Bráulio Pedroso Audácia Inovadora Bráulio Pedroso Audácia Inovadora Renato Sérgio São Paulo, 2010 No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo culturalparaesse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução São Paulo, metade dos anos 1940. Em meio à calmaria da época, o dia parecia ter mais de 24 horas. A cidade girava em 75 rotações e o bairro das Perdizes era o nosso pequeno paraíso particular. Nem sombra do tal capítulo interessantíssimo da andradiana Pauliceia Desvairada. Ainda havia um status social chamado classe média. Bastava-nos a leveza de viver quase sem problemas, à base de bolinhas de gude, bicicletas Peugeot, Gumex ou Glostora nos cabelos, entre inocentes bailinhos sem DJs, em casa de um e de outro. Dois pra cá, dois pra lá, sem torturantes band-aids nos calcanhares, aquelas dancinhas sincopadas de par em par eram um grande prazer, embora sujeitas às pequenas desilusões de praxe. Ninguém ficava sentado quando The song is you vinha da vitrola, na voz-veludo de Frank Sinatra ainda crooner da orquestra de Tommy Dorsey, antes de passar o microfone para Dick Haymes e partir para a glória. Muitas emoções, nenhum chilique, que chá curava. No mais, fora Flash Gordon, um interplanetário pioneiro servido em capítulos semanais no Cine Santa Cecília, nossos super-heróis de verdade eram aqueles que desciam do bonde andando, de costas, na ladeira da Rua Cardoso de Almeida. Éramos felizes e sequer desconfiávamos desse mero detalhe. Enquanto isso, lá no alto, na bucólica Rua Caiubi ainda sem nenhum espigão a arranhar-lhe o céu, um casarão funcionava como se fosse o refúgio quase diário dos vazios de alguns de nós. Era ali que o Bráulio morava, era ali que a irmã mais velha dele, linda como a Maureen O’Hara, cantarolava La vie en rose e eu me sentia bem demais. Foi quando juntamos nossas mesadas para comprar o celuloide, arranjamos uma maquininha de filmar emprestada e, durante as férias escolares de junho, aconteceu uma adaptação de Romeu e Julieta em curtíssima-metragem, dirigida pelo Bráulio e na qual aquele primo da Julieta – Mercúcio ou Teobaldo? – que duela com Romeu e morre, era eu. Juntos, nós dois fizemos então um cursinho de cinema no Museu de Arte, além de outro, de Iniciação à Estética, no Museu de Arte Moderna, ainda na Rua Sete de Abril. Os fins de tarde eram no bar do museu, no mesmo prédio, entre goles de altas conversas, sem gelo, das quais éramos dois atentos ouvintes privilegiados da mesa de Almeida Salles, crítico de cinema do Estadão, e Delmiro Gonçalves, crítico de teatro do mesmo jornal, além de outras figuras de igual quilate, inclusive Vitor Lima Barreto, eufórico com o prêmio especial do Festival de Cannes de 1953 para seu filme O Cangaceiro. Um dia, Bráulio quis se levantar da cama e não conseguiu. O teto passou a ser seu limite. Continuei a visitá-lo quase diariamente, até que, de repente, nossos caminhos se bifurcaram. Devia estar escrito nas estrelas, quem sabe, nos nossos horóscopos. Ou talvez porque ele tenha tido a sorte de um amplo acesso à cultura desde cedo. Por volta dos 20 anos, por exemplo, já tinha contato com Clóvis Graciano, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Flávio de Carvalho, Lasar Segall e Brecheret, enquanto alguns de nós outros estávamos ocupados em botar a bola sete na caçapa da sinuca e mais interessados em ouvir Agostinho dos Santos inaugurando seu canto num taxi-dancing da Avenida Ipiranga ou Tito Madi, numa galeria da Rua Dom José de Barros, dizer que chovia lá fora. Até que, no final da segunda metade dos anos 1950, quase nos cruzamos em nossos começos profissionais, ele no Estadão, eu nas Folhas. Atraído pelo canto da sereia, vim para o Rio em 1960, 11 anos depois Bráulio viria também, trazido pela grande revolução de Beto Rockefeller que ele, um estreante no reino encantado do faz de conta tinha acrescentado ao cotidiano da pátria. Uma trama cujo conceito foi o toque inicial da transformação das nossas novelas em autêntico produto nacional, no conteúdo e na embalagem. Qual livro, qual tricô, qual palavra-cruzada, qual nada, a estranha luminosidade daquela telinha tinha preenchido o velho vácuo doméstico de sempre e se transformava no pão nosso de cada noite. Foi só no começo de 1970 nosso reencontro, num apartamento alugado por ele no Leme, já funcionando em pleno regime de open house, cheio de gente, entre outros, um José Wilker recémchegado ao Sul maravilha e, levado por mim a pedido do próprio Bráulio, o Juarez Machado ainda decolando para a fama com uma exposição em galeria da Rua Barata Ribeiro, atualmente, sinal dos tempos, abrigando uma imobiliária. Nesse, digamos, segundo capítulo de nossas vidas, o contato foi mais intenso ainda, durante os quais trocamos muita coisa, de tudo, de ideias a lembranças. De tão longas, nossas conversas às vezes faziam a noite ficar pequena, com direito a lágrimas, entre risos, quando chegava a hora de alguma recordação. Entrevistei-o várias vezes para publicar em jornais e revistas, uma delas, minha preferida, abre o terceiro ato deste livro. Acontece que não há memória que guarde tanta coisa acontecida durante quase meio século de nossas vidas, então, para que este livro fosse o que é, foram necessárias algumas visitas à Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde está guardado o acervo dele contendo parte de sua corajosa obra. O tempo passou, o ser humano fez o planeta ficar de mau humor, o mundo mudou. As amizades já não são mais como foi a nossa, nem tão duradouras, muito menos tão profundas. E eu não podia deixar que, 20 anos depois da morte dele, a proverbial desmemória nacional transformasse meu amigo-irmão-camarada Bráulio Pedroso em mais um ponto de interrogação: Quem?! Pois é desse causador de pelo menos uma transformação radical em nossa já sexagenária televisão, além de alguns outros marcos históricos de autoria dele, enfim, de todos esses antes e depois, é dessa figura antológica de nossa teledramaturgia, da vida trepidante e da obra contestadora dele, que vamos falar agora, em três atos quase teatrais. Pedaços de uns dias em que os enredos de nossas novelas ainda eram fruto da imaginação, da criatividade, da competência, e não cacos de vida apanhados do chão, simples retratos da realidade como ela é. São gotas de uma velha e saudosa época em que as histórias ainda começavam com aquelas três suaves palavrinhas mágicas: era uma vez ... Renato Sérgio Primeiro Ato Apenas o silêncio do segredo descabido Segundo Ato Atingindo os inquietos, indagadores, inconformados Terceiro Ato Panorama visto por um espectador das imobilidades alheias Primeiro Ato Apenas o Silêncio do Segredo Descabido Com menos de 7 anos, talvez, mas certamente antes de aprender a ler, eu já tinha quebrado a cabeça três vezes. Era assim que começava o esboço do autorretrato precoce de Bráulio Pedroso, datado de 7 de junho de 1990, dois meses e nove dias antes de ele ir-se embora para o outro lado do mistério, de repente, sem nem ao menos dizer adeus. Não vão me chamar de criança desastrada! Nada era à toa. Hoje, passado mais de meio século, sem estirpe a defender, creio que rompia a cabeça por não suportar a pressão de sentimentos inconfessáveis. Cabiame, no retrato de família, o papel de guardião da infâmia. Uma função de destino, sem escolha, implacável no encargo destituído de qualquer compensação. Apenas o silêncio do segredo descabido. Nunca fui um trágico, apesar da tragédia se comprazer em minha companhia. Mas, nessa idade, ainda não tinha a prática de rir de mim mesmo. Precisava me assustar com a própria desgraça, encharcando-me de sangue, aos borbotões pela testa, turvando a vista, salgando a boca e embandeirando-se sinistro na camisa. Bem cedo, o calor esvaecente do sangue mostrou-me como é certa a ideia de que a morte é o frio que nos resta. Brrrrrrrrr! Os degraus de cimento desciam ao chão úmido do porão. Uma escada estreita, encostada na parede e aberta ao precipício no lado oposto. Até hoje, em qualquer queda é aquele chão de infância que se me afigura. Minha avó Maria Luiza qua-se não enxergava. Lia com o livro colado no rosto e não reconhecia ninguém a mais de um metro. Não sei como me catou naquele buraco e subiu as escadas comigo no colo, sem cair. Pelo tato, por certo, tomou consciência de quanto eu sangrava. Tirou-me a roupa e pôs-me embaixo da torneira da banheira. Nu, enregelado, devia ser inverno, eu sabia, num susto entrecortado de lágrimas, que algo inquietante sumia vermelho e inexorável pelo ralo. Pela primeira vez me assistia como imagem dolorosa. Inventei uma teoria, nunca comprovada, que explica a inutilidade do proselitismo metafísico. Creio que se nasce ateu. Ou teísta. A mim coube uma implicância inata com Deus, seus filhos e profetas. O casarão de minha avó, no bairro de Higienópolis, acompanhava o estilo de uma suposta nobiliarquia paulista. Eram três andares, todos com mais de quatro metros de altura e paredes grossas. O porão vazio de objetos e o sol nunca alcançando a parede dos fundos acentuavam austeridade e imaginação. Os recônditos instigavam brincadeiras, algumas imóveis, outras com a agitação desordenada da primeira infância. As imóveis, certamente premonitórias, eram as preferidas. Gostava, calado na sombra, de ver as réstias de luz com seus universos de poeira em suspensão desorganizando-se à passagem de meu carrinho. Sempre tive prazer em descobrir ou provocar a possibilidade do desequilíbrio. O eterno se consegue eterno pelo caos. E o porão não tinha lógica. Ou melhor, abria-se a qualquer lógica. Ali, onde a família me esquecia, inaugurava-me na liberdade. Era a minha Pasárgada. Até que houve a queda. Bíblica imprecação. Hoje, as paredes silenciosas e a luz das gelosias ressumam aos templos que prometem paz lembrando a culpa. Cristo está sempre ali, despudorado na propaganda do calvário. Nunca suportei o elogio do horror, esse bicho-papão da obediência. Certamente não seria pela ameaça que me pegariam. Mas, as seduções do Bom Deus eram muitas e o mundo, como novidade, afigurou-se-me pela primeira vez na comunhão de meu irmão. Levado à força, quase arrastado, saía do casarão de minha avó para a desconhecida arquitetura de adros, vestíbulos, corredores, salões, pátios, capela de abóboda vertiginosa e escadas de mármore suspensas por vitrais. Em cada passo, uma ascese. Meus olhos de fedelho, tão próximos do chão, só olhavam para cima. Sem dúvida, padre sabe promover o céu. A cerimônia deu-se no Colégio São Luís, que ocupava um quarteirão inteiro da Avenida Paulista. Nunca tinha entrado em nada que fosse tão majestoso. Aliás, nem sabia o que era o majestoso. Foi preciso a caminhada da capela ao refeitório dos alunos, passando pelos prédios do convento e da escola para me dar conta de que meu porão era apenas um porão. Um território ridículo. Nunca mais iria me conformar. A grande brincadeira estava na Grande Morada. Dei tapas na boca, sincero, ao descobrir que os padres eram íntimos do dono da casa. Criança é tão espontânea na hipocrisia que não consegue ser hipócrita. Do risinho pelas viúvas desconsoladas, passei ao respeito imediato pelas vestes negras. Integrei a batina à normalidade e segui o cortejo de pais, filhos e parentes pelos corredores do convento, sem escapadas e sem perguntas, como era de se esperar de uma criança bem-comportada. No refeitório, os religiosos, santas criaturas!, ofereceram chocolate quente para os recém-comungados. Aquela xícara fumegante era tudo que eu podia desejar. Mas não me foi oferecida. Era apenas para os que, em jejum, receberam a primeira eucaristia. Quis ser logo como eles. Uma vontade imediata de enturmação. Mas, você é ainda muito pequeno, meu filho, antes precisa saber ler para estudar o catecismo. Fosse lá o que fosse esse tal de catecismo, achei uma maldade ter de esperar tanto. Afinal, se Deus era tão bondoso, porque não me convidava? O que ia lhe custar uma xícara de chocolate? A rejeição não bateu no estômago, mas num lugar por mim desconhecido. Hoje posso saber que o desamparo da alma também é feito de fome. Esperneei como qualquer criança numa revolta indiscriminada. Na saída, berrei pelos corredores silenciosos da Grande Morada e achei suspeito, ao passar pela capela, aquele homem na cruz. Como é que alguém que sabia de tudo se deixou pegar numa dessas? Anos mais tarde, o Bom Deus voltou a me tentar transfigurado em chácara dos padres. Os dominicanos se instalaram na mesma Rua Caiubi em que eu morava, no alto do bairro das Perdizes. A princípio eram poucos e viviam numa pequena casa no centro de um terreno, com cerca de meio alqueire. Lá havia de tudo, criação de pássaros, de galinhas, horta, pomar, mato com amoras silvestres e, principalmente, jabuticabeiras de se comer até estourar e mangueiras de se trepar até onde se divisava o Pacaembu em início de urbanização e o Sumaré, que à noite acendia crendice com os fogos-fátuos do cemitério do Araçá. E, o que era demais, havia um campinho de futebol, com traves! A chácara dos padres era o Sítio do Pica-pau Amarelo que despencava dos livros para a nossa vida de garotos urbanos. Frequentá-la era um privilégio. Mas, para isso, tinha-se de conquistar a amizade dos dominicanos, indo à missa, confessando, comungando, e provando vocação exercitandose como coroinhas. Andei rondando a sacristia para me dizer da turma, mas escapei das aulas de catecismo e nunca aprendi o padre-nosso e, apesar de minha inata fascinação pelas mulheres, nem a ave-maria. O motivo só consigo explicar pela teoria da inutilidade do proselitismo metafísico. Então vamos às implicâncias: voz de padre, roupa de padre, cheiro de padre. Se todos nós somos indivíduos, por que os comportamentos não eram comuns? Anos mais tarde vi algo parecido no Partido Comunista. O recitativo melífluo, as posturas monásticas e o monocordicamente repetido são subterfúgios da mentira. Espiritualistas e materialistas agem assim quando não suportam a verdade do corpo. E militares de qualquer crença, idem. Aliás, qualquer fardado. Mas, nessa época eu não tinha tanta ojeriza a mitras e dragonas. Segunda Guerra terminando, dançando swing e me masturbando em ritmo diário, minha visão das batinas tinha mudado desde a visita à Grande Morada. Nem ridículas, nem solenes. Práticas. O saiote devia refrigerar a genitália dos religiosos para que a cabeça do pau não esquentasse em pensamentos próprios. A grande dúvida, porém, não coube ao sexo. Coube à barriga. Sempre me perguntava como seria engolir uma hóstia sem mastigar. Até que um dia, na companhia de um amigo coroinha, fuxicando a sacristia distante dos seus olhos, encontrei uma lata cheia de hóstias. Posso? Podia, aquelas ainda não tinham sido consagradas. Experimentei a primeira. Dissolveu-se como milagre em minha boca. Nada tão suave. Não resisti. Mais uma, mais outra. Uma volúpia nada religiosa. Já quase devorava toda a lata, quando o aprendiz de santo me repreendeu: Chega, Frei Domingos pode perceber. Fui pra casa com a ideia de comungar pra perceber em que ponto Deus mudaria o gosto da hóstia. Antes de qualquer decisão, porém, toca a campainha. O coroinha, que iria se tornar padre e seria preso 25 anos depois pelo Serviço Secreto do Exército no convento construído ali na chácara dos padres, entra rubro de consternação em minha casa. As hóstias estavam consagradas! Para quem não viveu, e esse é meu caso, fica impossível imaginar o que se passou nos porões do Doi-Codi durante a ditadura militar. Mas quando me lembro daquele garoto quase sem voz em minha frente, penso que talvez aquela tenha sido a pior tortura pela qual ele passou em sua vida. Quanto a mim, barriga cheia, apavorei-me com a ideia de ter uma indigestão. Esperei um minuto, respiração contida. Nada. Esperei uma hora, respiração acelerada. Nada. Esperei mais duas horas, tempo normal de uma digestão. Nada. Ora, que vá pro diabo! * E assim estava escrito no diário dele, no mesmo dia, uma quinta-feira de outono: Naquela tarde eu estava sem grande disposição. Comecei a ler um livro e após algumas páginas, súbito, veio-me a vontade, então iniciei a minha autobiografia. O importante é que peguei o tom. E achei bem escrito. A moral ficou altíssima! Aos 59 anos de idade, em seus últimos pedaços da pequena fatia de vida que lhe coube, Bráulio estava de volta a um velho porão da infância onde inaugurava sua liberdade. Tudo levava a crer que ele começaria a mexer e remexer em outros profundos compartimentos internos paulistanos, íntimos, pessoais e intransferíveis, de um doce tempo em que ainda havia bondes elétricos da Light and Power,o ‘39’, subindo e descendo as ladeiras de uma rua chamada Cardoso de Almeida, com o condutor, o motorneiro, os passageiros, e alguns reclames, tradução, anúncios. De um tônico, Fortifica quem o toma, quem o toma forte fica e de uma chapelaria, Não leve na cabeça, leve na cabeça um chapéu que é leve na cabeça. Além do mais bem bolado: Veja ilustre passageiro, o belo tipo fa ceiro que o senhor tem ao seu lado! No entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rhum Creosotado. Acontece que, de repente, não havia mais bondes e arrancaram o trilho do chão, tiraram os paralelepípedos e botaram betume resinoso, ninguém mais tomava tônicos, usar chapéu saiu de moda, o Rhum Creosotado sumiu do mapa, o casarão da avó em Higienópolis virou arranha-céu e entre as memórias de infância mais remotas daquele menino restava um inesquecível voo entre São Paulo e Rio, num trimotor Junker, talvez um dos primeiros aparelhos de nossa aviação comercial. Anos depois, autor já consagrado, mas desencantado com a queda das utopias e a ascensão das sociedades de consumo, ele tinha voltado a ler os grandes textos, Spinoza, Nietzsche, Heidegger e, Freud explica, Carl Gustav Jung. Havia começado muito cedo a se envolver com uma nova tentação, depois das hóstias: o desejo de escrever. Só que ainda não sabia quanto isso custava, quanto se trocava de vida vivida para ser um artista. Mas, se alguém dissesse que eu tinha escolhido um caminho errado, juraria que não, porque não haveria mobilidade maior do que aquela de falar dos outros e da gente mesmo, além disso, porque eu gostava do que fazia, do que já tinha feito e do que ainda poderia fazer. Gostava tanto, que suportava horas sem ninguém, comprazendo-se com a companhia das palavras que ia colocando no papel. Até que, em maio de 1968, aconteceu a tarde de autógrafos de lançamento de seus primeiros contos, reunidos em um volume intitulado A Catedral, na Livraria Brasiliense, no número 99 da então elegante Rua Barão de Itapetininga, em São Paulo. Era este o texto que dava nome ao livro: Para tudo existe uma idade certa. E transponho o portal, deixando a luz do dia para trás. Na obscuridade, meus olhos quase cegos guiam-se pelos ladrilhos da nave. Vou, sem caso pensado, caminhando em direção do altar-mor. Súbito, me detenho. O andar desajeitado espalha barulho por todo o templo. Dou-me conta de que sou um intruso e aflito busco na lembrança a atitude correta: benzer-me?, ajoelhar-me? Ou usar os corredores laterais? Devo, pelo protesto do eco, estar pisando num chão destinado a pessoas de alguma santidade ou tonsuradas. Porém, é ridículo permanecer imóvel sem o peso de uma punição. E mando às favas o ritual: culpado ou inculpado, não me cabe decidir as regras do jogo. Sou um turista, a bem dizer, um curioso à procura da paisagem da memória, do silêncio das igrejas da minha infância. E sigo despreocupado com os vultos que a escuridão coloca nos vazios da catedral. Cuido apenas de evitar o ruído de meus sapatos. Um respeito que não implica medo. Conforta-me estar sozinho. Mas a certeza é curta: primeiro baixo e depois crescente, escuto um rosnar contínuo como se fosse uma fera acuada e cansada. Lentamente me aproximo da imagem do Crucificado. Paro. Uma figura de cabeça geométrica e corpo avantajado abre os braços. Levo um certo tempo para entender que, na minha frente, de mitra e vestes suntuárias está um velho cardeal. Julgo tratar-se de um ato litúrgico. Mas no templo, além da modulação de bancos negros, não existe ninguém. Nenhuma vela acesa, nenhuma ornamentação. Por via das dúvidas, ajoelho-me como um bom cristão na primeira fila. Daqui posso distinguir as feições de Sua Eminência, murchas, macilentas, com um queixo avançado que, mordendo a falta de dentes, parece querer engolir o resto da cara. Em sinal de reverência, concentro-me na tentativa de uma prece e logo desisto, pela incapacidade de lembrar uma única frase de qualquer oração. Levanto a cabeça e dou com os olhos fixos no cardeal. Apanhado em flagrante, não consigo formular nenhuma desculpa. Porém, o rosto enrugado não traz sinal de recriminação. Olha-me demoradamente e creio que chega a sorrir. Todavia, não me sinto encorajado, não sei se o sorriso é uma manifestação de amizade ou se é resultado de uma paralisia facial. E a mesma dúvida persiste quando ele me pisca o olho. E pisca insistentemente. Um disparo muscular, penso, e não tomo nenhuma iniciativa. A figura rígida movimenta-se, abre os braços e sinaliza com a ponta dos dedos que escapam da manga ampla. Quer que eu me aproxime. Desprezando a liturgia, escorado na autoridade de quem me chama, subo ao local sacramentado. O rosnar interrompe-se e ouço claramente sua ordem: O incenso, seu idiota, o incenso! Apanho o turíbulo e Sua Eminência junta as mãos em prece diante do peito. Vendo-me atarantado, diz raivoso: O fósforo! Acendo o turíbulo e incenso profusamente o altar. Sua Eminência sorri satisfeita, prosseguindo o ritual. Já não estranho. A velhice ou a cegueira levou-o certamente a confundir-me com um sacristão. Acho divertido o equívoco e me entusiasmo com o ofício. Provoco uma fumaceira enorme que depois de acumularse na cúpula, espalha-se pelo templo. O missal! Coloco o livro sobre o oratório e abro numa página qualquer. Sua Eminência lê. E manda: Reze! Convencido de sua senilidade, não me preocupa a ignorância dos textos sagrados. Não disfarço a prece. Simplesmente emito grunhidos. Porém, quando Sua Eminência dá-me as costas, pareço ouvir uma palavra: Inocente! E após uma pausa: Não adianta! Prossigo com o turíbulo até que a fumaça nos separe. Aí eu sento. Espero o fumo se desfazer. Quando o ar fica limpo, percebo que o cardeal já se retirara. Sozinho, retomo a visita. Um cheiro forte de putrefação leva-me à ala esquerda. Um cheiro a defunto. E, de fato, ao aproximar-me, verifico que os bancos negros são caixões mortuários. Todo o templo está repleto de caixões mortuários. Uma cerimônia fúnebre, por certo. Mas o cheiro insuportável parece indicar que os mortos continuam dentro das urnas. E noto que uma delas tem a tampa aberta. Vou me certificar e encontro uma mulher nua repousada sobre um travesseiro. Tem um braço amputado e os olhos arregalados. Não emito nenhum gemido. Debruço-me sobre ela: O que faz? Foi uma necessidade, é um desafio! O rosto contraise e, num ligeiro esgar, indica a parte inferior do corpo. Cravada na perna direita está a sua mão amputada. A dificuldade é suportar o mau cheiro. A feição abate-se e a voz quase extinta sussurra: se eu resistir à putrefação! Fecha os olhos. Adormece. Antes de me retirar, leio numa pequena tabuleta pendurada no toco do braço: Aparecida Castanheira, 37 anos de idade, Rua das Amoras, 107. Música. É isso. Satisfazer uma vontade antiga. Então, com longas passadas, subo ao coro. Ninguém me impedirá de tocar o órgão, de saber como é o som subindo pelos tubos enormes. Experimentarei todas as chaves e registros, todas as combinações. Serei suave e vigoroso, inquieto e calmo. Levanto a tampa e atiro os dez dedos sobre o teclado. O órgão não responde. Insisto nas teclas, nos pedais, até que o movimento mecânico desprovido de som me traz a mágoa de um brinquedo quebrado. Desiludido, encosto-me no parapeito. E, daqui do alto, olho para o chão negro de caixões. Num instante, sou possuído pela vontade de profanar aquele sepulcro. Agarro o cordel da cortina e, com a recordação da infância, atiro-me no espaço: Tarzan! Um estalido, a corda partida e o assoalho quadriculado da nave aproximando-se. Houve ainda tempo de perceber a tampa do caixão fechando-se sobre mim. Por mera coincidência ou carimbo genealógico, tatuagem de sangue ou impressão digital familiar, havia uma forte presença dos sonhos também no irmão mais velho, Dr. Alberto Gentil de Almeida Pedroso Filho, ilustre desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que nunca esqueceu de uma noite de seus cinco anos, idade em que a morte ainda não está presente na vida da gente, quando sonhou que acompanhava um enterro. Seguia o féretro e atrás, a pé, os acompanhantes, cabisbaixos, compungidos. Mas quem estava dentro do caixão era ele mesmo, que seguia o próprio enterro tranquilamente consciente, como se aquilo fosse absolutamente normal. De acordo com suas próprias palavras, guarda o velho sonho até hoje na memória octogenária, como quem recolhe um retrato de vida (ou morte). Pouco depois, aos nove anos, ele tentava uns versinhos com o título de Sonho ou Realidade? E muitos anos depois, em uma madrugada de 2001, aquelas antigas dúvidas existenciais precoces voltariam a ele, logo passando para um livro de sua autoria, transformadas em perguntas. O que é realmente o sonho? O que é propriamente a realidade? Onde o encontro, em fusão, do imaginário com o real? E os sonhos recorrentes, que procurei depois desvendar? E por que essa permanente indagação? Por quê? Afinal, qual o limite da sanidade? Sonhos. Segundo Marilda, ex-mulher do Bráulio, a inspiração para os contos dele às vezes também vinha dessas imagens noturnas: Ele recorria a esse tipo de sugestão que surgia durante o sono sem qualquer preocupação freudiana, até porque achava que os sonhos provocam problemas que transcendem à ordem psicológica. Ela tem uma versão detalhada de como surgiu a ideia de A Catedral, por exemplo: Morávamos na Rua Sabugi, 18, no Jardim Europa, perto do Clube Pinheiros, em São Paulo, primeiro domicílio nosso, quando uma noite tive um pesadelo que me apavorou de tal maneira que eu me levantei e fui andar pela casa, com medo até de descer as escadas. Ele então viu que eu tinha saído da cama e foi ao meu encontro no andar de baixo. Aflitíssima, narrei o que tinha me incomodado tanto: entrando numa imensa catedral, eu ia andando pela nave central quando avistei, lá na frente, um caixão de defunto. Aproximei-me. De repente, quem estava ali dentro cravou as unhas em meus braços e eu não conseguia me desprender dele? Quando consegui olhar para o seu rosto, o susto foi maior ainda: era meu avô! Tive a impressão de que queria que eu fosse junto com ele e isso me amedrontou profundamente. O simples fato de ter contado o sonho, porém, acabou me acalmando. Pois, uns 15 dias depois, o Bráulio me mostrou o texto de mais esse conto. Quando lançado, A Catedral era o último texto do livro, que ele dedicava a mim. A história do casal Marilda/Bráulio tinha começado na noite de um réveillon na casa da poetisa Hilda Hilst, na passagem de ano de 1963 para 1964: Eu estava sozinha, e ele, acompanhado de uma namorada. Acontece que quando fomos apresentados, o primeiro olhar dele para mim já não deixava dúvidas de que dali em diante alguma coisa iria acontecer. À meia-noite, na sala enorme com vista para o Vale do Pacaembu, todos os convidados se saudando, foi tanto beijo, tanto abraço entre nós dois, e tão loucamente, que quando nos separamos, o silêncio só foi quebrado por uma frase dele: ‘Pena que a hora do encontro seja a hora da despedida’. Palavras que ele repetia como um mantra, cada vez que passava perto de mim. Fiquei griladíssima com essa fala que permeou todo o resto daquela noite. Poucos dias depois, através da Hilda, ele me mandou um disquinho onde havia um poema de García Lorca que eu adorava. Era incrível essa irmandade de almas que logo percebemos em nós dois, inclusive umas coincidências de datas, o aniversário dele era em 30 de abril, o meu é em 30 de novembro, ele tinha nascido em 1931, eu em 1941. E muito mais. Bráulio adorava essas coisas meio misteriosas, essas conjunções astrais que alinhavaram o resto. Pouco depois, num encontro provocado pela Hilda, a gente voltava a se cruzar. E aí já ficamos juntos, embora cada um para o seu lado, porque eu ainda não estava desquitada. Fomos algumas vezes passar fins de semana escondidos em Jacareí, na casa da irmã dele, Alicinha, e seu segundo marido, o João, e também na casa do Alberto, irmão mais velho, à beira do Rio Paraíba. Aí, aluguei a casa da Rua Sabugi, em São Paulo, e quando o desquite saiu, em setembro de 1964, Bráulio levou tudo do apartamento dele na Rua Major Sertório e passou a morar comigo, dire-to. A gente conversava muito, sobre ele, sobre mim, sobre a vida, sobre tudo, tudo, às vezes por horas e horas, a ponto de só percebermos o nascer do dia com os passarinhos cantando. Apesar do lado aparentemente soturno que às vezes deixava transparecer, era um ser acima de tudo falante. Eu o amava quanto podia, um amor incrível, apesar de algumas coisinhas que causaram nossa separação, porque quem saiu de casa fui eu, quem tomou a iniciativa fui eu. Na verdade, não havia nenhum motivo, assim, digamos, terrível, definitivo. O que realmente me levou a tomar uma atitude foi porque eu queria crescer mais, queria sair para o mundo, ser eu mesma, por minha conta e risco. E ao lado dele isso era muito difícil, por vários motivos, inclusive por tratar-se de alguém incrivelmente ciumento. Era como se fosse meu Othelo. Apesar disso, me levava a todos os lugares, virei quase uma sombra dele, então precisava mesmo de um tempo para ter minhas próprias iniciativas, para cuidar de minhas inquietações. * Bráulio sabia que ser escritor era uma troca diabólica entre viver e falar da vida, sabia também do pouco que um artista vive de si mesmo, para dar tanto a tanta gente. Apesar disso, às vezes gostaria mesmo é de ser como uma pessoa qualquer, um anônimo no meio da multidão, que simplesmente tenta viver e nada mais. Demorou porém a assumir-se nessa função profissional, a de escritor. Na hora de preencher a ficha dos hotéis, ainda continuava escrevendo a palavra jornalista, embora por uma circunstância editorial, seus contos tivessem sido publicados depois de duas peças encenadas: Isso Devia Ser Proibido e a premiada O Fardão. Até então ele se situava em uma frase: Acontece que a maioria dos meus contos antecede o meu teatro e eu me considero melhor contista do que teatrólogo. Em entrevista concedida à Folha Ilustrada exatamente um ano depois da publicação daquele seu livro de contos, Bráulio declarava: A nova arte é a do efêmero. O romance está morto. Além disso, neste país não há cultura, há apenas pessoas brincando de eternidade. Quanto a mim, pertenço à classe dos marginalizados. E não faço realismo, por isso meus pontos de referência literária são mais estrangeiros do que nacionais. O que me interessa é esse ser múltiplo e contraditório de minhas histórias. Entre meus textos iniciais há alguns onde o confessional evolui para o suprarreal, numa busca de indagação metafísica. O conto Na Estrada é um bom exemplo da primeira fase de minha obra: Uma única certeza. A areia escorregadia da estrada dificulta o meu andar. Precipita um cansaço que devia estar no fim do caminho. Torna-me confuso, pois não tenho noção exata do trajeto, embora eu me esforce para localizar o ponto de partida. Procuro referências e por mais diversas que sejam colocam-me em situação semelhante: o mesmo chão, a dificuldade de andar e a paisagem que se faz monótona no olhar pouco atento na decisão de marchar para a frente. No princípio julguei que fossem companheiros de caminhada. Um grupo de soldados que, após as manobras, voltassem despreocupadamente ao quartel. Traziam as fardas desabotoadas e os fuzis jogados sobre os ombros, sem qualquer agressividade. Mas bastou eu querer descansar sob a sombra de uma árvore para que um deles me tangesse com a ponta da baioneta. Quis protestar, mas a aproximação pouco amistosa dos demais evidenciou que não era por acaso que há mais de duas horas eles vinham me acompanhando. Primeiro indaguei, com certo modo, depois aos berros. Nenhum deles teve a gentileza de, ao menos, me mandar calar a boca. Permaneciam mudos, indicando com o cano de suas armas o caminho da frente. Conformado com a situação de prisioneiro, percebi um certo relaxamento, podia parar e descansar nas encostas sombreadas. Esperavam, devo reconhecer, pacientemente. Ofereciam-me até cigarros. Mas palavra, nenhuma. A convivência – se é convivência andar um ao lado do outro – mostrou-me que falavam uma língua estranha. Cochichos e risadas. Daí, por certo, o silêncio diante de meus protestos. Não me entendiam. O melhor era poupar os argumentos para o final do trajeto, quando eu seria levado a um oficial superior. Homem certamente mais culto, entenderia minha língua e os fatos ficariam esclarecidos: não poderiam me punir por estar andando numa estrada. Acalmei-me. Minha condição de prisioneiro era transitória. Porém. Um incidente me inquietou. Ao colher uma flor, fiquei para trás e, surpreso, vi que os soldados relaxavam a vigilância. Continuavam entretidos na conversa. Para experimentar, ensaiei uma corrida. Não houve nenhum tiro. O caminho de volta estava livre. Mas qual a razão de retroceder, se minha intenção, desde o começo, era seguir? Ademais, uma fuga não tinha sentido, já que se tratava de um equívoco. O oficial superior esclareceria o problema. Pelo cansaço, calculei que a caminhada estava próxima do fim. E, tomado pela aflição da chegada, comecei a procurar na paisagem o teto de um edifício. Queria chegar ao quartel, quem sabe depois da explicação me oferecessem até uma cama. Foi, portanto, com alegria que tomei o atalho indicado pela ponta das baionetas. Seguimos um caminho tortuoso e depois atingimos uma planície extensa. Na distância quase infinita, não vislumbrei nada que sugerisse uma construção. O espaço encheu-se de desânimo. Quis deitar, mas desta vez os soldados foram implacáveis, deram-me pescoções e pontapés. Levantei-me e, no sangue estourando no pescoço, senti esgotar-se a minha chance. Súbito, aparecem duas silhuetas no horizonte árido. Reanimado, não percebo a aproximação, nem o ponto onde são identificáveis: um oficial em posição de sentido e um tronco seco de árvore. Vejo ao longe as medalhas brilhando no peito. Deve ser uma alta autoridade. Melhor para mim. Homem de várias experiências, facilmente compreenderá a minha situação. É sem constrangimento e resquício de culpa, que me dirijo a ele. ‘Senhor oficial, fui vítima de um equívoco’! Ele sorri. Entende a minha língua. Naturalmente que entende, ainda mais tendo tantas condecorações. E, mais à vontade, continuo. ‘Eu vinha pela estrada. Na verdade, há muito tempo eu andava pela estrada. Em certo momento, os seus subordinados começaram a me acompanhar...’ Não chego a concluir a frase. Um pequeno gesto do oficial faz com que um soldado me vende os olhos, enquanto um outro me amarra no tronco seco. Percebendo o engano, começo a berrar. ‘Qual crime? Qual?’ Gasto o resto de voz. E, no esgotamento, pressinto pelo ritmo que o pelotão perfila-se. Emudecido, ouço todas as ordens de comando. Até a última: ‘Fogo’! Isto não queria dizer que ele praticasse uma arte cosmopolita. Penso que haja um estado de ser brasileiro que, aliás, é uma constante em minha obra. Acho, por exemplo, que São Paulo, por sua agressividade urbana, pode gerar um tipo de literatura do absurdo, se isso ainda não ocorreu, é porque nosso subdesenvolvimento cultural tem suas amarras fixadas no realismo ou no naturalismo. Uma condição urbana como Praga foi o que possibilitou a obra de Kafka. O homem atual, desta segunda metade do século 20, é acossado por um volume contraditório de informações e de mudanças a prazos tão curtos que tornaram obsoletos os velhos esquemas racionalistas da arte. Por esse motivo, procurando ser um artista contemporâneo, tento captar o homem em sua mobilidade temporal, acreditando-o um ‘ser das lonjuras’, onde o futuro seja o núcleo definidor do passado e do presente. Quanto às ideias brilhantes, as chamadas inspirações, quase sempre chegavam até Bráulio Pedroso quando o bolso dele andava meio murcho, sobrando mês no fim do dinheiro. Naquele Brasil de pouco mais de 80 milhões de habitantes, um livro tinha tiragem média de dois mil exemplares, o programa Roda Viva da TV Cultura era assistido por 60 mil pessoas e a história de Beto Rockefeller era acompanhada diariamen te por 800 mil pessoas, em São Paulo, exibida às 8 da noite até a censura federal do regime militar tentar removê-la estrategicamente para as 23 horas, sob a alegação de que prostituta não podia aparecer em novela. Amenizadas as participações das alegres raparigas, o horário original acabou sendo mantido. Naqueles dias, sem a força hipnotizante de agora, a televisão brasileira era apenas um meio de comunicação em busca de seus caminhos. Ainda não tinha substituído o quadro da Santa Ceia no lugar de honra de todos os lares. Nesta terra de tantos macunaímas, tanta gente tão despojada de qualquer mínima dignidade, Beto Rockefeller, aquele outro anti-herói sem nenhum caráter, acabou dando uma sacudidela profilática na dramaturgia da época, tirando de cena todo o nobiliário que assolava a nossa televisão. Havia o mito de que o público queria aquilo mesmo: compensar o cotidiano de sofrimentos pessoais, necessidades não atendidas, humilhações de todos os tipos, com algumas horas diárias de ilusões em ambientes de fantasia, onde as histórias acabavam sempre bem e os bons e virtuosos venciam. Era o adocicado telessonho nosso de cada dia. O Brasil nunca mais seria o mesmo: depois das capitanias hereditárias, o país estava dividido em capítulos. Ao contrário do que muita gente pensava, o público não era burro, pelo menos na opinião de Dias Gomes: Passei muitos anos tentando fazer teatro popular no Brasil e só alcancei as elites. Nunca imaginei que fosse conseguir isso na televisão! O fracasso de A última valsa, novela de Maria Magdalena Iturrioz y Placencia, mais conhecida como Doña Gloria Magadan, tinha sido um indício de que as mexicanagens dela e de outro cubano pré-Fidel, chamado Felix Caignet, autor de O Direito de Nascer, escrito em 1946 para a Rádio Havana do ditador Fulgencio Batista que, sob os auspícios da Gessy-Lever e da Colgate-Palmolive, oferecia aos ouvintes um cardápio de atrações com enredos pungentes e títulos explícitos como Yo No Quiero Ser Mala, El Dolor de Ser Madre e Divorciadas ou Mujeres que Trabajan, já não eram mais sinal de garantia de preferência imbatível, muito embora houvesse uma comprovada queda no uso das instalações sanitárias domésticas em seus horários de exibição e isso, naqueles tempos ainda sem ibopes, fosse considerado como aferição de audiência. A nova novela brasileira pedia passagem e começava a mostrar sua cara, fugindo dos folhetins inspirados em Joaquim José de Macedo ou José de Alencar, deixando de parecer uma espécie de simples transposição dos enredos maniqueístas do século 19. Na forma de contar a história e na expressividade de seus diálogos, Beto, como personagem, era alguém muito próximo das pessoas que acompanhavam a novela, também capazes, como ele, de mudar de rumos conforme os ventos que sopram pela vida afora. Nem herói, nem vilão, ele só tinha um objetivo na vida: fazer parte da alta sociedade paulistana da época, quando sobrenomes e árvores genealógicas ainda eram documento. Paralelamente, o Cinema Novo buscava maior aproximação com o público e o filme Macunaíma mostrava outro anti-herói sem caráter de nossa literatura. Além do que a TV Tupi atravessava uma fase econômico-financeira difícil que a obrigava a enxugar custos, começando por simplificar os temas, portanto os cenários e os figurinos também. Uma das novidades, por exemplo, era que algumas notícias estampadas nos jornais do dia acabavam também fazendo parte da trama. Assim Beto Rockefeller prendeu a atenção do público durante 230 capítulos, de 4 de novembro de 1968 a 30 de novembro de 1969. Um divisor de águas, o marco zero da história da evolução da teledramaturgia brasileira. Como seu personagem, embora através de outros meios, Bráulio também sonhava alto, portanto jamais tinha pensado em escrever para a TV, uma novidade ainda incipiente no Brasil daquele tempo, e só aceitou o desafio por pura falta de tarefa maior e melhor no momento. Tanto que o primeiro capítulo da minha primeira história para a televisão, protagonizada por Luís Gustavo, Bete Mendes, Débora Duarte, Lima Duarte, Walter Forster, Irene Ravache, Maria Della Costa, Plínio Marcos, Ana Rosa, Zezé Motta, Renato Corte Real, Jofre Soares, Pepita Rodrigues, Etty Frazer, Jayme Barcellos, Gésio Amadeu e Marília Pêra, fui assistir na emissora. Eu não tinha televisão em casa. E tudo talvez tenha dado certo exatamente por isso, pela falta de responsabilidade com que encarei o desafio, aceitando o convite do Cassiano Gabus Mendes, então recém-empossado na direção artística da pioneira TV Tupi paulista. A emissora estava pronta para iniciativas audaciosas e inovadoras. Eram dias em que o fascínio por aquele tipo de atração era tão limitado, tão longe dos futuros campeões de audiência, que ainda havia a figura do televizinho, a maioria que não tinha aparelho de televisão. Cassiano queria algo que fugisse dos padrões usuais e tinha um esboço de personagem na cabeça. Então, burilei e ampliei a ideia dele e fiz nascer Beto Rockefeller, cercado de fatos vividos por muitas pessoas na realidade. Bastou-me estruturar o personagem para evitar que sua base maleável não o levasse à chanchada ou ao drama. Luís Gustavo, o ator que, aliás, era Beto todos os dias, ajudou bastante, e Lima Duarte, o primeiro diretor, também lembrou casos de velhos bicões, definindo a história como uma pá de cal que despencou sobre reis, rainhas, valetes e coringas, barões assinalados, filhos naturais, sinhazinhas, babás remanescentes da escravidão e coronéis furibundos. Hoje, Marília Pêra acentua que Bráulio e Lima permitiam que os atores criassem, fossem espontâneos, improvisassem. Depois disso, diz ela, não tive mais acesso a esse tipo de liberdade na televisão. Muitas vezes, no próprio roteiro, Bráulio pedia que os intérpretes desenvolvessem alguma cena. Propunha a ação, dava certas informações e confiava no nosso taco. Isso fortalecia muito nossa autoestima. A gente só era feliz no trabalho, ainda não sabíamos da importância daquela liberdade tão necessária para qualquer tipo de criação artística. Era simplesmente maravilhoso conversar com o Bráulio, às gargalhadas, propor milhões de loucuras, sentir seu interesse por nossas bobagens, melhor de tudo, ver algumas delas concretizadas em seus textos. O realismo, em baixa na literatura e no teatro, estava de mudança para a televisão até então melada e melosa de romantismo. A trama aos poucos foi chamando a atenção, surgiram os comentários, as identificações, e muita gente pas-sou a torcer por aquele mentiroso improvisador. De repente, Beto se transformou em sucesso. Alguma coisa realmente nova estava no ar, na nossa televisão já precocemente caduca aos 18 anos de idade. Pela primeira vez havia gente de carne e osso na estranha luminosidade daquela telinha. E Beto era um mentiroso profissional, como há tantos por aí, cada vez mais. Além do que um simples trampolim para a ascensão social, a mentira fazia parte da personalidade, do DNA dele. Logo surgiram dois adultérios no enredo, inclusive do próprio Beto. Acontece que nas outras novelas, os adúlteros eram castigados, ficavam coxos, paralíticos, cegos, morriam, quando, na verdade, não havia nenhum castigo para isso no cotidiano. Além do que, as vozes dos interlocutores passaram a ser ouvidas também em off, enquanto as câmeras iam buscar outras imagens, paisagens, detalhes, novas figuras. Tudo com o menos possível de close-ups. Guardadas as limitações da época, em algumas cenas a linguagem visual tornava-se quase sofisticada. Para os telespectadores tradicionais, viciados em obviedades, uma grande novidade. E havia também o mistério em torno do dono da oficina onde Beto trabalhava, que nunca mostrou seu rosto; então muita gente pensou que ele sabia de tudo e ia estragar a boa vida do outro. Que nada, Seu Domingos simplesmente não tinha nenhum segredo para revelar, então morreu sem mostrar o rosto e sem dizer coisa alguma. Uma nova estética estava surgindo, rompendo com a linguagem empolada e as interpretações exageradamente dramáticas. Com os diálogos coloquiais, o futuro tinha começado. Todavia, a emissora usou as fitas para gravar outras coisas, sem o mínimo valor, em cima daquelas imagens, sem se dar conta de que o futuro de um povo está diretamente ligado ao seu patrimônio cultural, aí a diferença entre os que continuarão contribuindo para seu próprio enriquecimento e os que ficarão relegados ao eterno papel passivo de simples consumidores de bens alheios. Ter ou não ter direito à criatividade, era a questão, pois, logo aquelas cenas históricas cairiam no esquecimento. Até porque, dos poucos capítulos impressos em papel que resistiriam ao desaparecimento, encarregaram-se os ratos ligeiramente intelectualizados, certamente literatos, hospedados em uma casa alugada por Bráulio no Jardim Botânico. Foi em uma fase complicada da minha vida que Beto Rockefeller tinha aparecido. Eu estava desempregado e vítima de um acidente de carro na Via Dutra, no dia 6 de julho de 1968, quando durante uma temporada de seis meses morando em Jacareí, Marilda e eu voltávamos de São Paulo. Meu sobrinho, Júnior, tinha ido nos buscar em uma festa e na estrada, de madrugada, em meio a muita neblina, o carro se chocou com uma vaca desprevenida pastando distraidamente em local indevido e em hora imprópria. Resultado: uma perna minha quebrada e a outra, luxada. Uma região óssea que, quando se rompia, naquele tempo, obrigava a pessoa a se engessar do peito ao pé. Eu era quase uma múmia. De volta a São Paulo, comecei então a escrever a novela, imobilizado em cima de uma cama, ditando o texto para um contrarregra da Tupi chamado Paulo Ubiratan, depois diretor da Globo, datilografar. O negócio é o seguinte: se a gente escreve livros ou peças, no máximo é elogiado pelos colegas e pode ser condenado à Academia Brasileira de Letras. A nossa literatura está desvinculada das massas. Esse um dos motivos pelos quais aceitei o convite para fazer teledramaturgia. A diferença está que, em livro ou teatro, produz-se em profundidade; em extensão, só na televisão. Ali a gente se comunica com um público extraordinário. Beto, por exemplo, foi visto por mais de 15 milhões de pessoas, era um autêntico diálogo com o povo, ou seja, um rompimento no esquema da igrejinha literária. Então, muita gente recebeu o recado, pequeno, mas válido, de que o ser humano não é bom nem mau e que a mentira nem sempre pode ser condenada. E mais: sabendo usar o novo veículo de comunicação, ele podia se tornar um bom instrumento cultural. Falando sinceramente, nem acho que Beto Rockefeller tenha sido uma grande novidade, até porque, de certa forma, estava vinculado ao folhetim realista e psicológico do século anterior, mal comparando, os mesmos de Balzac ou Dostoievski. Inclusive pela falta de mobilidade da maquinaria técnica, ficava-se preso ao estúdio, a uma forma teatral dialogada e não a uma linguagem moderna. Mas isso só será possível quando o uso de cenas externas, de ambientações verdadeiras, se tornar comum. Do ponto de vista formal, tanto o folhetim como a novela são apresentados em capítulos, por isso exigindo um desenvolvimento vagaroso. Aí o motivo pelo qual o cinema, a publicidade e outras formas modernas de expressão eliminam o realismo e a psicologia: por serem lentos, de narração explicativa. A vanguarda tende para o sintético, o ágil. Até então, ainda eram bem poucos os escritos dele publicados em jornais. Entre eles, um pequeno texto sobre o balneário de Guarujá, então ligado a Santos apenas através de balsas, portanto ainda pouco acessível ao populacho. A tímida crônica começava com estas palavras: Neste verão, estar na moda é estar com a beleza. Ao som do chá-chá-chá, ritmo da exuberância tropical, e sob a inspiração da Côte d’Azur e do Lido de Veneza, houve uma conspirata de mulheres bonitas em Guarujá, onde a moda da atual temporada é o biquíni. Modismo caprichoso e antidemocrático, pois que as duas exíguas peças, exigentes de boa forma física, limitam seu uso para aquelas que podem se estabelecer com competência. Um complô contra as feias, essa é a verdade. Mas, como compensação, resta às demodées o consolo de levar pelo corpo ingrato, a tranquilidade da pudicícia. Era um tempo em que muitos intelectuais e simpatizantes, escritores, cineastas, artistas plásticos, professores, estudantes, militantes de esquerda e o pessoal de teatro, começavam a agitar um espaço geográfico do centro da cidade de São Paulo nas cercanias da parte mais alta da Avenida Ipiranga e pedaços das ruas da Consolação, São Luiz, Teodoro Baima e General Jardim, uma área delimitada pelo Museu de Arte e o Museu de Arte Moderna, ainda num prédio da Rua Sete de Abril quase esquina da Rua Marconi, a Faculdade de Filosofia da USP, a Biblioteca Municipal, algumas livrarias como a Ponto de Encontro, a Galeria Metrópole, o Clubinho, diminutivo do Clube dos Artistas e Amigos da Arte, no sub-solo do Instituto dos Arquitetos, o Cine Bijou e o Teatro de Arena. Foi quando José Renato, aparentemente influenciado por um texto de Margot Jones adotado nas aulas da EAD, Escola de Arte Dramática de Alfredo Mesquita, instalou um teatro em forma de arena na descida da Rua Teodoro Baima quase em frente à Igreja da Consolação e ganhou a adesão do pessoal do Teatro Paulista do Estudante, especialmente Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri, além de Augusto Boal, recém-chegado de um curso no Actor’s Studio. A montagem de Eles Não Usam Black-Tie, de Guarnieri, com músicas de Adoniran Barbosa, que estreou no dia 22 de fevereiro de 1958 e ficou mais de um ano em cartaz, com Lélia Abramo, Eugênio Kusnet, Riva Nimitz, Miriam Mehler, Francisco de Assis, Milton Gonçalves, Flávio Migliaccio e o próprio autor, colocava em cena o cotidiano dos trabalhadores, revolucionando o panorama teatral brasileiro até então dominado por traduções de textos europeus importados pelo TBC, Teatro Brasileiro de Comédia. O repertório do Teatro de Arena e seus seminários de dramaturgia, incentivando o aparecimento de novos autores que expressassem nossos dilemas populares, significava a busca de uma política cênica autenticamente nacional, participante e sintonizada com o momento político que o país vivia às vésperas de um golpe militar. O projeto do Arena teria continuidade quando Boal, Guarnieri, Juca de Oliveira, Paulo José e Flávio Império compraram de José Renato o teatro e promoveram uma nacionalização dos clássicos, adaptando peças da dramaturgia mundial à nossa realidade. Naqueles dias, os palcos ainda não faziam parte, concretamente, da vida de Bráulio Pedroso. A partir de 1960, quando ainda não se exigia diploma para exercer a profissão de jornalista, bastava ter talento, ele era editor de arte do jornal O Estado de S. Paulo. Foi quando Simone de Beauvoir esteve na cidade e discordou da classificação de negativista para seu livro Todos os Homens São Mortais, em tradução de Sérgio Milliet. No entender dela, a atividade humana, na busca incessante da superação do tempo, seria toda dirigida no sentido do permanecer. Haveria sempre a ilusão da continuidade, no filho, na crença religiosa, no trabalho ou no paradoxal comportamento irreverente e anárquico, até em um apego às coisas pequenas e ridículas, se preciso fosse. O ser humano se preocuparia em deixar a marca de seu rosto na transitoriedade da vida. Mas, e se houvesse a imortalidade, o homem encontraria o sossego eterno, a felicidade infinita? Dizia a autora que havia apenas elaborado uma fantasia sobre a imortalidade, com o intuito de demonstrar que a condição humana baseava-se no limite imposto pela morte e que o encanto da vida residia exatamente nas opções que o efêmero nos impelia a tomar. E que mereceu o seguinte comentário dele, publicado na edição do Estadão de 4 de novembro daquele ano: “Todavia, os personagens do livro são envolvidos por um clima de pessimismo onde nada tem importância e a indiferença total é o único meio de se passar a vida sem sofrimento”. Ainda naquela função, entre 1960 e 1963, Bráulio foi incumbido de apreciações críticas literárias, abordando vários temas com acuidade, lucidez e muita elegância, tanto na abordagem quanto no estilo. Como, por exemplo, sobre o envelhecimento de um romance famoso de Aldous Huxley (Comprometido com o tempo, Contraponto ainda emociona, mas não será mais o livro que tanta influência exerceu em determinada geração). Sobre o problema racial de Machado de Assis em Quincas Borba (O drama que levava em sua pele, dando ênfase aos absurdos, não lhe permitia que se detivesse nas formas ilusórias, mas para que seu pensamento assim agisse, foi-lhe necessário que não obliterasse o seu problema, que o vivesse e o assumisse). Sobre a meta poética de Hilda Hilst em Ode Fragmentária (Há uma mudança básica nos objetivos de sua poesia, não que tenha experenciado novas formas e cedido ao modismo de pesquisar a palavra-palavra, o que está proposto agora não é um simples depuramento de estilo, é atingir conceituações mais ambiciosas). Sobre a força instintiva dos contos violentos de Dalton Trevisan em Minha Cidade (Sem recorrer aos meios tons, às elipses e às insinuações, a narrativa é direta, imediata e, aí está sua originalidade: tem um tom adequado autenticamente, sem necessidade de artifícios suavizadores). Sobre a derradeira mensagem de crença nas reservas de dignidade humana de O Velho e o Mar de Hemingway (O que se observa é uma sadia e viril sugestão de vida, que um homem pode ser destruído, mas nunca derrotado). Sobre os novos caminhos de Jorge Amado em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (A rebeldia que na obra do autor se revelava muitas vezes no sentido moral de assumir determinada posição política, adquire neste livro um contexto mais amplo, existencial, simbolizando um protesto contra as contingências a que normalmente estamos submetidos e que quase nunca nos dispomos a romper). Sobre a verve brasileira de Marques Rebelo em Oscarina e Três Caminhos (Admirável captação do espírito do homem da rua em sua circunstância carioca, onde a psicologia é em ação e os tipos se definem pelo que dizem e pelos seus gestos). Sobre o retrato admirável de mulher em Verão no Aquário de Lygia Fagundes Telles (Nos seus equívocos amorosos ou na sua falta de comunicação há todo um quadro de nossa sociedade, principalmente da camada pequeno-burguesa que se sufoca e desesperadamente busca uma saída). Sobre a procura do humanismo de Carlos Heitor Cony em Informação ao Crucificado (Num livro de maturidade literária no qual, tratando do religioso se atém ao humano, o autor atinge o domínio completo dos seus meios de expressão com uma linguagem que serve de modo adequado à emoção procurada). Sobre a posição de Dias Gomes usando a peça A Revolução dos Beatos como denúncia de que teatro popular devia ser intrinsecamente político (Pensar-se em teatro popular no Brasil recorrendo às formas populares de expressão de determinadas regiões, poderá redundar num equívoco, pois o bumba meu boi que é uma festa generalizada no Nordeste, reflexo do atraso dessas populações, não encontra uma comunicação imediata na região Sul, mesmo nas suas camadas empobrecidas). Sobre o ritmo e a riqueza imagética que revelam o poeta na prosa de Vinícius de Moraes em Para Viver um Grande Amor (É no tom lírico que o escritor atinge a sua melhor expressão e o valor da sua poesia está no crédito à vida que encerra, onde a mágoa nunca resulta de um malogro, mas da verificação que nem todos os bens foram atingidos). Sobre o surgimento de João Antonio como o romancista de São Paulo em Malagueta, Perus e Bacanaço (Pela primeira vez, a cidade surge dramaticamente na expressão acanhada de seus bairros afastados, no traço convincente de seus personagens típicos e na contribuição linguística de sua fala particular). Sobre os devaneios da mulher confinada ao lar em Laços de Família de Clarice Lispector (Sabendo buscar nas emoções esparsas, a unidade da inquietação metafísica, filiada a uma literatura sensitiva de sutis delineamentos psicológicos, suas histórias levam a pensar por que razão vivemos, numa pergunta sem vigilância que surpreende o leitor na vertigem de não saber a resposta imediata). Sobre a dificuldade de Millôr Fernandes permanecer engraçado em Lições de um Ignorante (Para atingir o nível de obra artística, o humorismo deve sair da superfície e ir ao âmago dos problemas, lastimável é que o autor não tenha conseguido sair da graça cotidiana para o humorismo verdadeiro, aquele que fez a glória de um Bernard Shaw). Sobre o compromisso do cronista de jornal em Os Olhos Dourados do Ódio de José Carlos Oliveira (O autor encontraria sua verdadeira consequência encaminhando-se para o conto ou o romance, gêneros de maiores exigências e possibilidades e que seu talento literário permite). Sobre o antirromance por excelência em A Chuva Imóvel de Campos de Carvalho (Libertação e liquidação, o ser humano em jogo, tema fundamental de nossa época plena de conquistas e de irresponsabilidades, é o protesto – na medida em que o indecifrável seja protesto – do autor contra as bombas nucleares, as partículas de estrôncio que nos ameaçam como uma chuva imóvel, mas a intenção perdeuse não pela ausência de imagens que ilustrem o delírio, mas pela falta de fio narrativo). Sobre o caráter mágico de William Faulkner em Os Desgarrados (Em meio às irresponsabilidades e divertidas doidices, surge um amargor, um sentimento trágico da vida, num tom narrativo que o reconcilia com o grande público). Sobre a maldição de não ser nada, em Belos e Malditos de Scott Fitzgerald (Se a sociedade daquela época é condenada, os personagens que não a aceitam também o são, de tudo restando a ilusória evasão do ritmo possesso do jazz). Sobre o humanismo de Maximo Gorki em Contos (Nem sempre foi possível um julgamento sereno sobre a obra de Gorki e se ele confundiu-se com a Revolução de Outubro, se ele é a grande expressão do romance socialista, contudo não é a expressão típica da classe proletária). Sobre a recriação de um saudosismo aristocrático por Françoise Sagan em Castelo na Suécia (Acusamna de retratar tipos amorais, mas é exatamente essa sua amoralidade que lhe permite sair de uma visão limitada dos fatos para atingir problemas mais complexos do comportamento humano). Sobre a atualidade das obras de Diderot (Escritas em sua maturidade, suas obras romanescas refletem uma preocupação a respeito dos problemas do destino humano, numa verificação imediata que o plano abstrato do pensamento filosófico não permite). E, entre muitos e muitos outros assuntos, na edição de 31 de dezembro de 1961, do jornal, Bráulio discorria sobre o predomínio dos autores consagrados em relação aos novatos em nossa literatura (Estagnação, propriamente não houve, mas este ano literário definiu-se pelo aparecimento de obras de Jorge Amado, Érico Veríssimo, Clarice Lispector, José Geraldo Vieira, dos novos, muitas promessas, várias pesquisas, todavia nenhum livro que abarcasse a nossa realidade de modo original e trouxesse uma perspectiva criadora à ficção brasileira). Diz Marilda agora: A principal característica dele nessa função foi a de ser um crítico literário agudo, porém humano, em suas metáforas, fossem elas dramáticas ou cômicas. Se Bráulio tivesse sido um ensaísta, teria feito a crítica da nossa cultura. Com gente do gabarito de Cláudio Abramo, Almeida Salles, Delmiro Gonçalves, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Lívio Xavier, Fernando Pedreira e outros, a redação de O Estado de S. Paulo era um nascedouro de ideias. Mas, quando aconteceu o golpe militar de 1964, o clima ficou pesado, principalmente para alguns, inclusive o Bráulio, que sempre foi um homem de esquerda. Para mim, o capitalismo não é o destino do ser humano. É uma coisa tão inaceitável quanto defender-se uma sociedade escravocrata, então os que se conformam com esse estilo de vida me parecem muito perto do absurdo. Da mesma forma que o socialismo do tipo ditatorial, também não é o ideal. Acredito que um dia, através de um enriquecimento das pessoas, no sentido de mais amor por elas mesmas e pelos seus semelhantes, acontecerá um socialismo justo e democrático. Uma ideia utópica, mas que acho perfeitamente possível, porque sou alguém que ainda acredita firmemente na ideia socialista. Esse posicionamento político dele deixava Dona Isaurinha, a mãe, apavorada. A irmã Luciana ainda se lembra de quando ele tinha 20 anos e já frequentava o Partidão: De repente, tarde da noite, um homem começou a bater no vidro da janela de nossa casa, perguntando se era lá que morava o Bráulio Pedroso. Foi um dos maiores sustos que minha mãe e eu tivemos. Depois, na época da ditadura militar, quando ele morava na Rua Major Sertório e ficou doente, foi operado e tudo, eu já era casada, mas ia lá todas as tardes para ajudá-lo a fazer ginástica para as pernas. Um dia, o pintor Mário Gruber chegou esbaforido, dizendo que estava sendo perseguido. Não demorou muito, bateram à porta, mamãe abriu, um estranho entrou, sentou-se na sala, ficou conversando com nós duas e até hoje ninguém nunca soube quem era ele. Em compensação, anos antes, quando nós morávamos na Rua Tupi, durante uma das crises de saúde do Bráulio, o Luiz Carlos Prestes foi visitá-lo. Essas coisas tinham de ser assim feitas meio às escondidas, porque papai, situado politicamente não na mesma opinião e dono de um gênio meio complicado, tinha uns rompantes e acabava provocando alguns atritos familiares, embora se arrependesse em seguida. Nunca mais me esqueci de uma vez em que ele começou a gritar da janela: Eu tenho um filho comunista!, agitando um jornalzinho do Bráulio, acho que era do Partido Comunista, como se fosse uma bandeira. Em flashback até 1940, o artista plástico Luiz Ventura volta à época em que ele e Bráulio estudavam no Colégio São Paulo, na mesma sala, colegas de classe de Fernando Henrique Cardoso, então mais conhecido como Carioca. Estivemos juntos até o segundo ano ginasial, hoje sétimo ano do fundamental, quando, por não aceitar o método autoritário de um professor de Matemática, o Bráulio teve um sério atrito, discutindo asperamente com ele, em ato inédito naqueles dias, quando aluno jamais discordava dos mestres. Transferido para outra escola, dele passei a ter apenas informações esporádicas, através de um colega que também morava no bairro das Perdizes. Só nos reencontramos sete anos depois, em uma reunião de jovens interessados na formação de uma entidade para defesa da cultura e de outras riquezas nossas, realizada nas dependências da histórica Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco. Ele, representando os cineastas, eu, os artistas plásticos, ambos presentes em nome do grupo de jovens comunistas voltados para campanhas cívicas pela paz, a liberdade e a emancipação econômica e cultural de nosso país. Entre outros, também Nelson Pereira dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Mario Gruber e Otávio Araujo. Se fosse hoje, estaríamos lutando por um mundo solidário, ecológico, multirracial e multicultural. No início dos anos 1950, nós estávamos outra vez juntos, na revista Fundamentos, uma publicação de cultura moderna fundada por Monteiro Lobato e mantida pela Frente Cultural do Partido Comunista do Brasil, onde eu atuava como secretário-executivo e membro do Conselho de Redação. Faziam parte da revista ainda, o arquiteto Villanova Artigas, o escritor Arthur Neves, o jornalista Fernando Pedreira e a pintora Renina Katz. Até que, devido a problemas de saúde do Bráulio, passamos a visitá-lo em sua casa, logo transformada em local de discussão e debates. Ele alternava períodos de muita dor, então era obrigado a se recolher ao leito, com fases de sofrimento suportável, quando procurava exercer atividades em ritmo relativamente normal. Até que foi trabalhar na Associação Brasileira de Escritores e, logo depois, ocupando o lugar de Alfredo Guilherme Galliano que tinha ido para a agência de publicidade J. Walter Thompson, acumulava seus afazeres com outro emprego, na Difusão Europeia do Livro, meio período em cada um. Durante dois anos, entre 1956 e 1958, Bráulio, Jayme Martins e eu passamos a dividir um apartamento no décimo andar da Avenida Brigadeiro Luís Antonio, 1.285. Daqueles tempos há um episódio que define um lado marcante da personalidade do Bráulio e que revela sua inquietude com relação às atividades culturais: de brincadeira, eu tinha comprado na feira do bairro uma imitação bem razoável de um cocô de cachorro feito de massa de papel e botei em cima da cama dele, tendo o cuidado de desfazer um pouco a arrumação dos lençóis. Ele chegou e ficamos conversando um pouco na sala, quando inventei a história de um cão policial enorme e gordo que tinha entrado em casa, dando um trabalhão danado para retirálo de lá. Pouco depois, ao entrar no quarto, ele exclamaria com cara de nojo: O cachorro cagou na minha cama! Como é que eu vou tirar essa bosta daqui! Hummm, que fedor! Com um gesto lento e estudado, peguei aquilo na mão como se fosse uma flor. Aí, claro, ele se deu conta da pegadinha, como se diz hoje. E em vez de desopilar o fígado soltando impropérios, limitou-se a dizer, suavemente, que tinha sentido até o cheiro, como se aquilo fosse de verdade. E me perguntou o que o teria levado a ter a sensação de que uma coisa inodora tinha aroma. Será que foi a preparação que você fez falando do tal cachorro? Ou será que foi o susto de ver aquilo em cima da minha cama? E começou a querer descobrir como uma situação assim poderia ser reproduzida no palco, para fazer a plateia ter reações sensitivas, como tinha acabado de acontecer com ele, sentindo um cheiro que na realidade não havia. Resultado: a brincadeira virou coisa séria, porque passamos o resto da noite debatendo o assunto. Jayme Martins descreve seu primeiro encontro com Bráulio: Aconteceu no Segundo Congresso Paulista de Escritores, aberto dia 7 de setembro de 1950 no auditório das Classes Laboriosas, na Rua Roberto Simonsen, ao lado da Praça da Sé. Eu representava os escritores da Alta Paulista, pois vivia na cidade de Marília, onde colaborava como repórter e já tinha publicado algumas crônicas e poemas no antigo diário Correio de Marília e na revista Juventude Literária, editada em São Paulo por Francisco Sanchez e outros marilienses desterrados, que tinham vivido lá nas décadas de 1940 e 1950. Juntamente com Graciliano Ramos, Jorge Amado, Afonso Schmidt, Galeão Coutinho, Antonieta Dias de Moraes e Silva, Mário Donato, João Acioli, e numerosos outros autores, Bráulio Pedroso era um dos delegados da antiga Associação Brasileira de Escritores (ABDE), antecessora da União Brasileira de Escritores (UBE). Aos 20 anos, distinguido como o mais jovem congressista, coube-me presidir a segunda sessão plenária do Congresso, quando tive oportunidade inclusive de propor a criação da Revista da ABDE. Terminados os trabalhos do Congresso fui convidado pelo Bráulio, o Luis Ventura e o Alfredo Guilherme Galliano para um cafezinho no antigo Bar Municipal, na Rua Barão de Itapetininga. De lá seguimos para a sede da ABDE, instalada em um apartamento da Rua Conselheiro Crispiniano gentilmente cedido pelo filósofo e editor Caio Prado Jr. Considerado como um dos maiores nomes da historiografia brasileira no século passado, autor de 14 livros, e defensor da ideia de uma contraposição dialética entre a permanência de estruturas coloniais e as constantes oportunidades de derrubada dessa ordem, propondo a aplicação do marxismo na análise do Brasil Colonial, Caio Prado Jr. havia escrito o seguinte no livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942: Nem é sem riscos e tampouco sem consequências graves que um homem de pensamento malbarata o que de mais precioso ele tem, que é precisamente esse pensamento, e que lhe retira o fio cortante, que o embota com concessões de toda ordem. Cada transigência, toda a acomodação de ordem financeira, social ou outra qualquer, representa uma amputação do espírito. Não há talento, não há inteligência por mais vigorosa que seja, capazes de resistir muito tempo a uma tal mutilação continuada e sistemática das fontes vivas da inspiração e da produção intelectual. Logo depois chegavam à sede da ABDE, o poeta João Acioli, que o Congresso elegera presidente da entidade, e também o ex-presidente Galeão Coutinho, o editor Artur Neves, sócio de Caio na Livraria Brasiliense, o jornalista Fernando Pedreira e o filósofo Eduardo Sucupira Filho. Nesse encontro, prosseguia Jayme Martins, por sugestão do Bráulio, do Ventura, do Artur Neves e do arquiteto Villanova Artigas, o Sucupira e eu fomos encarregados de providenciar a edição da revista, ele como secretário e eu como editor-comercial. Passei então a atuar também como repórter da revista Fundamentos. O convívio com meus dois companheiros de domicílio foi fundamental para minha formação cultural. Enquanto Ventura se concentrava em seus desenhos, gravuras e pinturas, Bráulio era um devorador de livros, dos quais eu lia pelo menos as orelhas. Nesse apartamento que batizamos de Cave Lupus, aconteceram memoráveis encontros de intelectuais de esquerda, quando espocavam debates sobre temas de atualidade nacional e internacional, nas áreas da política, das artes, da linguística, do urbanismo, dos esportes, dos quais participavam, entre outros, Fernando Henrique e Ruth Cardoso, Fernando Pedreira e Renina Katz, Nelson Pereira dos Santos e Laurita, Otavio Araujo e Clara, Rossini Camargo Guarnieri, Eduardo Sucupira, Mário Gruber, Antonieta Dias, Helvio Romero, Álvaro Bitencourt da Livraria Parthenon e Sérgio Muniz. Tudo acompanhado de animados aperitivos, almoços, jantares ou ceias, dos quais às vezes era eu o cozinheiro, especialmente quando se tratava de peixadas regadas a bons vinhos da época. O ambiente era de muita seriedade, mas não faltavam brincadeiras. Como aconteceu com uma conhecida deles dois, Ana Matilde Pacheco Chaves, estudante de Filosofia que, se não estou enganado, participou do programa O Céu é o Limite respondendo sobre Proust. A moça queria ser modelo e tinha de aprender a caminhar corretamente, então foi submetida a penosos exercícios de ficar horas andando de um lado para outro da sala equilibrando um pesadíssimo livro na cabeça. Àquela altura, entre outras atividades, Ventura fazia cenários para teatro de revista e, aproveitando essa experiência cenográfica, ele e o Bráulio de vez em quando preparavam pequenas surpresas em forma de esquetes cênicos durante as horas do recreio daqueles encontros de fundo cultural. Bráulio escrevia e interpretava monólogos que eram encenados pelo Ventura, então apaixonado por uma garota que havia rompido o noivado e por isso estava cheia de problemas. Ela passava horas e até dias lá no apartamento, mas sem se definir em relação às pretensões do nosso amigo, enfim, ignorando as intenções dele, as horizontais inclusive. Daí um dia o Bráulio ter bolado uma encenação declaratória dessa paixonite aguda: devidamente paramentado como um frade terminava sua fala no exato momento em que o Ventura, com uma máscara-símbolo dos enamorados, trazendo uma flor na mão, irrompia de um salto, arrebentando a tampa de papel de um caixote estrategicamente colocado em um canto da sala. A moça viu, ouviu, e mesmo tendo na mão a flor que ele lhe dera, não demonstrou qualquer reação. Ainda bem que uma amiga dela, presente, mais chegada a sutilezas, entendeu o espírito da coisa e, não demorou muito, estava ocupando o lugar da outra nos abalados sentimentos do Ventura. Enquanto isso, fora dos seus horários de trabalho na redação do Estadão, Bráulio passava o tempo todo lendo, entretido com a obra de Honoré de Balzac, graças à magnífica coleção Condição Humana da Editora Globo gaúcha, além das Obras Completas de Machado de Assis, as obras selecionadas de Mário de Andrade, a dramaturgia inteirinha de Shakespeare traduzida por Millôr Fernandes, e a coletânea de contos de Guy de Maupassant. Pelo menos um exemplar desses livros, Amar, Verbo Intransitivo, de Mário de Andrade, ficou comigo, foi e voltou da China por duas vezes e ainda deve estar em algum canto não localizado de minha bagunçada biblioteca. É claro que através de sua vida o Bráulio leu muito mais do que esses autores citados, mas creio que esses foram os que mais contribuíram para sua formação literária como contista e dramaturgo. Devido ao seu problema de saúde, uma artrite reumatoide que o impedia de maiores flexões da coluna vertebral, Ventura e eu dedicávamos atenção especial a ele, ajudando-o a vestir as cuecas, as calças, as meias, e a amarrar-lhe o cordão dos sapatos. Quando, aos domingos, ia almoçar na casa dos pais, na Rua Tupi, no Pacaembu, Ventura e eu, alternadamente, o acompanhávamos. Especialmente pela oportunidade de desfrutarmos da simpatia daquela família, de suas duas irmãs, Alicinha e Luciana, de seu irmão Alberto, e de sua mãe, Dona Isaurinha, uma senhora encantadora. Já então ele escrevia crônicas e contos, alguns dos quais eram publicados nas edições dominicais do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Tempos depois, em 1965, tendo retornado da China, de férias, ele me presenteou com uma pasta contendo cópias em carbono dos originais emendados, remendados, rasurados e rabiscados de próprio punho, que havia preparado para seus primeiros dois livros. Conheci então sua mulher, Marilda, que meses depois seria uma das duas únicas mulheres a me visitarem durante os oito meses que estive encarcerado no Presídio do Carandiru, pelo crime hediondo de ter ido à China para dar aulas de língua portuguesa. Um daqueles futuros livros, que seria intitulado A Vergonha, com 115 páginas, continha oito contos e uma novela, anunciava ilustrações de Giselda Leirner e levava singela dedicatória: Para Marilda. Lembro de ter lido no Estadão pelo menos um deles, o conto A Manga. A novela ou conto mais alentado, tinha por título Madalena. Em 1989, quando de meu retorno definitivo da China, fui ao apartamento do Bráulio, se não me engano, no Jardim Botânico, juntamente com outro amigo comum, o arquiteto José Zanine. Foi uma noitada de longa conversa, especialmente sobre as perspectivas que se abriam para o Brasil com a posse, no dia seguinte, de Tancredo Neves na Presidência da República. E que tremenda surpresa nos estava reservada! A caminho da casa de um sobrinho, no bairro do Maracanã, onde eu pernoitaria, ouço pelo rádio do táxi que Tancredo havia dado entrada no Hospital de Base de Brasília, de onde seria removido para o Hospital das Clínicas de São Paulo, e o desfecho dessa história haveria de mudar o destino deste país. Sérgio Muniz é um primo do Bráulio, filho de uma irmã da mãe dele. Foi para esse parente próximo, quatro anos mais moço, que Bráulio mostrou que os adultos mentiam: Aos 11 ou 12 anos, ele fez a mim, menino de uns 7 ou 8, a primeira grande revelação: a de que Papai Noel não existia. Fato que comprovei pouco depois, no Natal, quando vi meus pais sorrateiramente colocando uns presentes aos pés da minha cama. Bráulio morava então na Rua Caiubi, 329, no alto do bairro das Perdizes, endereço da família dele desde o início até o final dos anos 1940, num sobrado isolado da vizinhança, no trecho onde não havia nem um só edifício, só casas. Ao lado, um longo corredor que ia da rua até uma garagem nos fundos serviu de local para ele me ensinar a andar de bicicleta, através de um método simples, apesar de nada recomendável: botavame sentado na engenhoca dele e me dava um empurrão. O problema que fosse meu. Então foi na cara e na coragem que consegui aprender a me equilibrar o suficiente para me livrar de um inevitável choque com a porta da garagem. Dias depois, eu já aprovado na primeira lição de ciclismo, ele partiu para a etapa seguinte, me fazendo descer um trecho íngreme da Rua Caiubi em direção à Rua Monte Alegre, onde milagrosamente consegui fazer uma curva e me safar das chamadas escoriações generalizadas. Talvez remotamente inspirado nas Reinações de Narizinho, passou então a ampliar seus dotes em travessuras que certamente Monteiro Lobato nem sequer chegou a cogitar. Uma delas, passar sabão de lavar roupa nos trilhos do bonde que subia a Rua Cardoso de Almeida onde lá no alto fazia a manobra e voltava a descer, então derrapando, naquela ladeira bem acentuada. Assustado, o motorneiro tinha de acionar rapidamente um dispositivo mecânico que jogava areia nos trilhos. Um garoto sapeca, como se dizia na época. Outra façanha dele era colocar dezenas de palitos de fósforos naqueles mesmos trilhos. Quando o bonde passava, provocava um ruído semelhante a uma rajada de metralhadora, assustando os passageiros. Confesso que, como espectador privilegiado, eu me divertia com essas peraltices. Na mesma Cardoso de Almeida, quase esquina com a Caiubi, morava um amigo dele chamado Raimundo Duprat, que anos mais tarde se formaria na Escola de Arte Dramática do Alfredo Mesquita, tentando fazer carreira como ator, tendo inclusive trabalhado numa montagem da peça Casa de Chá do Luar de Agosto, dirigida por Sérgio Cardoso, mas não conseguiu se consolidar profissionalmente nessa função artística. Foi ali, no vasto quintal daquela casa que, durante as férias escolares, aconteceram as locações de uma miniversão em 16 mm de Romeu e Julieta compactada em nove minutos de duração, dirigida pelo Bráulio. A irmã dele, Alicinha, era a Julieta, e o próprio Raimundo, o Romeu. Eu era o mensageiro que entregava a ele uma mensagem avisando de que ela estaria morta. Alguns anos mais tarde, participei com o Bráulio de outra cena, essa real: a fuga de uma blitz de trânsito. Ele, ainda menor de idade, dirigia um carro, não me recordo de quem era, e ao passarmos ao lado do cemitério do Araçá nos deparamos com aqueles guardas mandando todo mundo parar. Bráulio não teve dúvidas, botou o pé na tábua, descendo velozmente em direção à garagem da casa de um conhecido dele, onde milagrosamente acabamos nos escondendo. Foi no início dos anos 1950, quando eles foram morar num casarão da Rua Tupi, que pude conhecer algumas pessoas ligadas ao cinema, Nelson Pereira dos Santos, Galileu Garcia e Rodolfo Nanni, de quem Bráulio deveria ser assistente de direção do filme O Pica-pau Amarelo. Uma aguda crise de artrite reumatoide, porém, alterou o enredo do destino dele e Nelson Pereira dos Santos entrou em seu lugar. Em 1954, ele me apresentou a uma dirigente do PCB chamada Lenina Pomeranz, através de quem passei a fazer parte da organização do Primeiro Festival da Juventude Latino-americana. Lá pela segunda metade dos anos 1950, era comum um grande grupo de intelectuais ligados ao PCB, do qual o Bráulio fazia parte, se reunirem na Livraria das Bandeiras, localizada na Praça da República, e foi lá que pude conhecer mais de perto aquela gente. Alguns anos depois, passei a trabalhar em publicidade, e fui morar com o Bráulio durante cerca de três anos, em um apartamento da Rua Major Sertório. Era comum jantarmos num pequeno restaurante da Rua General Jardim cujo dono, segundo ele, era um mafioso. Perto dali, comíamos também no Clube dos Artistas e Amigos da Arte, o Clubinho, no subsolo do Instituto dos Arquitetos, na Rua Bento Freitas. Uma imagem que ficou gravada para sempre em minha memória era a postura característica dele numa cadeira reclinável, para ler, com o jornal ou livro em uma das mãos e o outro braço apoiado atrás da cabeça. Quando saí do nosso apartamento para me casar pela primeira vez, em 1961, passamos um tempo só nos vendo raramente. Um ano depois, comecei uma relação estável por mais de 30 anos com Amazonas Alves Lima. A partir daí nos reaproximamos e passei a frequentar, em sua companhia, a casa da Hilda Hilst. Ali filmei também em 16 mm uma paródia da Santa Ceia, onde ele, Marilda, Amazonas, Hilda e o namorado dela, faziam a cena da repartição dos pães. Em 1963, o Bráulio, generosamente publicava no Estadão um poema publicado em meu primeiro livro. E quando do golpe de 1964, chegaria a abrigar o Mário Schemberg em sua casa, em São Paulo. Ao mudar-se para o Rio, passamos mais uma vez a nos ver ocasionalmente. Só nos reaproximamos quando em 1986 fui para Cuba a fim de, como primeiro diretor-docente, participar do planejamento e da instalação da Escuela Internacional de Ciney TV (EICTV), atividade da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano (FNCL), presidida por Gabriel García Márquez. Lembro que, em meados de 1987, estive no Rio para contar-lhe detalhes daquela escola cubana de cinema. Bráulio mostrou-se interessado em saber como era García Márquez em pessoa, qual a função dele e como funcionava a oficina de dramaturgia que ele dirigia. Confessadamente, estava querendo dirigir uma oficina de dramaturgia televisiva na EICTV, em Havana. Infelizmente, quando em setembro de 1990 chegou-me uma resposta positiva, ele tinha falecido um mês antes”. Luiz Ventura retoma seu flashback: Até que, em 1958, Jayme Martins mudou-se para Jaboticabal a fim de cursar a Escola Estadual de Agronomia, eu me casei, e o pintor, desenhista, gravador, ceramista, muralista e escultor Mario Gruber, foi morar ali, em nosso lugar. Politicamente falando, as nossas esperanças de participar da construção de uma sociedade melhor, mais humana e mais solidária, já estavam abaladas desde 24/25 de fevereiro de 1956, quando o primeiro-ministro Nikita Kruschev apresentou um relatório secreto em discurso aos delegados do XX Congresso do Partido Comunista Soviético reunidos no Kremlin. O Partido Comunista eclodia. De uma hora para outra, ficamos sem o suporte idealista que nos mantinha combativos. Houve mudanças no nosso comportamento e certa dose de cinismo nasceu em muitos de nós. * Sua formação marxista levava Bráulio a achar que a grande mudança viria através do proletariado, até que acabou se convencendo de que a grande virada chegaria por intermédio da mulher, que então já era cerca de 55% da população mundial. Acho que quando a mulher se modificar, certamente modificará o homem, seu dominador. O proletariado poderá influir como uma classe antagônica a outra, a dominadora, mas essa nova mulher vai se colocar não só como classe, porque haverá a mulher proletária, assim como levará essa mudança para dentro de cada casa. Vejo que aí estará a alma dessa revolução definitiva. Essa grande democratização, quando acontecer, começará a ser feita dentro dos lares, modificando o comportamento gerador da sociedade que é a família. Chego inclusive a admitir que se eu não fosse de uma geração ainda cheia de vícios masculinos, provavelmente seria um escritor bem melhor. Porque no fundo daquilo que minha capacidade de criação produz há, inconscientemente, o fantasma da presença masculina, dominadora, tirana e prepotente. Mas, voltando à minha saída do Estadão: com o advento da ditadura militar em 1964, vieram então três anos de perseguição em todos os sentidos e foi essa a causa que determinou meu afastamento do jornalismo. Depois de oito anos e meio naquele cargo de destaque em uma empresa tradicional e bem-pagante, eu havia dado plena quitação de tanto tempo de trabalho pela módica quantia de sete mil e 800 cruzeiros em moeda corrente do país. E, três meses depois de ter vendido pedaço tão grande de minha vida por tão pouco dinheiro, passaria a ganhar oito mil cruzeiros, por mês, para escrever para a televisão, ainda titubeante em seus primeiros tímidos passos no país. Oito mil, por mês! Só não caí da cama porque já estava devidamente quebrado. Meu plano passou a ser escrever três meses e viver bem três anos. E quando voltasse, não seria para fazer mais novelas. Que nada! Tinha me esquecido que a cobiça é um pecado mais do que concreto. Aquela velha história do sonho consumista burguês onde, de repente, o salário não dá mais porque a gente trocou as coisas de casa, inclusive a geladeira que estava funcionando bem. O tempo passou e, depois de quase 20 anos escrevendo para a tevê, continuei perseguindo o quixotesco sonho de viver três anos graças a três meses de trabalho, honesto, porém intelectual. Tanto que os tais anos de vida em pleno ócio criativo não passaram de uns poucos meses de vadiagem e, em 1970, com os militares ainda no poder, eu escrevia uma peça dramática, apenas ligeiramente soturna, intitulada As Hienas, que só estrearia no ano seguinte, com minha ida para o Rio. Como não sou um autor de teatro realista, meus textos eram então alegóricos, tendendo para o absurdo. E, naquele tempo de restrições políticas, a metá fora de hienas perseguindo pessoas funcionava, nas entrelinhas, como um recado velado, apenas insinuado, a quem interessar pudesse: Você viu? Vi... ouça ... não fazem mais barulho... parece que já desistiram. Desistiram? É. Voltaram... voltaram para a rua. Quer dizer que... com você também aconteceu? Também. Tive muita sorte. Mas você mora aqui, não é? Não. Então você chegou... chegou assim como eu cheguei? Cheguei. Foi também a única porta que encontrou aberta? Foi. Será que não há mais perigo? Por enquanto... elas vêm até essa porta e depois se afastam. Comigo foi igual... Mas a cidade continua ali, calma, como se nada houvesse. É... é incrível... não há sinal de pânico. O que é que nos aconteceu então? Antes disso, ele já tinha escrito sua segunda novela, também para a TV Tupi de São Paulo, Superplá, dirigida por Antonio Abujamra que, como dizia Marília Pêra, levava tudo a sério, mas também brincava e deixava brincar. Aquilo era uma fantasia, um delírio, acima de tudo, uma gozação, que Bráulio considerava entre suas obras mais criativas. Inclusive havia cenas que só vinham com uma rubrica do que deveria acontecer, os diálogos corriam por conta da improvisação dos protagonistas. O ator e diretor Antonio Pedro achava ótimo, uma delícia de se fazer, mas concordava que, no fundo, era uma proposta realmente subversiva demais. Ele procurava introduzir novidades na telenovela, expressões dinâmicas, tais como a farsa, que usa elementos grotescos, e, embora achasse que ainda não pudesse usar ritmos mais ágeis de narrativa porque o público estava acostumado a histórias pormenorizadas, de andamento mais lento, tentou também apelar para técnicas de filmes de publicidade, essas coisas. Quando escolhi o herói para Superplá, pensei em resgatar as histórias em quadrinhos. Assim como o marinheiro Popeye comia espinafre, meu anti-herói Plácido beberia um refrigerante da marca Superplá e se tornaria um gênio. Tentei, com esse mecanismo, explicar que a moral é relativa, inteiramente circunstancial. Em sua vida normal, Plácido é um medíocre, cheio de medos, que defendia aquilo por sua fraqueza e, depois que tomava Superplá, passava a desafiador, abandonando inclusive a defesa da moral. Naquele capítulo da minha vida eu me situava assim: para mim, a telenovela era apenas um exercício de realismo e quaisquer concessões, no caso, ocorreriam pelo cansaço. Eu podia retirar da realidade alguma coisa, desde que fosse expressiva, mas com o cuidado de desmontá-la e juntá-la outra vez, mas transformada. É preciso inventar, para apreender a realidade. Penso que há certo equívoco em desmerecer a qualidade do telespectador, acredito que não seja ele quem exige do autor certos tipos de personagens e situações. Isto diz quem escreve e produz como forma única de alcançar o público. Como alguns vieram do velho rádio, ainda pensam em função de uma realidade que historicamente mudou. O realismo do teatro jamais seria permitido na tevê e isso já restringe as possibilidades de maior profundidade artística em uma novela, acarretando a limitação dos temas. E quando falo em realismo refiro-me às possibilidades da televisão, onde a censura, já violenta e absurda, é mais exigente ainda, diante de um meio de comunicação de massa tão eficaz. Mesmo assim, sem fugir à realidade, acho que podemos abordar determinados assuntos com sinceridade. Em 1970, aos 20 anos de idade, nossa televisão ainda engatinhava, com recursos audiovisuais bastante restritos e uma plateia muito acomodada. TEATRO. INTERIOR. DIA Na primeira fila da plateia, Tiazinha, a velha camareira, costura uma banana de pano num turbante. No poço da orquestra, quatro músicos, um ao piano e os outros, na bateria, no contrabaixo e no pistom. Todos bem velhinhos. O veterano maestro Lopes, cabeleira branca, óculos de lentes grossas, bate com a batuta na estante das partituras. – Atenção para a introdução do número da pipoca! Sentada num canto do palco, Marilyn Meyer costura uma de suas fantasias, enquanto as girls Vivi Onassis, Brigite Bangô, Gianne Vitória e Silvana La Boca ouvem as ordens de Filó: – Por favor, garotas, vamos ver se dessa vez vocês não erram. É só prestar um pouquinho de atenção. É apenas isso aqui, um, dois, três, esquerda, um, dois, três, direita, vamos lá! Mas, e a Marilyn, cadê a Marilyn? Tô aqui, boneco, ou agora a senhora ficou cega? Queira ficar no seu lugar, por favor. Eu não faço parte desse número. Como assim? Fazia. Agora não faço mais. Quem lhe disse isso? Eu mesma. Ou eu sou a segunda vedete dessa esculhambação ou não sou! Hummm... E como segunda vedete, queridinho, só entro em número que tenha fala! Ou você acha que agora vou fazer figuração para Dona Joana Martini? Escuta aqui, D-o-n-a Marilyn. Isso aqui não é Hollywood, nem TV Globo, é teatro de revista, que se faz com muito suor e lágrima! E você é igualzinha a todos nós, mesmo em seus momentos de glória, queridinha, quando você joga no lixo suas falas, tá? É, mas tem muita gente que só vem aqui pra ver meu material! Sim, porque a não ser ficar pelada, você não sabe fazer mais nada mesmo! Os dois se atracam, começando uma briga. O maestro volta a bater na estante. – Atenção para a introdução do número da pipoca! PRAIA DESERTA. EXTERIOR. DIA Câmera focaliza um pequeno embarcadouro onde está atracada uma traineira. Zé Marinheiro pergunta: Cadê o Baby? Não vi, não, mas deve estar na praia. Camarão, vai lá chamar o homem e diz que já estamos atrasados. Atrás do ancoradouro, em cima de uma esteira, Baby passa óleo de bronzear no corpo. Chega Camarão, trazendo recado de Zé Marinheiro. Já está na hora, Baby. Tô indo. Me ajuda a passar nas costas. Melhor a gente ir andando, Zé disse que nós já estamos atrasados. Tô indo! Calma, um minuto a mais ou a menos não faz diferença. E depois, aprenda uma coisa, garoto: beleza é fundamental. Hoje à noite tenho de estar muito do enxuto, muito do bacana, muito do gostoso. Mais uma pra coleção? Agora tô atacando de vedete. A mina é do teatro de revista. Puxa, uma artista! E que artista! Parece do cinema americano. Loira, oxigenada, e tem uma boquinha, huuum ... Quem é, Baby? Ma-ri-lyn Me-yer! Não conheço, não. Ainda está começando. Mas deixa eu botar a mão nela, logo, logo, vai ser a maior estrela deste país. Mulher que anda com Baby Stompanato não é mulher, é rainha! Isso aí! Espalhou por igual? Vê lá, hein! Baby faz torção de braço. Mora no bíceps! Puxa! Na barriga, olha só, também só músculo, bate pra ver. Camarão bate. Ui! Ué, doeu? Baby dá um sorriso maroto. TEATRO. INTERIOR. DIA Maestro Lopes batendo a batuta na estante. – Atenção, introdução do número da pipoca! O conjunto ataca, o pistom desafina pra valer, as meninas tentam dançar e apesar da simplicidade da coreografia, erram tudo. Silvana La Boca se ofende. – Eu não sou girl, sou modelo! Joana Martini irrompe pela plateia, sobe no palco e troca beijinhos com Filó. Como vai, minha linda! Já está na minha hora? Imagina! Esses estafermos não são capazes de acertar um passo. Joana olha para as girls e fala. – Meninas, antes de qualquer coisa, pensem no privilégio maravilhoso que é trabalhar aqui. Não é o dinheiro que conta, é a nossa arte. Nós somos o teatro de revista, a chama que mantém acesa essa paixão maravilhosa. Foi deste palco que saíram Oscarito, Grande Otelo, Mesquitinha, a incrível Virgínia Lane, a fantástica Mara Rúbia, e se a gente se esforçar, der a alma, o sangue, ainda vamos reviver aqueles momentos brilhantes, vamos ter de volta presidentes da República, ministros e milionários nos aplaudindo. Vamos ter de novo aqueles granfinales com escadarias, cascatas, lantejoulas, paetês. Pensem nisso... Brigite não se anima. – Você é uma sonhadora, Joana, essa mixaria aqui está cada vez mais mixureba! Filó tenta levantar o astral. – A gente precisa sonhar, a gente tem que sonhar! Ataca, maestro! Joana se posiciona para dançar na frente das meninas. – Vamos lá, minha gente, um, dois, três, esquerda, um, dois, três, direita. Muito riso na cara, muita vontade de agradar, pensem que na primeira fila, de repente, pode estar o sheik de Agadir. Dancem para ele, dancem para a fortuna, dancem para a glória! Filó desce para a plateia e abraça Tiazinha que ainda segura o turbante com a banana costurada. Algumas lágrimas escorrem discretamente pelo rosto deles dois. Joana Martini, nome nascido da mistura de Joan Crawford, estrela de Hollywood, ex-dona da Pepsi, e de um coquetel então em moda chamado martini, era Marília Pêra, como uma ex-vedete do teatro de revista da Praça Tiradentes. Baby Stompanato, simbiose do veterano playboy Baby Pignatari e aquele mafioso com o mesmo sobrenome italiano que Lana Turner, outra diva do cinema americano, matou por ter molestado a filha dela, era Helio Souto, como um marginal, traficante, acima de tudo, bonachão, que tinha vencido na vida. O público realmente não gostou nem um pouco dessa corajosa não concessão à mesmice. Antonio Pedro lembra que a audiência da novela, equilibrada entre os níveis que a Tupi, a Excelsior, a Record e a caçula Globo dividiam, começou a cair e, para reagir, a Tupi resolveu botar no ar uma história de Ivani Ribeiro, que era a Janete Clair deles, com Francisco Cuoco, Lima Duarte, Eva Wilma, enfim, o elencão da emissora. A audiência caiu mais ainda. E a Globo, com Irmãos Coragem, se dando bem. Alguns acham que o problema não era apenas a exagerada audácia inovadora de Superplá, na verdade, a Globo estava começando a tomar conta do mercado, com um tipo de produção mais ágil, lançando novelas mais curtas, de 90 capítulos, uma atrás da outra, em ritmo praticamente industrial. Diante do insucesso de Superplá, houve uma inesperada, porém inspirada sugestão de transposição dos dois personagens para o palco. Marília Pêra conta que era tão gostoso gravar aquela novela que o Hélio Souto e ela imploraram ao Bráulio, ele gostou da ideia, reescreveu, e o resultado foi um sucesso teatral espetacular chamado A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato, com trilha sonora assinada pelos amigos, irmãos, camaradas, Roberto e Erasmo, embora apenas o segundo segurasse a barra. O Baby começou sendo feito por Helio Souto que, apesar de carioca, não quis participar da temporada no Rio e em seu lugar entrou Carlos Koppa. E foi então que Marco Nanini fez sucesso pela primeira vez. Eu havia insistido muito, recorda agora Marília Pêra, para que Bráulio e Antonio Pedro prestassem atenção em um novo amigo meu, engraçadíssimo, jovem estudante de teatro que meu amado amigo André Valle, que fazia parte do nosso elenco, tinha trazido para convívio da gente. Eles acabaram não escalando o excelente comediante Amândio para o papel de bailarino e o Nanini arrebentou no personagem. Estavam também nessa montagem, minha comadre Zezé Motta e Pedro Paulo Rangel, que eram remanescentes de Roda Viva, e mais Chico Ozanan, Fábio Camargo, Ileana Kwasinski, Leonardo Neto, João Paulo Pinheiro, Maria Sílvia, Tuta, Célia Costa e muitos outros queridos amigos. Bráulio ia assistir a quase todos os ensaios, ouvia, ria, debatia, ponderava, às vezes até mudava alguma coisa. Nós opinávamos, nunca houve um diretor mais democrático que o Antonio Pedro. Tínhamos direitos, olha que coisa mais antiga! Os cenários e figurinos, deslumbrantes, eram de Joel de Carvalho, arranjos musicais de Carlos Castilho, cabelos do Arnaldo da TV Tupi, que nos acompanhou nessa aventura e, já no Rio, a direção de cena de Ney Mandarino, que tinha sido camareiro de Madame Morineau. O espetáculo só saiu de cartaz quase três anos depois, assim mesmo porque era realmente exaustivo para o elenco. Doce, rosado e engraçado, um anjo doido e bondoso, além de muito culto e inteligente. É assim que Marília Pêra desenha a figura de Bráulio Pedroso. Ele e Marilda reinavam na resistência underground daquela São Paulo dos famosos anos 1967/1968, quando lá cheguei, muito tímida e caí nas garras de Zé Celso e da Roda Viva de Chico Buarque. O casal estava em todas as reuniões da classe artística, nas assembleias, nos movimentos reivindicatórios, inclusive compareceram para nos defender quando nós do elenco de Roda Viva fomos espancados e presos, mas também nas festas regadas a uísque e dança. Eles sempre se faziam presentes e atuantes. Bráulio era corajoso. E dançava! Era interessante ver como um homem com tantas dificuldades físicas conseguia ser atuante e feliz daquele jeito, lutando no campo de batalha e depois bailando ao lado de sua linda mulher e de todos os amigos que o amavam. Foi numa daquelas reuniões de classe que eu o conheci. Sempre nos encontrávamos para conversar, na casa dele ou de amigos, Geraldinho Carneiro, Mônica Silveira, ex-mulher de Nelson Motta e minha querida amiga também, todos nós dizendo qualquer coisa, sem censura, sem pudor. Estivemos juntos numas férias em Búzios, na casa do doutor Nelson Motta e Xixa, pais do Nelsinho, com os filhos amados do Bráulio, crianças ainda, correndo por ali. Houve um tempo em que escrevi contos tolinhos, pedaços de textos, e mandei para ele, que leu com carinho e atenção, avaliou, e comentou comigo, dizendo que eu era uma escritora, olha só que amor de pessoa. Depois ele foi hospitalizado, para uma delicada operação, gravíssima, de muitas horas. Lembro dele voltando da anestesia, desacordado, aquele corpo grande saindo da maca para a cama, as faces ainda rosadas, a pele clara, sem parecer doente, com a aparência saudável de quem estava só cochilando, calmamente. No quarto do hospital, cuidando dele comigo, a Leila Diniz. Conversamos muito, nós duas, nessa ocasião, falando da vida e da morte, enquanto ele dormia. Eu mais ouvi do que falei, Leila era muito inteligente e engraçada, era melhor escutá-la, aprender com ela. Ficávamos sozinhas, nessas visitas, rendendo algum parente próximo dele. Leila também amava o Bráulio. Todos nós amávamos o Bráulio! A partir daí há um vácuo na minha memória e só me lembro dele no caixão. Nem acreditei, quando vi. Soube que tinha caído no banheiro, logo ele que sempre foi tão ágil com suas pernas complicadas. Ele, que apesar das dores e de tudo, sabia dançar. Nunca ouvi o Bráulio se queixar da vida, sempre o vi feliz e animado, meu querido e fiel amigo. Ele é um pedaço de minha juventude, ele está no tempo das minhas grandes alegrias e esperanças. Ele amadureceu e concretizou muitas das minhas ideias infantis. Ele me ajudou a ser quem eu não sabia que era. Ele é um anjinho torto que baila para sempre em nossos corações. Antonio Pedro até hoje se pergunta o que é que o Bráulio estaria fazendo agora, com aquela cabeça privilegiada, cheia de propostas insubordinadas de quem vê o mundo através de uma ótica contrária à maioria, um jeito meio brechtiano de olhar o cotidiano como uma coisa estranha. Desconfiai do mais trivial, na aparência singela, e examinai sobretudo o que parece habitual; suplicamos expressamente, não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar – como disse Bertolt Brecht. Tive o prazer de conhecer Bráulio Pedroso, essa figura maravilhosa, há muitos anos, quando eu estava trabalhando em uma peça que o Carlos Eduardo Dolabella produzia. Foi numa festa no apartamento de primeiro andar do Edifício Cruzeiro do Sul, na Avenida Atlântica, 4.022, entre as ruas Rainha Elizabeth e Júlio de Castilhos, no Posto Seis de Copacabana, onde o Carlos Eduardo morava com o pai, Vadinho Dolabella, que fazia parte do famoso Clube dos Cafajestes, pra quem não sabe ou já não se lembra, aquele grupo de alegres boêmios que sacudiu esta cidade ainda maviosa, mais que maravilhosa, dos dourados anos 1950/1960. Eis que, de repente, entra ele, que havia ganho o Prêmio Molière de melhor autor teatral daquele ano de 1966. De bengala e ainda sem a barba que depois foi uma de suas marcas. Eu o cumprimentei e fiquei impressionado com a beleza da mulher que o acompanhava, a Marilda sempre foi linda, né? Minutos depois, lá estava Bráulio refestelado numa poltrona, com pelo menos cinco mulheres em volta, ouvindo-o falar. Cena, aliás, que mais tarde se tornaria corriqueira. Por algum tempo, não nos cruzamos mais, até que em maio de 1968, fui para a temporada paulista de Roda Viva no Teatro Galpão. Durante aquele ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), eu estava no camarim, de cuecas, quando eles abriram os extintores provocando uma grande fumaceira, dando início a uma quebradeira geral. O barulho era infernal. Impedindo os homens de se movimentarem, agrediram as mulheres. Tentei reagir, segurando o pé de madeira de uma mesa na mão, mas levei logo uma cacetada e voltei pro camarim meio tonto, cambaleando. Não demorou, o teatro estava mergulhado num silêncio impressionante. Na minha frente, um cara de japona, cabelo meio grisalho cortadinho rente, com pinta de gente da Marinha disse desce! Desci, pensando até na absurda possibilidade de ter um pelotão de fuzilamento lá embaixo, ainda levei um cachação no pescoço. Vi quatro joaninhas paradas em frente ao teatro. Os policiais, de braços cruzados; os agressores, simplesmente tinham sumido. Depois a gente soube que eram 75 sujeitos que compraram ingresso, sentaram nas últimas cadeiras e, quando o público estava saindo, começaram o ataque, quebrando tudo em não mais do que três minutos e meio e foram embora, misturados às últimas pessoas da plateia. Uma típica operação militar, para intimidar a classe teatral. No dia seguinte é que foi lindo, o teatro lotado e nós representando com os cenários quase todos destruídos, os figurinos rasgados, alguns remendados, o Rodrigo Santiago de braço na tipoia, a Marília Pêra com hematomas, e a plateia jogando flores na gente, no palco. Entre os presentes, quem? Ele, Bráulio Pedroso. Estava com uma peça de sua autoria na Feira Paulista de Opinião, no Teatro Gil Vicente, mostrando um burocrata que vai apodrecendo, literalmente, confirmando aquele universo inusitado da obra dele. É dessa ocasião, um bilhete manuscrito: Bráulio. Você é maravilhoso. Sua peça me emociona. É boa demais para nossa subcultura. Tenho pena de você. Enfim, nossa condição de brasileiros anarquiza com qualquer inteligência. O importante é acertar cem vezes na mosca e depois prosseguir, mesmo que ninguém entenda nada. Um beijo, meu lindo. Marilda. A essa altura, Bráulio e Antonio Pedro tinham passado a se encontrar nas assembleias de classe. Bráulio fazendo uma linha dissidente, revela hoje Antonio Pedro. O pessoal do Partidão, Augusto Boal, Plínio Marcos, Juca de Oliveira, queria sempre contemporizar e em geral eram eles que nas assembleias ficavam na mesadiretora, da qual depois passei também a fazer parte, como líder dos chamados porras-loucas. O Bráulio era porra-louca-adjunto, por ser mais velho do que nós. Foi quando em 19 de junho de 1968 a classe teatral de São Paulo reuniu-se em assembleia no Teatro Ruth Escobar para debater a devolução dos Sacis, estatuetas de um importante prêmio concedido todos os anos pelo jornal O Estado de S. Paulo, primeiro a distinguir a atividade dramática na esfera estadual paulista. Uma atitude de protesto proposta pelo Bráulio e o Walmor Chagas. O jornal A Gazeta no dia seguinte acrescentava que a atriz Cacilda Becker, então na presidência do Conselho Estadual de Teatro, havia tentado uma atitude conciliatória, alegando que um movimento desse tipo enfraqueceria a luta contra a censura. Vencida, porém, pela decisão da maioria, a grande atriz acabou também colocando seus troféus à disposição. Na opinião de Décio de Almeida Prado, nesse rumoroso episódio Cacilda estava dividida entre a solidariedade de classe, que acabou por prevalecer, e a convicção pessoal de que um rompimento com o tradicional matutino só prejudicaria a classe artística, entre outros motivos porque era o veículo de comunicação que proporcionava a mais extensa cobertura dos assuntos da ribalta. Quanto a Antonio Pedro, já estava em plena campanha de desobediência civil. Era um clima de guerrilha teatral mesmo, embora não achássemos legal encarar o Estadão pela proa. Mas a ideia foi aceita na hora e a assembleia apoiou a decisão por aclamação. Como era preciso que os próprios premiados devolvessem o prêmio, marcamos outra assembleia, quando apareceu um monte de Sacis em cima da mesa-diretora. Foi bacana. Aí eu comecei a ir à casa do Bráulio, na Rua República do Líbano, se não estou enganado, sei que já lhe tinham nascido o filho João Manoel e também o irmão, Felipe, ainda muito pequenos. Todo dia, a mesma coisa, tornada rotina: acabava o teatro, casa dele, até três, quatro da manhã, bebendo uísque e batendo altos papos, de onde geralmente nascia uma boa ideia. E já com pleno direito às delícias culinárias da Marilda, que jamais deixou de aparecer com uma comidinha saborosa, era infalível. Bráulio e eu nos identificamos de imediato. Acabei dirigindo As Hienas, com Marília Pêra, Gracindo Júnior e o Joel Barcelos, que não decorava suas falas de jeito nenhum e quando ela reclamava, justificava em tom solene: Marília, texto não se decora, texto se impregna! Nós nunca estreamos, o Bráulio brigou com a Ruth Escobar, dona do teatro que tinha alugado para ele. É que ela começou a canibalizar o próprio espaço cênico, para acabar de montar no Teatro 13 de Maio o Cemitério de Automóveis, de Arrabal. Uma aventureira extraordinária, né, mas eu gosto dela! Lembro que o desentendimento teve desfecho num restaurante francês do Largo do Arouche, do qual me foge o nome, só sei que não era o Casserole. A gente jantando, entra ela, o Bráulio dá-lhe um esporro e a resposta, embalada em forte sotaque luso, veio de bate-pronto: Ah, então não queres? Então não tens! Pronto, estava encerrado o assunto. Aí houve a possibilidade de a gente ir se apresentar em Santos, numa das salas grandes do imponente, tradicional, histórico Parque Balneário Hotel, de frente para a praia do Gonzaga, com aquela arquitetura da Cote d’Azur, que anos depois acabou sendo demolido pra dar lugar a sei lá o quê, certamente a um nada qualquer com o nome de empreendimento imobiliário. E, claro, também não conseguimos acertar nossa pequena temporada lá. Então a peça As Hienas só estreou aqui no Rio, no dia 13 de maio de 1971, com direção de Marilda Pedroso, no ex-Teatro da Praia, hoje uma igreja, na Rua Francisco Sá, em Copacabana. Renata Sorrah, Zé Wilker e Carlos Vereza como Ana, Vitor e Pedro. Pedro, atirador de setas, irmão de Rogério que morreu por uma ideia, irmão de Laio que de conversar com as estrelas ficou por lá, são criaturas de Bráulio Pedroso que ganharam o mundo comigo, disse Vereza. E nesse longo processo de trabalho, muitas vezes a gente brigou, ficou de cara feia um para o outro, mas sei que foi de tanto ciúme, cuidado por aqueles rapazes que não perdem a mania de querer melhorar as coisas. Então, Antonio Pedro e Bráulio já estavam unha e carne, parecia que se conheciam há 300 anos. “Socialmente falando, ele foi um dos últimos praticantes de open house, suas casas estavam permanentemente abertas para quem chegasse. Naquela lá do alto do Leblon, perto do Clube Campestre, a gente ia sempre. Ele, radiante, bem-humorado, embora sofrendo de uma doença rara, sobre a qual meu pai, médico, que o examinou algumas vezes, dizia causar dores constantes e, na crise, padecimentos insuportáveis. Foi meu pai, ainda, que mais tarde diagnosticou uma diverticulite da qual Bráulio se recuperou depois de uma delicada operação. E, embora da década de 1970 eu só me lembre de cinco anos, a metade, nunca me esqueci de um detalhe interessante daqueles bons tempos. Porque ele vivia convidando a gente pra ir tomar banho de piscina lá no Campestre. E nós fomos. Passamos quase um verão inteiro usufruindo daquilo tudo, esparramados naquelas espreguiçadeiras, tomando sol, aliás, tomando sol e gim tônica, que ninguém é de ferro. Pois foi só depois de muito tempo que eu soube que ele nunca tinha sido sócio de lá! Um dia, o Jardel Filho, que tinha feito O Bofe e era associado do clube, convidou o Bráulio pra dar um mergulho naquela piscina; ele gostou, então continuou indo, nos dias seguintes, sem Jardel nem nada, gozando de todas as mordomias, sem que ninguém dissesse ou perguntasse qualquer coisa. É mais uma amostra do ser absolutamente especial que ele era, portador de uma milagrosa energia que agregava todos e quase tudo em torno de sua pessoa. O Bráulio me lembrava um fauno”. * A fim de manter o rumo contrário às facilidades da repetição, Bráulio já tinha escrito O Grande Cantor, em 1966, peça musicada em três atos, com quinteto instrumental, corpo de baile e muitos figurantes. Segundo o script original, com o teatro às escuras, ouvia-se uma abertura sonora. Iluminado o proscênio, diante da cortina, apareciam os músicos e um grupo de bailarinos vestidos com o exagero da moda juvenil. A coreografia revelava simplicidade e alegria. A letra da canção (Por isso agora sou cabeludo/ sou topetudo/ sou barbudo) falava da disposição de cada um em assumir suas atitudes, não se importando com a censura dos mais velhos, que estavam botando este mundo a perder. Era um convite à alegria de viver. Subia o ritmo da música que, ao atingir o frenesi, cessava de modo abrupto. Bailarinos e músicos petrificavam-se. Até que, após uma pausa de profundo silêncio, surgia Lupe Lorena, seguida de uma câmera de televisão. Com a entonação de quem estava anunciando alguma coisa fundamental para a vida dos seres humanos sobre a Terra, ela falava: Agora, um minuto de reflexão (Pausa) para nossa mensagem publicitária! Ainda na segunda metade da década de 1960, Bráulio escrevia uma burleta chamada É Dando que se Recebe, tratando de um assunto tão atual que até parece que foi feita agora, e não há quase 50 anos. Já naquela época, ele se antecipava: O Brasil continua tão antigo na prática da corrupção, insistindo num repertório grotesco de avidez através de personagens reais tão caricatos, que eu me sinto impelido à estética do velho teatrão, com telões pintados, raros objetos, perucas mal disfarçadas, maquiagem exagerada e vinhetas sonoras entre cançonetas ligeiras. Uma adequação à farsa que se instalou na realidade brasileira. E como partimos dela, vai ver até que é uma peça realista! À minha maneira, eu continuava a fugir da simetria e do óbvio. O Bom Canalha foi outra das minhas sugestões para tema de novela. Assim como A Arca do Espaço, cuja pro posta seria abordar um tema inédito em nossa teledramaturgia, apesar de responsável pelas maiores bilheterias de Hollywood: o extraterrestre. Se conhecermos o mapa dessa mina, por que não tentarmos? Temos todas as condições, basta optar por nossa originalidade. Nada de Spielberg, muito de Gabriel García Márquez. É só olhar à nossa volta e ingressar, de vez, no realismo mágico. Boa Esperança, ponte entre o passado e o futuro, seria uma cidade cenográfica onde os estilos colonial e pós-moderno estariam misturados, na vizinhança de favelas desafiadoras, não mais musas inspiradoras de velhos sambinhas demagogos em que barracões eram bangalôs de uma gente que já vivia pertinho do céu. Em Arca do Espaço, três extraterrestres em corpos humanos, se encontrariam em Boa Esperança, onde vivia um paranormal do tipo Thomas Morton, sob os olhares de observadores americanos e russos, entre forasteiros que chegavam em busca dos fluidos milagrosos do guru, e jornalistas à cata de notícias novas. Cada um deles com um motivo para estar na cidade, o destino se encarregando da profundidade e da gravidade dos encontros e desencontros. Nessa espécie de retrato sociopsicológico de nossa atualidade no final do século 20, todos os habitantes do local seriam suspeitos e dois recém-chegados estariam empenhados na busca de um vilão do espaço. A salvação viria de dentro de um galpão protegido por cães ferozes, onde estava sendo construída uma astronave. Quem teria lugar nessa moderna Arca de Noé? Quem cederia seu lugar a quem? Como vem acontecendo desde os tempos imemoriais, prevaleceriam os interesses particulares imediatos. Mas, a trama discutiria fundamentalmente a necessidade que o ser humano tem de acreditar na coisa mágica, milagrosa, fantástica, extraordinária. Além dessas ideias, eu tinha ainda a proposta de um seriado intitulado Geração de 80, com o subtítulo de Isadora e Valentino. O primeiro título contendo uma ironia, um equívoco proposital: a geração de 80 não era a dos anos 1980, mas a que já tinha 80 anos de idade ou quase isso. O subtítulo evocaria a liberdade de Isadora Duncan e o romantismo de Rodolfo Valentino. Como tema central, a série procuraria ser um hino à vida, assinalando que o otimismo é fundamental para que as pessoas se mantenham vivas de verdade. Sem deixar de apontar, criticamente, os diversos fatores da realidade que inibem a possibilidade de se ter prazer em viver. Assim, entrelaçando ideias arrojadas, eu continuava minha busca incessante do espontâneo, que é onde está a beleza das coisas. Essa atitude de apresentar propostas inéditas foi sempre uma constante em mim, como escritor. Até porque, certeza mesmo só tenho de uma coisa: que é preciso propor. Aliás, de pleno acordo com o pensamento do filósofo, crítico literário e ensaísta alemão de origem judaica, Walter Benjamin, autor do ensaio A Obra de Arte na Época da Reprodução, publicado em 1936, segundo o qual o público das salas obscuras é bem um examinador, porém um examinador que se distrai. Ou seja, devido à indissociabilidade entre o olhar da reflexão e o olhar do prazer, a mesma massa que reagia de modo retrógrado diante de um quadro de Picasso, assumia atitudes progressistas frente a um filme de Chaplin. Bráulio Pedroso não era apenas um escritor, um teatrólogo, mais do que um simples autor, ele era também um pensador: Acredito que o ser humano foi destruído quando apareceu o Humanismo na Renascença. Esse elogio do humano deu-lhe um sentido muito grande de poder e isso determinou essa civilização de poderosos que está aí. Talvez só a animalização do homem vá devolver-lhe um sentido melhor de comportamento. Sou contra o homem se acreditando centro da realidade do mundo. Se voltasse a ter a sinceridade do animal, se fosse mais bicho, mais natureza, provavelmente seria mais solidário e acabaria admitindo que há uma coisa maior do que ele, que é o espaço suficiente para dar-lhe a capacidade de olhar para o semelhante como um companheiro de fraquezas, de limitações. Deus e infinito são ideias ou sensações ou emoções não digo iguais, mas envolvidas na mesma lógica. Porque o infinito escapa justamente a essa profunda autoridade que o homem se dá e, sendo limitado, vivendo um tempo tão curto, não cabe a ele o infinito. Um dia, o cardeal do Rio de Janeiro pediu a mim, à Janete Clair e ao Gilberto Braga que transmitíssemos a ideia de felicidade em nossas novelas. Aí eu lhe disse que esse julgamento era muito relativo porque eu, por exemplo, não podia propor a felicidade como um casamento aparentemente feliz, já que para mim a felicidade era colocar a pessoa em desequilíbrio. Só quem tem consciência de suas contradições é capaz de caminhar e só quem é capaz de caminhar está capacitado a agir, a modificar. Na verdade, aposto demais, torço muito para que as mulheres cada vez se desenvolvam mais e conquistem as coisas. Lembro bem, quando em 1958 comecei a trabalhar em O Estado de S. Paulo, havia na redação só uma mulher, hoje o jornalismo brasileiro está quase transformado em exclusividade delas, que pelo menos nesse se-tor já começam a conquistar uma posição sólida. Quando vou ao teatro, a um concerto ou faço uma conferência, elas são 99% da plateia. Uma vez, no final de uma palestra, depois de me perguntarem muitas coisas, uma delas quis saber: Agora, qual a pergunta que você quer fazer para nós? Olhei para aquela mulherada toda e não tive dúvida. Gostaria de saber com que homens vocês vão se casar! Porque eles estão se afastando da curiosidade maior: a cultura. Ou seja, os homens estão se desmerecendo cada vez mais! Foi em março de 1971 que ele veio para o Rio de Janeiro, contratado pela TV Globo para dividir com Dias Gomes, alternadamente, a faixa das 10 da noite, último dos três horários fixos de novelas da grade de programação da emissora, que oferecia relativa liberdade de criação, embora constantemente mutilada pela censura federal do regime militar. Eu considerava minhas histórias como uma crônica diária da vida real e estava feliz com as condições do contrato assinado, encarregando-me de tramas curtas, de no máximo seis meses de duração, que não cansassem nem a mim nem à audiência. Quando se é obrigado a esticar as situações porque está dando Ibope, os personagens ficam prejudicados e o público é que sai perdendo. Nem sei como consegui fazer o Beto enganar todo mundo de que ele era rico, durante 300 capítulos. A estreia dessa minha nova fase foi com O Cafona, uma irreverente caricatura, irônica, sobre a decadência moral da alta sociedade, através de grãfinos, hippies e um novo-rico, Gilberto Athayde, interpretado por Francisco Cuoco, no papel do ex-dono de um pequeno negócio transformado em proprietário de uma rede de supermercados, capaz de imperdoáveis gafes como, num jantar elegante, beber a lavanda pensando que fosse sopa. Além de outros atentados contra todos os códigos de etiqueta. Para os braços dele, o milionário falido Fred da Silva Pinto (Paulo Gracindo) tentava empurrar sua filha Malu (Renata Sorrah). O cafona endinheirado, porém, ficava mesmo era com sua secretária Shirley Sexy, feita por Marília Pêra, em sua primeira novela na Globo e logo elevada à condição de estrela. Completavam o elenco, Carlos Vereza, Marco Nanini, Ary Fontoura, Osmar Prado, Djenane Machado, Felipe Carone, Álvaro Aguiar, além de Maysa, a cantora. Ary Fontoura tem saudades daquele trabalho: O Bráulio era uma pessoa sempre aberta, pronta a buscar o ainda não mostrado e isso era o que mais me encantava nele. Reunia-se sempre com a gente, a fim de discutir uma série de ideias que lhe chegavam às vezes até quando os scripts já estavam fechados. Em O Cafona, eu fazia o Profeta, um personagem anárquico que ele particularmente adorava. Acho comum aprimorarmos os papéis que nos chegam para interpretar, mas com ele esse trabalho quase que se tornava desnecessário, pela quantidade de inserções que os diálogos continham. Grande autor, um sujeito supersensível, uma lacuna difícil de preencher. Não é saudosismo meu, é um respeito profundo que tenho pelos nossos grandes criadores. Ao mostrar, como no Beto, a realidade do dia a dia em lugar de ganchos, segredos, suspenses e charadas, O Cafona prendeu a atenção até que, em função de protestos de algumas figuras influentes do high-society que se viam retratadas na trama, pela primeira vez aparecia em novela aquela advertência então comum em filmes: ‘Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas e com fatos reais, terá sido mera coincidência’. De todas as minhas histórias, era a mais crítica. Em meus trabalhos, eu crio os elementos, o núcleo essencial. A partir de certo momento, meus personagens têm vida própria. Aí descubro, junto com eles, o que vai acontecer. Isso me diverte. Já pensaram como seria chato escrever os 140 capítulos já sabendo o final? Ainda em 1971, no dia 27 de setembro, sob o título de Por que a morte está presente em mim, a revista Manchete publicava este texto de Bráulio Pedroso: ‘Subitamente, com O Cafona, me vi perante a morte. Procurava puxar a história para um lado e outro, mas sempre me deparava com ela. E não pude deixar de ser o causador, pasmem, de algumas mortes. Com certo receio e espanto, eu ia fechando os olhos de alguns personagens. É a primeira vez que isso me ocorre. Não que antes eu não houvesse matado. Já, sim, porém em momentos insignificantes. Nos meus contos matei duas vezes, nas minhas peças, uma, e mais uma outra nas minhas novelas anteriores. Talvez por não ter uma visão trágica da realidade ou por simples paura ou superstição, sempre fui muito comedido nesse ponto. Na Vida Escrachada, ia deixando o Esquadrão da Morte liquidar os dois heróis, mas em um golpe fatal, resolvi ressuscitá-los. Agora, de repente, algumas mortes. Começo a perguntar agora que escrevi o último capítulo: mas como, se em O Cafona todos vinham levando uma vidinha assim meio na flauta, onde o mais terrível era beber uma lavanda? As coisas não estavam se ajeitando? As pessoas não estavam se entendendo, inclusive com um alto nível de compreensão? Oito assim de uma vez, não seria muito? Pensando em grandes desastres não é, e nas peças de Shakespeare, é o normal. Só que oito, para mim, é o que eu não matei em toda minha carreira de escritor. Quem for assistindo à novela até o fim, vai dizer que foi o destino, tinha de acontecer, era inevitável. As causas são razoáveis e podem mesmo pegar qualquer um de nós. Mas, por que oito, de repente? Fazer isso como brincadeira, não seria justo. E eu não procurei imitar os ingleses, como naquele filme em que Alec Guinness morre oito vezes na pele de oito personagens diferentes. Estou é querendo fugir de uma evidência. Foi o destino. Há um momento em que o imponderável resolve mesmo declarar sua existência. No meu caso, consegui adiá-lo frente a frente, mas nem sempre é possível. Ao escritor que tenha nascido em um meio miserável onde a morte é uma constante, esse não consegue fugir. Aquele que tenha nascido em período de guerras ou revoluções, também não. Assim como o que tenha assistido à morte dos mais próximos. O sentido da morte só existe no fim de um afeto. Posso continuar irresponsavelmente vitalista, mesmo sabendo que neste ano morreram muitas pessoas no Paquistão e na guerra do Vietnã. Seria preciso que parentes, amigos, tivessem morrido lá para que subitamente a tragédia me fosse incorporada. Continuo a pensar em maremotos e temporais, com absoluta tranquilidade. É, o certo é isso, se antes eu não matei muito, é porque de certa maneira aconteceram poucas mortes ao meu redor. No caso de Nelson Rodrigues, por exemplo, se ele mata muito é porque a morte sempre o acompanhou na vida. Mas, agora, acho que tenho consciência do motivo pelo qual cheguei às oito mortes de O Cafona. É que outro dia o peso dos meus 40 anos se colocou em suas justas medidas. Conversando com um velho amigo, rememorando antigas amizades, saí-me com essa, de imprevisto: ‘É, ele foi o primeiro de nós’. Sem pensar, coloquei-me no caminho da morte. Na ideia de que o primeiro já foi e que daqui a pouco virão outros e outros, até que... ‘ Uma sátira à poluição social intitulada O Bofe era mais um trabalho dele, depois de O Cafona. Uma dondoca entediada que vai ser jurada do programa do Chacrinha; um lanterneiro que consegue a proteção de um milionário; uma suburbana que ambiciona ser dama da alta sociedade, torna-se vendedora de enciclopédias e repete verbetes sem parar; um decorador que enriquece, mas contesta a sociedade em que vive, esses eram alguns ingredientes da história que foi para o ar em julho de 1972. Ao contrário do Beto e do Cafona, não haveria momentos de tensão e drama. A ideia era de sátira à vida da cidade grande, em clima de comicidade. Um velho jornal carioca, o tradicional matutino Correio da Manhã, anunciava, em detalhes: Jardel Filho, Cláudio Marzo, Cláudio Cavalcanti, José Wilker e Milton Morais encabeçarão o elenco. Jardel, o Jorjão, será o mecânico que imita seu ídolo, o personagem de Francisco Cuoco em O Cafona; Marzo será Demétrius, uma espécie de grego Zorba aflito e meio louco, revoltado com a situação em que vive, mas que depois de ganhar a proteção de um milionário sofisticado encarnado por Paulo Villaça, acaba se transformando numa espécie de artista do absurdo que só consegue criar sob efeito de muito barulho; Wilker será o decorador chique, amigo íntimo e conhecedor dos golpes que o personagem de Cláudio Cavalcanti planeja aplicar em sua tia de Botafogo, vivida por Zilka Salaberry, uma velha carola viciada em jogar na Bolsa; Morais será o dono da oficina, misto de herói e crápula. Mas os grandes momentos criativos da novela estarão com Ziembinski, como a Tia Natasha, uma velha polonesa cujo desejo é ver suas sobrinhas, Betty Faria e Elisângela, casadas e tranquilas donas de casa. O que a notícia não previu é que, talvez por ser uma farsa onde os personagens eram pintados com exagero e devido à clara intenção de ir contra toda a engrenagem tradicional das demais histórias da tevê, a novela não emplacou. A direção daquele fracasso foi de Daniel Filho. Normalmente, Jardel Filho e Beth Faria formariam um casal pobre que subiria na vida e ficavam ricos, mas, ao contrário, por serem nada mais do que pobres diabos, permanecem assim, com todas as suas ilusões. O que eu que-ria não era que o público ficasse condicionado ao aspecto factual, se eles iam ou não se casar, se iam ou não melhorar de vida, eu queria que o comportamento deles fosse visto de forma crítica. Foi a mais anárquica de todas as minhas telenovelas, mostrava a falsa caridade cristã, pessoas humildes entregues a toda sorte de crendices e ilusões, além de uma série de trapaças comuns na vida real. Naquela vasta galeria de anti-heróis havia uma senhora bem diferente da tradicional avozinha bondosa, que instigava as aventuras fora de todos os padrões. Na no-vela tradicional, a trama segue uma linha tão esquemática, que o telespectador nem presta atenção em certas falas de pouca importância para o desenrolar da história, só voltando a se interessar nas situações mais emocionantes. Nas minhas novelas, sem esquemas rígidos, ele tem de ouvir todos os diálogos, senão corre o risco de não entender o enredo. Não via nada de errado nisso, porque tratava-se de uma farsa e eu queria que a coerência psicológica ou social se danasse. O capítulo 32, por exemplo, era todo cantado, do princípio ao fim, inclusive com José Wilker e Cláudio Cavalcanti entoando trechos de óperas, com letras trocadas, enquanto tramavam a morte da tia. Na vida real, porém, ao contrário de muita gente, a empregada da casa aqui ao lado entendeu o espírito da coisa e disse que aquela gozação era muito legal. Talvez exatamente por isso tudo, Bráulio tenha sido uma espécie de choque anafilático na audiência viciada em melodramas repetitivos, presos aos trilhos dos enredos previsíveis, com finais adocicados. Mas, essa mesma plateia estava vendo uma imagem inconcebível para um herói de novela global: Cláudio Marzo com uma imensa barba no papel de um lanterneiro desiludido e um jeito sujo de ser, embora elemento poético da história, citando trechos de poesias de Mário de Sá Carneiro. De repente, uma pergunta aparecia na tela: Será que eles vão morrer ou não? Isso vocês vão saber só depois dos comerciais. O telespectador já acostumado com as fórmulas tradicionais de novela ficou desnorteado diante dessa fala do personagem de José Wilker no final de um dos capítulos de O Bofe. Todos pensaram que fosse uma brincadeira e acharam aquilo uma palhaçada. Acontece que eu estava brincando mesmo! Estava botando tudo em jogo, o falso suspense, os intervalos, a própria estrutura da novela. Queria suprimir esse tipo de continuidade e todos os demais truques tão usados. Afinal, o cotidiano é descontínuo! Acontece que o deboche era o clima daquele enredo intencionalmente experimental e essa ousadia resultou em queda de audiência. Fui elegantemente convidado a ir para casa tratar-me de uma hepatite e ceder a responsabilidade do texto para o Lauro César Muniz. A troca de autoria foi que evitou o maior morticínio de todas as novelas, porque a intenção original era que em cada crime houvesse uma ou mais testemunhas que por sua vez iriam sendo eliminadas também, até a história acabar por falta de personagens. José Wilker pediu para sair de cena, no que foi atendido através de uma hilária cena insólita: seu personagem morreu de tanto rir. Cláudio Marzo pegou um avião e foi a São Paulo conversar com o Lauro César sobre as mudanças impostas a seu personagem. Hoje o ator revela que ficou então combinado que 50% caberia à nova autoria e 50% correria por conta e risco de suas improvisações. Segundo ele, o Lauro César, apesar de ser uma pessoa sábia e esperta, modificou tanto o Grego, transformando-o tão radicalmente, que ele acabou não tendo nada a ver com o tipo original do Bráulio, com sua total irreverência, sua revolta, sua violência, sua insatisfação, chutando aquelas latas velhas que vão tomando forma até ele começar a vendêlas como obras de arte. Adorava fazer aquele personagem, mas não deu pé, porque o que eu podia mudar não era 50% era muito menos. Até que chegou a vez de um capítulo onde a personagem de Renée de Viellmond dizia: ‘Grego, eu te amo’. Ah, aí eu não resisti e improvisei, em tom absolutamente sarcástico: ‘Não a-cre-di-to’! E caía na gargalhada. Embora em O Cafona Bráulio tenha estendido demasiadamente certas situações, ele procurava criar outros anti-heróis, utilizando uma interpretação realista. O próprio segredo de Beto Rockefeller, por exemplo, normalmente poderia ser desvendado em muito menos tempo que o gasto pelos personagens, mas o público adora esses prolongamentos artificiais. Pessoalmente, eu acho que as pessoas se tornam mais fortes quando têm consciência da realidade que as cerca e, inclusive, procuro mostrar isso nas minhas novelas, mas acontece que elas querem é ser enganadas. O espectador quer se identificar com os heróis imaculados, sem defeitos. E, afinal, quem acabou ganhando com o fracasso de O Bofe foi Lima Duarte: ele ainda tinha um mês de contrato a cumprir, então viu-se obrigado a fazer um papel episódico na primeira novela colorida, O Bem-Amado. Foi chamado para participar só dos cinco primeiros capítulos, mas o sucesso de Zeca Diabo foi tão grande que o manteve até o último episódio. E em 1973, lá estava eu de novo na TV Tupi, com minha cria a tiracolo. Era A Volta de Beto Rockefeller, que não teve, nem de longe, a receptividade da trama original. Mesmo assim, o personagem continuava vivo, tanto que 16 anos depois, no dia 14 de maio de 1989, a Folha de S. Paulo publicava o seguinte: ‘O bicão que agitava o jet-set paulistano no auge do governo militar vai voltar. Suas trapaças hoje terão uma coloração ingênua, se comparadas com o sofisticado padrão de malandragem vigente’. A ideia de fazer Beto ressurgir mais uma vez tinha sido de Carlos Augusto de Oliveira, o Guga, irmão do Boni. Seria no SBT, em forma de uma outra novela e não um remake ou simples reprise adaptada. Ficou apenas no projeto. Irene Ravache, participante dos dois elencos anteriores, dizia que muito triste nisso era perceber que o país, mesmo sem tortura e censura, era ainda pior do que no tempo da primeira versão. O caminho já estava aberto para o novo autor e isso era o principal. Vieram então muitos aplausos e até alguns campeões de audiência. Com mais presença na tevê, porém sem deixar o teatro de lado, Bráulio intercalou estrondosos sucessos com retumbantes fracassos, alto preço cobrado aos que, como ele, nunca se contentaram, nem sequer se conformaram, muito menos se acomodaram com fórmulas mágicas de êxito fácil. Essas ele também as tinha, todavia se recusava a usá-las. Inquieto, irreverente, jamais se satisfez em requentar nada, mesmo aquilo que já tinha dado certo. Não se conformava em reaproveitar suas próprias ideias. Para ele, havia sempre um jeito diferente de contar as histórias que nasciam em sua cabeça contestadora. Não quero para mim o que aconteceu com o Burt Bacharach, que fez uma música da qual todo mundo gostou e nunca mais conseguiu fugir daquela formulazinha esgotada. Ficou escravo daquele esqueminha pronto que tinha dado certo e, resultado, tornou-se apenas mais um milionário, nada além disso. No meu caso, eu poderia fazer outros Betos Rockefellers o resto da vida, o mesmo truque realista, o mesmo tipo de trama e de personagens. Só que, ficar preso a uma fórmula que eu mesmo inventei, me daria um tédio insuportável, porque acho que sucesso e tranquilidade financeira não é tudo na vida. Preciso, antes de mais nada, me divertir. Principalmente, porque se trata de uma função que exige a feitura de 20 laudas a cada dia. E não me basta ter a pequena alegria de um alto salário no fim de cada mês. Assim, sempre busquei o novo ou uma nova forma de falar do velho, desde que seja com uma narrativa surpreendente, imprevista, sobre tema ainda não suficientemente explorado, de preferência, o patético bem-humorado. Por isso, quando escrevo uma novela, ela é sempre desafiadora, excitante, quase um salto mortal de trapezista de circo, sem rede embaixo. O jeito brasileiro de contar histórias está tão colonizado, tão envolvido em soluções cosmopolitas alienantes, que de repente bastará alguém fazer o que sempre foi natural em nós para ganhar níveis de ineditismo. E arrisco uma previsão: haverá de chegar o dia em que algum patrício nosso, simplesmente por cantar um samba, será tido como histórico revolucionário! (Intervalo) Segundo Ato Atingindo os Inquietos, Indagadores, Inconformados Apesar de ter começado como autor de teatro e estivesse na televisão por mero acaso, algumas pessoas ainda me julgavam como um autor de televisão que queria fazer teatro. Em 1974, eu tinha dado meia-volta e estava de regresso à Globo, com mais uma grande ousadia: O Rebu, um rompimento com a linearidade temporal, uma tentativa de aproximação com a metalinguagem. A proposta me satisfazia porque era a de mostrar, através de um veículo que leva meses para dizer alguma coisa, uma história que se passava num dia só. Por outro lado, em termos de continuidade, tinha a inovação de ser contada em vários tempos narrativos. E havia outros fatores que transformaram os quatro meses que levei para escrevê-la, em jornadas agradáveis, embora difíceis, já que a cada dia de trabalho eu não sabia se iria encontrar a solução certa para o entrecho. Mas, como sempre acreditei que, ainda que possam estranhar no início, as pessoas são receptivas em relação às novas ideias, aos novos esquemas, O Rebu funcionou relativamente bem em matéria de audiência, apesar de ser exibida às 10 da noite. E em pesquisa detalhada, os jovens apareceram em maior número, principalmente moças de 15 a 20 anos. Quer dizer, os mais indagadores, menos conformados, é que estavam ligados em mim. Isso me dava muito prazer, saber que estava atingindo os inquietos. Pessoalmente, foi uma grande vitória, embora a audiência fosse inferior à das outras novelas, de narrativa mais cronológica. Uma inesquecível novela esquecida. Talvez porque era uma história que escapava aos velhos truques, fugindo dos caminhos mais fáceis que o telespectador comum estava acostumado. A sinopse para exame da censura federal, sintetizava: O domingo amanhece na floresta do Alto da Tijuca e subitamente o bucolismo é interrompido por uma sirene de polícia. Um carro desponta ao longe, veloz, freando diante da mansão do banqueiro Conrad Mahler (Ziembinski). É a única casa naquele trecho da estrada e ali já está uma radiopatrulha parada. Perto, uns poucos curiosos, pois o local é bastante isolado. Do carro em que está escrito Polícia Técnica na porta saltam três homens, um com câmera fotográfica. Eles entram na casa. O portão é aberto por um guarda. Alguns curiosos aproximam-se, enquanto os três homens se afastam em direção do interior da casa. Na parte interna do jardim, junto ao terraço, mesas ainda com toalhas, baldes com garrafas de champanhe vazias, arranjos de flores já desmontados, mostram que houve uma festa. Ao fundo das mesas, cruzando o jardim em direção à piscina, aparecem os três homens da polícia. Conrad Mahler, o dono da casa, sentase numa das mesas. É um homem de mais de 60 anos e está abatido, cansado. Veste um elegante smoking, mas a gravata-borboleta está desfeita e o colarinho aberto. Um grupo de policiais está em volta da piscina, enquanto o fotógrafo da Polícia Técnica colhe flagrantes de vários ângulos. Sabe-se que há alguém morto dentro da água da piscina, mas não se vê quem é, o corpo está boiando, em decúbito ventral. Alguém dá ordens para que a vítima seja retirada e dois policiais se aproximam com uma maca, enquanto o delegado vai interrogar Mahler. Começa então a investigação, o árduo e laborioso trabalho para desvendar a ocorrência. Acidente? Suicídio? Assassinato? Quem? Como? Quando? Por quê? Conrad Mahler, austríaco, que muito moço ainda viera para o Brasil e aqui enriqueceu, havia promovido uma festa para recepcionar Olympia Campagni, uma princesa italiana que visitava a cidade, com uma festa fechada, com apenas 30 convidados. A história se desenvolve pari passu com as investigações e interrogatórios policiais. Muitas das pessoas presentes à festa, ou ao rebu, termo que Ibrahim Sued lançava em sua famosa coluna social, uma forma sincopada do palavrão rebuceteio, tinham sérios problemas a resolver. Inclusive desencadeava-se uma velada disputa entre pessoas ligadas a grupos econômicos pelo domínio de uma grande rede bancária. O próprio anfitrião já havia tido uma séria discussão com seu filho adotivo, Cauê (Buza Ferraz) e chegado mesmo a ameaçar deserdá-lo se não rompesse sua ligação amorosa com Sílvia (Bete Mendes), uma jovem de boa família, mas ambiciosa e leviana, que também vinha sendo assediada pelo advogado particular do banqueiro, Dr. Álvaro Resende (Mauro Mendonça), que lhe propunha casamento e uma vida faustosa na Europa. O Dr. Álvaro, porém, é casado e antes precisa desquitar-se de sua mulher Glorinha. O problema de Cauê, 25 anos, simpático e bem falante, é que ele não tem dinheiro e se habituou a uma vida de milionário, pagando o preço de sofrer o amor paternal sufocante do dominador e obsessivo Mahler. Cauê já teria abandonado tudo, não fosse a real possibilidade de vir a ser o único herdeiro da grande fortuna de Mahler. Há ainda Boneco (Lima Duarte), um ladrão especializado em roubar apartamentos cujos donos estivessem ausentes e que, não se sabe como, tinha penetrado naquela festa, certamente a fim de dar algum grande golpe. O industrial Laio (Carlos Vereza) tinha ido à festa com o único propósito de conseguir ajuda financeira de Mahler para um grande negócio. Laio ainda não sabe, mas está doente, à beira de uma perigosa e definitiva crise de esquizofrenia. Disso foi avisada sua esposa, Helena, pelo médico da família, poucas horas antes da festa. A notícia tinha criado um grave problema de consciência para Helena, que tencionava separar-se do marido, inconformado com o temperamento difícil e por vezes até cruel de Laio. Helena entende que sua afeição por Kiko, amigo íntimo de Cauê, rapaz ambicioso e calculista que tem um caso com Lupe Garcez, viúva de 50 anos, muito rica, não tem mais razão. Outro ricaço, Carlos Braga Vidigal, que também estava na festa, acompanhado da esposa, Lídia, nutre sérias desconfianças de que Mahler o teria enganado, fazendo acordo com um grupo concorrente para a realização de importante obra. Braga Vidigal pretende aproveitar a natural confusão da festa para tentar descobrir documentos que provem isso. No correr das investigações, sabe-se que o jovem Cauê aproveitou a noite para um entendimento com Sílvia, tentando acomodar a situação, isto é, continuar o romance com a moça sem perder a herança de Mahler. Kiko revela sua indecisão entre um casamento de conveniência com Lupe, cuja fortuna lhe garantirá a boa vida que ambiciona, e o caso com Helena, esta já arrependida por saber do estado de saúde do marido. Os problemas de cada um vão sendo revelados pouco a pouco, à medida que a polícia investiga o caso, inclusive o do mordomo de Mahler, que se sente ofendido e desprestigiado porque Ana Lúcia, a diretora de relações públicas da empresa que organizou a festa, contratou um outro para dirigir os serviços da criadagem. Entre os convidados estão Wilson, encarregado da segurança da princesa, David Menezes, cirurgião-plástico, Lúcio Vaz de Almeida, escritor, Rui Afonso, arquiteto famoso e defensor da ecologia, além de Dida, um craque do futebol, e outros, de participação secundária. Enquanto os policiais trabalham, juntando pacientemente as peças do quebra-cabeça, a história desenvolve um estudo de comportamento e de relacionamento entre os personagens. Uma trama original, antecipando os suspenses que viriam só quatro anos mais tarde, com outros personagens de outros autores, como Salomão Hayala. O Rebu reativava não só o ‘quem matou’ como, surpreendentemente, botava em cena outra pergunta: ‘quem morreu’? A história levou quase 50 capítulos para desvendar o mistério de quem era o corpo que aparecia boiando dentro da piscina, de bruços, sem vida, no decorrer de uma noite na qual se desenrolam seus episódios, mostrados durante quase sete meses. Bastou fazer com que Sílvia, a personagem de Bete Mendes, lançasse a moda dos cabelos curtos e que durante a festa houvesse uma brincadeira em que as mulheres vestissem roupas de homem. Assim, o corpo, trajando smoking, dava a impressão que fosse de um homem. Outra diferença entre a morte em O Rebu e as de Salomão Hayala, Miguel Fragonard e Odete Roitman em novelas posteriores, de outras autorias, foi que Sílvia, ao chantagear o banqueiro que oferecia a festa, levava uma pancada que a fazia cair do segundo andar, bater com a cabeça, morrer, e só depois ser removida para a piscina. O assassino parecia ser, mas não era, o próprio dono da festa, por motivos financeiros e também passionais, já que Sílvia namorava Cauê, que no roteiro original era caso dele e a censura exigiu que aparecesse como filho adotivo. Naquela espécie de retrato, retocado, de uma camada da burguesia carioca de então, pela primeira vez em novela de TV havia dois personagens principais com relacionamento homossexual. As cenas 13 e 14 do capítulo número 112, encerravam as inovações daquela outra revolução de Bráulio Pedroso: CASA DE MAHLER. INTERIOR. DIA. Cauê desce as escadas. Mahler, com um papel na mão, vai em sua direção. Mahler – Foi tudo resolvido, Cauê. O criminoso está preso, confessou tudo. Era o Boneco. Como você vê, eu não tenho culpa de nada. Fiz tudo pra você, para o seu bem. Agora vamos poder recomeçar nossas vidas, de uma maneira mais verdadeira, mais bela! Cauê – Eu não quero nada, Mahler! Mahler – Não me chame assim. Eu sou Conrad. Cauê – Você é Mahler! Mahler – O que você quer? Diga. Tudo que você quiser eu darei. Cauê, saindo da sala – Eu só quero a Sílvia. E ela você não pode me dar. Mahler, murmurando, saindo atrás – Cauê! Aon de você vai, menino! Onde? CASA DE MAHLER. EXTERIOR. DIA. Canto da sereia. Cauê caminha em direção à piscina. Mahler o segue à distância. Cauê se detém diante da piscina. Mahler observa. Cauê olha para a água, de onde surge Sílvia vestida de noiva. Cauê sorri e entra na piscina. Mahler se segura a uma cadeira e senta-se nela. Cena submarina: Cauê encontra-se com Sílvia debaixo d’água. Corte para Mahler, que vê a piscina vazia. Corte para Cauê beijando Sílvia debaixo d’água. Close de Mahler, com uma lágrima correndo lentamente pelo rosto. Corte de Cauê e Sílvia se beijando. Corte para Mahler, cabisbaixo, chorando. Corte para corpo de Cauê afogado, emergindo, morto como Sílvia. Câmera vai abrindo até grande plano geral, Mahler chorando e corpo de Cauê boiando na piscina. Fim. Foi a melhor telenovela que escrevi até hoje. Entretanto, poucos se lembram dela. Quando falam de mim, logo se referem ao Beto Rockefeller, mas eu gostaria que também fosse lembrado como o autor de O Rebu. Pois, terminada aquela novela, constatei: vou ter um ano ainda para me ocupar de outra história. E como a ideia de O Rebu surgiu em dois dias, não fiquei nem um pouco preocupado, estava era a fim de terminar de escrever a peça Dor de Amor. Mas comecei a pensar, ora, se eu já tinha feito algumas experiências de partes cantadas, em Superplá e em O Bofe, e no próprio Beto já havia arriscado um capítulo inteiro dedicado aos Beatles, usando a música deles como elemento do roteiro, me veio a vontade de fazer uma novela-opereta em que os personagens também cantassem. Acontece que isso não podia ser escrito como uma novela comum, que tem de ter 25 capítulos prontos, na frente, para então começar a ser gravada. No caso dessa novela-opereta isso seria impossível, simplesmente porque o compositor não poderia compor de uma semana para outra, o coreógrafo não poderia fazer a coreografia nesse prazo e assim por diante. E teria de ser uma história bem mais curta do que o normal. Eu já tinha conseguido que O Rebu fosse menor que as outras e essa teria de ser menor ainda, no máximo uns 80 capítulos, escritos todos eles antes de começar a gravar a primeira cena. O planejamento de produção da Globo já possibilitava um esquema desses e eu tinha um ano pela frente, coisa que os outros autores nunca tiveram, para bolar e escrever. Teria valido a pena tentar. Na minha opinião, das artes brasileiras contemporâneas, talvez a mais rica, mais criativa, e não é à toa que era exportada, foi a nossa música popular. Compositores como Tom Jobim, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Chico Buarque, Francis Hime, Milton Nascimento, Caetano, Gil, são de um nível tão alto que aconteceram ao mesmo tempo. O brasileiro, que é muito irreverente e desvaloriza tudo o que tem, esquece que a música norte-americana levou no mínimo duas décadas para criar compositores como Cole Porter, Irving Berlin, Jerome Kern e George Gershwin. Então, quando eu proponho uma novela-opereta é em nome de minha admiração pelo cancioneiro nacional. E para grande felicidade minha, o companheiro para esse trabalho poderia ser Tom Jobim, o grande mestre, o grande caudal. Estava apostando numa coisa boa, numa história também musicalmente boa, não estava jogando as fichas num simples sucesso. E mais: essa audácia poderia resultar em outras inovações, sempre bem-vindas. Como é que o público iria reagir a uma história que deixaria de ser natural, naturalista, para enfrentar um expressionismo musical que fugiria ao blá-blá-blá do dia a dia? Não sei. Só sei que para mim seria como foi o Beto,o Superplá, O Bofe e O Rebu: desafios altamente estimulantes! No dia 25 de dezembro de 1974, o Jornal do Brasil publicava uma entrevista em clima de con-versa amena, concedida por Bráulio Pedroso a Fernando Sabino, republicada 16 anos depois, no Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, na edição de 22 de agosto de 1990, uma semana após a morte dele. O título: A arte de um criador de ilusões. O texto: Sou alguém à procura de alguma coisa que não sei o que é. E o pior é que não sei nem ao menos se quero encontrar. A confissão saiu espontânea, sem nenhuma motivação, na conversa que já corria lenta como a noite se esvaindo lá fora na meia-claridade de um novo dia. Estávamos em minha casa. Viéramos tomar o último, egressos de um bar de onde as inconveniências de um bêbado importuno nos havia expulsado. Ele se fazia acompanhar de Jorge Andrade e a presença a um só tempo de dois grandes autores de novelas acentuava ainda mais a minha ignorância em matéria de televisão. Naquele dia não deu mais para conversarmos. Nos encontros subsequentes, entre amigos comuns, em rodas de bar, não cheguei a desvendar o sentido daquela sua confidência nascida do fundo da noite. O que quer que fosse aquilo que ele procurava, o certo é que não estava na TV. Ela é devoradora, ele me diz agora. Estamos em sua casa na Barra e são seis horas da tarde. Vim visitá-lo exclusivamente para escrever sobre ele, o que não será coisa fácil: a verdade é que não o conheço tão de perto quanto gostaria, muito embora nossos caminhos se cruzem na mesma inútil procura. E não será hoje que o conhecerei melhor: de saída se confessa de ressaca, o que seria de prever, no dia seguinte às celebrações da noite de Natal. E se deixa ficar, meio estirado no sofá, ruminando bovinamente as consequências das libações da véspera, cercado pela família: Marilda, sua mulher, sobre os almofadões no meio da sala, a mãe numa poltrona, dois de seus três filhos brincando ao redor. A casa, recentemente alugada, parece mais confortável que o apartamento do Jardim Botânico. Embora ele confesse que aqui tem muito mosquito. E a novela? Cinco capítulos por semana, quatro a seis horas de trabalho por dia, pelo menos. Não o invejo. Trabalho braçal da inteligência criadora, se a inteligência tivesse braços. ‘Tudo isso para desaparecer no mesmo dia em que é levado ao ar. Costumo guardar o que já escrevi e, outro dia, um dos meus filhos perguntou: ...Essa papelada toda pra quê? Eu disse que, talvez, um dia, valesse alguma coisa, para publicar, para levar de novo, sei lá! E o menino: ...Quem é que vai se interessar por história velha? Bráulio já escreveu 60 dos 110 capítulos previstos. Mentalmente, faz uns cálculos: faltam 50, 10 semanas, dois meses e meio. Marilda se entusiasma: ‘Falta pouco!’ A partir de então, seis meses de descanso que o contrato lhe assegura. O que não impede que lhe peçam um especial ou outro. E Bráulio se sentiria realizado, literariamente, escrevendo novela? Ele me fala de sua descrença em relação à televisão. ‘Quem é que lê um romance ou assiste a um filme sendo interrompido a todo momento por uma conversa ou outra distração qualquer’? Isso sem falar da interrupção dos comerciais ou da própria efemeridade do programa, que uma vez levado ao ar terminou para sempre. Houve um tempo em que ele acreditou na TV como o meio de comunicação mais eficaz da criação artística. Atingia o Brasil inteiro, não era como o teatro, que é visto por cem ou duzentas pessoas a cada noite. Hoje, porém, prefere acreditar na última peça para teatro que escreveu, ainda inédita, que só Helio Pellegrino já leu e gostou. ‘Acontece que o capítulo de hoje da minha novela vai ser visto por um milhão e 600 mil pessoas’! Conheci Bráulio Pedroso em um restaurante de São Paulo, certa noite que Jô Soares tornou memorável, armando conosco um show improvisado, mobilizando a atenção de todos os fregueses e garçons. Bráulio escrevia então sua primeira novela, Beto Rockefeller, empolgado com o novo meio de expressão que havia descoberto. Chegou mesmo a sugerir que eu me metesse nisso também. ‘É o grande meio de comunicação de nosso tempo’, disse. Agora, quando lembro seu entusiasmo daquele dia, ele se justifica: ‘Eu havia sofrido um desastre sério, fiquei um tempão no hospital. Foi assim que escrevi os primeiros capítulos da novela. Então acreditava estar fazendo algo de novo’. E realmente estava: o cotidiano focalizado diretamente, uma visão mais autêntica de nossa realidade. Antes do Beto, só apresentavam novelas como O Direito de Nascer ou o Sheik de Agadir. A surpreendente atualidade de sua temática e o tratamento realista que lhe era dado chegaram a despertar críticas: com sua mordacidade, ele estaria procurando desmoralizar a sociedade brasileira, especialmente a paulista e a carioca. Críticas que ele rejeita com um simples comentário. ‘Isso é considerar a nossa sociedade segundo padrões tipicamente pequeno-burgueses’. O corpo boiando na piscina durante uma festa de grã-finos lembrava o filme Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard) e um cretino insinuou ter havido plágio. A ideia, realmente não era nova, falo-lhe de um romance policial de S.S. Van Dine em que o aristocrático detetive Philo Vance se vê às voltas com um cadáver na piscina, durante uma reunião amistosa. Mas O Rebu não era propriamente uma novela policial, senão na medida em que há mistério em qualquer problema humano, sem que necessariamente precise haver um crime. E por que esses títulos de mau gosto agressivo, O Rebu, O Cafona, O Bofe? ‘São escolhas da própria televisão. Eu ia chamar minha novela de A Festa, mas eles acharam que O Rebu tinha mais impacto’. E ainda há a interferência da censura, exigindo filmagem prévia de uma cópia em preto e branco para que eles aprovem, ou não, a versão definitiva em cores, depois de já haverem censurado os originais. Tudo isso e muito mais, para uns poucos momentos de ilusão que depois se perderão para sempre. Foi na função de crítico literário de O Estado de S. Paulo que ouvi falar no nome dele pela primeira vez, ao remeter-lhe livros da Editora Sabiá e da Editora do Autor para julgamento. Agora, anos depois, Bráulio passava a mão pela barba, conformado. ‘Seis novelas, já! Milhares e milhares de páginas devoradas pela televisão’! Admirado por multidões de espectadores que se surpreendem a cada dia com a fecundidade de sua imaginação criadora, ele bem que poderia se considerar um homem realizado. Mas quando lhe pergunto se já encontrou aquilo que procurava, ele apenas sorri, com a conivente simpatia de quem sabe estar sendo entendido: ‘Ainda não sei nem o que é, mas continuo procurando!’ * Na verdade, o cinema foi uma das primeiras seduções de Bráulio Pedroso. Chegou a ser montador e assistente de direção de alguns filmes naquela onda antichanchada da Atlântida que antecedeu a fase eufórica das produções da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrelada ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Até que a doença dificultou-lhe os movimentos e mudou seu destino, levando-o para outras direções artísticas e profissionais. Todavia, anos depois, em 1971, já consagrado como autor de novelas, ele voltaria ao cinema com o roteiro do filme Os Machões e, em 1972, com o argumento de Roberto Carlos a 300 km por Hora. Autor ainda de outro roteiro, de O Bom Ladrão, um argumento de Fernando Sabino e Nelson Pereira dos Santos baseado num conto do próprio Sabino, mas que não chegou a ser filmado. Até que, ainda em 1972, ele assinaria o roteiro e a direção de um filme de 95 minutos de duração intitulado Roleta Russa, que valeu a André Faria um Quiquito do Festival de Gramado de 1973, como prêmio de melhor fotografia. A trilha sonora era de Guto Graça Mello. Embora a fotógrafa Nina, interpretada por Ítala Nandi, fosse apenas um ponto de partida para o desenvolvimento da história, Roleta Russa foi chamada de Blow-Up Brasileiro, sem Hyde Park e sem Vanessa Redgrave. Ibrahim Sued, que em 1969 tinha coproduzido Quelé do Pajeú, de Anselmo Duarte, foi o produtor de Roleta Russa. Talvez por isso, a pantera Sílvia Amélia Chagas, ex-modelo de Andy Warhol, então baronesa da Waldner, estivesse no elenco, ao lado de Ítala Nandi, Marieta Severo, Pia Nascimento, Susana Gonçalves, Becki Klabin, Marilda Pedroso, Jardel Filho, Antonio Pedro, Daniel Filho e até Luiz Carlos Vinhas, ao piano. Segundo uma crítica, o estilo lisérgico que Bráulio imprimiu ao filme era apenas um prolongamento de seus trabalhos na tela menor. Nessa busca incessante daquilo que confessava nem sequer saber o que era, em 1979 Bráulio corria mais um risco na televisão, com Feijão Maravilha, contando com a colaboração do escritor e teatrólogo Elói Araújo. Era uma tentativa minha de reviver as chanchadas da Atlântida até no elenco. Anselmo Duarte, Grande Otelo, Eliana, Adelaide Chiozzo, Walter D’Ávila, Brandão Filho, Mara Rúbia, Ivon Cúri e José Lewgoy como o vilão Ambrósio, além de Lucélia Santos, Stepan Nercessian, Mauro Mendonça, Marco Nanini, Felipe Carone, Maria Cláudia, Elizângela, Olney Cazarré, Ivan Setta e Clarice Piovesan. Uma experiência no sentido de abrir caminho para a chamada novela-pastelão, às sete da noite, horário então preferido das donas de casa, pessoas sem outros objetivos além do marido e dos filhos, acostumadas a entrar na mentira maior que são os falsos dramas de amor para compensar casamentos desgastantes, aborrecidos, melancólicos. Embora tivesse tramas amorosas, isso não era o que definia a narrativa de Feijão Maravilha, de enredo no fundo policial, só que tratado de uma forma absolutamente brasileira. Uma comédia, uma brincadeira, mas propiciando um distanciamento crítico. Como, por definição, uma novela tem de prender o espectador capítulo por capítulo, acho até que se tratava de uma antinovela.O que não impediu que Décio Pignatari escrevesse num jornal paulistano a seguinte frase: Baseado numa ideia antiga, Bráulio Pedroso usou uma narrativa de vanguarda. Foi Feijão Maravilha que marcou a estreia na direção de novelas de Paulo Ubiratan, curiosamente, o mesmo que, quase dez anos antes, datilografava o texto de Beto Rockefeller. Na verdade, cronologicamente, depois dos contos, os primeiros trabalhos de Bráulio Pedroso tinham sido para o palco. Tudo começou quando alguns dias depois de ter encerrado seu vínculo empregatício com O Estado de S. Paulo, em reunião na casa da poeta Hilda Hilst, ele narrou um sonho que tinha tido na noite anterior. Imediatamente, Marilda disse que aquilo era uma boa ideia para ser transformada em peça de teatro. O crítico Décio de Almeida Prado, um homem delicado, educadíssimo, quis saber se ele nunca tinha pensado em escrever para o palco. Resposta: Não, nunca. Mas já comecei a escrever! E, em apenas 15 dias, A Conspiração estava pronta. Chamamos o Jorge Andrade lá em casa, fala Marilda, mais o Mário Schoemberg, o Nelson e a Gisela Leirner para a primeira leitura. Dias depois me encontrei com a Cacilda Becker no cabeleireiro e durante a conversa contei-lhe que o Bráulio adoraria que ela e o Walmor dessem uma olhada no texto. Marcamos um encontro para o dia seguinte no teatro onde eles estavam fazendo Quem Tem Medo de Virgínia Wolff, e Bráulio mostrou-lhes seu primeiro trabalho para o palco. Era o dia 25 de outubro de 1965. Estava se concretizando, então, a ideia de um Centro de Estudos e Leituras Teatrais, dedicado aos jovens escritores inéditos, cujas atividades foram abertas com um ciclo de leituras dramáticas no miniauditório com 60 lugares e um praticável’, no salão superior do apartamento do casal. Na véspera, o Estadão tinha publicado uma entrevista com Cacilda em que ela afirmava: A lei dos 2 por 1, determinando a encenação de uma peça brasileira para cada duas estrangeiras, mal pode vigorar porque nossas produções são quase sempre isoladas, havendo poucos elencos estáveis que possam se submeter à obrigatoriedade da peça nacional. Por outro lado, o teatro encareceu de tal forma que há o temor do risco de um grande empate de capital, quando a nossa produção de textos dramáticos é ainda incipiente e poucas vezes propícia a um êxito comercial. Muitos autores estão numa fase de busca, de pesquisa, sendo fundamental a sua própria formação, o que importa em uma incógnita do ponto de vista do público. O teatro amador deveria preencher a tarefa de lançar os jovens valores, mas por causa dos problemas que enfrenta, deixa o campo ainda aberto para iniciativas dessa natureza. Um mês mais tarde, A Conspiração era mostrada naquele laboratório de autores em uma única encenação, com um elenco de luxo, embora improvisado, que ia de Cacilda Becker e Walmor Chagas a Raul Cortez, Fúlvio Stefanini e outros. Marilda lembra agora que os comentários foram bastante favoráveis: Embora eu tenha tido uma leve impressão de que aquele povo da ribalta achou a peça um pouco literária demais. Pouco depois, na edição de 11 de dezembro de 1965, O Estado de S. Paulo publicava em seu Suplemento Literário, um longo artigo de Bráulio Pedroso intitulado Sobre a Leitura de Peças, nestes termos: Acompanhamos há algum tempo a atividade de romancista, dramaturgo e articulista de Osman Lins e também sabemos de sua vigilância diante dos atentados à cultura e à arte. Ainda recentemente, tomamos conhecimento de seus textos publicados neste suplemento sobre os absurdos contidos em nossos livros didáticos, onde subpedagogos ensinam subliteratura para jovens culturalmente desprotegidos, inoculando paradoxalmente neles, ignorância. Foi, portanto, primeiro com atenção e depois com enorme surpresa, que lemos o seu Em Defesa do Autor, onde, expondo uma série de argumentos para classificar a ideia de nociva, considera a iniciativa de Cacilda Becker e Walmor Chagas de organizar um pequeno teatro experimental em sua casa para leitura dramática de peças, como uma atitude protetora, maternal e limitadora feita para um público de 60 pessoas, na maioria blasées. Acreditamos que tenha havido um equívoco, provocado pelo excesso de zelo e pela apreciação apenas unilateral do fato. Como autor da primeira peça e que teve a honra de ver seu trabalho lido por um grupo de atores abnegados que acreditam no desenvolvimento da arte teatral, sinto-me na obrigação moral de expor os proveitos recebidos e de louvar o alto mérito da iniciativa do conhecido casal de atores. Anunciando o teatrinho, Cacilda Becker falou da necessidade do autor brasileiro ser ajudado no seu labor de criação artística, classificando nossa dramaturgia de incipiente. Contra isso insurgiuse Osman Lins, citando Jorge Andrade e Ariano Suassuna. Sou de opinião que não é só a nossa dramaturgia que é incipiente, todo o país é incipiente. Não somos ainda uma nação completa, para não falarmos da classificação já cansativa de subdesenvolvidos. Não temos nem uma louvável mediocridade na figura de autores que saibam manejar a carpintaria teatral com a habilidade dos que fazem o boulevard. Ao citar apenas dois nomes importantes, podendo-se lembrar de mais alguns, permanecemos sempre em situação melancólica. Os citados Ariano Suassuna e Jorge Andrade, este meu amigo pessoal a quem muito estimo e admiro, sei que se por um lado podem se orgulhar da posição proeminente que ocupam na arte brasileira, sabem que suas obras, ainda em desenvolvimento e com as melhores expectativas, não atingiram os pontos mais altos da dramaturgia contemporânea. Osman Lins pertence à categoria dos idealistas. Incompreensível, portanto, que não reconheça o gesto generoso de Cacilda e Walmor, que em vez de usarem suas reservas econômicas em interesses pessoais, gastam-nas em um teatro experimental, abrindo mão de seu dia de descanso, às segundas-feiras, para ensaiar, ler, interpretar e debater novos textos de autores iniciantes. O Centro de Estudos Teatrais, que tem ainda Carlos Vergueiro, Zilah Maria e Maria Tereza Vargas como diretores, não é uma entidade para compensar vaidades, trata-se de uma jornada de trabalho e de estudos. À minha peça estiveram presentes críticos, empresários, diretores e atores, especialistas que podiam opinar com autoridade sobre o texto, tendo participado dos debates, entre muitos outros, Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Jorge Andrade, José Renato, Lauro César Muniz, Alberto D’Aversa, Maurice Vaneau, Frei Paulo de Tarso e muita gente mais, nenhum deles considerados blasées. Devo acrescentar ainda que foi exatamente Jorge Andrade quem sugeriu a Cacilda Becker a criação do teatrinho. Na verdade, o Centro era para ser inaugurado com uma peça dele, O Incêndio, mas, por sua lembrança e gentileza, aconteceu com minha A Conspiração. Além de tudo isso, o Centro de Estudos Teatrais não servirá apenas aos autores, diretores também farão experimentos e atores treinarão suas técnicas. Não pretendo polemizar. Minha peça, considerada por alguns como de técnica inusitada e hermética, passou pelo teste de leitura dramática, revelando-se orgânica e clara. Alguns dos críticos anteriores perguntaram se o texto, intocado, tinha sido reescrito. É imprevisível o salto da palavra escrita para a palavra interpretada. Por fim, quanto ao lado prático e profissional, devo declarar que já há o interesse de um empresário pela montagem de A Conspiração, fato estimulante para um autor que se inicia. Penso que, ao desfazer equívocos, estou contribuindo para o aparecimento de iniciativas semelhantes tão necessárias ao desenvolvimento do teatro brasileiro. Foi diante daquele primeiro texto jamais reescrito e da certeza de que todo criador só pode saber de seus defeitos vendo-se encenado, é que veio a vontade de Bráulio Pedroso continuar. A minipeça dele, O Negócio, era então apresentada na Feira Paulista de Opinião organizada por Augusto Boal no Teatro Rute Escobar. Logo, ele e Walmor, a quatro mãos, estavam criando Isso Devia Ser Proibido, composta de vários quadros, através de dois personagens, interpretados por Cacilda e Walmor. Ela – Quer um uísque? Ele – Vai chover. Ela – A comida esfriou. Ele – Que sono! Ela – Bota um suéter! Ele – O dólar subiu. Ela – Vou mandar a empregada embora. Ele – Morreram 10 mil pessoas na Índia. Ela – Comprei uma peruca ruiva. Ele – Hamlet é um bom papel. Ela – Hoje me deram 32 anos. Ele – Houve outro golpe militar. Ela – Meu forte é aritmética. Ele – A pia entupiu, precisa chamar o encanador. Ela – Bach. Ele – Picasso. Ela – É o meu mau humor. Só pode ser essa irritação que não consigo esconder. Mas, por quê? Quando penso nisso, faço o pior, torno-me melosa, subserviente, uma puxa-saco ... Ele – Desde criança, eu me acreditava um homem maduro e, quando a encontrei, era, na verdade, um jovem. Talvez tenha sido por isso que a amei tão depressa. De qualquer jeito, agora eu sei: foi amor, o único que tive até hoje. Ela – No princípio foi um amor inventado. Fui calculista, eu precisava de segurança e ele me pareceu tão terno, tão diferente dos outros homens ... Ele – No quinto ano de casamento, a primeira amante. Se ela não fosse casada, se não fosse quase impossível alguém saber, eu não teria coragem de arriscar. E mesmo assim tive um imenso complexo de culpa. Ela – Virei uma escrava. O amor cresceu, tomou conta de mim, passei a amá-lo de um jeito que não suspeitava e comecei a ter medo de perder aquele homem. Fiquei ridícula, perdi a simplicidade, comportava-me como uma adolescente apaixonada. Ele – Com a segunda houve ainda discrição, mas a culpa era menor. Lembro-me bem como me justificava: não podemos escapar da fantasia erótica, fomos criados assim, precisamos de uma outra mulher, a novidade ... Ela – Até o ano passado tudo correu bem, ou quase bem, e agora, brigas e mais brigas, por nada. Não sei o que fazer. Ele – A casa me pesa terrivelmente. Ou sou eu que não me suporto mais. Não é justo ... Ela – ... não é justo o que está nos acontecendo. Ele – Isso devia ser proibido! Os ensaios começaram no dia 2 de maio de 1967 e a estreia foi em 15 de junho, com cenários de Cyro Del Nero, figurinos de Alceu Penna, música de Júlio Medaglia, coreografia de Marilena Ansaldi, guarda-roupa de Ugo Castellana e locução off de Iara Amaral e Boris Casoy. A direção geral era de Gianni Ratto, para quem uma biografia não precisava necessariamente pertencer a uma pessoa ou a um casal específico, muitas vezes o autor elege um ou mais personagens como representativos de uma coletividade ou de um determinado setor social. O público prefere identificar no palco, o que não consegue descobrir nas vidas alheias. Gianni Ratto detalhava: “É o caso de Isto Devia Ser Proibido. Foi efetivamente a transposição poética da vida do ator dentro do contexto histórico do momento e no qual a glória e o terror, os medos e a necessidade de sobreviver como ativistas teatrais se mesclavam com uma problemática pessoal que tangenciava o kafkiano, para prosseguir no moto-perpétuo de um tango inolvidável iluminado por noches de glória. Na verdade, o teatro de Cacilda foi uma permanente caixa mágica de biografias que urgiam para viver, esperando ansiosas sua hora de luz. Ela foi todas as personagens e as que não pôde ser. Em outubro do mesmo ano, Cacilda e Walmor levavam Isso Devia Ser Proibido a Curitiba, depois a Porto Alegre e, em 6 de dezembro, a peça estava no Rio, no Teatro do Copacabana Palace. A crítica se manifestava: Por mais que a peça se afigure como divertissement, adquire, talvez a despeito de si mesma, um peso bem maior do que de início se suporia. O sério desse trabalho é precisamente que não parece levar nada a sério. Outra: O texto por si só não revela todas as nuanças engraçadas de uma fala como esta: ‘Sou um homem que tem inquietações políticas, a sorte do povo me preocupa e minha mulher reduz tudo a probleminha cotidiano. Desisto. Eu vou sair’. E muito menos exprime o cinismo quase tocante que só a inflexão inimitável da voz de Cacilda traduz: ‘Espera. Volte. Eu compreendo o que você quer, meu bem. Eu também estou com o povo’. Outra mais: A esquerda festiva é saborosamente ridicularizada. Mas os que a ridicularizam são sutilmente desmascarados na sua completa falta de fé, amor e objetivos. Se o casal de artistas reais que desempenha os papéis do casal de artistas fictícios se identificassem totalmente, o que evidentemente não é o caso, poderíamos falar de uma das mais arrasadoras autocríticas já vistas num palco. A essa altura, Bráulio já tinha uma ideia na cabeça que começou a passar para o papel, freneticamente. Era O Fardão. Um trabalho que lhe valeria o Prêmio Molière, além de outro, da Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT). O Fardão, que chegou a ser traduzida para o inglês sob o título de An Act of Dignity, era uma peça em três atos curtos, com cinco personagens (Rubem Clodoal; Olga, sua esposa; Rita, empregada do casal; Beatriz; e o presidente da Academia de Letras), encenada pela primeira vez em 1966, no Teatro Cacilda Becker, com Cleyde Yáconis e Fauze Arap nos papéis principais sob a direção de Antonio Abujamra. Que história é essa? Você não leu no jornal? Está na primeira página! O quê? O americano que se matou diante do Pentágono. Não, não vi. Pegou fogo. Pegou fogo? É. Botou fogo no corpo. Ateou fogo às vestes, como nas notícias policiais? Esquisito, você não acha? – Logo um americano, gente tão materialista! – Protesto contra a guerra do Vietnã. – Besteira... – Se fosse um asiático, vá lá, parece que faz parte da religião deles botar fogo no corpo. Mas um americano! – Por falar nisso, você tem alguma ideia para a minha crônica? – Responda uma carta de leitor. – Chegou? Chegou alguma carta hoje? – Não, não chegou. – Esse Correio é uma droga! – Ora, invente uma, como sempre. – Queria um assunto diferente, um pouco extravagante. – Fale daquele carnaval. Daquele que eu dancei com um pierrô que não era você. O capeta bem que aproveitou. Me apertava contra seu corpo, me beijava o pescoço e eu, tonta, pensando que você estava amoroso porque tinha cheirado lança-perfume. – Não serve. Já escrevi muitas crônicas sobre isso. – Inverta a situação. Já inverti. Já dancei algumas vezes com uma colombina trocada. Hummm. Que falta de assunto, meu Deus! Também, você vive trancado dentro de casa. Hoje faz precisamente um ano e oito meses que não vamos a um restaurante. Para encontrar aquele bando de desocupados? Essa gente vive em bares e restaurantes! Ah! Já sei. Minha crônica será sobre a primeira vez que jantamos num restaurante. Seu vestido era azul, não era? Você já escreveu também sobre isso. Já? Então escreverei sobre a ideia de sair de casa depois de três meses de vida reclusa. Ideia? É. Como é que eu posso garantir que à noite ainda esteja com vontade de sair? Pois eu vou sair! Ver gente ... vitrines ... —... gastar dinheiro... —... nunca naquilo que desejo. Olho uma roupa e acabo comprando um sabonete na farmácia. Vivo de prêmios de consolação. Há cinco anos que não vamos a um teatro! Pra quê? Pra morrer de tédio vendo uma meia dúzia de esfaimados falarem de miséria, de fome, de latifúndio? Tenha paciência! Já passaram peças estrangeiras muito boas. A decadência é geral. Ninguém mais procura a verdadeira arte. São uns oportunistas, gente que só pensa em sucesso. O que interessa é estar na moda, vender seu peixe. Dos temas eternos, amor e morte, ninguém mais fala! O Fardão foi logo saudada em tom auspicioso pelo crítico Sábato Magaldi: O diálogo é sempre do melhor rendimento cênico. O autor tem a intuição do efeito imprevisto, do corte incisivo da fala. Achados excelentes espalham-se por toda a peça, com humor fino e sagaz. Para outro crítico, Décio de Almeida Prado, dentro da placidez da dramaturgia nacional, constituída de peças baseadas em ideias simples, O Fardão repercutia interrogativamente, deixando várias perplexidades, inclusive na crítica, que não soube reagir diante de obra tão vária em sua contextura. Nenhuma influência aparente no texto, embora o novo autor admitisse simpatias pela conferência lida por Mário de Andrade no Itamaraty, em 1942, localizando as nascentes do modernismo no antitradicionalismo de um grupo de intelectuais paulistanos, caracterizando o movimento pela fusão de três princípios fundamentais: o direito à pesquisa estética, a atualização da estética artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. A arte lhe parecia algo mais largo e complexo do que a mera procura de belas formas. Ela podia ser participante. De acordo com Sábato Magaldi, ficava patente que Bráulio Pedroso ingressava no teatro profissional em uma faixa própria que definia sua originalidade. Que ninguém duvidasse: ali estava um dramaturgo que tinha tudo para enriquecer o nosso teatro. Mas, é possível que ele tenha limitado propositadamente suas intenções, para tornar-se mais acessível e merecer a confiança dos empreendimentos profissionais. Não cabe filiar O Fardão a nenhuma tendência vitoriosa da literatura teatral moderna daqui ou de fora. A proposta, algo modesta, entretanto, de início deixa entrever o ficcionista capaz das mais difíceis sondagens. Sua obra, de qualquer forma, parte para diversificar as linhas a que estamos habituados. Se a gente não se renova, a gente está morta. Nós temos de ser o que somos. Viver do passado? E confiar no futuro! (Toca o telefone) – Alô, do Rio? Pode completar. – Pronto. Sim, sou eu. Vou indo, escrevendo, sempre. Faz algum tempo que não nos vemos, então resolvi telefonar para saber de você, vocês, de sua família. Ah, é, e a filhinha, sempre linda? Ótimo. Cansado? Imagino, posso imaginar o que é secretariar a Academia, reuniões, atas e tudo. A propósito, como vão os nobres senhores acadêmicos? Vão bem? Todos? Todos eles? Como? Há duas semanas? Será alguma doença? Espero que não seja nada grave! Por favor, ele é um velho amigo, assim que tiver alguma notícia queira me telefonar. Isso me preocupa muito, é uma pessoa tão boa, uma inteligência tão notável. Pois é, pois é. Na idade dele tudo é perigoso! Mas se Deus quiser não será nada. Qualquer novidade me avise, assim fico tranquilo. Obrigado, obrigado. Um abraço, meu caro! – Tanta euforia pra quê? – Vamos ter uma vaguinha! Vamos ter uma vaguinha! Há duas semanas que o velhinho não vai ao chá da Academia! – É grave? – Sei lá! Qualquer doença serve! Aos 92 anos, até resfriado mata! Você queria saber qual é o futuro, não é? Pois o futuro é isso: a Academia! Vai, vai, vai buscar o fardão, rápido, rápido! Que pressa é essa? O homem nem morreu! E tem mais: do último morto para cá você engordou, hein! Farei regime. Mas é melhor chamar logo o alfaiate. Não vai adiantar. Essa será a quinta reforma! (O telefone toca outra vez) Sim, sou eu. Sim, sim. Compreendo, evidentemente. Obrigado pela informação, desculpe o trabalho. É, certo, fico contente, afinal somos amigos, velhos amigos. Obrigado. Obrigado. Já sei. Não morreu. Nem gripe era... estava viajando. Sábato Magaldi concluía: Partindo do propósito de ironizar um medalhão da literatura, o autor, inteligente e penetrante, não se contentou com a sátira. Na verdade, o intelectual brasileiro, ao invés de ter no trabalho literário a sua profissão, se obriga a um esforço sobre-humano e dispersivo, para assegurar apenas a sobrevivência, então as horas que seriam de prazer são as minguadas que sobram para a tarefa criadora. Assim, o personagem Rubem Clodoal não deixa de ser uma vítima do atraso do país. Era exatamente em torno desse assunto que anos mais tarde Bráulio divagava, escrevendo nas páginas da revista Manchete: ‘O hábito do lazer é uma demonstração de cultura e o homem habituado a engrenagens geralmente não sabe o que fazer de suas disponibilidades. Aqui, por exemplo, as pessoas se emocionam fixando-se no futebol, onde os anseios, glórias e sonhos da Nação se projetam na conquista da Copa do Mundo. Isso me causa a maior ojeriza. Penso que não haja som mais definidor de solidão e anti-historicidade nacionais do que o matraquear aos domingos à tarde dos locutores esportivos. A irradiação, naquele ritmo monótono e sempre igual, pois que fora a pequena diferença dos nomes, parece que sempre se está ouvindo o mesmo jogo. Uma sensação de grande e triste inutilidade emana de toda aquela euforia, sem que ninguém perceba que está sempre projetando suas emoções num ato que, terminado, está começando de novo outro dia. Um jogo único e sem fim. A melancolia da irradiação domingueira é a melancolia do homem sem imaginação e sem um projeto histórico dentro de si. A melancolia do homem alienado em sua individualidade, que é tão grande que esse homem arrasado nem sabe como passear seu domingo no parque. Muito triste é a alegria do torcedor. É a alegria do deserdado, daquele que não se comunica mais com a obra pública que acabam de inaugurar, daquele que a proibição de um filme ou de qualquer outra coisa, não lhe diz respeito. É que nada mais lhe pertence a não ser o placar da partida, que nem é um número absoluto porque vai mudar no domingo seguinte. O lazer não existe para nós. Ele é a representação do homem destituído de voz e de participação, do homem posto à margem da História, do homem paternalizado. É o domingo do tricampeonato’. Era a fala de alguém que no processo de evolução passou de ateu a marxista e de marxista a místico, antes de voltar ao ateísmo, quando tomou conhecimento daquelas palavras de Luís Buñuel: Acredito em Deus, mas admito os mistérios. Em tenra idade, eu tinha resolvido me inventar escritor. Com a típica inconsciência macunaímica, não me perguntei sobre o mistério de ligar uma palavra a outra. Bastava a intenção, que o resto, ai, que preguiça!, viria depois. E daí, ao longo de minha vida, que já começa a ficar longa, passei apenas por quatro empregos. E em todos eles, uma editora de livros, jornal, teatro e televisão, o que eu fiz? Escrevi. Pode parecer um ato de coerência, uma vocação predestinada ou um elogio cultural, mas ao me sentir inseguro, à beira do destino comum do brasileiro comum, ao pretender a garantia do pão nosso de cada dia, insinuo para amigos e conhecidos o desejo de mudança, impelido a uma atividade segura que acrescente aos salários todo ano os índices da ORTN. Ainda que modesto nas pretensões, a resposta falada ou pensada é sempre a mesma: o Bráulio não sabe fazer nada. Esta é a questão, escrever ou não escrever. Porque fora disso é não estar, é não ser. E condenado por uma invenção infantil, encontro-me muitas vezes de olhar fixo no teto do quarto, como se daquele limite surgissem personagens, dramas, comédias e outros tipos de bobagens que a palavra escrita pode registrar. O teto é o limite, como também o infinito, como no engenhoso milagre humano da Capela Sistina. Deixando, porém, de lado, a frescura metafísica e metafórica, o teto é a realidade, é a falta de ideia, o sentimento da inspiração esgotada. Em resumo, desemprego, incerteza do dia seguinte. Porque fazer sucesso, já fiz, e vários. Mas fiz no Brasil. Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo, moreja em quatro empregos, anda de ônibus e escreve na mesa redonda de sua sala de jantar. Já Edward Albee dá-se o direito de esperar pela inspiração durante cinco anos em sua casa concreta de Malibu e, quando quer se movimentar, pousa a bunda no seu jatinho particular. Quanto a nós, escritores brasileiros que ganhamos prêmios, prestígio e até deflagramos invejas incontroláveis, continuamos de mão estendida sinalizando para um veículo coletivo lotado ou para um destino que insiste em nos ver parados numa esquina. O natural então é se perguntar: escrever e viver de escrever será um estilo de vida? Se estilo de vida é o que os anúncios de revistas e televisões nos mostram, certamente não é. Mas se for intuir, dentro de um comodismo de classe média literária, a ampla, geral e irrestrita dificuldade do povo brasileiro, aí eu diria que sim. Caso quem me leia tenha o generalizado preconceito sobre quem escreve, ou nos trazendo a pecha de intelectual ou nos olhando como exemplo do pedantismo do atraso e da inútil-utilidade do lazer-cultura, fazendo do desprestígio o paradoxo do elogio, tenho a declarar que, sinceramente, não consigo me enquadrar nessa aristocrática classificação. Ainda que não esteja livre do risco de ser taxativamente proibido de fumar por um médico, resta-me, porém, a saída imediata de tentar encontrar, rápida e magicamente, um estilo de vida. Apesar de que, para o Brasil do ante-pósmilagre, estilo de vida ainda é sobreviver’. Na opinião do poeta e dramaturgo Geraldo Carneiro, em pleno regime militar, o país estava submetido a uma ditadura do senso comum: Ninguém admitia a diferença e todos faziam força para se adequar ao pensamento da maioria. Discordância, pra valer, sem aliança prévia, jamais. As ideias majoritárias estavam difusas, falava-se em ‘falência das ideologias’ e ninguém sabia direito o que pensar. Então, com o país vivendo uma crise de identidade, aquela era a hora mais fecunda para se fazer qualquer tipo de arte, entretanto, na época, uma das únicas saídas para um escritor brasileiro fugir da dependência de um mercado torto, escasso, elitista, era diversificar seus meios de expressão. Foi preciso abandonar posturas, eu quase disse imposturas, tradicionais. Por exemplo, dessacralizando o livro, mas sem abandoná-lo, já que em uma realidade como a nossa, não se pode dar ao luxo de abandonar coisa alguma. Não me interessava a literatura confinada em seus limites tradicionais, preferia as intervenções literárias, em qualquer meio de comunicação, inclusive a televisão. O senso crítico me permitia ver que a televisão brasileira, embora dotada de uma criatividade inacreditável, cometia as maiores torpezas, mas, mesmo assim, ainda era capaz de me prender horas a fio hipnotizado pelos raios diabólicos e angelicais daquela maquininha, vendo futebol, jornalismo, Agente 86 e outros bichos. Foi então que os caminhos de Bráulio e Geraldo se cruzaram. Um dia, em 1972, o Egberto Gismonti chamou Geraldo para fazer as letras das músicas de um texto do Bráulio intitulado Encontro no Bar, peça em um ato, com três personagens, Isadora (Camilla Amado), Valentino (Zanoni Ferrite, depois Marco Nanini) e Garçon (Otávio Augusto, depois Wolf Maia), que seria dirigida por Ruy Guerra, e que estreou em 25 de janeiro de 1973, com direção de Celso Nunes, no extinto Teatro das Artes. Confessadamente, foi o momento em que Camilla Amado teve consciência da morte em vida: Dessa morte que até se pode brincar com ela, mas que nos leva ao compromisso da escolha, ao destino assumido. Foi um texto que mudou minha vida, a partir dele pude encontrar meus filhos, meu amor, meu trabalho. Ensinou-me que o mais difícil é o aprendizado da vida. No entanto, aquele chamado de Egberto criou uma situação muito curiosa e, de certa forma, até beligerante, porque o au-tor tinha escrito o texto da encenação e também as letras das músicas. De maneira hábil, Egberto tinha sugerido que Geraldo fizesse as letras. Então entrei naquela história contra a vontade não só do Bráulio, como do Ruy também que, aliás, é um grande letrista. Ambos me olhavam com uma certa antipatia, como se estivessem em frente a um usurpador. Todavia, acabei me tornando amigo fraterno, diário, constante, do Bráulio, durante quase 20 anos. Embora fôssemos dois bicudos, nunca tivemos uma rusga sequer. Nem sequer uma só leve discrepância, nada. Uma coisa impressionante, uma sintonia mesmo, misteriosa, que às vezes se estabelece entre algumas pessoas. Egberto Gismonti entra em detalhes sobre o assunto: Falo como um amigo do Bráulio, não um leitor dos contos dele, um espectador do teatro dele ou um ouvinte fiel das novelas dele. Foi de uma forma absolutamente involuntária que, por volta dos meus 20 ou 21 anos, o conhe ci. Ele não estava no meu caminho. Acontece que o Rui Guerra me procurou propondo a feitura de músicas para uma peça que ele iria dirigir, e acabou não dirigindo, de cujo autor eu tinha apenas breves informações, através de comentários sobre o Beto Rockefeller. E logo na primeira vez em que estive na casa dele, vi a Janaína, filha de Leila Diniz, que havia sido levada para a guarda da Marilda pelo Ruy Guerra, o pai. Aquilo marcou a minha vida, imagina, um moço vindo do interior, de Cidade do Carmo, no norte do Estado do Rio, quase na fronteira com Minas Gerais, vendo um bebê de um ano e pouco de vida entregue para uma amiga da mãe, que tinha morrido num desastre de avião pouco tempo antes, lá longe, na Índia, voltando de um Festival de Cinema. Assim comecei a saber quem era Bráulio Pedroso que, desprovido de qualquer discriminação ou preconceito, tinha resolvido creditar a mim a possibilidade de uma música que considero bastante boa, para uma encenação da qual ele gostava muito. Isso é exercício de liberdade: alguém acreditar em um outro, que ele não conhece, trazido por um terceiro, no qual ele confia. Aceitar o ponto de vista do outro e não questionar é uma atitude pouquíssimo exercida. Então, o primeiro trabalho que fiz para teatro foi sob os auspícios dele, que um dia dizia gostar da música A, no outro, que apreciava a música B, e depois, que preferia a música C. E essas letras aqui representam as músicas que eu apresentava a ele. Se eu mostrasse um samba ele adorava. Uma beleza! O mesmo, se fosse uma valsa. Nada melhor do que isso! Ou um foxtrote. Ah, que maravilha! E assim por diante. Desde então, a vida da gente foi pontuada por concordâncias, em meio a poucas discordâncias, pouquíssimas. Até porque, certamente, por se tratar de um falastrão que também reverenciava o silêncio. Passei tardes inteiras na casa dele, na subida da Rua Marquês de São Vicente, no edifício onde também morava a Camilla Amado e outras pessoas, sem que ele pronunciasse mais do que meia dúzia de palavras. Eu entendia que eram momentos de reflexão em que estava ruminando suas dúvidas. Aliás, uma das maravilhas que acontecem com o envelhecimento é a gente poder olhar o plantio, os imensos pomares, nos rastros que se vai deixando pelo caminho. Pois a impressão que ele me dava era de uma árvore como a figueira-branca, que esbanja força e transmite paz, de uma solidez, uma robustez e um tamanho extraordinários que para derrubá-la só mesmo com vários tratores juntos. Ao mesmo tempo, uma árvore contraditória cujas raízes ficam se misturando com outras raízes e acabam provocando uma confusão danada. O Bráulio teve um pouco dessa dimensão na minha vida. Nossa amizade se solidificou quando eu voltei de meus estudos musicais na França, deixei de lado um rápido casamento e recomecei a ter namoradas, exercendo um pouco aquela galinhagem sem safadezas nem efeitos colaterais que a época permitia, num ritmo que o Bráulio havia estabelecido como meta de vida, de uma forma absolutamente responsável, pelo menos sob meu ponto de vista. Porque passava pela alma dele um rio tão abundante que o turbilhão de ideias que o envolvia todos os dias, permanentemente, o afogava das tentações da véspera. Olhado com um mínimo de carinho, o Bráulio tinha aberto uma janela de liberdade em mim, ensinando-me uma coisa extraordinária que é o direito de nos contradizermos. Ele fazia isso o tempo todo. Hoje, quando me perguntam sobre o número imenso de trabalhos que já fiz, respondo que capacidade de fazer música acho até que tenho, todavia, que tudo é resultante da quantidade de dúvidas que carrego comigo. E poderia não saber o que fazer com isso se não tivesse passado por mim esse maremoto chamado Bráulio Pedroso, que tinha por hábito questionar tudo o que ele mesmo fazia. Diante de um elogio ao Beto Rockefeller, cheguei a ouvi-lo responder: ‘Uma bosta! Já achei bom, não acho mais’! Longe de desqualificar, ele jamais qualificou sua obra além dos limites de admissão dele próprio, aliás, atitude muito pouco utilizada pelos contemporâneos que andam por aí atualmente, quando todos se acham imortais. Com ele também aprendi o seguinte: se alguém acha que alguma coisa da gente é boa, ótima ou genial, poderá ser isso, mas independente de nós. Será, se nos parecer. O Bráulio tinha isso por excelência. E eu era fascinado pelo raciocínio dele em relação a fatos que aconteceram na minha vida, como, por exemplo, perder um pai aos 16 anos, ser emancipado aos 17, aos 19 vir para o Rio de Janeiro e, morador do Edifício Alaska, começar a viver por minha conta e risco. Contado para o Bráulio, isso não só foi motivo de muito riso, como de uma frase no mínimo intrigante: ‘Que bom que não tinha ninguém lhe aporrinhando, você mesmo teve de resolver sozinho seus problemas!’ Então, diante de assuntos que ficavam meio ocultos em meu cotidiano, ele, 20 anos mais velho, tornou-se meu conselheiro e guia, com quem eu ia conversar certo de que voltaria com alguma pancada nova em forma de ideia, ótima ou péssima, sempre contraditória. Tudo poderia acontecer, diante daqueles silêncios dele, tão faladores. Igual um peão de roça surdo-mudo chamado Bernardo a quem Manoel de Barros descreve como dono de um silêncio ensurdecedor. Como mais uma característica do Bráulio era qualificar os outros, a convivência com ele estimulava à vida, ao querer fazer, ao admitir as coisas. À sua maneira, ele ajudava a gente, inclusive nos fazendo acreditar que estávamos fazendo direito. Era uma pessoa agridoce, com extremos de sentimentos, nunca tão feliz, nem triste demais. Senti-me ofendido por ele algumas vezes, porém nunca de forma duradoura, até porque eu sempre arranjava um jeito de reverter meu sentimento. Houve um dia na casa dele que diante de pessoas muito representativas do assunto em questão, alguém fez uma pergunta sobre teatro e ele respondeu com uma definição de tal clareza, de tamanha objetividade, que me deixou encantado para sempre. Um momento único, que nos deixou silenciados a todos, quando ele disse que há um lugar no mundo onde não existe problema: o palco. Ali discute-se o desejo de vida e o desejo de vida não pode ter problema. Não me lembro exatamente quais foram suas palavras e, se lembrasse, não seria capaz de reproduzir a sua entonação, mas se o sentido daquela resposta permanece a tantos anos dentro de mim, é porque alguma importância muito grande teve em minha vida. Sobretudo nesse mundo atual onde você pisca, pronto, esqueceu o ontem, deu seis piscadas, esqueceu seis meses. O teatro era uma das preferências profissionais do Bráulio. Não me lembro do ano, do mês, do dia, nem do nome da peça, nem do autor, nem dos atores. Sei que fomos porque ele, que às vezes se fazia de meu pai intelectual, anunciou que seria importante eu assistir à encenação. No caminho, contou-me a peça inteira, seguida de uma análise crítica da obra, sob o ponto de vista pessoal dele. Confesso que toda essa parte não me lembro mais, até porque os ensinamentos, mesmo os encantadores, evoluem e se transformam, dentro de nós mesmos. Sei que era um teatro que hoje se chama Glauce Rocha, na Avenida Rio Branco, vizinho à antiga entrada do velho estúdio da Odeon nos anos 1970. Uma peça em dois atos. A mesa com um vaso de flores sobre ela, algumas cadeiras e a estante com livros ao fundo, era o cenário. A certa altura, o casal de atores começava a discutir, ele dizia alguma coisa desagradável, ela tinha uma reação imediata de revolta e, num gesto que evidentemente não constava da encenação, derrubou o vaso que se espatifou no chão. ‘Fodeu!’, foi a reação do Bráulio. No intervalo, me explicou que sendo ele viciado em teatro, não podia assistir a uma cena assim, inevitável, fora do script, sem começar a pensar na solução que o diretor daria para o imprevisto, até porque o tal vaso era parte importante do cenário, inclusive sendo citado num diálogo do segundo ato. E me disse que só quando eu fosse viciado no que fazia, entenderia sua reação. Ele havia me repassado uma charada que decifrei logo uma semana depois, assistindo a um concerto de orquestra sinfônica, quando notei um fagote desafinado que quebrou minha concentração, até que uma pausa da partitura possibilitou que o fagotista afinasse o instrumento e devolvesse minha concentração na música. Aquele detalhe do músico desafinado tinha feito com que o concerto momentaneamente deixasse de ter importância para mim, até a solução do problema. Contei para o Bráulio, claro. Para ouvir dele um comentário cujo sentido exato até hoje procuro descobrir: ‘Viu só? Nós somos uns miseráveis’! Pois muito bem. Sei é que a peça Encontro no Bar ficou uma beleza e esse momento musical carimbou minha relação com o Geraldo Carneiro, que também faz parte de minha vida, o tempo todo. Principalmente pelo contato que tive com o Geraldão Carneiro, pai dele, que me acolheu e, em meu segundo ou terceiro encontro com a família, praticou um exercício extraordinário de benevolência, depois de perguntar onde era minha casa. ‘Eu moro em Niterói’. ‘E como é que você vem pra cá?’ ‘De barca e ônibus’. ‘Você sabe dirigir, tem carteira de motorista?’ ‘Sei, tenho’. ‘Então, neste momento, estou lhe vendendo um fusca meu, muito bom’. ‘Mas eu não posso comprar, não tenho dinheiro!’ ‘Você vai me pagar, tenho certeza. Ô Dulce, pega a chave do carro!’ O fusca estava prometido para o Geraldinho, ainda com uns 15 anos de idade, e quem levou fui eu, que ele considerava como um irmão mais velho. A nossa relação tinha se estabelecido através da música, que a gente descobriu que podia fazer junto, tem até uma frase dele segundo a qual a poesia ganhou um poeta, ele, que deixou de compor, e eu digo que a música ganhou um músico, porque deixei de escrever. Nós já éramos uma dupla, calibrada e cheia de propostas musicais e literárias, quando chegamos até o Bráulio, que me sacudiu e me chacoalhou até o ponto em que percebi que a contradição é necessária, que o reconhecimento é necessário, mas que o fracasso também é necessário. Aos 20 anos de idade, alguém que nos convença que tudo é necessário, ou acaba com a gente naquele instante ou nos ensina uma grande lição, porque a vida é isso mesmo. Foi através do Bráulio que, pela primeira vez, ouvi alguém falar sobre questões de linguística. Teoricamente, isso não seria um assunto para nossas conversas, acontece que, em atitude de uma fantástica benevolência, ele creditava aos amigos todos os valores que existiam dentro dele. Pra sintetizar: já não se fazem mais Bráulios como antigamente! E, embora nunca tenha ouvido qualquer referência a respeito, mais recentemente tive a impressão de que ele sofria pelo fato de que as últimas coisas que escreveu não tinham mais a mesma receptividade de antes. E que não gozava mais de reconhecimento suficiente para continuar canetando aquelas coisas corajosas que tinham tido tanta aceitação. Entretanto, em momento algum ele deixava de festejar os sucessos de cada um de nós, comparsas daquela nave que era a casa dele. Lembro de uma vez em que ele me recebeu debaixo do maior entusiasmo: ‘Cadê esse novo disco seu, maravilhoso, do qual todos estão falando tanto e tão bem e que eu ainda não ouvi?’ Não me recordo do Bráulio sugerindo que eu freasse algum sonho meu. Nunca. Ele foi o primeiro adulto de quem ouvi a frase: ‘Ontem eu acreditava nisso, hoje não acredito mais e amanhã não sei se vou acreditar naquilo que estou acreditando agora’. Isso falado com tanta veemência que fiquei convencido de que era assim a vida. E a vida é assim! Se eu tivesse que resumir, o Bráulio foi o estopim dos meus exercícios de contradição, do meu direito às contradições. E eu fui um escutador privilegiado dele, que me adotou como tal. Enquanto isso, apesar de jamais ter desejado ser dramaturgo, de repente Geraldo Carneiro estava na Europa para escrever uma peça de teatro chamada Retrato Imaginário de Eva Perón, que teria música de Astor Piazzolla, na ocasião, em plenos preparativos para a feitura de um disco histórico chamado Summit, que ele gravou com Gerry Mulligan e seu sax-barítono, num estúdio de Milão, entre 24 de setembro e 4 de outubro de 1974. O título de uma das faixas era o retrato da alma daquele trabalho fonográfico: Close Your Eyes and Listen. Na volta, Bráulio convidou Geraldo para escrever com ele uma novela ou uma peça vagamente inspirada na figura de Carmen Miranda. Aí, a Globo nos mandou para Los Angeles a fim de fazermos uma pesquisa sobre o tema. Acontece que o Bráulio sabia tudo sobre esse assunto, já tinha tentado escrever a peça antes, então a tal viagem foi mais de diversão do que qualquer outra coisa. Começamos encontrando uma portuguesa fornecedora exclusiva das drogas para o Festival de Woodstock e que passou a nos receber na casa dela sempre com grande generosidade, oferecendo o que de mais atualizado, opulento e farto havia nessa área. Havia também o mundo musical, graças às indicações do Egberto, que no ano anterior tinha morado lá, então íamos muito à casa de Herbie Hancock e de Wayne Shorter, onde nos deleitamos com jazz da melhor qualidade. Ali conheci um músico de nome Joe Luciano, de um lugar do Caribe, vizinho à Jamaica, chamado Tortola, para quem escrevi um poema que ele musicou e mais tarde tornou-se o hino da ilhota. Ou seja, eu, Geraldo Carneiro, me tornei o Osório Duque Estrada de Tortola. Além de tudo isso, ficamos conhecendo uma mulher que causou um atraso de mais de duas horas na abertura do Festival de Woodstock, porque enquanto não chegou o helicóptero dela, responsável pelo fornecimento de alegria para os músicos do Festival, o som não rolou. Como se tudo isso não bastasse, havia ainda à nossa disposição uma caderneta de endereços gentilmente fornecida, não me lembro mais por quem, com os telefones de uma série de atrizes em ascensão de Hollywood. Enfim, foi uma viagem onírica, absolutamente paradisíaca. O Bráulio inspirava muita afeição. Tinha uma grandeza, uma sinceridade, enfim, era um sujeito muito bacana. Foi um privilégio cruzar com uma pessoa assim, na vida, com a qual se possa dialogar com tanta abertura e sinceridade. Quatro anos depois, Bráulio voltaria a Los Angeles, esticando a visita até Washington, Boston e Nova Iorque. Da Califórnia, ele escreveria ao amigo uma carta com vários subtítulos, datada de 14 de setembro de 1980, aberta com a saudação Geraldinho, salve! SURPRESAS AGRADÁVEIS. Ao visitar o Kennedy Center, soube por um computador que a Biblioteca do Congresso tem os meus livros de teatro. Estou a um passo da imortalidade. Ou das traças. No primeiro dia na capital deles saí com uma moça da embaixada e mais um casal de jovens diplomatas. Na segunda noite, essa moça me ofereceu, diplomaticamente, seu leito. Welcome to the United States! Ou, mais uma vez, a vitória da matéria sobre o espírito. O hotel de Boston, apesar de imenso e ostensivo, sofria de fragilidade das paredes. Na primeira noite fui acordado com a chegada dos vizinhos do quarto à esquerda. Eles falavam alto e riam, gritando yeah! yeah! a todo instante, até que ouvi um deles pedindo go, go, go! Na segunda noite fui acordado com a chegada das vizinhas do quarto à direita. Risinhos e murmúrios, até que escuto: ‘oh, my God! Jesus! Viados de um lado, lésbicas de outro. Em resumo: nos Estados Unidos, como em qualquer lugar do mundo, a normalidade fica no meio. ÁGUAS TURVAS. Pescando à distância, escrevi para três moças, repetindo o mesmo refrão: gostaria de encontrála magicamente na caixa de correspondência dos hotéis. Para isso enviei meu roteiro, com datas e nomes dos hotéis. Só que em Los Angeles me mandaram para um pardieiro. Penso portanto que, magicamente, as respostas irão pras picas! TELEPATIA. A japonesinha que olha para mim no Maude’s e que depois subo com ela e outras pessoas no elevador, aperta o quarto andar e penso que também vai descer lá. Mas ela continua subindo. Como adivinhou que eu estava naquele andar? No Mardi Gras em Times Square, um topless senta-se ao meu lado e pede para que eu lhe ofereça um drink. Entediado, digo que sim, porém jamais poderia supor que aquele champanhe iria me custar 10 dólares! BOA DISPOSIÇÃO. Se quiser me buscar, chego no dia 8 de outubro. CONCLUSÃO. Os Estados Unidos podem ser um país maravilhoso ou chatíssimo. Para que seja maravilhoso é preciso que o visitante tenha Geraldo Carneiro como companhia. O convite para a viagem tinha chegado através de carta com papel timbrado da Embassy of the United States of America em Brasília, datada de 26 de março de 1980, com o seguinte teor: ‘Prezado senhor. É com grande satisfação que transmito a Vossa Senhoria, em nome do meu governo, um convite para visitar os Estados Unidos da América por um período de 30 dias, tendo em vista proporcionar aos amigos no exterior uma oportunidade de melhor conhecer nosso país e nosso povo, principalmente os aspectos que possam constituir motivo de interesse especial’. O programa oficial foi cumprido à risca, todavia, pelo menos segundo revelações em carta, havia vários outros interesses também especiais do visitante, em pauta. * Por iniciativa de Geraldo Carneiro, A Catedral, aquele livro inaugural, foi republicado em 1981, com o título de As Gralhas. Ali, 16 contos: As Formigas, A Pesca, A Japonesa, A Viagem, A Manga, A Tatuagem, O Pássaro, As Gralhas, Um Artista do Trapézio, A Sentença, A Nódoa, A Vergonha, Lua de Mel, Madalena, Na Estrada, A Catedral. De acordo com o amigo, a parte biograficamente mais revelada talvez estivesse num texto que seria uma espécie de reconciliação simbólica da pessoa Bráulio Pedroso com uma figura fundamental na construção do escritor Bráulio Pedroso: o pai, pelo menos assim era o que constava da certidão de nascimento, Doutor Gentil, que não lhe parecia amá-lo tanto quanto ele desejava. A partir dessa distância afetiva transformada em sensação de ausência, ele teria conseguido elaborar um certo tipo de carência. A mesma carência que, de certa forma, pode ser considerada senão como a pedra fundamental, pelo menos uma das essências de sua carreira literária, estava lá, no conto A Pesca: Não seria agora depois de morto que meu pai me ensinaria a pescar. E muitos anos já se passaram de sua morte. Um tempo que me deu saudades sem remorsos, um esquecimento confortável de tudo aquilo que ele foi, do medo que eu sempre guardei de sua autoridade e de sua segurança, que era minha insegurança. Nenhuma recordação me persegue e, por ser nenhuma, é toda. Dele restou uma vara, uma linha e um anzol. Uma pescaria a fazer. Um peixe que eu nunca pesquei, que nunca aprendi a pescar. Criança, bem criança, meu pai me levava com ele à beira do rio. Ensinava-me a segurar sem nojo na minhoca, a pôr a minhoca no anzol. Ensinava-me a jogar a linha na água, mostrando o recolhimento da correnteza e os remansos de profundidade piscosa. Paciente, via-me não prestar atenção à linha, não olhar para o rio, sabendo-me com a vontade em outros lugares. Durante algum tempo me dispus ao sacrifício. Ou melhor, me achava na obrigação de gostar. Mas, por fim, exausto e querendo ser eu mesmo, falei claro. Não gostava, cansava-me esperar um peixe e quando ele fisgava era como um soluço que passasse sem motivo e de repente. Assim fiz-me homem sem nunca mais pescar. Um dia, meu pai adoeceu. Pediu sua vara, sua linha e seu anzol. Imobilizado sobre o leito, cabeça apoiada no travesseiro, reclinada na medida máxima e possível, ficava a olhar seus instrumentos de pescarias passadas, aposentados num canto do quarto. Sem força para tateá-los, quieto, em contemplação, rememorava seus melhores peixes. E foi assim, numa pescaria de silêncio, que recebeu a morte. Não gritou nem implorou, ele que era nervoso, agitado e hipocondríaco. Tranquilo, perdoou a mim que sempre o desgostara por não ser o que ele desejara e perdoou a seus inimigos que nunca pensaram como ele. Houve então a hora dos que choraram e dos que fingiram chorar. Depois, cessado o choro e esquecidas as lágrimas, sua lembrança se tornou um compromisso para cada um, sem que ninguém lembrasse ao outro o incômodo de sua personalidade dominadora. Desfez-se o conluio familiar que se organizava à sua chegada, quando então nos dominava a expectativa de sabê-lo com bom ou mau humor. Esquecemos as mentiras comuns, os olhares cúmplices durante as refeições a indagar, silenciosos, o que responder caso ele se dirigisse a um de nós sobre qualquer coisa capaz de desencadear sua ira. Mas havia também o seu bom humor, que pelo excesso de seu temperamento se fazia rico e imprevisto e do qual compartilhávamos encan tados. Excessivo em tudo, nos bons momentos tudo permitia e livremente zombávamos de sua barriga, e exagerávamos na dose de pimenta, rindo depois do suor que lhe brotava na testa. Ele era um e nós, mãe, filhos, avós, primos, éramos o outro. Perdíamo-nos na unidade. E agora eu pergunto da sua ausência, sem resposta. Nenhum vestígio do excesso que foi. Sua perda é a minha. E sei, sinto, sofro, ao recordar que nele procuro a minha presença, a minha presença que também deixará de ser. E por isso insisto na busca. Nas pessoas vejo sombras, imprecisões. Prefiro os objetos solidificados em sua imobilidade. Mas o tempo não transige. A casa em que vivíamos não mais existe. O que tínhamos, dispersou-se. E dele restou, é nisso que agora me fixo, sua vara, sua linha e seu anzol. Então, eu que nunca desejei pescar, agora me encontro na margem deste rio, com o resto de sua presença, querendo sustê-la na ânsia de me suster. Eu pesco. Sinto que pesco bem. Que a vara me obedece, que a linha corre para os remansos piscosos e que o anzol no fundo atrai os peixes. Minha mão guia-se pela segurança de sua mão experiente, entendedora das manhas da água ardilosa. E agora eu pressinto, posso mesmo jurar, que há um peixe rondando minha linha, sei, tenho já a emoção e, contudo, não me precipito, não faço movimentos desnecessários e me mantenho em silêncio como deve se manter um bom pescador. Não me mexo porque sei que um peixe ronda minha linha. Sei. Estou certo. Portanto, não me surpreendo ao fisgá-lo. A surpresa está no seu tamanho. Um peixe enorme para o meu anzol. Ele luta, não quer sair da água. Eu me curvo diante de sua força, me curvo, mas não cedo. O orgulho me mostra nesse peixe enorme, um peixe nunca pescado por meu pai, um sucesso que o arrebataria. Sei que ele reconhecidamente deporia diante de mim todos os seus títulos, somados através de sua vida de emérito pescador. É preciso, pois, pescá-lo. Mas o peixe resiste. Salta fora d’água, serpenteia no ar. Assusta-me. Eu recuo e, ao recuar, mantenho a linha tesa, esquecendo as lições de meu pai, num erro que poderá causar o rompimento da linha e a fuga do peixe. Mas ele me intimida, me obriga ao recuo. Não me importo mais com as precauções, com a técnica. A vara em minhas mãos sustém-se automaticamente. Meus sentidos, meus olhos, têm agora uma única direção: o peixe. E sinto em toda a agitação, no seu estrebuchar aflito que o faz pássaro em voo, a imobilidade de seu olhar. Sei e tenho a certeza que ele me fita, que há um compromisso em seu olhar. Não é mais a linha que nos prende um ao outro. São nossos olhares. Ele poderia escapar, mas não escapa. Nos seus pinotes, no emergir e submergir na água, nos respingos que suas agitadas escamas espargem, no bulício que por ser muito e difuso não mais ouço, nessa luta que não é mais luta, há apenas o seu olhar. Um olhar que me interroga e se faz meigo. Uns olhos que crescem suplicantes para mim. Dois olhos negros e de profundo convite, misteriosos como o remanso do rio de onde vieram. Mas são calmos e sei que encontrarei a tranquilidade neles. Há entre nós um mudo desafio que solicita palavras. E o peixe fala. Suplica-me para que eu o solte, que sua resistência se esvai, que lhe falta ar, que seu tempo fora d’água termina. Seus olhos grandes me suplicam e sua boca sangrando da fisga também. Nesse momento, sinto seu peso e me lembro da vara, da linha e do anzol. O fascínio se desvanece. Meus argumentos tornam-se lógicos. Vim para pescar. Sou pescador. És peixe. Para isso eu me detive a tarde toda à beira do rio. A lógica é esta. Paciência. Simplesmente cumpro minha função. Puxo a vara. E no ar o peixe traça um semicírculo que termina aos meus pés. No chão, ele se esbate, num estertor lento e aflito. É um corpo que se mexe a caminho da morte. E eu a espero. Não precipito o fim, se bem que o galho que trago em minhas mãos represente essa intenção. Imobilizou-se a tarde. Estáticos, um diante do outro. Nada mais ouço, nada mais vejo. Meus gestos são os gestos automáticos de quem costuma vir ao rio para pescar. Com uma cordinha, prendo-o pela guelra e assim pendurado o conduzo. Um pouco adiante, um menino olha admirado o tamanho desse meu peixe, que agora me incomoda, pesando no cordel que me vinca a mão. A vara, a linha e o anzol também me incomodam, balançando sobre o meu ombro. Então, eu dou tudo que tenho ao menino na estrada. Desse mesmo pai, o irmão mais velho, Alberto Gentil, escreveu em livro que quem o conheceu, jamais esquece. Inteligência rara, brilhante, lia muito e conhecia todos os autores românticos e clássicos, recitava alguns poemas e tocava com suavidade o piano. Tinha um senso de humor raro e constante, de toque rápido. Certo dia, um amigo adolescente do Bráulio, vendo meu pai a fumar seu charuto havana, perguntou, talvez por falta de assunto. O senhor já imaginou eu com um charuto desses? A resposta veio com olhar maroto. ‘Onde?!’ Havia, entretanto, uma permanente formalidade, talvez um tanto exagerada até, na família daquele patriarca. Pessoas de bem, educadas, afáveis, todas, porém pouco espontâneas. Menos ele, o Gentil, quando jovem. ‘Na Rua Sabará, bairro de Higienópolis, três mansões ocupavam o quarteirão inteiro. O viver cotidiano era protocolar, Tio Horácio, austero, sempre de terno, colarinho duro e gravata. Ao contrário de Tia Elvira, sua mulher, dona de espírito jocoso. Ela adorava as visitas semanais de meu pai, já não tão moço, nas décadas de 1930 ou 1940. Era quando soavam as gargalhadas que ele provocava. O almoço, rigorosamente executado em todos os pormenores, inclusive com as comidas subindo da cozinha, na parte de baixo, para a enorme sala de jantar no pavimento superior, através de um pequeno elevador especial. Bebia-se água mineral, só. A cerveja era para o visitante. Um dia, ele não bebeu a garrafa inteira e aconteceu que, para surpresa geral, saiu da rotina aparecendo para almoçar também no dia seguinte. Tia Elvira, prestimosa, ordenou que trouxessem a cerveja de praxe. Trouxeram, a mesma garrafa da véspera, pela metade. Ele não fez por menos, saudando-a respeitosamente, como se fosse uma pessoa. Ah, bom dia! Como passou de ontem? Tio Horácio engoliu em seco, Tia Elvira rolou de rir, às gargalhadas. Dois irmãos falando da mesma pessoa. Dois retratos bem diferentes, quase antagônicos, da mesma pessoa. Assim era aquele pai, conforme lhes parecia. * Em março de 1975, estreava no Teatro Princesa Isabel, em Copacabana, o espetáculo Feira do Adultério reunindo peças curtas de Lauro César Muniz, João Bethencourt, Jô Soares, Ziraldo, Paulo Pontes/Armando Costa e Bráulio Pedroso, a quem coube ‘O Deus nos Acuda’, dita peçatelenovelesca em clima de chanchada, com os personagens Doutor Olavo Vaz dos Guimarães Bilac, Fraulein Berta, Guilhermina Bragança e Bragança, Manfredo, o Bom, Manfredo, o Mau, e Policial, respectivamente interpretados por Mauro Mendonça, Arlete Salles, Rosamaria Murtinho, Osmar Prado, Jô Soares e Fúlvio Stefanini. Como sou extremamente parcial, sintetizou Jô Soares na ocasião, acho que só se deve escrever sobre gente de quem se gosta. E ninguém gosta de ninguém impunemente. Dou-me com o Bráulio exatamente por haver entre nós certa afinidade criativa. Ele tem uma visão de mundo carregada de humor e de um sentido patético que já apareciam na biblioteca do cenário de O Fardão, com suas estantes repletas dos exemplares de um único livro, o do próprio personagem, que era candidato a uma vaga na Academia. A exemplo de Ring Lardner, Robert Benchley e Frederic Brow, Bráulio provou com esta peça curtíssima que, em poucas páginas, cabe uma quantidade ilimitada de sátira inteligente. Eram dias em que nossa televisão parecia ter chegado próxima da fórmula ideal que continha, ao mesmo tempo, certo nível cultural somado ao interesse popular. Qualidade e audiência juntas no mesmo produto brasileiro em sua essência. Apesar da censura federal moralista e castradora dos militares, havia então uma dramaturgia de um certo nível, consumida em larga escala. A Escalada, O Bem-Amado, O Espigão, O Casarão, Os Ossos do Barão, Pecado Capital, Gabriela, Corrida do Ouro, Escrava Isaura, O Grito, Estúpido Cupido, O Rebu e outras novelas mais eram as atrações de todos os dias, em vários horários, inclusive o das 10 da noite. O público parecia gostar de coisas boas, embora muita gente dissesse, e continue a achar, o contrário. E passava a consumir histórias de algum valor cultural, histórico ou mesmo de denúncia. Até que no final dos anos 1970 começaram a aparecer ousadias maiores, a censura reagiu e os autores tiveram de apelar para alguns subterfúgios em forma de hermetismos e metáforas, o que levou inclusive à drástica proibição de algumas novelas inteiras. Os números da audiência caíram e trabalhos como Espelho Mágico, Saramandaia, Sem Lenço Sem Documento, Nina, não tiveram a resposta que se esperava deles. Mas, em 1978, O Astro batia os recordes da época. Foi mais ou menos naquele momento que Bráulio Pedroso botou no ar seu Pulo do Gato. Na verdade, isso só aconteceu diante do veto a uma ideia anterior original nascida quando ele fez parte do corpo de jurados do desfile das escolas de samba do carnaval carioca de 1977: uma novela-enredo falada em versos, com um elenco quase só de intérpretes negros, contando as disputas políticas internas de duas agremiações rivais. Em entrevista publicada na revista EleEla, ele dizia que aquilo era o mundo da fantasia popular brasileira misturado à literatura de cordel, a coisa mais maluca do mundo. Toda escola de samba tinha seu rei e sua rainha, quer dizer, o sonho do reinado ainda continuava presente no brasileiro, pelo menos subconscientemente. Daí o título: Que Rei Sou Eu? Nada a ver com a história homônima de autoria de Cassiano Gabus Mendes levada ao ar em 1989, na qual havia algumas semelhanças com o enredo que Bráulio tinha imaginado e que, depois do elenco escalado e tudo, teve sua gravação suspensa. Entre outras coincidências, na segunda Que Rei Sou Eu, a que foi ao ar, os personagens do reino de Avilan caíam no samba e passavam a conviver com um embaixador da Alemanha, negro, interpretado por Milton Gonçalves. Na proposta anterior de Bráulio Pedroso, de repente Lampião, saído diretamente do cordel, apareceria indo ao encontro de Luiz XIV que estava à procura da Marquesa dos Santos na caatinga, quando chegam os Cavaleiros da Távola Redonda, enfim, o mundo fantástico de Momo, não por mera coincidência, também rei. O primeiro-ministro Clóvis Bornay seria feito por Ziembinsky, que conspiraria contra Zé Lewgoy travestido de Evandro Castro Lima. Haveria ainda o Cemitério das Alegorias, com Grande Otelo como guardião. Além do Barraco dos Sumos Sacerdotes, com Cartola, Xangô, essa gente toda, em meio a entrevistas reais. No fun-do, uma intriga palaciana generalizada, no país da imaginação popular. E, por trás de tudo, a questão da interferência branca no desfile. Era um questionamento sobre aculturação. Durante esse processo de busca do poder carnavalesco, grã-finas apareceriam como destaques, além de todos os demais detalhes reacionários que a gente vê no desfile de verdade. Até que, quando está amanhecendo o dia seguinte, aqueles que foram reis, príncipes e tudo o mais, aparecem com suas roupas suadas, desabotoadas, rasgadas, mantos jogados nos ombros, quer dizer, todos os que até pouco antes eram pessoas fantásticas, começam a formar um bloco de sujos de fim de festa, e entra aquela música falando que a felicidade do pobre parece a grande ilusão do carnaval / a gente trabalha o ano inteiro / por um momento de sonho, pra fazer a fantasia / de rei ou de pirata ou jardineira / pra tudo terminar na quarta-feira. E todos eles que a gente viu na novela inteira como grandes personagens, vão indo embora, cabisbaixos. O mais curioso disso tudo é que justamente ele, responsável pelo fim de reis e rainhas nas novelas, com Beto Rockefeller, iria jogá-los novamente em cena. CAIS DO PORTO. EXTERNA. DIA. Câmera mostra cargueiro ancorado, do alto, em plano geral, estivadores trabalhando, guindastes em ação. Câmera desce, enquadrando portão da entrada, detalhando o cartaz: ‘Proibida a entrada de pessoas estranhas’. Corta para guarda apontando para o aviso e dizendo: – Olhaí. Não pode! Ao seu lado, Nonô Sete e Meio, típico rapaz folgado, argumenta: Me chamando de pessoa estranha? Tu tá por fora. Não há ninguém mais conhecido aqui do que eu! Sem autorização ninguém entra, não! Ah, já vi que o amigo é poeta. Pois eu também só trabalho na rima, com as moças lá de cima, do trotuá da Praça Mauá. Com esse sol de rachá, quem diria que a gente fosse encontrá tanto artista populá! Até parece piada, meu camarada! Pois estranho é quem a gente não conhece. Eu sou Nonô Sete e Meio, jogador sem receio, que faz da vida um baralho e quer distância do trabalho. Deixa eu passar, sem aprontar confusão, que depois eu te molho a mão! Vamos com calma. Suborno, não! Em língua de gente fina, estou prometendo é propina... Até setembro de 1977, havia só a sinopse e parte do primeiro capítulo, inacabado. Vou esperar a palavra da censura para continuar, ou não, a escrever a história. Acho o carnaval uma demonstração forte de nossa cultura, onde realmente ainda somos originais. Mas, além da sinopse, a censura acabou exigindo 20 capítulos escritos, para exame. Roque Santeiro e Despedida de Casado tinham sido vetadas dias antes de irem ao ar, já com chamadas na programação e tudo. Mas, a Globo teria se antecipado à censura do regime militar, alegando que uma abordagem sobre cultura popular não aguentaria seis ou sete meses no ar. Então, pouco depois de saber do veto, fui obrigado a pensar em outra coisa e, a bordo de um táxi, a caminho da casa de um amigo, nasceu a ideia do meu pulo do gato. E às 10 horas da noite do dia 16 de janeiro de 1978 entrava no ar uma nova novela minha. O Pulo do Gato tinha os primeiros dos 140 capítulos dirigidos por Walter Avancini e contava a história do playboy fracassado Bubi Mariano (Jorge Dória), um ex-rico que tinha passado a se sustentar com a venda, em segredo, dos quadros de sua vasta pinacoteca, fato ocultado dos mexericos do café-society graças às manobras de um esperto amigo, o pintor Caxuxo (Milton Gonçalves) que reproduzia as telas falsas que continuavam enfeitando as paredes da casa de Bubi. Uma visão crítica de uma fatia da alta sociedade daqueles dias, onde muitos esperavam poder dar seu pulo do gato. Uma novela realista, em termos de estilo, apenas uma consequência direta de Beto Rockefeller e O Cafona, limitada à faixa litorânea carioca, do Leme ao Lido e do Lido ao Leblon. Nela, falo de um universo que conheço, até porque posso contar nos dedos as vezes em que fui ao centro da cidade. Consigo, porém, ter o distanciamento crítico suficiente para chegar à sátira social e enchê-la de ironias. É fato comprovado serem raras as autobiografias verdadeiras, quase todas, no fundo, são mentirosas, então, se alguém mente quando está escrevendo sobre si mesmo, acho que posso entrar com minha imaginação quando falo de outras pessoas. Não tenho obrigação de tratar de coisas acontecidas, mas, sim, de situações previsíveis dentro de um quadro social delineado por mim. Em novelas, no que você tem a primeira ideia, ela se alimenta dela mesma e cada capítulo é uma resposta para o próximo, cada situação sugere outra. Além do mais, os personagens criam vida própria e podem caminhar sozinhos, na medida em que você determina a personalidade de cada um. Quando sento para escrever mais um pedaço de alguma história, basta dar uma olhadinha no capítulo anterior para as páginas seguintes começarem a nascer. Por isso, pode parecer contraditório, mas é mais fácil escrever 22 capítulos por mês de uma novela, do que um Caso Especial por mês, que já tem de nascer com início, meio e fim. A mesma coisa com as minisséries. Por exemplo, um insucesso intitulado Parabéns pra Você, direção de Marcos Paulo e Denis Carvalho, exibida de segunda a sexta, de 16 de fevereiro a 4 de março de 1983, às 10 da noite. À propósito desse lançamento, o jornal O Globo publicava uma frase minha, meio enigmática, mas pela qual tenho uma certa simpatia: ‘Quando se tem 20 anos, pode-se sonhar em ser cantor, engenheiro ou físico nuclear. Aos 40, porém, se é ou não é. Não dá mais pra mentir, nem pros outros, muito menos para a gente mesmo’. E, na primeira página do roteiro, havia um aviso típico daqueles dias: Atenção, senhores produtores, diretores e atores. Os cortes assinalados pela Divisão de Censura de Diversões Públicas do Departamento de Polícia Federal devem ser rigorosamente obedecidos. * Um dia, um fato, não mais um conto, peça, no-vela, minissérie ou Caso Especial. Ele e Geraldo trocavam confidências incríveis sobre as coisas mais fundamentais, sem o menor pudor, e geralmente ficava no amigo a impressão de que alguma coisa no universo do outro estava fora de lugar. E que o outro percebia isso. Na verdade, havia um segredo guardado dentro de Bráulio Pedroso. Um episódio que provavelmente explique os elementos constitutivos de sua obra cheia de alçapões, de fundos falsos, envolta num senso crítico que a tudo desmascarava. E foi assim, de supetão, lá longe, em 1976, que Bráulio Pedroso confidenciou a Geraldo Carneiro: Sabe de uma coisa? Quando eu era criança, tive a impressão de que minha mãe tinha um amante. Geraldo disse que era besteira, que aquilo era complexo de Édipo e que todos nós tínhamos ciúmesde nossasmães. TesequeBráulio serecusava a aceitar, debaixo do seguinte argumento: Ela me levava muito à casa de um homem que eu não conhecia e eu achava aquilo tudo muito estranho. Parecia cena de novela. Mas não era. (Intervalo) Terceiro Ato Panorama Visto por um Espectador das Imobilidades Alheias Em janeiro de 1977, Bráulio Pedroso estava com raiva, muita raiva mesmo. Ficaria até heroico dizer que eu estou com raiva de certas coisas que acontecem fora de mim, mas, na verdade, Renato, se você quer saber, eu estou com raiva de mim mesmo! Estou com raiva de certas coisas que eu sei que não vou dizer nesta longa entrevista que você vai publicar na revista EleEla. Certas coisas que eu não posso dizer para você, porque iriam me comprometer, poderiam me complicar. Isso quer dizer que, de repente, o cidadão começa a ficar tão impotente, tão pouco verdadeiro, que o jeito é ter raiva dele mesmo. Raiva de tantos compromissos, raiva de tantas concessões. Olha, é um sonho belíssimo você acreditar que não tem só uma vida, que um dia morre e depois vai renascer em outra pessoa. Mas eu não creio muito nisso, não, em vida eterna e coisas assim. Sei, embora às vezes até preferisse acreditar no contrário, que tenho só uma vida, uma única vida. E como acredito muito numa vida que seja só minha, inteiramente minha, não deixo de saber que eu posso desperdiçá-la, que essa vida pode ser jogada fora, que essa vida pode ser usada de uma forma errada, que essa vida pode ser muito pouco vivida. Fico pensando que nesses meus 46 anos de idade, que já é um lugar muito mais a caminho da morte do que a caminho da vida, será muito triste e melancólico se eu morrer de repente, com a terrível sensação de que não usei todas as minhas possibilidades. Até porque ninguém tem possibilidades sozinho. Tudo é uma grande troca constante. Você só chega aos seus melhores atos sendo indiretamente motivado pelos outros, até de uma maneira que é verdadeira, embora a gente esconda, tendo inveja de alguém. Mas, quando o processo de criação começa a ser tolhido, passa a ser pouco natural, então acontece que o outro, que iria despertar as minhas possibilidades, fica pequeno, mudo, e a partir daí, eu começo a trocar muito poucas coisas com ele, a minha vida vai passando, de repente acaba, e eu não dei o melhor que tinha para dar. O resultado, no geral, é que começa um processo terrível de cultura que são as concessões. Eu concedo, e não nego que concedo, os outros concedem, e também não negam, fica uma concessão aqui, outra ali, e nesse jogo terrível as vidas vão se esvaindo, sem que sejam plenas, belas e verdadeiramente ricas em tudo o que elas poderiam ser. Quanto a mim, sinto-me profundamente castrado! Não tenho mais como contestar, a não ser de maneira fácil. O que é isso: contestar de maneira fácil? É você achar que o inimigo é idiota. Um dia eu disse que duvidava do crítico na proporção do número de anos em que permanecia no mesmo veículo de comunicação, porque depois de um certo tempo ele não tinha mais opinião própria, tinha a do dono do jornal, da revista ou do canal de televisão para o qual ele trabalhava. Sinceramente, quando eu disse isso é porque já tinha uma experiência anterior, como jornalista, quando saí de O Estado de S. Paulo e vi um homem como Décio de Almeida Prado, que talvez tenha sido um dos maiores críticos teatrais do Brasil, pedir demissão de um jornal considerado até hoje como liberal. Isso quer dizer que as críticas dele eram exageradamente liberais para o liberalismo do Estadão. Se não tivesse havido a crise e o rompimento eu podia perguntar quem é que escrevia as críticas, o senhor Décio de Almeida Prado ou o dono do jornal? E posso perguntar agora, quem escreve as críticas teatrais do Jornal do Brasil, o senhor Yan Michalski ou o dono daquele matutino? Pois estou mais propenso a acreditar que quem escreve é o segundo e quem assina é o primeiro. Então, como existem esses compromissos e essas pessoas têm culpa de manter esses compromissos, de repente elas começam a viver uma falsa esquerda. E aí é que entra a grande mentira. Porque quando a esquerda é falsa, quando realmente não discute os problemas, ela não contesta absolutamente nada, porque é frágil e é colaboradora. Vou dar um exemplo, falando até de pessoas das quais eu gosto muito. O nosso teatro, e aqui estou fazendo um elogio, era o do TBC, um teatro de lareira nos trópicos, uma cultura de salão, de textos estrangeiros, quando surgiu o Teatro de Arena propondo uma dramaturgia brasileira. Realmente, naquele momento histórico, aquela era uma proposta muito importante. Foi quando dois amigos meus, Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, depois um grande, muito grande amigo meu, Edu Lobo, escreveram uma peça chamada Arena Conta Zumbi, que até hoje é considerada um clássico da dramaturgia popular nacional. Naquele momento histórico aquilo estava certo porque o importante era não fazer o teatro de salão com lareira do senhor Franco Zampari e suas importações de peças e diretores estrangeiros. Só que nessa proposta do Arena já havia um erro que depois foi continuando e continua até agora, que é o erro de não propor nada contra. E o que aconteceu com Arena Conta Zumbi? O dominador, que é o português, tratado como um néscio, débil mental, cretino, pederasta, que dá gritinhos quando mordido por mosquitos. O negro, forte, garanhão, corajoso, poético, lírico. O público que assiste a isso, com essa culpa de esquerda que domina todos esses comprometidos, se satisfaz com aqueles brancos completamente ridículos, mas que, historicamente, são os que saem vitoriosos. Eu acho isso profundamente lamentável. O que esse tipo de esquerda quer é agradar a quem assiste durante uma hora e meia ou duas de espetáculo. Porque quem vai lá diz assim: os nossos dominadores são néscios, são cretinos, são imbecis e idiotas, esquecendo, porém, que quem ganha são eles, os néscios, cretinos, imbecis e idiotas. Todos saem do teatro profundamente realizados e com as suas culpas pagas, como um católico que cometeu mil pecados, foi ao padre, confessou, engoliu uma hóstia e tudo bem, ficou quites com Deus. Essa visão simplória do capitalismo, onde o capitalista é idiota, mesquinho, burro, permite que o público se sinta forte perante os poderosos, simplesmente porque eles, num passe de mágica, passaram a ser desprezíveis. Aí há um ato de catarse. Daí eu achar que todas essas peças, essa cultura, enfim, é como tentar enfrentar o Muhammad Ali sem se preparar para o combate, pensando assim, ah, ele é apenas um bufão, um crioulo que fala muita besteira, ele não é de nada! Outro exemplo é Plínio Marcos, que fez duas peças boas, nada além disso, Navalha na Carne e Dois Perdidos Numa Noite Suja, e é altamente elogiado, endeusado. Por acaso, peças muito curtas. E quando eu uso a palavra curtas é porque eu o acho um autor de fôlego curto. A censura não deixou que Plínio Marcos fosse visto assim, como ele realmente é. Teve mais duas ou três peças encenadas, fraquíssimas, o resto de sua obra é medíocre. Nada além do que pequenos flashes da realidade. A meu ver um autor de poucas coisas para dizer, ele se faz de herói, mas prefiro vê-lo como um grande gigolô da censura. E estou dizendo tudo isso como uma denúncia de que ou existe dialética para o mundo continuar girando ou a dialética está morta. Acho, aliás, que o Brasil está paralisado em termos de dialética. A cultura brasileira é uma cultura de consciência culposa. E essa esquerda de cultura culposa está delirante, festiva, aplaudindo tudo que elimine as suas culpas. Gota d’Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, é outro caso. De uma hora pra outra virou o grande espetáculo, elogiado, fantástico, extraordinário, sem que nenhum crítico falasse de seu erro capital, considerando que se trata de um texto claramente baseado em tragédia grega. Ora, em sua própria definição, tragédia é uma situação-limite, por exemplo, quando Édipo matou o pai e dormiu com a mãe, fez tudo isso sem saber; portanto, o conflito já era sem saída. Então, quando alguma coisa se baseia na Medeia, outra tragédia grega, ou seja, um conflito sem solução, o mínimo que se supunha, que se esperava, era uma tragédia popular brasileira, quer dizer, em que ponto a nossa crucial realidade nos coloca em nível de tragédia. Ora, vamos ser francos, se não queremos apenas aplaudir aquilo que suavize nossas consciências, em primeiro lugar e acima de tudo, não há nenhuma tragédia em Gota d’Água! Outro dia vi um espetáculo intitulado É..’, talvez o de melhor bilheteria atualmente no Rio, que não joga para a plateia nenhum medo, porque o que se passa no palco é tão excepcional que quem assiste diz logo: isso não tem nada a ver comigo; portanto, eu posso rir, me divertir, porque não estou em julgamento. E falo isso em nível de plateia, hoje cada vez mais caracterizada. Então a gente tem de escrever coisas anódinas ou comerciais tipo João Bethencourt, ou então reforçar o grande comodismo de esquerda que é mostrar o capitalista poderoso como um idiota. Estão existindo, portanto, dois colaboracionismos culturais: a pornochanchada ou comercialismo e essa esquerda que supostamente limpa a alma das pessoas. Qualquer coisa que escape a isso, que fale de problemas, não digo problemas sem saída já que acredito que todos os problemas têm saída, mas qualquer coisa que mexa em problemas difíceis, incomodantes, desagradáveis, está condenada a não ter plateia. O público está indo ao que não o agride ou vai naquilo que supostamente o agride, porém cria uma terrível ilusão de solução. Pois eu acho que a gente tem de discutir é exatamente aquilo que não nos é muito agradável. Eu ainda tenho sonhos, bem ao contrário de certa burguesia sem motivos para sonhar. Aliás, uma das coisas que me dá uma sensação de tristeza, de angústia, é ver o mundo solitário que certas pessoas criam em torno de si mesmas. Há gente que não quer nem ouvir falar em sofrimentos, dores, encheção de saco, nada. Eles pensam que têm amigos, mas não têm. No entanto, cada um dos meus amigos, por exemplo, é um desafio para mim, a gente se discute, a gente se cutuca o tempo todo, ao contrário desse tipo de gente que ainda escolhe roupa para ir a qualquer lugar. Eu não, tenho algumas poucas roupas, com as quais vou a qualquer coisa, passeio, festa, bar ou casamento. Há até gente que se assusta com isso, pelo que chamam de simplicidade minha. O mais engraçado é que eu sou complicado à beça! Só que tenho uma simplicidade de comportamento, sem frescuras ou exageros, sou uma pessoa direta que sabe o que quer e o que pensa. Isso muito embora tenhamos todos nós uma Hollywood na cabeça, não é mesmo? Essa minha raiva é quase uma saudade de vida. Eu não tenho raiva de coisas, digamos, objetivas, tenho é de coisas bem subjetivas. De uma vida que pode acontecer de não ser plenamente vivida. Então, como autor, como escritor, penso: será que sou só isso? Será que eu não poderia ser mais que isso? Geralmente tenho uma certa tristeza de pensar que, quem sabe, eu fosse muito mais e muito melhor do que sou. O que acontece hoje é que sinto um terrível compromisso que não é só o das pessoas que, de repente, cedem ao poder, cedem ao que querem de você, cedem para não perder o emprego, para não ser proibido pela censura, para não ser marginal. Hoje eu tenho plena consciência de que há um compromisso muito mais terrível até, porque obscuro: o de não poder ser desagradável. Enfim, eu acho que o Brasil há muito, muito tempo, é uma grande mentira. Em termos de sonhos absurdos do que é Brasil e do que não é Brasil, vou fazer uma comparação que muita gente pode dizer até que estou ficando maluco. Mas eu ouso dizer que dois grandes fatos nos aconteceram em períodos diferentes, um na época de um Brasil de Gutemberg e outro no tempo de um Brasil de Mac Luhan: Machado de Assis e TV Globo. Todos que conhecem a história da literatura brasileira sabem que Machado de Assis, apaixonado pelos artistas ingleses e, ao mesmo tempo, querendo negar sua negritude, querendo ser branco, ser melhor, ser perfeito, fez uma literatura reconhecidamente muito boa, uma forma tão bela, tão concisa, tão apropriada ao Brasil daquele tempo, tão correta, tão bem equilibrada, tão bem dosada, que atingiu um padrão acima daquele país que, para mim, era muito mais José de Alencar, antes, e Lima Barreto, depois, ambos menos completos, claros, puros, mas mais naturalmente nacionais. Machado de Assis não nos deu uma impressão certa, exata, da realidade brasileira da época. Machado é uma excrescência. Foi a vitória do não querer assumir um país negro, escravo, primitivo, do não querer assumir o atraso. E acontece que eu estou plenamente convencido de que cultura brasileira é exatamente assumir o nosso atraso. Quanto à TV Globo, falam mal dela porque convém falar, tem até um débil mental que escreve para o Jornal do Brasil e tudo que fala é contra ela, sem perceber, aí que ele é idiota, que a Globo é o Machado de Assis de agora. Porque ela é melhor, convenhamos, do que o Brasil de hoje. Tem um acabamento, uma característica industrial, uma forma, não digo conteúdo, melhor do que nossa realidade. Tem gente até acreditando que vivemos num lugar desenvolvido, industrial, rico, inteligente, progressista, bem-acabado e sei lá mais o quê. Machado de Assis e TV Globo são duas mentiras, uma literária e outra eletrônica, no sentido de que mostram um Brasil muito melhor do que na realidade ele é. São dois equívocos de cultura. Os ingênuos que picham a Globo não percebem que o mal não é ela, eletronicamente, o mal é que ela é até melhor do que quem a picha. As coisas neste Brasil de 1977 estão assim, sem qualquer medida, porque neste nosso atual período de exceção fardada está havendo um grande, um enorme silêncio, e quando nada é discutido, os erros acontecem e se acentuam. O que sinto hoje em termos de cultura brasileira é uma coisa que eu nunca disse e agora tenho de confessar, sinceramente, que só estou dizendo porque apareceu um sujeito chamado Glauber Rocha, que fez muitas propostas, abrindo a cabeça das pessoas e dizendo simplesmente ‘minha gente, vamos ser dialéticos!’ A verdade não é tão simples, a realidade também não é. Dizem até que o Glauber enlouqueceu. Acontece que eu acredito que a loucura é nos tornarmos capazes de tudo e, para mim, ser capaz de tudo é estar disposto a romper com todo tipo de pensamento formado. Sim, porque normalmente nós não temos pensamentos livres, a gente é meio inseguro e precisa pensar antes naquilo que o outro pensou, no que pelo menos três ou quatro pessoas pensaram. Exatamente ao contrário do louco, que decide por conta própria. Aliás, aí está o extraordinário do pensamento insano. E como ele pensa por si mesmo, embora assumindo, sem saber, a responsabilidade, começa a dar em nós, ditos normais, que não somos tão loucos ou estamos quase loucos ou a caminho de sermos loucos, uma vontade de também termos pensamentos por conta própria, mesmo correndo os riscos de sempre. Pois o Glauber, de repente, cria um pequeno documentário sobre Di Cavalcanti, velho e querido amigo meu, e ganha esse prêmio em Cannes. Então cabe a pergunta: que artista é esse? Um pobre e medíocre artista não é. Que homem é esse que propõe uma dialética incrível para se pensar sobre? E se estou me referindo a isso agora é porque ele me abriu o caminho para falar de coisas que eu ficava guardando, escondendo dentro de mim por causa de tantos compromissos. Então, agora, quando digo que tenho raiva, muita raiva, não é só por uma direita óbvia ou por um poder óbvio, é porque existe o antagonista, que também é uma forma de poder porque colabora e, portanto, faz o jogo do poder. Hoje eu tenho consciência de que a cultura oficial brasileira é escamoteada. É a cultura de uma esquerda podre, velha, colaboracionista, cheia de culpas, de pecados, que, de repente, inventou maneiras muito fáceis de contestar. Chegamos, então, enfim, à esquizofrenia brasileira. Eu percebo a realidade, não por ler livros de Marx ou da Fundação Getúlio Vargas, mas por manifestações sensíveis, e estou vendo um desastre no nível da economia doméstica. Ao mesmo tempo em que há esse absurdo desequilíbrio de níveis sociais e financeiros nacionais, existe uma burguesia tão tranquila com relação a ela mesma e tão pouco atenta ao resto, que ainda acredita em festas e solta fogos de artifício por nada ou por qualquer motivo. No Brasil de hoje é fundamental ler coluna social, que é o índice, o termômetro da grande bobageira geral, da cegueira daqueles que estão acreditando que essa realidade não pode, um dia, não importa quando, se transformar. Houve até uma festa cigana no Régine’s onde um ex-embaixador nosso, homem público, portanto, se deu ao desfrute de aparecer de turbante vermelho e um brinco na orelha esquerda. Que razões motivarão a vida dessa triste burguesia, alegre só nas aparências, tão insensível a ponto de se festejar tanto e sempre, sem nenhuma razão, nesta hora em que as crianças da cidade do Rio de Janeiro são matriculadas nos colégios públicos não para aprender a ler e escrever, mas para ganhar a merenda escolar, sua única refeição diária? * Eu tenho PhD de teto, especialização filosófica, doutorado, em telhados. Era com essa frase que Bráulio Pedroso sintetizava seus muitos tempos preso a diversas camas, desde o final da adolescência. Aos 16 anos de idade, um dia quis me levantar e não consegui. Hoje as pessoas dizem que tenho uma cara muito jovem. Deve ser porque passei quase dez anos deitado de barriga pra cima, o que conheci da parte superior interna dos meus quartos, pouca gente conheceu. Durante muito tempo procurei ser agradável aos outros, mas um dia levei um susto, quando comecei a perceber que não era simpático. Até que tomei consciência de que, na minha imobilidade, tinha mais mobilidade do que todos e isso era uma agressão muito grande para eles, daí o fato de eu ser desagradável para muita gente. É que eu sou o retrato da imobilidade deles. O problema principal de Bráulio Pedroso tinha nome e sobrenome: espondilite anquilosante, uma artrite também chamada soro-negativa que acomete basicamente a coluna vertebral e as grandes articulações, provocando problemas de mobilidade. Na intimidade médica também conhecida pelas iniciais EA, uma doença que faz parte do grupo das espondiloartropatias, caracterizada pela anquilose das articulações sacro-ilíacas, artrite inflamatória sistemática de padrão reumatismal das articulações sinoviais da coluna vertebral e ossificações dos ligamentos espinhais. Com uma etiopatogenia ainda não satisfatoriamente esclarecida, pode comprometer as articulações periféricas e provocar irite e aortite, prejudicando o repouso noturno adequado. Uma doença crônica caracterizada por acometimento predominante do esqueleto axial, com dor e rigidez da região lombar, imobilidade progressiva da espinha e, algumas vezes, males constitucionais. Como em toda artrite, alguma coisa desencadeia essa doença autoimune que vai enrijecendo as articulações. Hoje em dia existem remédios e soluções cirúrgicas que melhoram demais tanto a questão da dor quanto da mobilidade. Apesar de, em alguns casos, permanecerem assintomáticos, há uma teórica prevalência no sexo masculino, entre a segunda e a terceira décadas de vida, com maior frequência entre os 15 e 40 anos, embora podendo ocorrer em qualquer idade, gerando forte impacto na qualidade de vida do paciente. Herança autossômica, é mais comum em parentes dos pacientes. Ocorre de forma insidiosa e é potencialmente debilitante. A irmã caçula Luciana, cinco anos mais moça, conta agora. Quando bem moço, ele praticava esporte, gostava muito de natação, de vôlei e de basquete. Era uma casa muito alegre, a nossa. Parecia um clube, de tanta gente que entrava e saía. Ele abria a mesa enorme da sala de jantar e fazia campeonatos de pingue-pongue. De repente, ficou doente e, apesar de a casa continuar movimentada, Bráulio já não era mais o mesmo. Ficava meses sem poder sair da cama, mas era um menino tão bom que nunca reclamava. A gente sentia que ele estava sofrendo e sabia que quando ficava muito quieto, era sinal de que a dor tinha ficado bastante forte. Só que quando melhorava um pouco já começava a cantarolar umas musiquinhas e principalmente recomeçava a ler, muito. Então era hora de nós o ajudarmos a aprender a andar de novo. Todo ano vinham essas crises, ele até parou de estudar. Um calvário do qual Geraldo Carneiro foi testemunha em muitas ocasiões, por uma curiosa coincidência, a de que o pai dele também sofria do mesmo mal. Era melancolicamente até meio engraçado ver os dois conversarem, trocando ideias sobre essa doença que chegou ao Bráulio aos 16 anos e em meu pai aos 40. Cientificamente, uma moléstia capaz de alterar a atividade funcional de uma pessoa, gerando incapacidade profissional, estresse físico e emocional, prejudicando o sono ou até afetando a atividade sexual do portador. Quanto a esse último item cientificamente citado, Geraldo diz que, teoricamente falando, até pode ser, mas, na prática, Bráulio era uma cobaia em potencial para profundos estudos sobre esse item. E que ele constasse de compêndios médicos como honrosa exceção, devidamente excluído dessa generalização de atividade sexual afetada. De tal forma que, inspirado no après midi d’un faune de Debussy, eu costumava chamá-lo de fauno sem après midi. Porque o mesmo fauno que só pensa em mulher, tem uma hora que quer descansar. Já o Bráulio não tinha après midi nenhum, aliás, muito pelo contrário. Geraldo diz que, como bom mineiro, tem um código de comportamento que determina: mulher de amigo que se separa, tem um prazo de carência de pelo menos dois anos. Mas o Bráulio tinha lá os códigos dele, pessoais, intransferíveis, sintetizados em sete palavras: o que caísse na rede era peixe. Assim sendo, entre os muitos tombos dele, fora um em frente à casa dos meus pais, na Rua Igarapava, no Leblon, outra de várias teve por palco aquele manjado Nosso Hotel, depois Shalimar ou coisa que o valha, no começo da subida para o Vidigal, onde ele estava traçando em minúcias a mulher de um amigo nosso. Era o boom do chamado amor livre, aliás, um termo tolo, já que amor é uma coisa tão complicada, conceitualmente, que não dá para ser livre. Acontece que o Bráulio levava às últimas consequências essa ideia de que tinham liberado geral, inclusive o amor. Lembro bem de uma noite de Natal, com direito a jingle bells e tudo, na casa do Cesar Thedim. Atenção, era Natal, não réveillon! A cocaína tinha acabado de entrar na vida carioca, o que tornou as coisas relativamente tumultuadas. Pois o nosso amigo cantou todas as mulheres da festa, todas, todas, todas, inclusive a mulher dele mesmo, dentro do elevador superlotado, na hora da saída. Ou seja, tratava-se do portador de uma criatividade tão extraordinária que era capaz de cantar a própria mulher e em local nada romântico, que, convenhamos, ninguém já teve, tem ou terá um elevador como musa inspiradora de qualquer coisa! Ele tinha fascinação por elas. Acho até que Dom Eugênio Salles, com aquela saia rodada, deu sorte de ele nunca ter ido ao Palácio São Joaquim. Outra característica de Bráulio Pedro-so era ter uma amnésia alcoólica de dar inveja. No dia seguinte ele me ligava pra saber como é que tinha sido a noite anterior, da qual não se lembrava absolutamente nada. Eu contava o oposto do que tinha acontecido e, antes do fim do relato, ele interrompia: ‘Engraçado, eu estou com a leve impressão de que não foi bem assim, não!’ A gente caía na gargalhada e eu então explicava tudo, em detalhes. Na verdade, ele tinha cantado da fulana à beltrana, inclusive a sicrana, além da dona da casa e a irmã dela, enfim, resumindo, com exceção de um bebê do sexo feminino ainda deitado em berço esplêndido e de uma senhora bem idosa, na cadeira de balanço fazendo tricô, nenhuma fêmea presente tinha escapado ilesa das investidas dele. Ele era mulherengo demais, sintetiza Marilda. E toda vez que eu tinha de lidar com certas situações desse tipo a gente brigava. Brigas sempre silenciosas, faladas educadamente, seguidas de um chororô danado de ambos os lados. Ficávamos meio estremecidos, até que ele me convidava para jantar fora. Comíamos, tomávamos um pileque e declarávamos nosso amor recíproco. E pronto. Um poder de sedução devastador. A amiga Mônica Silveira nunca mais se esqueceu de uma cena: Tom Jobim, Bráulio Pedroso e ela bebericando no bar do Florentino, quando uma louraça tipo mulherão começa a dar adeuzinhos de longe, na direção deles. Nenhum dos três reconhecia a criatura, até então apenas uma ilustre desconhecida talvez querendo se enturmar. Não demorou muito, a moça se levanta e começa a caminhar, malemolente, em direção do trio. Cuidadosamente dengosa, chega perto e apresenta as credenciais: B-r-á-u-l-i-o! Você não está sabendo mais quem eu sou? Não é possível, nós passamos uma noite inteira no Vip’s, lembra? Resumindo, ele tinha estado num motel com aquela dama, mas não se lembrava nem disso, nem daquilo, nem de nada. O Bráulio dava muita sorte com mulher, diz Mônica. E não só com essas que dão adeusinho e entregam os descompassos etílicos de bandeja, ele dava uma sorte danada com mulher bonita, bacana, classuda, inteligente e competente, porque, apesar do defeito físico, era um homem profundamente charmoso e encantador. E que sabia também ter amigas mulheres, como eu, sem qualquer outro tipo de envolvimento além da amizade pura e simples, porém profunda. A primeira vez que vi o casal Bráulio e Marilda foi numa festinha no belo apartamento cheio de quadros maravilhosos, do publicitário Cícero Leuenroth, pai da Olívia Hime, na Avenida Rui Barbosa. O Tom estava lá, sentado ao piano, tocando a mesma música várias vezes. A Vera Hime, irmã do Francis, tinha estudado comigo na Suíça e depois namorou o Geraldinho. Era mais ou menos a mesma turma de sempre, que acabava se encontrando nos mesmos lugares. Muito tempo depois, o Bráulio já separado, houve uma daquelas reuniões da classe teatral no Teatro Villa-Lobos e, não me lembro mais porque, eu estava presente. Con-versa vai, conversa vem, dei uma carona para ele. Acabamos amicíssimos e pelo resto da vida dele a gente se falava praticamente todos os dias pelo telefone. Viramos meio psicanalistas, um do outro, tudo ele me contava e eu lhe contava tudo. Era um homem carinhoso, que gostava de mulher em todos os sentidos. Adorava conversar com a gente. Tinha mais amigas do que amigos. Sabia tudo da alma feminina. Então, depois que passou a viver sozinho, o que ele precisasse, lá estava eu a postos. Tinha que ir ao médico? Eu levava. Precisava comprar uma roupa? Eu escolhia. Queria ir a uma festa? Eu acompanhava. Eu era quem fazia esse tipo de amiga de fé, mãeirmã-amiga-camarada do Bráulio. Inclusive ele ficou íntimo da minha família, passava o Natal na casa da minha mãe. Minha filha o chamava de Tio Bráulio. Enfim, uma pessoa especialíssima. O Dr. Nelson Motta, pai do meu ex-marido, chegou a desfalcar sua intocável coleção de bengalas, para presenteá-lo com uma delas, com cabo de prata e tudo. Marilda volta ao tema. Muito tempo depois, já não juntos, eu casada com outro e tudo, acho que entendi por que essa procura tão grande de uma determinada mulher, em tantas mulheres: pode ter sido o problema com a mãe. Porque o Bráulio era um Édipo de primeira qualidade, a-do-ra-va a Dona Isaurinha, lembro até de um cartão-postal que ele escreveu do Mosteiro de Jerônimos, em Belém, que dizia o seguinte: ‘Mamãe, estamos na santa terrinha, tentando negociar minhas peças. Em Londres melhoramos nossas finanças com artigos e entrevistas na BBC. Chegamos de volta segunda-feira, dia 29, às sete e meia da manhã. Saudades suas. Bráulio’. Acontece que, sem ninguém sequer desconfiar, ela tinha um pedaço de vida extraconjugal. Pode ter havido então o que eu chamo de ‘deslizamento metonímico’ que ele fazia nas mulheres. Comigo, por exemplo, havia uma certa metáfora de amor, tanto que ele sempre repetia, inclusive três ou quatro dias antes de morrer, que me amava. Ele morreu me amando, eu sei disso. Acima de tudo, havia o fato de que, durante muito tempo, ser filho de outro pai e não do homem que o criou, era apenas uma suposição para ele. Mas quando teve certeza, diante da confirmação dessa história toda, finalmente deparou-se com o pai verdadeiro, que já era um senhor de quase 90 anos, com o qual nunca tinha tido a menor convivência. Foi o encontro de dois desconhecidos, e não de um filho com o pai genético. Um filho que de certa forma tinha voltado à infância, quando ganhava brinquedos com os quais só podia brincar na casa de quem patrocinava os encontros da mãe dele com o senhor Lucílio Ancona Lopes. Eu vi os dois, ele e o Bráulio, saindo juntos, eu vi nossos filhos sendo levados para conhecer o avô. De repente, por achá-lo egoísta, o filho enfim revelado passaria a evitar esse pai recém-descoberto e não quis mais nem vê-lo. Creio que o Bráulio não soube negociar. Acho isso, embora seja muito difícil, praticamente impossível, opinar sobre uma situação como essa, uma verdadeira trama de ficção escrita pelo dia a dia. Uma situação absolutamente única, inédita. Ninguém tinha uma história verídica assim, parecendo tão fruto da imaginação exatamente de alguém que vivia em função do faz de conta. Aquilo tudo cheirava a remake de velhos roteiros de folhetim, com pinceladas do Direito de Nascer, só que desta vez os direitos autorais tinham que ser pagos à vida real. A amiga Mônica Silveira relembra o dia em que o Bráulio ligou para ela perguntando: Você está em pé, sentada ou deitada? Ela: Em pé. Ele: Pois então, sente. Ou deite. Porque acabo de saber que meu pai não é o meu pai! A amiga pensou logo que fosse uma brincadeira ou alguma situação fictícia que ele tinha imaginado para usar em novela e estava testando o efeito da frase. Nada disso. Mônica diz que ele estava é tendo a certeza de que aquela velha sensação de que o pai que ele tinha em casa o tratava de forma diferente em relação à irmã e ao irmão, mais velhos, estava confirmada. E, após uns breves capítulos, depois de pouco tempo ele voltaria de São Paulo muito desapontado dizendo que aquele homem era um safado e que preferia jamais tê-lo conhecido. Foi uma decepção gigantesca. O Bráulio não teria recebido do pai subitamente revelado, nada do que teria esperado dele, afetivamente falando. Nada. Ele me dizia se lembrar vagamente de uns brinquedos maravilhosos que ganhava quando criança, presentes que recebia, mas não tinha como seus. Depois de tudo esclarecido, evidentemente esperou que fosse acontecer um grande encontro, amoroso, aconchegante, o melhor presente de todos, e isso não aconteceu. Muito pelo contrário. Nunca mais ele tocou nesse assunto, pelo menos para mim. Bráulio tinha sangue italiano, de Bari, nas veias. Seu pai verdadeiro constava dos anais da mídia brasileira desde a implantação da indústria automobilística em nosso país, a partir de 1919, com a instalação da Ford e, em 1925, com o início das operações da GM, atraindo para cá fornecedores de pneus, baterias, combustíveis e outros insumos, produtos que nos Estados Unidos eram anunciados em grandes painéis de estradas, os chamados billboards. Aqui, a mídia exterior ainda era restrita ao mobiliário urbano, relógios, bancos de praça, abrigos de árvores, painéis em bondes e pequenas placas dos prédios públicos, além de um ou outro letreiro pintado na fachada dos teatros ou nos andaimes dos primeiros grandes prédios erguidos no Rio de Janeiro e, principalmente, em São Paulo. Assim, em 1926, a GM implantava um escritório de propaganda, divisão especializada, de início chefiada por ele, Lucílio Ancona Lopes, que estimulou seu irmão, Líbero, a fundar uma empresa focada em painéis de estradas. Surgia então, a Companhia Americana de Anúncios em Estradas de Rodagem, que iniciou suas atividades instalando um cartaz da Dunlop, pintado a duco, no acostamento da Rodovia Presidente Dutra. O nome dele também aparecia em O Estado de S. Paulo, na segunda página da edição de 16 de setembro de 1919: ‘Acaba de chegar da Europa o senhor Lucílio Ancona Lopes, portador da fita cinematográfica registrando sob sua direção, a visita do Presidente Epitácio Pessoa a Roma e Paris’. Na verdade, não dá para imaginar as consequências de certas coisas vividas pelos outros, sobretudo um fato como esse, dessa dimensão. Não só as consequências, como os detalhes. Por isso, tantas e tão variadas versões do mesmo fato. A irmã Luciana, por exemplo, diz que um dia, em conversa com o Bráulio, confessou-lhe que tinha a mesma desconfiança, até então não comprovada, a respeito do mistério em torno da existência de um pai deles dois, assumido apenas extraoficialmente, não averbado em certidões de cartório. Comecei a falar de algumas passagens rápidas, de certas cenas meio estranhas que me levaram a deduções, depois àquela sensação de quase certeza. Até que anos depois uma amiga da nossa mãe, que já estava com a cabecinha meio atrapalhada, foi me visitar, na conversa acabou fazendo uma confusão, confundiu-me com a mamãe, até que contou a história toda. Então fui perguntando e, diante das revelações dela, aquilo que o Bráulio desconfiava e eu também, estava plenamente confirmado. Era tudo verdade. Descobri o telefone do nosso pai, que foi me buscar, pessoalmente, e estivemos juntos em sua casa. Avisei o Bráulio: ‘olha, aquela conversa que nós tivemos tempos atrás, lembra, acabo de ficar sabendo que é aquilo mesmo que a gente imaginava’. Eu estava com 48 anos de idade, portanto ele tinha 53, seis anos antes de falecer. Mas, há controvérsias. O filho do Bráulio, João Manoel, cardiologista e clínico geral, tem uma versão diferente para os mesmos acontecimentos, que difere em muitos pontos e é acrescida de outras informações detalhadas. Vou começar pelos três dias em que eu, meu irmão e papai passamos em São Paulo, para conhecer o pai dele, portanto, nosso avô. Foi o fim de semana em que eu mais chorei na minha vida. Nós três choramos muito, sem parar, um choro de emoção, não de tristeza. Porque o Lucílio, fisicamente, era igualzinho ao papai e, além disso, eles tinham gestos e posturas que eram exatamente as mesmas, inclusive aquele jeito de apoiar o braço atrás da cabeça, quando sentados. Ou seja, ali, na minha frente, eu simplesmente estava vendo uma antecipação de meu pai na velhice! Estudante de Medicina, eu devia ter uns 19 anos e fui dirigindo o carro na viagem a São Paulo. Compramos umas flores e subimos ao apartamento da Avenida Paulista. Foram dias muito agradáveis, a partir dos quais os dois passaram a conviver um bom tempo como amigos, o Lucílio inclusive chegando a vir comemorar seus 80 anos aqui no Rio, hospedado na casa do papai. Tudo ia muito bem, até sabermos que a Luciana tinha colocado uma empregada na casa dele, com ordens expressas de, quando meu pai ligasse, dizer que o dono da casa não queria atender. Situação que acabou provocando um mal-estar quando papai, recuperado da cirurgia de colocação de uma prótese na cabeça do fêmur e andando muito melhor, foi até São Paulo com o Cláudio Marzo. Era época do aniversário do papai e os dois comemoravam a data com o Lucílio, quando o Cláudio, talvez emocionado com a situação, perguntou por que ele não proporcionava a cirurgia da outra perna. Aparentemente, teria havido um mal-entendido quanto ao sentido da pergunta e ficou parecendo como se houvesse interesse do meu pai em torno de dinheiro ou coisa parecida. Imagina, logo ele, uma pessoa absolutamente desprendida quando o assunto era dinheiro! Isso tudo era reflexo do que estavam plantando a fim de provocar exatamente um desentendimento entre papai e o pai dele. Criada essa falsa impressão, que não tinha nada a ver com a própria essência da alma do meu pai, que nunca deu muita importância às questões monetárias, os dois ficaram muito chateados com a situação criada e houve o rompimento. Passados uns seis meses da morte do papai, o Lucílio me ligou dizendo que precisava conversar comigo sobre uma coisa muito séria. Fomos ouvi-lo, eu e meu irmão Felipe. Depois de nos contar a história da empregada, ouvimos ele dizer que havia descoberto ter sido enganado, ao passar tudo que tinha para a irmã de meu pai. E que estava arrependido, porque parte da herança era nossa. Chegou até a assinar alguns papéis, mas nós não quisemos discutir o caso na Justiça. Em vão, tentamos várias vezes falar com ela, por telefone, mas nunca fomos atendidos. Ela, assim como alguns outros membros da família, simplesmente optaram por um silencioso afastamento. Indício, quase confissão, de que alguma coisa estranha tinha acontecido. Então, segundo Geraldinho Carneiro, Bráulio teria tido uma crise de identidade. Raspou a barba, abdicando da plumagem e sofreu uma queda terrível no calçadão de Copacabana. Aliás, as quedas na vida dele foram sempre muito importantes, ele não caía à toa, caía por algum motivo. Quedas simbólicas, nunca acidentais. Com aqueles acontecimentos inesperados, Bráulio ficou meio perdido durante meses, meio doido, um doido civilizado, digamos. Naquela ocasião, ele ocupava um apartamento alugado de Dona Lili de Carvalho Marinho, no alto da Rua Marquês de São Vicente, uma região hoje relativamente degradada porque a favelinha meio simpática que havia ali virou um favelão sem a menor graça. Como o local era grande para um morador só, ele, apesar de nada solitário, dividia o espaço com Cláudio Marzo. De repente, aquela inesperada revelação de um segredo guardado durante anos, debaixo de 70 chaves. Começaram, então, as especulações sobre a maravilha que era ter descoberto esse pai recém-revelado, idoso, além de rico. Os dois acabaram indo até ele, levando como bagagem a esperança de que voltariam com, pelo menos, o financiamento de um tratamento médico que melhoraria as condições de vida do Bráulio. Pessoalmente, confesso, achava essa ideia meio cretina, embora o Bráulio estivesse com dificuldades financeiras, vivendo apenas com a renda de um apartamento em Copacabana. Cláudio Marzo recorda: Nós dois estávamos cheios de esperanças de que sairíamos de lá com a garantia de financiamento de outra cirurgia que o Bráulio tinha necessidade de se submeter. E não fomos bem recebidos. O velho já estava com um pé atrás, com relação a esse tipo de coisa. O resultado é que fiquei realmente muito impressionado, porque o Bráulio, que para mim era um homem enorme, um paizão, de repente, diante daquele senhor de cabelos brancos, estava me parecendo como se fosse uma criança indefesa. Ali tinha ficado claro que o que resultou a descoberta tardia de que um era filho do outro, decididamente não foi uma relação de amor. Inclusive eu tentei argumentar, reforçando a necessidade que havia com relação àquela cirurgia, mas não teve jeito, o velho apenas desconversou e ponto final. Não teve briga, propriamente dita, o que houve foi um grande desencanto, seguido de algumas reclamações, claro. Eu, evidentemente, fiquei triste com isso, porque o Bráulio foi uma pessoa muito importante na minha vida. Ele apareceu lá no hospital quando eu estava internado para operar meu joelho, depois de um acidente de automóvel. Eu estava sozinho, descasado, brigando com a TV Globo, e ele surgiu na minha frente perguntando para onde eu iria quando saísse dali. Até então eu estava num apart-hotel da Barra. ‘Então vem morar comigo’, ele disse. ’Tenho uma empregada já acostumada a cuidar de um aleijado, ela pode muito bem passar a cuidar de dois’! Gostei da ideia e, pouco depois, já tinha me mudado. Bráulio estava desempregado, logo depois eu também me vi na mesma situação. Com muita dificuldade, a gente dividia todas as despesas, assim como o salário da empregada. E tudo correu muito bem durante uns dois anos, até que ficamos absolutamente incomodados com a moça, quando soubemos que ela pagava o dízimo da igreja com o nosso minguado dinheirinho. Geraldinho acha o seguinte: que mais do que diante de um pai finalmente assumido, eles jamais esperavam estar frente a frente com uma pessoa absolutamente sovina, um Tio Patinhas em carne e osso, que reagiu muito mal a essa ideia. Caía então por terra toda a enorme esperança que o Bráulio depositara nessa situação rara da vida como ela é. Diante do fracasso dessa tentativa de aproximação, foi-lhe preciso reconstruir todo o seu panteão pessoal, inclusive em relação à figura da mãe, que ele tinha como uma heroína. Tinha ficado profundamente magoado com a grande decepção desse desfecho, numa confissão que repito agora, embora em segunda mão. Acredito até que tenha sido esse o motivo que o levou à tentativa de começar a escrever suas memórias, iniciativa que a morte logo interrompeu. * Havia um diário, entre os variados manuscritos pessoais, particulares, portanto não publicados, de Bráulio Pedroso. No primeiro dia de janeiro de 1987 ele deixava registrado: Fui dormir às 2h30. Acordei numa boa, sem a culpa e a ressaca de réveillons anteriores. Foi ótimo ter ficado sozinho. Fiz um pequeno balanço e vi que o melhor é liquidar os medos provenientes da vontade de eternidade que nos leva a superstições limitadoras da felicidade. Iniciei o ano com o ritual pagão da masturbação. Enquanto tiver libido estarei disposto a viver. Este ano (a metade) vou me dedicar à recuperação das minhas pernas e de minha liberdade perdida numa cama há 40 anos. Sei que é transitório o que estou pensando. Já sei que a imortalidade é insuportável. Morrer é bom, no hospital vi que era a melhor solução. A partir daí poderei ser feliz e acabar com as somatizações. Liguei pro Walmor e falei de minhas conclusões. Almocei no Antonio’s com Felipe e Laura, que voltam para SP à noite, de trem. No fim da tarde, João os levou até a casa de Marilda, que os deixaria na estação. Felipe é tão doce e Laura tão suave, sou agradecido ao bem que ela está lhe fazendo. Foi uma sorte. Voltei pra casa, li jornais de São Paulo, dei uma espiada na revista Isto É, e vi TV, inclusive um seriado babaca na TVS. Li cartas de Marilda, as últimas. Súbito, a tristeza dos amores e sonhos terminados. Nas minhas projeções amorosas, vi como a vida é uma grande ilusão de felicidade. O citado Felipe é um dos dois filhos do casal Marilda/Bráulio e que, alguns anos antes, tinha voltado a morar em São Paulo, onde havia nascido, em janeiro de 1967. Tudo começou quando, com 16 anos de idade, tive uma briga na casa da minha mãe e, praticamente expulso de lá, fui morar com meu pai, num apartamento da Rua Marquês de São Vicente. Foi uma experiência importante, rica, pois éramos quase como dois amigos. Ele levava uma vida de bon vivant e então no meu dia a dia podia acompanhar as festas, farras, saídas, namoros e conversas entre notáveis, uma rotina que de certa forma tinha perdido bem antes, por ocasião da separação deles, quando era um menino de cerca de 9 anos. No final de 1986, eu estava matriculado na PUC para estudar Filosofia e morava na casa de uma namorada, que iria se tornar mãe da minha filha Sofia, atualmente com 20 anos. Hoje tenho um filho de 12 anos, Pedro, de uma segunda união. Ao sair definitivamente das casas dos meus pais, me vi sem nenhum trabalho, sem profissão, sem dinheiro, sem nada. Estava em uma fase difícil, cheio de perguntas sem respostas e em busca de um projeto de vida. Curiosamente, não só meu pai, como minha mãe e, por tabela, meu padrasto, tinham dito que se eu tinha tanta certeza quanto à minha autonomia para viver, que a partir daquele momento estavam encerradas todas as facilidades e mesadas. Isso me motivou a correr atrás de trabalho com otimismo, partindo do raciocínio de que, com pais de histórias pessoais em profissões não convencionais, eu poderia estar automaticamente enquadrado num caminho semelhante. Como tinha certo domínio da Lei Rouanet, acabei prestando colaboração para uma produtora, sobre esse assunto, ao mesmo tempo em que, por indicação de um primo, conseguia uma vaga de free-lance na Editora Brasiliense, na área de marketing cultural. Vivendo uma mistura de euforia paulistana e nostalgia carioca na Vila Madalena, passei a visitar algumas empresas e empresários à caça de patrocínio. Acabei recebendo um convite para assumir a house agency, agência de publicidade interna, de uma empresa. Minha vida então mudou e hoje sou sócio e gestor de um grupo de empresas de São Paulo direcionadas para o mercado imobiliário nacional. Durante aquela fase, sempre que ia visitar meus pais no Rio, dividia-me entre as duas casas. Ele andava um pouco pessimista, desmotivado, sem o sucesso de antes e, talvez, sem dinheiro. Às vezes ficava preocupado com ele, quando em meio a algumas crises de carência explícita, me deixava um tanto embaraçado diante de seus amigos, ao me perguntar com a voz embriagada, se eu o amava e coisas desse tipo. Certamente não se tratava de um medo de não ser amado, mas talvez de uma necessidade de mostrar aos outros que os filhos o amavam. Quem sabe, uma mistura de vaidade com insegurança. Afinal, ele nunca foi um pai convencional. Nossas conversas sempre foram rotineiras, de cunho pessoal, histórias, troca de ideias, mas também inquietações. Os bilhetes, raros; as cartas, pouquíssimas. Vi meu pai chorar, mais de uma vez. Ele era muito emotivo, sensível. Um artista com a alma em estado de urgência. Lamentava-se pelo fim dos amores, pelos fracassos, por suas limitações físicas. Sem dramas, abria seu coração, não guardava mágoas. Muita intensidade em tudo. Isso, às vezes, me assustava, provocando-me uma sensação de responsabilidade invertida. Lembro que em alguns momentos da minha juventude, me senti mais responsável por ele do que, acho, ele por mim. Um sentimento ambíguo que causava orgulho e preocupação. Em compensação, nunca mais esqueci do dia em que lhe pedi conselhos sobre um trabalho para um jornal estudantil, que me valem até hoje: economizar palavras, buscar um estilo, expor os fatos com precisão, criar uma sequência narrativa e caprichar na descrição dos personagens. Escrever, reescrever e retrabalhar o texto, sempre”. Em 4 de janeiro daquele mesmo ano de 1987, um domingo, Bráulio escrevia ainda no diário sobre o aniversário de seu outro filho, João Manoel. Ele está fazendo 21 anos! João é muito delicado, comprou uísque e vinhos com seu dinheiro. Espero que venha um bando de amigos. Ele está fazendo o maior sucesso com as mulheres. Comprei-lhe flores. Ele saiu para almoçar com Marilda e família, eu almocei com Atílio e uma amiga dele de Brasília, que tem 24 anos, embora pareça mais. Tem os olhos da Bette Davis. Pela transparência da blusa vi os seus seios. Lindos! Fiquei de telefonar amanhã para ela, que se mostrou muito receptiva. Nada que lhe desmentisse o mapa astrológico, estabelecido pouco tempo depois, em 7 de março de 1987, com segredos e contradições, nos seguintes termos: Posições planetárias no dia e hora do nascimento, 30 de abril de 1931, às 0:30 AM: sol em 8.51 graus de Touro, Lua em 10.42 graus de Libra. Signo solar Touro, signo ascendente Aquário. Essa combinação provoca uma natureza às vezes contraditória, por um lado grande necessidade de liberdade e, por outro, desejo de segurança e estabilidade. Mentalidade progressista, vive de olho no futuro e sonhando com um mundo mais justo e equilibrado. Natureza ponderada e perseverante, quando canaliza suas energias o faz de corpo e alma. Um lado racional e intelectual, mas capaz de grandes gestos sentimentais e afetivos, torna a pessoa cativante, simpática e sedutora. Quando nasceu, a Lua estava em Libra, o signo do amor, do equilíbrio e da beleza. Natureza sentimental, sensível e receptiva por excelência. Instintivamente, tem sentimentos de amor por todos os que estão à sua volta. Seu temperamento é cortês, simpático e agradável. Grande charme natural, caráter gentil e conciliatório. É obstinado, disciplinado e trabalhador. Natureza conquistadora. Sucesso junto ao sexo oposto. Geraldo Carneiro completa o quadro, traçando um informal mapa astral paralelo de Bráulio Pedroso. Do ponto de vista do afeto, uma pessoa extraordinária, de uma sinceridade espantosa, incapaz de dissimular, embora habilitado a criar grandes personagens dissimuladores. Por exemplo, o primeiro personagem dele que fez sucesso era um dissimulador total, um impostor. A figura desse ser sem identidade, ou de falsa identidade, devia estar presente nele desde a infância. Seria interessante examinar como é que esse elemento se torna fundamental em quase tudo que ele escreveu, no que ele pensou e como é que esse lastro infantil é importante na sua identidade de escritor, na sua visão de mundo, na sua grande ironia. Bráulio chegou mesmo a tecer uma espécie de tese sobre o assunto, nos seguintes termos: Passei anos evitando ver nos espelhos e nos vidros de vitrinas, o aleijão que sou na realidade. Por me saber assim, há muito tempo, quando ainda me iniciava como crítico literário e supondo-me importante, numa rápida apreciação sobre a obra de Machado de Assis, dizia que ele entendia de mulheres não porque as tivesse tido, já que se limitava a uma trajetória de marido fiel e raro amante, mas por ter sido mulato e encontrado nelas pessoas tão subjugadas quanto ele, disciplinadas na subserviência e na dissimulação, para sobreviverem. Sabia das mulheres não por conhecê-las, mas por sabê-las tão frágeis e vulneráveis como ele, restando-lhes como arma a habilidade de saber se defender na ambiguidade. Ninguém prestou atenção ao que eu disse sem qualquer explicação para aquele mulato que tanto entendia de mulheres, sem as ter. E se eu disse isso foi porque eu sou como ele, tendo de concorrer com os outros em condições desiguais e me colocando na pista de competição com as artimanhas naturais dos que não podem e, numa ânsia louca de afirmação, para me enganar, elaborei-me, sabendo ser interessante na vitória de mulheres bonitas. Durante muitos anos procurei-as, tentando esconder o aleijão. Porque, em nossa sociedade, a conquista da mulher bonita é um prêmio de normalidade. Até que chegou o momento de dar um basta, de poder me encarar tal como eu sou: a fuga da mulatice do velho Machado, com minhas dificuldades cotidianas de vestir uma meia ou de ir à praia arriscando queimar os pés na areia, já que não posso transpor em saltos nem sequer pequenas distâncias. Queriame real. E minha realidade não devia mais ter qualquer sonho burguês de poder, nenhuma conquista exibida para os outros, ela deveria ser meu encontro comigo mesmo, antes de mais nada. Daí a vontade de me falar, de me amar, numa troca de palavras com a máquina de escrever. Tinha de entender que minha vida precisava ser um silêncio quebrado por palavras que falassem de meus sonhos e de minha vontade de saltitar pelas ruas, pela vida afora. Eu não era nem gesto, nem tampouco conquista, eu era um momento parado, procurando falar de esperanças e superar imobilidades, na proposta de muito movimento para os outros. Então eu era um tempo observando os outros tempos, as outras imobilidades, maiores e mais terríveis do que a minha porque imobilidades elegidas como desculpas para uma morte em vida. Bráulio era um espectador das imobilidades alheias. Ele e Geraldo tiveram muitas afinidades, mas a maior de todas era a profissional. Escreveram uma peça em parceria chamada Lola Moreno, comédia musical em dois atos, com a colaboração do maestro John Neschling, que teve uma segunda versão, mas no original acontecia com a entrada em cena de quatro mulheres joviais, muito pintadas, caricatas, vestindo roupas exuberantes e que trocavam acenos sensuais de cumplicidade com o público até que, em tom professoral, uma delas apontava para a plateia e dizia: Eu não disse que eles vinham? Pouco a pouco, a música que precedia sua entrada assumia o primeiro plano e um arpejo teatral determinava o início do prólogo cantado. Marieta: ‘Por mais que algumas se queixem/ da vida suada e dura/ eu lhes afirmo, meninas/ a profissão é segura/ e mesmo nos tempos negros/ nós conseguimos manter-nos/ indiferentes às crises/ e à falência dos governos/ então qual é o segredo do sucesso milenar/ o que é que nos garante/ a certeza de agradar? Mulher 1: Uma boa gargalhada à toa/ pega o cidadão pelo pé/ uma piada qualquer/ faz o sujeito delirar/ ele perde o siso, quase morre/ fica tonto quase a ponto de chorar/ e toma um porre de riso/ quá-quá-quá. Mulher 2: A gargalhada só funciona pra otário/ mas de repente chega um tipo diferente/ a gente apela pro seu senso crítico/ e o tipo pensa que virou político/ Essa é mais velha do que o conto do vigário/ o malandrinho fica todo crente/ cai direitinho na encenação/ que ilusão/ pensa que é dono da situação. Mulher 3: Eu já prefiro lhes dar emoção/ uma aventura, uma história vulgar/ alguma coisa que os faça sonhar/ porque não há quem não ame sonhar’. Marieta outra vez: ‘Todas vocês têm razão/ temos que manter a classe/ e ai de quem lhes negasse/ humor, poder, emoção/ e mais devemos lembrar/ para sempre trazer de cor/ nossa verdade maior:/ o importante é fa-tu-rar!’ Depois, Geraldo colaborou com ele numa minissérie da TV Globo chamada Feliz Aniversário, antes de outra, em parceria, para a TV Manchete intitulada Tudo em Cima. O curioso deste trabalho é que eu queria escrever sobre o cirurgiãoplástico Hosmany Ramos e o Bráulio preferia abordar o caso Baumgarten, então nós fundimos as duas ideias. E nasceu aquela história estrelada pela Renata Sorrah e dirigida pelo Ari Coslov, com 25 capítulos. Geraldo diz que eles tinham capacidade de simbiose. Eu escrevi rapidamente a sinopse, a Manchete adorou e foi a primeira coisa que o Bráulio fez fora da Globo, que tratou de se defender exibindo o filme E o Vento Levou dividido em duas partes, durante duas noites seguidas e, realmente, nossa audiência foi menor do que o esperado. Ainda na Manchete fizemos depois um programa infantojuvenil chamado Tamanho Família, com a colaboração do Mauro Rasi, Vicente Pereira, Leopoldo Serran, mais Miguel Falabella. Enfim, nós dois trabalhamos, vivemos, partilhamos emoções, sem que jamais houvesse uma sombra, uma restrição, um ao outro, nada. Uma história de afeto quase de ficção. Uma conjugação, uma comunhão verdadeira. Às vezes passávamos dois meses trabalhando em Petrópolis, na casa da Márcia Osório, namorada dele, outro mês na casa da Elisa Byington, que era minha namorada. Quando nasceu meu primeiro filho, Joaquim, eu estava muito pobre e o Bráulio morava sozinho ali na Barra, pois ele ofereceu a casa pra gente passar o primeiro mês e o João Manoel, filho dele, tornou-se padrinho da criança. Enfim, nosso convívio, além de boêmio e mundano, era familiar também. Nós tínhamos alegrias em todos os setores, todas elas conjugadas. * Nesse vai e vem e volta de Bráulio Pedroso entre a TV e a ribalta, houve ainda uma trilogia fálica. A Fula do Bucalão, peça nunca encenada, em dois atos, com seis personagens, num cenário de apenas uma escadaria no centro do palco que começava com Bucalão deitado, nu, coberto com um lençol. Uma mosca o persegue. A cada aumento do zumbido intermitente, ele se vira de um lado para outro. Não aguentando mais, começa a caçar a mosca com palmadas. Na irritação não se dá conta, mas faz junto com a mosca uma melodia ritmada de zumbidos e plaft-plafts. Até que há um grande plaft! Com nojo, Bucalão limpa a mão no lençol e fala: Essa mosca estava me enchendo. Mas, também, sem mosca o que é de meu quarto? O que fazer deste vazio que começa na boca do estômago e acaba no tampo dos miolos? Um vazio tão pesado que me joga nesta cama o dia inteiro. Viro e me reviro, invento prazeres roçando a perna no lençol, quando na verdade eu devia estar procurando uma mulher de tipo diferente. É isto! Eu vou procurar uma mulher de tipo diferente! Mas que mulher? Uma baixalta? Ou uma magrorda? Talvez uma bundalta ou quem sabe uma peitobaixa. Taí, me coloquei umas dúvidas altamente interessantes, dúvidas que poderão encher o resto do meu dia. Vejamos. Deito-me aqui e começo o teste, um tênue lençol sobre o meu pênis, o olhar na direção do próprio. E agora, concentre-se Bucalão, concentre-se na baixalta. Ou na magrorda? Ah, essa dúvida é maravilhosa, me toma um tempinho, penso que o melhor é pensar na bundalta. Ou, ou, ou, na peitobaixa? Súbito, o lençol se suspende... Eu tenho a impressão de que alguém só é um grande escritor quando rompe com algumas re-gras estabelecidas em sua época. A medida dos que rompem, varia, há os que rompem num nível modesto, mas que é importante durante algum tempo, e há os que estão rompendo até hoje, como Shakespeare. Entretanto, para escrever uma peça como essa em que botei um homem nu no palco, só fui capaz disso porque o teatro moderno está cansado de jogar gente sem roupa em cena. Se eu tivesse feito isso antes dos outros, aí, sim, seria um lance além do meu tempo. Quer dizer, eu só fui capaz de propor aquilo que meu tempo já tinha proposto. Ou seja, algumas ideias nossas nada mais são do que repetições de coisas já ditas e discutidas. Pois esse trabalho me foi completamente interditado e isso, essa violência, passou despercebida porque não sou gigolô da interdição. E eu nem era o primeiro a escrever uma história em que se personaliza o falo. Em Nicolau, outra peça da minha trilogia, cuja estreia aconteceu em 5 de abril de 1984, no Teatro Nelson Rodrigues, com Nina de Pádua, Carlos Augusto Strazzer, Ítalo Rossi, Susana Faini, Duse Naccarati e Guida Vianna, o original não era o tema, mas a maneira pela qual ele era expressado. E não havia gratuidade ou grosseria de qualquer espécie em seu conteúdo, até porque se tratava de uma comédia de ideias, onde há frases como, por exemplo, ‘não é justo negar ao ser humano a possibilidade luminosa da sombra... ninguém é um único tormento... quero a multiplicidade, ainda que ela seja um rosário de dolorosos enigmas... a loucura é o apogeu da soberba, não presta contas à sociedade, planta-se no infinito, autossuficiente como Deus... corrigindo a covarde esconotação da Bíblia, Abel era uma mulher, a Bel, fazendo com que Caim sobejasse de razões ao cometer o fratricídio’. Eu desisti de falar metaforicamente sobre um tema que está na cabeça de todo mundo. Chega de intermediários. Se fosse me deter em psicologismos, a peça seria um prato cheio, mas eu apenas discuto a castração, sem qualquer elaboração realista. Como o Godot de Becket, Nicolau é o protagonista ausente, o catalisador da ação, o elemento modificador que vive na obsessão dos personagens e na projeção imaginativa do espectador. Tendo por tema o mito fálico, a peça procura o homem ancestral no homem contemporâneo. As relações sociais, políticas e amorosas emergem dos elementos primordiais do comportamento humano: o medo e o desejo. Lidando, pois, com arquétipos e valores estruturais da alma humana, Nicolau não era uma comédia de costumes, como possa parecer, fundamentalmente era uma peça psicanalítica, onde o personagem Pedro Gogol, interpretado por Carlos Augusto Strazzer, chegava à conclusão, durante a análise, que o misticismo era biológico e que a impotência era santa. Por sua vez, o doutor Langue, feito por Ítalo Rossi, diz que atrás de todo analista existe sempre a figura da mãe. No fundo, Nicolau é também um ritual pagão, como na Antiguidade eram os rituais da comédia grega, que deram origem ao teatro. Na noite de 6 para 7 de fevereiro de 1984, depois do primeiro ensaio de Nicolau, Bráulio teve um sonho que relatou, escrito à mão, na última página do script da peça. Num sonho anterior, eu estava numa pequena cidade ameaçada por um ataque de índios de filme de Hollywood. Acordei achando que era alguma coisa relacionada com a peça. Mas, no sonho de ontem, eu estava numa caravela. Era noite. Todos, que eu não sabia quem eram, dormiam. Acordados, só eu e minha mãe, atentos aos cânticos guerreiros dos índios. Ela olhava por uma fresta da janela, dando-me coragem de olhar também. Vejo ao longe os barcos dos índios. Em princípio, ficar parado na margem do lago parecia seguro, mas sinto que eles vão nos atacar. O melhor é zarpar. E o nosso veleiro parte sem que ninguém ordene. Os barcos dos índios passam a nos perseguir e na fuga nosso barco sai da lagoa andando, apoiado em rodas de madeira como de um carrinho de criança. É movido pelo vento. Minha mãe sumiu. Sou o único atento, a tripulação do barco não dá sinais de vida. De repente, numa ladeira, um grupo de quatro homens. Apesar de trajarem roupas atuais, percebo que são piratas. Um deles detém o barco, que para no meio da ladeira. Os índios se aproximam. Salto da embarcação, empunho uma espada para amedrontá-los e berro: ‘Parem com isso que eu sou um bandido!’ Ele, por me achar bisonho, decide me ajudar e os seus companheiros empurram o barco ladeira acima. No topo diviso um longo trecho em declive. O barco irá correr, deslizar. Estamos salvos dos índios. E, ao acordar, tenho novamente a sensação de que a ameaça dos índios está relacionada com a peça. Nos dois sonhos, em nenhum momento houve ameaça apavorante. No segundo sonho a única mulher que aparece é minha mãe, no entanto, lembro-me vagamente de outras mulheres. Freud talvez explicasse. O médico-psicanalista Luiz Alberto Py não explicou, mas escreveu o seguinte, no programa da peça: Uma das marcas de nossa condição humana é que vivemos sob a sombra sempre presente do medo da perda: perda do amor e da admiração que nos dedicam, perda do poder, do dinheiro, da saúde, do emprego, perda, enfim, de tudo o que conquistamos pela vida afora, principalmente o medo da grande perda, definitiva, a morte. Nicolau me evocou muitas lembranças. Eis uma: certa vez, Bob Dylan, genial menestrel dos anos 1960, disse que não escreveu nenhuma de suas canções, elas fluíram através dele. Ele era um canal. Creio que o artista criador é uma antena que capta o movimento cultural em seu momento e, com sua arte, antecipa a cultura. Minha impressão é de que a mensagem básica da peça é a recriação das metáforas e símbolos em mais íntimo contato com o real. O momento em que o psicanalista sente o trabalho profícuo é quando consegue atravessar a metáfora, o símbolo, e lida com o fato psíquico, a verdade mental. É esta a direção que, a meu ver, a peça aponta. Vencidas as resistências, nos encontramos frente a frente com a realidade e aí está: Nicolau, o bem e o mal; Nicolau, bom e mau; Nicolau, animal espiritual, etcétera e tal. PS: além de ser o falo em si, Nicolau é do caralho! Rotulada como uma peça de câmara com quatro personagens, Alfredo, Don’Ana, Florinda e Corina, Dor de Amor completava a trilogia fálica de Bráulio Pedroso reunida em livro publicado em 1984 pela Editora Paz e Terra, quando Antonio Candido, Celso Furtado, Fernando Gasparian e Fernando Henrique Cardoso faziam parte do Conselho Editorial. Segundo Camilla Amado, essa trilogia trazia o tédio de toda uma sociedade como pano de fundo. O conflito se acentua em Dor de Amor, desenvolvendo a noção de incesto já introduzida em A Fula do Bucalão. A inveja, que já se pronunciara em Bucalão, res-surge em Nicolau. Bráulio atravessa a psicanálise com ironia. Arrisca a vida e a arte sem se prender a nenhuma falsa segurança de atitudes. Bráulio, o poeta despedaçado que aceita em si próprio a pecha feminina: ‘Quando se pula de cama em cama acaba-se no chão, de corpo e alma’. Ele é, sobretudo, um artista, um homem que vê antes de mais nada a mulher como ela sonha ser vista. Como amiga. Em novembro de 1988, entravam em cena os três personagens de Morre um Coração Vulgar, no palco do Teatro Glória. Júlio – Estou cansado de explicar para a empregada que os castiçais precisam ficar na mesma distância das pontas da mesa. Eu ainda mato essa mulher, um dia! Amanda – E por que não mata? Júlio – Não quero ter problema de consciência. Amanda – Até parece... Júlio – Você entendeu o óbvio, não é? Só que não é nada disso. Tão simples achar que eu teria problema de consciência se matasse a empregada... as palavras nem sempre são o que elas aparentam. Amanda – Não diga ... Júlio – Quer prestar atenção? Amanda – Estou prestando. Júlio – Você nunca me deixa terminar um pen samento... Amanda – Está bem. Matou a empregada. Júlio – Não matei. Amanda – Ah, é, não matou ... Júlio – Não matei porque preciso dela viva como ponto de comparação. A estupidez dela me irrita. Mas é também o que me conforta. Se ela percebesse o sentido da colocação proporcional dos castiçais, não seria uma empregada. Daí que na ordem natural do mundo, a posição dela é esfregando o chão, de quatro. Enquanto que a minha posição... Amanda – ... é não ter problema de consciência. Júlio – Exatamente. Amanda – Toda essa conversa foi para isso? Júlio – Foi. Amanda – Você está com problemas sociais? Júlio – Pessoais. Foi só um exercício de inteligência. Uma preparação. Uma concessão elegante à vulgaridade dos nossos desejos ... No programa da peça, o também autor Mauro Rasi escreveu: Bráulio ajudou o país da chanchada a rir de sua falta de seriedade e, sob esse aspecto, tudo o que a tevê apresenta hoje de inovador teve origem nele. Dono de um intelecto poderoso, no meu círculo de amigos, onde convivem vários autores de minha geração, ele é considerado um rei generoso, paternal, bonachão, solidário, leal, enfim, um rei em quem confiaríamos de bom grado a chefia de um pacto social de verdade. * No dia primeiro de janeiro de 1989, Bráulio tinha escrito no diário: Li na Folha que o Sílvio Santos autorizou o estudo da viabilização de uma novela... Yara Amaral morreu no criminoso naufrágio do Bateau Mouche. Ela foi importante em minha carreira, devo-lhe A Conspiração e O Fardão. Saudades de quando a vi, jovem, representando no Teatro de Arena de São Paulo... Gésio Amadeu foi a última pessoa que me telefonou. Passou o ano sozinho, para poder refletir. Bom amigo, não me esquece ... Vi tevê, cozinhei, lavei pratos, vi tevê e dormi. Nos dias seguintes daquele começo de ano ele continuava registrando no diário: “Soube que o Tarso saiu da UTI e já estava bebendo chope de novo... Clemente fez massagem em mim, estou completamente contraído e tenso... Fui à ceia do Dia de Reis na casa da Dina Sfat e fiquei conversando com a Joana Fomm... Comecei a trabalhar na sinopse de Vinte Anos Depois. Enfim, um dia útil. Eu que andava tão magoado com o resultado de meus textos, surpreendi-me ao sentir prazer em escrever ... Renato Sérgio esteve em casa, à noite. Está ficando gordo, ele que sempre foi magrinho. Vai fazer 60 anos! ... A TV Manchete veio nos entrevistar, a mim e ao Cláudio Marzo, sobre a falta de dignidade nacional. Fomos veementes. Espero que eles não se acovardem e reproduzam o melhor de nossas declarações ... Marcos Vasconcelos morreu de câncer na laringe. As principais línguas do Antonio’s já se foram. É a vida passando... Felipe começou no novo emprego. Que maravilha senti-lo num belo início de vida. Com 22 anos já deve estar sonhando o que eu sonhava no Estadão, que, aliás, deu nota grande e simpática a propósito de As Hienas, que um grupo está montando no Teatro Bela Vista ... Sonhei com Gentil Pedroso. Terminei de ler Memórias, Sonho e Reflexões, de Jung. Notável!... Ciúme, concluí lendo Jung, é sentimento de posse. Está inserido no exercício do Poder... Recebo um telegrama. Penso logo em alguma cobrança, mas vejo escrito Beto Rockefeller. Era do México, querendo recomprar a novela. Pedi 35 mil dólares e duas passagens para uma semana lá. Claro que imediatamente pensei na cigana e acendi uma vela para agradecer-lhe ... Recado dela, após me ver no Jô Soares, em reprise: tudo vai melhorar para mim. Deus queira!” Um pai amoroso. Era o que revelava aquele diário, em 1990: Sofia recebeu-me com sorrisos e ficou em meu colo numa boa. Não nego que, agora sim, me sinto avô. Ela está linda, tem o jeito do Felipe e, modéstia à parte, lembra a minha foto de bebê. É incrível ver a nossa continuidade numa criancinha. Meus filhos e netos são maravilhosos! À noite comemos pizza e vimos parte de um filme do Spike Lee. Me despedi deles e fiquei muito emocionado com ela, sua carinha não me sai do pensamento, e do sentimento. Felipe foi bem nas provas da USP e deve vir na terça-feira para tratar dos papéis do Exército. Felipe volta a falar: Infelizmente papai não teve muito tempo para curtir o papel de avô. Com relação à Sofia, não só porque ele se foi quando ela era bem pequena, como também pela distância geográfica, pelo fato de não morarmos na mesma cidade. Entretanto, sempre que a viu, tratou-a com enorme carinho, delicadeza e emoção. Meu pai era um homem incrível. Muito diferente dos pais dos meus amigos. Adorava conversar, trocar ideias, ficar horas e horas falando, ouvindo, estimulando a nossa criatividade, minha e de meu irmão João Manoel. Era também uma espécie de enciclopédia ambulante. Tinha uma enorme biblioteca que sempre ocupou muito espaço nas nossas casas, inclusive uma coleção Delta-Larousse de capa dura, em vários volumes, que consultava quando precisava de alguma informação extra. Muita literatura, todos os autores clássicos, russos, franceses, ingleses e brasileiros, textos teóricos, livros sobre teatro, dramaturgia, Filosofia, História e política. Sempre que descobríamos algo novo pedíamos para ele mais informações porque, além dele conhecer os assuntos, nos deliciávamos com suas histórias cheias de detalhes e interpretações. Muita cultura, muita curiosidade e muita boemia, tudo junto na mesma pessoa. Pessoalmente, vivia entre fases de grande euforia e crises existenciais. Era um artista, sem dúvida alguma. Não que eu soubesse muito bem o que significava ter um pai artista. Minha vida até então se dividia entre a realidade da escola e a minha casa, onde eram frequentes, quase diárias, as visitas de amigos, atrizes, músicos, poetas, jornalistas, cineastas, burgueses e boêmios. Eu sabia das limitações físicas do meu pai, mas isso não chegava a me incomodar; na verdade, não pensava muito a respeito. Ele se machucava, pois faltava-lhe flexibilidade. Depois do banho e, por necessidade transformada em hábito, pedia nossa ajuda para calçar meias e cuecas. Nossa rotina domiciliar era bastante variada e muito divertida. Ele acordava relativamente tarde, tomava café preto com adoçante, biscoitos com queijo de minas e um infalível copo de suco de laranja. Lia e relia todos os jornais que houvesse por perto. Quando bem-humorado, era um tanto quanto sarcástico. Na minha infância, ele ainda casado com minha mãe, vivíamos todos em meio a festas intermináveis. Meus pais eram muito amorosos entre eles dois e com os filhos. Nossa casa no Leblon estava sempre aberta a visitas e as noites eram de bastante barulho. Músicas, conversas, risadas e muito, muito uísque. Como cada um tem a canção de ninar que lhe cabe, cheguei até a aprender a gostar do ruído das festas de adultos para embalar meu sono. O fato de ele ser um artista e casado com uma mulher forte e multimídia, resultava em novas amizades e abria-lhe muitas portas. Mas era à tarde que os amigos mais íntimos apareciam. Em tardes que invadiam noites, cansei de ouvir conversas deliciosamente loucas. Outro fato inesquecível para mim, durante o regime militar, era acompanhar conversas e desabafos sobre a situação do país. Embora meu pai tivesse deixado a militância muitos anos antes, jamais perdeu os velhos ideais socialistas. Nunca recebemos formação religiosa, éramos ateus, graças a Deus. Até que, quando eles se separaram, meu pai colocou seu domjuanismo em ação, o que, às vezes, me deixava meio incomodado, sem saber o motivo pelo qual ele valorizava tanto o sexo. Sempre quis que eu e meu irmão perdêssemos logo a virgindade. Sem pressão, mas criando facilidades, como na vez em que o pai de um amigo de meu irmão resolveu contratar umas raparigas para diversão dos meninos com uma noite que acabou sendo de exaltação, mas também de nervosismo. Foi na casa de meu pai, projetada pelo Zanine, no caminho do Joá, onde havia intermináveis disputas de vôlei na piscina e partidas infinitas de gamão. Meus amigos e os amigos dos meus irmãos ficavam rapidamente amigos do meu pai. Aos 19 anos dei uma guinada em minha vida, voltando para São Paulo, cidade onde eu tinha nascido. Ele e eu continuamos nos vendo e isso era sempre muito bom. Pena que ele tenha nos deixado daquela maneira tão estupidamente absurda. Dele ficou uma saudade imensa que só não é maior porque, de uma forma ou de outra, ele se faz sempre presente. Como agora. Francis Hime lembra de algumas das casas do Bráulio. Só não sou capaz de dizer em qual delas, certa noite, durante uma festinha certamente de muitas garrafas, ele, amigo carinhoso e divertido, escreveu lindos versos para uma melodia minha, uma valsa que se chama Tempo Breve e que até hoje permanece inédita. Nós varamos a madrugada cantando, cantando e cantando, empolgados que ficamos com a nova canção que nascia: ‘Ai, que pecado mais cruel e triste que você se inventa/ porque fazer da vida sempre a história de uma grande mágoa/ sem saber acreditar no tempo breve/ onde o silêncio guarda o grito amado de uma noite plena e eterna/ Ai, que aventura tão pequena e boba em que você se esconde, você se gasta/ como se a vida não fosse um jogo de primeira hora que se perde./ Ai, que amargura, que paixão errada / que verdade escura atrás da dor calada que me faz morrer e que me faz viver/ Ai, eu não posso mais/ Ai, eu não quero mais/ você é falsa, amor, você é fria, você não dá nada, não/ você é vazia/ e eu só sei que mesmo assim te peço/ volta, volta, volta, volta, volta, volta, volta amor/ Ai, que vontade de poder falar de tudo o que eu não sei/ Ai, se eu pudesse ser ainda o tempo breve/ Ai, se eu pudesse ser um gesto lento/ Ai, se eu pudesse ser um beijo quieto/ Ai, se eu não fosse apenas um adeus, triste adeus’. Uma pessoa atenta aos compromissos, era o que revelava o diário dele: Falei com Valentim no México. Já gravaram o primeiro capítulo do Beto. Me pagam O Rebu ainda este mês. Leramme frases de Unamuno para que eu escreva uma novela: A Razão é Inimiga da Vida... Roberto Farias ligou logo cedo me convidando para escrever o roteiro do próximo filme do Roberto Carlos. Ótimo. Talvez ganhe o dinheiro da operação ... Fui ao SBT, assinei o contrato, e voltei para o Rio, a Jacqueline Laurence estava no mesmo voo e, gentilmente, carregou minha mala. Acordei durante a noite gripado pelo frio de São Paulo. Com Denise Bandeira iniciamos a relação dos personagens e demos os seus nomes. Gostei. Faremos uma sinopse enxuta ... Fui ao banco e depois ao Py. Durante a última análise ele me sugeriu escrever sobre textos autobiográficos. Acordei com a ideia de misturar biografia com ficção, isso me será útil para quando eu escrever Os Mortos Vão Depressa, que pode sugerir um segundo volume, Os Mortos já não Morrem. Certamente estou à procura de algo que queira escrever... Geraldinho ficou até quase meia-noite e falamos de como dói escrever. Logo Cláudio chegou da gravação do Pantanal. É lindo ver o amor que há entre ele e o filho, Bento... A esmolinha não apareceu. Os baianos não mandaram a grana. Uns irresponsáveis, escrotos ... Trabalhei no esquema do primeiro capítulo. Aí Tatá ligou saudoso e chegou a mil por hora. Rimos bastante. Foi agradável ... Tenho visitado a Marília Kranz, que está com pneumonia. À noite vi Rio-Babilônia, uma merda-prima onde Denise Dumont se expõe gratuitamente. Dormi cedo. Tive palpitação. Talvez por ter visto a entrevista do Avancini na Hebe. Não sei se ele estava com medo de fracassos ou achando aquilo o maior saco. Ligado na saúde: Retirada de sangue às oito horas na Clínica S. Vicente. João foi comigo. Meu sangue é O positivo, o mesmo dele. Vou precisar de mais dois doadores. Só agora, quatro da tarde, me lembrei: faz um ano que fraturei a coluna... Grande Otelo saiu do CTI. Não é que ele, aos 74 anos, vai resistir ao infarto, ao edema pulmonar e à hemorragia gástrica? Maravilha, gênio e herói da raça. Esperançoso: Chegou o novo ano, com todas as promessas astrológicas. Que a sorte me proteja! Fatalista: Mais um câncer na família. Se bem que Tia Dita já está com 78 anos. O problema é que a família vai indo embora e cada um que vai deixa mais próxima a nossa ida. E em 30 de abril de 1990: Lembraram de mim, Mônica, Katya, Egberto, os filhos, Brenda, Cristiana, Renata, João Carlos, Marlene, Luciana, Py, Geraldinho, Alicinha, Mauzi e Alberto Gentil. João veio no fim da tarde e ficou até as nove horas da noite. Depois chegaram Mônica e Cristiana. Fiquei de porre, deixei as duas na sala. E fui me deitar, terminando assim os festejos dos meus 59 anos. Em 7 de julho: Avancini trouxe os contratos. Pareceram-me meio confusos.O ponto final das anotações do diário foi no dia 13 de agosto de 1990, uma segunda-feira, já perto do último dia de vida: A grana do SBT chegou. Terminei a relação dos personagens. * Dois dias depois, Cláudio Marzo acorda e vê que a luz do banheiro do quarto do Bráulio no apartamento que eles dividiam estava acesa. A porta, escancarada. Lá dentro, o corpo estendido no chão, quase nu, já frio. Imediatamente Marilda foi avisada, mas um dos primeiros a chegar foi Egberto Gismonti, provavelmente a última pessoa com quem Bráulio falou. Foi quem participou dos últimos momentos de vida do amigo. Na véspera, estivemos conversando na casa dele até umas 10 ou 11 da noite. Tinha acabado de entrar em minha casa, de volta, quando o telefone tocou. Era ele. Nosso papo continuou, mas, por algum motivo que não consigo localizar, ao contrário do que acontecia sempre, não demoramos muito tempo nos falando, todavia foi o suficiente para o Bráulio botar o ponto final na nossa conversa, coisa que ele gostava de fazer e acho até que custava a dormir se não fizesse isso. No amanhecer do dia seguinte, me ligaram lá pelas seis horas da manhã dando a notícia. Corri, imediatamente, para lá. Quem me abriu a porta, acho que foi a Núbia, me levou até o quarto dele. O Bráulio já tinha sido removido, do banheiro para a cama. Fiquei tão impactado, tão chocado, que tive uma forte tonteira e fui me sentar num sofá da sala, onde já estavam algumas pessoas. Me lembro das presenças do Antonio Pedro, do Geraldo Carneiro, do Walmor Chagas. Aliás, estarei repetindo aqui o que falei a partir do momento em que a Marilda chegou muito preocupada com uma série de coisas, inclusive porque tínhamos de conseguir um atestado de óbito, sabe como é, casa de artista, lá vem polícia, jornal impresso a sangue e tudo o mais. Em certo momento, não que isso tenha definido ou determinado alguma providência, eu disse de minha certeza da ausência de qualquer indício de drogas ou mesmo de suicídio. Até porque na noite anterior ele e eu tínhamos nos despedido às gargalhadas, de um jeito que se repetia sempre, um dizendo para o outro, então está ótimo, vamos dormir, até logo, não, desliga você, eu não, desliga você primeiro, enfim, uma palhaçada bem-humorada que se repetia quase todos os dias entre dois velhos amigos, mais parecendo dois namorados, ou duas bichas velhas solitárias. Pairava sempre um clima de alegria e profunda amizade nisso. Portanto, o que tinha acontecido depois da nossa conversa da véspera, só podia ter sido um acidente. O meu raciocínio foi esse e muita gente me ouviu. Havia entre nós todos uma indecisão generalizada, de como resolver aquela situação. Ao mesmo tempo, talvez em consequência do medo de encarar a morte de alguém tão importante para nós, começou uma longa falação sobre ele, sobre a vida e a obra dele. Estava difícil de aceitar o que havia ocorrido. Cada um que chegava me dava a impressão de que iria falar ou fazer alguma coisa prática, mas nada acontecia. Alguém falou no atestado de óbito, que poderia ser feito pelo filho João Manoel, mas ele era apenas um estudante de Medicina e ainda não podia assinar nada. O Bráulio morto e eu com uma tristeza estranha, não tendo como escapar da alegria que ele causou na minha vida, sensações que ele carimbou como tatuagem em mim e foram determinantes para minha compreensão das coisas. Eu só consigo me lembrar dele de uma forma extremamente positiva. Só. Será que nunca aconteceu coisas que pudessem me aborrecer, muito? Se essa pergunta houvesse, eu responderia com aquilo que me é mais caro na vida: a música. Eu não me lembro dos problemas que evidentemente tive na minha carreira. Não tenho razão para cultivá-los. E, se as coisas ruins ficaram para trás, se eu consegui transformá-las em coisas positivas, a causa da ruindade já terminou, não devo reanimá-la. Pra mim, o Bráulio está no patamar das coisas bacanas, favoráveis, positivas. E, seja por uma questão puramente egoísta, porque ele me orientou demais, me ajudou muito, seja por minha admiração ao sujeito mais contraditório que conheci, seja pela capacidade de um portador de complicados problemas físicos como ele não se minimizar mesmo diante das mulheres mais lindas que o Rio de Janeiro já teve, enfim, por uma série de coisas, seja por mil e um motivos, tratando-se de Bráulio Pedroso, eu só tenho razões para ter alegria. E, mesmo se houvesse um aparelho ‘medidor de relacionamento’, não me interessaria saber qual era o grau de qualidade ou quantidade da minha admiração por ele. Muito amigo ou pouco amigo, isso não tem importância! Aqui, cabe a mim confessar o que eu achava dele. Se a relação da gente envolveu uma, duas ou três peças, poucas ou muitas músicas e sei lá quantos projetos, se namoramos as mesmas mulheres ou não, nada disso interessa, porque tudo foi tijolo na construção da nossa amizade. Bráulio já se foi há 20 anos e minha admiração por ele acho que é ainda maior do que sempre foi. E isso é de lascar de bacana! Pois estava eu envolto nessas recordações, quando a Cristiana Bernardes, que morava no mesmo prédio, e a Mônica Silveira, que até então estavam lá na portaria, subiram, seguraram a minha mão e disseram que bom que eu estava me ocupando daquela história toda. Minha resposta foi que, na verdade, não estava enfrentando aquela situação melhor do que ninguém, acontece que pouco tempo antes minha mãe havia falecido e quem a velou fui eu. Cheguei de noite ao hospital, em Friburgo, e fiquei sozinho com ela até a manhã seguinte. E, depois do sepultamento, não saí de sua casa durante 10 dias, porque naquele momento eu tinha de fazer ali um exercício de aproximação com ela. Eu simplesmente não podia ir embora. Porque, por uma razão besta qualquer, meu irmão não tinha ido ao enterro, então me senti mais responsável ainda por aquilo. Um pouco mais depois morre o Bráulio e eu ainda estava com uma sensação viva de velação, de capacidade de estar profundamente presente nesse tipo de situação. Não que eu gostasse disso, pelo contrário. Inclusive, comentei isso com elas, e mais, que o Cláudio Marzo não fez parte daquelas conversas finais entre o Bráulio e eu, na véspera. Aliás, eu não trafegava naquele apartamento, uma das primeiras vezes na vida que entrei no quarto do Bráulio foi para vê-lo morto em cima da cama. Meu negócio era a sala e a cozinha, onde sempre tinha uma mandioquinha frita que eu pegava umas dez, punha num pratinho e levava para comer na sala. No resto da casa, eu não transitava. Na manhã do dia seguinte, 16 de agosto de 1990, o caderno Folha Ilustrada, da Folha de S. Paulo, publicava este texto de Luís Antonio Giron: Bráulio Pedroso inventou a telenovela brasileira contemporânea. Com ele, chegaram não apenas o humor e os gestos cotidianos, mas, sobretudo, a estrutura fragmentária e veloz da edição televisiva. Vindo do teatro, ele trouxe uma linguagem de vanguarda. A fala deixava de ser ruído e ganhava status de arcabouço das ações. Depois do Beto não parou, pelo contrário, avançou ainda mais no grande laboratório de roteiros. O Bofe, a mais atrevida de todas as novelas, inaugurou a fantasia, a paródia e a hiperfragmentação na nossa televisão. Ele ensinou mais, muito mais, do que o conformista ecoerotismo em vigor naquela pequena tela. A irmã Luciana não veio para o enterro. Dele eu guardei lembranças muito boas. Tinha sido um irmão maravilhoso. O filho Felipe soube daquela triste notícia pouco antes de sair para o trabalho. Fiquei anestesiado, em estado de choque. Precisava ir para o Rio, mas não sabia como fazer. Quando consegui me concentrar, já estava vendo o Pão de Açúcar do alto. Do aeroporto segui rumo aos preparativos do sepultamento no cemitério São João Batista. Ainda estava meio confuso, com sentimentos completamente contraditórios, de pena, de dor, de raiva e de saudade, emoções que foram sendo vividas loucamente ao longo daquela tarde, noite e manhã seguinte. No velório, familiares, celebridades, amigos, uma imensa confusão. Era a noite de entrega do Prêmio Sharp, então Beth Faria e Marcos Paulo apareceram de madrugada, ela de longo, ele de black-tie. Uma cena surreal, Fellini fazendo falta. No dia seguinte, na hora do sepultamento, bagunça geral. Câmeras de TV e flashes de fotógrafos tiravam a nossa intimidade. Não faltaram candidatos para segurar as alças do caixão. Parecia um variety show com roteiro e tudo, personagens, personalidades, viúvas, examantes, amigos, boêmios e bêbados. Prantos. Esse momento me causou muito desconforto, era como se o preço de ter um pai público fosse cobrado de uma só vez. Não conseguindo sepultá-lo em clima familiar de maior intimidade, participamos de uma espécie de espetáculo de variedades. Se, por um lado, não consegui me concentrar naquela difícil situação, por outro, passei a entender melhor a dimensão do homem, do artista, do polêmico, mas quase sempre muito admirado e amado pai. João Manoel esteve com ele na véspera. Pouco antes tinha sido Dia dos Pais, nós havíamos trocado presentes, papai estava superfeliz. Desde uns dois ou três meses antes da morte, ele estava muito bem, entrando em mais um ciclo de criatividade, mudando de canal e de tema, começando a trabalhar no projeto de uma nova novela sobre o mundo country brasileiro. De certa forma, isso até amenizou um pouco a nossa grande tristeza, não que a gente tivesse aceitado aquela situação, mas, pelo me-nos para mim, foi mais confortável saber que aquilo acontecia numa fase boa da vida dele, que foi uma pessoa de muita generosidade, acima de tudo. Dono de uma inteligência rara e uma cultura absurda, não tinha nem um só sinal de arrogância. Uma conversa adorável, o que mais a gente gostava de fazer era ficar tardes inteiras ouvindo ele falar. Recebíamos conhecimentos de uma forma absolutamente tranquila, sem doutrinação, com ele aprendemos muita coisa. Além disso, era muito amigo dos filhos. Carinhoso, a gente via televisão de mãos dadas. Um pai muito bom que, embora tendo morrido precocemente, deixou uma herança que não tem preço: de caráter. Espírito altamente empreendedor, não é por acaso que nós, os filhos dele, sempre inventamos a vida. Um legado de sangue, talvez. Eu fiquei tão impressionado com aquele encontro chocante do papai com o pai dele que, diante de tanta semelhança física, fui fazer doutorado em Biologia Molecular para entender um pouquinho mais de DNA. Muita coisa daquilo que a gente é, não é porque a gente queira, mas porque está predeterminado. Nós somos, todos, o resultado de uma interação gene-ambiente. De um modo geral, somos uma mistura de traços maternos e paternos e, embora se comparados com a semelhança do papai com o pai dele nós dois estejamos a quilômetros de distância de sermos parecidos com o nosso, se alguém pegar fotografias dele na minha idade, verá que temos muitos traços em comum. Engraçado que na época em que apareceu aquele filho adulterino do Jango Goulart, ambos parecidíssimos, papai até brincava com sua própria realidade: ‘Está vendo? Todo filho bastardo é a cara do pai!’ O mais curioso, porém, é que ao lado de qualquer semelhança, qualquer paralelismo que possa haver entre nosso pai e nós, acontece o seguinte: ele tinha um método característico de organização e distribuição dos personagens através de gráficos em folhas grandes de cartolina nas quais desenhava os símbolos dos participantes dos núcleos da história, possibilitando-lhe uma avaliação do andamento da trama o tempo todo. Esse método pessoal de criação fazia com que tudo que ele fazia parecesse muito simples. Pois a mim parece que essa, além do caráter, foi a maior herança que ele deixou para a gente. Vejo no meu trabalho e percebo no do Felipe, uma certa capacidade de pegar coisas que aparentemente não se conectam e juntar num contexto como um todo. Quanto a mim, isso acabou refletindo em minha profissão, por exemplo, paralelamente à clínica geral, fiz cardiologia, fiz biologia molecular, virei superintendente do Sistema Único de Saúde (SUS) e há dois anos estou desenvolvendo um sistema eletrônico, via internet, na tentativa de solucionar uma porção de problemas dessa área. Essa pluralidade, vamos chamar assim, nos foi passada por papai, que sempre pensou, disse, testou e mostrou coisas diferentes. Atitude que de alguma forma resulta em uma qualidade de quem a tem, porque quase ninguém faz isso, a maioria prefere se dedicar a uma área só, específica, e vira especialista de um determinado assunto, o que também tem seu valor, mas pode dificultar a plenitude de uma atividade. Papai semeou em nós essa característica pessoal dele. Se foi pela convivência ou pela genética, não se sabe, pessoalmente, acho que foi uma mistura disso. O que eu posso também dizer é que eu penso nele todos os dias. Ele continua presente e me ajudando a tomar decisões. Lembro muito dele, em tudo que faço em minha vida. Minhas decisões têm muita influência dele, até hoje. Totalmente. Como se ele estivesse me ajudando a fazer. É uma sensação muito forte. Papai está morto fisicamente, mas a alma, digamos assim, não. Sonho muito com ele. E não tenho essa fantasia de que haja uma sombra hamletiana de Bráulio Pedroso dizendo o que tenho de fazer, não, meu pensamento é no sentido da permanente influência tão forte, tão importante, tão significativa, tão exemplar, que ele sempre exerceu na gente. Minha leitura disso não é religiosa, é pensando em termos de tempos paralelos, essa coisa que a física quântica tenta dizer. Talvez, se for, pode ser meio por aí. Uma pessoa vivendo em um tempo e a outra, em outro tempo. Como se as coisas estivessem ocorrendo mais em seu paralelismo de tempo e pudessem se conectar. Talvez. Quem sabe? * O amigo Egberto Gismonti não quer deixar de revelar uma cena fantástica, síntese absoluta do que foi esse homem invulgar. “Lembrei agora. Em outro endereço, também na Marquês de São Vicente, no meio da subida, em frente à PUC, num prédio em que havia uma entrada larga para carros, ao lado, ele morava no segundo bloco, se não estou enganado, no sexto ou oitavo andar. Um dia, estávamos nós, Bráulio, eu, e lá dentro, a Núbia, uma das governantas da casa da Marilda, dando uma ajuda doméstica a ele. De uma hora para outra, no meio de nossa conversa, começamos a ouvir uns estalos cuja origem não nos preocupou, até que sentimos um forte cheiro de queimado. Fomos até a grande janela lateral e vimos a casa velha, vizinha, em chamas, com labaredas subindo pelo telhado. Ficamos nós dois ali, hipnotizados com a cena apavorante, sem sequer pensar em tomar alguma providência, em chamar os bombeiros, nada. E eu, imobilizado com a reação dele, olhando calmamente para o fogo lá embaixo e começando a discorrer sobre a monumental fragilidade do ser humano, dizendo que não adiantava teimar nem insistir por coisa alguma no mundo, porque nada era permanente, nem eterno. Nada! Assim era esse cidadão altamente instigante chamado Bráulio Nuno de Almeida Pedroso, um mutante radical. Na verdade, sou uma espécie de autor proibido. Só que eu não vivo de ser vítima, porque acho que posar de prejudicado é um jeito muito fácil de esconder várias coisas. Concordo que não esteja dando o meu melhor e quando digo isso é porque os outros também não estão dando o seu melhor. Acontece que não sou nenhum gênio para fazer tudo sozinho, então preciso que o outro também esteja dando o seu melhor, para que eu fique motivado. Acho que uma das piores consequências da censura é nos colocar em níveis muito medíocres, cada um dando o que ela permite. Assim, a motivação que recebo ou que dou, fica pequena. Não sou um criador solitário, crio com a ajuda de tudo aquilo que está à minha volta. O mais triste é que se algum fato corta a minha possibilidade, corta a possibilidade dos outros e vice-versa. Na minha vida pessoal, uma das coisas que preservo desde pequeno é um sentido muito forte de juventude. Creio, aliás, que ser jovem não é uma questão de idade, porque o que define esse estágio da nossa vida é ter coragem, é não ter medos, é não ter receio de enfrentar as novidades. E como eu ainda me sinto capacitado a me aventurar, diante do meu arrebatamento frente a todas as coisas, acho que sou um jovem de quase meio século de vida. A velhice é uma aposentadoria. Acontece que, pelo tipo de sociedade a que estamos condenados, com as pessoas tomadas por um terrível medo de viver, de se arriscar, as aposentadorias chegam cada vez mais cedo. Na verdade, a ideia de juventude é muito vaga, entretanto não são os poucos aniversários que fazem alguém ser moço. Di Cavalcanti ainda era um garoto, quando morreu, aos 80, e não há ninguém mais menino do que Vinícius de Moraes. Assim como talvez não haja nada mais decrépito quanto um jovem executivo. E agora eu pergunto: com 46 anos, será que vou viver o suficiente para ser excitado por mim mesmo e pelos outros, a ponto de toda a juventude que tenho dentro de mim possa brotar para fora? Ou vou ter de ser simplesmente um autor bem comportado, aquele que a censura me permitiu ser? Terei eu uma vida livre, própria? Ou serei apenas a triste história de uma proibição? Bráulio Pedroso não foi uma triste história, muito pelo contrário. E, embora vetado de vez em quando, pelos mais variados motivos, também não foi a história de uma proibição. Foi, isso sim, a encarnação de um desafio autêntico, de uma audácia verdadeira, portanto sujeito a riscos permanentes. Ele era um grito pairando no ar. Moral da história: se depois do Beto Rockefeller se atrelasse a outros Betos e não partisse para experimentos tão diversos, se tivesse usado truques conhecidos, se houvesse criado o Padrão Bráulio Pedroso de Sucesso (PBPS), ele certamente teria ocupado uma posição mais confortável, mais sólida, no teatro e na televisão. No entanto, sua obra tinha a marca registrada da oscilação. Cada tema para a televisão ou texto teatral dele era uma incógnita. Naqueles seus últimos dias de vida, estava diante de mais um desafio: contratado pela emissora de Sílvio Santos, trabalhava em parceria com Denise Bandeira num projeto encomendado por Valter Avancini para estrear em janeiro de 1991: uma novela sobre o mundo da criação de gado, definida como country chique paulista. E como eu me dou o direito de correr riscos em cada trabalho, além do que, no Brasil, errar é um acontecimento imperdoável, exponho-me à possibilidade de dizerem que eu acabei, que eu morri, que eu já era, e que não tenho mais nada a declarar. Pois quando morreu, em uma quarta-feira, 15 de agosto de 1990, aos 59 anos de idade, vítima de fratura das vértebras cervicais causada por queda no banheiro de sua casa, Bráulio Pedroso ainda tinha muito a declarar. FIM Resumo da Obra Teatro 1988 – Nicolau 1988 – Morre um Coração Vulgar 1979 – Lola Moreno 1978 – As Gralhas 1977 – Dor de Amor 1977 – Festa de Sábado 1975 – O Deus Nos Acuda 1973 – Encontro no Bar 1971 – As Hienas 1970 – A Vida Escrachada de Joana Martini e Baby Stompanato 1968 – O Negócio 1968 – A Lua Muito Pequena 1967 – Isso Devia Ser Proibido 1967 – O Fardão 1965 – A Conspiração Novelas 1979 – Feijão Maravilha (TV Globo) 1978 – O Pulo do Gato (TV Globo) 1974/1975 – O Rebu (TV Globo) 1973 – A Volta de Beto Rockefeller (TV Tupi) 1972/1973 – O Bofe (TV Globo) 1971 – O Cafona (TV Globo 1969/1970 – Superplá (TV Tupi) 1968/1969 – Beto Rockefeller (TV Tupi) Seriados 1985/1986 – Tamanho Família (TV Manchete) 1981 – Amizade Colorida (TV Globo) 1979/1981 – Plantão de Polícia (TV Globo) Minisséries 1985 – Tudo em Cima (TV Manchete) 1983 – Parabéns pra Você (TV Globo) Crédito das Fotografias Astrid Marot 315 Demais fotografias pertencem ao acervo de Bráulio Pedroso A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla 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Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista © 2010 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Sérgio, Renato Bráulio Pedroso : audácia inovadora / por Renato Sérgio – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 336p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-908-3 1. Dramaturgos brasileiros 2.Teatro brasileiro 3. Pedroso, Bráulio, 1931-1990 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.092 Índice para catálogo sistemático: 1. Teatro brasileiro 869.92 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados. 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