. (Pausa) Foi só um pouco antes de eu sair de lá, quando tudo já era o início das cinzas e o fim do sonho da estreia, que alguém gritou que eu deixasse logo o camarim. Era alguém de quem eu só via os pés, deitado debaixo de um cobertor ou de um monte de figurino, não sei. Na hora não entendi muito bem, afinal eu não tinha sido notada em momento algum. Eu perguntei: Por que quer que eu saia? Para se proteger. Para me proteger? Para me proteger de vocês? Para se proteger de você mesma. Como, para me proteger de mim mesma? Por que eu precisaria me proteger de mim mesma? Porque todo mundo tem dois lados, você sabe, todo mundo tem dois lados – o bom e o ruim – ou o ruim e o péssimo, dependendo do ponto de vista. Não atice ainda mais o seu lado ruim ou péssimo. Eu não entendi. A mim ele vinha dizer isso, a mim, que tinha visto tudo aquilo, como observadora e não agente? E que tinha controlado o fogo, evitando uma tragédia maior? Eu não consegui entender, mas eu queria mesmo era sair correndo de lá, como os maratonistas que só pensam na chegada – eu só não sabia onde queria chegar. E foi só então que me veio à lembrança a plateia, vocês esperando, sem saber que a estreia seria cancelada. Mesmo não tendo nada com isso – eu não dirigi a peça, eu não escrevi o texto, eu não preparei o elenco, eu não sou o elenco – me senti na obrigação de avisar vocês. Alguém tinha que fazer isso. Já é um imenso sacrifício sair de casa à noite numa cidade como a nossa, para ver um filme ou uma peça de teatro, e enfrentar o trânsito, os ladrões, os flanelinhas, o estacionamento, o cocô dos passarinhos no capô do carro e o atraso pra começar o espetáculo... Confesso que mesmo que eu tivesse brigado com todo mundo, se fosse eu na situação deles, mesmo assim eu daria um jeito de a apresentação acontecer, e faria a melhor apresentação do mundo, a melhor que eu pudesse, nem que tivesse que improvisar, entrar em cena sozinha, dançar um solo e cantar com todo o meu coração pra agradar vocês, em nome, em nome desse compromisso que a arte... a arte... Vocês entendem. (Pausa bem pensativa) Me proteger... De mim mesma... A não ser que ele tenha se referido ao fato... Sim, porque eu não aceitei participar desse trabalho. Eu recusei fazer parte de Uma Pequena Lição de Amor. Quando me convidaram, alguns meses atrás, eu disse NÃO! Eu não quero participar. Mas nós temos trabalho pra você. E eu disse NÃO! Você pode escrever a história. Nós temos a ideia, mas não temos a história. E eu disse NÃO! Eu não quero escrever a história. Então, se não quer escrever a história, você pode atuar. Nós temos um papel pra você. E eu disse NÃO! Eu NÃO quero atuar. Se você não quer atuar, nem escrever, você pode ser assistente de direção. Nós temos o diretor, que é quem arrumou o patrocínio, mas não temos o assistente. Eu mais uma vez disse NÃO! Eu não quero ser assistente de direção. Mas se você não quer atuar, nem escrever, nem dirigir, como assistente de direção, o que é que você quer? Eu não quero NADA!, eu disse, Nada! Todo mundo quer alguma coisa, eles disseram; então alguma coisa você quer. O que é que você quer? Então não respondi mais nada. Eu fechei os olhos. Eu fiquei em silêncio. (Pausa) Eu acho que havia alguma coisa na minha recusa que eles não podiam entender, nem suportar: Você está cuspindo no prato em que sempre comeu. Você está sem trabalho e sem dinheiro, e não há coisa pior para um artista que ficar sem trabalho e sem dinheiro. E nós temos como te oferecer trabalho e algum dinheiro. Então, nesse caso, você deve ter um motivo muito forte, que nós esperamos que não seja só orgulho ou excesso de vaidade, porque, afinal de contas, estamos todos no mesmo barco, navegando juntos nos mesmos objetivos, fazendo as mesmas coisas – às vezes melhor, às vezes pior -, mas você concorda com a gente, sempre concordou, que somos artistas que acreditam na arte, arte com A maiúsculo, eles disseram assim, com A maiúsculo! E com todas as letras, reforçaram, e temos agora um projeto que nos dá muito orgulho, que vai ficar muito bonito, um tema que é muito forte e queremos colocar toda a nossa humanidade – humanidade, eles disseram – nesse trabalho importante, vai ser o trabalho da virada da companhia, e você devia perceber isso; então por que, por que é que você recusa participar com a gente, sendo que você está sem dinheiro e sem trabalho, repetiram, tendo um tema bonito como este, o amor, que não é um território banal, que continua sendo o âmago de nossas vidas, que justifica toda e qualquer existência humana, um trabalho que vamos realizar com rapidez e eficiência, por que, por que é que você... (Pausa curta) Por que, por que é que você está rindo? Eu ria porque ao ouvir as palavras rapidez e eficiência rapidez e eficiência (Mais rápido) rapidez e eficiência rapidez e efi... (Ri. Mas é um riso inconformado) Eu me lembrei do grande fotógrafo francês que, ao mostrar uma belíssima foto que tinha feito do mar pra um repórter de TV, disse, num rompante de empolgação: Merde! Os americanos têm que parar de querer tanta rapidez, dinamismo e eficiência! Uma boa foto leva às vezes o dia inteiro! Eu devia ainda estar pensando nisso, quando ouvi uma pergunta já nos seus finalmentes: ...(tatatatata) projeto forte, bonito, por que não? Foi aí que respondi que, de uma vez por todas, eu não ia participar daquele projeto, porque não acreditava naquilo e, que se quisessem que eu fosse coerente com os meus próprios sentimentos, fiel às minhas crenças, que respeitassem de uma vez por todas a minha recusa, porque, afinal de contas, se querem saber, eu disse a eles, eu não acredito em lições de amor. E disse mais: Que como artista e, ao mesmo tempo, APESAR de ser uma, eu definitivamente, pela última vez, eu dizia NÃO! Eu não vou participar de uma criação baseada numa lição de amor, porque o amor, o amor não pode ser ensinado, o amor não se presta a ser demonstrado pelo verbo. Eu não acredito na palavra que prega o amor, eu disse. Eu disse a eles: a palavra, mesmo quando diz a verdade, mente, porque a única verdade se expressa na ação, eu disse, o amor, o amor só no silêncio, o amor só no exemplo, eu disse, porque o amor é... o amor é um... o amor é uma... o amor... (Não consegue dizer. Não pode dizer, para ser inclusive coerente com o que acabou de expressar a respeito do amor. Então mergulha o seu corpo na tentativa angustiada de mostrar o amor de diversas formas: pegar o amor, tocar o amor, sentir o amor.) (Pausa do corpo) (Respira) Acho que não me perdoaram pela recusa. E eu não os perdoo pela falta de exemplo. O que aconteceu hoje foi só uma mostra do que vai pela cabeça dessa companhia há anos e anos. Eu tenho um problema: eu me sinto antiga. Eu acredito que a arte é uma extensão da própria vida – e o contrário também. Mas não sou modelo de nada. Nem sou modelo pra ninguém. Não sou modelo pra mim mesma. Estou só tentando, pela primeira vez na vida, ser coerente com as palavras. Com as minhas próprias. Fazer o que eu prego – ou, então, não pregar. Na vida, eu conheci o Velho Mestre, o que todos consideravam velho e mestre, e eu sei o que significa um mestre velho ordenando: Faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço. E ele não deixará de ser um velho mestre para aqueles que perceberem que o que ele ensina mesmo é que não devemos ser como ele. Mas eu demorei pra perceber isso. Não faz mal. O importante é perceber um dia. E tentar fazer diferente. Eu hoje digo NÃO! à impostura e ao simulacro. Eu tento dizer NÃO! Quantas vezes, posso: NÃO! Eu cansei dos falsos mestres e dos falsos artistas. Eu cansei da arte como produto de exploração da boa-fé do público. Eu cansei da arte como exercício da mediocridade de pseudo-pensadores. Eu cansei da arte como objeto de consumo de espectadores impassíveis. (Pausa) Mas quem sou eu pra falar tudo isso? (Pausa curta) (O homem deitado) Todo mundo tem – você sabe – o lado bom e o ruim – ou o ruim e o péssimo. Eu queria domesticar o meu lado ruim. Talvez reconhecer esse lado ruim ou péssimo seja o primeiro dos passos. Está bem, eu reconheço. Eu não fui ao camarim como amiga sincera, cheia de boas intenções. Eu fui como alguém que faz um teste fingindo amizade e respeito. Eu fui para cobrar, no fundo, uma firmeza de propósito, de caráter, de coerência de proposta. Eu provoquei a companhia com a minha presença. Eles não me queriam ali, já tinham dito. Mas eu fui. Eu, que tinha ascendência moral sobre eles, como costumavam dizer, pelo simples fato de nunca permitir que ações pequenas e conversas mesquinhas dessem tom aos encontros, pelo simples fato de não permitir que mentiras embotassem a experiência do grupo. Eu era uma grande referência para coisas simples porque até o óbvio ali, naquela companhia, já tinha se perdido. A Atriz Jovem, que tinha sido minha melhor amiga nos tempos da faculdade, e que agora era só a Atriz Jovem, disse para o Diretor, que me avisou: Se ela disse Não! à companhia, eu também digo Não à presença dela na estreia. Eu sabia, sim, como um NÃO, o meu NÃO, podia incomodar. Mas não sabia quanto. Agora eu sei. O fogo foi ela quem colocou. A Atriz Jovem. Enlouquecida atrás do batom, que já não significava pra ela um simples batom, mas toda a matéria do mundo perdida num momento de vacilo, encontrou no caminho um isqueiro, que pensou ser o batom, que era da mesma cor do objeto perdido. Eu vi quando ela colocou fogo no primeiro figurino que caiu na frente dela. Assim começou o final dessa história. (Mudança de atitude) Eu quero pedir desculpas por ter tomado o tempo de vocês. (Pausa) O que está acontecendo agora é tão diferente do teatro – do teatro que vocês vieram ver aqui. O que vocês iam ver aqui era uma peça com uma parte ficcional e uma parte real, com depoimentos dos atores – real não, porque o teatro, mesmo quando é real, está fingindo que não finge. Eu sei que é uma brincadeira infantil, às vezes infantil demais. Eu não estou aqui pra comentar esse tipo de coisa. É que é curioso: o teatro, vocês sabem, originalmente é tão diferente disso, disso que está acontecendo agora. (Pausa) Eu vim aqui hoje, como vocês, para ver o espetáculo. Desejo mais sorte da próxima vez. (Olha para si. Percebe o paletó abotoado errado. Sorri, enquanto começa a reabotoá-lo) Tudo o que contei não é um julgamento. Eu não teria esse direito. Eu sei que não. (Coloca a mão no bolso, de onde tira um batom – o batom da atriz jovem). Alguém disse que as pessoas não têm que descobrir o que são de fato, mas descobrir as contradições que são de fato. Eu devia ter devolvido o batom quando ele caiu aos meus pés. Mas eu não tinha nenhum bom motivo pra fazer isso. (Passa o batom nos lábios, esparramando com certo ritual. Olha para ele e guarda-o) Acho que é isso, que é só isso. (Apontando a porta de saída) Voltemos, então, pro lugar de onde viemos. Boa noite! (Sai de cena. Blackout – ou não). FIM Índice No Passado Está a História do Futuro – Alberto Goldman 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Prefácio – Luís Cláudio Machado 13 Bilhete 29 Impostura 67 Maria Quitéria 119 Território Banal 196 Crédito das Fotografias Alexandre Diniz 120, 122 André Stéfano 66, 70 João Caldas 12, 28, 32 A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Débora Duarte – Filha da Televisão Laura Malin Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz Erika Riedel Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa Fernando Peixoto – Em Cena Aberta Marília Balbi Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Isolda Cresta – Zozô Vulcão Luis Sérgio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert Jorge Loredo – O Perigote do Brasil Cláudio Fragata José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra Alberto Guzik Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro e Eu Não Sei Ler Eliana Pace Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silnei Siqueira – A Palavra em Cena Ieda de Abreu Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana? Maria Thereza Vargas Stênio Garcia – Força da Natureza Wagner Assis Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Theresa Amayo – Ficção e Realidade Theresa Amayo Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Walter George Durst – Doce Guerreiro Nilu Lebert Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista © 2010 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Salomão, Marici O teatro de Marici Salomão / Marici Salomão – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 252p. : Il. – (Coleção Aplauso. Série teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). Conteúdo: Bilhete; Impostura; Maria Quitéria; Território Banal. ISBN 978-85-7060-920-5 1. Teatro brasileiro 2. Teatro — História e crítica 3. Salomão, Marici, 1963 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 809.2 Índices para catálogo sistemático: 1. 1. Teatro : Literatura : História e crítica 809.2 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados. 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