Lauro César Muniz Solta o Verbo Lauro César Muniz Solta o Verbo Hersch W. Basbaum São Paulo, 2010 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO Governador Alberto Goldman Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho No Passado Está a História do Futuro A Imprensa Oficial muito tem contribuído com a sociedade no papel que lhe cabe: a democratização de conhecimento por meio da leitura. A Coleção Aplauso, lançada em 2004, é um exemplo bem-sucedido desse intento. Os temas nela abordados, como biografias de atores, diretores e dramaturgos, são garantia de que um fragmento da memória cultural do país será preservado. Por meio de conversas informais com jornalistas, a história dos artistas é transcrita em primeira pessoa, o que confere grande fluidez ao texto, conquistando mais e mais leitores. Assim, muitas dessas figuras que tiveram importância fundamental para as artes cênicas brasileiras têm sido resgatadas do esquecimento. Mesmo o nome daqueles que já partiram são frequentemente evocados pela voz de seus companheiros de palco ou de seus biógrafos. Ou seja, nessas histórias que se cruzam, verdadeiros mitos são redescobertos e imortalizados. E não só o público tem reconhecido a importância e a qualidade da Aplauso. Em 2008, a Coleção foi laureada com o mais importante prêmio da área editorial do Brasil: o Jabuti. Concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), a edição especial sobre Raul Cortez ganhou na categoria biografia. Mas o que começou modestamente tomou vulto e novos temas passaram a integrar a Coleção ao longo desses anos. Hoje, a Aplauso inclui inúmeros outros temas correlatos como a história das pioneiras TVs brasileiras, companhias de dança, roteiros de filmes, peças de teatro e uma parte dedicada à música, com biografias de compositores, cantores, maestros, etc. Para o final deste ano de 2010, está previsto o lançamento de 80 títulos, que se juntarão aos 220 já lançados até aqui. Destes, a maioria foi disponibilizada em acervo digital que pode ser acessado pela internet gratuitamente. Sem dúvida, essa ação constitui grande passo para difusão da nossa cultura entre estudantes, pesquisadores e leitores simplesmente interessados nas histórias. Com tudo isso, a Coleção Aplauso passa a fazer parte ela própria de uma história na qual personagens ficcionais se misturam à daqueles que os criaram, e que por sua vez compõe algumas páginas de outra muito maior: a história do Brasil. Boa leitura. Alberto Goldman Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor . Um aspecto importante da Coleção é que os resul tados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sorti légios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transi tam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de to do o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Este livro pretende integrar uma coleção de biografias que relaciona os principais nomes de nossas artes cênicas, aqueles que fizeram, e muitos que ainda fazem a grandeza do teatro no Brasil. Entendo como importante, e necessário, perpetuar a passagem e a ação dos principais elementos que trabalharam para dar ao nosso teatro a importância que acabou por assumir a partir da segunda metade do século 20. Julgo importante, contudo, discorrer antes sobre algumas poucas questões que acho primordiais, e que vêm sendo objeto de algumas reflexões. Por que o livro? Na verdade, uma obra como esta, e outras já pensadas, insere-se na tendência mundial da crescente participação de biografias dentro da relação dos livros publicados. Esta seria uma primeira grande questão. A que se deve este fato? Estaria sinalizando o fim da narrativa ficcional? Um articulista da Folha de São Paulo escreveu um artigo intitulado O Fim da Ficção, no qual diz o seguinte: quem corta a mão e escreve sua experiência real com os pés tem mais chance de virar best-seller do que aquele que, escrevendo com as mãos, narra a história de um personagem de ficção que cortou as duas mãos e escreve com os pés. Ou seja, estaríamos vivendo na época do romance de não-ficção, novo gênero com que se tenta abolir a ideia do romance tradicional, para atender a maior demanda de mercado. Mas o que se vem fazendo é desafiar toda uma tradição, elaborando uma literatura consciente de sua necessária suposta realidade. O ser humano real, sem dúvida, está inserido em um permanente drama de intensidade jamais antes imaginada. Mesmo a literatura de science fiction compreensivelmente catastrófica e apocalíptica que marcou as décadas de 1940/50, após Nagasaki e Hiroshima, não conseguiu imaginar esse futuro. O homem real virou personagem de si mesmo, cru, sem disfarces, inserido em um mundo cada vez mais cheio de perigo, insegurança, ameaças de toda espécie, doenças novas, e assiste ao fim das esperanças por uma sociedade de redenção, social e economicamente mais justa. Já se disse, o homem está condenado a ser livre, solto no mundo, ao Deus-dará. O vitorioso sistema capitalista, aparentemente vencedor de todos os embates ideológicos que tanto marcaram o século passado, goza da vantagem de jamais ter prometido coisa alguma. No mundo está se dando o adeus ao futuro, às experiências do amanhã. Não há hipóteses para o futuro, disse Heinrich Müller, dramaturgo alemão. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, em sua doutrina do perspectivismo, afirmava que o mundo pode, sim, ser interpretado de diversas maneiras, e que podem todas ser verdadeiras: a realidade reduzindo-se, em última análise, à vida do indivíduo. Essa ideia pode ser exemplificada em sua famosa frase: eu sou eu e minha circunstância. Multidões e multidões, lembrando ainda Ortega y Gasset, quando falava de la rebelión de las masas. Sim, somos bilhões de seres esmagados por uma mesma cultura, quase que sendo obrigados a nos repetirmos, como que clones de nós mesmos. As massas impondo temas e padrões estéticos. Daí o interesse por todo aquele que, emergindo do anonimato, conseguiu seus 15 minutos de fama. Um dia eu chego lá, disse Avenarius de Roquefort. O seu dia chegará, prometia Fasanello. Promove-se grosseiramente a máxima vulgar do primeiro viver, depois filosofar. Ou seja, parece que se despreza a postura intelectual que privilegia o conhecimento sobre seu objeto, as coisas, o pensamento e o discurso sobre as coisas e os fatos. O importante são as coisas, elas mesmas, e os fatos verdadeiros em seu entorno, sem nenhum manto diáfano. Poderíamos dizer que o desprezo pelo objeto e pelo fato vinha sendo o vício corrosivo da literatura moderna. Proclama-se, assim, uma literatura que assume a visão comum do mundo e nele se enraíza, não se erigindo em imposição do real criado; não quer editar e selecionar, quer reconhecer e dizer. Afirma que o mundo está aí, que o comum dos homens o conhece e que todos os homens falam em seu discurso todos os dias. Em outras palavras, questionam-se as relações entre literatura e biografia e instaura-se a verdadeira aporia: nunca esquecer que escrevemos sempre a partir do nosso ponto de vista. Eis por que, apesar de tudo, deve ser entendido que escrever é sempre algo como uma confissão. É contar às pessoas interessadas uma história, costurada com argumentos e ideias que organizamos na visão que fazemos do biografado. Se é necessário ater-se aos fatos, privilegiar a narrativa com fotografia do real circundante, há que considerar a necessidade de estabelecer o conceito de fato literário, cujo traço distintivo é o seu caráter fictício ou imaginário. E, não sendo suficiente, há que recorrer ao caráter estético. Eis instalada a contradição. Sim, já disse Baudrillard, todo fato é mera teoria. De toda maneira será sempre preciso dizer como conseguimos superar os particularismos e limitações de nossa subjetividade, no anseio de apreender as coisas e os fatos sob um prisma universal e objetivo. A literatura poderá representar o esforço máximo de dessubjetivação – expressão de Porchat – de que somos capazes, ela será o lugar privilegiado do encontro crítico de nossa subjetividade com o mundo objetivo. Por que o teatro? Sabemos que o teatro é, de todas as artes, a que melhor define a alma de um país. Na verdade, fazemos referência ao animus e ao habitus, conforme concebeu Norbert Elias, ou seja, um conceito não essencialista, que admite a existência de uma segunda natureza ou saber social paulatinamente incorporado. Note-se que ele muda o conceito de caráter nacional, tido como algo fixo e estático. Os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a ficar sedimentados no habitus de seus membros individuais, daí decorre que este muda com o tempo precisamente porque os acontecimentos e experiências de uma nação ou de seus agrupamentos constituintes continuam mudando e se acumulando, impregnando-a. E cabe ao teatro captar e difundir essas informações, esses traços culturais fundamentais para entendimento de um povo, de uma nação. Entretanto, fenômeno de natureza diversa, tem deixado o teatro como uma ação cultural quase que de responsabilidade única de seus próprios agentes, sem interferência – leia-se, apoio – das instituições de caráter público, principalmente o grande responsável pela cultura do País, que é o Ministério da Cultura. Esse apoio, quando ocorre, tem sido bastante tímido. Conhecendo melhor os personagens dessa eterna batalha, aqueles que fizeram o teatro brasileiro, se poderá firmar uma opinião mais consistente sobre a história e a trajetória de nosso teatro, de nossa dramaturgia. Como diria McDonald, eu amo muito tudo isso. Por que LCM? Lauro César Muniz é, sem sombra de dúvidas, um dos maiores dramaturgos brasileiros e surgiu para o mundo no último quartel do século 20. Importante autor teatral que encontrou na televisão o reconhecimento, a fama e o prestígio para inseri-lo, definitivamente, no panteão de nossos autores importantes. Realmente, na televisão, por meio das novelas, minisséries, e casos especiais, ele investiu todo o seu gênio, mas foi no teatro que ele colocou toda a sua vida. Essa dupla experiência, essa vitória em diferentes campos de atuação, foi o atrativo maior que encontramos para escolhê-lo. Convém informar que pretendemos traçar o perfil de nossos personagens dentro de um padrão que vimos, há tempos, afirmando como único possível, único necessário. Estamos convencidos de que não existe a pessoa em si. Ela surge nas suas relações. Ou seja, interessou-me mais saber da relação de Lauro César Muniz com o teatro, com a televisão, com o país, com as mulheres, com a religião, com a política, etc. Somente dessa forma, podemos efetivamente conhecer os nossos biografados. A história de sua vida não tem grandes lances de repentina ou profunda ruptura,desviando-a para outras trajetórias, transversais ou paralelas, de tal sorte a fazê-lo repensar, a cada momento, os rumos. Na verdade, a linha quase reta de seu destino é composta de acontecimentos, como se fossem degraus, para o alcance de um mesmo objetivo, com felizes e ricos momentos, salvo uma única exceção, que foi a terrível tragédia da perda de um filho muito querido. Mas aquilo que é verdadeiramente importante e esperamos que tenha sido suficientemente exposto é a sua sinceridade e a sua coragem. De um lado, a surpreendente maneira com que fala de seus fracassos com a mesmo franqueza que exibe seus sucessos e, de outro, a forma como encarou e superou os problemas difíceis por que passou, especialmente aqueles enfrentados no meio pro-fissional. Sabidamente, um mar de gigantescos e insaciáveis egos. A Pessoa Lauro César Muniz pode passar pela Avenida Atlântica ou pela Avenida Paulista sem chamar a atenção. Não é particularmente bonito, mas também não é um sujeito feio. Nem alto, nem baixo, nem gordo, nem magro. Jamais chamará para si olhares pelo seu aspecto físico, que mais parece a do indivíduo comum, anônimo, um companheiro para os papos ocasionais numa mesa de bar. Conversando com ele percebe-se a voz neutra, mas simpática, sem altas entonações, mas que aos poucos vai deixando escapar aquele Lauro personagem, aquela figura heroica de que aqui vamos nos ocupar. Aquele vulcão adormecido, desperto quando é a hora, expelindo lavas de criatividade, provocando admiração, qual o vulcão verdadeiro, onde as pessoas permanecem à distância, bebendo a estranha beleza das labaredas tingindo a crosta terrestre e cuspindo rocha derretida. Filho do bravíssimo interior paulista, nascido em uma família organizada dentro dos padrões da época, foi educado respeitando os preceitos de uma moral cristã. Em certo momento de sua vida, levou a sério os dogmas da religião e os seus imperativos morais. Toda essa experiência religiosa haveria de me marcar de forma indelével. Conheci LCM em 2000, na sede da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, em São Paulo. Tinha ele ido lá para tratar de assuntos de direitos sobre alguma de suas peças, quase todas frequentemente montadas e remontadas Brasil afora. Sucesso permanente. Aquilo me intrigava, na medida em que eu, também autor, não conseguia atrair atenção para os meus próprios trabalhos. Fracasso permanente. Trocamos poucas palavras, mas o suficiente para que eu percebesse que havia ali um autor consciente de seu trabalho, uma obra a ser estudada em profundidade. Voltei a vê-lo no Teatro Sérgio Cardoso, em julho de 2002, quando foi participar do I Congresso Brasileiro de Dramaturgia, atendendo a convite que lhe fizera para falar de seu trabalho. Tratava-se de um evento que eu havia organizado quando diretor da SBAT. A Criação Literária Os textos de Lauro César Muniz parecem uma forma de resistência aos poderes a que frequentemente somos submetidos e convidados a nos curvarmos. Isto é, o poder, para se sentir mais poderoso, tem sempre por objetivo desunir, separar as pessoas, para melhor submetê-las aos seus desígnios. O poder tem sempre por objetivo impedir as pessoas de realizar aquilo que podem, e a arte consiste, justamente, em liberar a vida daquilo que a aprisionou. A criação literária é a definição de seu pensamento. A obra literária é uma concepção de vida, através de criaturas e enredos que estão por aí mesmo, ao nosso lado. Ela leva seus leitores a ver o que comumente não é visto. Não há vilões irremediáveis, irrecuperáveis. O mal não está no homem. O erro geral não é desse ou daquele indivíduo: é de toda a sociedade, de todo um mundo apodrecido. O inimigo não é a classe social em si, a aristocracia rural ou a burguesia militante. O problema é o espírito do burguês, sua inquebrantável filiação e sua eterna dependência ao verdadeiro demônio (ou novo Deus?), que é o capital. O que significa o desrespeito pelo sagrado, a eterna inconsciência. Poderia ter dito: a vida sem valores e sem princípios, a negação da existência do bem, do justo e do bom. Como disse aquele filósofo, o inconsciente se faz presente e escarro na face ultrajada de Cristo. É o sangue jorrando quando pensa que verte sêmen... As páginas que se seguem procuram detalhar esses e outros aspectos basilares da vida de Lauro César Muniz, um de nossos mais importantes autores, esteio de nossa melhor dramaturgia. Representam o resultado de muitas horas de entrevistas, gravadas em fitas cassete. O depoimento de Lauro é espontâneo, emocional, direto, extraído como numa confissão. Altera espasmos de emoção a reflexões cuidadosamente pensadas, mas sempre numa clareza que lhe é peculiar. Capítulo I As Origens e a Primeira Infância Nasci em Ribeirão Preto, em circunstância muito especial, pois nunca morei naquela cidade em toda a minha vida. Meu pai morava em Guará, ele trabalhava com algodão, era o intermediário entre o produtor de algodão e a máquina beneficiadora. Meu pai não plantava, apenas comprava. Comprava dos pequenos agricultores, estocava, fazia um jogo de preços para achar o momento certo de vender, analisava os preços através da bolsa local e na hora certa descarregava o algodão na beneficiadora que, naquela época, ficava na mão de um japonês. Começou a ir muito bem no negócio. Em pouco tempo ganhou bastante dinheiro, teve uma vida estável, muito boa e comprou um cinema, em 1937, que era a paixão dele. De um cineminha vagabundo, reformando o prédio e trocando equipamentos, ele fez um ótimo cinema. Então, pouco antes de eu nascer, meu pai levou minha mãe para a casa de minha avó, mãe dele, em Ribeirão Preto, que ficava bem distante, principalmente para aquela época. Talvez fosse um pouco mais de 100 quilômetros, com estradas de terra tortuosas e passando por dentro de algumas tantas cidadezinhas, até chegar a Ribeirão. Nasci na Santa Casa de Ribeirão Preto e nos meus primeiros dias vivi na casa de minha avó. Depois fomos para Guará. Sou cidadão ribeiropretano e lá estive muitas vezes, onde tenho muitos parentes até hoje, de várias gerações, pertencentes ao lado do meu pai. Mas nunca morei lá. Com minha irmã aconteceu a mesma coisa, um ano e meio depois. Meu pai era filho de imigrantes portugueses, que chegaram ao Brasil analfabetos. Eram duas irmãs e dois irmãos, que se conheceram na viagem. Ao chegar aqui, se casaram e foram para Cravinhos, trabalhar na enxada, na roça. Minha avó nunca se alfabetizou. Meu avô progrediu bastante, homem muito trabalhador, se alfabetizou, começou seu aprendizado com a aritmética para lidar com o dinheiro que ia ajuntando. Progrediu em pouco tempo, teve uma ascensão relativamente rápida. Ele chegou ao final da vida a comprar uma fazenda em Ituverava, cidade vizinha a Guará. A fazenda está lá até hoje, com a família. Terra boa, terra roxa, muito café. Morreu relativamente bem, morreu cedo, de broncopneumonia, pois fumava muito, fumava escondido. Vivia em Ribeirão Preto e ia de trem para as fazendas. Isso, na década de 1930. Capítulo II A Família Minha mãe era uma mulher excepcional, muito corajosa. Lúcida até a última frase, dita no leito do hospital: está difícil meu filho... A gente até se esquecia que ela tinha 94 anos. Lia muito usando uma lupa grande, por causa da dificuldade visual. Lia o jornal de cabo a rabo. Lia e relia livros marcantes. Uma mulher extremamente boa, um caráter excepcional. Até o final, quando eu estava com algum problema mais sério, eu a procurava para conversar. No episódio da perda do meu filho, a reação dela foi de coragem, de encorajar a nós todos. A partir de um certo momento, eu não deixei mais meu pai e minha mãe se aproximarem do Ricardo, para preservá-los, pois a visão não era boa. Eu queria poupá-los da imagem triste de um doente infectado por HIV. É uma coisa muito triste. Difícil para todo mundo. Mas, no último momento, eles estiveram presentes. Não tenha dúvida, a relação dos casais será de outra forma. Tenho uma convicção firme nesse sentido. Primeiro por ter vivido três casamentos, além de ter tido longas relações com outras mulheres, e também por ter percebido como deteriora a relação de um casal vivendo num mesmo espaço. O casamento está superado e ainda vai levar algum tempo, por questão de tradição, para ser alterado. Ou até... ser abandonado. Mas não pode ser mais o que os ridículos bons costumes ou as igrejas pregam. Para que a união permaneça sadia, é preciso que haja uma plena independência de ambas as partes. A criação dos filhos pode e deve ser feita em conjunto, não deve ser entregue ao Estado não, conforme pensei um tempo. Acho difícil a fidelidade de ambos. A pequena infidelidade se supera, acho normal, mas quando a infidelidade se institui, quando uma das partes está sendo enganada por longo tempo é horrível, uma grande covardia. E isso é muito comum. Os meus três casamentos assumem esse nome porque eu morei junto. No primeiro casamento eu cumpri todas as regras do matrimônio católico para satisfazer a família da minha noiva... acho horrível essa coisa de noiva... ou até para dar uma satisfação à sociedade, na qual eu cumpria meu papel de engenheiro... Capítulo III Ainda a Infância Fui muito cedo para São Paulo. Aos seis anos já estava em Ribeirão Pires, uma cidade muito próxima da capital. Cidade alta, na Serra do Mar. Lá eu fui alfabetizado, no grupo escolar onde minha mãe dava aulas. Antes estivemos em Jardinópolis, quando eu tinha três ou quatro anos. Sobre Guará, a minha memória é pequena. Eu era muito criança, mas eu passava minhas férias no interior: em julho, ou no fim do ano, a família voltava para o interior. No interior eu me sentia mais à vontade, um garoto mais livre, tinha acesso a tudo que eu julgava importante, inclusive com a chance de investigar a intimidade da Igreja Católica, os mistérios da sacristia. Eu entrava na casa do prefeito, na Prefeitura, no cartório do meu tio-avô, que era oficial de cartório. Minha avó era agente do Correio. Eu frequentava o ensaio da banda (no qual a tuba me fascinava), o campo de futebol... O zelador do campo de futebol era o tocador de tuba. Eu ia jogar pelada com a molecada no gramado bem cuidado e, no fim da tarde, o seu Anselmo pegava sua tuba, sentava na arquibancada e ficava solando escalas. O sol batia naquela panela dourada da tuba, parecendo outro sol... Aquele som grave exalava um humor ritmado... Aprendi muito sobre a vida do interior e até hoje tenho familiares por lá, vários primos, em Guará, da parte de minha mãe, e em Ribeirão Preto, do lado do meu pai. Alguns vieram para a capital, outros para cidades maiores da região. Em Guará, ficaram os mais velhos, pelas fortes raízes que os prendiam àquela terra. Muitos anos depois e por diversas vezes fui homenageado pela cidade, pela Câmara dos Vereadores. Por ocasião da novela Escalada, recebi o título de cidadão guaraense. Essa minha avó, que enviuvou cedo, era fantástica! Encaminhou as três filhas para o magistério, colocando-as numa escola de Franca. Eles casaram-se em dezembro de 1936. Minha mãe nunca deixou de trabalhar, foi sempre professora. Uma ascensão difícil: uma das regras daquele momento era a de que as normalistas mais novas fizessem um estágio no meio rural. Havia muita gente na zona rural naquela época. Enfim, ela sempre foi uma idealista, muito patriota. Daí, provavelmente, surge em mim a mesma característica, uma influência nítida dela, que me fez, desde cedo, cultuar esse país. Não há dúvida de que é resultado da influência de minha mãe, que dizia: olha, eu não gosto do Getúlio, mas ele é um patriota, muita coisa boa ele fez, deu uma consciência de brasilidade ao povo, às crianças, procurou cultivar isso, coisa típica do fascismo, esse culto à pátria. Não consegui me livrar disso. Em todo meu teatro aparecem muitas marcas do interior. Na novela Escalada, a história se passa em uma cidade que se chama Tangará. Mas sem dúvida é Guará. Não quis chamar de Guará pra ficar mais à vontade, poder falar mais livremente de pessoas. No entanto, usei alguns tipos marcantes da cidade, como por exemplo o Zoreia, que se orgulhava de ter orelhas grandes. O Zoreia ficou famoso por lá. Minha mãe nasceu em Guará, meu pai em Cravinhos, também perto de Ribeirão Preto. Lá ele morou com uma irmã que vivia naquela cidade. Era o caçula de cinco filhos. Meu pai foi o último de cinco filhos. Faleceu em 2001, com 93 anos. Foi nesse mundo que nasci e cresci. Meu pai e eu éramos amigos, mas havia, é claro, a natural distância entre pai e filho, coisa da própria época. Havia um código de respeito que se impunha de pai para filho e que criava uma natural distância. Meu pai era um homem bem informado, mas um conservador, um udenista. Muito trabalhador e realizador. Ainda jovem, trabalhou como comprador de algodão. As coisas foram muito bem até 1940, quando levou um tombo: a Anderson Clayton começou a impor o preço da mercadoria, para derrubar os pequenos comerciantes. Ele estocava o algodão comprado na região para vender às beneficiadoras, e não acreditou que o preço pudesse cair tanto. Não vendeu o estoque que tinha e o prejuízo foi enorme. Com isso tivemos que deixar a cidade, um pouco humilhados, e aí começou uma peregrinação pelo interior de São Paulo. Em Guará, ele teve que entregar uma série de propriedades para pagar as dívidas, entre as quais o Cine Glória, que era o grande orgulho dele. Eu fui pouco ao cinema do meu pai. Nós saímos de Guará em 1941, eu tinha 3 anos de idade, e não tenho uma lembrança nítida do cinema. Eu sei que a primeira fita a que eu assisti, e naquele tempo ainda chamávamos os filmes de fita, foi Branca de Neve e os Sete Anões. Meu pai tirou as cenas de horror, da bruxa, e fez uma exibição bem light para mim. Claro que na minha infância, ao voltar à cidade, visitando parentes, eu assisti a diversos filmes no cinema, que não era mais do meu pai. Hoje o espaço é ocupado por uma loja que vende pneus para tratores. O Cine Glória, inclusive, me rendeu uma peça que é O Luar em Preto e Branco, de 1992. Uma peça que, de certa forma, retrata esse percurso da perda do cinema, a nostalgia de um sonho desfeito... Um contraponto entre a sala de projeção e o mercado em que o cinema se transformou. Essa história do meu pai também serviu de ponto de partida para a novela Escalada, que eu fiz na Globo, em 1975. Depois que saímos de Guará fomos para Jardinópolis, depois Ribeirão Pires, uma cidadezinha interessante, no alto da serra, até chegarmos a São Paulo. Moramos em hotéis, meu pai viajava vendendo títulos de capitalização. No final da novela Escalada, meu pai me deu uma placa de prata, muito bonita, agradecendo em nome da geração dele. Meu pai era bom de venda, muito bonito, disfarçadamente vaidoso, muito simpático. Teve uma ascensão rápida na nova atividade, logo chegou aos postos mais altos da companhia de capitalização. Minha mãe, professora, foi sempre mudando de escola, dando aulas na roça. Ela recebia do Estado, pois havia uma lei do Getúlio que exigia que a normalista, antes de dar aulas nas cidades, deveria antes trabalhar na zona rural. Em Jardinópolis, na fazenda Guanabara, teve uma participação muito bonita na educação de crianças rurais, filhas de colonos. Conseguiu criar um ambiente muito bom de trabalho, além da atividade escolar. Ajudada pela mulher do fazendeiro, fez coletas beneficentes para vestir as crianças maltrapilhas. Criaram uniformes, para evitar as diferenças entre uns e outros. Muitas vezes eu a acompanhava na charrete que a levava à fazenda. Havia, também, é claro, o amparo da paróquia, do padre que era antigetulista como ela e meu pai. A diferença no antigetulismo dos dois é que ela admirava no presidente sua postura patriótica. Meu pai, não. Ele considerava o ditador um golpista, figura execrável. Ela admitia que ele era um ditador, mas se deixava envolver pelo proselitismo de Getúlio, no sentido de querer criar uma grande pátria. Por outro lado o Mário Lins, dono da fazenda, era ligado ao Adhemar de Barros que, na época, era interventor em São Paulo. Havia aí a influência do fazendeiro, e o tom patriótico do governo do Getúlio, que ela passava para os alunos a ponto de ensiná-los a cantar o Hino Nacional. Sem dúvida uma grande façanha, fazer aquelas crianças tão carentes, que estavam sendo alfabetizadas, decorar o hino nacional. Um dia, quando da visita do governador, ela preparou todas as crianças das fazendas da região, todas vestidinhas e calçadinhas, para cantar o hino. Ela se orgulhava muito disso, embora fosse, como meu pai, antiademarista. Minha mãe viveu nos últimos anos com a minha irmã, em São Paulo. Dois anos atrás escrevi a história dela para um jornal de Guará. Entrevistei minha mãe e a matéria foi publicada. Ela tinha esse aspecto empreendedor. Muito dinâmica, ajudou meu pai, estimulando-o a buscar um nível profissional muito bom. Na década de 1950 tínhamos um padrão de vida muito bom. Meus pais compraram uma casa aqui em São Paulo. Mas antes disso devo dizer que de Jardinópolis fomos para Ribeirão Pires, uma cidade serrana onde havia, naquela época, muitos tuberculosos por causa do clima de montanha e o ar muito frio. Me lembro de acordar de manhã e ver toda a cidade envolvida pela forte cerração. Foi lá que eu me alfabetizei, no grupo escolar onde minha mãe dava aula. Aliás, fomos morar em Ribeirão Pires porque ela havia sido nomeada para lá. Nessa ocasião meu pai trabalhava viajando. Pegava um trem na capital e de lá circulava pelo interior. Era a época da guerra, que passamos quase toda, até 1944, em Ribeirão Pires. Me lembro bem das marcas da guerra, naquela que parecia uma cidade muito especial,, dada a sua importância estratégica por estar situada no alto da Serra e próxima de Santos. A gente sentia o clima de guerra. Há uma história interessante e até bonita de quando morávamos em Ribeirão Pires. Recordo que a gente morava em uma casa geminada com um telhado alto, desenhada talvez por algum alemão, já que naquela cidade havia muitos alemães, em razão do clima. Nossa vizinha mesmo era uma alemã, que tinha muitos gatos. Ela falava alemão com os gatos e implicava muito com o barulho que meu pai fazia quando estava em casa. Carpinteiro amador, ele sempre gostava muito de martelo e prego. Ela reclamava muito, falava pessimamente o português e vivia em pé de guerra com meu pai. Hoje eu acho que era proposital, isto é, ela não queria dialogar. Quando meu pai viajava, a gente ouvia sempre no forro da casa um barulho estranho, parecia passos de alguém, um caminhar lento. Minha mãe comentou com os vizinhos que toda noite, depois de uma certa hora, a gente escutava passos no forro. Os vizinhos, um tanto incrédulos diziam que devia ser por causa do gambá, que faz sua vidinha ali no telhado. Mas, se incomoda tanto assim, vamos matar esse gambá, que deve ser grande pelo que a senhora fala. Prepararam tudo, arranjaram escada, abriram o alçapão, subiram, procuraram tudo, levaram lanterna e nada acharam, nem mesmo cocô de gambá. Mas o barulho continuava e resolveram deixar pra lá. Tempos depois, já morando em São Paulo, ficamos sabendo que o marido dela era mesmo um espião alemão, que dormia durante o dia e à noite fazia o seu trabalho de comunicação, provavelmente por rádio, porque era fácil lá do alto da serra comunicar-se com navios que passavam ao largo. É bem possível que fosse isso, não tenho nenhuma informação concreta das comunicações por rádio e nem fui pesquisar o assunto. Eu usei esse fato na minissérie Aquarela do Brasil. Os espiões foram presos antes do fim da guerra. Mas quando soubemos disso já estávamos morando em São Paulo. Lembro das movimentações de rua, aquela coisa patriótica, o Brasil entrando na guerra por causa dos nossos navios, que estavam sendo atacados pelos submarinos alemães. No final da guerra, morávamos em um hotel na Avenida Rangel Pestana, Hotel Sul América, perto do Largo da Concórdia, onde tinha o Cine Teatro Colombo. A gente ia muito ao cinema, mas também ao teatro. Me lembro das operetas. Depois nos mudamos para um hotelzinho perto do chafariz da Xavier de Toledo, Hotel Liberdade. Meu pai já estava numa situação mais estável, trabalhava num escritório por ali, perto do Mappin, chamado de Casa Anglo Brasileira, pois que naquele tempo não se podia usar nome estrangeiro. Como o Palestra Itália, que virou Palmeiras. Sem dúvida, coisas da guerra, de um nacionalismo exacerbado, típico do fascismo. Minha mãe passou a dar aulas num lugar muito longe, além da Penha. Nós íamos de bonde até o Largo da Penha e lá pegávamos outra condução até a Vila Saiago. Depois meu pai alugou uma casa na Rua Taguá, na Liberdade, numa espécie de vila, com as casinhas todas iguais, padronizadas, em frente ao Colégio Paulistano. Estudei algum tempo nesse colégio e depois completei o primário no Grupo Escolar Campos Salles, na Rua São Joaquim. Ficamos por ali até meus 14 anos, em 1952, quando meu pai comprou uma casa em Mirandópolis, na Rua dos Jacintos, onde cresci e curti a adolescência. Capítulo IV Adolescência Cresci lá, na Rua dos Jacintos, bairro de Mirandópolis, onde namorei, joguei futebol e inventei um clubinho pra dançar, que tinha até jornal. Comecei a fazer teatro amador. Criamos um grupo ali no bairro e estreei uma peça que escrevi, no teatro João Caetano, Corações em Jogo, na qual fui até ator e entendi que não deveria ser nunca mais. Era uma comediazinha de adolescente mas com intuição clara de dramaturgia. Era uma história de amor maluca entre um garoto, uma moça e o pai dele, que se apaixona pela moça. Não sei de onde tirei essa ideia. Antes dessa peça, muito cedo mesmo, havia feito algumas tentativas, quando morava na Liberdade, no Largo da Pólvora, onde havia o Circo Seyssel, do Arrelia, um grande palhaço, o maior de todos ao lado do Piolim, que naquela época já estava se afastando. A segunda parte do espetáculo circense era sempre uma comedinha onde o Arrelia, tal qual um arlequim, resolvia todas as situações enroladas nas quais se metia. Eu achava que saberia fazer alguma coisa parecida e escrevi duas pecinhas: Mamãe tem Razão e Arrume-se Como Puder. Às vezes meu pai me levava ao teatro. Pude ver o grande Procópio Ferreira no Teatro Santana, em Ciúme, uma peça policial, e em Essa Mulher é Minha, comédia do Raimundo Magalhães Júnior, muito divertida, sobre costumes brasileiros. Anos mais tarde o Procópio interpretou uma peça minha, A Infidelidade ao Alcance de Todos. Vi também Odilon com Dulcina em O Imperador Galante, de Raimundo Magalhães Júnior. Vi ainda Vicente Celestino, no Odeon, em Coração Materno, uma opereta, escrita pela mulher dele, Gilda de Abreu, com ela atuando e dirigindo. Um sacristão enjeitado rouba o coração da santa mãe de Jesus, para dar à amada. Na fuga do sacro roubo, um raio o derruba com o coração lhe escapando das mãos e a santa lhe aparece, perdoando o roubo. O Odeon era uma enorme casa que funcionava como cinema e teatro, na Rua da Consolação. Tinha duas salas, uma azul e uma vermelha. No cinema vi o Celestino, em O Ébrio. Era uma de minhas referências culturais, quando criança, quase entrando na adolescência. Essas são as influências mais fortes. Meu pai também me levou para ver Teatro de Revista. Me lembro bem de Chianca de Garcia e Walter Pinto, em geral proibido para menores. Mas Chianca era mais comedido, mais família. Recordo ter visto também Carnaval no Gelo, aquela coisa americana, que me impressionava pelo colorido e pela fumaça de gelo seco. São as referências que tenho dos espetáculos da infância. E tinha o rádio. Meus heróis estavam na Escola risonha e franca, do Nho Totico, nas novelas da Rádio São Paulo, alguns programas famosos como O Crime Não Compensa, de histórias policiais, com um delegado que fazia o desfecho moral do programa. E havia o PRK-30, o programa de que meu pai mais gostava, com Lauro Borges e Castro Barbosa, que eram realmente excepcionais. Lembro de meu pai tirar um lenço para enxugar as lágrimas, de tanto que ele ria. A gente ficava em torno de um rádio de móvel inteiro. Mais tarde o espaço passou a ser ocupado pela TV. Imitando toda essa salada, eu fazia no quintal, na casa da Rua Taguá, o meu teatrinho. Esse período da minha vida foi nitidamente pontuado por um fascínio pelo espetáculo, o rádio, o circo. No Cine Capitólio, na Rua São Joaquim, eu ia assistir aos filmes, quando não eram proibidos. Mas havia ainda os seriados, que a gente não podia perder. No Cine São Paulo, a programação do domingo começava às 13 horas e ia até às 17 horas. Dois filmes e um seriado. Uma vez ganhei do meu pai um presente que foi um acontecimento fantástico, um Keystone, projetor de cinema mudo. Eu projetava desenhos animados para a garotada. Alugava na Mesbla e cobrava entrada. Com o dinheiro pagava o aluguel do filme, fazia um barzinho e vendia produtos, o que também dava um lucrinho para o cinema. Era o Cine Glória, em homenagem ao cinema do meu pai, em Guará. Foi um sucesso. A grana ajudou a comprar um projetor sonoro, melhorando bastante a qualidade do que eu apresentava, com filmes mesmo, e a coisa foi um sucesso que durou pelo menos dois anos. Eu desenhava todos os sábados o cartaz dos filmes. Sempre passava um desenho, uma comédia, um documentário. Filmes que a garotada queria sempre, como os de Buster Keaton, Harold Lloyd, Chaplin, Chico Boia, Os 3 Patetas... Depois dos filmes fazíamos um show onde criamos Os Tangarás, um conjunto de canto. Até que um dia, em 1950, no final do ano, minha festa acabou. Meu vizinho comprou uma televisão e atraía toda a garotada. A TV derrubou meu cinema! Como se vê, essa fase da minha vida já mostrava uma relação muito clara com meu futuro, embora naquela altura ninguém intuísse a carreira que estava pintando. Em 1954, eu tinha 16 anos e estava buscando um caminho. Lembro-me de meu pai comemorar discretamente a morte do Getúlio. Senti nele uma postura de revanche. Ele havia sido sol-dado constitucionalista por São Paulo e aquilo o marcou muito. Quando houve todo aquele mar de lama que pretendia derrubar o Getúlio, meu pai mantinha a postura udenista. Veio a carta-testamento, com o texto que era uma obra-prima, e chamou minha atenção, marcou um sentimento muito forte em mim. Um texto poético, de uma força incrível: serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. Ficava claro para mim que havia um grupo antinacionalista que tentava liquidar aquele homem. E num gesto espetacular ele se suicidou com um tiro. Um tiro que atingiu a oposição, o grupo mais reacionário. O grande homem para meu pai era Armando de Salles Oliveira, que fundou a USP. Era esse o homem que, para meu pai, deveria ser o grande presidente do País, cujo ideal fora esmagado pelo Getúlio. Minha mãe continuava dando aulas e meu pai vinha crescendo na atividade de capitalização, chegando a superintendente na Companhia Urano, que era do tristemente famoso J. J. Abdala, grande tubarão da época. Meu pai veio, depois a sofrer por isso, e novamente surgia a ameaça das dificuldades financeiras. Talvez essa situação tenha influenciado o fato de que, mais tarde, ao tentar definir a minha carreira, busquei os anúncios de emprego nos classificados do Estadão. Meu pai abria o jornal e ficávamos fascinados pela oferta de empregos para engenheiros. Estávamos em plena era do Juscelino, desenvolvimentista. Capítulo V Preparando a Vida Adulta Era razoável que eu escolhesse a engenharia. Então, fiz vestibular para o Mackenzie, por influência de um primo que se formara lá. Meu pai tinha condições de me sustentar numa escola cara. Esse é um pedaço importante da minha vida. Quando entrei na faculdade, eu era um cara apolítico. Aos 18 anos, não tinha uma posição política. Na verdade, eu estava meio atônito, buscando um caminho, sob influência dos presbiterianos do Mackenzie. Fui educado na Igreja Católica, fiz a primeira comunhão cumprindo socialmente o ritual da iniciação católica, mas ninguém era carola lá em casa. Houve um tempo em que frequentávamos bastante a igreja, mas aos poucos meus pais foram relaxando com aquela obrigação da missa. De forma que não senti nenhum confronto com a filosofia cristã presbiteriana do Mackenzie. Parecia uma universidade leiga. Mas havia uma sutil influência em palestras, nos jornais distribuídos, na própria biblioteca da universidade, que era excelente. Linda, aliás. Todo o Mackenzie era muito bonito. Na frente havia um departamento importante da USP, na Rua Maria Antônia. A gente podia sentir uma semente de conflito, que mais tarde explodiria, como se houvesse claramente uma luta de classes, pois uma escola era paga e a outra, pública, de graça. Minha irmã frequentava o curso de Letras nesse prédio, foi uma grande aluna de Letras Clássicas. Deu aulas de português por muitos anos, e agora está aposentada. Ela trazia para casa uma visão bem diferente da que eu trazia, uma visão sobre o que era o Brasil. Isso começou a gerar em mim uma inquietação. Qual era o caminho? Nessa busca não orientada e solitária e pela leitura de jornais e revistas, a gente começa, nessa idade, a procurar um caminho, uma filosofia de vida que valha a pena. Buscando contatos com profissionais ligados ao cinema e à televisão, conheci o Geraldo Vietri que me indicou um círculo de estudos em um clube de São Paulo, onde aconteciam palestras e pregações que louvava o pensamento de Plínio Salgado. Fiquei curioso, interessado. Fui à Biblioteca Municipal Circulante, e peguei o livro básico do Plínio Salgado, O Que é o Integralismo. Meu pai era anticomunista. Havia nele uma clara tendência americanófila. Seleções, do Readers Digest era uma revista que eu lia bastante. Vivíamos em um ambiente pequeno-burguês, com o sonho de ascensão para a burguesia, tudo sendo preparado para isso. Eu, estudante de engenharia do Mackenzie, tinha tudo para ir seguir o mesmo caminho. Estudei o livro do Plínio Salgado. Um livro pequeno, fácil de ler. Mas tive a sorte de pegar um livro com anotações ao lado, com críticas ao texto, que me facilitaram o questionamento do próprio Plínio que, diga-se, escrevia bem, tinha uma argumentação fácil e envolvente. Pregava Deus, pátria e família, a tríade ideológica do Integralismo. A minha família era unida, a pátria para minha mãe era fundamental, e eu sou mesmo cheio de amores pelo Brasil, e Deus, a Igreja... tudo casadinho. Sigma, a letra grega, um M deitado, de integração, de somatório, entrava na minha cabeça com facilidade, formava um sistema filosófico muito nítido. Sigma, integral, para mim que estudava matemática, era símbolo da integração do homem. Todo o nosso interesse de brasilidade, em defender a nossa cultura, falando tudo de maneira dura, firme, valente... Sobre nossa etnia, por exemplo: o Brasil tinha raças diferentes, a ativa, europeia, em contraponto com o negro indolente, o índio. Sutilmente ia gerando um sentimento racista, sugerindo a superioridade da raça branca. Mas as anotações à margem das páginas, a lápis, contrapunham com coisas assim... isso é antissemitismo... sectarismo nazifascista...racismo... E, como essas, muitas outras observações básicas. As indagações me levavam a procurar respostas em outros livros. Tenho que abençoar quem fez essas anotações. Assimilei Plínio, mas com restrições permanentes, cabíveis, que combinavam melhor com a minha cabeça. Mas a procura também continuava e fui sendo atraído pela esquerda, como antídoto. Comecei a ler Jorge Amado, a sentir os caminhos da esquerda brasileira, que já tinha certa liberdade de ação naquele momento. Comecei a prestar atenção no Partido Comunista e a conhecer gente do próprio partido. Simultaneamente, comecei a entrar em choque com a escola, com o Mackenzie. Por exemplo, tinha escrito uma peça de teatro e fui para um festival de Brasília, mas nunca tive o endosso da própria universidade. Fiquei bastante decepcionado. Minha peça Os Anjos Censurados, encenada pelo Centro Acadêmico Horácio Lane tinha algum valor, pois havia sido premiada no Festival de Teatro do Estudante, de Paschoal Carlos Magno em 1960, em Brasília, pouco antes da cidade ser inaugurada. Fui pra esse festival que foi um caldeirão de revelações, pois encontrei gente da pesada, da esquerda, que tinha uma visão mais clara da realidade, e as coisas começaram a ficar mais nítidas para mim. Foi nessa época que houve um choque com meu pai, em casa, chegando até à ameaça de expulsão, pois eu o enfrentei, naquela mesa em que a família estava sempre reunida. Um verdadeiro sacrilégio. Foi num almoço, um dia, numa corriqueira discussão política, entrou o assunto da União Soviética, da Cortina de Ferro, do Sputnik. Eu dizia que era uma maravilha, ele negava valor para o Sputnik, achava que era propaganda. Entramos num choque feio e ele me disse: nessa casa não cabe comunista. Eu me levantei bruscamente e o meu relógio, que tinha uma pulseira metálica elástica, escorregou pelo braço, passou pela mão, voando. Meu pai, vendo no gesto uma agressão, veio pra cima de mim, e eu fui pra cima dele. Ele não me tocou, recuou, não me tocou. Minha mãe perplexa num canto, minha irmã pálida. Nessa casa não tem lugar pra comunista!, gritava. A cena é linda, né!? Eu falei: e agora? Tenho de ir embora daqui? Depois que a minha mãe fez a conciliação, meu pai disse calmamente que eu estava equivocado. Tentou me dizer que eu to-masse cuidado, falou sobre o que ele achava que significava o comunismo, tentou fazer minha cabeça, me orientar. E eu tinha uma namorada, cuja mãe era desquitada, o que incomodava muito meu pai. Coisas da época, moral da época, muito dura, muito rígida. Essa mulher, essa mãe, se relacionava com um comunista, que elogiava muito um avião russo. Acho que era um Tupolev, um avião muito superior ao ocidental. Eu comecei a dialogar com o padrasto de minha namorada, então eu fui clareando a minha visão. Eu estava me aproximando dos meus 20 anos e, em 1958, assumi a minha decisão. Meu pai nunca me mandou embora, ficou meu amigo... Anos mais tarde ele me disse que naquele dia, descobri que não dava mais pra te enfrentar, pois você tinha virado homem. Meu pai admitiu, com os anos, uma série de erros em relação ao udenismo e, a partir de uma certa época, na década de 1960, sobretudo depois de 68, ficou nitidamente contra a ditadura militar e passou a votar na oposição. Deixou de votar na Arena, optando pelo MDB. Ele mudou muito. Eu mudei menos. Mas o Lacerda era o grande herói, que impressionava pelo dinamismo, pela dialética no discurso, e aparecia como realizador. Mudou a cara do Rio quando foi governador. Houve um momento muito interessante em minha relação com meu pai, uma coisa muito forte em nossa vida. Veja quantas vezes falei de meu pai aqui. Até hoje guardo na lembrança as coisas que ele fez por nós, o que ele plantou pra gente, nos dando condições de estudar, mesmo com sacrifícios. Minha irmã se chama Maria Helena. É dedicada à família. Nós somos amigos, ela é uma professora de português, me ajuda muito na solução de algumas dúvidas gramaticais quando necessito mais precisão na linguagem. Ela é adorada por ex-alunos. Hoje, aposentada, ela corrige teses de doutorado e mestrado. Enfim, tudo isso serve para mostrar o seguinte: na verdade, sou um sujeito político. Estou tentando fazer uma panorâmica da minha historinha, mas com um background político, coisa que faço sempre nos meus trabalhos. Não sou capaz de falar de mim, de coisas pessoais, sem me referir a uma coisa maior, como essa paisagem social que cercou minha vida. O meu teatro é assim, e também minhas novelas, minhas minisséries. É uma característica minha. Capítulo VI Surge Finalmente o Autor Em 1960, me formei engenheiro, quando já havia escrito algumas peças, entre elas Este ovo é um galo, que foi muito bem acolhida e que me deu um prêmio no Festival de Amadores, em 1959. Osmar Rodrigues Cruz era o presidente de uma associação de amadores teatrais de São Paulo e foi quem pela primeira vez prestou atenção em mim, no meu texto. O Osmar foi uma pessoa muito importante na minha carreira, uma pessoa que leu minhas peças e disse, categoricamente: você tem talento, tem que prosseguir; falta muita coisa ainda, e você precisa estudar mais, tem que ler outras coisas. A partir daí virei um autodidata, comecei a ler bastante e me liguei ao teatro. Além das informações que eu recebia do Osmar, me indicando as peças que eu deveria ler, eu era um fã ardoroso do Suplemento Cultural do jornal O Estado de S. Paulo, onde se podia ler Sábato Magaldi, Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado. Artigos preciosos, sobretudo os do Sábato, que se dedicava à dramaturgia brasileira. Comecei a ler de tudo, meio desordenada e freneticamente. No afã de ordenar as ideias, construí um dodecálogo de dramaturgia para meu uso pessoal. Regras que eu não poderia infringir, todas organizadas a partir dos artigos que o Sábato escrevia no Suplemento, que eram excelentes. Eu tinha consciência da minha carência, por ser um estudante de engenharia. Tinha dificuldades para entender algumas concepções filosóficas, carência de informações humanistas, na medida em que meu mundo na faculdade era o das ciências exatas. Eu sentia que havia um vácuo, um buraco na minha formação. Decidi, então, procurar o seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, onde se estudava com profundidade, a partir de teorias trazidas pelo Augusto Boal dos Estados Unidos. Procurei por ele. Mas eu não queria só isso, só o seminário. Queria mais. Eu vinha paquerando o Arena e levei para lá algumas peças minhas. Ele leu as peças e me disse: vou dar uma segunda-feira para o seu trabalho. Uma experiência. E me deu três segundas-feiras para montar espetáculos com atores amadores, dirigidos, não por mim, mas por outros, como Antônio Ghigoneto e Roberto Rocha Coelho. O Boal se justificava: Estamos discutindo agora sobre alienação. Você sabe o que é alienação? Respondi com firmeza: estão discutindo sobre loucos? Ele riu: não é bem isso... estamos analisando o comportamento do homem diante da sua própria circunstância. Fiquei envergonhado: puxa como estou longe, como estou por fora, ainda! Percebendo a minha aflição, ele disse: Tenho um bom caminho pra você. O Alfredo Mesquita vai abrir o primeiro curso de dramaturgia em São Paulo, na Escola de Arte Dramática. Eu vou dar aulas lá e além de mim, vão também o Sábato, o Anatol, o D’Aversa e outros. Eu me encantei, pois era toda aquela turma que eu bebia no Suplemento Literário do Estadão. E eu fui lá, me inscrevi. Na época eu já trabalhava como engenheiro. Eu me inscrevi e fiz uma espécie de vestibular, apenas uma redação, nada mais que isso, e fui aprovado. Fiz a EAD e lá entrei em contato, didaticamente, com a cultura humanista que me faltava: filosofia, estética, teatro. Fiz os dois anos regulares e me formei. Um novo sistema muito mais vivo foi colocado pelo Boal, apoiado na dialética hegeliana, que ele aperfeiçoou, a partir de John Howard Lawson, um teórico americano marxista. Tempos depois acabei por ler o livro básico do Lawson e entendi que Boal havia dado um passo à frente, aperfeiçoando mesmo a teoria do crítico americano. Ao contrário do meu dodecálogo, que era rígido, fechado, um receituário, a visão de Boal criava todo um universo, uma forma rica de encarar a dramaturgia, com apoio da dialética hegeliana. Um processo de análise da natureza, riquíssimo, forte, abrangente, adaptado para a dramaturgia. É um processo de uma riqueza espantosa porque não estabelece regra de feitura de peças teatrais, ao contrário, estabelece um método para pensar a ação dramática. É muito mais eficiente e eficaz pensar a ação dramática como um sistema, do que estabelecer uma série de regrinhas rígidas de boa dramaturgia. O sistema parte da tríade hegeliana, tese, antítese e síntese, e mostra que, se dramaturgia é refazer a vida no palco, você pode compor vidas e relações a partir da dialética, fazendo a inter-relação de dinâmicas que se contradizem. Ao mesmo tempo, Hegel tem toda uma poética que facilita essa ponte entre a dialética dele e a possibilidade de análise da estrutura dramática. Em resumo, o que Boal propunha nessas aulas era: teatro é conflito, ou seja, de um lado há um personagem com uma vontade nítida e objetiva, de outro lado o antagonista, também com uma contravontade objetiva e clara. Esses dois entram em choque – tese / antítese – gerando uma evolução dinâmica nesse conflito, evoluindo até certo ponto, em que há um salto de qualidade nessa relação, que em geral é o clímax da relação entre os personagens. É claro que personagem pode ser um grupo de personagens, contrapondo-se também a um outro grupo de personagens. O genial é que isso permite um desdobramento com milhões de possibilidades, e eu mesmo a partir disso já enriqueci bastante esse processo. Independente do que assimilei do Boal/Lawson, via Hegel, eu consegui evoluir com minha experiência de anos e anos de dramaturgia, já evoluí para desdobramentos incríveis a partir desse ponto de partida. Renata Pallottini escreveu uma tese de doutorado excelente, na qual também faz essa mesma abordagem. Chico de Assis, ator e dramaturgo, é quem mais conhece essa visão dialética da dramaturgia. Essa base norteou toda a nossa geração. Curiosamente, o próprio Boal não sistematizou, não escreveu a respeito, ficando tudo como um poderoso chip dentro de nós, onipresente, onisciente. É claro que tudo isso – é importante dizer – é um processo de trabalho que leva à comunicação. Colabora para gerar o fenômeno da comunicação dramática, mas, obviamente, não leva um autor a escrever melhor. Não é um sistema que possa se traduzir em qualidade artística. Resulta, isso sim, numa mecânica de comunicação rica. Valendo-se de um método que enriquece a comunicação, a gente consegue aperfeiçoar o que tem a dizer, mas não é suficiente para um bom teatro, para uma boa peça. Outras matérias importantes da Escola de Arte Dramática contribuíram muito: Anatol Rosenfeld nos encantou com suas aulas de estética, o Sábato Magaldi com seu panorama da história do teatro brasileiro, o Décio de Almeida Prado e o Paulo Mendonça dissertando sobre o teatro universal, além do próprio Alfredo Mesquita, com sua experiência, seu brilho pessoal. Enfim a EAD foi muito importante, um berço fundamental na minha carreira, um momento de virada em minha vida. A escola também nos legou um forte sentido de ética teatral. Capítulo VII Teatro Décio de Almeida Prado disse sobre O Santo Milagroso: Lauro César Muniz, não há duvida, valeu-se de experiências anteriores do teatro paulista, aprendendo inclusive com algumas farsas apresentadas pelo Teatro de Arena, mas dentro desse esquema teatral, que dentro de poucos anos começará provavelmente a aparecer como perfil de todo um grupo de autores, que sabe manter sua autonomia e sua fisionomia próprias. Sua comicidade, sobretudo menos doutrinária que as de seus companheiros de geração e mais preocupada com o puro jogo das situações cênicas, não se confunde com a de nenhum outro. Na época, eu não gostei dessa crítica do Décio, pois eu queria ser doutrinário, queria ser inserido no grupão dos autores fortemente engajados. Mas aos poucos me dei conta de que aquele era o meu estilo. Eu entendi que eu não usava palavras de ordem, e o que fazia era trabalhar com minhas contradições. O Santo Milagroso tinha uma estrutura que era mais aberta, não tinha uma verdade acabada, e isso marcava uma característica do meu teatro. Muito mais tarde entendi que, para mim, importava mais lançar ao público as minhas próprias contradições do que verdades acabadas, didáticas. Passei a en-tender que minhas contradições e perplexidades encontrariam uma sintonia no público, que também tem suas contradições e perplexidades, gerando uma síntese muito mais enriquecedora do que a verdade imposta. Assim era, e é, o meu texto teatral . Eu não confio muito em verdades absolutas. Em O Santo Parto eu não fecho, jogo a contradição e deixo o conflito em aberto. Não sei, a rigor, se sou engajado, essa é uma palavra que limita muito. Aqueles dramaturgos fantásticos que fizeram um teatro político, como Sartre e Camus, discutiram temas, não deixaram palavras de ordem. O melhor Brecht usou com frequência a parábola, recuando no tempo, situando a ação em países distantes para discutir a sua Alemanha em seu tempo de horror. Não era apenas uma estratégia para fugir à censura, mas uma forma de ampliar sua análise política. Com exceção de suas peças mais urgentes, como Terror e Miséria do Terceiro Reich, ele evitou o realismo jornalístico do seu momento. Eu gosto muito das fábulas de O Círculo de Giz Caucasiano ou de A Alma Boa de Setsuan. Na verdade, continuo fazendo, porém não com a assiduidade de outros tempos, até porque são muitos os autores novos. Não há um autor brasileiro que tenha um texto que eu gostaria de ter escrito. Cada autor tem seu próprio estilo, idiossincrasias, valores e experiências pessoais. Dentre os autores brasileiros que mais admiro estão Martins Pena, Gonçalves Dias, que tem uma grande peça, Leonor de Mendonça, e guardo uma grande admiração pela obra de Nelson Rodrigues, de algumas peças do Jorge Andrade, do Guarnieri, como Eles Não Usam Black-Tie, que tem uma grande importância histórica. Mas aquele que eu mais admiro é o Plínio Marcos, que fez um teatro contundente, verdadeiro, cru, duro, que machuca. E a Consuelo de Castro, que tem um vigor nos diálogos que me entusiasma. Entre os mais recentes, admiro o Bosco Brasil e o Bortolotto, que tem uma nítida influência do Plínio. Programa da segunda montagem Capítulo VIII Define-se um Posicionamento Político Foi durante a Escola de Arte Dramática que fui atraído pelo Partido Comunista, através de muitos papos com uma aluna do curso de interpretação: por tudo que você escreve, por tudo que você pensa e diz, deveria participar de nossas reuniões do partido. Estávamos em 1961, e eu fui conhecer o lendário PCB. A célula do partido que reunia estudantes e alguns jovens atores de teatro me pareceu uma coisa primária, superficial, mesmo porque eram aulas para iniciantes, em estágio não muito avançado para quem quer saber o ABC do Comunismo, que era o nome de um livro básico do Bukharin, da Editorial Vitória, famosa cartilha de capa vermelha. Tudo parecia muito esquemático perto da riqueza que eram as aulas da EAD. Mas de qualquer forma era uma iniciação importante, era uma militância. Essa é a palavra chave, uma militância. Eu estava contribuindo para uma coisa que eu não sabia bem o que era, nem para onde ia. Aos poucos tudo foi ficando mais nítido e interessante, com tarefas que nos desafiavam a uma ação prática, que punham à prova nossa real convicção na causa revolucionária. Com o tempo, percebendo que éramos pessoas mais sensíveis, ligadas à arte, tivemos contatos com gente de nível muito bom, cujos nomes verdadeiros nunca eram revelados. Após o golpe de 1964, a coisa se radicalizou e tudo aquilo que havíamos assimilado na militância assumiu uma força fantástica: as discussões eram mais acirradas, mais profundas, mais contundentes e discutíamos as ações políticas mais adequadas ao momento: o que fazer diante daquele regime terrível, fascista, que cada vez se revelava mais truculento, violento e irreversível. A questão era: como reverter a situação? Analisávamos sob a forma de autocrítica partidária os fatores que levaram ao golpe e a absoluta falta de sensibilidade de nossos dirigentes, que avaliaram tão mal o momento que o antecedeu. As discussões eram acirradas, quentes. Com a censura aos meios de comunicação, recebíamos informes sobre a real situação do país. Mas nem sempre esses informes se comprovavam, ou seja... o inimigo era mais forte, mais bem aparelhado. Sem dúvida, um momento muito rico de minha vida: uma militância às escondidas, reuniões realizadas em lugares sempre diferentes, marcados na véspera ou no próprio dia através de contados pessoais preestabelecidos. Muitas vezes eu aguardava no bar um companheiro que me traria o endereço e horário da reunião do dia seguinte. Contribuíamos para o partido com pouca coisa, ninguém tinha dinheiro, e dávamos aquilo que era possível, uma mensalidade variável em função das possibilidades de cada um. Todos tinham codinomes, se evitava pronunciar nomes. Mas, por todo esse período, vale dizer que a escola foi realmente um momento fundamental na minha vida, onde as coisas se definiram com clareza: eu já sabia o que queria, já tinha adquirido uma série de informações sobre estética, filosofia, história do teatro, dramaturgia. Foi a época em que mais li, mais frequentei teatro. Tão importante quanto as aulas, era a possibilidade de dialogar com aqueles professores fantásticos, conversar com o Anatol Rosenfeld, nosso guru. Às vezes a gente saía depois da aula para tomar um chope com Anatol e bater papo. Era como um prolongamento das aulas da escola. Éramos um grupo entusiasmado e interessado em aprender coisas da cultura, teatral ou não. Tínhamos uma forte referência também com o cinema. Época áurea do Cinema Novo brasileiro. Íamos juntos ao cinema e depois comentávamos, esgotávamos o assunto. Do grupo faziam parte Renata Pallottini, Luís Carlos Cardoso, William Lacerda, intelectual ligado à publicidade, mas que não fez teatro, o Ênio, o Eduardo, a Lavínia... uma turma unida, de umas quinze pessoas. A Lavínia morreu num acidente de carro. Tínhamos no curso a companhia de Maria Thereza Vargas, secretária e braço direito do Dr. Alfredo, que frequentava o curso de crítica, com várias aulas em comum com o curso de dramaturgia. E tivemos uma colega que virou lenda, a Patrícia Galvão, a hoje reverenciada e admirada Pagu, foi nossa colega no início do curso, já bastante envelhecida. Foi nossa colega por uns três meses apenas. Naquele momento Pagu já não era uma mulher bonita e, além disso, estava doente. Em três meses deixou a escola. Não sabíamos bem quem ela era, pelo menos eu não sabia. Não conhecíamos bem a sua história, tínhamos informações sobre sua ligação com o Oswald de Andrade e Tarsila, mas desconhecíamos sua obra, sua participação nefasta no Partido Comunista. Ela falava muito pouco e não parecia entusiasmada com o teatro político. Se dizia socialista, mas anticomunista; sofreu muito dentro do partido, que havia exigido dela coisas absurdas, que chegou a cumprir. Quando participou de um movimento sindicalista em Santos, evento em que foi presa, o partido achou que ela tinha tido uma atitude romântica, precipitada, individualista, e submeteu a Pagu a uma autocrítica dura, mesmo sabendo que havia sido presa e sofrido torturas na cadeia. Num primeiro momento, ela não se importou muito, parecendo ter assimilado o episódio como parte da militância. Mas anos depois, já madura, ela fez uma análise mais firme e rompeu com o partido. Naquela época nós não sabíamos em detalhes dessa coisa toda. Ela participava de um movimento teatral que era forte, em Santos, e não acreditava muito naquela dramaturgia nascente brasileira. Era um pouco avessa, tinha uma visão mais internacionalizada, que parecia uma contradição ao que fora na juventude. De fato, gostava mais do teatro de vanguarda que se fazia no mundo. Mas não a tivemos por muito tempo lá, era arredia, pertencia a outra geração, já devia ter mais de 60 anos. Capítulo IX O Primeiro Sucesso Durante a Escola de Arte Dramática, eu trabalhei no texto de O Santo Milagroso, mas não o submeti à apreciação de ninguém, até porque comecei a escrever antes de entrar na Escola. Escrevi essa peça à mão. Papel almaço, com linhas... Foi o Osmar Rodrigues Cruz que me incentivou a ampliar O Santo Milagroso, peça de um ato que tinha sido feita no Arena, no teatro das segundas-feiras. Ele dizia que aquela situação era tão rica, que daria uma ampliação. Eu vi que tinha mesmo condições. Na peça pequena, acontecia uma relação entre o padre e o pastor, os dois que jogavam xadrez na cidade e se encontravam às escondidas. Eles tinham rugas políticas ideológicas, religiosas, discutiam bastante, mas não havia nada que os impedisse de jogar xadrez. Havia um casalzinho, que era a filha do pastor e o sacristão, que se apaixonavam. Ele vai mostrar a igreja à menina e, para não ser surpreendido ali, o padre cobre o pastor – coisa de farsa – com um sudário roxo. Era Semana Santa, e o pastor coberto como os santos da quaresma acaba por fazer um milagre, aconselhando a filha dele a não se unir ao sacristão católico. Era só isso. Essa situação, é claro, foi ampliada. Era o plot inicial, cresceu muito, virou uma peça de duas horas, em três atos, estrutura bastante comum naquele momento. Em 1962, apresentei a peça completa lá na escola, e foi lida com entusiasmo. Eu achava que a peça poderia estrear no Arena, afinal o Boal havia gostado, e achei que ele se entusiasmaria com a ideia. Mas ele nunca se manifestou sobre isso. Gostava do texto, via vários valores, mas nunca mencionou a hipótese de encenar no Arena. Nesse meio tempo, o Zé Carlos, namorado da minha irmã, hoje meu cunhado, que estava no elenco de A Visita da Velha Senhora, com a Cacilda Becker, entregou a peça ao Walmor Chagas, que dirigia A Visita. Walmor e Cacilda logo se interessaram pelo meu Santo. Nessa altura eu trabalhava como engenheiro e fazia a EAD à noite. Como engenheiro, eu já estava voando para outro mundo, já estava noutra, pensando em teatro, cinema, e tudo mais. A empresa na qual eu trabalhava chamava-se BORA – Bureau de Organização Racional Aplicada. Era uma companhia especializada em organização e racionalização do trabalho. Eu trabalhava nisso à tarde e à noite eu ia pra EAD. Como engenheiro eu me sentia um peixe fora d’água, um elemento estranho, fora do ninho. Achava meu trabalho insuportável, mas cumpria minhas tarefas, como um funcionário medíocre, acomodado. Havia uma distância muito grande entre mim e os colegas que discutiam projetos da empresa, as grandes novidades da computação, os cérebros eletrônicos, como chamávamos na época, que já começavam a substituir a mão de obra, com a IBM processando cartões perfurados e memorizando dados em enormes armários com rolos de fitas magnéticas. Um dia eu chego para almoçar em casa, ainda solteiro, na casa de meus pais, e Maria Helena, minha irmã, me recebeu dizendo que tinha um recado pra mim. Cacilda Becker ligou pra você. Eu respondi: E o Papa te ligou do Vaticano. Ela disse enfaticamente: Não estou brincando, Cacilda Becker ligou pra você. Deixou um número aqui. Trêmulo, peguei o telefone e disquei, me identificando. Alguém foi chamá-la, enquanto eu esperava com o coração batendo a mil. Mal atendeu o telefone, disse: adoramos a sua peça. E ela foi logo dizendo que, naquele momento, faria César e Cleópatra, de Bernard Shaw. Depois viajo com outro texto, enquanto coloco no meu repertório a sua peça. Isso vai levar um ano, mas eu quero te dar o avaloir, fazer um contrato com você para segurar a peça. Eu me comprometo a montar seu Santo em um ano. Fui para a EAD já com outra cabeça, pois estava vislumbrando um futuro ali. Na verdade, num primeiro momento, eu não me dei conta das razões que levaram a estrear, não no Arena, ao qual eu estava ideologicamente ligado. Naquele primeiro momento eu não entendi, somente mais tarde. A peça estreou em junho de 1963, quase na mesma semana em que me casei. Eu ainda estava trabalhando como engenheiro, mas não tinha mais condições de pensar em outra coisa que não fosse o teatro. A peça teve uma estréia memorável. No primeiro Teatro Cacilda Becker, no prédio da Federação Paulista de Futebol, onde hoje é a Universidade Ibero-Americana. Um espetáculo muito imaginoso e divertido, dirigido pelo Walmor Chagas. Os atores eram Jorge Chaia, no papel do padre, Ruy Afonso, como o pastor, Stênio Garcia, no papel do sacristão, Nilda Maria, no papel da irmã do pastor, Fredi Kleemann, como o Bispo. Um elenco completado por Cláudio Mamberti, que fazia uma ponta, e Plínio Marcos, que estreava ali como ator, com o nome de Plínio de Barros, fazendo o Zé Pescador, um personagem pequeno. Aí o Décio de Almeida Prado fez a tal crítica de que eu me diferenciava dos autores da minha geração, coisa que só entendi anos depois. Na verdade, o que eu fazia, era contrapor as forças sociais, mas não dava soluções acabadas. Isso me diferenciava mesmo da turma do Arena. Daí, talvez, a resistência do Boal em encenar O Santo Milagroso. As peças do Arena tinham um arcabouço ideológico muito nítido, com uma ideia ou mensagem bem definida. A minha peça não tinha isso: eu jogava com as contradições, as minhas próprias contradições... O padre e o pastor, colunas da minha contradição religiosa: eu, um cara de formação católica, estudara numa universidade presbiteriana. Embora tivesse já uma visão materialista e visse aquilo tudo meio de fora, mantinha um carinho pelo padre e pelo pastor protestante: a formação católica em contraponto com a influência da universidade presbiteriana, sutil, mas presente. Essa era a minha contradição quando concebi a peça: o padre e o pastor, usando um falso santo milagroso, manipulavam, unidos ecumenicamente, a população da cidade, sem que fossem punidos por isso. O fecho da peça ficava em aberto, e no fundo as intenções dos dois eram boas, conquistar a população pra manter uma escola ecumênica, a ideia que estava se fortalecendo naquela época, através do pensamento de João XXIII. Tudo isso com uma visão farsesca, sem nenhuma concessão religiosa. Enfim, meu materialismo já me permitia desligar-me de qualquer crença. Mesmo assim, eu não contestava a fé do padre e do pastor. Não me sobrepunha aos personagens com minha visão não religiosa. Quando entendi isso, ficou nítido para mim porque Boal não se interessou em montar no Arena. Conforme disse, estava fora da linha do Arena, que possuía uma certeza ideológica bem definida. O que parecia num primeiro momento uma deficiência, mais tarde eu vi que não era. Ao contrário, aquilo dava uma certa chance da peça continuar viva através dos tempos. Quando se fecha muito nas necessidades do momento, a peça fica datada. O Santo Milagroso ainda hoje é encenado por este Brasil afora, a peça está viva, porque a contradição está lá, plena. Foi montada várias vezes anos depois da estreia, e encenada no Teatro Popular do Sesi, com direção do Osmar Rodrigues Cruz. Ficou três anos em cartaz e ultrapassou a cifra de 700 mil espectadores. O filme, produzido por Oswaldo Massaini, em 1965, passa a todo momento na televisão e está inteirão. Outro dia meu neto ficou grudado, durante as duas horas que o filme leva, se divertindo, curtindo até o fim. O elenco, dirigido por Carlos Coimbra, tem Dionísio Azevedo, que faz o padre, Leonardo Villar, o pastor, a irmã do pastor é a Vanja Orico e o sacristão, o Geraldo Del Rey. Capítulo X Fechando os Croquetes Eu me casei na Igreja Católica. A cerimônia foi na igreja Nossa Senhora do Carmo, justamente onde eu havia feito a primeira comunhão. Eu satisfazia a família da noiva e ainda mantinha uma fachada de bem comportado engenheiro. Nada mais hipócrita para um materialista do Partidão, autor de uma peça irreverente. Havia no ar um clima de otimismo: nos Estados Unidos, Kennedy no poder, na União Soviética, Kruschev acenava para novos caminhos do socialismo, mostrando a verdadeira cara do stalinismo, no Vaticano, um papa bonachão e progressista acenava com reformas, prometendo uma nova Igreja, ecumênica, mais liberal... O mundo parecia que estava melhorando muito, a Guerra Fria estava meio arrefecida, Kruschev estendeu a mão pro Kennedy, houve aquele episódio dos mísseis de Cuba, a iminência da Terceira Guerra Mundial, mas o choque foi evitado pela maturidade dos soviéticos, é claro. No País, Jango se afirmava como líder esquerdista, com Brizola ao fundo garantindo suas ações. A esquerda dava a impressão de que estava muito forte. O Jango dizia que faria uma república sindicalista, todo mundo conspirava, e a gente tinha certeza, nas reuniões do partido, que iríamos tomar o poder. Mas como Deus não existe mesmo, todo esse mar de rosas virou um tormento: Kennedy foi assassinado, o papa João XXIII morreu, Kruschev ficou cativo da ala mais reacionária da URSS... e no Brasil os militares deram um golpe... Mais uma vez o Partidão avaliou mal o momento histórico. No dia 30 de março, véspera do golpe, nós estávamos reunidos no Arena, discutindo ética marxista... Numa pausa de nossa discussão teórica, um companheiro chegou de Brasília, interrompendo nossa discussão e bradando heroicamente, como um mensageiro grego: estivemos com o presidente e ele nos disse, categoricamente, que se o Congresso não legalizar o partido ele fecha aquele dois croquetes. A gente aplaudia entusiasticamente. E disse mais, o Jango imporia sua república sindicalista. Quase cantamos a Internacional! Brizola agitava, botando fogo no País e... no dia seguinte, as tropas foram pra rua, veio o golpe, que nos pegou de calças curtas. Não podíamos acreditar no que estava se passando. Quanta alienação! Estávamos estudando ética marxista às vésperas do golpe! Aquele mundo cor-de-rosa, quase vermelho, desapareceu e a gente já começou a sentir as pressões, a colocar em dúvida o que a gente fazia. Poxa, tínhamos apostado tudo na verdade que os informes nos traziam! Eu falava abertamente, na empresa onde eu trabalhava, que eu era comunista. Comendo uma banana de sobremesa eu dizia: eu sou comunista! Como se dissesse: amanhã vocês todos estarão comendo diretamente numa cantina. Nós julgávamos que estávamos muito próximos do poder. A minha experiência pessoal é essa. Aí a barra pesou. Eu trabalhava com um colega que era russo, Wladimir Russov. O pai dele tinha uma loja de livros técnicos russos, sobre engenharia e tal, tudo o que a URSS fazia nessas áreas. Haviam empresas que se interessavam, pois a União Soviética estava com prestígio, tinha havido o Tupolev, o Gagarin, Sputniks. Estavam na frente na corrida espacial. Para meu espanto, o colega russo foi despedido da empresa. Foi um choque para mim. E eu dizia, perplexo: o comunista sou eu, o Wladimir é anticomunista. Me aconselharam a calar a boca... A polícia mandara fechar a livraria do pai dele. Livros técnicos russos, não podia. Dias depois, eu estava na sede da empresa, numa reunião, quando chegou um engenheiro principal e dis-se pra mim: você ainda é comunista? Ou não é mais? Começou a tirar sarro de mim, o cara quis me gozar. Eu disse que ele havia cometido uma injustiça com o Wladimir e reafirmei que era comunista, que eu é quem deveria ser despedido e não o Wladimir. Uma vez meu nome apareceu em uma lista de suspeitos, ligados ao teatro, de estarem transmitindo mensagens subversivas por uma rádio clandestina. Ridículo! Cacilda Becker e Nagib Elchmer, que era presidente da Comissão Estadual de Teatro, livraram a nossa barra. A ditadura começava a mostrar a sua cara. Não sei se os engenheiros da minha empresa souberam desse acontecimento, mas o fato é que comecei a sentir pressão e uma vigilância nada sutil. Entendi que estava na hora de ir embora daquele mundo, daquela empresa, que a coisa estava ficando ruça. Peguei meu bonezinho, o bonezinho do Lenin, e me mandei. De repente, apoiado por um poder totalitário, o reacionarismo das pessoas aparece nitidamente. É claro que eles eram pequenos burgueses em ascensão, alguns já burgueses vitoriosos mesmo, individualismo exacerbado... Tinham uma imagem caricatural do socialismo, pensavam que as casas deles seriam divididas, tinham horror a isso, e as lendas crescendo, crescendo, comunista come criancinha... Hoje quem come criancinha é padre. O ano de 1965 marcou o nascimento do meu primeiro filho, o Ricardo, e eu já vinha ganhando dinheiro com o sucesso da peça e com a venda dos direitos para o cinema. Cacilda e Walmor levaram O Santo Milagroso para o Rio. Em Curitiba houve uma montagem nova com direção de Cláudio Correia e Castro e com Nicette Bruno e Paulo Goulart no elenco. Eu estava escrevendo uma nova comédia, A Morte do Imortal e meus planos eram abandonar a engenharia e viver do teatro, romper de vez com a hipocrisia, resolver minha contradição pequeno-burguesa, segundo o jargão da militância. Com o tempo, percebi que seria muito difícil viver do teatro e busquei apoio na televisão. Devo dizer que antes de 1961 eu tinha escrito algumas peças para um teleteatro, na TV Excelsior, que era apresentado ao vivo, um programa preocupado em divulgar apenas autores brasileiros, uma produção do Álvaro de Moya. Mas em 1966 a televisão queria telenovelas, que entraram para valer a partir de 1963. Fiz então contatos com as agências de publicidade, pois naquele tempo eram elas que selecionavam os temas e produziam as novelas. A empresa Kolynos, por exemplo, tinha como agência a McCann Erickson, contando com Ivani Ribeiro, uma autora que vinha do rádio. Na McCann, consegui uma entrevista com Zaé Júnior, responsável pelo horário mais nobre da TV Excelsior. Ele tinha visto o filme O Santo Milagroso e disse a alguém: esse cara sabe contar uma história, tem condições de escrever uma novela. Mas o papo com a agência só ficou no elogio, acabou se esvaziando, pois a Ivani Ribeiro queria emendar uma novela na outra, não parecia interessada em dividir o horário. Então, eu fui tentar a agência da Colgate, a J. W. Thompson, e foi aí que eu tive contato com uma figura bizarra, Glória Magadan, uma cubana exilada, uma verdadeira deusa da novela latinoamericana, que tinha vindo assumir o controle da área na agência. Fiz uma sinopse, apresentei meu projeto. Ela leu e disse que não, que novela não era isso, que eu não tinha as características de um escritor de telenovela, onde o dramalhão tem um peso predominante. Depois me falou da desgraça que se abateu sobre Cuba e contou uma história que teria acontecido quando ela fugiu da revolução cubana, pelo mar, com a família que estava deixando para trás seus bens, sua pátria, sua história. No creo en la charla, pero... ela me contou. Vou contar exatamente o que ela me disse. Glória e a família estavam em um barco, sofrendo muito, deixando pra trás su tierra querida e, de repente, o céu escureceu e o mar ficou muito agitado. O barco ficou à mercê das ondas gigantescas. Estavam todos perdidos, desorientados! Foi quando o céu se abriu, lindas estrelas apareceram e então... aleluia... apareceu Nossa Senhora! Os olhos de Glória se encheram de lágrimas, ela persignouse... e eu, cara de pau... fiquei compungido, precisava do emprego. E a imagem da Virgem Santa apontava o caminho de Miami... Não deu certo. Nem na McCann nem na Colgate, mas abandonei a engenharia assim mesmo. Nenhuma santa me apontava um caminho. Lá pro meio do ano, ainda sem trabalho, comecei a ficar preocupado. Queria produzir uma peça e não conseguia, havia uma censura bastante rigorosa e vigilante, principalmente na questão ideológica. Capítulo XI A Hora e a Vez da Televisão Tive de deixar o apartamento da Pamplona, pois não conseguia pagar o aluguel, e fui morar numa casa do meu sogro, que estava vazia. Eu pagava a ele um aluguel simbólico. Meu casamento deteriorava... Houve um momento em que não pude mais pagar o aluguel, e fui pressionado para voltar a ser engenheiro. Foi então que cruzei com o Dionísio Azevedo, que eu havia conhecido nas filmagens de O Santo Milagroso. Dionísio estava encarregado de abrir um novo horário de novelas na TV Excelsior. E, baixinho, ao pé do ouvido me disse: escreva do seu jeito, mantenha seu estilo, não analise as novelas alheias. Assim estreei minha primeira novela, Ninguém crê em mim, baseada no mito grego de Electra, que eu trazia para os tempos atuais. Substituía o reino grego por uma empresa nacional. A jovem Electra (Helena) voltava ao Brasil para investigar a morte do pai, e se confrontava com o novo marido da mãe. Flora Geny, mulher do Dionísio, era Helena, e grande parte do elenco foi escalado de forma muito criteriosa. Tendo um autor de teatro, Dionísio optou por lançar vários atores teatrais. Foi a estreia em novela de Raul Cortez, Renato Borghi, Etty Frazer, Egídio Eccio, Altair Lima e o Antônio Abujamra. O Abu me pediu um papel e eu bolei para ele um líder sindical. Apesar da qualidade do elenco e do arrojo do Dionísio, a novela não foi bem. Eu ainda não tinha o domínio da técnica da telenovela. Eu não dominava o meio, fugia aos estereótipos que desde os tempos do rádio eram aceitos pelo grande público. Eu evitava o melodrama, o maniqueísmo, as personagens tinham contradições. Até para o vilão, pai de Helena (Electra), eu buscava uma justificativa. Mas a novela trazia uma contribuição reconhecida por todos: buscava uma temática nacional, trazia para a telenovela a linguagem coloquial do dia a dia. Os personagens eram empresários que se contrapunham a operários brasileiros, havia um sindicato, enfim, todo esse contexto era uma coisa estranha para os ouvidos de quem assistia a telenovela na época. Tenho lido em alguns estudos sobre telenovela ou em teses de doutorado citações de Ninguém crê em Mim como uma tentativa pioneira. Era muito cedo para essa experiência, dizem alguns críticos, historiadores da televisão. Talvez fosse. Mais tarde deu certo com outros textos. A novela teve apenas setenta e poucos capítulos, índices abaixo da média, e em vez de ir subindo, ela foi caindo. Uma audiência que deveria ter por volta de 20 pontos -não era tão alta como hoje ainda consegue a Globo – pois havia a concorrência da Tupi, e índices de 23 ou 25 eram ótimos, havendo picos nos finais. Não foi um sucesso, mas os críticos de televisão da época que votavam o Troféu Imprensa deram a mim o prêmio de melhor autor do ano, para minha surpresa, para espanto geral de todos. Justificaram que havia uma novidade no meu texto, um diálogo mais coloquial, que no dia a dia se ouvia o brasileiro falar. A partir do insucesso de público, eu pensei: agora não faço mais novela, a Gloria Magadan tem razão. A Excelsior foi a raiz da Globo, em tudo: na área de shows, nos teleteatros do Moya e principalmente na maneira de fazer novela, absorvendo os grandes talentos do teatro e do cinema. Num primeiro momento, a TV Globo acreditou no universo internacional e estereotipado de Gloria Magadan. Depois lançou a Janete Clair, que contava suas histórias em ambientes que tangenciavam a realidade do país. Mais tarde, bem depois, o Brasil pintou na tela da Globo... Quanto a mim, fui buscar outros caminhos e estreei outra peça, que foi o maior sucesso, em 1966: A Infidelidade ao Alcance de Todos que tinha no elenco Procópio Ferreira, Rodolfo Mayer, Glória Menezes, Rosamaria Murtinho, Francisco Cuoco e Altair Lima. Elenco espetacular, com direção de Walter Avancini. Uma peça de seis quadros, em que o triângulo amoroso acontece em núcleos sociais diferentes: na favela, na burguesia, entre políticos comunistas, no mundo de um artista e na província. Seis pequenas peças feitas alternadamente por três atores. Um enorme sucesso, permanecendo em cartaz por três anos, no mesmo teatro, o TBC, com casas lotadas. Vislumbrei um tema popular e o transformei em sucesso? Tinha consciência da descoberta de uma mina de ouro? Não. O jovem autor era por demais arrogante para aceitar a felicidade do teatro. Fico muito triste e envergonhado sempre que os fatos que antecederam esse sucesso me vêm à lembrança... Escrevi uma peça com a fórmula infalível da comunicação imediata. Mas me negava a jogar o sucesso às feras, aos críticos, aos intelectuais, aos quais muitas vezes eu me submetia. Liberei a peça para fazer carreira no interior, condicionando a estreia em São Paulo ao resultado. A peça estreou em Catanduva. Vejam só o que eu fiz: submeti o Procópio Ferreira ao meu crivo, à minha crítica, ao meu julgamento! Um absurdo, uma arrogância, que me dói no peito até hoje. Fui a Catanduva com a empáfia de um juiz, e senti no elenco um clima de mágoa, embora muito respeitoso. Quando vi a encenação, a qualidade do elenco e a reação do público, entendi a violência da minha ação. A comédia arrancava gargalhadas do público, aplausos, profundo encantamento. Um sucesso incrível. Como negar ao teatro o direito de abraçar o público com tanto carinho?! Fiquei encantado. Fazendo uma autocrítica, coisa a que estamos acostumados, posso dizer a bem da verdade que o jovem Lauro tinha uma certa arrogância. O velho Lauro diria hoje para o jovem Lauro: isso é coisa que se faça, menino, submeter o grande Procópio Ferreira ao seu julgamento?! Me desculpei com o elenco e viemos para a capital, estreamos no TBC, e ficamos três anos em cartaz: 1966, 1967 e 1968! Com o mesmo elenco! Às vezes parava um, para descansar. Saía o Altair, Mauro Mendonça fazia duas semanas. Procópio e Rodolfo nunca saíram. Me perdoem, grandes atores... Tive a grande felicidade e o privilégio de conviver com Procópio Ferreira. Era um homem com uma visão excepcional do espetáculo, um ator total! Tinha um domínio cênico, uma força de comunicação impressionante. Já tinha seus setenta e poucos anos. Por muito tempo olhei para o Procópio envergonhado. E ele me chamava de senhor Lauro. Achei que era ironia. Um dia, mais à vontade, cheguei pra ele e disse: seu Procópio, não me chame de senhor. Como quer que eu lhe chame? De Lauro, respondi... Ele olhou longamente pra mim e disse, sorrindo: o senhor é o meu autor. Ficamos muito amigos, o ressentimento desaparecera, Procópio era um homem maior, não guardava pequenos ressentimentos. Aí eu o conheci melhor. A gente saía do espetáculo e ía tomar caipirinha no Gigheto. Escutei dele histórias maravilhosas, fantásticas. Mas sempre me chamando de senhor Lauro. Até hoje escuto: o senhor é o meu autor... Procópio chegava sempre muito cedo ao teatro. O espetáculo começava às 9 horas, ele era o primeiro a chegar por volta das 6 e meia. Olhava para a colmeia da bilheteria... Colmeia? Era a planta da plateia com buraquinhos onde eram colocados os ingressos enrolados como canudinhos. Olhando os lugares vazios da colmeia, era fácil saber quantos ingressos tinham sido vendidos. Ele batia o olho na colmeia e dizia: vamos ter hoje cerca de 420 ingressos vendidos. Nunca errava. Naquele tempo as apresentações eram de terça a domingo, com duas sessões no sábado e no domingo. Oito espetáculos semanais. Chegamos a fazer espetáculos em 31 de dezembro, com casa boa, veja só! Em dia de natal também... Procópio não admitia suspender espetáculos. Ganhamos todos muito dinheiro. Meus 10% ali eram sagrados e a SBAT era eficiente. Toda noite estava lá o fiscal. Ele conferia o borderô com o marcador de mão que ele trazia. Hoje não há mais nenhum fiscal, ficamos nas mãos do empresário, produtor. Aliás, essa figura de produtor deixou de existir. Peguei a grana e viajei. Não, foi depois. Antes, o Benedito Rui Barbosa, que trabalhava na Denison, uma agência de propaganda que tinha a conta de um sabonete qualquer, me dis-se: você errou em Ninguém Crê em Mim, mas dá para sentir que você leva jeito. Se você se apoiar em um romance, fizer uma adaptação, poderá fazer uma boa telenovela. E me propôs fazer O Morro dos Ventos Uivantes. Eu tinha visto o filme, mas não tinha lido e livro. Peguei o livro, li e fiz a novela. Deu 120 capítulos... Dessa vez, um grande sucesso. Enorme audiência. Supervisão do Dionísio Azevedo, com Irina Greco e Altair Lima nos papéis principais. Tendo uma espinha dorsal já muito nítida, personagens muito bons, história muito instigante, o sucesso veio. Mesmo mantendo a ambientação inglesa, com aquelas charnecas, busquei um contato com a realidade brasileira da década de 1930, momento de decadência da aristocracia brasileira. Tinha isso em mente, mas sem transferir a ação para o Brasil, apenas ligando os personagens a uma estrutura mais próxima de nossa realidade. Na verdade, o romance não é tão grande assim. A parte do texto que interessa vai até a morte da Cathy. Depois da morte dela a narrativa não é tão interessante e o livro se estende muito, quase se arrastando, mas de qualquer forma é uma obra literariamente muito sólida. Com o sucesso de O Morro, a televisão começou a prestar atenção em mim. Ainda era ligado à TV Excelsior, na qual já começavam a aparecer sinais de decadência, com salários atrasados, desorganização da produção. Capítulo XII Televisão A Escola de Comunicações da USP começou a organizar um acervo sobre telenovelas, mas o museu pegou fogo, quase tudo se perdeu. Muitas emissoras destruíram novelas sob o pretexto de usar as fitas para gravação de outros programas. Quantas fitas de As Pupilas do Senhor Reitor, que fiz na TV Record, viraram jogos de futebol. As imagens se perderam, mas existe o texto. Talvez possam ser encontradas uma ou outra cena. A TV Globo guardou muita coisa, mas sei de muitas novelas que foram desgravadas. As minhas melhores novelas da Globo estão guardadas. O Mauro Alencar, grande conhecedor de novelas, organizou um acervo na Globo. Ele tem várias novelas copiadas, entre elas as minhas O Casarão e Escalada, completas.Outro dia jantei com ele e tive a emoção de assistir a um capítulo completo de Escalada. Está muito difícil hoje melhorar o nível da telenovela. Cada vez há menos chance. Com a explosão do neoliberalismo, a partir do fim do bloco socialista, as relações de mercado dominaram as ações do mundo, e a arte que busca se comunicar com as massas se inseriu em um perigoso estágio pragmático. O que aconteceu na última década do século passado com a música, com o cinema e mesmo com o teatro? Parte-se sempre do nível médio do espectador, consumidor. Não é por acaso que os programas de televisão hoje são chamados de produtos. Tecnicamente a televisão evoluiu bastante, com a tecnologia digital garantindo a qualidade de som e imagem e as muitas possibilidades abertas pela computação gráfica, dando condições a trucagens várias, ao esmero das produções, figurinos, maquiagem. Os atores continuam sempre e sempre evoluindo em grandes interpretações mas, o suporte de toda essa evolução, que é a proposta temática, o texto que sustenta a teledramaturgia, se intimidou, se adequou servilmente ao gosto mais popular, menos exigente do grande público. Com isso, é difícil impor hoje um padrão de qualidade melhor, sabendo que o espectador médio tem uma percepção muito baixa. A telenovela brasileira hoje está a reboque da percepção do espectador. Ao contrário da década de 1970... A década de 1970 marca o grande salto de qualidade da telenovela, quando impusemos uma nova estética. Na década anterior, houve uma ou outra novela que esboçava uma renovação, culminando com Beto Rockefeller, de Bráulio Pedroso, em 1968, um marco importante. Mas na década de 1970 havia uma intenção deliberada de propor uma nova visão, de renovar tudo, de mexer com a cabeça das pessoas com temas e formatos mais arrojados, num claro desafio ao marasmo conservador da ditadura militar. Havia um tipo de pacto entre os autores, pacto que até servia como emulação entre nós. A gente se provocava um pouco, havia uma amizade forte entre os autores, mas havia também uma saudável competição. Lembro do entusiasmo do Dias Gomes: Lauro agora vou fazer uma história que me anima, descobri um caminho. Ele falava de Saramandaia, que era realmente uma novela muito boa, trilhava o realismo fantástico. Na mesma ocasião eu estava fazendo O Casarão, misturando três épocas na mesma narrativa. Simultaneamente, estávamos inovando a narrativa, ele no horário das 10 e eu às 8. Servia como emulação mesmo. E ainda tinha o Mário Prata fazendo no horário das 7h: Estúpido Cupido. Qualidade muito acima da média. E depois veio o Jorge Andrade com Os Ossos do Barão. Discutíamos nossa ambiciosa intenção e sentíamos o claro apoio da direção artística da TV Globo, através do Daniel e do Boni. Hoje não sinto esse apoio, essa intenção por parte dos responsáveis pela qualidade temática das novelas na TV Globo. Ao contrário, sentimos todos um nítido retrocesso, uma busca de comunicação fácil, através de histórias rocambolescas, que se nivelam com a telenovela mexicana que tanto combatíamos no passado. No final do ano passado ouvi de um diretor importante da emissora que sua intenção era mesmo fazer novelas no nível das mexicanas, a qualidade se norteando apenas pelos índices de audiência. Hoje há que se submeter plenamente à cabeça de pessoas muito pouco exigentes e que nem têm capacidade de distinguir o que é qualidade artística. Há uma interpretação corrente de que com o Plano Real e o fim da inflação, as classes C e D ficaram com mais dinheiro no bolso e tiveram condições de comprar muitos aparelhos de TV de melhor qualidade de imagem, com controle remoto etc. Com isso o número de aparelhos cresceu muito e o nível de percepção da qualidade baixou bastante. E as novelas passaram a atender a esse público de baixo nível, que consome mesmo o lixo cultural. O Boni não concorda com essa tese e acha que tem que se impor a qualidade, que o público deve ser conquistado. A ele é atribuída uma frase que sintetiza isso: a televisão deve estar sempre um passo à frente do telespectador. Eu gostaria que a qualidade plantada pelo Boni e sua equipe ainda prevalecesse, mas não é isso o que eu tenho visto. Ao contrário, a gente está cada vez mais servil ao lixo... Os meus pensamentos fogem da cabeça como a espuma de um copo de chope. Para que acabar de queimar os meus olhos sobre velhos textos de novela? Tiveram o seu tempo, viveram o seu momento. O que eles continham de tão precioso? Que esperava ainda encontrar neles? Alguma coisa ainda, alguma coisa misteriosa, vaga e sublime, que antes me enchia de entusiasmo. De que me serviram!? O mundo mudou, as pessoas mudaram e eu não mudei. Por quê? Não sei... há uma amargura rondando os meus sentimentos, querendo deles se apossar. Mas não deixo. Capítulo XIII Conhecendo o Socialismo Real, Veio a Desilusão Real Minha situação se estabilizara com os sucessos no teatro e na televisão. Fernanda nasceu em 1967, em berço mais confortável que Ricardo. Em 1968, com a grana poupada, decidi viajar e conhecer os países socialistas. Ainda era possível viajar para a URSS. Pensava na Europa socialista, mas em primeiro lugar cheguei a Lucerna, na Suíça, devido ao roteiro. De lá fui para Viena e depois para Praga, onde aconteceram fatos marcantes que me abriram a cabeça. Vivia-se a chamada Primavera de Praga e o presidente era o Alexander Dubcek. Estávamos numa esquina de Praga, abri uma planta da cidade para me situar e um cara chegou por trás e perguntou: alguma dificuldade, companheiro? Um espanto. Era um jornalista brasileiro que se aproximou de mim, Mauro Santayana, que estava exilado e trabalhava na Rádio Nacional de Praga. Estava lá desde 1966. E ele então me mostrou o que era o socialismo de Dubcek. Me levou às choperias fantásticas de Praga, com aquelas mesas coletivas, grandes, chope escuro, delicioso. Os checos levantavam os copos e davam vivas ao Dubcek, subiam na mesa, faziam discursos que Mauro, que já entendia o checo, traduzia um pouco para mim. Eu fiquei inflamado e proclamei: esse é o socialismo que acho legal, uma proposta de libertação, liberdade de expressão. Eu não tinha ido ainda à URSS. Na hora de partir, ao chegar ao aeroporto para ir a Berlim e preencher uma ficha de saída, eu tinha que apresentar um documento da troca de dinheiro que eu tinha feito no meu desembarque em Praga, como qualquer turista, uma guia de troca de moedas. Com muita naturalidade, típica das pessoas que nada têm a esconder, eu disse pro Mauro para ele traduzir para o funcionário que havia comprado as coroas checas em Viena. Ele falou: Não diga isso em hipótese nenhuma! Eu havia trocado dinheiro em Viena, num câmbio absolutamente absurdo. Entrei num banco pra trocar dinheiro em Viena e vi lá um guichê que oferecia coroas checas. Achei prático e troquei, não sabia qual a verdadeira relação entre as moedas, se é que havia alguma verdadeira. Troquei normalmente, calculando que precisaria de 20 dólares por dia. Acontece que eu recebi um valor equivalente não a 200 dólares, mas a mil dólares! Então eu estava rico em Praga, só que eu nunca parei para ver o valor do câmbio. Para mim as coisas eram baratas. Eu vi no desembarque, quando da chegada, as pessoas comprando coroas e disse: ah, eu não preciso, já troquei. Facilitei a minha vida. Na hora de deixar Praga os caras me pegaram. Viena buscava com isso minar a economia checa. Aí o Mauro, percebendo a gravidade da situação, assumiu perante as autoridades que eu havia ficado sob a responsabilidade dele. Eu o convidei para vir aqui, disse ele em checo, e paguei todas as despesas. O avião já estava chamando, os passageiros embarcando e eu ainda discutindo com o funcionário. Quando eu cheguei em Berlim mandei uma carta para o Mauro, dizendo que era para ele usá-la em sua defesa, se necessário. Deixei claro na carta que, sem saber, havia trocado dinheiro em Viena sob um câmbio aviltante para a Checoslováquia! Usasse a carta como quisesse, para proteger-se. Mas felizmente nada aconteceu com ele. Cheguei em Berlim Oriental, mas eu havia reservado hotel em Berlim Ocidental. Consegui, por meio de um escritório de turismo, um traslado, através do muro, para Berlim Ocidental. Mas não me interessava Berlim Ocidental. Tudo muito bonito, moderno e organizado, vitrine do ocidente: injetaram muita grana lá para ostentar as maravilhas do mundo capitalista – sem dúvida uma cidade interessante, movimentada e rica, uma vida noturna fantástica, mas eu não tinha interesse. Todo dia eu pegava o trem, o metrô, para ir a Berlim Oriental. O metrô atravessava o muro por baixo e então, a partir daí, as estações orientais estavam fechadas, ostentando soldados com armas nas mãos. E, ao ver alemão armado, você lembra logo dos nazistas. Apenas uma estação do metrô ficava aberta para o desembarque de turistas ou pessoas previamente autorizadas. Era a Friedrichstrasse, justamente onde ficava o Berliner Ensemble, do Brecht. Éramos então submetidos a uma revista incrível, horrível, onde devíamos declarar tudo que tínhamos nos bolsos ou nas bolsas, que eram esvaziadas: dinheiro, objetos de valor, etc. Todos os dias. Com o passaporte brasileiro eu tinha direito de ir a Berlim Oriental todos os dias, mas os alemães tinham direito a visitar o lado oposto apenas uma vez por ano. Os parentes que moravam em Berlim Ocidental tinham direito de visitar parentes da Oriental uma vez por ano. A viagem de volta à noite, quando pegava o último metrô, era uma coisa pungente, de cortar o coração: a despedida daquelas pessoas, gente chorando, homens e mulheres agarrados uns aos outros, e eu ali no meio, chocado com aquilo tudo. A tradutora Elizabeth Kander, que havia traduzido Pluft, o Fantasminha, que foi encenada em Berlim Oriental, me pediu que trouxesse, da Alemanha, o dinheiro retido lá, os direitos da tradução. Ela tinha metade igual à autora, Maria Clara Machado. Elizabeth morava em São Paulo. Fui então à agência encarregada de arrecadar os direitos e me informaram que o dinheiro era irreversível, que eu não poderia levar o dinheiro. E eu perguntei então como deveria proceder, e eles me disseram: você recebe os marcos, compra o que quiser e leva o dinheiro em mercadorias. Me botaram uma menina à disposição, uma alemãzinha linda que falava espanhol, e eu fui fazer compras em Berlim Oriental. Comprei projetores de cinema, filmadoras, casacos, peles, era muita grana, comprei muita coisa. E tudo num dia só. Comprei coisas pra mim também, pensando que iria acertar, na volta, com a Elizabeth. Aí a menina me levou à estação e na hora de me despedir, eu brinquei com ela. Abri uma sacola de compras e disse, pule aqui dentro, que eu te levo. Pois não é que a menina começou a chorar, não esqueço o rosto daquela menina loira, linda, de olhos azuis, lágrimas escorrendo. Abracei a menina fortemente, mas ela chorava bastante, tentando sorrir. Você tem parentes do outro lado?, eu perguntava. Ela acenava com a cabeça, dava a entender que sim, mas mostrava que não podia falar ou tinha medo de falar. Aquilo tudo me impressionou terrivelmente, aquele muro era horroroso, tenebroso. O muro era formado por grandes blocos de tijolos, misturado com fachadas de casa. Derrubavam a casa, fechavam portas e janelas e parte do muro se mantinha como paredes de casas. Arame farpado na parte superior, torres com holofotes, soldados com metralhadoras. Berlim Oriental ainda estava destruída, com marcas de fuligem dos bombardeios... e já era 1968. E lá fui eu embora com a mercadoria toda para o Ocidente. Levei um tempão na alfândega oriental para carimbar tudo, liberar a mercadoria. Os ocidentais não impunham muitas restrições. Eram produtos da Alemanha Oriental, checos e poloneses. Quando cheguei no Brasil fiquei com alguns casacos que havia comprado e não eram de boa qualidade, projetores, filmadoras, etc. Essa experiência da Alemanha me chocou muito. De Berlim fui para Moscou, onde também tive uma experiência ruim. Fui para um hotel na Praça Vermelha. Tudo estava planejado para vermos o desfile de primeiro de maio. Hotel com janela para a Praça Vermelha. Com a filmadora, comecei a gravar o desfile militar: os carros de combate, as ogivas nucleares, todo aquele aparato militar fantástico. Havia dois planos de janela, pois era muito frio. No meio ficava o ar que funcionava como isolante térmico. Então abri as duas para filmar melhor. De repente, o meu apartamento foi invadido por três ou quatro mulheres russas, fortíssimas, fardadas, gritando comigo em russo! Me tomaram a filmadora, fecharam a janela, e eu entendi que não podia filmar. Fui à gerência do hotel, arranhando um francês horrível, mas me fiz entender e tentei explicar o que acontecia. Consegui de volta a filmadora, mediante a promessa de não abrir mais a janela. Poderia filmar, mas sem abrir a porra das vidraças. Não me disseram a razão, mas provavelmente julgavam que a filmadora, vista de longe, poderia ser confundida com uma arma. Acabou o desfile e eu saí para a rua, para a Praça Vermelha. Era difícil circular, pois eu não falava a língua e nem entendia o alfabeto. O táxi não parava nas ruas, mas em pontos previamente definidos. A gente usava o metrô, uma obra muito bonita, pingentes de cristais, mármores, muitas plantas e flores. Fomos ao Bolshoi, Lago do Cisne e tal. Tudo uma festa, até que um dia, na Praça Vermelha, diante da enorme fila, decidi não ver o Lenin embalsamado. À noite, na Praça Vermelha um garoto se aproximou e me perguntou em francês se eu teria interesse em trocar dinheiro. O câmbio oficial era um pra um, por decreto, creio, e ele me propôs 5 rublos por 1 dólar. Sabotava a economia do país. Mas fui adiante com o papo, resolvi testá-lo e indaguei como fazer. Ele perguntou quanto eu queria e eu falei: 20 dólares. Ele falou para que eu o seguisse e levasse, dobrado, na palma da mão, as notas de dólares. Segui-o, ele cerca de 100 metros à minha frente, e foi para um beco. Eu pensei: é golpe! Mas resolvi, assim mesmo, testá-lo. Cumprimentei-o com a nota nas mãos, enquanto na outra ele punha uma nota de 100 rublos. Tudo certo. Aquilo me impressionou muito mal. Eu já tinha tido a experiência da Alemanha, tinha havido o caso do hotel e agora aquilo. Em Berlim e Moscou senti o contraste total com a Primavera de Praga. De volta ao Brasil, em uma reunião do partido eu contei tudo aquilo. Me entusiasmei ao narrar o ambiente de Praga, a Primavera de Dubcek. Puta que pariu! Por que eu contei!? Logo vieram as acusações: revisionista! Quando falei sobre o jovem russo que trocava no câmbio 5 por 1, disse que havia feito um teste, dei uma de jornalista, pois achei que seria enganado, queria ver até onde ia a corrupção. É claro que eu cometi um crime contra a economia soviética, mas eu queria pagar para ver. Tudo isso me balançou muito, fiquei chocado com a maneira como receberam minha referência ao socialismo checo. A minha experiência checa tinha sido a melhor possível. Essa reunião tinha sido em junho ou julho e, pouco tempo depois, a Checoslováquia foi invadida pelas forças soviéticas do Pacto de Varsóvia. O que eu via na TV, aqueles checos parando os tanques com o corpo naqueles mesmos lugares que eu havia visitado, terrível! Os caras atirando, bombas estourando, gente correndo, naquelas avenidas que eu tinha curtido tanto, numa cidade linda como Praga, aquilo mexeu comigo... Eu pensava: tem alguma coisa aí que não está batendo. Primeiro eu fui criticado por ter optado por outro regime dentro do socialismo, optado por um outro caminho. Gostei daquilo que vi em Praga. Os vivas com canecas de chopes erguidas ao presidente mais liberal! Gostei da filosofia política do Dubcek. Segundo, acontece a invasão e prendem o Dubcek, que foi colocado em uma cela! Os soviéticos botaram um interventor, um homem de sua confiança no poder. É claro que o Brejnev, chefe do PC da URSS, era um stalinista, um gorila, havia tramado a queda do Kruschev, um liberal, uma esperança de abertura. Tudo aquilo começou a ficar muito nítido para mim: os caminhos tinham de ser outros. Mas eu não cheguei a sair do partido, pois militar ali era uma espécie de resistência à ditadura brasileira. Aí veio o AI-5, em dezembro... O Ato Institucional nº 5. Não havia mais oposição, partido, nada. Ninguém se comunicava, você não recebia mais informações sobre onde seria a reunião do partido, onde encontrar as pessoas. A polícia engrossou mesmo e tinha os nomes das pessoas todas. O meu apartamento já tinha sido invadido em 1965 pela polícia, para procurar coisas, eu já tinha escondido ou jogado fora os meus livros subversivos! Acabou tudo, nunca mais tive contato... Eu era soldado muito raso... Pouco antes da invasão da Checoslováquia, ainda em 1968, eu fui convidado para um jantar oferecido pelo Sesi, promovido pelo Osmar Rodrigues Cruz. Os principais autores e diretores do teatro de São Paulo estavam lá. Nessa reunião eu lancei uma ideia: reunir todos os autores numa ação de resistência, onde cada um escreveria uma pequena peça. A minha ideia era que escrevêssemos uma peça chamada Os Sete Pecados Capitalistas, cada autor trabalharia um pecado. Boal não hesitou e disse, na hora, que o Arena produziria a peça. Aí a gente começou a se reunir para fazê-la, e a ideia começou a crescer. Pensamos então: vamos ampliar, incluir outras áreas, como a de música, com sete compositores importantes, artes plásticas, pintando sobre o tema de resistência, enfim, fazer uma feira, e aí o Boal mudou o nome do espetáculo para Feira Paulista de Opinião. Seis autores foram escolhidos: Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Jorge Andrade, Bráulio Pedroso e eu. Cada um escreveu uma peça curta. Hoje... todos mortos, meu grande mestre Boal foi o penúltimo... Restou da Feira, apenas um, que te fala agora... Que saudades dos meus autores preferidos... Claro que a Feira de Opinião foi proibida, mas estreamos com uma liminar, dada por um juiz que, mais tarde, soubemos que pertencia a uma organização guerrilheira. Mas era um juiz em plena função e nós estreamos, num processo de desobediência civil. E abrimos a boca: não há mais censura no Brasil! Era agosto de 1968, acho. Foi no Teatro Ruth Escobar e tinha lá a Feira de Opinião na sala Gil Vicente e o Roda Viva do Chico Buarque, no Galpão. E aí o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) começou a baixar o pau, invadir o teatro e bater nos atores. Então resolvemos nos armar para enfrentar o CCC. Nós não, os atores. Nós, autores, apenas íamos lá, de vez em quando. Os atores atuavam com medo de que viesse da plateia algum tiro, uma pedrada, sei lá. Sempre se colocava, ao lado do palco, dois seguranças. Alguns atores se armaram, levando, mesmo, armas de fogo e facas. O Roda Viva já tinha sido invadido pelo CCC e nós, com certeza, também estávamos marcados, seríamos agredidos facilmente. O Teatro Gil Vicente ficava no fundo de um poço, um cilindro com uma escadinha estreita, era um perigo. Na peça do Plínio Marcos, o Renato Consorte fazia um general que cagava fardado, dizendo uma porção de besteiras. Chamava-se Verde que te Quero Verde. A do Guarnieri chamava-se Animália e era muito boa, discutia a dificuldade de linguagem dos jovens com os pais. A peça do Jorge era sobre uma infecção, um camponês fere a perna que vai gangrenando, sem que houvesse alguém para salvá-lo. E a peça do Bráulio chamava O Senhor Doutor, que era sobre um empresário que começava a verter pus por todos os poros. Entrava numa banheira, tentando se limpar, mas apodrecia ali. A do Boal era sobre o Che Guevara, uma colagem de textos do Che, do Fidel, e que encerrava o espetáculo. A minha peça era O Líder, sobre um caiçara de Tabatinga, baseado num fato verídico. Antes do golpe de 1964, a Supra (Superintendência da Reforma Agrária), ensaiando o regime sindicalista que o Jango sonhava instalar no País, criou uma assembleia para defesa dos pescadores e, naquela praia, um pescador chamado Romão era o único que sabia ler e escrever. Ao constatar que só ele sabia ler, o representante da Supra o convocou para assinar a ata de fundação daquele grupo, como presidente. Quando veio o golpe, Romão foi pre-so, como líder subversivo, sem que entendesse o que estava acontecendo. Apenas sabia ler e escrever. Anos depois o encontrei, por acaso, o nessa praia de Tabatinga... Entre as peças, o elenco cantava músicas do Edu Lobo, do Caetano, Sérgio Ricardo... No saguão do teatro vários quadros e instalações denunciavam a violência e o ridículo da ditadura militar. Capítulo XIV Guerrilha Teatral O espetáculo agitou os estudantes, a nossa liminar acabou caçada, continuamos fazendo o espetáculo como desobediência civil. A polícia intervinha, impedia, fechava, e os atores se deslocavam para outros teatros. Toda a classe teatral estava mobilizada contra essa repressão. Por exemplo, o grupo se deslocava até onde Fernanda Montenegro se apresentava, e ela interrompia seu espetáculo, explicava à plateia que o grupo estava sendo perseguido pela polícia política e dava o palco para nossa Feira de Opinião. Os atores apresentavam um pequeno trecho do espetáculo e denunciavam a brutalidade da polícia. Depois, os atores iam para outro teatro e Fernanda continuava seu espetáculo. Era uma verdadeira guerrilha teatral, segundo expressão do Boal em sua autobiografia, Hamlet e o Filho do Padeiro, onde essa história é contada com detalhes, muito bem contada... A guerrilha era planejada na hora pelo elenco. De repente, alguém gritava: vamos ao Maria Della Costa! Uma vez foram a São Caetano e lá chegaram a apresentar o espetáculo completo. Isso até a decretação do AI-5, quando a ditadura se impôs sem mais nenhuma máscara ou instrumento jurídico possível para enfrentá-la. Houve uma assembleia no Teatro Ruth Escobar, no espaço Gil Vicente, que a Cacilda apoiou. Houve um discurso dela contra a violência militar, um grande momento de resistência cívica do teatro paulista. Enquanto o país pegava fogo, minha vida pessoal, meu casamento acabava. O diálogo tornava-se absurdo. Minha mulher fazia um grande esforço intelectual para me entender e me acompanhar em minha obsessão ideológica. Lia muito sobre política e filosofia marxista, mas em contraponto havia a pressão familiar, o pai militar... Ela tentava reagir, mas a convivência com outras mulheres bem casadas, burguesinhas do lar, segundo meu conceito tantas vezes proclamado, foram abrindo um abismo entre nós... Até que um dia, um dia triste... dia do enterro da Cacilda Becker... O motivo da minha explosão não consigo lembrar, provavelmente uma bobagem qualquer, desproporcional ao escândalo que fiz, uma gota d’água qualquer. A relação estava podre e o pretexto foi usado prontamente por ela e sua família. Tomou as duas crianças e saiu de casa, protegida pela vizinha, mulher de um engenheiro que fora meu chefe naqueles tempos hipócritas. A mãe deu cobertura para a filha, todas as condições para separar-se de mim... Esperei a sua volta, dois, três dias, talvez mais, tentando telefonemas que a mãe dela bloqueava para me dizer que a filha não queria mais me ver, até que recebi a notícia fatal: só veria meus filhos se assinasse os termos da separação que nos levaria ao desquite. Ela estava bem industriada por um rábula qualquer. Daí pra frente, a sofrida distância dos filhos... e, depois, a rotina de vê-los com hora marcada. Pegava o Ricardo e a Fernanda, pequeninos ainda, e ia passear no carro emprestado pelo meu pai. Não há nada mais triste do que filhos com hora marcada. Em plena vigência do AI-5 consegui, em 1969, liberar uma nova peça, A Comédia Atômica dirigida pelo Boal, que estreou no Teatro Gazeta. A peça não foi bem, era muito esquemática. Talvez o meu maior erro em dramaturgia teatral, minha pior peça. Embora ela não chegue a ser panfletária, apresenta uma irritante clareza política. Quase um catecismo. Ao contrário das outras peças, onde eu colocava as minhas contradições, conforme expliquei antes, nessa peça eu fui didático e conclusivo. Até era uma ideia divertida: um avião americano sobrevoa o Atlântico Sul, cai, e uma bomba atômica se perde. Parti de um fato real, um acidente acontecido na Espanha. Era uma farsa antibelicista, uma sátira ao imperialismo americano. Inventei uma ilha próxima do litoral brasileiro, onde um núcleo de pescadores começa a se modificar em volta daquela bomba e do piloto americano que cai de paraquedas na ilha. Uma das bombas explode e a outra é resgatada pelo pescadores. Naturalmente, a bomba provocava reação de toda espécie: não há como eles se comunicarem com o continente, estão isolados, sem rádio, e todo o processo de consciência dos moradores da vila começa a evoluir de uma maneira rápida. A bomba age como catalisador das tensões sociais, provocando entrechoque das classes sociais da pequena cidade. Com isso, expõe-se naturalmente um painel da luta de classes, com a presença do piloto americano que alia-se ao homem mais rico do lugar. Surge um líder natural, um marceneiro, que se propõe a fazer barcos para conduzir os habitantes para o continente, porque a poeira atômica começa a chegar e já são percebidos sintomas de doenças. Ele começa a lucrar com os barcos, até que um professor tenta manipulá-lo politicamente, defendendo a comunidade contra a exploração. O marceneiro líder fica então entre dois fogos: de um lado o patrão rico aliado ao americano, do outro, a visão libertadora do professor. A direção do Boal, superficial como a peça, em nada ajudou a salvar o elenco que era muito bom: o Rolando Boldrin (que hoje brilha como o Sr. Brasil), Zanoni Ferrite, Cláudio Mamberti, Analy Alvarez, Abrahão Farc, Serafim Gonzales, Lafayette Galvão, Esther Mellinger. Em 1972 escrevi Sinal de Vida, que foi proibida. Entrei num concurso do Teatro São Pedro, que era da companhia da Beatriz e do Maurício Segall. Ganhei o concurso, e o prêmio seria a encenação da peça. Fernando Peixoto ia dirigir, estava tudo encaminhado para isso, mas o Maurício estava numa situação extremamente difícil, perseguido pela polícia, teve que fugir, seria impossível encenar minha peça que falava sobre o desaparecimento de uma militante que tornara-se guerrilheira. Beatriz, uma dama, muito gentil, me pediu desculpas e me aconselhou: Não mande a peça pra censura, não deixe eles colocarem carimbo algum em sua peça. Mas um dia a Ruth Escobar quis demonstrar que a censura estava arrasando o teatro, pegou um pacote de peças, pediu autorização para os autores e as apresentou em bloco. Todas foram sumariamente vetadas, proibidas. Ruth era uma mulher muito corajosa, começou a mobilizar até onde era possível, tentava provar que o teatro estava realmente amordaçado, que não era possível mais fazer teatro, tentou produzir uma Feira Brasileira de Opinião em 1971. Também escrevi uma peça para o evento, onde entravam dez autores de todo o Brasil. O con-junto de peças foi inteiramente proibido, mas Ruth o editou exemplarmente, com prefácio do Décio de Almeida Prado. A minha peça chamase O Mito e foi lida publicamente só depois da abertura política. Enfim, não era mais possível fazer teatro, a não ser peças leves, sem nenhum conteúdo ideológico. De 1968 a 1984 a coisa ficou muito difícil, não dava mais para fazer teatro. Fui pra TV Record, onde fiz três novelas. Capítulo XV O Professor Universitário e a TV Nessa mesma época comecei uma atividade didática na Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP. Eu já tinha feito algumas participações na Escola de Arte Dramática depois de formado, participando de alguns seminários, mas nunca havia me efetivado como professor. Depois, a Renata Pallottini, que tinha a cátedra de dramaturgia da ECA, me convidou para trabalhar com ela. Fiquei seis anos na ECA, de 1968 até 1974. Trabalhei também um ano da FAAP, dando um curso de dramaturgia, em 1970. Chamado pelo Dionísio Azevedo, fui para a TV Record em 1970, para adaptar As Pupilas do Senhor Reitor, um romance de aldeia, conforme Júlio Diniz o define. Imbuído da minha experiência de cidade de interior, de Guará, injetei minha vivência da província, da minha infância, mas mantendo o ambiente e a tradição portuguesa do Minho, mantendo a história no século 19. O romance em tom de crônica é muito curtinho. Criei muitas situações, muitos personagens, para fazer mais de 280 capítulos! Os cultores do Júlio Diniz não se queixaram. Muito saborosa a direção do Dionísio, que fazia o papel do reitor. Era toda gravada em um estúdio da Record, no Aeroporto, aqui em São Paulo. Sem locações. Era um estúdio muito grande onde foi reconstituída uma praça, com fachadas das casas. De forma engenhosa, as fachadas eram retiradas e apareciam os interiores das casas. Quase nunca fizemos cenas exteriores. A novela foi líder de audiência, me confirmou como autor de telenovela. Em seguida emendei outra novela, Os Deuses estão Mortos, a novela onde eu me descobri, encontrando um caminho pessoal. Eu já dominava bem a técnica da telenovela. Criei uma história na qual eu mostrava o início da decadência da aristocracia cafeeira com a abolição dos escravos, a perda da mão de obra escrava, as dificuldades dos barões do café e todos os problemas sociais do fim do Império, que culminaram com a Proclamação da República. Ao final dei um salto de quarenta anos, como se fosse outra novela: a história da mesma família na década de 1920, com ênfase na crise do café de 1929. Os mesmos atores fazendo outros personagens, filhos ou netos dos da primeira fase. Foi com a saga de Os Deuses estão Mortos que vislumbrei um caminho que desenvolvi depois. Uma temática humana forte que tivesse como pano de fundo a historia do Brasil e a infraestrutura social que regia o movimento daquelas personagens. Quarenta Anos Depois, de certa forma, é a base de Escalada e O Casarão, que fiz anos depois na TV Globo. A novela era forte, mas sofreu ao final com a rápida decadência da TV Record. Uma pena, eu assistia dia a dia à queda vertiginosa da emissora. Em três meses vimos a emissora despencar em audiência, surgindo conflitos entre o elenco e a direção da empresa. Foi muito triste o final da TV Record. Mas eu ganhei um prêmio, em 1971, o único profissional a ganhar um prêmio em telenovela, fora da Rede Globo. Na noite de premiação recebi uma proposta concreta da TV Globo, mas eu não quis ir. Gostava da Record, do Paulinho Machado de Carvalho. Resisti, até surgirem grandes dificuldades, tornando a situação insuportável. Capítulo XVI A Glória tem seu Preço: os Aborrecimentos Fui para a TV Globo em 1972, já na era Walter Clark-Boni. Daniel Filho era o responsável pelas telenovelas, a Janete Clair já substituíra a Glória Magadan. A Globo queria renovar o gênero, como havia feito antes a TV Tupi com Beto Rockefeller e a TV Excelsior em alguns momentos. Meu primeiro trabalho na Globo seria escrever com Adriano Stuart um seriado infantojuvenil chamado Shazan e Xerife, personagens de uma novela do Walter Negrão, interpretados pelo Paulo José e Flávio Migliaccio. Escrevi por pouco tempo alguns capítulos da série. Aí, Bráulio Pedroso ficou doente, ele estava escrevendo uma novela muito arrojada, O Bofe, O Bráulio sempre levou para a telenovela temas arrojados, como já tinha feito com Beto Rockefeller e O Cafona. Foi quando conheci pessoalmente o Boni. Me chamou, por meio do Daniel. Fui à sala dele pra apagar um incêndio: O Bofe não ia bem de audiência e se agravava, a cada capítulo, pela doença do Bráulio. Ele sempre foi um homem muito doente, e morreu muito cedo, para a desgraça da televisão. O próprio Bráulio indicou meu nome ao Boni, pedindo que o substituísse temporariamente. Acabei escrevendo a novela até o final, pois a situação do Bráulio se agravou e não pôde retomar a novela. Fiz aquele trabalho, não por prazer, mas por contingências da situação. Depois de O Bofe, estreei minha primeira novela na TV Globo: Carinhoso, com a Regina Duarte e o Cláudio Marzo. O Daniel me pedira uma novela para as 7 horas, bastante romântica, envolvendo o par que havia feito um grande sucesso junto ao público em uma novela anterior. Carinhoso fez enorme sucesso, mas por causa da gravidez de Regina, tivemos de antecipar o final. Ela estava grávida da Gabriela, e muitos anos depois trabalhei com as duas na minissérie Chiquinha Gonzaga, na qual faziam a mesma personagem. O título, usando o chorinho famoso do Pixinguinha, abriu um caminho muitas vezes retomado depois, em que títulos ou versos de músicas famosas batizam novelas. Outro precedente foi gravar sequências inicias fora do Brasil. A minha história precisava que a personagem da Regina, uma aeromoça, estivesse fora do Brasil no início. Eu pedi que fosse em Buenos Aires, pela maior facilidade de gravar lá. Mas o Daniel me chamou e disse: Eu vou mexer um pouquinho... em vez de Buenos Aires, vamos gravar em Nova York, o que você acha? Tivemos dois ou três capítulos da história em Nova York. A primeira sequência era uma panorâmica da cidade, gravada pelo próprio Daniel em um helicóptero. Acho que ele gostou muito dessa experiência, porque anos depois ele se casou com a Regina e foram passar a lua de mel em New York City. Carinhoso foi cupido premonitório... Conheci Suely na Globo, nessa época. O Walter Negrão me apresentou a gata: era modelo, linda, eu fiquei hipnotizado. Saímos no Rio, jantamos, esticamos o papo, e quando peguei a ponte aérea de volta a São Paulo ela estava no avião. Morremos de rir e continuamos a rir por muitos anos. Ela tinha uma filha de 3 anos, Marcela, que foi morar conosco. Suely me ajudou muito. Eu estava começando... Construímos muita coisa juntos. Durante os nove anos que vivemos juntos fiz o melhor de meu trabalho na televisão. Com relação ao teatro, ela morria de ciúmes de uma peça de minha autoria, Sinal de Vida... Torcia o nariz. Anos depois deu a volta por cima, produzindo a peça... Com o sucesso de Carinhoso, meu passaporte estava carimbado para ser considerado um autor importante na Globo, e assumir a responsabilidade de dividir o horário das oito com a Janete Clair. Foi nessa época que deixei a Escola de Comunicações e Artes, um pouco pressionado pela própria direção da faculdade, que exigia que os professores tivessem uma formação de mestrado. E eu não conseguia dividir meu tempo entre o mestrado e o meu trabalho na TV Globo. Como optar entre a ECA e a TV Globo? Havia uma monumental distância de ganhos, mas não foi só a grana que pesou. Havia também uma opção de objetivo. Eu era muito mais um escritor, um profissional de dramaturgia, do que professor. Mas aqueles anos em que passei na ECA foram muito bons pra mim, contato mais íntimo e frequente com colegas, que antes foram meus professores na Escola de Arte Dramática. De aluno, passei a ser colega do Anatol Rosenfeld, Sábato Magaldi, além de conviver com grandes conhecedores do teatro como o Miroel Silveira, Clovis Garcia e, principalmente, Jacob Guinsburg. Nos dois últimos anos aproximei-me bastante do Jacob, que lecionava estética. Embora o curso dele estivesse longe de minha formação e capacidade, me convidou para ser seu assistente. Eu não tinha uma formação universitária na área de humanas, mas o Jacob, generosamente, ao saber que eu tinha feito engenharia e me aproximado da matemática superior, julgou que eu poderia assimilar bem os conceitos abstratos de filosofia e estética. Na verdade, fui mais um aluno privilegiado do Jacob do que seu assistente. Aprendi muito com ele, uma cabeça brilhante. E tinha o privilégio de trocar ideias com ele por causa da convivência pessoal. Muitos dos nossos alunos seguiram carreira e se deram bem em várias áreas do teatro, como Mariângela Alves de Lima e Edélcio Mostaço, críticos teatrais, José Possi Neto, diretor, Silvana Garcia, ensaísta, Cláudia Alencar, atriz. Antes de assumir a novela das oito, ainda criei uma nova novela das sete, Corrida do Ouro, com o Gilberto Braga. Acreditei que aquele garoto que tinha escrito um caso especial baseado na Dama das Camélias, tinha futuro. Ele tem um nome estranho, filho de pai polonês, Gilberto Tumizcitz. Corrida do Ouro era uma ideia do Daniel e combinei com ele que poderia redigir a novela, sendo acompanhado pelo Gilberto até um certo momento, e depois ele continuaria sozinho. Fiz os vinte primeiros capítulos com o Gilberto e depois passei a buscar um tema para a novela das oito. Janete estava fazendo uma no-vela de enorme sucesso, Selva de Pedra. A partir da minha saída de Corrida do Ouro, Janete ainda encontrava tempo para supervisionar o Gilberto. E Corrida do Ouro foi bem. Segundo o Gilberto, foi ali que ele fez a síntese de sua obra, tendo duas fontes diferentes, quase opostas: o meu processo e o da Janete. Muito mais da Janete do que de mim, digo eu, pois as suas características como autor se assemelham mais às preocupações da comunicação popular da Janete, somadas ao excelente nível cultural que ele tem, e com a informação de crítica social que ele desenvolveu com o correr dos anos. Gilberto faz um trabalho brilhante na TV. Criei uma história, desenvolvi uma sinopse e levei para discutir com o Daniel. Ele ficou com aquela sinopse... Antes eu havia escrito um caso especial que teve uma grande repercussão, O Crime do Zé Bigorna, com Lima Duarte. É importante este adendo. Havia sido proibido pela censura, ninguém se preocupou muito com isso, já era uma rotina. Como não se tratava de uma novela, mas de um caso especial de 50 minutos, o assunto foi engavetado. Inconformado, conhecendo a força da minha peça, eu pedi licença à Globo para ir pessoalmente a Brasília, tentar liberar o programa. Fui recebido depois de horas na antessala, pelo Romero Lago, o chefe da censura naquele momento. Ele me disse: Eu não li o texto, mas estou sendo informado de que na história há um crime dentro da cadeia e um personagem com patente militar que é conivente, facilita o crime. O detalhe era real, mas não era fundamental na narrativa. Eu admiti que seria possível mudar: em vez de cabo posso por um carcereiro, não precisa ter patente militar. Ele chamou então o censor que tinha feito as observações todas e o cara começou a apontar algumas frases, que eu fui negociando, cortando umas, substituindo palavras, nada que pudesse influir na essência do texto. Consegui a liberação, o programa foi ao ar com enorme repercussão. Depois de tantas coisas proibidas, O Crime do Zé Bigorna pareceu um oásis de tolerância, gerou certa perplexidade na imprensa de esquerda, que ainda resistia à ditadura. Um baita prestígio. Pouco tempo depois o Anselmo Duarte fez um filme a partir do caso especial. Sobre o meu projeto para a nova novela das oito, Daniel disse: Não reconheço nessa sinopse o au-tor de O Crime do Zé Bigorna. Fiquei admirado! O que você escreveu aqui pode fazer sucesso, mas não tem a verdade do Zé Bigorna. Se você quiser, podemos fazer essa novela, mas acho que você pode me dar uma história mais real. Aquilo foi uma porrada em meus brios e eu disse que precisava de mais uns dez dias para repensar a história. Poucos dias depois voltei com outro tema completamente diferente, que se chamava Escalada, baseada na história do meu pai. Uma história epidérmica, vivenciada, sofrida, visceral, como O Crime do Zé Bigorna. A escalada de um homem comum no início da década de 1940, momento de ascensão de uma nova classe que começava a crescer, ocupar o espaço que pertencia apenas à oligarquia, antes da Revolução de 1930. Um homem de classe média baixa, sem nada, sem raiz familiar começava a lutar para vencer na vida, enfrentando a oposição de uma aristocracia já instalada há anos no poder, na economia e na política. O desafio do Daniel fez nascer uma das minhas melhores novelas. Desafios como esse firmaram o padrão de qualidade da Globo. De certa forma eu partia da novela da Record, pulando de 1929 para 1939. Foi aprovada com entusiasmo pelo Daniel que levou para o Boni, que de início se mostrou preocupado porque Escalada fugia muito do padrão das novelas das oito até então. Boni entregou minha sinopse ao Dias Gomes e Janete, que ficaram entusiasmados. Seguro com o claro endosso do Dias, da Janete e do Daniel, o Boni decidiu: Vamos fazer. E fiz Escalada que, de certa forma, rompia mesmo com o padrão até então usado pela Globo no horário das oito. Eu contava a história absolutamente real de um homem comum, sem preocupações maniqueístas, folhetinescas, sem um vilão esquemático, que tinha como pano de fundo a própria história do país de 1939 até o presente, 1975. A novela estreou em janeiro de 1975. Antônio Dias, o personagem central, era um homem que tentava vencer na vida, especulava em muitas áreas, até se fixar na compra do algodão. Começa a subir na vida, comprando algodão do pequeno agricultor e o estocando para vender pelo melhor preço a uma empresa beneficiadora. Começa a ganhar algum dinheiro, tenta comprar terras, desafia Armando, o todo poderoso quatrocentão paulista, que exerce o mando político na cidade. Já com dinheiro, inchado de vaidade, acaba comprando um cinema, onde exibe seus filmes preferidos. E apaixona-se loucamente por Marina, de família nobre, encontrando resistência de Armando. Em determinado momento instala-se na região uma beneficiadora de algodão americana que começa a baixar os preços, para derrubar os atravessadores. Antônio não acredita que os preços possam baixar tanto, não descarrega seu estoque e acaba, em poucos dias, perdendo todo o seu dinheiro. Humilhado, vencido, vende tudo o que tem, inclusive o seu cinema. Sai da cidade, devendo muito, para tentar a vida em outros lugares, em outros ramos de atividade. Começa a vender títulos de capitalização, exatamente como fez meu pai, e lentamente começa a se recuperar, a pagar os credores, viajando por todo o estado de S. Paulo até chegar ao Rio de Janeiro. Marina casa-se com um homem de sua estirpe e vai morar nos Estados Unidos. Antônio casa-se com Cândida, mulher apaixonada por ele desde os tempos da cidadezinha de Tangará. Na segunda metade da década, vai trabalhar numa grande empresa, que participava da construção da nova capital do país, um grupo ligado à Novacap. A novela mostrava o nascimento de Brasília, um marco de renovação nacional: a era juscelinista, o crescimento do Brasil, com o personagem do Antônio Dias crescendo junto. Um dia, retorna ao interior, à terra de origem, e retoma contato com Marina, seu grande amor, reencontrando a família aristocrata decadente. Deixa Cândida e seu filho, e então a novela discutia abertamente o problema do desquite, mostrando a hipocrisia das relações dos casais sem uma lei que protegesse as novas relações dos casais. Naquele momento em que a novela estava sendo exibida, a lei do divórcio começava a ser discutida no Congresso, e Escalada teve uma participação positiva na formação da opinião pública. No Rio de Janeiro, o senador Nelson Carneiro sentiu a repercussão da novela, que amparava seu projeto. A novela discutia os entraves que a Igreja e os ultraconservadores apresentavam, desafiando a censura da ditadura vigente. Sobre a Igreja eu não vou me estender muito, não me lembro se fui ou não censurado. Capítulo XVII O Encontro com o Presidente Um deputado, interpretado por Otávio Augusto, provou um dos acontecimentos mais bonitos de minha vida: a atriz Heloísa Helena me perguntou se eu gostaria de conhecer o Presidente Juscelino Kubitschek. Soube que ele assistia e se emocionava com Escalada, identificando-se com o personagem do Otávio Augusto, um juscelinista que a todo momento lembrava a obra do grande presidente, mas... sem poder mencionar o nome do JK! Veja o absurdo! A censura da ditadura não permitia que se citasse o nome de Juscelino, um ex-presidente da República, uma figura da história do Brasil! Uma idiotice sem tamanho. O que eu fazia? Colocava o personagem do deputado assobiando Peixe Vivo, que era a música símbolo do JK, da juventude do presidente em Diamantina, quando fazia serenatas. Como pode o peixe vivo viver fora da água fria... Emocionado, aceitei o convite para jantar com dona Sarah e o presidente Juscelino em seu apartamento, no Rio. A Heloisa Helena fez uma advertência: Olha, o presidente dorme cedo, então vamos assistir à novela, jantar e vamos nos retirar. O capítulo exibido naquela noite, para minha preocupação, tinha uma crítica ao Juscelino, por meio do personagem Armando, um cafeicultor, que criticava o governo duramente, por causa do confisco cambial do café, uma forma que o governo JK encontrou para fazer caixa. Eu fui ficando pequeno ao lado dele, no sofá, enquanto o capítulo se desenrolava. Mas que azar, eu pensava, justamente hoje tem isso no capitulo. Ele sorriu, aquele sorriso aberto e franco que conquistou todo o País... e me disse docemente: Foi isso mesmo, Lauro, eu padeci muito com a pressão dos cafeicultores, mas eu não tinha como recuar naquele momento, eu não tinha como cancelar aquele confisco. Mas parece que, ainda no governo dele, o confisco caiu. Não tenho certeza, precisaria verificar. Mas depois começamos a conversar, jantamos e falamos muito e muito... de televisão e política. Havia uma mágoa do presidente por estar alijado da política, cassado, sendo apagado da história de seu país. Lembro dele dizer ao Cony, num telefonema que recebeu mais tarde, que estava ao meu lado e que a novela era uma trincheira corajosa, uma resistência à ditadura. Aí esboçamos ir embora, mas ele não deixava, estava eloquente, não parava de falar. Dona Sarah sinalizou para Heloísa Helena que poderíamos ficar mais... O Presidente tirou os sapatos, esticou as pernas, muito à vontade sobre um pufe, revelando uma meia verde furada! Rimos muito! Falamos sobre política, sobre o sofrimento no exílio... sobre o futuro, seu sonho de voltar a governar o Brasil. Morreu um ano depois, naquele estranho acidente, que a gente até hoje não sabe exatamente o que aconteceu Lembro que meses depois, em final de 1975, já tinha terminado a novela, recebi dele um bilhete, pedindo autorização para usar a palavra escalada no titulo de um novo livro dele. Veja que delicadeza! A palavra não é minha propriedade, poxa! Ele pedia licença, assim mesmo, para dar ao seu livro o título de Minha Escalada para Brasília. Mantivemos alguma correspondência por algum tempo e, após a morte dele, tive alguns contatos com dona Sarah. Escalada fez um enorme sucesso, um grande prestígio. O elenco tinha o Tarcísio Meira, Renée de Vielmond, Milton Moraes, Suzana Vieira, Otávio Augusto, Ney Latorraca, Sérgio Brito, Sandra Bréa, e tantos... tantos outros, igualmente ótimos atores. Há quem a considere minha melhor novela. Capítulo XVIII A Presença Global O Casarão Depois de Escalada fui sacramentado, no dizer de Dias Gomes, no horário das oito, dividindo com a Janete a responsabilidade do horário mais nobre das novelas. Depois de Pecado Capital, fiz O Casarão, uma novela bastante arrojada em termos estruturais: eu me propunha a contar uma história de 1900 até 1976, em três períodos distintos, simultaneamente. A primeira fase, de 1900 a 1910, a segunda de 1926 a 1936 e a terceira, na atualidade, em 1976. Os três períodos estavam ligados por personagens de uma mesma família, cinco gerações da mesma família, da juventude à maturidade, à velhice, que habitavam o mesmo casarão. Outras personagens que não pertenciam à família também apareciam, algumas atravessando duas ou três épocas. O Daniel Filho se espantou diante de minha proposta, mas ficou fascinado. Bancou a ideia para o horário das oito. Muita coragem dele! Conseguiu entusiasmar o Boni: iríamos fazer uma novela complexa no principal horário da emissora. Era um grande risco, um desafio, mas tanto o Daniel como o Boni trataram a novela com especial carinho. A visão que eles tinham da telenovela naquele momento permite entender porque o Daniel e o Boni foram os homens mais importantes para o desenvolvimento e qualidade da telenovela brasileira, estimulando no horário das oito, o horário central, o carro chefe da emissora, uma história com uma estrutura tão especial, uma história tão arrojada. Acho que o Boni se deu conta de que seria preciso fazer um outro tipo de investimento, um investimento em qualidade com risco. A história de O Casarão começava na passagem do século, no réveillon do século XIX para o XX. Quando chega num determinado ponto, salta para o presente, e daí para a década de 1920. Escolhi 1926 a 1936, porque são anos muito ricos da história do país. Em 1929 houve a crise do café, em 1930 a revolução, 1932 o movimento constitucionalista em São Paulo, em 1934 a constituinte outorgada pelo governo, e em 1937 o Estado Novo. O personagem central, João Maciel, nascia no primeiro período. Era mostrado na juventude, no segundo período e na maturidade ou velhice no terceiro período, a atualidade. O personagem era protagonizado pelo Paulo Gracindo na atualidade, por seu filho Gracindo Júnior na juventude e por um ator infantil no primeiro período. Um trabalho memorável de Paulo Gracindo! João Maciel é um pintor anarquista, irreverente, aventureiro. Certo dia, bêbado decide subir no topo da estátua equestre do Marechal Deodoro. Causa grande confusão, atrai a imprensa, e, ao ser retirado lá de cima pelo bombeiros, passa mal e tem um ataque do coração. Convalescente, precisa paz e, então, decide fazer uma revisão da sua vida, voltar às origens no interior de São Paulo, onde nasceu e vivera a juventude, em um casarão, como uma espécie de agregado de uma família aristocrática. Rever o casarão, onde havia deixado o grande amor da sua vida, Carolina. Durante toda a vida Carolina acompanhara a vida do turbulento João Maciel e, ao saber de sua intenção de visitar o casarão, fica agitada, tentando esconder a forte emoção. Na juventude se amaram loucamente, um amor impossível, combatido pela família. Conto a historia dele e dos pais dela, a paixão dos dois na década de 1920 e 1930 e a partida dele para ser pintor no Rio de Janeiro, em 1936. E, simultaneamente, no presente, a volta dele em busca do tempo perdido, o contato com Carolina. Geralmente os capítulos continham as três fases, mas nunca numa mesma ordem. Um trabalho fascinante, um trabalho de ourivesaria, um trabalho que me consumia de treze a catorze horas por dia, sozinho. E não poderia ser feito de outra forma, eu tinha de trabalhar absolutamente sozinho para orquestrar todas aquelas épocas, de forma que o capítulo tivesse uma unidade. Para envolver o telespectador, era importante essa unidade, uma unidade temática. Se em determinado capítulo o tema tratado era o comportamento feminino diante do homem, eu mostrava esse comportamento nas três épocas. Havia uma clara ligação temática e visual de cada uma das épocas: eu poderia abrir o capítulo em 1926, pular para atualidade, 1976 e voltar para 1910. Sem insistir na mesma ordem. Era uma colcha de retalhos, mas com os retalhos muito bem unidos, não havia uma desorganização estrutural. Por exemplo, uma personagem abria uma porta na década de 1920 e do outro lado, surgia a mesma personagem quarenta anos mais velha, na atualidade. Carolina abria uma porta em 1976 para passar para outro cômodo, e quando entrava, era ela jovem, outra atriz, em 1926 ou 1930, fazendo alguma coisa que complementasse alguma atitude do presente, muitas vezes dentro do mesmo espírito, pois era a mesma pessoa. Obviamente, eu entregava os capítulos prontos, não se tratava de criação da direção. Eu rubricava os capítulos de uma forma bastante clara. Quando eu não tinha condição de fazer uma ligação temática, fazia uma ligação visual, através de um objeto que permanecesse na mesma sala de uma época para outra. Havia uma tulha no casarão, que era um depósito de coisas velhas, em 1976. Coisas que foram mostradas novas em épocas anteriores ou usadas por várias personagens. O lixo histórico do casarão mostrando como as coisas acabam sempre sendo efêmeras. Na tulha do casarão, aparecia sempre um personagem já esclerosado, Atílio, feito pelo Mário Lago, que ficava o dia todo nessa tulha, cercado de objetos do passado. Esses objetos que ele pegava tinha uma história e não estavam ali por acaso. Havia até um objeto mágico, uma ânfora de metal dourada, que teria vindo do palácio de Alhambra, na Espanha, e que Atílio cultivava por acreditar que, se ele conseguisse abrir a ânfora, ele conseguiria transformar bosta de vaca em ouro. Coisa de alquimista medieval. Então, ele ajuntava bosta numa banheira e ficava mexendo aquela bosta com um bastão. E sempre tentava abrir a ânfora, para colocar a poção milagrosa que estava ali dentro, pra fazer a bosta virar ouro. É claro que mostrei antes aquela ânfora em várias épocas, desde que chegou ao casarão no início do século, até virar o elemento emblemático da loucura de Atílio. O público no início da novela ficou um tanto confuso e perplexo ao acompanhar a narrativa. Na verdade, eu invertera o foco da atenção do público. Pelo seguinte: como o público já tinha o presente, 1976, já sabia o que acontecera no passado, então o que interessava não era o que aconteceu, mas como aconteceu. Por exemplo, o Atílio tinha um problema na perna e usava uma bengala, mas na década de 1920 ele era lépido e ágil. Então, o público queria saber como ele teria perdido a força naquela perna. Essa estrutura exigia de mim uma concentração total no trabalho, uma doação permanente e absoluta, eu mesmo tinha de fazer as pesquisas, porque sabia exatamente o que queria. Trabalhava demais, apaixonadamente. Dormia muito pouco, e O Casarão não me saía da cabeça. Seis capítulos por semana, com cerca de 25 páginas por capítulo. Não me cansava, eu tinha um grande prazer em viver aquela história tão desafiadora. Nem sempre os capítulos tratavam das três fases, mas sempre duas fases, pelo menos. De toda maneira, para que não houvesse risco de perder o fio da meada, no início encontrei uma solução. Num corredor, numa parede do casarão, havia uma porção de fotografias. Um dia, alguém, de fora da história, que visitava o casarão, faz perguntas e alguém vai, pacientemente respondendo: essa era fulana, mãe dessa aqui, irmã dessa outra, e assim por diante. Dava toda a genealogia, fazia isso algumas vezes, no início. A partir do capítulo 18, segunda semana, uma pesquisa nos mostrou que o público estava entendendo tudo direitinho. O elenco foi escalado de uma maneira inusitada, levando-se em conta as semelhanças físicas entre atores e atrizes de idades diferentes, para fazerem as mesmas personagens em épocas diferentes. Para o personagem central a solução não foi difícil: Paulo Gracindo fazia o pintor e seu filho Gracindo Jr. o pintor e escultor jovem, em formação, quando pintava igrejas, esculpia santos, etc. Para os demais personagens, o Daniel pegou as fotos dos personagens da terceira fase e pediu-lhes fotos de quando eram jovens. E foi buscando o ator da casa que mais se parecesse com aquele ator quando jovem. No caso do Mário Lago, ele quando jovem poderia ser o Denis Carvalho, mas havia algumas diferenças. Daniel colocava as duas fotos sobrepostas, desenhadas em papel manteiga, transparente, e ia orientando a maquiagem de tal forma que os dois ficassem bastante parecidos. Sem, dúvida, um trabalho artesanal complicado. Naquele tempo não havia computador. No elenco feminino, a mesma coisa. Pegou uma foto da Yara Cortes jovem e foi procurar a atriz adequada. Encontrou a Sandra Barsotti. A narrativa se valia dessas semelhanças, não havia fusão de closes de personagens velhos para jovens ou vice-versa. Fusão é um recurso fácil, eu queria o corte seco. A história se encarregaria de esclarecer o que estava acontecendo e quem era quem. A trilha musical era excelente. Dei algumas sugestões, mas a base fora organizada sob orientação do Daniel. Antes de estrear, houve palpites de muita gente, que não conseguia admitir aquela estrutura. Que se passasse as três épocas, sempre na mesma ordem, divididas por intervalos e com legendas do campo da ação. Não conseguiam entender o espírito da minha narrativa. No início tentaram mexer no título. O meu era O Casarão, mas tentaram mudar para Três Lágrimas, o nome de uma música do Ari Barroso. Implorei ao Daniel e ao Boni e acabou estreando como O Casarão. O Casarão foi uma ruptura no que se fazia até então, sobretudo na parte estrutural, e que acabou sendo do agrado do público, senão não teria consumido 168 capítulos, o que era a média da época. Não era um top de audiência e nem poderia ser. Na década de 1970 a TV Globo era absoluta, chegando as novelas, muitas vezes a alcançar 80% de audiência. Mas a média mesmo era em torno de 60%, às 20 horas. O Casarão alcançava 60,55%, a diferença não era grande, e a Globo permanecia com pleno domínio da audiência. Hoje, a aceitação de uma queda de audiência em função de um trabalho mais arrojado é inadmissível. O fator mercadológico monopoliza todas as decisões, não se deve ter ilusões, correr riscos. Os que hoje estão no comando da emissora são homens do mercado, vindos da área comercial. Com certeza delegaram a parte artística para os especialistas em shows, humor e telenovelas, não se envolvendo mais diretamente como antes. Capítulo XIX Espelho Mágico Depois do O Casarão, fiz Espelho Mágico, outra novela que corria risco muito maior. Uma enorme ousadia para o horário das oito, uma aventura mais louca ainda do ponto de vista formal e temático. Desafiei a lei da gravidade, com total apoio do Daniel e do Boni. Eu já acalentava essa ideia há tempos, mas achava que deveria esperar um pouco mais para propor, talvez para o horário das 22 horas que tinha um público mais seletivo, mais exigente. Mas as coisas se precipitaram durante uma viagem... Eu propus ao Boni e ao Daniel fazer a vida de Carmen Miranda e, tanto Daniel, como o Boni, acharam a ideia fantástica. Vamos fazer imediatamente! Decidi então passar uns dias em Buenos Aires antes de pegar a empreitada. Eu já havia feito um roteiro, em 1972, a pedido do Oswaldo Massaíni, que não foi aproveitado porque o orçamento era muito alto para o cinema brasileiro. Para fazer o roteiro, eu recebera uma pesquisa fantástica sobre a Carmen, organizada pelo próprio Oswaldo Massaíni, com muitas entrevistas gravadas por pessoas que conheceram e conviveram com a Carmen. Eu mesmo entrevistei pessoalmente muita gente. Só não conseguimos o apoio da Aurora, a irmã dela. O marido de Aurora colocava obstáculos ao projeto. Estava eu em Buenos Aires com a Suely, quando o Daniel apareceu no nosso hotel com um recado do Boni: Não dá pra fazer a Carmen Miranda, o orçamento é um absurdo, fora da realidade. A parte inicial das décadas de 1920, 1930 e 1940 dá pra fazer no Brasil, mas há a parte americana, o início da carreira dela em Nova York e depois em Los Angeles, décadas de 1940 e 1950. Um projeto monumental, faraônico, impossível para uma telenovela. Como deslocar toda a equipe para Nova York e Los Angeles por alguns meses? E permanecia ainda o problema de direitos. Daniel me via desmontar à sua frente e foi logo botando mais lenha na fogueira: Sei que estraguei suas férias, mas temos de levar para o Rio outra ideia, outra novela. Vamos pra Bariloche, bolar uma história. Daniel, eu e Sueli, minha mulher, fomos para o sul. No avião eu disse a ele que tinha uma ideia maluca. Já?! Espantou-se o Daniel. Uma ideia que adoro, mas... Conta! E eu cuidadosamente fui falando: gostaria de fazer uma novela sobre a produção de uma telenovela, mas colocando dentro da novela uma outra novela, de sorte que uma seja o espelho da outra. Uma ideia maluca, um jogo de espelhos entre ficção e realidade. Fui detalhando um pouco mais: a vida dos atores, os bastidores de uma produção da Globo, a ambição de uma jovem que quer chegar ao estrelato, as dificuldades do dia a dia, o show biz, a imprensa envolvida nessa nossa vida, no nosso dia a dia... mas... exibindo também a telenovela que esses atores estão fazendo, uma história bem folhetinesca nos padrões das novelas mais antigas. Mostro o cotidiano dos atores, seus conflitos, a vida dos atores de teatro e cinema que também fazem telenovela e mostro os personagens vivido por eles. Temos então duas novelas. No início não. Vamos ter apenas a realidade. Depois, quando começa a telenovela que eles fazem, vamos ter as duas histórias, a real e ficcional. Mas havendo uma ponte entre as duas realidades, a da vida dos atores e a da ficção. O novelão que eles estão fazendo dentro da novela mãe, e espelho da vida real e terá outro título. É uma... ideia!, berrou o Daniel para meu espanto. Depois de O Casarão, acho que dá pra fazer sim, completou o Daniel. Está na hora de passarmos a limpo a nossa própria atividade! Uma estrutura bastante arrojada, porque deveria ir ao ar às oito horas. Em Bariloche completamos os detalhes. Voltamos ao Rio, e logo iniciei a novela só com a parte da vida dos atores. Rapidamente encontrei um título que foi aclamado, muito bem recebido: Espelho Mágico. Depois, só por volta do capítulo 25 é que introduzi a outra novela que se chamava Coquetel de Amor, título que expressava minha intenção de fazer mesmo um coquetel de histórias e clichês do dramalhão, das nossas novelas mais populares. Nela fazia uma homenagem aos pioneiros do rádio, às estruturas dos criadores da telenovela, como a Janete e a Ivani. O elenco era excelente: Tarcísio Meira, Glória Menezes, Lima Duarte, Sônia Braga, Lídia Brondi, Juca de Oliveira, Mauro Mendonça, Vera Fischer, entreando na televisão, Daniel Filho, e tantos, tantos outros. Tarcísio fazia um ator, galã importante, a Glória fazia a mulher dele e era também uma atriz. A Lídia era a filha do casal. Juca fazia o papel de um autor de teatro que passou a escrever telenovela. Lima Duarte fazia um ex-palhaço de circo que estava tentando a vida como comediante, sonhando em entrar pra TV. Vera Fischer vivia uma ex-miss Brasil que tentava uma carreira artística. Pepita Rodrigues fazia uma mulher casada com um empresário e que queria ser atriz, mas tinha a oposição do marido ciumento, o Mauro Mendonça. Tinha a Djenane Machado, filha do Carlos Machado, que fazia uma vedetinha de teatro rebolado. Mas a personagem chave era a Cynthia Levy, a moça que sai do subúrbio em busca da fama. Papel vivido pela Sônia Braga. O autor da novela, Jordão Amaral, vivido pelo Juca, era apaixonado por Leila, personagem da Glória. Tinha vivido com ela algum tempo, que o deixara pelo personagem do Diogo, Tarcísio Meira. Jordão, o autor, através dos capítulos da novela começa a enviar recados para Leila, usando Diogo para repetir suas sutis declarações de amor. Um jogo diabólico de Jordão: usar o atual marido da mulher que ama para comunicar seus sentimentos de amor frustrado. Este triângulo, de um escritor enviar mensagens de amor a sua amada por meio do homem que ela julga amar, é a base da peça teatral Cyrano de Bergerac, que os atores da novela estão ensaiando paralelamente às gravações. Como acontece no Brasil, os atores de teatro fazem simultaneamente uma novela e atuam no teatro. Na peça famosa de Edmond Rostand: Cyrano é um homem feio, com um nariz descomunal, que apaixonado por Roxane, mulher linda, usa sua poesia para, às escondidas, declarar-se a ela, que julga amar Cristiano. Jordão, autor escondido por trás do capítulo, apaixonado por Leila, usa o belo Diogo, marido dela, para se declarar. O que o Cyrano faz a não ser assoprar para o Cristiano as palavras com as quais vai conquistar a Roxane? Cyrano fica sob um balcão no qual estará Roxane, à noite, no escuro. Cristiano faz declarações a ela, sopradas pelo Cyrano, que permanece escondido debaixo do balcão. Fiz com que o personagem do Juca, na novela, mandasse recados para a Gloria Menezes. Ou seja, também a peça entra no jogo de espelhos. Estrutura complexa! Além de uma novela dentro da novela, havia uma peça que abarcava a ideia geral da própria novela. Isso, de certa forma, criou um ruído forte nos telespectadores. E eu estava decidido a não fazer nenhuma concessão, fiz aquilo que eu achava que deveria fazer, embora a pressão para que eu fizesse concessões fosse muito forte, como, por exemplo, criar um vilão, criar situações mais melodramáticas, pressão que vinha de parte dos atores. Eu resisti a tudo, não cedi, houve até um movimento no estúdio entre os atores, uns achando que eu deveria manter a linha que vinha seguindo, outros achando que eu deveria ceder, fazer a novela mais popular, com escândalos, baixaria! A audiência caiu bastante. Para aquele momento, ela caiu muito. Se O Casarão dava uma média perto de 60 pontos, Espelho Mágico dava 55%, o que era uma queda acentuada para o horário das oito. Mas eu tinha a convicção de que aquela era a história que eu queria contar e que iria até o fim com ela, acontecesse o que acontecesse. Teimoso, não cedi. O resultado era uma novela bastante polêmica, e criou-se uma enorme discussão. Chico Anysio fez críticas pesadas à novela no programa Fantástico. E eu tive direito de resposta, rebati o Chico no próprio Fantástico. Criou-se um bate boca entre nós e o público achou que era uma polêmica artificial para ajudar a novela. Para mim, era real. Mas os jornalistas acharam que era artificial. Alguns intelectuais de São Paulo tiveram uma postura em defesa da minha pessoa, fazendo um desagravo, dizendo que eu estava sob pressão da emissora. Helena Silveira, principal crítica de TV da época organizou um jantar no Clube dos Arquitetos. Foi bastante gente, muitos amigos e jornalistas, uma espécie de desagravo. Eu achava a palavra desagravo muito forte. Eu não me sentia agravado, além disso, o movimento não me ajudava em nada. A própria Globo publicou um anúncio, em primeira página, em jornais de São Paulo dizendo que apoiava o meu trabalho e que não estava contra a linha que eu conduzia em meu texto. Ficou aquela coisa de odeio ou amo de paixão. Muitos manifestaram publicamente o apoio. O Mário Prata, por exemplo, até hoje enaltece minha novela. Mas o fato é que, em termos de grande público, grande audiência, a novela não foi bem e eu fiquei estigmatizado como um autor rebelde. Um autor rebelde, que não se moldava às sugestões da casa. E eu já tinha feito Carinhoso, Escalada, O Casarão, três novelas de sucesso, fora os casos especiais, com muito prestígio. Eu tinha um bom currículo na TV Globo, e não perdera meu espaço ainda. Ainda... Continuei alternando com a Janete no horário das oito. A Janete substituiu Espelho Mágico. Ismael Fernandes, autor que resenhou todas as novelas produzidas no Brasil até um certo momento (1995), diz que o Espelho Mágico foi a novela mais controvertida da televisão, ganhando mais notoriedade com a polêmica que gerou do que pela audiência. Disse ele: Seu ponto de partida foi de criação ilimitada, uma vez que foi enriquecida com depoimentos de atores e atrizes escalados, que falaram de sua vida profissional, problemas de trabalho, relacionamento, e gravaram diversas fitas, por exemplo, o casal Tarcísio/Glória. Sobre essas gravações de atrizes e atores, segredo na época, eram material de trabalho para mim. O Daniel Filho reuniu atores e atrizes separadamente em sua casa e fez um tipo de psicanálise em grupo, pedindo autorização para gravar, e as fitas serem entregues a mim. Todos toparam. São depoimentos muito interessantes, que eu guardo até hoje. O material é rico, os atores se doaram plenamente, foi muito bom para eu alimentar a novela. Esse material é segredo absoluto e está trancado a sete chaves, nunca ninguém ouviu isso. Um dia, se as fitas ainda estiverem audíveis, farei uma doação para um museu da TV. As fitas não têm nada tão secreto ou escandaloso. Há apenas um ou outro momento confessional mais forte, mas nada que comprometa um ator ou uma atriz. Ismael, em seu livro, ainda afirmou que Lauro César Muniz fundiu na novela alguns aspectos intimamente ligados entre ator e personagem da sua história, por exemplo, a representação de Glória e Tarcísio, um casal famoso por sua participação na TV. Todavia, assim que a narrativa aborreceu uma parte dos telespectadores, a novela voltou-se quase que exclusivamente aos problemas particulares de cada um, esquecendose da proposta inicial. Ponto de vista do Ismael, com o qual eu não concordo. Fiz durante todo o tempo a novela que eu queria fazer. Capítulo XX O Estresse A novela que se seguiu foi O Astro, da Janete. Um grande sucesso de audiência, que recuperou os índices do horário imediatamente. Enfim, revelava-se mais uma teimosia minha, autor meio obstinado que sou, uma marca de meu trabalho na TV. Eu já estava preparando uma outra novela, enquanto corria O Astro. Sabia que teria que acertar na próxima novela, acertar ou acertar. Eu estava tenso, muito tenso. Estava no Rio, discutindo meu próximo trabalho, quando, no hotel, à noite, de madrugada, senti uma fortíssima dor no abdome, que subia para o peito, com reflexo no braço. Um médico foi chamado ao hotel, me deu um sedativo forte e pela manhã fui levado a um pronto socorro. Me lembro que ao passar pela Avenida Copacabana eu tinha a sensação de que ia morrer... agora eu vou, pensei... estava perdendo forças, sentia o corpo frágil, a vida se esvaindo, a dor voltava. Eu olhava aquele dia lindo, muito sol, aquela gente na praia, eu pensava... puxa, como é bonito tudo isso, como é bonita a vida. Na hora em que fui colocado em uma ambulância para ser levado do pronto socorro para um hospital, o Cuoco estava, casualmente, passando pelo local de carro e viu que era eu. E ficou me olhando perplexo. Quando vi o Cuoco, tentei explicar pra ele que tinha tido um piripaque no coração e que ia fazer exames. O Cuoco, mais assustado do que eu, foi seguindo a ambulância de carro até o hospital e me contaram que ficou esperando um longo tempo por uma informação. Por meio dele todo mundo ficou sabendo, tive o apoio da Globo e o conforto dos colegas, coisas que me fizeram bem. Fiz uma cinecoronariografia e foi detectado o esmagamento de um pequeno vaso do miocárdio. Eu tinha de nascença duas artérias ligadas a um vaso capilar, e que formava um ‘A’. O tracinho horizontal do ‘A’ foi esmagado pelo miocárdio. Pura tensão nervosa. Esse vaso capilar, que nem todas as pessoas têm, foi esmagado, necrosou o miocárdio nessa região. Não era um problema de coágulo, entupimento, nada disso, o que me livrou de outras medidas corretivas. Capítulo XXI Sinal de Vida Sinal de Vida foi escrita em 1972 e proibida, conforme já contei. Mas em 1979, quando se esboçou a abertura política, escrevi uma segunda versão e consegui, com alguns cortes, liberar e estrear a peça. Esta peça tem um cunho fortemente pessoal, tanto nas relações humanas como na discussão política. Um ato de entrega, de reavaliação, de autocrítica e até... de constrição, por que não? Como diz Marcelo, o personagem, em determinado momento: Marcelo – Há uma moral de raiz que pesa sobre a gente mais do que toda uma biblioteca. O resto é disfarce... verniz... Se eu arranhar um pouco o verniz, lá está o caipira, preso à moral do berço, que dita a última palavra, que determina, que impõe. Toda essa teoria que eu enfiei na cuca caia por terra quando o meu velho me estendia a mão pra eu lhe tomar a bênção. Olívia – Comunista Apostólico Romano! Marcelo, um jornalista, um intelectual diante da repressão da ditadura, que constata tristemente a impotência de fazer alguma coisa naquele momento. Ele conhece uma garota, e faz a iniciação política dela, discute bastante com a moça, dando alguns livros para ela ler. A jovem se empolga e, num determinado momento entram em choque, quando ela radicaliza e decide partir para a luta armada, que ele recusa, dizendo tratar-se de uma atitude quixotesca. A ação se passa em poucas horas, durante uma madrugada em que Marcelo espera um sinal de Verônica, a garota que ele iniciou na política. Há notícias desencontradas sobre a queda de um aparelho, onde ela fora presa... ou fora morta... ou conseguira fugir. Durante essa longa noite, o jornalista faz um balanço de sua responsabilidade, revê suas atitudes, evoca momentos da sua vida, de relações com outras mulheres. Flashbacks dialogando com o presente. A longa espera de um sinal... de morte? De vida? Quando escrevi Sinal de Vida, tinha a doce ilusão de que a peça seria liberada pela censura. Premiada em um concurso de peças, com ampla divulgação. Ingenuamente pensei que a polícia não se atreveria a... Não se atreveria?! Não havia resistência possível contra a repressão. Incrivelmente, no dia a dia a gente perde a noção das coisas. Hoje é fácil entender a absurda lógica da violência naqueles dias, mas... naquele momento não... Confiei a produção geral à Suely, minha mulher. E ela virou uma fera, uma produtora vibrante, ativa, surpreendente. Antônio Fagundes fazia o jornalista Marcelo, encabeçando um excelente elenco onde estavam Cléo Ventura, Kate Hansen, Sadi Cabral, Marlene França, Maria Rita e Bruno Barroso. Direção do Oswaldo Mendes. A peça foi um sucesso, ganhei o Prêmio Molière. Ficou em cartaz por um ano no Auditório Augusta, lotando diariamente, sendo elogiada como a peça da abertura. Capítulo XXII Desastre Gigantesco Sucesso no teatro, desastre na televisão. Substitui O Astro com uma novela que realmente foi meu maior desastre na TV: Os Gigantes provocou minha saída da Globo. A novela abordava o tema da eutanásia, uma história mórbida, com Dina Sfat no papel central. Acho que Dina já estava com os sintomas da doença que a levou e eu vinha de um enfarte. Autor e protagonista vivendo um momento difícil, delicado. Um elenco de gigantes, daí o título: Tarcísio, Dina, Cuoco, Suzana Vieira, Vera Fischer, Joana Fomm, Lídia Brondi... Meu título era Paloma, pra mim até hoje, muito melhor. Quem sabe dar títulos é o autor. Eu dei quase todos os títulos de minhas novelas. No primeiro capítulo, Paloma chega da Europa para rever o irmão gêmeo que está morrendo de câncer. Ele deixara uma fita à irmã, implorando que abreviasse seu sofrimento. E ela cumpre o desejo do irmão. A própria Dina fazia o papel do gêmeo. A partir de um momento, com a fraca aceitação da novela, autor e protagonista entraram em choque. O conflito ficou público, minando completamente a novela. Dina achava que a personagem não poderia ser tão doente, deveria ser mais leve, mais brincalhona, andar a cavalo, curtir a vida. Queria limpar a barra da personagem que tinha provocado a morte do irmão gêmeo. Além disso, eu me atrevi, pela primeira vez na TV, a insinuar uma relação homossexual entre Paloma e a personagem de Lidia Brondi. Era muito sutil, mas as pessoas mais atentas perceberam. A Dina se colocou contra a minha proposta, fazer uma anti Malu Mulher que era o símbolo feminista naquela época. Eu não queria uma mulher exemplar, eu queria uma mulher complexa, conflitada, cheia de problemas, e que carregava o peso de um assassinato. No primeiro momento Dina até se entusiasmou, trocamos muitas ideias, mas quando começou a sentir a Paloma na pele, recuou. Enfim, uma novela pesada, que realmente não deu certo. A situação se agravou a tal ponto que ela publicamente passou a me hostilizar, fazer provocações a mim e à novela. Foi para os jornais e revistas. Tivemos um rompimento público. Não há novela que resista quando o autor rompe com a protagonista. E não havia uma pessoa, um diretor, que intermediasse essa minha dificuldade com a Dina. Pior, o Régis Cardoso era um diretor débil para enfrentar uma mulher forte como a Dina. E eu não tinha como desviar a novela para outro ator ou atriz, coisa bastante comum quando um autor não conta com o apoio de um ator. Se fizesse isso perderia completamente o rumo da trama. Segui meu calvário com a novela, que não era boa realmente, era pesada, equivocada. Para agravar ainda mais a situação, a novela tinha um núcleo que girava em torno de uma empresa nacional de leite que sofria com a presença de uma multinacional. Naquele momento havia a clara disposição política, nacionalista, de combate ao imperialismo das grandes potências econômicas. Não se falava, muito menos se admitia, entre os bem pensantes da esquerda, a hipótese de globalização, neoliberalismo e livre concorrência entre empresas nacionais e estrangeiras. Fiz então minha guerrilha moleque, fui muito atrevido e chamei a empresa multinacional de Eltsen. Ninguém se deu conta por muito tempo de que eu estava subliminarmente atacando uma multinacional do leite. Até o dia em que um operário da Eltsen ficou diante do espelho. Então foi possível a todo o Brasil ler com clareza, Nestlé. Eu me divertia enquanto alguns preparavam o meu túmulo na TV Globo. A partir daí minha vida foi um inferno. Sofri uma pressão muito grande da direção artística da emissora para que eu não mexesse com o tema multinacional. O Daniel nesse momento estava afastado da direção artística e o Avancini era o responsável pela novela. A Eltsen foi banida da novela e não se falava mais no assunto. A Nestlé era uma grande anunciante da Globo e hoje eu admito que foi muito pueril da minha parte mexer com chocolate de tão boa qualidade. Sobre isso, escreveu Ismael Fernandes: A novela foi um erro de muitos. O de Lauro foi que na primeira semana só se falou em doença, hospital, dor, tensão e terminou com um aborto e caixão saindo para o cemitério. Capítulo XXIII A Ruptura Houve um momento em que eu dei uma entrevista muito agressiva em relação a Os Gigantes, desabafei, falei da Dina, falei das limitações quanto à abordagem de temas ligados às multinacionais. Falei tudo o que tive vontade, no Shopping News, na época semanário de muita circulação. Foi o estopim para minha demissão. Recebi um telefonema de um aspone da Globo, comunicando que meu contrato não seria renovado. Demitido por telefone depois de sete anos. Logo depois o Boni me ligou e me pediu para não fazer mais nenhuma declaração sobre minha demissão ou qualquer outro assunto, porque ele estava tentando me segurar, me manter na Globo. Mas era tarde, eu já tinha dado uma entrevista, mais violenta ainda que a do Shopping News. Uma entrevista coletiva, quando juntei os repórteres todos na minha casa. Eu estava possesso, irritado, principalmente por terem mutilado meu trabalho. Se há alguma coisa que me choca é a censura, corte, mutilação do meu texto. Haviam mudado, reescrito o último capítulo da novela. No final da novela, eu dava uma solução amoral, os personagens não se acomodavam numa ação moralista. Paloma voava, tinha brevê. No último capítulo, tomava o Fenix, seu avião, e voava muito alto, deixando a gasolina do tan-que esgotar. Intenção clara de suicídio. Os casais não se recompunham, partiam para soluções diferentes, consideradas fora dos padrões morais. Um colega foi chamado para reescrever o último capítulo, moralizando-o. Não consegui descobrir quem era o Judas e só fiquei sabendo tempos depois. Passados alguns anos, o Benedito Rui Barbosa me contou que fora chamado para reescrever esse último capítulo. Respondeu que aceitaria a empreitada se o Lauro concordasse. Disseram a ele que o Lauro já estava demitido e que se ele não fizesse o capítulo poderia também ter o mesmo destino. O Benedito se adiantou, sentou-se diante de uma máquina de escrever e foi à diretoria entregar uma carta de demissão. E saiu da Globo. Um homem de verdade. Tempos depois me encontrei com ele na Bandeirantes e perguntei, espantado, por que ele tinha saído da Globo. Ele desconversou, nunca me falou sobre os detalhes desse episódio. Somente anos depois, recentemente, em 2002, é que soube do gesto de solidariedade dele, uma demonstração inequívoca de caráter. Por muito tempo fiquei sem saber quem havia me substituído, mas acabei sabendo por acaso. Numa reunião organizada pela PUC, para discutir telenovela, o cara estava lá, sentando ao meu lado. O assunto veio à baila, e ele nada falou. Numa outra ocasião, em debate com universitários, desta vez na Unicamp, ele se abriu diante de mim, me pediu desculpas e disse que não tinha saída: a Globo disse a ele as mesmas palavras que disse ao Benedito: se não topasse, seria demitido. E ele falou então que, naquele momento, não tinha como abrir mão do salário, importante para ele e sua família. Mas o fato é que ele fez um mea culpa, num gesto até bonito, pouco antes de sua morte. Durst foi perdoado por todos por ter moralizado o final de Os Gigantes. Numa tese de doutorado da USP sobre Os Gigantes, a autora transcreve os dois capítulos, o meu e o outro que foi exibido. Ela conseguiu o material e comentou os dois, comparativamente. Fiquei fora da Globo por pouco mais de dois anos. Mas não fiquei fora da televisão. Consegui logo um contrato na TV Bandeirantes. Avancini também tinha se afastado da Globo e foi dirigir uma novela minha, passada na Bahia, Rosa Baiana, com patrocínio da Petrobrás. Pela primeira vez no Brasil, com todas as cenas feitas em locação e com pessoas ligadas à indústria petrolífera. Rosa Baiana era mãe de sete filhos, todos de uma forma ou outra ligados à Petrobrás. Sete filhos, um número cabalístico que depois retomei em Zazá. Nessa época de entressafra, estava eu no Gigetto jantando com o Plínio Marcos e o Renato Borghi, quando entrou uma bela mulher carregando uma lâmpada fluorescente queimada. Estava com uma prima e sentou-se ao nosso lado. Perguntei pela lâmpada, ela disse que estava queimada. Passei para a mesa delas, decidido a acender aquela lâmpada. Acendi. Regina deu à luz dois filhos de minha autoria: Marília, em 1983, e Renato, em 1986. Marília se formou em arquitetura, Renato termina a faculdade de administração. Capítulo XXIV A Política O livro mais revelador para mim, pela qualidade didática, pela bela organização que tem, pela clareza, buscando equilíbrio e imparcialidade, é Sociologia do Materialismo, de Leôncio Basbaum. Livro que li e releio sempre, e que me marcou para sempre. Pra mim, ficou impossível pensar, fazer, analisar o mundo sem a dialética hegeliana como instrumento de trabalho, segundo Marx e Engels, conforme me ensinou o Leôncio Basbaum. Foi o livro mais revelador, pela profundidade que tem, sem tornar a leitura difícil, especialmente para quem estava em formação como eu. Sociologia do Materialismo é o livro mais bem escrito no Brasil sobre o assunto. Capítulo XXV A Hora e Vez do Teatro Político Em 1985 lancei uma peça depois de estar um bom tempo afastado dos palcos. Depois de seis anos da estreia de Sinal de Vida eu fiz Direita, Volver!, no Teatro Paiol, com direção de Emílio Di Biasi, tendo no elenco Dionísio Azevedo, Cleyde Yaconis, Rosamaria Murtinho, Bárbara Bruno, Flávio Guarnieri, Cláudio Curi. Uma peça que aproveitou o momento da abertura plena. Já era possível valer-se da plena liberdade de expressão. Na peça eu dava os nomes aos bois, os personagens citavam nominalmente figuras da política nacional, uma história nítida, sem metáforas, sem disfarces, politicamente crítica. Personagens que eram sagrados no tempo da ditadura, intocáveis, estavam desnudados no palco: um senador biônico, bizarra instituição criada pela ditadura, um policial torturador e sua vítima, uma ex-ativista de esquerda. O momento mais importante de Direita, Volver! é o encontro entre o torturador e a torturada, numa noite, na casa de campo do senador biônico. Enorme sucesso, casa lotada por um bom ano no Paiol e depois no Rio, com outro elenco, onde ficou também um ano com sucesso, para depois viajar pelo Brasil inteiro. A peça esteve em circulação durante cinco anos ininterruptamente. Tinha um apelo enorme de comunicação: brincava com os nomes da época, com os escândalos de corrupção do momento. O público morria de rir e também aplaudia. A peça foi uma espécie de destampe, enfim, uma crítica bastante nítida ao militarismo.Talvez o meu maior sucesso de bilheteria. O Santo Milagroso, quando estreou no Sesi, em 1983, foi recorde de público, permaneceu três anos em cartaz, até hoje um público não superado pelo Teatro Popular do Sesi, mas era um espetáculo gratuito. Como espetáculo comercial, Direita, Volver!, foi meu maior êxito, superando, feitas as devidas correções monetárias, A Infidelidade ao Alcance de Todos. Curiosamente, alguns intelectuais de esquerda, algumas pessoas ligadas ao Partido Comunista não gostaram, dizendo que a peça era muito popular, muito direta. E era mesmo. As pessoas se acostumam com a asfixia, com as metáforas e acham grotesco quando o teatro bota a boca no trombone, fala português claro. Fiz isso com muito tesão. A começar pelo título, que é uma ordem militar, o medo da volta a uma situação anterior, espécie de alerta. Havia um detalhe da peça que incomodava alguns setores. O senador que fora um pracinha da FEB, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, invadira uma casa e encontrara alguns papéis, manuscritos. Colocouos na bota e na japona, trazendo para o Brasil e publicando como sendo de sua autoria. Os livros tinham o respaldo da ditadura militar. Um dos personagens da peça descobre isso e denuncia que toda aquela filosofia estava vinculada a um teórico fascista italiano. Um momento da comédia que era bem recebida pelo público, mas curiosamente teve uma reação contrária de alguns setores da esquerda, setores progressistas, que não admitiam que se misturasse a FEB com os militares da ditadura. Polêmica justa. Eu também admiro a história da FEB, mas o meu personagem, o senador biônico, não a honrava... Muita gente do PT apoiou, como a Marta e o Eduardo Suplicy, que prestigiaram a peça e participaram de um debate após o espetáculo. Debate que nasceu espontaneamente. E surgiu porque eles foram vistos na plateia, aplaudindo bastante. O elenco, então, os convidou para ir ao palco, dando início a um debate. Então, é claro que o palco do Paiol foi usado como um palanque para extravasar tudo o que estava preso na garganta. Capítulo XXVI O Cinema Tenho 14 roteiros dos quais 12 foram filmados. Entre os melhores filmes que fiz estão O Santo Milagroso, O Crime do Zé Bigorna, feito em 77, baseado no caso especial que fiz na Globo, direção do Anselmo Duarte. Fiz dois roteiros com o Walter Hugo Khouri. Um deles é Forever, uma coprodução com a Itália e falado em inglês. Não gostei, parecia uma distorção de tudo o que eu havia feito. Quando vejo o filme hoje, eu não reconheço o roteiro como meu. Estranho muito os diálogos em inglês: as legendas não refletem meus diálogos. Mas depois fiz o outro, As Feras, sem dedo nenhum de fora. Gosto do filme, com ressalvas. Fiz A Próxima Vítima com o João Batista de Andrade, um de meus melhores roteiros, que o Batista mexeu bastante durante as filmagens, improvisando algumas cenas, enxertando política da época, datando. Uma pena. Fiz A Infidelidade ao Alcance de Todos, com base na minha peça. Não era um bom filme, mas foi bem. Fiz duas chanchadas, pra ganhar dinheiro: A Superfêmea e Os Mansos. Cheguei a escrever uma vez o episódio curto de um filme, em troca de uma linha telefônica, que naquele tempo valia dinheiro. Era um momento de muitas dificuldades, início da ditadura, 1966 ou 1967. Fiz dois filmes que se perderam: O Anjo Assassino, de Dionísio de Azevedo e A Santa Donzela, com o Plínio Marcos como protagonista, estreando no cinema. Colaborei no roteiro de Independência ou Morte. O argumento e a primeira versão do roteiro eram do Abílio Pereira de Almeida, que insistia que a última sequência deveria ser o grito famoso, título do filme. Tudo o mais teria de se disciplinar àquele final. Então ele montou uma estrutura com flashbacks, o que antecedia e o que se seguia ao grito. Ficou muito confuso. O próprio Abílio reconheceu isso e tentou desfazer o nó, mas estava esgotado. Então o Oswaldo Massaíni me chamou para dar uma ordem cronológica no roteiro, para deixar mais claro, com a plena aprovação do Abílio, que depois participou da produção e fez um papel no filme. Era 1972, plena ditadura Médici. Quando o governo viu que Independência ou Morte fazia um grande sucesso, oficializou o filme, chamou a equipe no Palácio do Planalto, condecorou a todos com medalhas, ou seja, se apossou do filme. Parecia um filme feito pela e para a ditadura. Mas não era essa a intenção inicial. Por tudo isso, o filme até hoje é muito mal visto e criticado. Mas estou seguro de que o filme era independente, não havia nenhum tostão do governo, sendo todo o capital gerado pelo próprio Oswaldo Massaíni. Enfim, tive uma longa experiência no cinema, mas não gostei. O filme foge da mão do roteirista. No momento em que se termina o roteiro, o diretor se apossa dele, tiraniza, passa a ser o dono absoluto do filme e, na edição sobretudo, faz o que quer, muitas vezes trai o ponto de partida do roteiro. Quando faço teatro, a peça é minha, está lá, me reconheço nela. Na telenovela, na minissérie em geral, há respeito pelo texto. No cinema não, tudo é submetido aos princípios do diretor. O filme é do diretor. Amo o cinema. Pra mim, Oito e Meio, de Fellini, é o meu maior cult, depois vem Cidadão Kane, do Orson Welles. Gosto muito do Kubrick, de Glória feita de Sangue, Dr. Fantástico, do Visconti, de Morte em Veneza, do Louis Malle com Les Amants, Perdas e Danos, grande filme, Pasolini com Teorema e Saló, o filme mais arrojado de todos os tempos. Adoro tudo do Chaplin, Em busca do Ouro, Luzes da Cidade, Tempos Modernos, quase tudo do Kurosawa, Trono Manchado de Sangue, Os Sete Samurais, Rashomon. Amo a obra do Bergman, de Morangos Silvestres, Paixão de Ana, Da Vida das Marionetes, Gritos e Sussurros e tantos outros. No cinema brasileiro sou apaixonado por O Cangaceiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas, Cidade de Deus... e tantos outros mais recentes... Fiz anos atrás um roteiro, As Polacas, baseado em um argumento de Moacyr Scliar, que parte de seu livro O Ciclo das Águas, para produção de Aníbal Massaini. E atualmente trabalho em um filme sobre os 19 últimos dias de Getúlio Vargas, para produção e direção de Daniel Filho. Um trabalho que me apaixona. Tomara que logo eu possa ver esses filmes na tela. Fazer cinema não é fácil e eu gostaria de fazer, ainda, a biografia de Carmen Miranda. Mas a minha forma de expressão mais pessoal é mesmo o teatro ou a TV. Capítulo XXVII O Retorno Vitorioso à TV Paulo Affonso Grisolli pediu permissão ao Boni pra me levar de volta para a Globo, para fazer teleteatro, num programa chamado Quarta Nobre. Voltei em 1982 apenas para fazer esse programa. Fiz uma versão para televisão de O Santo Milagroso, que ganhou o primeiro prêmio do Festival de Nova York. Fiz uma adaptação do São Bernardo, de Graciliano Ramos, um trabalho que gosto bastante. Uma leitura bem diferente do magnífico filme do Hirszman. Fiz também, em formato mais curto, As Dores do Parto, sobre um pai que perde a mulher no nascimento do bebê. Um homossexual se afeiçoa ao bebê, aproxima-se do pai para ajudá-lo a cuidar do filho. A comunidade, preconceituosa, começa a fofocar, vendo os dois como um casal. Estava eu posto em sossego, fazendo com o Grisolli um trabalho que me dava muito prazer, quando morreu Jardel Filho. Manoel Carlos, que estava escrevendo Sol de Verão, não se julgava em condições de trabalhar com a morte do protagonista. E sem protagonista, o que fazer? Encerrar, não podia. Havia compromissos com anunciantes, a novela teria que terminar de alguma forma. Fui convocado pelo Boni, que me perguntou se eu me achava em condições de terminar a novela. Eu disse que não estava acompanhando e nem sabia do que se tratava. Como o Guarnieri estava no elenco, surgiu a ideia de que ele poderia me passar as informações sobre os personagens. Sem o Jardel, a trama central perdia o sentido. Além disso, o Paulo Figueiredo, que tinha algumas experiências em dramaturgia, poderia me dar subsídios na ausência do Guarnieri, que tinha de gravar o seu personagem. Repetia-se, com Manoel Carlos, a mesma coisa que acontecera antes com O Bofe, do Bráulio. Falei com o Maneco por telefone e combinamos, com a anuência do Boni, que não havendo a trama central, eu encerraria a novela em 17 capítulos, seis na primeira semana, seis na segunda e cinco na terceira, repetindo o último, conforme prática da emissora. Com a interrupção das gravações, a novela estava muito atrasada, não havia frente de capítulos. Não havia outra solução a não ser gravar à medida em que eu escrevia, capítulo completo, na ordem das cenas. O capítulo gravado ia ao ar no dia seguinte, imagine! Por exemplo, no dia um eu escrevia, no dia dois era gravado e no dia três ia para o ar. Estressante! A novela ia sendo gravada na ordem cronológica, na sequência das cenas, conforme estava no capítulo escrito. Nunca é assim! Normalmente, todos sabem, a gravação é feita concentrando-se todas as ações de um mesmo cenário ou locação, para depois ser editado, quando o capítulo é recolocado na ordem cronológica. E assim cumprimos o planejado. Logo em seguida fui convocado para escrever uma novela das sete, e apresentei um projeto que me agradava: Transas e Caretas. Uma história leve e divertida de que eu gosto. Contrapunha dois filhos de uma mulher superpoderosa, um muito conservador e outro bastante revolucionário. A novela foi muito bem e é uma das de maiores audiências do horário das sete. Reginaldo fazia o filho bem comportado, conservador, que vivia com os padrões do passado, e o Wilker fazia o outro, transado (como se dizia na época), arrojado que vivia no futuro. Uma novela que teve grande aceitação no exterior. Nunca soube exatamente quanto ganhei com a venda internacional desta ou daquela novela, mas sei que dá um bom dinheirinho. É difícil calcular porque varia de país para país. E o recebimento é bastante picado. Vamos recebendo aos poucos, vão creditando em nossa conta. Às vezes creditam vários recebimentos ao mesmo tempo, de novelas que estão circulando pelo mundo inteiro. Recebemos um relatório onde constam os títulos das novelas, indicando os valores de venda, o bruto, o líquido, etc. São relatórios muito bem feitos. Qualquer autor tem direito de fazer uma auditoria da venda da suas novelas, mas ninguém vai checar e não há nenhuma razão para supor que haja irregularidades. Não há. É tudo muito bem feito. É claro que, em minha volta, me enquadrei como um bom menino nas regras do merchandising, deixando de ser um rebelde sem causa. Outros tempos. Quando eu fiz Os Gigantes o sistema de merchan estava sendo estruturado: a relação entre o autor e o departamento de merchandising era paternalista, do tipo... Se você topar fazer esse merchandising posso te pagar tanto. Não havia uma tabela. Hoje, não. Há uma tabela bem elaborada onde são indicados os valores, condições e percentuais, por ação. O autor recebe uma relação de produtos possíveis, compatíveis com o tema da novela, com sugestões de ações, cenas... e pode se recusar a fazer certas ações, por considerar que o produto não combina com o perfil da personagem ou com a situação da novela. Não pega mal recusar, não. Uma vez eu recusei, e as razões foram entendidas. Fiz duas novelas cômicas no horário das sete, que fizeram muito sucesso: Transas e Caretas e Um Sonho a Mais, sendo que esta última foi um sucesso incrível, constituindo-se, até hoje, a segunda maior audiência do horário. Um Sonho a Mais era uma novela bastante atrevida, na medida em que, a partir de uma comédia do Ben Johnson, Volpone, eu criei uma trama em que o personagem do Ney Latorraca, que fazia Carlos Volpone, voltava ao País, incognito, para enfrentar seus inimigos. Para isso usava quatro ou cinco disfarces, sendo um deles o de uma mulher, Anabela. Era uma comédia, uma farsa rasgada, aberta, divertidíssima, com o Nanini também fazendo um travesti. O segundo maior sucesso do horário saiu de um fracasso. A novela foi concebida por mim, que devia desenvolver para o Daniel Más seguir sozinho, aí aconteceu um fato estranho. Eu era muito rigoroso e ele ainda não dominava bem a técnica de telenovelas: fiz críticas, ele não aceitou, entramos em choque e ele decidiu repentinamente voltar para o Rio. Realmente não estava bem, percebi que estava vivendo um momento difícil. Criou com o Roberto Talma uma situação para trabalhar sozinho no Rio, sem minha supervisão. Fui ao Rio, tive uma reunião com o Talma e o Daniel, o clima era muito estranho. Eu me afastei, ele ficou sozinho com a novela, mas não conseguiu dar um rumo à história, se perdeu e se afastou, e eu acabei por assumir a novela, afinal era uma ideia minha, uma sinopse minha. Eu pedi socorro ao Mário Prata, que trouxe o Dagomir Marquesi. Acabou sendo um enorme sucesso. Aborreceu muita gente, é claro, porque ela subvertia os padrões românticos. Um corte da censura oficial dá bem a medida dos padrões da época: Ney Latorraca travestido dá um beijo na mulher amada, Sílvia Bandeira. Estela, a personagem dela, não sabia que Anabela era seu amado, travestido, mas o público sabia. Um corte que hoje seria risível. Essa cena proibida, do beijo de Anabela e Estela, já passou muitas vezes no Vídeo Show, às 14 horas. Na verdade, aquela farsa irreverente, cheia de travestis, depois de anos de pesada censura, atraiu o grande público, que se divertia muito. Sinal de mudança de costumes... Em 1986 e 1987, eu frequentei a Casa de Criação Janete Clair, uma invenção da Globo, que naquele momento estava sob a direção de Dias Gomes e Ferreira Gullar. Nessa Casa, muitos temas chegavam, ficavam, eram examinados, sugeridos, analisados. Na verdade, o que se que-ria é que a Casa tivesse uma novela no ar. Que produzisse uma novela, que fosse trabalhada por um autor experiente. Me ofereceram então um tema, um plot ainda embrião, que eu trabalhei com o Marcílio Moraes. Era a respeito de um homem corrupto, que possuía um passado feio, sujo, e mantinha ligações com um grupo sob suspeita. Num determinado momento, ele fica doente, uma doença fatal, e faz uma revisão de sua vida. Acaba se apaixonando por uma mulher interessante, juíza responsável pelo envolvimento do grupo em um caso de desvio de dinheiro para o exterior. Essa relação amorosa cria nele a necessidade e o desejo de afastar-se do grupo, de mudar de vida, romper com aquelas pessoas que não permitem que ele se afaste... Uma novela de enorme de sucesso. Tarcísio Meira, Renata Sorrah, Bruna Lombardi, Celso Thiré, Felipe Camargo, enfim, um excelente elenco. Direção do Denis Carvalho e do Ricardo Waddington. Uma novela na qual tudo deu certo, um passeio tranquilo, em que tudo se encaixou: audiência alta, expectativa, comentários positivos, elenco feliz, emissora feliz, autores felizes. Realmente um raro momento em minha vida profissional onde tudo deu certo. De agosto de 1986 a março de 1987. Era a minha volta ao horário das oito. Nessa novela, eu retomei a ideia do encontro entre torturador e torturada. A torturada era Eva Wilma, que fazia uma ex guerrilheira, traumatizada pela tortura, e que um dia encontra com seu torturador. Um plot que retomava o tema de Direita, Volver! em Roda de Fogo. Minha novela seguinte, O Salvador da Pátria constituiu-se em meu maior sucesso de audiência, o segundo maior índice da Rede Globo em todos os tempos. Isso não significa que seja minha melhor novela, longe disso. Prefiro Escalada, O Casarão e Espelho Mágico. Mas a história do Sassá Mutema pulsou muito forte junto ao grande público. Acho que o Lima Duarte, com seu trabalho magistral, foi a grande alavanca desse sucesso. Algumas vezes o Lima declarou ser o seu melhor personagem em novela. A novela nasceu por sugestão do Daniel Filho. Retomei O crime do Zé Bigorna, ampliando a história, criando linhas de intriga e acontecimentos paralelos. Zé Bigorna agora se chamava Sassá Mutema. Nome inventado assim: Sassá, de Salvador e Mutema, corruptela de muita teima. Estávamos num bar, Lima Duarte e eu, em São Paulo, antes das gravações começarem, trocando ideias sobre o Sassá. Ele estava vibrando em retomar o Zé Bigorna, que havia sido calcado em sua vivência em Minas Gerais. Lima é de uma cidadezinha, acho que é Desemboque, lá do interior mineiro. E enquanto trocávamos ideias, buscávamos um complemento para o nome do Sassá. De repente ele começou a falar... Sassá Mutema... Mutema, nome de um camarada que ele conheceu em Desemboque. Ao escrever o personagem, me ocorreu que Mutema poderia ter nascido na escolinha noturna onde o catador de laranja se alfabetizava... contando à Clotilde, sua professora, que tinha conseguido se destacar como catador de laranja, com muita teima, muita teima, muita tema... ficou Mutema... Um personagem que marcou muito, um personagem muito terno e muito forte. O Lima se despojou fisicamente, havia verdade naquele homem... um trabalho vibrante, brilhante. Eu contava a história de um catador de laranjas que por uma circunstância é considerado o herói da cidade: é acusado de matar um radialista inescrupuloso e acaba sendo cultuado como herói. É preso, orgulhosamente assume o crime, mas na verdade o assassino é outro... A mesma trama do Zé Bigorna. Ele acaba sendo absolvido por ter matado o radialista em defesa de sua honra. Quando sai da cadeia, sua ascensão é rápida e ele se apaixona pela professora Clotilde, que o alfabetizou. Inicia-se um romance absurdo, entre um camponês e a bela professora, um homem de idade já avançada e uma mocinha linda de morrer, como só a Maitê Proença consegue ser. O elenco era ótimo, a direção do Paulo Ubiratan era excelente, estava dando tudo muito certo, agradava todo mundo, ia às mil maravilhas mas... num determinado momento a coisa se complicou e complicou feio. A novela estreara em 1989, ano da eleição presidencial, a primeira eleição direta depois de mais de trinta anos de ditadura, casuísmos, eleição indireta do Tan-credo que morreu, culminando com a posse do Sarney. Disputavam Collor e Lula. As coisas se polarizaram: Collor representava as forças mais reacionárias, mais conservadoras, e vinha com aquela história de caçador de marajás, e Lula, o metalúrgico, líder sindicalista. Sassá Mutema de certa forma foi identificado com o Lula, e o Collor com a oposição ao Sassá, que era feita pelo personagem do Francisco Cuoco, o senador Severo. A coisa se passava na política local da cidadezinha do interior. Apresentei a sinopse, na qual estavam bastante claras as posições dos dois personagens. Comecei a escrever a novela e não houve nenhum problema no início. Logo surgiu na imprensa uma discussão de que o Sassá era o Lula. Discussão em todos os níveis, nos jornais, na emissora, onde achavam que eu tinha uma novela que favorecia a imagem do Lula. Mas no PT, aconteceu o contrário. A Erundina, que já era prefeita, meteu a boca no trombone contra a novela, afirmando que era uma crítica contra o PT, contra o Lula. Nos primeiros capítulos, Sassá ainda não tinha consciência do seu poder, do seu valor, e era manipulado pela personagem de Suzana Vieira, uma mulher forte, poderosa, inteligente, que logo percebeu em Sassá a possibilidade de comandar a política. Setores do PT achavam que a intenção era de passar a ideia de que o Lula seria manipulado. Impaciência da Erundina, que não percebera que Sassá era inteligente e que logo tomaria consciência e o entendimento da trama que o manipulava. Minha intenção era mostrar um homem do povo evoluindo, tomando consciência de sua realidade até, aos poucos, tornar-se senhor de suas ações, libertando-se de todos os cordéis que o manipulavam, deixando de ser um títere, um boneco na mão daquela gente. Ele, então, se libertava, se emancipava, e iria fazer um governo popular e forte. Essa era a minha intenção. Mas, por outro lado, um homem saído do povo, que faz um governo popular e forte, feria os interesses do Collor. Eu estava sob dois fogos: a esquerda achava que era uma crítica ao Lula e a direita, que era uma exaltação ao Lula. Com a campanha eleitoral em andamento, a novela prosseguia. Iniciou em janeiro de 1989 e foi até agosto de 1989, pouco menos de dois meses da eleição, que foi em outubro. Ou seja, pegou a campanha em cheio. Nada mais claro. Com esse tema num ano eleitoral, era óbvio que poderia criar polêmica, criar alguma dificuldade. A novela entrou num furacão no momento em acontecia a primeira eleição direta para Presidente da República. Minha intenção, desde o início, era de criar uma parábola. O meu plano era o seguinte: Sassá se sobressaía na política regional, crescia, chamava a atenção de todo o país e ligava-se à política nacional. Um grupo ligado ao narcotráfico percebia o poder do ex-catador de laranja e queria coop-tar o Sassá para lançá-lo como vice-presidente, na chapa de um presidente qualquer. Depois, o grupo criminoso faria sumir o presidente e o Sassá passaria a ocupar o seu lugar, manipulado pelo grupo do narcotráfico. Mandaria no País, abrindo as portas do poder para a organização poderosa do narcotráfico. Mas Sassá percebia a jogada e conseguia desmantelar o grupo ligado ao narcotráfico, tornando-se um presidente popular e democrático. Esse era o epílogo da minha história. Na apresentação da novela, enquanto subiam os créditos, aparecia uma imagem muito forte, todos as noites: o Sassá subindo a rampa do Planalto, ao som da voz do Gilberto Gil... Sassá subindo a rampa ao som da voz de Gilberto Gil. Lula no Planalto ao som da voz do Gilberto Gil. 1989... 2003... Premonitório? Esse esquema da infiltração do narcotráfico no poder era o que estava rolando na Colômbia e na Bolívia. Não teria se esboçado depois no Brasil? O PC Farias, de certa forma, em algum momento, resvalou junto às pessoas do narcotráfico. Isso não ficou provado, mas a hipótese é razoável. Era esse o tema que minha novela pretendia levantar. Quando entrei no tema pra valer e escrevi as primeiras cenas, em que ficava clara a intenção do narcotráfico cooptar politicamente o Sassá Mutema, perto do final da novela, a situação política do País ficou bem definida e polarizada entre Collor e Lula. Nesse ponto, fui impedido de fazer esse final... Como? Por quê? Vou contar até o ponto que eu sei, mas a verdade mesmo permanece um mistério para mim até hoje. Eu já começara a escrever o envolvimento de Sassá Mutema com o narcotráfico, quando fui chamado pelo Daniel, que me levou ao Boni. Ele me disse que não poderíamos levar a novela até esse ponto. Sassá não poderia ser eleito vicepresidente da República: Não vamos em hipótese nenhuma fazer isso. Mas é uma parábola, disse eu, nas minhas tentativas de defender a minha ideia. Mas os chefes foram categóricos: Não pode, Lauro, o cara ser eleito ligado ao narcotráfico. O Sassá chegar a vice-presidente está vetado! E veio a solução: Você vai para o policial. Ele ficará na política regional e vai desbaratar quadrilha do narco, não vai passar disso. Fica no policial. Fiquei abalado, chocado, desci para a sala do Daniel e ouvi no corredor um bochicho, de que o ministro da Justiça teria ligado para o Dr. Roberto Marinho com uma frase bombástica: o autor dessa novela vai eleger o próximo presidente da República! O ministro da Justiça naquele momento era o Oscar Dias Correia, do governo Sarney. Ninguém me disse oficialmente isso. Eram informações de corredor, de bocas anônimas, que me pediram para manter seus nomes em segredo. Mas me garantiam que a frase era essa mesmo: o autor dessa novela vai eleger o próximo presidente. Diante disso, a cúpula da emissora resolveu analisar a influência que a novela poderia estar tendo no desenrolar da campanha eleitoral. Eu estava trabalhando com Alcides Nogueira, que era meu colaborador. Fiquei tonto e sem saber o que fazer. Ponderei com Alcides e lamentamos profundamente, mas eu tinha consciência que não dava para continuar. Nessa altura das eleições, a coisa já estava muito definida: era direita contra esquerda mesmo. A coisa se radicalizou nitidamente. O importante é o seguinte: não pude fazer de O Salvador da Pátria a história que eu me propunha a escrever. Em ano eleitoral, não daria mesmo pra fazer. Poderia parecer um apoio ao Lula num momento em que a emissora já tinha dado um apoio explícito ao Collor. Isso ficou claro demais. Quando faltavam uns 15 capítulos para terminar a novela, comecei a sentir muitas dores abdominais, cheguei a pensar em outro enfarte. Um médico me examinou e descartou essa hipótese. Eu ia a uma clínica e tomava Buscopan na veia, para poder suportar o trabalho, ganhar tempo para chegar ao final da novela. Eu não queria parar o meu trabalho. Eu estava obcecado pelo trabalho. E aí uma amiga olhou pra mim e falou: Lauro, você está muito pálido. Já se olhou no espelho? Estou achando melhor você ir a um médico. Imediatamente eu disse que não, que veria isso depois. Ela desistiu de me convencer a ir ao médico e trouxe o médico a mim: o Raul Cutait, um grande cirurgião de abdome. Ele olhou pra mim: você está doente! Fez exame de sangue? Eu respondi: fiz, no laboratório tal. Ele pegou o telefone, discou e disse: aqui é o Dr. Raul Cutait, preciso saber dos resultados do exame feito por Lauro César Muniz. Ele escutou, dizendo monossilabicamente... sei, sei... tá... Discou, então, para o hospital e disse: vou marcar cirurgia pra já. Você está com problemas na vesícula e pode ter um derrame para o pâncreas, que pode ser perigoso. Eu retruquei: preciso de mais 15 dias. Operar? Nem pensar! Ele insistiu, dizendo que eu tava querendo é acabar com a minha vida e não com a novela. E marcou a operação para as 18 horas. Minha mulher, a Regina, disse: Não, às 18 horas não. É uma hora perigosa, os corpos ficam muito expostos. Mística árabe, que fez o árabe Cutait rir, dizendo que operava gente todo dia àquela hora. Mas acabou dizendo. Tá bem... vou marcar às 21 horas. E fomos nós para o Hospital Sírio Libanês. Já grogue no hospital, recebi um telefonema de um diretor da área burocrática, assustado. Eu tentei acalmá-lo dizendo que estava conversando com o Alcides, passando os últimos informes necessários para ele terminar a novela. Ele ainda retrucou: mas é o final da novela. Eu respondi: estou grogue, indo para o centro cirúrgico, fale com o Tide. O Alcides terminou a novela, deixando o último capítulo para eu fazer. Me frustrou muito não poder terminar a parábola como eu queria. Contar uma história abortada dói. Mesmo sem ter conseguido dar o fecho que eu queria, a novela se sustentou perfeitamente graças ao trabalho antológico de Lima Duarte e de todo o elenco. Não é por acaso que foi a última novela que fiz para as oito. A última. Mais uma vez estava lá o rebelde. Depois de ter escrito essa novela tão complicada e de enorme sucesso, fui definitivamente afastado da novela das oito. A partir daí fiz novelas esporádicas e outros trabalhos leves para o horário das sete. Capítulo XXVIII O Grande Choque Em 1987 meu filho foi infectado pela AIDS. Naquele momento, uma sentença de morte. A terrível notícia chegou pelo telefone, por ele mesmo. Tinha 23 anos e havia se casado com Graziela. Coloquei em dúvida o teste Elisa... coloquei tudo em dúvida... coloquei em dúvida os caminhos que seguimos para tratar dele, desde menino... coloquei em dúvida o hospital-dia onde ele fazia um tratamento... Ricardo apresentou anomalias de comportamento desde criancinha. Filho da Ivanise, irmão da Fernanda, meu primeiro filho. Com três anos o levamos a um neurologista para entender algumas crises de ausência que ele manifestava. O médico diagnosticou, através de vários exames, um distúrbio chamado petit mal... Começaram as longas peregrinações com consultas, exames, psicoterapia, remédios... a busca de entendimento para seu comportamento tão estranho. Um dia fui chamado ao Guarujá, onde ele passava férias: estava nu numa praia, um pau de barraca nas mãos como uma lança, ameaçando os banhistas. Foi preso pelo Corpo de Bombeiros. Eu o trouxe a São Paulo, encaminhando-o a uma clínica psiquiátrica onde recebeu tratamento rigoroso para tirá-lo do surto. Nunca recebi de médico nenhum um diagnóstico sucinto, traduzido em uma palavra ou frase. Esquizofrenia? PMD? Os médicos evitavam definições. O quadro era de comportamento delirante, com surtos que o afastavam temporariamente da realidade. Depois de submetê-lo às clínicas tradicionais, que o entupiam de drogas, algumas como o Haldol, que o impregnava seriamente, Tentei um tratamento alternativo. Levei-o para frequentar um hospital-dia, onde ele entrava às 9 horas e saía às 17 horas. Um tempo que nos deu alguma esperança até que... explodiu a terrível sentença: AIDS! Soubemos com o correr dos meses que vários dos pacientes daquele hospital-dia estavam infectados. E descobrimos no correr dos anos, por meio do depoimento dos pacientes terminais, que naquela época de internação eles se fechavam numa saletinha do hospital, no fundo da casa, e faziam rodas para injetar cocaína. Havia um alçapão nessa pequena sala e eles jogavam as seringas no forro. Todos morreram. Nos reunimos, os pais, e movemos ação policial contra a clínica. O hospital-dia foi fechado, o médico brasileiro responsável teve seu diploma cassado, e sua sócia argentina... passou uma temporada em seu país e... minha filha Fernanda cruzou com ela no ano passado, aqui em São Paulo. Está clinicando. Embora conhecendo o desfecho provável, tentamos nos enganar. Quando a porrada é muito forte, fazemos tudo para negar a inexorabilidade dos fatos. Achamos que seria possível controlar a doença, até que aparecesse alguma vacina que pudesse salvar o Ricardo. A situação manteve-se sob controle por muito tempo. Ele estava bem medicado, reagindo muito bem. Ele foi resistindo e dava a impressão que sairia ileso. Um dia uma notícia nos tomou de surpresa: a mulher dele estava grávida! Discutimos a situação com os médicos. O que fazer? A postura dos médicos era de não se correr risco nenhum. Graziela poderia estar contaminada e a criança corria sério risco de nascer doente. Mas Graziela estava bem. Fez exames continuamente, e então Ricardo me implorou que deixasse a criança nascer. Nunca vou me esquecer desse momento, olho no olho com Ricardo, ele queria o bebê. Decidimos que nasceria... e Daniela nasceu linda e forte... linda até hoje... o rosto em tudo lembra o pai. A imagem de Ricardo continua em Daniela. Ele me pediu que escondesse o fato de todo mundo. E eu não contei nem pra Globo, que continuava a me pedir trabalho. Mário Lúcio Vaz me chamou e falou que a próxima novela das sete seria minha, mas eu disse que não queria fazer. Havia a sinopse de uma novela, Perigosas Peruas, do Carlos Lombardi, que eu sabia que era boa e então propus ser uma espécie de supervisor da novela, o que Mário aceitou. A coisa se agravou em 1991: apareceram infecções oportunistas, e no início de 1992 ele piorou muito, morrendo em setembro. Ele tinha 23 anos quando foi infectado e morreu cinco anos depois, com 28. Eu perdi o norte, perdi o rumo das coisas, saí de prumo. Juntei as forças que conseguia. Ele precisava de mim. O que fazer? Menti... menti para o Ricardo que a vacina estava a caminho e pedi a ele que mantivesse a fé. Não podia enganá-lo com a fé religiosa, que essa eu não tinha e ele sabia. Mas eu alimentava a fé que ele tinha. Eu me entreguei à religiosidade dele. Uma religiosidade falsa, bastante falsa, mas há momentos em que você tenta se colocar em segundo plano, e se entregar à religiosidade do outro. Nós sabíamos que essa carga de religiosidade – ele era um místico – o ajudava. Ricardo não era católico, era um místico, e dizia ter uma ligação muito forte com uma entidade. Ele nasceu em 1965, 28 de abril. Preparamos tudo para que ele passasse o aniversário conosco. Ele estava internado e gostaríamos que ele passasse um tempo longe do hospital. Não sabíamos que ele estava no início do fim. Quando nos preparávamos para trazê-lo para casa, o médico me chamou e me tirou todas as esperanças, dizendo que não poderia liberar o Ricardo. A partir daí a coisa engrossou, perdemos as esperanças. Isso em 28 de abril de 1992. O médico me disse que ele teria um mês de vida. Ele estava infectado com tórulas no cérebro e isso costuma ser uma coisa muito rápida. Como dizer a ele, que não poderia deixar o hospital? Um mês? Ele durou mais 5 meses. Eu disse que ele era um místico. Há uma história dele muito interessante. Foi em 1990... 1991... ele já doente e sabendo disso... ele era muito forte, mais forte que a gente, pois nós chorávamos e ele nos consolava... Estou meio confuso, hoje, Hersch. Falar do trabalho é fácil, mas falar de mim, da minha vida, desse assunto, é muito difícil. Mas essa história do Ricardo é muito interessante. Ele chegou um dia pra mim dizendo que um monge tibetano havia chegado ao Brasil junto com um grupo de médicos também tibetanos. Ele disse que queria ver o monge. Como eu era bastante conhecido, achei que seria fácil chegar ao monge. Então soube que pouquíssimas pessoas seriam recebidas pelo médico-monge. Ele recebia as pessoas individualmente, não era um encontro coletivo. Num certo momento, Ricardo e eu entramos numa sala escura, tinha algumas velas e uma luminosidade rosa que dava ao ambiente uma aparência muito bonita. O monge estava sentado num tatame, com aquele traje amarelado, ou rosado? Tinha um cara que traduzia o que o monge falava, traduzia em italiano o que o monge falava. Ele disse uma série de coisas muito bonitas para o Ricardo. O italiano traduzia bem. Ele deu um colar para ele usar, um saquinho de remédios e pegou o nosso endereço para mandar outros remédios de algum lugar. Lá pelas tantas, ele começou a conversar com o Ricardo, que começou a responder na língua do monge. Quando eu penso nisso acho uma história maluca, absurda, mas o fato é que vi e ouvi isso... ninguém me contou. Qualquer pessoa que me ouça contar essa história deve me achar um grande mentiroso ou um grande contador de histórias. Mas juro que é verdade. Não tenho testemunhas, estávamos somente eu e o Ricardo, além do monge e do tradutor. O monge emitia aqueles sons e grunhidos esquisitos e o Ricardo respondia do mesmo jeito. Fiquei assustado e pensei: o Ricardo tá gozando o monge, imitando o cara, e o monge pensa que ele está falando português. Nem o monge ele respeita! O Ricardo era um grande gozador. Mas essa ladainha se alongou. O monge falando tibetano, o tradutor calado e o Ricardo respondendo num som idêntico ao monge. Envolvido por aquele ambiente cheio de espiritualidade, eu cheguei a admitir a hipótese de estar acontecendo algum milagre. Me calei, perplexo. Na saída, carregando um saquinho de remédios a caminho do carro, eu disse: Ricardo, você gozou o monge? Que é isso, pai! Respondeu, indignado. Ora, Ricardo, aquele seu papo com o monge, imitando a língua dele! Porque você fez aquilo com o monge? Eu não fiz nada com o monge, eu levei um papo com ele! Ricardo, estou falando sério! Eu vi você imitando o cara! Pai. Eu estava conversando com ele! Já te disse! Sobre o que vocês falaram? Eu perguntei. Isso é entre ele e eu, respondeu. É um assunto meu, ele completou, e nada mais disse. Eu insisti e ele disse: Vamos encerrar esse papo! Ficou aborrecido. O monge não cobrou nem um centavo. E enviou os remédios que prometera pelo correio. Ricardo escrevia poemas. Buscando caminhos, ia lançando em folhas de papel ideias que muitas vezes nos surpreendiam pela força, pela originalidade, pela subjetividade um tanto contaminada pelo excesso de remédios. Nos últimos tempos, sua poesia ganhou uma densidade sofrida, dura... Editei suas poesias das várias fases e entreguei o livro a ele em tempo. Um livro urgente, mas que reflete seu talento. Ele tomava o livro nas mãos e olhava-o com certa estranheza, como se já pertencesse a uma outra esfera de vivência. Mas, em alguns poucos momentos, parecia se reconhecer. Dava os livros aos médicos e enfermeiras, autografando-o com a força que lhe restava. Sorria e dizia, mostrando sua foto: olha como eu era bonito. O livro chama-se Com a Cara na Mão, porque não tive coragem de dar o título de seu poema mais contundente: O Beijo da Agulha. O beijo da agulha quase pára meu coração que ainda resiste. Batendo esperando o relento de um dia melhor. Destruindo várias vidas sangrando pelo mundo o lamento de um beijo o beijo da agulha. O poema foi lido como oração, no momento em que seu corpo foi entregue à terra. Tempos depois, alguém descobriu seus poemas e uma homenagem lhe foi prestada no saguão da Biblioteca Kennedy, em São Paulo. Tudo isso provocou uma guinada em minha vida e me marcou definitivamente. A partir daí eu fiquei um pouco abúlico com relação à carreira, às novelas e a toda minha atividade artística. Me acomodei bastante e não lutava mais pelas coisas. Eu não queria mais lutar. A luta era outra. Estava tudo um pouco cansado em mim. Tinha havido um processo de desencanto das coisas, da vida. Estava tudo estilhaçado ao meu redor. Nessa época, eu me separei da Regina... Você morre junto com o filho e até ressuscitar leva algum tempo. Custou, mas acabei saindo do buraco. Foi difícil, a carga de culpa era pesada. A carga de culpa é pesada. As Perigosas Peruas estreou em fevereiro de 1992 e seguiu até agosto daquele ano. Fui um supervisor de araque, mas a novela ia muito bem. Carlos Lombardi era um excelente escritor e eu não tive muito trabalho. Acabei me abrindo com ele e ele entendeu bem. Mas contei somente ao Lombardi. Nunca contei à Globo o que estava acontecendo com o Ricardo, mas acabaram descobrindo e delicadamente financiaram, de forma indireta, as despesas hospitalares, que o seguro de saúde se negava a cobrir. Apertado, eu enviava as notas hospitalares à Globo, que pagava o hospital à vista e me descontava do salário, em quantias módicas, sem correção monetária. Naquela época, a inflação era muito alta. Não tive dificuldades em pagar a Globo, pois o valor de minha dívida diminuía pela inflação galopante, enquanto o meu salário era corrigido pelos índices inflacionários. Capítulo XXIX De Volta ao Teatro Eu já havia escrito uma peça, Luar em Preto e Branco, que era uma retomada da história do meu pai e do cinema dele, que eu já mencionara em Escalada. Ele tivera um cinema em Guará, o Cine Glória, hobby de um homem vitorioso, orgulhoso de dar à cidade os melhores filmes do mundo. Em Luar em Preto e Branco, Antônio Mathias, o personagem principal, era um homem muito simples, enquanto meu pai era um homem mais bem formado, tinha um nível intelectual muito superior ao do personagem. Para mim interessava que o personagem tivesse um nível intelectual inferior e permanecesse na cidadezinha, ao contrário de meu pai. Raul Cortez fez o Antônio, e ganhou prêmios no teatro pelo personagem naquele ano. No elenco tinha ainda Célia Helena, depois substituída pela Miriam Mehler, Mayara Magri, que ganhou prêmio de melhor atriz coadjuvante pela peça, Rodrigo Santiago. Foi encenada em 1992 no Teatro Hilton, com direção do Sérgio Mamberti. Apesar de graves erros de cenografia, o espetáculo era bom, exalava muita emoção. Ficou em cartaz sete meses. Não ficamos mais tempo em cartaz porque o Raul tinha um compromisso de televisão e deixou a peça. Não quisemos substituí-lo, encerramos a temporada com casa cheia. Durante dez anos não escrevi outra peça. Somente em 2003 é que retomei o teatro e escrevi O Santo Parto, que estreou no Rio em junho de 2004. Capítulo XXX A Última Novela na TV Globo Fiz minha última novela na Globo em 1997. Zazá era uma farsa gostosa que me divertia muito. Tinha tudo para dar certo, Fernanda Montenegro era uma brilhante Zazá, à frente de um elenco de comediantes, bem escalado. A direção do Jorge Fernando era perfeita, ele sabe tudo de comédia. Uma abertura deliciosa com música de Rita Lee predispunha o telespectador para uma festa. E começou muito bem, excelente receptividade do público, da imprensa, da emissora. Escrevi praticamente sozinho até o capítulo 70, mas depois comecei a cansar. A farsa exige um permanente brilho, um ritmo frenético, para esconder uma certa falta de credibilidade da ação. Manter por muitos capítulos uma história que beira a fantasia e a inverossimilhança, exige grande esforço geral. Eu estava esgotado demais e comecei a dividir o trabalho com colaboradores. O resultado não era o mesmo de quando eu escrevia sozinho. Sou um escritor habituado a escrever sozinho, eu crio à medida que escrevo. A partir do momento em que entraram mais dois colaboradores, eu precisava fazer uma estrutura prévia para distribuir à Rosane Lima e ao Aimar Labaki. Perdi a mão. Surgiu um agravante: Rosane e Aimar tinham estilos muito diversos. Ela tem um humor sutil, refinado, ele ao contrário um humor pesado, quase amargo, escrachado. Tentei dar uma unidade, mas o tempo era cur-to, os capítulos começaram a ficar atrasados. Eu errara em juntar os dois, que começaram também a entrar em choque pessoal. O público é um termômetro imediato de nossos erros: a audiência começou a cair bastante e veio a inevitável pressão da Globo. Tentei dissolver o contraponto entre Rosane e Aimar, colocando mais dois colaboradores: a Jackie Velego e o Nadotti. E a audiência não reagia. Estive doente por uma semana e a novela foi conduzida pela Rosane, que conseguiu alguma reação do público. Mas o brilho inicial se perdera completamente. Era agora uma história híbrida, um pouco de drama, uma comédia sem um tom definido. Convocado para uma reunião na diretoria recebi uma sugestão desastrada: que eu dramatizasse de vez a novela. Lamentavelmente aceitei a sugestão, e foi um erro fatal. A novela piorou ainda mais. Aí veio o golpe de misericórdia. O Boni estava viajando e havia dúvidas a respeito de qual no-vela substituiria Zazá, então me pediram para esticar a história. Mais 50 capítulos! Um absurdo! A audiência caiu ainda mais. Eu já estava embicando para aterrissar meu Boeing, encerrando o trabalho, me pediram mais 50 capítulos, dois meses a mais! Tive de inventar situações novas, ficou forçado. A novela foi a 215 capítulos. Não poderia, dadas as circunstâncias, passar de 165 capítulos. Para agravar a situação, o Mário Lúcio Vaz, diretor responsável pelas novelas naquele momento, fez uma declaração pública de que estava muito preocupado com o andamento de Zazá. Eriçou a imprensa! Um tiro no próprio pé, que atingiu a minha cabeça. Por um bom tempo não apresentei nenhum projeto à Globo, até que o Daniel Filho, que voltara ao comando dos projetos, me chamou para fazer uma minissérie. Fiz então Chiquinha Gonzaga, em 1999. Um projeto vitorioso, grande sucesso, proposto pelo Daniel e dirigido pelo Jayme Monjardim, que voltava à emissora depois de longos anos. Toda minha pesquisa foi baseada no livro da Edinha Diniz. Um excelente trabalho. De longe a melhor biografia sobre Chiquinha. Amplia o universo da compositora, retrata aspectos do Brasil da segunda metade do século XIX e enfatiza o nascimento da música popular brasileira: o chorinho nasceu da fusão da polca europeia com o lundu dos escravos africanos. Joaquim Callado, Henrique de Mesquita e Chiquinha, os principais chorões, fizeram a fusão e criaram um ritmo, plantaram a MPB. Chiquinha Gonzaga passou a ser uma personagem conhecida pelo grande público. Chiquinha tem uma obra musical importantíssima, era uma mulher muito à frente de seu tempo, participou de muitos momentos políticos, como a abolição da escravatura, a proclamação da república, e de todos os movimentos progressistas daquele momento histórico, da metade do século XIX até 1935! Ela viveu 84 anos. Para interpretar a Chiquinha seria necessário ter duas ou três atrizes. Regina Duarte fez a Chiquinha madura, forte. Gabriela Duarte fazia a Chiquinha jovem, determinada, afrontando os padrões da época. Havia credibilidade na passagem de uma atriz para outra. Mãe e filha não são parecidas fisicamente, mas possuem características comuns, gestualmente, jeito de falar. No momento em que Gabriela passou o bastão para Regina, o público aceitou plenamente. Foi no capítulo 19. A minissérie teve 38 capítulos. Regina ainda fez a Chiquinha velha, no fim da vida, com um trabalho magnífico de maquiagem, técnica importada do cinema americano. Um acerto do Daniel, que botou a minissérie de pé, deu o tom. Chiquinha Gonzaga marcou muito fortemente e poderia ter um sucesso ainda maior se não tivesse alguns problemas de produção. A minissérie foi feita muito às pressas, em um esquema de urgência: eu ia escrevendo ao mesmo tempo em que era gravada. Numa minissérie, em geral, a gente tem uma frente maior, muito maior, e na Chiquinha não havia tempo para essa preparação inicial, um esquema semelhante ao das novelas. Mesmo assim, Chiquinha é uma grande minissérie, apesar dos tropeços de produção: o personagem do Riccelli, por exemplo, mesmo depois da troca de atrizes, não aparentava o envelhecimento necessário, um grave erro de maquiagem. O equívoco não chegou a prejudicar a série junto ao público, mas figurou como fofoca da imprensa. Teve uma audiência excelente, 31 pontos de média. Uma audiência que era um recorde entre as minisséries até aquele momento. Voltei a escrever outra minissérie em 2000, Aquarela do Brasil, minha despedida da TV Globo. Capítulo XXXI O Derradeiro Trabalho na TV Globo Uma minissérie que deveria ser uma novela das seis. Comecei a trabalhar assim. Parti de uma ideia que eu tinha tido em 1986. Como eu havia feito um trabalho com o Jayme Monjardim, a Chiquinha Gonzaga, nos propusemos a continuar a trabalhar com o tema da música popular brasileira, dando um salto para a época de ouro do rádio, na década de 1940. Eu tinha um projeto de 1986, da Casa de Criação Janete Clair, de fazer uma novela sobre a MPB por meio da ascensão de uma cantora. Minha história se desenrolava na década de 1950. Fui para um haras do Jayme e deveríamos sair de lá com um projeto. O Jayme achou interessante a ideia da cantora e de retomar o tema da música, mas também estava fascinado com a ideia de fazer uma minissérie sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Sugeri então juntar minha história com a dele, ressaltando a importância do rádio na guerra. Cantora de rádio e guerra! Puxei minha história para a década de 1940, envolvendo temas como o integralismo, fascismo, adesão da ditadura de Getúlio aos aliados e o envio dos pracinhas para a Europa. Um projeto muito bom. Entusiasmou a todos e Jayme e eu fizemos pressão para transformar o projeto em minissérie, pois o tema era bastante quente, forte, adequado a um horário alto. Estreamos no segundo semestre de 2000, muito animados, prevendo longos 60 capítulos. Quase uma novela. A cantora seria a Maria Fernanda Cândido, que tinha uma voz bonita, era afinada, mas não em condições de cantar como uma grande estrela da música em rápida ascensão. Então, foi dublada por uma cantora profissional, Mônica Salmaso. Foi muito bem dublada, e o elenco era excelente. Edson Celulari fazia um militar e Thiago Lacerda um pianista, que disputavam o amor da Maria Fernanda. Havia o Odilon Wagner, que fazia o dono da emissora, casado com a linda Natália do Valle, tendo como amante a Angela Vieira, fazendo uma vedete decadente que vivia de recordar suas glórias do Cassino da Urca. Enfim, tinha um painel bonito da época. Mas, na ocasião, esbarramos com as Olimpíadas, o que levava os nossos capítulos a entrarem muito tarde, em função do término de alguns jogos. É claro que a audiência não poderia ser a ideal, nem a mesma de Chiquinha. Porém, logo depois da estréia, nos primeiros capítulos, sentia que o Jayme estava insatisfeito, não se empolgava com a minissérie por alguma razão. Talvez quisesse uma audiência igual a da Chiquinha. Jayme é muito pragmático, orienta seus trabalhos pelos números do Ibope e insistia em que a gente deveria se ater à questão romântica. Acreditava que o triângulo romântico poderia nos trazer a audiência que desejava, enquanto eu queria explorar bastante o período histórico. Eu entendia o ponto de vista dele sobre o romantismo, mas não poderia deixar para um plano absolutamente secundário assuntos tão fascinantes, como o aspecto político, a violência da ditadura, o DIP, a censura e o problema dos judeus. Minha relação com ele, que fora boa durante a realização da Chiquinha, começava a ir mal. Com o correr dos capítulos, entramos em choque. O Jayme deixou de dirigir a minissérie a partir do capítulo 20, não voltou mais ao estúdio, deixando tudo nas mãos de seus assistentes. Foi para a sala de edição e começou a cortar tudo o que lhe parecia excessivo, informação histórica ou política. Mais grave ainda, começou a manipular meus capítulos antes de chegarem às mãos dos atores: tudo o que apresentava alguma dificuldade, segundo seu ponto de vista, era cortado previamente. Eu percebi a mutilação, falei com ele e fizemos uma reunião na TV Globo, com a presença de alguns diretores da emissora. Para meu espanto, ele tinha todo o apoio da direção da casa, e entramos num acordo de que, por algum tempo, eu aceitaria aqueles alterações, para sentir a reação da audiência... Os atores começaram a se queixar, e muito, com o fato dele não comparecer ao estúdio para gravar. Me telefonavam o tempo todo reclamando. Os assistentes não conseguiam conter a irritação do elenco. Sabendo do poder e da autoridade do Jayme, passaram a negligenciar meu texto. Cortaram coisas maravilhosas e importantes para o desenrolar da trama. Eu só percebia os cortes ao assistir ao capítulo no ar. Então passei a recolocar cenas cortadas, quando possível, mas elas foram cortadas duas vezes! Dou um exemplo de cena cortada duas vezes: Guimarães Rosa, que era cônsul em Hamburgo em 1938, tinha libertado muitos judeus, carimbando no passaporte a cruz que significava que o portador era cristão, ao invés do jota, que significava judeu. Com isso, Guimarães Rosa e sua mulher evitaram que muitos judeus fossem para o campo de concentração, fugindo da Alemanha. Isso era uma informação muito importante e a cena nunca foi ao ar! Essa informação ocupava uma cena curta: havia um escritório de atendimento a judeus, naquele tempo, no Rio de Ja neiro, e o assunto era discutido nesse escritório, uma instituição internacional que protegia os judeus. Como esse corte, muitos e muitos outros relacionados à narrativa, contendo dados que traziam informações históricas, foram pro lixo. Entrei em atrito com ele seriamente. A gente fazia acordos e aí, por uns tempos, ele deixava os capítulos irem ao ar na íntegra. Depois esquecia o acordo e editava segundo seus critérios . Uma associação judaica conseguiu junto ao Itamaraty e com o apoio de Darcy Vargas uma autorização para que algumas crianças judias desembarcassem no Brasil. Os pais não podiam aportar, mas seus filhos sim. Então, escrevi uma sequência que era o desembarque de uma criança no porto do Rio de Janeiro. A mãe seguiria até Buenos Aires e depois voltaria ao porto do Rio para tentar desembarcar e reencontrar a filha. A cena era de forte emoção, com a separação entre a mãe e a criança, sem que mãe tivesse segurança de que voltaria a ver a filha. O Jayme tirou essa cena na edição. Eu nunca vi a cena, mas todos os que viram disseram que ela era muito forte! Eu deveria ter botado a boca no trombone, mas acabei me calando. Achei que, se denunciasse isso na época, haveria um forte abalo na produção, com repercussão junto ao elenco, o que a desestabilizaria ainda mais. Isolado em São Paulo, não teria condições de me concentrar no trabalho, enfrentando uma turbulência a mais. Eu amava meu trabalho em Aquarela e via a cada dia tudo se perder. Me sentava para trabalhar, escrevia coisas que me emocionavam, me sensibilizavam e me perguntava: será que essa cena irá ao ar? Pode um autor trabalhar com essa espada, essa ameaça permanente sobre sua cabeça? Preferi contemporizar, me calar, engolir o sapo como eu disse em entrevista ao Estado de S. Paulo. Errei. Quatro meses depois, fazendo uma palestra para universitários no Cine Sesc, eu abri o jogo, desabafei, contei a verdade para os estudantes. Eram apenas uns cem ouvintes. Não notara que havia um gravador na minha mesa. Era de um repórter do Estadão. Ele publicou tudo. E a manchete da matéria publicada dizia que a Globo havia me censurado. Eu não mencionara a Globo na minha palestra, eu me referira à figura pessoal do Jayme. O corpo da matéria estava correto, mas a manchete refletia outra intenção. Com isso, recebi instruções para me retratar, pedir desculpas e enviar um texto previamente escrito ao Estadão, negando tudo aquilo. Me neguei a assinar o que algum executivo havia escrito. Escrevi ao jornal dizendo que a menção sobre a qual a Globo havia me censurado não havia sido declaração minha, que eu havia citado claramente a pessoa do Jayme como responsável pela mutilação de meu texto. Só é admissível mexer no texto de uma minissérie ou novela com o consentimento do autor, que discute a causa da alteração. Se não, vira censura. As cenas não aproveitadas foram jogadas fora, segundo Jayme me disse algum tempo depois, quando pedi que fossem reeditadas para exportação. A minissérie, a despeito de tudo, foi bem, fez sucesso fora do Brasil, na Itália e na América Latina inteira, um enorme sucesso em Cuba. Desde esse episódio, nenhum trabalho meu foi produzido pela Globo. Capítulo XXXII Novos Tempos, Velhos Tempos O Santo Parto estreou em junho de 2004 no Rio, preparando-se para excursões a vários lugares, encerrando a carreira em São Paulo. Uma peça sobre a pedofilia na Igreja Católica. É a história de um padre que engravida. Não poupa a Igreja Católica e nem a Igreja Evangélica. O público reage de forma estranha, riso nervoso, riso debochado, enfim, reações inquietantes da plateia. O elenco carioca tinha o Roberto Bomtempo no papel do padre, José de Abreu no papel de um Cardeal de 200 anos, e o metaleiro, pai da criança que o padre vai parir, foi interpretado por um garoto talentoso que canta e toca guitarra, o Sérgio Marone. São Jorge, banido da Igreja, também aparece de forma surpreendente. A escrava negra foi feita pela Jussanan Dejá e a direção é do Luís Arthur Nunes, a cenografia é de Luis Fernando Pereira e a produção de minha filha, Fernanda Muniz, e de Sandro Chaim. Até agora O Santo Parto não conseguiu nenhum patrocínio. É claro que uma peça irreverente como essa não vai conseguir captar recursos. Nenhuma empresa vai chancelar, com seu logotipo, uma peça anticlerical. Escrevi uma apresentação para o programa do espetáculo e transcrevo aqui um trecho: O Santo Parto, escrita em 2003, nasceu de uma compulsão de retomar um tema que já abordara em minha primeira peça teatral, estreada profissionalmente em 1963: O Santo Milagroso. Quarenta anos separam as duas comédias. O Lauro jovem se enfrenta com o Lauro maduro. Se em 1963, sob o papado de João XXIII, havia a esperança de uma Igreja voltada para o homem e sua indigência social, em 2003, sob o papado de João Paulo II há o forte retrocesso para uma igreja ultraconservadora, alheia à indigência e à pobreza. Sobre aquela Igreja da década de 1960, que incentivava o ecumenismo cristão, escrevi uma peça alegre, solta brincalhona, contrapondo um padre católico e um pastor protestante, ambos safados, mas com uma safadeza que visava ao bem da comunidade. Sobre a Igreja atual escrevi uma comédia amarga, em tom fantástico, contrapondo o mundo real à postura irreal de uma Igreja que parece ignorar o homem e suas mazelas sociais. Pior, em nome de cânones anacrônicos, impõe uma espiritualidade facilitada, para esconder sua ação inoperante. Em contraponto, cresceu no país uma Igreja Evangélica mercantilista, agindo no bolso de seus fiéis. Os personagens de O Santo Milagroso rodopiam numa farândola alegre, enquanto os persona-gens de O Santo Parto, simbólicos, tornados ícones, parecem agir sob a musicalidade de um réquiem. As duas comédias nasceram de ideias muito especiais: na primeira, o pastor se vê coberto com um sudário roxo, de onde opera falsos milagres, na segunda um padre está simbolicamente grávido por seguir seus instintos sexuais, por amar um jovem ainda menor de idade, ligado à Igreja Evangélica. Sinais de duas épocas separadas por quarenta anos. Entre esses 40 anos, o retrocesso brutal das igrejas. Em julho de 2007 O Santo Parto estreou em São Paulo, sob direção de Bárbara Bruno, no Espaço dos Satyros. No elenco: Walter Breda, Marco Antônio Pâmio, Raoni Carneiro e Miriam Amadeu. Este espetáculo marcou minha aproximação com o Ivam Cabral e o Rodolfo Garcia Vazquez, diretores do Satyros. A partir daí, passei a colaborar sempre com uma peça curta no grande evento de cada ano, que festeja a entrada da primavera: as Satyrianas! Uma festa popular que reúne milhares de espectadores, em espetáculos contínuos, sem interrupção durante setenta e duas horas! E, é claro, fiz mais uma peça anticlerical, A Pomba, sobre a pedofilia na Igreja Católica... O espetáculo dirigido pela Bárbara Bruno era muito bonito, poético e arrojado. Causou espanto e emoção. O padre grávido, no momento em que assume a maternidade, julga que sua gravidez é uma revelação de Deus para a própria Igreja, um sinal que Deus está enviando pra mostrar que o amor carnal entre homens também é possível. Claro que é uma peça polêmica, que está gerando muito barulho: irritação nos setores mais conservadores e aceitação nos setores mais progressistas. E, logicamente, muito aplauso na comunidade homossexual. Curiosamente, alguns espectadores comentaram que a peça tem uma forte conotação religiosa, porque o padre está muito bem defendido na ação, esse padre-mãe está muito valorizado. Pode ser verdade, mas eu não sou religioso. Capítulo XXXIII A Religião Para uma criança, a Igreja é encantatória, com todo aquele aparato visual, figuras de santos e vitrais, peças sagradas, todas aquelas coisas fantásticas, figuras lindas de anjos, a imagem medonha do Senhor morto, de Cristo morto, sangrando na horizontal, carregada na urna fúnebre em uma procissão, aqueles trajes todos, os paramentos do vigário, as batas dos congregados marianos, andores dourados, ícones marcantes que penetram a cabecinha virgem de uma criança. A Igreja católica nos toma desde a infância pela impressão visual e sonora, pela majestosa cenografia dos altares, pela exuberência pictórica e arquitetônica... Isso me fascinou quando menino e me marcou muito forte, daí minha fascinação pelo tema ligado ao catolicismo. Meus pais nunca foram muito religiosos. Eram católicos como muitos, socialmente. É de bomtom ser católico. Fui batizado em Guará, meus padrinhos eram de lá. Dr. Nilo, médico, e Dona Isaura, professora. Havia em meu pai uma devoção muito discreta por Nossa Senhora Aparecida. Mas nunca vi meu pai rezando. Houve um período no qual éramos, minha irmã e eu, levados à missa. Talvez até, em determinado momento da minha adolescência, eu tenha sido mais religioso do que meus pais. Lembro de ir sozinho à igreja, fazer promessas, de ir a pé da escola até à Igreja de São Judas, quando consegui passar de ano, no ginásio. Cumpri uma promessa! Não gosto da palavra ateu. Sou materialista. É diferente de ateu, pois subentende uma postura filosófica. Ateu significa não crer em Deus e ponto final. Não cogitar e não querer cogitar o assunto. Não é o meu caso. Eu cogito o tempo todo essa possibilidade, essa energia fantástica, essa coisa misteriosa que está acima de nosso entendimento. É claro que aquilo que me qualifica como materialista é que eu não tenho fé, não tenho fé religiosa, não tenho esse elemento de religação com nenhuma divindade que me leve à prática de uma religião. Houve um momento em que me aproximei do espiritismo, via umbanda. A umbanda é interessante, primitiva, bonita e misteriosa. Tem um jogo teatral-coreográfico-musical fascinante. Eu queria crer naquelas entidades, queria me deixar envolver por aquela galeria de divindades: exu, caboclo, preto-velho, pombagira, zé-pelintra, tantos ícones, estereótipos interessantes, personagens maravilhosos. Mas depois encontrei nos cavalos – aqueles que recebem as entidades – um mundo tão mesquinho, de competição, de autoafirmação, de pura vaidade humana, semelhante ao do clero religioso. Quando a religião se institucionaliza, se organiza, vira uma empresa, surgem as disputas pelo poder, pelo comando, torna-se uma conta corrente como a de qualquer instituição lucrativa. Com tudo isso, meu ceticismo ficou ainda mais reforçado, cada vez estou me distanciando mais de qualquer caminho religioso. Tenho fortes convicções materialistas, considerando-se a amplitude fantástica do conceito de matéria. A energia obviamente é matéria e até as trocas invisíveis de nossas sensibilidades desconhecidas pertencem ao campo material. O que hoje para nós é mistério, é matéria desconhecida. Matéria tem uma amplitude muito grande. Com certeza, em alguns anos, ou em muitos anos, vai haver um encontro entre as concepções materialistas científicas e as convicções religiosas. O que atribuímos hoje ao mistério da divindade é o limite de nossa ignorância. O homem ainda vai estabelecer uma equação que vai revelar, no limite dos tempos, a origem desse mundo e a razão de ser de nossa presença aqui. Não vejo como defender um Deus judaico-cristão, criado à semelhança do homem. Esse Deus é uma lenda há séculos e acho até absurdo se reverenciar esse Deus, que teria gerado todas as religiões ocidentais. A Bíblia toda é um livro de simbologias. São crenças em figuras deificadas. A figura de Jesus, com certeza, existiu historicamente e deve ter mesmo pregado uma filosofia do amor ao próximo, uma das bases do cristianismo. Gosto de Jesus e seu pensamento, só não aceito a sua postura onipotente de considerar-se filho de Deus. Perdão, acho que ele nunca se considerou filho de Deus. Foram aqueles que ergueram uma igreja em seu nome que criaram essa fantasia. O amor ao próximo é bonito e sensorial. O amor a Deus é para mim incompreensível, mais uma postura de mistificação, de autocontrole humano, do que uma sensação real... Pobre homem, ainda precisa de um ser que lhe seja superior. Criou um Deus para se proteger do que não entende. Como amar uma abstração que a razão não atinge? Agora, nessa fase da minha vida, estou ainda mais radical. Minha sensibilidade é incapaz de sentir qualquer força ou forma de comunicação com alguma coisa além da minha razão. Tenho dificuldades em criar um vínculo de fé com o abstrato. Então, para ser honesto comigo mesmo prefiro me nominar materialista. Acho mais honesto. Seria hipócrita definir-me como católico, para gozar o falso conforto da aceitação social, para ser um velho de bom-tom. Não consigo seguir superficialmente as liturgias todas para cumprir um formalismo, para ser bem-visto pelos meus pares, pelo meio social no qual atuo. Se você for empregado de uma grande empresa e disser que é ateu, cria um problema sério. Já passei por isso. Já cumpri anos atrás os rituais todos, por cinismo e inércia, acomodação, pra fazer o papel que me cabia socialmente. Era engenheiro, casei na igreja porque a família da noiva assim queria e fui um noivo ridículo. Diante do altar, ajoelhado diante do padre, eu fazia um movimento estranho, balançava os pés, como uma palheta de para-brisa, para os amigos verem que eu estava ali cumprindo um ritual que não me envolvia. Meus filhos foram batizados também, porque não quis interferir no desejo da mãe. Aliás, as duas mães dos meus quatro filhos queriam isso, e eu achava que não tinha o direito de vetar. Mas consegui transferir a meus filhos a minha postura não religiosa. Não sei se é mérito, pois estou na verdade passando para eles uma dificuldade, e não uma facilidade. Cunhei uma frase de brincadeira, que uso com os amigos inteligentes: sou um ateu, devoto de São Judas Tadeu. Quando escrevi O Santo Milagroso eu fui muito àquela igreja, fiz pesquisa sobre os milagres, e via muito aquelas doações, ex-votos: muletas, braços e cabeças de cera, aquele costume de pagar o milagre, a graça alcançada. Num momento de desespero, por causa do Ricardo, meu filho, embarquei em viagens diferentes. Eu precisava, queria a cura dele. Nesse caso, você se despoja de si mesmo e busca um caminho, qualquer um que seja. No desespero, você vai. Entrava numa igreja que não conhecia. Desde a infância eu sabia que podia fazer três pedidos. Eu entrava e fazia. Fazia três pedidos iguais, mas pedia: salve o meu filho! Era o desespero. Com a morte dele, ficou uma coisa mais dura ainda. Comigo se deu o contrário daquilo que acontece com as pessoas em geral. É comum as pessoas perderem um ente querido e se apegarem à religião, ao misticismo, na tentativa de manter um contato, qualquer que seja ele. Me deixei levar a um centro espírita: mensagem psicografada, uma carta ridícula que nada tinha a ver com ele. Uma fraude. Muitas fraudes. Até que um dia aconteceu uma coisa estranha. A mãe dele recebeu, em Araraquara, onde lecionava, um fax vindo de outra cidade do interior. Não sabemos até hoje quem enviou. Era um poema e tinha todas as características do Ricardo, difícil de imitar. Quando li, me emocionei, fiquei realmente impressionado. Como uma marca, uma impressão digital, o estilo era do Ricardo mesmo. Meu Deus, quem tem o estilo dele? Cético, duvidei. A mãe, não teria condições para imitar o filho e nem tinha dons de poeta. Não creio que alguém tivesse feito aquilo de má fé ou de gozação comigo. Estranho, mas aconteceu. Mas... foi só aquele momento, um momento talvez de ilusão, insuficiente para se erigir toda uma crença. Capítulo XXXIV Olhando a Profissão Consegui viver como escritor a partir de 1965, portanto há 45 anos. A partir de janeiro de 1965 vivi do que escrevi. Até hoje, nunca tive outro rendimento que não fosse oriundo do meu trabalho de escritor. Basicamente, a TV deu o sustento todo, embora fizesse teatro e cinema. Mas o teatro é bastante instável, as temporadas são curtas, o patrocínio é difícil e não dá abertura para todas as possibilidades de espetáculos. A grande maioria das empresas que financiam espetáculos tem seus compromissos (não) ideológicos com os clientes, com certa compostura. Como colocar um logotipo da empresa em peças teatrais irreverentes? Não seria um novo tipo de censura? A televisão e o teatro são duas formas de comunicação bastante diferentes. A televisão é um híbrido de rádio e teatro. As características de ambos são muito presentes na televisão até hoje. Basta observar como as novelas são muito faladas, dialogadas. Notar como as coisas são explicadas verbalmente. O som é importante na telenovela e às vezes até reiterativo, ao contrário do cinema que, de uma maneira geral, substitui, sempre que possível, a expressão verbal pela imagem. O cinema evita a redundância do diálogo. Na telenovela não, nós sabemos que muitas vezes o espectador tira os olhos da telinha e fica ouvindo o som. Ouve a cena. Muitas pessoas tiram os olhos da novela e ficam com outra ocupação, trabalho manual, como o de cozinhar, por exemplo. O som, influência do rádio, ainda é um fator muito importante na telenovela. No teatro, a palavra é fundamental, prevalece mais que a imagem. Diálogos que geram a ação dramática, com poesia, literatura. A imagem pode muitas vezes compor até comunicação eloquente, forte, coreográfica, mas o teatro em essência vive da palavra. Alguns diretores criam coreografias, substituindo a palavra por inovações tecnológicas, mas o bom teatro, em geral, depende de um bom texto. É muito diferente as linguagens da televisão e do teatro, mas têm em comum, a palavra. Para quem escreve pra teatro, e pretende escrever para a televisão, precisa entender essa transição. Como disposição geral, a televisão possui um espaço realista mais amplo, além de muitos cenários, as locações externas. Busca-se, na grande maioria das vezes, uma linguagem realista. No teatro mesmo a obra mais realista tem um toque de estilização. Há um acordo tácito entre o palco e a plateia. Há códigos de comunicação do palco, que o espectador assimila com facilidade. Aqui surge um paradoxo incrível: o teatro, embora contido naquela caixa do palco, tem muito mais possibilidades não realistas, de dar vôos ainda maiores do que a televisão e o cinema. Um palco vazio pode expressar um mundo mais amplo e mais rico do que todas as imagens realistas da televisão e do cinema. Alguns objetos podem adquirir força expressiva, sugestiva, substituindo todas as possibilidades de imagens reais. Coisas muito importantes no teatro acontecem fora de cena e são trazidas ao espaço e tempo presentes por diálogos ou narrativas. No cinema e na televisão, é mais comum que o fato surja presente no espaço e tempo em que ocorreu. O teatro expressionista é um exemplo: o espaço cênico é tão amplo que pode ser até o interior da cabeça de um personagem. Não está limitado por nenhuma regra realista. Ao contrário do cinema e da TV que, na imensa e absoluta maioria dos casos, impõem a necessidade de se dar ao espectador o ambiente, o background no qual as pessoas agem, uma imagem realista, mesmo quando mágica. A não ser as exceções, como por exemplo Dogville, do Lars Von Trier, que teatraliza o espaço. O teatro se centraliza no ator, usa a luz, delira à vontade, e faz acreditar que todo aquele espaço em volta pode se transformar naquilo que você quiser. Podem aparecer outros personagens, que podem ser levados a planos diferentes, como o interior, de delírio, memória, loucura, em espaços e tempos diversos, e que não precisam do apoio de cenários definidos realisticamente. O teatro, historicamente nasceu com espaços amplos, sugeridos, sem nenhum compromisso com o realismo. O teatro grego, de dois mil anos atrás, não tinha cenário, e os atores usavam máscaras. A Commedia Dell’Arte se apoia em máscaras estilizadas, cada qual simbolizando um estereótipo bem definido. Eu amo o teatro. Não é que eu me sinta mais realizado no teatro. Tenho posturas diferentes ao escrever para o teatro ou para a televisão. O teatro pra mim é uma força de expressão compulsiva: faço teatro quando não dá mais para não fazer. A televisão, não. Em geral, estarei servindo a um processo que vai atender a uma demanda mercadológica. Isso não significa que não seja importante buscar a melhor expressão de qualidade, na telenovela. Capítulo XXXV O Impasse da Telenovela Na década de 1970, as telenovelas em geral tinham uma ação mais plácida, uma narrativa mais lenta, uma introspecção maior. Na década de 1980, a ação foi um pouco mais acelerada, mas ainda mantinha um ritmo mais lento que hoje. A partir dos primeiros anos da década de 1990, o telespectador, mais impaciente, pare-cia exigir uma dramaturgia que o estimulasse permanentemente com golpes fortes. A introspecção dos personagens, a discussão de ideias, cenas ou sequências que levassem a alguma subjetividade, foram substituídas por lances fortes, mais objetivos, dramáticos e melodramáticos, humor fácil e chanchada. Com o correr dos anos, seguindo para a virada do século, a ação foi se tornando cada vez mais ágil, frenética, seguindo o modelo do cinema norte-americano: grandes acidentes, muitos tiros, mortes, sangue, temas sexuais fortes, relações entre as pessoas num nível muito mais exacerbado, impactos vários, quase sensoriais, físicos. Esses blockbusters, exibidos fartamente na televisão, depois de poucos meses de exibição no cinema, ditaram uma nova estética. Os personagens ficaram mais esquemáticos para a ação correr mais rapidamente. Isso gerou uma dramaturgia que levou o autor a se sentir impossibilitado de conduzir sua escrita sozinho. Passou a admitir colaboradores, para criar situações muito envolventes a cada capítulo, em todos os momentos, com truques, impactos, mistérios, etc. Sozinho, ele não consegue dar conta de tantas reviravoltas na história. Isso gerou um processo industrial de escrever. O telespectador não tem mais a mesma postura das décadas de 1970 e 80, quando era mais dócil e atento. A partir da década de 1990, precisa ser o tempo todo provocado, estimulado a ficar diante da televisão, porque várias outras possibilidades começaram a aparecer. A primeira foi o videocassete, a possibilidade de assistir a um filme ao invés da telenovela. Mais tarde, a televisão a cabo, por assinatura, depois a internet, a facilidade do DVD. A audiência média das telenovelas sofreu paulatinamente uma queda nítida. Se um sucesso no horário nobre alcançava uma média de 65, 75% de audiência, hoje fica em volta de 45 a 55%. A telenovela, de forma geral, tornou-se mais maniqueísta nos últimos anos. O autor, cercado de colaboradores, já não coloca mais no seu trabalho as emoções mais genuínas, e seu estilo mais pessoal. O autor tornou-se mais técnico: geralmente faz uma estrutura (escaleta) do capítulo, distribui para uma série de colaboradores, que escrevem as cenas e depois devolvem a ele, que as organiza e procura dar uma unidade. Mas nem sempre o autor tem tempo para dar essa unidade. Por isso, a autoria se perdeu. Isso é o mais grave. É possível reconhecer se a novela é de um autor ou de outro, mas a emoção da escrita solitária, que nasce no momento de solidão, como acontece com o criador de um romance, de uma peça de teatro, de um roteiro de cinema, este isolamento que gera um estilo pessoal, isso se perdeu. Ah, se perdeu, que pena! Por outro lado, escrever sozinho é uma tarefa insana, absurda, porque não dá para responder às necessidades do novo telespectador. É um trabalho industrial, como é o cinema norteamericano. De uma maneira geral, o cinema industrial norte-americano é um cinema feito pela máquina, claramente pela máquina. A telenovela está vivendo esse impasse. A grande preocupação dos autores não é mais com o aspecto estético, mas com a plena comunicação. O que se tem visto é o autor apelar para qualquer solução. Mesmo beirando a inverossimilhança, o implausível, o que importa é impactar para sustentar a audiência. Tenho lido e ouvido declarações de alguns colegas nas quais se sente claramente, até com uma dose de sofrimento, que estão fazendo um trabalho técnico, para uma comunicação fácil. Aquele anseio dos anos 1970, de se criar... está quase perdido. Há poucas exceções, o que, de certa forma, gera uma coisa muito triste no autor: ele acaba assumindo uma postura cínica com seu público, pois sabe que está lhe dando um trabalho muito aquém da sua capacidade de escritor. Há um público certo e cativo das tradicionais telenovelas mexicanas. Até se fala numa mexicanização do público brasileiro. Esse é um outro tipo de público, um público com outro nível cultural. Em primeiro lugar, as novelas mexicanas atingem um público de nível econômico muito baixo e, por extensão, de nível intelectual bastante baixo. São novelas realmente execráveis, mal dubladas e com uma imagem muito distante da nossa realidade, de qualquer realidade. Tudo é muito ruim. As imitações feitas aqui são melhores, porque os atores são melhores, não têm aquela imagem tão estereotipada, aquela maquiagem absurda, aquela peruca esquisita, aquela coisa horrorosa que as novelas mexicanas têm. Há um público infantil que aceita novelas desse tipo. Há uma saída. Eu não estaria fazendo essas afirmações tão negativas se não desse para reverter. Outro grande problema é a extensão da novela. Há cerca de 20 anos, a pedido do Boni — de sugestões gerais sobre dramaturgia - eu propus, num trabalho escrito, fazer novelas mais curtas. Com menos capítulos, usaríamos menos personagens, menos cenários e o ponto de equilíbrio financeiro da novela baixaria, tornando a novela curta viável economicamente. Em 100 capítulos, é possível contar uma história coerente, com começo, meio e fim, em que a consistência e a coerência da personagem se mantenham e haja mais concentração na espinha dorsal. Se você passa de 100 capítulos, sente a necessidade de criar muitas histórias paralelas que, às vezes, se emancipam e passam a não servir em nada para a história central. Naquele momento, o Boni gostou da sugestão, mas disse que era arriscado testar aquilo. Assim, os anos se passaram, e voltei à carga com a Marluce (Dias da Silva), quando ela estava assumindo o cargo. Ela foi cuidadosa e reticente. Até brinquei com ela na reunião: daqui a 15 anos eu volto. Fiquei surpreso quando, em agosto de 1999, o Daniel Filho me chamou para dizer que íamos testar o formato da novela curta. E que ia dar continuidade ao formato com outras novelas curtas. O melhor horário para essa experiência seria o das 18 horas; o das 20 horas é o horário-chave da emissora, de muita responsabilidade para se fazer uma experiência. O Daniel Filho pretendia fazer quatro ou cinco novelas curtas para as 18 horas e ver o resultado. Ou seja, com essas novelas curtas talvez descobríssemos novos caminhos. Talvez fosse possível retomar a plena emoção, com o autor doando o melhor de si, escrevendo tudo, ou quase tudo. Os atuais colaboradores não perderiam o emprego com isso, porque o leque seria muito grande para atender a uma produção maior. Chiquinha teve 40 capítulos e todo mundo me dizia que daria muito bem para chegar a 60. Tenho certeza de que daria. O Daniel Filho já tinha preparado uma lista de nomes de autores que deveriam me seguir nessa experiência. Com o novo formato, também o diretor poderia dirigir com seu estilo e não precisaria dividir com vários outros diretores. O ator não teria de se esgotar tanto, chegando ao final absolutamente estressado, maldizendo a telenovela, como os grandes atores estão fazendo. Num trabalho de quatro meses, com uma personagem coerente, consistente, com começo, meio e fim, o ator se sentiria estimulado. Não vai se perguntar: E agora? Sou mocinho ou sou bandido? Por que o personagem mudou tanto? É um exercício de pirotecnia profissional, uma coisa insana. Com a novela mais curta todos ficariam mais felizes, mais realizados. E essa alegria de realizar um trabalho íntegro passaria, com certeza, para o telespectador. Lamentavelmente o nosso projeto da novela mais curta foi adiado, depois o Daniel foi afastado e as novelas assumiram definitivamente um nível popularesco insuportável. A telenovela perdeu contato com a nossa identidade, se transformou num produto industrial. Esse é o grande ponto. O mundo mudou. O mundo hoje é feito de produtos. As relações entre os países é mercantilista. Na década de 1960 tínhamos um sonho; na década de 1970 buscamos caminhos, utopias, e isso fracassou. Na década de 1990, depois da queda do Muro de Berlim e da globalização — mais econômica do que de interação social ou cultural — o mundo virou um hipermercado. A novela também se insere nisso. As poucas exceções são movimentos de resistência. Alguns filmes com proposta autoral, algumas minisséries de televisão. Capítulo XXXVI Mudança de Rumos Nos últimos anos, houve uma grande transformação no quadro administrativo da Rede Globo, com mudanças não apenas nos nomes, mas de filosofia de trabalho, de opções por novelas mais populares, mais esquemáticas, de fácil comunicação. Nesses últimos anos, apresentei cinco projetos excelentes, de telenovelas e minisséries. Alguns chegaram a entrar em produção, depois, por razões nem sempre muito claras, foram abandonados. Alguns trabalhos que apresentei à Globo e que ficaram nas gavetas: Mãe Terra, em parceria com Rosane Lima, baseada no maravilhoso romance A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas, de Maria José Silveira; Tutti Frutti, novela em parceria com Renato Modesto, baseada em três obras de Molière; Vendetta, baseada no romance de Sílvio Lancellotti, Espumas Flutuantes, a vida de Castro Alves. A gota d’água do meu desânimo aconteceu em 2004, numa reunião em que o Mário Lúcio Vaz, diretor artístico, mencionou que meu projeto sobre Castro Alves poderia ser produzido em 2009. Havia ironia e deboche em sua frase. Eu já estava congelado há quatro anos! Decidi, a partir dessa reunião, que buscaria outro caminho fora da TV Globo. Tinha convites de uma emissora de Santiago do Chile para assumir a supervisão de um departamento de novelas e fazer trabalhos de minha autoria. E percebia também o movimento da TV Record, que abandonara a terceirização desastrosa para produzir suas próprias telenovelas. Almocei com o Hiran Silveira, diretor responsável pelas novelas da Record, e senti que estava diante de um projeto bem planejado e sério. Comecei então a analisar as possibilidades de sair da Globo e voltar a escrever para a televisão. Já estava decidido a ir para a Record, no início de janeiro 2005, quando a TV Globo me propôs fazer uma telenovela, retomar um tema que eu já havia apresentado. Imperatriz do Café foi inicialmente cogitado para ser uma minissérie, depois eu mesmo sugeri que virasse novela. A história, baseada no livro O Lírio e a Quimera, do Romaric Büel, é um folhetim maravilhoso, uma mistura inteligente do universo de Vítor Hugo e Alexandre Dumas. Nesse momento, informei à TV Globo que não renovaria contrato. O Carlos Manga ainda insistiu, afirmando que agora era pra valer, mas... eu já tinha em mãos uma proposta irrecusável da TV Record, não pelo valor da proposta, mas por me abrir as portas com um novo horário, com perspectivas muito animadoras. Trabalhei muito durante os 33 anos em que permaneci na Rede Globo. Sou um dos autores que mais produziram teledramaturgia: escrevi e participei de 19 novelas e minisséries, vários teleteatros, cenas cômicas para o Fantástico, substituí dois colegas que não tinham condições de terminar seus trabalhos, supervisionei vários outros. Não creio que a Marluce (Dias da Silva) e o Octávio Florisbal, que hoje comandam a emissora, ou mesmo os Marinho, tivessem consciência plena do processo de congelamento do meu nome. Senti na Marluce um espanto quando comuniquei minha saída. Tivemos um longo e emocionado papo pelo telefone. Com o Florisbal tive um contato pessoal excelente, harmonioso, e ele entendeu as razões da minha decisão. O monopólio é sempre nocivo e perigoso. Uma das razões que me animou a trabalhar na TV Record foi contribuir para abrir o mercado de trabalho, gerando uma concorrência. É claro que a Record de hoje nada tem a ver com a Record que eu deixei. É outra administração, que vem construindo uma rede com empenho e planejamento. Fui o último autor a deixar a TV Record para ir para a TV Globo e o primeiro a voltar. Capítulo XXXVII Sobre a Novela Cidadão Brasileiro na Record Meu primeiro trabalho na TV Record, Cidadão Brasileiro, foi uma novela extremamente difícil, atravessando 23 anos da vida de um homem, de 1955 até 1978, com epílogo em 2006 (presente). Tinha uma estrutura semelhante à Escalada, O Casarão e Chiquinha Gonzaga:a ação distendida no tempo, em várias fases. Um grande desafio para uma emissora que estava estruturando a teledramaturgia. Havia uma ótima cidade cenográfica na primeira fase. Era possível estender a história, com muitas ações em locações (gravações em exteriores). Já na segunda fase havia uma grande dificuldade para recriar a cidade de São Paulo do final da década de 1950, e nas décadas e 1960 e 1970. Ficamos condicionados a poucas locações: um parque, algumas fachadas (que mostrávamos à noite), um casarão onde viviam os hippies. Não havia ainda a instalação de equipamentos de computação gráfica... Se feita hoje, no RecNov, complexo de gravações da TV Record no Rio de Janeiro, com os recur sos de computação gráfica, teria sido possível ampliar os espaços da segunda fase da novela. Houve erros básicos no início da novela que comprometeram todo o processo. Implantação equivocada com tom indefinido, erros técnicos elementares (iluminação, cenografia, figurinos), despreparo do diretor responsável, que foi substituído por volta do capítulo 50, já com dois meses de novela no ar. Depois, outro diretor da equipe original assumiu a novela e tentou corrigir os problemas mais graves, mas já havia um tom contraditório entre os vários núcleos da história. O elenco principal era muito bom e defendeu os personagens centrais. Cidadão Brasileiro sofreu muito com a transferência da teledramaturgia para o Rio de Janeiro. Foi a última novela feita em São Paulo. Lamentei muito o deslocamento para o Rio, mas depois que terminei Cidadão Brasileiro, visitei o RecNov e fiquei encantado. Lá encontrei todos os recursos que nos faltaram em São Paulo: estúdios muito espaçosos, parque de iluminação de última geração, computação gráfica, perfeita interação entre a direção geral de teledramaturgia e a produção nos estúdios, etc. A novela estreou às 20h15 e inicialmente oscilou entre este horário e as 21 horas, sem nunca se fixar. Depois houve o horário eleitoral obrigatório e a novela passou a ser exibida às 21h15. Veio o segundo turno e a dança de horários continuou. A partir daí, nunca mais se fixou em um horário. No final foi para às 22 horas, horário que eu sempre defendi. Mas Cidadão Brasileiro já estava terminando: apenas 26 capítulos foram exibidos neste horário. Nessa fase final, decidimos não exibir capítulos às quartas-feiras. A Record exibia o futebol e, levar a novela para as 21 horas, como horário de exceção, parecia uma temeridade. A novela havia acabado de ser transferida para a faixa das 22 horas, o público poderia se confundir ainda mais com um capítulo mais curto e às 21 horas. Era o final da novela, eu já estava bastante estressado, então preferi ganhar um capítulo a mais por semana. Ficou claro que a dança dos horários desnorteou os telespectadores, que tiveram de perseguir a novela, sem a divulgação adequada para tantas alterações. Faltou um horário fixo para firmar audiência. Fixada em torno das 22 horas, compondo uma nova grade da emissora, parece ter encontrado seu melhor horário de exibição. Tive plena liberdade para escrever a minha novela, dentro dos padrões estéticos que escolhi. Ninguém interferiu na minha criação, o que foi muito bom. Capítulo XXXVIII Sobre Poder Paralelo O tema de Poder Paralelo nasceu de uma leitura de um livro do Sílvio Lancellotti, há quase 20 anos atrás. O livro Honra ou Vendetta (L&PM) trazia um dado interessante: a relação entre a máfia siciliana e o Brasil, mais especificamente São Paulo. Achei que o romance daria uma minissérie. Eu era contratado da TV Globo e apresentei o projeto. Como não houve interesse nem em comprar os direitos do livro, fiquei com o tema na memória. No ano passado, apresentei o projeto à TV Record para uma telenovela, alertando que seria necessário fazer uma ampliação, pois o livro tinha apenas cinco personagens femininas e desviava-se em muitos momentos da linha ficcional para descrever personagens históricos das organizações criminosas. Além disso, a ação se passava na década de 1980 e eu pretendia fazer uma novela atual. Estudei, então, a fusão da linha central básica do livro com uma história de minha autoria que complementava o livro, com muitas ações novas, várias personagens femininas, atendendo à extensão de uma telenovela. Pesquisei bastante, li muitos sites e livros sobre a ação da máfia italiana e suas ligações com o Brasil. Eu precisava fugir aos estereótipos do gênero e trazer a máfia para a atualidade. Descobri que hoje, ao contrário dos tempos passados, a máfia tem grande participação no narcotráfico e ligações com os poderosos financistas e o poder público. São organizações criminosas, bem estruturadas, transnacionais. Um livro me iluminou os caminhos da atualidade: Na Linha de Frente, de Walter Fanganiello Maierovitch (Ed. Michael). Devo citar também livros como: McMafia, de Misha Glenny (Companhia das Letras), e Gomorra, de Roberto Saviano (Bertrand Brasil), obra polêmica e que gerou uma terrível ameaça da Camorra ao autor. O filme, embora premiado em Cannes, não me agrada. O personagem do Tony Castellamare sintetiza essa contradição: transita entre o bem e o mal, oscila entre o herói e o bandido. Tony compõe com Telônio Meira uma dupla na qual os contrários se ligam com o mesmo objetivo: o primeiro para cumprir uma vingança, o segundo buscando justiça. Capítulo XXXIX Escalada Pessoal Durante muitos dias gravei esse depoimento, estimulado pelo Hersch, entre copos de chope, gravador na mesa. Olhei para trás, olhei para o lado, olhei para frente... minha escalada. Um esforço de memória, um desabafo, uma catarse, instantes de forte emoção. Pela primeira vez passei a limpo e a sujo a minha vida, pude descobrir e entender melhor porque sou quem sou, o que sou... o que gostaria de ter sido. Momentos de alegria, tristeza, sofrimento, frustração, medo, intuição, racionalização, pontificando, ordenando pensamentos. Tive algumas certezas e muitas dúvidas. O que vivi talvez sirva para aquele jovem interessado em dramaturgia, no teatro ou na TV, aquele aprendiz de feiticeiro que busca um caminho. Vejo Ricardo de vez em quando numa telinha. Filmei sua infância em película ótica Super-8, depois editei, copiei em VHS, depois em DVD. Ele está ali, eternizado: um menino muito bonito, agitado, feliz, um sorriso que antes me parecia bem safado, agora vejo, nos filmes, como enigmático. Está na tela, acenando para uma atemporalidade, onde parece vislumbrar um mundo de serenidade e paz. Quando quero reencontrar aquele sorriso bonito, ao vivo, olho para Daniela, minha neta. Encontro nela a suavidade e o carinho que Ricardo, às vezes, deixava escapar. Fernanda é atriz de teatro e televisão, barrada toda hora na rua para dar autógrafos. Tem um humor muito especial, uma franqueza meio desconcertante, uma personalidade forte. Decidiu nos últimos anos enveredar pelo caminho da psicologia e já dedica boa parte do seu tempo ao estudo de processos alternativos orientais de ajuda às pessoas. Não sei se voltará à televisão. Bruno, meu neto, começa a virar homem. No momento dedilha um baixo numa banda de rock. O rock pauleira de meu neto soa em meus ouvidos como uma sinfonia pastoral... Minha pequena Marília é uma gigante quando toma uma decisão. Determinada, forte, por vezes atrevida, quase sempre atrevida, bastante atrevida, atrevidíssima, faz sempre prevalecer sua vontade e intenção. Decide fazer uma coisa, vai lá e faz. Botar algum freio naquela explosão de juventude é tempo perdido. Ela sabe o que quer. Formada em arquitetura, já trabalha em alguns projetos. Às vezes é muito terna e amorosa, quase sempre quando está a sós comigo. Ela confia em mim, se abre comigo, e isso vale a minha vida... Renato gosta de futebol e de pesquisar e analisar grades das emissoras de televisão. Acho que daria um bom programador. Ri muito, meio debochadamente, quando alguém tenta se meter em sua vida. Tem uma ironia fina, permanente. Uma coisa é certa: ninguém colocará um cabresto nele. Fará o que quiser, sempre. As meninas acham ele muito bonito. Ele as esnoba um pouco... Tento dar uma palhinha sobre esse assunto, ele desvia o papo para falar sobre a escalação do São Paulo Futebol Clube pro jogo de domingo. Mas nos últimos tempos começou a falar sobre seus problemas pessoais, amores ganhos e perdidos, suas contradições... Somos grandes amigos! E agora... nos últimos tempos... quando eu me-nos esperava... Quando menos esperava, a Bárbara surgiu em minha vida. Pensei que estivesse congelado para os sentimentos mais profundos, mas fui descobrindo nela um novo tipo de relação: a sintonia perfeita e harmoniosa dos sonhos e dos desejos. Ela é uma atriz, uma diretora de teatro, uma produtora de arte. Pulsamos a mesma paixão pelo teatro, pelos estúdios, pelo cinema, pela televisão. Estamos construindo o nosso mundo, há seis anos. Tomara que os anos que temos pela frente compensem nossas frustrações passadas, nos deem um pouco da paz que sempre buscamos. Cronologia Principais Obras Peças teatrais: 1963 • O Santo Milagroso • Este Ovo é um Galo 1965 • A Morte do Imortal 1966 • A Infidelidade ao Alcance de Todos 1968 • O Líder, Feira Paulista de Opinião 1969 • A Comédia Atômica • O Mito 1959 1972/1979 • Sinal de Vida 1985 • Direita, Volver! 1991 • Luar em Preto e Branco • O Santo Parto 2004 Principais telenovelas (produzidas entre 1966 e 1997): Televisão Excelsior: 1966 • Ninguém Crê em Mim Televisão Tupi: 1967 • Estrelas no Chão Televisão Excelsior: 1967 • O Morro dos Ventos Uivantes Televisão Record: 1970 • As Pupilas do Senhor Reitor 1971 • Os Deuses Estão Mortos • Quarenta anos Depois Televisão Record (segunda fase) 2006 • Cidadão Brasileiro 2009 – 2010 • Poder Paralelo Rede Globo de Televisão: 1973 • Carinhoso 1974 • Corrida do Ouro, com Gilberto Braga 1975 • Escalada • O Casarão • Espelho Mágico 1976 1977 1979 Os Gigantes Rede Bandeirantes 1981 • Rosa Baiana Rede Globo de Televisão 1984 • Transas e Caretas 1985 • Um Sonho a Mais, com Mário Prata • Roda de Fogo, com Marcílio Moraes 1989 • O Salvador da Pátria 1991 • Araponga, com D. Gomes e Ferreira Gullar 1997 • Zazá Supervisão de várias novelas, entre as quais: • Perigosas Peruas, de Carlos Lombardi • Sonho Meu, de Marcílio Moraes • Quem é Você?, escrita com Rosane Lima e Aimar Labaki 1972 • Finalização de O Bofe, de Bráulio Pedroso Principais teleteatros: 1961 • A Bruxa • A Estátua • Bar de Esquina 1973 • O Desquite • O Crime do Zé Bigorna 1962 1983 • São Bernardo • O Santo Milagroso • As Dores do Parto Minisséries 1999 • Chiquinha Gonzaga 2000 • Aquarela do Brasil Principais roteiros para cinema (entre 12 produzidos): 1965 • O Santo Milagroso. Direção de Carlos Coimbra 1968 • A Infidelidade ao Alcance de Todos. Direção de Olivier Perroy e Aníbal Massaini 1972 • Independência ou Morte. Direção: Carlos Coimbra 1977 • O Crime do Zé Bigorna. Direção de Anselmo Duarte. 1983 • A Próxima Vítima. Direção de João Batista de Andrade 1989 • Forever. Direção de Walter Hugo Khoury 1991 • As Feras. Direção de Walter Hugo Khoury Principais prêmios: 1963 • Prêmio da Apct, pela Peça Teatral O Santo Milagroso 1966 • Troféu Imprensa, pela Telenovela Ninguém Crê em Mim, Primeira Telenovela do Autor, Escrita Para a TV Excelsior 1976 • Grande Prêmio da Crítica – APCA, pela Telenovela O Casarão 1977 • Melhor roteiro do Festival de Cinema de Brasília, pelo filme O Crime do Zé Bigorna • Prêmio Governador do Estado, pelo roteiro do filme O Crime do Zé Bigorna • 1979 Prêmio Molière, pela peça Sinal de Vida • 1983 Medalha de Ouro do Festival Internacional de Cinema e Televisão de Nova York, pelo Teleteatro O Santo Milagroso • 1986 Troféu Imprensa, pela Telenovela Roda de Fogo • 2006 Ordem do Mérito Cultural – Ministério da Cultura Atividades em Sociedades de Autores: Sócio Conselheiro da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) Sócio fundador da Associação Paulista de Auto-res Teatrais (APART) Sócio fundador da Associação de Roteiristas de Televisão e outros Veículos Audiovisuais (ARTV) Atividades didáticas: Professor colaborador do Curso de Dramaturgia da Escola de Arte Dramática de São Paulo, 1966 Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), curso de Dramaturgia, Teatro – de 1969 a 1974 Professor da Escola de Comunicações da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), curso de Dramaturgia, Teatro – 1970 Palestras e participações em congressos sobre teatro e televisão no Brasil, Cuba e Venezuela Cursos de teledramaturgia em Cuba e Chile. Conselheiro da SP – Escola de Teatro, ligada à Associação de Amigos da Praça, gerida pelo Grupo Satyros e outros grupos de repertório de São Paulo, Organização Social sob aval do Governo do Estado de São Paulo, em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo Índice No Passado Está a História do Futuro – Alberto Goldman 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Hersch W. Basbaum 11 As Origens e a Primeira Infância 23 A Família 25 Ainda a Infância 27 Adolescência 37 Preparando a Vida Adulta 43 Surge Finalmente o Autor 51 Teatro 57 Define-se um Posicionamento Político 69 O Primeiro Sucesso 75 Fechando os Croquetes 85 A Hora e a Vez da Televisão 93 Televisão 109 Conhecendo o Socialismo Real, Veio a Desilusão Real 115 Guerrilha Teatral 133 O Professor Universitário e a TV 141 A Glória tem seu Preço: os Aborrecimentos 145 O Encontro com o Presidente 159 A Presença Global – O Casarão 163 Espelho Mágico 177 O Estresse 187 Sinal de Vida 189 Desastre Gigantesco 195 A Ruptura 199 A Política 203 A Hora e Vez do Teatro Político 205 O Cinema 209 O Retorno Vitorioso à TV 213 O Grande Choque 235 De Volta ao Teatro 245 A Última Novela na TV Globo 249 O Derradeiro Trabalho na TV Globo 257 Novos Tempos, Velhos Tempos 269 A Religião 281 Olhando a Profissão 289 O Impasse da Telenovela 293 Mudança de Rumos 301 Sobre a Novela Cidadão Brasileiro na Record 305 Sobre Poder Paralelo 309 Escalada Pessoal 311 Cronologia 315 Crédito das Fotografias Todas as fotografias pertencem ao acervo de Lauro César Muniz A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro Alfredo Sternheim – Um Insólito Destino Alfredo Sternheim O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Luiz Villaça, Mariana Veríssimo, Maurício Arruda e José Roberto Torero Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Feliz Natal Roteiro de Selton Mello e Marcelo Vindicatto Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Francisco Ramalho Jr. – Éramos Apenas Paulistas Celso Sabadin Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Máximo Barro – Talento e Altruísmo Alfredo Sternheim Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Olhos Azuis Argumento de José Joffily e Jorge Duran Roteiro de Jorge Duran e Melanie Dimantas Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sergio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Vlado – 30 Anos Depois Roteiro de João Batista de Andrade Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis De Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Música Maestro Diogo Pacheco – Um Maestro para Todos Alfredo Sternheim Rogério Duprat – Ecletismo Musical Máximo Barro Sérgio Ricardo – Canto Vadio Eliana Pace Wagner Tiso – Som, Imagem, Ação Beatriz Coelho Silva Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico Garcia Lorca – Pequeno Poema Infinito Antonio Gilberto e José Mauro Brant Ilo Krugli – Poesia Rasgada Ieda de Abreu João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat José Renato – Energia Eterna Hersch Basbaum Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Abílio Pereira de Almeida Abílio Pereira de Almeida O Teatro de Aimar Labaki Aimar Labaki O Teatro de Alberto Guzik Alberto Guzik O Teatro de Antonio Rocco Antonio Rocco O Teatro de Cordel de Chico de Assis Chico de Assis O Teatro de Emílio Boechat Emílio Boechat O Teatro de Germano Pereira – Reescrevendo Clássicos Germano Pereira O Teatro de José Saffioti Filho José Saffioti Filho O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek O Teatro de Sérgio Roveri Sérgio Roveri Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Analy Alvarez – De Corpo e Alma Nicolau Radamés Creti Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Berta Zemel – A Alma das Pedras Rodrigo Antunes Corrêa Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Débora Duarte – Filha da Televisão Laura Malin Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Emilio Di Biasi – O Tempo e a Vida de um Aprendiz Erika Riedel Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa Fernando Peixoto – Em Cena Aberta Marília Balbi Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Isolda Cresta – Zozô Vulcão Luis Sérgio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert Jorge Loredo – O Perigote do Brasil Cláudio Fragata José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Naum Alves de Souza: Imagem, Cena, Palavra Alberto Guzik Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Paulo Hesse – A Vida Fez de Mim um Livro e Eu Não Sei Ler Eliana Pace Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silnei Siqueira – A Palavra em Cena Ieda de Abreu Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodriguiana? Maria Thereza Vargas Stênio Garcia – Força da Natureza Wagner Assis Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Theresa Amayo – Ficção e Realidade Theresa Amayo Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Walter George Durst – Doce Guerreiro Nilu Lebert Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Av. Paulista, 900 – a História da TV Gazeta Elmo Francfort Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Célia Helena – Uma Atriz Visceral Nydia Licia Charles Möeller e Claudio Botelho – Os Reis dos Musicais Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Mazzaropi – Uma Antologia de Risos Paulo Duarte Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Odorico Paraguaçu: O Bem-amado de Dias Gomes – História de um Personagem Larapista e Maquiavelento José Dias Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista © 2010 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Basbaum, Hersch W. Lauro César Muniz : solta o verbo / Hersch W. Basbaum – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. 354p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-912-0 1. Teatro – Século 20 – Brasil 2. Teatro (Literatura) 3. Literatura brasileira 4. Muniz, Lauro César, 1938 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.092 Índice para catálogo sistemático: 1. Teatro brasileiro (Literatura) 869.92 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2010 Todos os direitos reservados. 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