Naum Alves de Souza Imagem, Cena, Palavra Depoimento concedido a Alberto Guzik Imprensa Oficial São Paulo, 2009 Governador José Serra Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação Segundo o catalão Gaudí, Não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras. De fato, muitos artistas são imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas. Mas como reconhecer o trabalho de artistas geniais de outrora, que para exercer seu ofício muniram-se simplesmente de suas próprias emoções, de seu próprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram à mais volátil das artes, escrevendo, dirigindo e interpretando obras-primas, que têm a efêmera duração de um ato? Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou são muitas vezes inacessíveis ao grande público. A Coleção Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memória de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participação na história recente do País, tanto dentro quanto fora de cena. Ao contar suas histórias pessoais, esses artistas dão-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a consciência crítica da sociedade. Suas histórias tratam do contexto social no qual estavam inseridos e seu inevitável reflexo na arte. Falam do seu engajamento político em épocas adversas à livre expressão e as consequências disso em suas próprias vidas e no destino da nação. Paralelamente, as histórias de seus familiares se entrelaçam, quase que invariavelmente, à saga dos milhares de imigrantes do começo do século passado no Brasil, vindos das mais variadas origens. Enfim, o mosaico formado pelos depoimentos compõe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo político e cultural pelo qual passou o país nas últimas décadas. Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própria voz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpre um dever de gratidão a esses grandes símbolos da cultura nacional. Publicar suas histórias e personagens, trazendo-os de volta à cena, também cumpre função social, pois garante a preservação de parte de uma memória artística genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem àqueles que merecem ser aplaudidos de pé. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo culturalparaesse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Conheço Naum Alves de Souza há cerca de 40 anos, se meus cálculos não estiverem errados. Ao longo desses anos, acompanhei como amigo e, depois, como jornalista e crítico a sua impressionante trajetória profissional. Vi nascer a figura do experimentador incansável, do criador de aventuras incontáveis que não precisavam mais do que fantasia e imaginação para tomar forma. Estive presente ao surgimento do diretor, do cenógrafo, do figurinista, do artista plástico, do artesão de bonecos, do dramaturgo vitorioso. E tive o privilégio de colher seu depoimento para a Coleção Aplauso. Não é uma autobiografia. Nem mesmo uma heterobiografia. É um depoimento na primeira pessoa que evoca uma frutífera vida na arte, impelida por curiosidade insaciável e bom gosto indiscutível. Das experiências adolescentes do grupo Pod Minoga às montagens de peças suas que se tornaram clássicos contemporâneos, como No Natal a Gente Vem te Buscar e A Aurora da Minha Vida; das direções de Dona Doida e A Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, Naum foi ganhando estatura. Tornou-se, sem dúvida, um dos principais homens das artes da segunda metade do século 20 no teatro brasileiro. E o volume e qualidade de sua obra não impressionaram apenas os brasileiros. Há poucos anos o autor teve todo o seu teatro publicado pela editora portuguesa Cena Lusófona, sediada em Coimbra. Com toda essa bagagem e experiência, Naum é um artista exemplar porque conseguiu, desde o começo, fazer arte para se entender melhor e compreender o mundo em que estava. Essa arte também possibilitou que outras pessoas entendessem a si mesmas de maneira mais clara e vissem melhor o mundo em que estão. Quer dizer, Naum fez o caminho da arte, fez o caminho que vai do arregalar de olhos de susto, de espanto, que é o motor da arte, até a realização da obra e a transmissão dela para um número de pessoas que aprenderam e aprendem com sua experiência. É um artista consistente, completo, pulsante, com uma obra que, de tão rica, está sendo cada vez mais encenada e recebendo remontagens e edições. E ele continua produzindo, quer dizer, desenvolvendo um conjunto de atividades que fazem dele o artista que é. Não são muitos os criadores brasileiros contemporâneos que poderiam se vangloriar de ter transitado com tanta desenvoltura do experimentalismo às grandes montagens. Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Sérgio Britto, Cleyde Yáconis são alguns dos soberbos atores com quem trabalhou. E teve marcante atuação junto a jovens candidatos ao palco que muitas vezes nem sequer desenvolveram carreiras teatrais. Criou óperas, dirigiu concertos, encenou shows e trabalhou com gente ótima, como a dupla Pena Branca e Xavantinho e Chico Buarque. No trajeto de vida aqui exposto fica patente a conexão das linguagens que fizeram de Naum o artista que ele é. A imagem foi a primeira matéria-prima com que trabalhou, explorou e desenvolveu. Veio, depois, a investigação da cena, tornada necessária por seu trabalho no ensino das artes para crianças e adolescentes. O processo intuitivo, baseado em tentativa e erro, levou-o para o caminho da linguagem do teatro. E por fim veio a palavra, que se torna matéria usada conscientemente quando Naum passa a escrever textos teatrais, contos e roteiros de forma consistente e regular, a partir de fins da década de 1970 e início dos anos 80. Neste depoimento, resultado de entrevistas realizadas em 2004, lançadas no papel nos primeiros meses de 2005 e relidas agora, tive o prazer de testemunhar a lucidez, a simplicidade, o senso crítico e a objetividade com que o artista fala de si mesmo e avalia sua obra. Tive o assombro de vê-lo comentar sem complacência diversos trabalhos que realizou. Reconhece os acertos e admite as falhas. Fala do peso do fracasso assim, como do impulso que veio com o sucesso. Não tem medo de se expor, de revelar suas dúvidas, incertezas, hesitações. E tem grande maturidade na observação que extrai da circum-navegação de sua obra. A vaidade, vício que corrói a alma de tantos artistas, não integra o cardápio que alimenta Naum. O orgulho pelos acertos está presente. Mas a admissão dos insucessos também. Isso, sem dúvida, faz dele um artista único, um homem a quem a cena brasileira deve impulsos memoráveis de fantasia, de imaginação, de descoberta de limites, de fronteiras inexploradas. Alberto Guzik São Paulo, maio de 2008 Capítulo I Infância, Família, Escola... Nasci em Pirajuí, interior de São Paulo, cidade pequena rodeada de cafezais. Talvez tenha sido esse um dos últimos endereços paulistas do café. Não sei com precisão, mas, no fim do século 19, a família de meu pai perdeu uma grande fazenda cafeeira na Serra da Bocaina. Às vezes, fantasio que os tios e meu pai nunca se conformaram e continuaram em busca do café e meu pai foi parar em Pirajuí por causa dele. Desde que me percebo por gente, eu me lembro daquele aroma, daquele cheiro que saía das torrefações e envolvia a região. O nome de meu pai era Sebastião Alves de Souza e o de minha mãe, América Delmont Souza. Delmont com tê mudo no final, do avô francês. A avó dela era americana, mas perdemos o sobrenome Waddell. Depois que mamãe morreu, descobrimos que na certidão de casamento apenas constava o Delmont, sem o Souza. Mas ela assinou Delmont Souza a vida inteira. Cochilo do homem do cartório de Agudos, talvez. Minha mãe deu à luz quase todos os filhos em Agudos, uma cidade mais ou menos do tamanho de Pirajuí, famosa por suas águas puras. Como o seu pai morava lá, ia ter os filhos em Agudos. Hábitos antigos. A proximidade da família, os médicos de confiança... Eu, por acaso, nasci em Pirajuí, onde a família residia nesse período, na manhã de 1o de junho de 1942. Somos seis, duas mulheres e quatro homens. Minha mãe teve também uma menina natimorta, se não me engano. Nada sei a respeito, pois era um daqueles assuntos não comentados diante das crianças. Uma de minhas peças mais recentes, Aquele Ano das Marmitas, é sobre aquilo de que não se fala nas famílias, as histórias incompletas ou mal contadas. Nasci nessa família protestante, presbiteriana. Para quem entende do assunto, um esclarecimento: presbiterianos independentes. Quando cresci, me informaram que os independentes se separaram dos presbiterianos por causa da maçonaria. Meu pai vinha de uma família muito católica, seus antepassados estão enterrados dentro da Igreja Católica de São José do Barreiro, na Serra da Bocaina. Meu pai se converteu ao protestantismo após se apaixonar por minha mãe, ela educada pela avó americana, batista. Lembrando dele com o distanciamento imposto pelo tempo, acho que, embora meu pai fosse um convertido e aplicasse as regras da religião protestante com muito mais rigor do que minha mãe, ele nunca teve fé. Ela era de uma fé simples, natural, de verdade, valor que eu não herdei. Meu pai seguia rigidamente as regras, mas acho que nunca teve fé. Princípios rígidos sempre o dominaram e sofremos muito por isso. Ser protestante numa cidade pequena era mais ou menos o mesmo que ser judeu numa aldeia católica polonesa. Muito mais tarde, vim a saber que as famílias judias da cidade eram amigas de meus pais. Como era uma cidade composta de italianos, libaneses, alguns japoneses, a convivência era pacífica. Nenhuma guerra entre as diferentes religiões. Na estrutura social da cidade, flutuávamos entre as classes média e alta. Meu pai, assim como seus irmãos, trabalhava para a forte empresa Tilibra e a filial de Pirajuí era um misto de livraria, papelaria, tipografia, loja de brinquedos, perfumaria. Seguindo as festas do calendário, vendia artigos carnavalescos – con-fete, serpentina, lança-perfume – e foguetes e rojões nas festas juninas. Embora eu não me lembre de nenhuma segregação especial, sei que éramos diferentes. Não podíamos ir ao cinema nem frequentar o clube aos domingos, por exemplo. Carnaval nos era sugerido pelos dirigentes da igreja como coisa do demônio, mas dávamos um jeito de brincar com confetes e serpentinas, longe do clube, claro. Minhas irmãs sofreram porque não podiam frequentar bailes, nem mesmo os de formatura escolar. Havia um recato imposto pelo protestantismo. A congregação se vigiava e os comentários podiam significar uma expulsão. Havia, o que é curioso, uma convivência bastante normal com os católicos; eu e quase todos os irmãos, quando pequenos, estudamos no externato católico Santa Maria, um pequeno colégio de freiras alemãs em Pirajuí. Aos cinco anos fui matriculado no jardim de infância, de onde saí quase dois anos depois para ingressar no primeiro ano do primário, na escola que se chamava Grupo Escolar Olavo Bilac. Neide, uma de minhas irmãs, estudou piano com as freiras. Terminado o curso primário, voltei ao externato para o curso preparatório aos exames de admissão ao ginásio. Em geral, gostávamos das freiras, e eu me lembro em particular da Irmã Frida. Na hora do recreio, com uma bela e pesada jarra de prata, ela distribuía água aos pequenos alunos. De vez em quando nos fornecia tesouras e folhas de papel pautado. Devíamos cortar o mais possível seguindo a linha impressa. Talvez fossem folhas já usadas. Eu me recordo de uma bela e caprichada caligrafia. Todos os dias, em determinada hora, éramos induzidos a descansar na sala de aula. Braços cruzados, cabeças baixas sobre o tampo da carteira. Um dia, Irmã Frida se aproximou de mim e falou com voz muito suave, baixinho: Se você não virar católico, quando morrer vai para o inferno! O tom que ela usou foi extremamente doce. Fiquei apavorado, cheguei em casa chorando, minha mãe ficou muito brava e talvez tenha ido ao externato reclamar. Embora a gente ache graça mais tarde, esses fatos são elementos de formação muito poderosos, ficam impregnados em nosso caráter para o resto da vida. Não virei católico e, ao menos burocraticamente, deixei de ser protestante aos 18 anos, quando, já distante de meus pais, deixei de frequentar a igreja. Outras coisas aconteciam no externato Santa Maria. Uma delas era um tal de quarto escuro. Quem não se comportasse bem, ia para o quarto escuro. E o que havia no quarto escuro? Nunca fui, tratei antes de me comportar. Na minha cabeça, o quarto escuro era habitado por sinistros santos católicos que já me apavoravam na casa da doce avó Benedita, mãe de meu pai. Na sua casa, as altas paredes eram bem escuras, e sempre havia uma vela acesa iluminando muitas imagens de santos. Aquilo me apavorava. Volto ao externato católico e a um cofre que as freiras usavam para coletar dinheiro, também chamado de esmola. Sobre uma caixa repousava um anjinho de porcelana. Quando enfiávamos a moeda no orifício, o anjinho agradecia abaixando, muito humilde, a cabeça e os bracinhos. Éramos estimulados a pôr moedas ali, para o anjo agradecer. O problema é que para mim aquilo tudo tinha vida. Assim, me apavoravam o anjinho, os santos, o tal do quarto escuro, o inferno prometido se eu não virasse católico. Um dia fiz xixi na calça, e aquilo me soou como uma transgressão. Na Igreja Presbiteriana nos ensinaram que Deus não gostava de gente que adorava imagens. Era pecado e ponto final. O protestantismo é muito asséptico, aparentemente muito limpo. Parábolas bíblicas e conceitos morais interesseiros se misturam. As revistas eram ilustradas com desenhos sobre histórias do Velho e do Novo Testamento, mas todo mundo já nascia informado de que na idolatria residia o pecado. Nada de santos milagreiros. Igrejas feias, descarnadas, bancos duros, sem imagens, somente uma pintura com o assustador olho de Deus. Quando vi o filme Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman, passei mal. Toda a felicidade terrena se foi a partir do casamento da mãe das crianças com o odioso pastor luterano. Eu parecia conhecer muito bem aquele cenário cinzento, o nada nas paredes mofadas, a empregada que se automutila, a irmã doente gorda na cama. Como eu conhecia aquele universo, como o detestava. Passei mal com aquilo. A Igreja Protestante era repressiva, os fiéis se vigiavam, se delatavam. Uma vez um rapaz foi expulso da congregação porque fumava. Mas alguns crentes, seguros de que ninguém estava olhando, bebiam um vinhozinho, uma cervejinha. Íamos ao templo, à escola dominical, todo domingo de manhã, sem falta, vestidos com roupas quentes de casimira, naquele calor de Pirajuí. O calor era tanto que víamos ondas no calçamento de paralelepípedos de granito das ruas da cidade... Além da escola dominical, havia culto noturno aos domingos e quartas-feiras. Essas atividades à noite não eram obrigatórias em nossa família. Para as crianças, o culto noturno era pretexto para um pouco de bandalheira. Ou eu adormecia no colo da querida tia Ida, que morava em casa, ou derrubava os besouros que voavam. Naquele calor os besouros, atraídos pelas lâmpadas acesas, voavam zumbindo, e os moleques faziam de tudo para derrubá-los. Mas a Igreja Protestante, por outro lado, tinha coisas interessantes, sobretudo as festas. Dia das Mães, Natal. Nas festas natalinas, meu avô materno, que era marceneiro, fazia cenários, e minha mãe eventualmente dirigia pequenas representações. Eram dramatizações muito simples, sobre o nascimento de Cristo ou, então, fábulas morais, como a do Filho Pródigo, o moço que pecava, arrependia-se dos pecados e voltava para casa arrasado. Uma coisa muito louca na Igreja Protestante: não se podia aplaudir dentro do templo, era pecado. Aplauso só combinava com lugares profanos. Então, nas festas de Dia das Mães a gente representava pequenos dramas, decorava poesias quilométricas, no fim fazia uma reverência, mas não havia o menor som. Em lugar do aplauso, um silêncio tenebroso. Naquele tempo já soava esquisito. E havia um hábito, que depois registrei em A Aurora da Minha Vida. Parecia tão absurdo que muita gente não acreditou que fosse tirado da realidade. Todos os anos, no Dia das Mães, recitávamos poesias muito emotivas e cantávamos canções sempre muito dramáticas. Na Igreja Presbiteriana, pela tradição herdada dos americanos, era costume que todas as pessoas cujas mães ainda estivessem vivas usassem uma flor vermelha na lapela; e todos aqueles cujas mães já tivessem falecido, uma flor branca. Isso acontecia, e não só em Pirajuí. Quando dei aula no Mackenzie, colégio presbiteriano, aqui em São Paulo, faziam a mesma festa com as mesmas características. E era um terror, porque os professores tinham que acalmar as crianças órfãs de mãe, que entravam em parafuso. Mas nada era feito para amenizar ou mesmo dar fim àquela festa sádica. Acredito que o sadismo habita nosso coração desde a infância. No Dia das Mães, acordávamos aliviados, por nossa mãe estar viva, e impacientes para ver as crianças e adultos que não tinham mãe. Era um prazer ostentar a flor vermelha no peito. Prazer também era ver as flores brancas nos peitos dos outros e fazer cara de dó, de pena. Íamos para a igreja ansiosos para assistir ao show da choradeira. Há um livro chamado O Sadismo da Nossa Infância, coordenado por Fanny Abramovitch, que trata exatamente dessa questão. Estão ali depoimentos de muita gente boa. Nasci em 1942, e quando chegou a idade meus pais me matricularam na escola pública, no Grupo Escolar Olavo Bilac, único na cidade. Naquela época, o ensino público era muito bom. Estudar na escola pública era sinal de valentia. Educação para ricos, médios e pobres em tempos getulistas e ademaristas. Era uma escola árida, sem graça, três horas seguidas, sem intervalo para recreio. Talvez para maior rendimento do espaço escolar, criaram o modelo de três períodos de três horas cada. Não tínhamos, por exemplo, aulas de arte ou educação física. Cantávamos hinos pátrios, obrigatórios, o regime não brincava. O ensino de desenho era rígido, nada criativo. Decalque, cópia com papel de seda, desenho com régua, preencher espaços com desbotados lápis de cor. Não se podia sair da linha. Por sorte, em casa, minha mãe nos estimulava a brincar, e meus pais achavam a leitura uma coisa importante. Fui um chatinho, um primeiro aluno, muito estimulado por minha mãe a disputar, competir. Embora tivesse certa facilidade para estudar, eu me lembro de ter passado por dificuldades absurdas, como aprender a ver as horas. Já estava no terceiro ano do primário e não havia jeito de eu entender o que era um relógio. Bloqueio total e incompreensível. A professora dizia: Vá ver que horas são no relógio do corredor. Eu ia, olhava, olhava, e não entendia que tinha um ponteiro maior e um menor, qual era o menor, qual o maior. Não entendia o que acontecia com o relógio. Um dia, acho que eu aprendi de estalo, nem sei como. Foi um problema. Talvez por isso eu tenha tanto relógio em casa, uma quantidade inacreditável de relógios de pulso, parede, mesa, despertadores... O professorado de então era exercido quase exclusivamente por mulheres. Tive ótimas professoras, das quais tenho gratas recordações. Aquelas mulheres tinham vocação para o ofício, eram raras as que exerciam o cargo como um mero emprego. Antes de mim, meus irmãos e irmãs mais velhos haviam aprendido letras e números com aquelas mesmas mestras, pessoas de muito tato e paciência. Só na quarta série, tive uma professora eficiente, mas aterrorizante, famosa pela severidade. Ela não perdia a chance de humilhar determinados alunos, principalmente os mais pobres, os que vinham da roça, a pé, por estradas de terra. Ela os chamava de sujos. Vinham descalços, não tinham bolsas, carregavam cadernos e livros numa sacolinha de pano. Como as folhas ficavam tortas, amassadas, levavam puxões de orelha, beliscões e ficavam de castigo. O curso primário foi repleto de hinos, poemas, patriotadas. Não à toa escrevi A Aurora... A escola é sempre reflexo do que os governos pretendem. Cada novo governante tende a mudar tudo o que foi feito antes, impõe diretrizes, em geral interesseiras. A escola getulista, de certa maneira, moldou as mentes dos alunos daquele período. Li em algum lugar algo sobre Joseph Campbell, homem que estudou profundamente as religiões. Quando já estava bem velhinho, numa entrevista de televisão, perguntaram: O senhor, que estudou tudo, optou por alguma religião? Ele respondeu: Eu sou cristão. Não é interessante? Ele, que estudou todas as religiões, permaneceu cristão porque foi moldado cristão por gerações de cristãos. Creio que permanece dentro de nós um pouco de tudo o que recebemos. Embora racionalmente eu rejeite e critique, vive dentro de mim um protestante. Quando encontro um protestante, sinto um cheiro específico. Antes das palavras, um reconhece o outro. Terminada a escola primária, continuei os estudos na mesma cidade. Naquele tempo tinha exames de admissão ao ginásio. E de novo eu fui para o externato das freiras alemãs fazer o cur-so preparatório. Apesar do sotaque carregado, aquelas religiosas eram professoras de grande eficiência. Era uma seleção apertada, havia poucas vagas e muitos candidatos. Passei nos exames e fui para a primeira série ginasial. Sempre penei com matemática. Era puro terror. Como a matéria me causava um bloqueio mental precisei de professores particulares. Logo na primeira série um professor percebeu que eu tinha alguma coisa diferente na maneira de escrever. Um dia fiz uma redação – devia ser alguma coisa muito simplória, eu tinha onze anos – e ele, diante da classe, fez elogios que carrego comigo até hoje. Capítulo II Crise e Diáspora Familiar Um ano traumático foi 1953. No fim do primeiro semestre da primeira série ginasial, houve um problema grave na família. Meu pai vinha fazendo maus negócios e tudo culminou ali, naquele meio de ano. Tivemos que nos mudar às pressas; por causa das dívidas e confusões, meu pai poderia ser preso. Entrou em cena o tio rico, irmão mais velho de meu pai, que deu um jeito de levá-lo certa madrugada. Sumiram meu pai e minha mãe. Ficamos sem saber onde estavam, foi tudo controlado pelos tios, que tudo fizeram para nos proteger. Os boatos eram muitos e até hoje não sei exatamente o que aconteceu. Só ouvíamos falar em dívidas, terras que não foram pagas, falência... Virou um angu a nossa vida naquele período. Aconteceu que, aconselhado por um homem a quem achava que estava ajudando, meu pai meteu os pés pelas mãos. Esse personagem aparece em Aquele Ano das Marmitas. Algumas pessoas que leram a peça comentaram que a figura lembra o Tartufo, de Molière. Lembra, sim. Ele veio de lá, dessa história familiar. É um ser do mal. Aquele homem foi se insinuando, instalou-se em nosso lar, na igreja, e meu pai passou a seguir conselhos que o levaram à ruína. Foi um tempo estranho. Tudo que fazíamos de supostamente errado – ir à piscina numa tarde de domingo ou dar uma simples passada pelo clube em horário de bailinho domingueiro –, aquele homem contava para meu pai, provavelmente com insinuações pecaminosas. Daí eram broncas e surras certas. Meu pai, que não sabia dirigir, desandou a comprar carros e reformá-los para vender. Objetos surrealistas, automóveis cortados ao meio e transformados em caminhonetes, pelas quais ninguém se interessava. Prejuízos, dívidas se acumulando. Em seguida, comprou sítios e fazendolas improdutivas, em ruínas. Acredito que minha mãe nem percebia o que acontecia, éramos muito ingênuos e ninguém se atreveria a julgar um pai. O que ele ganhava na loja como salário não dava para sustentar a família de cinco filhos e ainda investir em negócios. Então, no fim do primeiro semestre de 1953, tudo veio à tona. Ele passou a faltar ao trabalho, e um desfile de credores bateu à porta de nossa casa. Não estávamos preparados para compreender o que havia feito nosso pai, homem honrado, muito estimado na cidade. Então, os tios entraram em ação e o jeito foi dividir a família. Eu e o irmão imediatamente mais velho fomos para Marília morar com os tios ricos. Um irmão e uma irmã, mais velhos, já estavam em São Paulo, trabalhando. A minha irmã tornou-se professora de desenho na Escola Americana do Mackenzie e frequentou os cursos de arte do professor Pietro Maria Bardi, no Masp. Meu irmão arranjou emprego em uma instituição ligada à Igreja Presbiteriana e chegou a cursar alguns anos de Teologia. Foi um desastre para mim. De primeiro aluno em Pirajuí, passei a ser um dos piores em Marília. Custou-me a adaptação à mudança. No currículo escolar daquele tempo tinha uma matéria chamada Canto Orfeônico. Além dos cantos pátrios e ufanistas, os professores eram obrigados a ensinar um pouco de música que se resumia ao aprendizado das notas escritas num caderno pautado próprio para isso. Aquela aula enfadonha tinha tudo, menos som. Não havia instrumentos ao alcance do professor, um piano, um violino, nada. Toda a turma era obrigada a cantar em coral, não sei a quantas vozes, mas eu nunca consegui me encaixar em nenhuma delas. Eu ficava mudo, fingia que cantava, sempre escondido atrás de alguém. Fazia dublagem, abria a boca, movia os lábios, mas não conseguia cantar. Era travado, e ninguém me destravou a tempo. Eu me lembro de um episódio humilhante e, ao mesmo tempo, cômico. Perguntei para a professora de canto de Marília: A semicolcheia de Pirajuí tem o mesmo valor aqui em Marília? A professora aproveitou a oportunidade de dizer à classe: Temos um aluno novo, que veio de Pirajuí, e fez uma pergunta muito inteligente. Ele quer saber se a semicolcheia de Pirajuí tem o mesmo valor que a de Marília! A classe uivava de rir. Foi horrível. E no fim do ano fui reprovado em matemática, claro, latim e geografia. Latim. Efeito dos traumas daquele ano. No mesmo colégio, no período seguinte, eu fui primeiro aluno o ano inteiro. Fui morar com outros tios, e as coisas mudaram. A vida na casa do tio rico foi, para mim, angustiante. Embora o irmão do meu pai fosse uma pessoa carinhosa, a sua mulher era a bruxa da Branca de Neve. Ela não se cansava de repetir em alto e bom som: Que vergonha o que o seu pai fez, seria preferível a morte. Era muito louco ouvir isso com onze anos. Uma pessoa muito má. No outro ano, eu e meu irmão fomos morar na casa de outros tios, ainda em Marília, na casa da tia Sinhá, a única irmã de meu pai, severíssima, muito católica, mas ótima pessoa. Ela nos enquadrou em horários para acordar, estudar, tomar banho, refeições, com mais eficiência do que muito internato religioso. Embora católica, respeitava rigorosamente o nosso protestantismo, nos obrigava a cumprir exatamente o mesmo ritual que fazíamos em casa. Uma das pessoas mais justas que conheci na minha vida. Era de uma limpeza impecável e exigia que dançássemos a sua música. Tínhamos um tio e um casal de primos adoráveis, todos seguindo à risca as regras de tia Sinhá, pessoa que nunca se conformou com a morte da mãe. Chorava diariamente. Graças à tia Sinhá e àquela família, eu dei uma reestruturada. Da casa da tia rica só tenho lembranças péssimas. Enquanto meus primos dormiam em camas normais, para mim era armada uma cama de vento, um catre formado por tubos de ferro e uma lona esticada. Ainda guardo a sensação do corpo na lona e da pele encostando no ferro. De vez em quando, me lembro daquele horror. Por causa do desconforto e das incertezas familiares, desenvolvi uma insônia que carrego até hoje. Passado o período na casa das tias, eu e meu irmão fomos para um internato de colégio protestante, metodista, em Marília mesmo. Meus pais estavam morando em uma fazenda do meu tio rico. Tínhamos voltado a vê-los desde o final de 1953. Ficamos no colégio interno durante um ano e meio. Não era muito rígido, tinha portões abertos, e os alunos dormiam em dormitórios coletivos. O diretor era um pastor, o reverendo Chrisanto, que a gente chamava de reitor. Meu irmão já estava no primeiro colegial, e eu na segunda série ginasial. Também lá fui bom aluno. E não guardo nenhuma lembrança ruim do internato, a não ser da comida, que era terrível. O reverendo Chrisanto era ótima pessoa, mas, de vez em quando, dava uns petelecos inofensivos em quem saía muito da linha. A sua família morava no colégio, os filhos estudavam com a gente. Eliel, da minha idade, era meu preferido. Sua mãe, dona Nídia, professora de português, se interessava muito por literatura. Por sua causa, a escola dominical era uma delícia, pois, em vez de ficar lendo passagens da Bíblia, lia capítulos de O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain. Outro livro, Coração, de Edmundo De Amicis, que também era lido, por uma professora de português, me marcou muito. Li e reli esse livro muitas vezes! No colégio interno, quando começava a terceira série ginasial, veio a notícia da iminente prisão de meu pai por causa daqueles problemas de 1953. Voltamos a morar em Pirajuí, porque ele tinha que cumprir pena lá. A prisão era em regime semiaberto, ele não precisava ficar na cela o tempo inteiro. Mas a visão de sua imagem na cela era muito dura, e eu só tinha 13 anos. Os tios tudo fizeram para amenizar o ambiente, mas o cenário era chocante para nós, pacatos protestantes de classe média. Meu tio estabeleceu, também, que ele não devia comer a comida do presídio e, durante um ano, duas vezes por dia, levei marmita para meu pai. Era esquisito, humilhante. Porque nós, que nunca havíamos pertencido à classe desfavorecida, tínhamos que passar por tudo aquilo? Não foi fácil viver aquelas coisas. Então, me desentendi com Deus. Meus amigos eram os melhores meninos do colégio, eu fazia tudo para aparentar naturalidade numa situação daquelas. Talvez devido à simpatia que meu pai despertava na população, houve um silêncio respeitoso. Não recordo de nenhum colega me apontar, de nenhum professor me humilhar. Mas era horrível ter que fingir que estava tudo bem. Quando comecei a escrever as primeiras peças, fui botando os fantasmas na minha frente e vendo como eram. É muito louco esse processo porque, enquanto a gente está gerando a obra, volta aos mesmos ambientes sobre os quais se está escrevendo. Voltei à escola, à casa da família, à igreja onde o meu pai tinha feito também alguma coisa errada. Nunca ninguém abriu a boca e contou, naquela época ou mais tarde. E já estão mortos muitos dos que viveram aquilo de perto. Não há mais a quem perguntar. Conversei com minha irmã sobre tudo aquilo, mas só restaram suposições. Acho que nem minha mãe entendeu direito o que aconteceu. É muito maluco. Mas, como sabemos, toda família tem escândalos e esqueletos escondidos nos armários. Na minha família nunca se conversou muito sobre o que aconteceu, tudo o que se falava era muito velado. Engraçado, porque também não era um grande segredo, uma coisa tenebrosa. Eu entenderia tanto mistério se fosse um acontecimento terrível, um assassinato, um suicídio, o tipo de coisa que geralmente se abafa, não é? Mas a gente ouvia falar vagamente de um desfalque na loja, que ele tinha pegado dinheiro emprestado com juros altos não sei de quem. Nunca ouvimos com clareza a história toda. Talvez, se eu fosse ao fórum de Pirajuí, pudesse consultar os autos todos. Mas nunca tive vontade de fazer isso, o mal-estar é muito grande. Voltei uma única vez a Pirajuí, depois de adulto, para receber uma homenagem. Dias antes, eu e minha irmã, que me acompanharia na viagem, tivemos pesadelos. A homenagem foi simpática, gostei muito, revi amigos, colegas, mas tudo para nós não deixava de ser fantasmagórico. Ao passarmos diante de nossa casa, onde moramos quando crianças e adolescentes, sentimos no peito uma dor. A casa estava reformada, irreconhecível. Sem querer, vimos a cadeia, igual, sem alterações. Minha irmã me deu uma leve cotovelada, e eu percebi a tensão em que ela estava. Tudo tinha relação com aquilo, com aqueles acontecimentos. Foi um fato determinante em nossas vidas, não dava para ignorar e deixar passar batido. Doeu para todos, mas eu fiquei marcado de maneira especial pela prisão de meu pai. O talento para a ficção, para o teatro ou qualquer outro tipo de escrita, transformou esse material em alimento. Capítulo III Descoberta das Artes A arte entrou cedo em minha vida, por intermédio do cinema e da literatura – obras condensadas, Tesouro da Juventude, revistas em quadrinhos, essas nada bem-vistas. Só não podíamos ver filmes aos domingos, mas em outros dias estávamos liberados. Às quartas, tínhamos certa dificuldade, havia na igreja cultos noturnos, não levados muito a sério, pois eram conduzidos por irmãos leigos. O cinema, para mim, foi fundamental. Meu avô materno era um homem muito curioso, bastante interessante. De profissão, era ferroviário. Fez carreira como chefe de estações de pequenas cidades. Foi um homem de variados talentos – marceneiro, fabricava brinquedos, gostava de ilusionismo, caixas de segredos, e era apaixonado por cinema a ponto de ter assinatura da Cinearte, pioneira revista sobre filmes, que eu conheci. Ainda mantenho comigo alguns volumes encadernados por ele. Sem saber ler, muito pequeno, eu passava dias inteiros folheando aquelas revistas. Toda vez que íamos para Agudos passar férias, pedia para ver a Cinearte, edições com matérias ainda sobre o cinema mudo, de mil novecentos e vinte e poucos. As imagens dos filmes de um cineasta em particular ficaram em minha memória, a ponto de aparecerem no teatro que vim a fazer muitos anos mais tarde. Os filmes fantásticos de Georges Méliès! Um deles mostrava um céu com estrelas, cometas, astros no céu que tinham carinhas de gente! Outro tinha um foguete que acertava o olho da Lua! Quando Antunes Filho montou Peer Gynt, de Henrik Ibsen, havia uma cena, um monólogo, em que Stênio Garcia, intérprete do papel-título, falava da sua vida e a comparava a uma cebola, que não tem caroço, não tem nada dentro, só camadas em cima de outras camadas. Antunes queria uma imagem para ilustrar a cena. Ele me chamou e disse: Crie o que você quiser. Fiquei assustado, mas, apoiado pelo crie o que quiser, pensei em algo que certamente tinha nada a ver com o texto, mas virou um lindo fundo. Escolhi no elenco três lindas atrizes, Isa Kopelman, Lucinha Capuano e outra, loura, chamada Yara, de cujo sobrenome não me lembro. As três, nuas, com os corpos esbranquiçados por maquiagem (será que era talco, pó de arroz?) envoltas em um véu branco transparente, ficavam atravessando a cena, indo e vindo muito lentamente. Talvez fossem, devidamente transformadas, as imagens de Méliès que ficaram em minha memória. Eu adorava ir ao cinema, nem interessava tanto o filme como o ritual de entrar, comprar balas e me sentar na poltrona de madeira. Quando tocava a música que indicava a abertura da cortina, era um berreiro de crianças e adultos excitados. Quando as luzes se apagavam, as primeiras impressões que guardo eram de que não se tratava de projeção. Pensava que havia gente atrás da tela, aquele bando de índios ou de ban-didos, por exemplo, estava todo mundo lá atrás da tela. Tanto que uma das minhas lembranças absurdas de infância tem a ver com um dia em que eu estava no banheiro, fazendo cocô, com a calça baixada, sentado na privada. Subitamente houve um barulhão e achei que os comanches ou os apaches, sei lá, estavam invadindo Pirajuí. E eu saí aos berros do banheiro com a calça nos tornozelos e o cocô caindo. Muitos filmes me impressionaram nesse tempo. Eu me lembro dos seriados de Flash Gordon, Jim da Selvas, todos os filmes de Tarzan, que eu adorava. E depois, quando já estava maior um pouco, eu me lembro de uns que ia ver com tia Ida, uma figura querida que era solteira e morava com a família. Eu ia com ela ao cinema, como acompanhante, e a gente assistia a melodramas, que depois eu vim a saber que eram chamados de telefones brancos. É que quase todos os telefones que apareciam nesses filmes eram brancos. Produções italianas realizadas durante o fascismo. O Cine São Salvador exibia muitos filmes velhos, com cópias ruins, mas ninguém reclamava muito. Alguns filmes tinham trilhas sonoras emotivas, uma ou outra canção conhecida, que minha tia apreciava muito. Ela ficava emocionada e chorava. Vi também dramalhões mexicanos nos quais, segundo meu pai, tinha muita mulher perdida. Tia Ida gostava demais de um filme da MGM chamado A Ponte de Waterloo, com Vivian Leigh e Robert Taylor. Uma história de amor muito triste, em que Vivian Leigh se suicida no fim, se atira da ponte. Era um dos preferidos dela. Na época, penso que não tinha tanta produção, ou ela não chegava no Brasil, e era comum a reprise de certos filmes preferidos do público. Um deles tia Sinhá fazia questão de que a gente visse toda vez que passava, O Seu Único Pecado. Era a história de um homem que tem uma família maravilhosa, estabelecida, mas durante uma viagem de trem encontra uma mulher, uma perdida, como se dizia então. Ele se encanta com a vagabunda loura, nunca mais volta para casa e perde tudo. Vira um mendigo. O filme termina na noite de Natal, na neve. Ele vê a família pela janela, festejando o Natal, e não tem coragem de entrar, pois está vestido com andrajos. A gente chorava que era um horror. A paixão pelo cinema nunca mais me deixou. Comecei a ler muito cedo. Por incrível que pareça, embora meus pais fossem muito simples – tinham feito até o terceiro ano primário –, havia muito estímulo à leitura lá em casa. Além disso, pelo fato de meu pai ser gerente da livraria, a gente lia tudo o que queria. Eu li todo o Monteiro Lobato, claro. Li uma coleção chamada Os Mais Belos Contos de Fadas, tinha contos russos, iugoslavos, hindus, chineses, de tudo quanto era país, e eu devorava os livros. A Coleção Terramarear, de aventuras... Todos os meus irmãos também liam, uns mais e outros menos. Minhas irmãs naquela época já eram mocinhas e tinham preferência por aquelas coleções Menina e Moça e M. Delly, que eu também lia. Pegava escondido. Era curioso, queria saber o que elas estavam lendo. Eu li de tudo. Ainda no ginásio li Ibsen pela primeira vez, porque tinha na livraria uns volumes gordos da velha Editora Globo. Li Somerset Maugham, Aldous Huxley, tudo o que se lia naquela época. De alguns autores eu procurava ler tudo o que encontrava. Eram ótimos escritores, sólidos. Lembro que li todo Mark Twain, claro. Eu e um amigo lemos, escondidos, A Carne, livro forte, de Júlio Ribeiro. E muita história em quadrinhos – lembro do meu tio censurando, ele dizia que a história em quadrinhos estragava a leitura, mas eu gostava, era louco por gibi. Era uma coisa de comprar e depois trocar com um amigo, e pegar o de um, pegar o de outro. Era um suplício conseguir um dinheirinho pra comprar revista nova, um sofrimento. Mas, maluco pelos gibis, eu sempre dava um jeito. Ao contrário da literatura, a música não foi muito presente na minha formação... Quer dizer, a música erudita. Minha irmã Neide estudava piano com freiras alemãs... Eu me lembro de Le lac de Côme, Tico-tico no Fubá, Os Pintinhos no Terreiro... A prima Maria Nilce tocava acordeão muito bem. Eu gostava muito de uma chamada Czardas. E tinha o rádio, não é? O rádio era um aparelho que, lá em casa, como na maioria dos lares daquele tempo, ficava ligado o dia inteiro. Acho que em Pirajuí pegava quase exclusivamente a Rádio Nacional. Pouca gente escutava as emissoras de São Paulo, não sei por quê. Uma pena. Minha mãe adorava os programas de rádio bem populares como as novelas, os humorísticos ou os de auditório, de cantoras e cantores como Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira, Francisco Alves, Orlando Silva. Tia Ida tinha suas músicas preferidas, que ela gostava de cantar com prazer, tristeza, paixão, e eu ouvia junto. Na minha casa não tinha um toca-discos, por exemplo. Era um consumo mais passivo do que ativo de música. Tinha uma emissora de rádio muito simples em Pirajuí, muito precária. Havia nela um programa de auditório, eu me lembro que um dia eu e Mário Matta, um amigo, resolvemos cantar Sabiá lá na Gaiola no tal do programa. Foi um vexame. Na hora, mal começamos, esquecemos a letra e saímos correndo. Minha carreira de cantor durou isso: Sabiá lá na gaiola, fez um buraquinho, e os dois meninos é que voaram, voaram, voaram. Minha mãe tentou me transformar num pianista. Com muito esforço e pouquíssimo resultado. Quer dizer, com resultado zero. Por que ela queria que eu aprendesse a tocar piano para me apresentar à noite na igreja. Minha irmã já tocava nesses cultos. O sonho da minha mãe era esse, que eu tocasse também. Daí ela me punha nas aulas, e eu odiava aquilo. Fazia calor em Pirajuí, e aquelas aulas de piano, de ficar fazendo exercícios, escalas, me davam sono. E também acho que eu não tinha lá uma coordenação motora muito boa. Tive uma professora de piano, dona Maria Batista, que morava numa bela e velha casa. A monotonia do que tinha a ensinar – solfejos, colcheias, semicolcheias –, somada ao calor de Pirajuí, a fazia adormecer. E eu a acordava com o gato. Pegava o gato e o soltava em cima do teclado do piano. Ela ficava muito brava e me mandava embora. Eu passei, acho, por uns cinco professores diferentes. E nunca saí da clave de sol. Uma vez por ano, as professoras da cidade promoviam recitais com os alunos, mas eu achava tudo muito aborrecido. Nunca fui muito musical. Acho que ao longo da vida parei em Elvis Presley. Claro que adorei os Beatles, mas não sou aquele que sabe tudo, eu sei aquilo que me interessa, sei do que gosto, que depois eu vim a escolher. Em desenho e pintura, tive formação muito medíocre, apesar de depois elas terem se tornado linguagens importantes em minha obra. Minha irmã mais nova sempre foi ligada à pintura, e minha mãe tinha um irmão, tio Caiuby, que era pintor acadêmico. Enquanto minha irmã pintava, eu ficava encantado. Era exímia no lápis de cor e nas telas pintadas a óleo. Uma vez, ela pintou uma cópia de uma Maria Antonieta que ficou famosíssima em Pirajuí. Esse foi o começo do contato com a arte. E tinha os trabalhos de escola, em que Nylza, minha irmã mais velha, era craque, desenhos pontilhistas absurdos, ela molhava a caneta no vidrinho de tinta nanquim, tirava o excesso e fazia os pontinhos na folha de cartolina. Fazia mapas inteiros com aquela técnica enlouquecedora. Uma vez, enquanto ela trabalhava, muito atenta, eu, maldoso, dei-lhe uma cotovelada de propósito. Virou o vidro de nanquim em cima do papel, da roupa, estragou o trabalho inteiro. Saí correndo, ela queria me matar. Maldades de infância, coisas que a gente faz e pensa: Vamos ver o que vai dar. Acho que precisamos descobrir até onde vão os limites. Se não experimentamos, nunca vamos saber. E vai ver que se não fizermos essas pequenas maldades, a agressividade reprimida pode, no futuro, se transformar em coisa pior. Tem muito adulto que jura que nunca fez nada de cruel. É engraçado. Pessoas com quem eu conversei diziam ai, que horror! Eu perguntava: Você nunca fez nada parecido com isso? E a pessoa respondia: Eu não, imagina! Se a gente não lida com essas memórias, essas coisas da nossa vida, vamos lidar com o quê? A gente fica sem ter sobre o que meditar. Como é que você vai constatar um processo de amadurecimento, se não percebe como foi tosco o início? Temos de reconhecer o que a gente era capaz de fazer, coisas de que você abdicou voluntariamente para viver de acordo com aquilo em que acredita. Voltando à história da pintura, ela ficou meio morta durante todo aquele período escolar. Claro que eu desenhava alguma coisa, mas nada de expressivo. Na verdade, a pintura reapareceu nos meus primeiros anos como professor em São Paulo. Aos 20 e poucos anos. Quando fui trabalhar com crianças, passei por uma reeducação. Comecei a fazer cartões de Natal copiando desenhos das crianças menores, de 4 ou 5 anos, que eram meus alunos. Eu tinha guardado um monte de material produzido por elas e comecei a criar a partir daqueles desenhos, daquelas garatujas, quase o prefigurativo na criança. A impressão que tenho é de que renasci ali. Se não reconquistasse aquela liberdade de desenhar, nunca teria sido capaz de me expressar como desejava. Capítulo IV O Fim da Infância Quando terminou o período de prisão, meu tio arrumou um trabalho público para meu pai, como oficial de justiça. E a gente se mudou para Lucélia. Agora preciso falar um pouco sobre o que significou para mim a saída de meu pai da prisão, sua volta para casa. Porque é uma história que desperta sentimentos muito contraditórios. Para mim, é importante falar sobre esse assunto. Durante o ano da prisão, fiquei muito abalado. Mas acho que uma das minhas características de geminiano me leva a ver um lado e o outro. Não fui aquele filho passivo que viu no pai um herói injustiçado. Minha cabeça ficou dividida. O sofrimento era grande por causa daquilo. E a espera de sua volta foi angustiante. Fiquei pensando sobre quem iria voltar. Como estaria ele quando voltasse? E realmente a pessoa que voltou para casa me decepcionou. Não era quem eu esperava. Nunca tive muita intimidade com meu pai. Sempre foi uma figura meio distante de mim. Era um homem que nunca saía de casa. Um estrito cumpridor dos seus deveres. Não há, nunca houve sombra de traição dele. Jamais traiu minha mãe, não mesmo. Engraçado que uma pessoa assim, justamente por ser assim, tenha se envolvido numa história tão esquisita, tão complicada quanto essa que ele teve de pagar com a prisão. Acho que ele era tão tímido, tão sem opinião, tão um rebento daquela família patriarcal – portadora daquela herança terrível de ter perdido a grande fazenda, os escravos, tudo –, que vejo nele um ser que ficou mesmo à mercê de muitas influências... Até a conversão para o protestantismo, a aproximação com minha mãe, é uma coisa assim. Não um ato de revolta contra a família dele. A família de meu pai sempre foi muito unida. A minha avó, um doce, mas forte criatura, segurou todos os filhos. Ela os sustentou e criou. Porque do seu marido, meu avô, o ex-dono da fazenda, o homem que perdeu tudo, eu não sei quase nada. Sei vagamente que era um indivíduo muito triste, deprimido, esquisito, que não conseguia trabalhar. E minha avó sustentou todos com suas costuras. Ele morreu muito cedo. Meu pai nem falava no pai dele, eu não sei direito quem foi esse homem... Quando meu pai voltou para casa, ele estava muito revoltado. Naquele período, ele não entendia a casa, não entendia filho, não entendia mulher. Ficou inquieto, ríspido, não conseguia relaxar, ficava muito nervoso com as visitas, sentia grande desconforto. Saído da prisão, voltava para casa, na mesma cidade, e era visitado pelas pessoas que tinham acompanhado a história toda. Amigos e curiosos. Eu entendo o horror na cabeça dele. Então, fez coisas absurdas. Cortou um coqueiro que ele mesmo havia plantado no quintal de nossa casa. Fiquei tremendamente chocado. Por mais que me esforçasse, não entendia. Nem ele eu acho que entendeu. Foi um ato de crueldade, uma espécie de assassinato. Tomado por uma fúria interior, descontou na pobre da árvore. Nesse tempo já existia a perspectiva de mudança da cidade, tudo providenciado por meu tio. Eu, com 14 anos, imaginei que meu pai retribuiria de alguma maneira o ano que passei levando comida para ele, todos os dias. Entretanto, para meu pasmo, ele não fez nada, não esboçou um gesto de carinho. Para falar a verdade, nem olhou na minha cara. Foi uma decepção muito grande a volta desse pai. Hoje penso diferente: a infelicidade dele era muito grande, não podia se expressar de modo diferente. Um dia nos mudamos para Lucélia, e foi lá que eu terminei a quarta série ginasial. Moramos ali alguns anos. Casa, colégio, escola dominical na igreja. Nessa época, pressionado, sem nenhuma fé, fui obrigado a fazer a Profissão de Fé, ritual obrigatório para os jovens presbiterianos. Os primeiros tempos foram muito difíceis para nós todos, porque um oficial de justiça, pelo menos naquele tempo (eu não sei como é hoje), não tinha salário. Ganhava em cima de cobranças que fizesse, às vezes não entrava nada, e os tios de Marília continuavam ajudando. Perdida a casa de Pirajuí, aos poucos meu pai conseguiu comprar uma casinha em Lucélia, que um belo dia, por necessidade, vendeu por preço muito baixo. E a família se mudou para São Manuel. Vendo tudo isso hoje, acho que posso dizer que meu pai não foi exatamente um bom negociante. Quanto a mim, completado o curso clássico em Lucélia, parti para São Paulo. Capítulo V Interior, Capital, Litoral, Capital... Cheguei a São Paulo, onde já moravam um irmão e uma irmã, com a intenção de cursar faculdade, fazer Letras Neolatinas. Morei algum tempo na casa da irmã, e depois dividi um quarto com outros três estudantes, na Rua Sergipe. Seu Nezinho, marido de dona Filhinha Marcondes, professora de música do curso ginasial lá de Lucélia, conseguiu para mim emprego numa companhia de seguros. Lá fui eu trabalhar com seguros. A empresa se chamava Minas-Brasil, e sua sede ficava na Avenida São João. De manhã eu frequentava o cursinho Castelões, um dos mais famosos da época, que funcionava num prédio da Rua São Bento, no centro velho da cidade, perto da Praça do Patriarca. À tarde trabalhava na companhia de seguros e à noite... Foi aí que comecei a conhecer gente ligada à arte. Conheci Antônio Carlos Rodrigues, filho do Augusto Rodrigues, que vinha a ser primo do Nelson, o dramaturgo. Antonio Carlos era pintor, desenhista, e com 16 anos era de um talento para o desenho fora do comum e grande sucesso naquele início dos anos 1960. Eu tinha 18, ele, 16, e ficamos muito amigos. Antônio Carlos me levou para os cursos de arte da Fundação Armando Álvares Penteado. Aos poucos fui abandonando o cursinho Castelões, nunca mais fui às aulas, esqueci o curso de Letras. Nem cheguei a prestar o vestibular. Daí, quando completei um ano de São Paulo, voltei para Lucélia. E desse retorno resultou minha viagem para o litoral norte do Estado. Eu havia tido, no curso Clássico, em Lucélia, uma professora de filosofia chamada Júlia Macruz. Nossa classe tinha cinco alunos. Júlia e o seu marido, doutor Deocleciano Bendocchi Alves, naquela época médico pediatra (hoje, em São Paulo, ele atua em psiquiatria) convidavam os alunos para ir à casa deles de vez em quando. É bom deixar claro que o ambiente cultural de Lucélia era precário. Júlia e Deocleciano tinham reproduções de quadros, gostavam de música. Naquela casa eu dei um dos mais belos foras da minha vida quando ela perguntou Vocês querem ouvir música? Eu falei que queria. Ela perguntou: “Do que você gosta, música popular ou música clássica? Eu disse que era de música clássica. Ela me perguntou o que eu queria ouvir. E daí eu pedi pra ouvir um disco do Roger Williams, um pianista popular que estava muito na moda naquele tempo. Foi um belo vexame, mas quando a gente é adolescente tudo se perdoa. Foi assim que, na casa deles, eu comecei a conhecer coisas que tinham a ver com arte e passei a me interessar cada vez mais. Além disso, eu gostava muito das aulas dela. E o casal me deu muita atenção. Faziam parte de um grupo, uma comunidade de médicos jovens que estavam realizando um trabalho ligado a uma associação católica. Atuavam com comunidades rurais. Já eram mais ou menos malvistos, porque estávamos nos anos 1960, e a coisa ali não demoraria pra começar a cheirar mal. Essa turma desenvolvia várias atividades nas comunidades rurais, entre elas um programa de rádio, no qual cheguei a ler a receita de um bolinho de soja. Antes de voltar a São Paulo, eles pediram para eu fazer um espetáculo didático, baseado na figura do Jeca Tatu, para mostrar nas comunidades rurais. Mesmo com a pouca ou nula experiência que tinha, escrevi uma pecinha. Eu, que fingia ser apenas o diretor, acabei fazendo o papel principal, o Jeca Tatu. Chamei alguns colegas de colégio e desandamos a viajar pelas fazendas mais próximas mostrando nosso trabalho. E combatendo a verminose! Bem, diante disso, para parte da população de Lucélia cismar que o grupo de médicos e seus agregados era comunista foi um pulo. Por isso, a equipe teve que sair da cidade. Na maioria, eles se mudaram para o litoral paulista, São Sebastião, onde um hospital estava para ser inaugurado. E aí me perguntaram: Você não quer vir junto? Eu tinha acabado o colegial, estava com mais de 18 anos e já havia passado um ano em São Paulo. Não tinha o que fazer em Lucélia e pensei que seria ótimo ir com eles para São Sebastião, cidadezinha que ainda mantinha o aspecto colonial, muito distante do progresso trazido pela Petrobrás e pelo turismo. Quando lá chegamos, o hospital, em morosas obras patrocinadas pelo governo estadual, não ficava pronto, eu fiquei morando na casa da antiga professora e seu marido médico, que tinham três filhos pequenos. Ficamos seis meses à deriva. Finalmente o hospital abriu, e eu trabalhei durante um único mês como administrador. Um pesadelo. Eu tinha pavor de acompanhar as atividades hospitalares, tinha medo de doentes, quando morria alguém era um inferno, por que eu não passava perto. Então, num domingo, fui passear em Ubatuba e conheci uma senhora escritora, Virgínia Lefèvre, tradutora famosa das obras infantis da condessa de Ségur, que fazia um serviço assistencial em Ubatuba, e nós começamos a conversar. Contei que conhecia a Faap, os cursos de arte para crianças e, então, ela me convidou: Você não quer vir para cá dar aula? Eu posso te pagar. Aceitei. Não podia ficar no hospital, porque eu não tinha nada a ver com aquilo. Conversei com meus amigos, e tenho a certeza de que eles concordaram que eu não era a pessoa ideal para aquele serviço. Fui para a Praia de Itaguá, em Ubatuba, e comecei a dar aulas na escolinha. Perto ficava a Praia do Tenório, ainda sem nenhuma construção. Na época, era uma região selvagem. Ubatuba ainda não tinha se desenvolvido. Fiquei um ano ali, num esquema bem precário. Uma jovem advogada, Alzira Helena Teixeira, me acolheu, cedeu um quarto da sua casa, e Sara Brito (hoje ótima pintora), ex-irmãzinha de Jesus, me recebia para as refeições em sua casa, que ficava atrás da escola. Passei aquele ano inteiro em Ubatuba, trabalhando com crianças. Apesar de ter desenvolvido um belo trabalho com as crianças caiçaras, ao fim de um ano, senti que era hora de voltar a São Paulo. Quando decidi o que desejava fazer, viajei para São Paulo e fui até a Faap. Visitei a sala das crianças e, conversando com a diretora, perguntei para dona Hebe Carvalho, a diretora: A senhora me deixaria dar aula aqui? A resposta dela foi: Claro! Eu a encontrei recentemente e disse: Dona Hebe, como a senhora foi louca! A senhora nem me conhecia, não tinha a menor indicação de ninguém e me pôs para dar aula! E aconteceu que, quase ao mesmo tempo, passei a dar aula na Faap e no Mackenzie. Minha irmã engravidou e teve de ficar em repouso absoluto. Entrei no lugar dela no Mackenzie, como professor de desenho. Fui o primeiro homem a lecionar na Escola Americana do Mackenzie em cem anos. Isso aconteceu em 1964. Influenciado pelos Beatles, eu usava o cabelo comprido e dona Irene Gusmão, a diretora, me fez cortar o cabelo três vezes. Aos poucos, percebi que ela era uma ótima pessoa. No começo eu pensei: Essa mulher vai me matar!, porque ela também não se conformava com os métodos que eu introduzi lá. Depois gostou muito e deu o maior apoio. Mal entrei no Mackenzie, aconteceu o golpe militar, também chamado de revolução. O colégio tradicional, direitista, apoiou os militares anticomunistas, algumas professoras aderiram à Marcha da Família com Deus e pela Liberdade. Ordens superiores sugeriram que cada professor ajudasse a revolução doando um dia de seu salário. Reclamei e foi encontrada uma solução: passei dias diante de um grande saco cheio de anéis onde se lia a inscrição Ouro para o bem do Brasil. As crianças, em fila, estendiam as mãos e eu enfiava aquelas coisas em seus dedinhos. A Faap me dava toda liberdade, mas o Mackenzie, antigo, era rígido em sua pedagogia de ensino. O caderno de matemática era do tempo dos fundadores, havia um século eles usavam o mesmo método. Mas temos de reconhecer que o método era melhor do que as técnicas de ensino que vieram depois. Lecionei no Mackenzie e na Faap ao mesmo tempo e introduzi os métodos libertários da Faap no Mackenzie. Dona Irene, diretora da Escola Americana, de início se assustou, mas depois percebeu alguma coisa no trabalho que eu estava fazendo e apoiou muito. Aí as aulas mudaram completamente de figura. Era outra coisa. Eu entrava com tudo quanto era tipo de material possível dentro da sala de aula e dava liberdade para as crianças criarem. Lecionava em classes do primeiro ao quarto ano primário, meia hora em cada classe, uma loucura. Eu trabalhava uma média de 12 horas por semana no Mackenzie e, na Faap, talvez umas seis ou oito horas. Depois, ainda acumulei com a Escola Vocacional Antônio Machado e, mais tarde, com a escola israelita Sholem Aleichem, uma das melhores experiências educacionais já acontecidas nesta cidade. Minha carreira como professor se estendeu de 1964 a 1972, mais ou menos. Porque, quando começou o programa da TV Cultura, Vila Sésamo, e a carreira teatral engatou mesmo, aí não deu mais pra acumular as duas coisas. Também estava cansado de lecionar. Nesse período de magistério, o mais importante foi a minha reeducação. Tudo o que tinha sido torto na formação escolar, acho que aprendi a quebrar, a abrir, nos anos em que dei aula. Ensinei e, ao mesmo tempo, aprendi. Dona Hebe Carvalho me abriu as portas para a arte das crianças e Fernanda Milani, para a dos adolescentes. As duas acreditavam profundamente no estímulo à expressão livre da criança e do adolescente, e todos os professores tinham que se enquadrar nisso. Alguns, que não demonstravam afinidade, acabavam saindo, não entendiam a liberdade instituída pelas duas mentoras. Muitos que passaram por aquelas salas eram rígidos, nada abertos a mudanças, achavam que com aquilo perdíamos tempo, que não ensinávamos nada. Não fui um estudioso da teoria pedagógica. Meu trabalho era essencialmente prático. No contato direto com os alunos é que aprendi a dar aulas. Li um pouco de Piaget e outros. Summerhill, de A. S. Neill, livro que foi uma idolatria... Até descobrirem os resultados daquele tipo de educação, os alunos de Neill ficaram todos desajustados. Aquela liberdade não deu certo. O livro no Brasil se chamou Liberdade sem Medo. Depois, alguém escreveu outro livro mostrando as consequências daquele método. Ficaram todos muito perdidos, não se adequavam em coisa nenhuma. Eu fiquei pensando que uma boa parte dessa escola renovada, da qual eu fiz parte, foi para rumos tão bobos e estapafúrdios, que eu até comecei a pensar que a escola repressiva, a mesma que me formou, não era tão ruim assim. Mas já são reflexões de alguém da minha idade, e estou com mais de 60. Em algum momento pensei em ser exclusivamente professor. Lá atrás, quando eu queria fazer letras, queria aprender direito o latim, o português; tinha na cabeça aquele percurso: faculdade, bolsa de estudos, ir para a França, voltar e me tornar professor secundário e, por que não, universitário. Mas acho que eu não ia ter muito fôlego para isso. Vendo hoje como minha carreira se encaminhou, penso que eu não ia ter a disciplina de fazer teses para títulos e mais títulos, mestrado, doutorado, acho que não ia me enquadrar. Capítulo VI Surge o Artista Acho que comecei a pensar em criar arte na década de 1960, depois do primeiro contato com a Faap, onde frequentei aulas de gravura. Tive bons professores, como Marcelo Grassman, Darel Valença Lins e Mário Gruber, pelos quais eu tinha uma admiração sem tamanho. Tive o privilégio de estar perto de grandes artistas que, ao mesmo tempo, eram professores muito generosos. Ensinavam de verdade, transmitiam as informações que eram vitais para os alunos. Não eram pessoas posando de artistas, eram artistas sensíveis mesmo. Enquanto trabalhavam suas obras, também trabalhavam a nós alunos. Acho que aquele contato me mostrou muito o que era ser artista. Eu me lembro de que na época havia uma discussão muito intensa sobre pintura figurativa e pintura abstrata. Os conceituais ainda não haviam se instalado no panorama. Quem gostava do figurativo não podia ser ilustrativo, eu não entendia o que era ser ilustrativo. Eu não entendia a discussão tanto quanto não entendia o funcionamento dos relógios na escola primária. Então, o que sei é que meu desenho não saía do lugar. Ao mesmo tempo, tinha a proximidade do Antônio Carlos Rodrigues, que desenhava muito bem, infinitamente melhor que eu e todos da sala. Assim, foi um pouco duro, mas eu tive um começo... Na sala de aula fiquei amigo do Cláudio Kuperman, com quem dividi uma casinha/ateliê onde moramos quase um ano. Como nós dois pintávamos, havia, claro, certa rivalidade. Cláudio tinha o seu estilo, eu tinha o meu, nós torcíamos um pouco o nariz um para o outro, mas, também, como éramos amigos, nos elogiávamos mutuamente. Naquele tempo eu era muito, mas muito influenciado por Marc Chagall, o pintor russo que foi viver na França. Como nas telas de Chagall, as figuras dos meus desenhos voavam e faziam movimentos circulares. Como eu não era um grande desenhista, igual ao Antônio Carlos, o meu desenho era mais ou menos primitivo, ingênuo. A minha força estava nas cores, na temática, na imaginação, na relação com o espaço. E eu expressava, coisa que só agora é que consigo ver com nitidez, uma relação muito espiritual com a vida. Os meus desenhos tinham uma atmosfera onírica, alegre ou sombria. Tive uma fase em que só desenhava pesadelos. Algumas pessoas não se sentiam bem e eu explicava que era surrealista. Não tenho mais nenhum, nem desenho nem pintura, dessa época. Foi tudo embora, algumas pessoas compraram. Tive então essa fase de pesadelos, depois a fase chagalliana, em que minha visão era menos atormentada, um pouco mais feliz. Mas só um pouco. Um dia, conversando com um amigo, ele comentou que meu teatro tem uma coisa espiritual, embora eu declare abertamente que não gosto de igrejas. O fato é que uma coisa não tem nada a ver com a outra. A religiosidade é muito mais em relação ao mistério da vida, da morte, dessas coisas sobre as quais a gente não tem certeza nenhuma. São esses elementos de espiritualidade que aparecem em minhas obras. Na penúltima cena de No Natal a Gente Vem Te Buscar, a Solteirona, que se comporta como uma burra a peça inteira, graças à magia teatral, vira uma sábia e atua como se estivesse em outro mundo. Em A Aurora da Minha Vida um padre conversa com um aluno morto... Mas antes de começar a falar de meu teatro propriamente dito, temos de voltar atrás, porque minhas aulas na Faap levaram ao surgimento do primeiro grupo teatral com o qual viria a trabalhar de modo consistente, elaborando uma estética. Então, temos de voltar à atividade didática. Minhas aulas começaram como ensino de artes plásticas. Nós tínhamos uma sala convencional, com mesas grandes, usadas por crianças que pintavam, desenhavam, faziam o que queriam. Éramos mais condutores da criatividade do que professores. Nunca impusemos um modelo para as crianças copiarem. Aquilo foi uma lição muito grande também para mim. Percebi que os modelos impostos muitas vezes funcionam como censura e não deixam a criatividade se expressar com liberdade. E nós vivemos num mundo comandado pelo não, pelo não está certo, pelo isso é errado. São regras que vão achatando e castrando de tal forma que podem deformar uma personalidade para sempre. Fornecíamos vários tipos de material para as crianças, que ficavam livres para se expressar, e nasciam pinturas, esculturas, etc. Aí aconteceu algo acidental, imprevisto, que preciso contar, porque foi como comecei a fazer teatro. Minhas aulas começaram a ficar muito cheias, e isso tornou mais difícil o controle disciplinar. Observando que eles faziam, por conta própria, brincadeiras que tinham a ver com teatro, saquei que naquilo havia algo muito interessante. Comecei, então, a dividir a turma. Separava uma parte da classe, mandava para o corredor e dizia: Vão ali inventar um teatrinho, inventem uma história, uma pecinha, depois voltem para apresentar pra gente! Era um recurso quase desesperado, uma maneira de eu solucionar o funcionamento daquelas turmas grandes. Nessa primeira etapa de descobrimento, as crianças tinham entre 6 e 10 anos. Com os bons resultados, autorizado pelas diretoras, comecei a fazer teatrinho em todas as classes. Aos poucos fui me encantando com o resultado dos improvisos. Baseavam-se muitas vezes em histórias conhecidas, mas as recriavam com suas próprias palavras, com uma liberdade que eu desconhecia. Tudo tinha muito a ver com os métodos de indução à criatividade que usávamos nas aulas de artes plásticas. Então, comecei a me informar sobre professores e artistas que haviam trabalhado e pesquisado teatro e educação. Encontrei boa informação em um livro de Michel Small, que foi muito importante. Havia coincidências entre o trabalho dele e o que eu vinha intuitivamente desenvolvendo. Ele também contava histórias para seus alunos recriarem e não dava textos que deveriam ser decorados para as crianças, de jeito nenhum. Alguma coisa eu já conhecia por leituras dos Cadernos de Teatro, do Tablado, da Maria Clara Machado. Aprendi muito com as publicações da Maria Clara. Michel Small chamava a atenção com muita ênfase para a história contada do ponto de vista da criança. Comecei a aplicar essas técnicas de modo mais sistemático, ajustando a elas o que antes eu fazia de maneira mais intuitiva. E pedi à direção do curso um horário específico para aulas de teatro, separado das de artes plásticas. As responsáveis pelo curso concordaram, abriram esse espaço, e comecei a trabalhar com as crianças. Mais uma vez tenho que agradecer a Hebe Carvalho e Fernanda Milani a confiança. E as crianças começaram a fazer teatro. E continuei a aprender com elas. Certo de que ainda não era a hora de leitura dos originais, eu mesmo contava de vez em quando um pouco de história do teatro, enredos das peças clássicas, gregas, shakespearianas, etc. Após a minha narrativa, nem sempre muito fiel aos originais, eu pedia que as crianças as recontassem. Excitadíssimas, contavam e, de farra, introduziam novidades na narrativa coletiva, era uma luta para permitir que todos falassem. Eu anotava tudo o que falavam e, a partir do material recolhido, começamos a fazer encenações mais ou menos toscas, puro prazer, pura brincadeira. E não se limitavam a atuar. Por conta das aulas de artes plásticas, faziam cenários e figurinos, a princípio de papel, costurados com grampeador ou cola. Às vezes eu trazia alguma referência histórica para que tivessem uma noção do universo com que estavam mexendo. Tudo muito livre. E eles inventavam sem parar. Uns assistiam às cenas preparadas pelos outros. Críticas surgiam, claro, brigas também, e era o meu papel dar uma forma final ao que criavam desenfreadamente. Hoje, penso sobre o método ou a falta de método de minhas aulas. Fizemos para valer a criação coletiva, de que se falava tanto naquela época. A criação coletiva nunca foi para mim um processo muito convincente, pois pressupõe sempre um coordenador, um centralizador das decisões. E percebe-se que mesmo na criação coletiva há a tendência de dar os melhores papéis para determinados atores, e há sempre aqueles que sobram pelos cantos. Como professores, acreditávamos que a livre expressão era fundamental para o desenvolvimento da personalidade dos alunos e por isso tomávamos muito cuidado. No teatro ali praticado todos tinham que ter seus papéis, bons papéis. E também se evitava a crítica convencional, o não gostei sem fundamento. A crítica devia ser prática, objetiva. Do tipo tal coisa eu não entendi ou aquilo não está claro. Daí eu tinha que interferir e propor, vamos ver como é que funciona de outro jeito, quem tem uma ideia? Eu, claro, também induzia, participava dessa discussão crítica do trabalho. Esse encontro com o palco alterou a vida de muitas daquelas crianças. Era visível que em alguns alunos, e isso a gente viu com o passar do tempo, ia surgir uma paixão devastadora pelo teatro. Muitos começaram a renunciar aos sagrados sábados e domingos, substituindo clubes e cinemas por uma dedicação ao teatro. Era uma adoração total, a ponto de as festas entre eles serem temáticas. Tinha festa na casa de um, na casa de outro, todas girando em torno de temas teatrais. Mas isso não ocorreu com todos os alunos, naturalmente houve uma espécie de seleção feita pela própria vida. Mas, no processo de trabalho, dentro da classe, a adesão era quase total. Muitos, a princípio, se mostravam tímidos ou desinteressados, mas pouco a pouco iam aderindo. Eu me lembro de que alguns enfrentaram dificuldades em suas próprias casas. Houve pais que tinham franco preconceito contra o teatro. Os filhos do ator Dionísio Azevedo, o Noel e o Taco (hoje o ótimo escritor e desenhista Dionísio Jacob), que adoravam os ateliês de artes plásticas, nem queriam ouvir falar de teatro, mas aos poucos foram se integrando e também se entregaram ao trabalho, se apaixonaram completamente. E o mesmo aconteceu com outros. Alguns sumiram, gastou-se aquilo, aquela chama. Crianças de que você falava: Nossa! Que talento, que prodígio! seguiram caminhos muito diferentes, foram se dedicar a outras coisas. Outros, não. O que se percebia era uma vocação muito definida, como foi o caso do próprio Carlos Moreno. Volto um pouco ao passado, à primeira fase das criações coletivas. Uma vez montamos um Macbeth memorável. Mira Haar, aos dez anos mais ou menos, fazia lady Macbeth. O exército inimigo e a floresta, na cena da batalha final, foram feitos com bicicletas e galhos de arbustos do jardim da frente da Faap. Os pés de azaleias ficaram pelados. Triunfais, as crianças entraram pedalando, com os galhos nas mãos. Com os alunos antigos já crescidos, adolescentes, experimentamos trabalhar com textos, quando comecei a atuar como diretor. Mais uma vez reconheço que junto com o dos alunos se realizava também o meu aprendizado. Fizemos Os Irmãos das Almas, de Martins Pena, em que o Carlinhos Moreno, aos 11 anos, era o galã. Ele foi uma criança fascinante de tão talentosa. Razão não havia para tal, mas montamos Pintura na Madeira, texto curto de Ingmar Bergman que serviu de base para o filme O Sétimo Selo. Acho que o descobri num dos Cadernos de Teatro. Nenhuma razão didática para tal escolha, pura atração pela obra de um cineasta que eu já estava começando a amar. Desde que botei os pés em São Paulo, frequentei os teatros. Gostava demais. Via tudo que estava em cartaz, passei a consumir, era o que de melhor se fazia naquele tempo. Nem imaginava me tornar um profissional da área, tinha medo, achava inacessível. Vi Cacilda Becker várias vezes. Foi uma atriz que me causou uma imensa impressão. Naquela época, também comecei a conhecer gente que fazia teatro. Fui apresentado ao Antônio Abujamra, mas ele não deve se lembrar de mim naqueles anos, por que eu era um desconhecido. Conheci alguns jornalistas e atores, não muitos. João Cândido Galvão, meu querido amigo, entre eles. Eu ia muito assistir às montagens do Teatro Popular do Sesi, dirigidas pelo Osmar Rodrigues Cruz. E frequentei o teatro da Nydia Licia, o Bela Vista. Vi muita coisa lá. Acho que acompanhei intensamente o panorama daquela época. Por causa das benditas bilheteiras que olhavam para a nossa cara, sentiam pena e nos davam ingressos. E frequentei muito o Teatro de Arena. Aprendi muito com aqueles espetáculos, a maioria dirigidos pelo Boal. Fiquei apaixonado por aquela geração de atores, atrizes do Arena: Myriam Muniz, Paulo José, Juca de Oliveira, Dina Sfat, Isabel Ribeiro... O cenógrafo e figurinista Flávio Império era um Deus! Nem sei dizer. Eu fui encantado por eles. Indo muito ao Arena, procurava me sentar sempre num lugar diferente para ver a mesma peça de vários pontos de vista. Aprendi demais com aquele grupo. Tive também uma paixão pela grande fase do Oficina. Tremia quando Zé Celso passava perto de mim, queria que ele esbarrasse, me tocasse. Lá eu me deslumbrei com a interpretação lendária de Maria Fernanda, a Blanche DuBois de Um Bonde Chamado Desejo. Era mágica, não dava para desgrudar os olhos e o coração daquela Blanche. Depois vi Pequenos Burgueses, Andorra, Quatro num Quarto, Na Selva das Cidades, Galileu Galilei, O Rei da Vela. Por frequentar outros teatros, tomei conhecimento de Ibsen, Pinter, Osborne, Wesker, Tennessee Williams, O’Neill, Miller, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues. Eu era um espectador ávido, estava ali me encantando e aprendendo sem saber. Como já disse, nessa época eu não conhecia muito o pessoal de teatro nem tinha feito algum curso, achava a Escola de Arte Dramática um olimpo distante das minhas capacidades. Meio por acaso conheci Tônio Carvalho, Jacques Lagoa, Dora Castelar, que faziam teatro infantil no Arena. Mas acompanhei muito pouco o teatro infantil. Algumas pessoas que conheci nessa fase me ajudariam a abrir portas. E outras vieram a se tornar figuras fundamentais em meu percurso. Myriam Muniz, que eu admirava a distância como espectador no Teatro de Arena, mais tarde se tornou amiga, mestra, companheira de trabalho. Ela foi e continua sendo uma das paixões da minha vida. Foi-se embora sem que eu escrevesse alguma coisa para ela. E a dirigisse, caso permitisse. Grande mulher, grande, enorme atriz. Capítulo VII Da Faap para a Rua Mato Grosso Quando fui lecionar na Faap, a escola ainda era mais ou menos experimental, informal, uma escola de educação artística, que a gente achava que era nossa. Porque era, primordialmente, uma escola de arte, principalmente de artes plásticas. Entrei em 1964 e saí em 1970. Segundo me contaram, a Faap foi fundada para ser um centro de formação nas artes e, assim, atender ao desejo do patrono, o conde Armando Álvares Penteado. Mas, após a sua morte, ocorrida antes daquele período, começou a grande transformação. A viúva, dona Annie, era uma senhora reclusa, nunca vista por nós, creio que ela saía pouco daquela mansão magnífica e misteriosa, repleta de obras de arte, onde nunca entramos. Provavelmente era uma escola deficitária, sendo especificamente um centro de trabalho e educação em arte. Então, veio uma enorme reforma. Alteraram os estatutos e permitiram a criação das outras faculdades dentro da fundação. A primeira a nos invadir, como exército de bárbaros, foi a de engenharia. Fomos obrigados a ceder nossas salas para as primeiras aulas e o resultado foi assustador. Plásticos das mesas fartamente desenhados com imagens pornográficas e depois rasgados, as paredes com inscrições e desenhos, que depois se repetiriam nos banheiros. Antes, nossas salas tinham cores, barro para modelar, mas nenhuma imagem agressiva. Os calouros da engenharia mostraram uma face desagradável e asquerosa do ser humano. Outras escolas tecnológicas vieram depois. Foi devastador para o nosso setor de artes e, especialmente, para o curso de teatro. Praticamente expulsos de nossas salas antigas, fomos para um andar superior onde havia um salão equipado com um tablado. Ali já aconteciam aulas de dança moderna, mímica e talvez ensaios de música. Tivemos que disputar o espaço daquela sala com outros, mas realizamos vários espetáculos. Tivemos na plateia o Antunes Filho, que não sei como foi parar lá. Passados alguns meses, tivemos que sair de lá também, por causa da expansão da escola de engenharia. Como ainda estávamos contratados, resistimos e nos mudamos para o grande hall, naquela escadaria, ao lado das réplicas dos profetas do Aleijadinho. O profeta Naum, um dos mais tortos, está naquele conjunto. Ali encenamos a adaptação de um conto do Ray Bradbury. Depois, fomos parar numa edícula que abrigava os aposentos da criadagem e as garagens da mansão de dona Lily Álvares Penteado, o imponente casarão rosa que fica no alto da ladeira, na Rua Alagoas. Ali instalamos os ateliês de pintura. E os ensaios e apresentações do grupo de teatro eram feitos sobre as mesas. Foi o canto do cisne daquele curso iniciado de maneira tão apaixonante. Mesmo naquelas novas e precárias instalações, continuamos. O amor pelas artes plásticas e pelo teatro continuava firme. Fizemos uma adaptação livre muito bonita de A Tempestade, de Shakespeare, e montamos várias peças ali. Depois disso, pedi demissão. Era hora. Já estava cansado. Eu morava numa casinha de uma pequena vila na Rua Mato Grosso, perto da Avenida Angélica, atrás do Cemitério da Consolação. Com a ajuda do amigo e também professor da Faap, Mário Ishikawa, então transformei a casa. A sala da frente recebeu balcões e virou um ateliê de 3m X 4m, onde os alunos se espremiam. A sala seguinte, até então o meu quarto, foi dividida. Mário Ishikawa, com seus talentos de artista e carpinteiro, fez um forte jirau, que passou a ser o meu quarto, equipado com um colchão e um televisor em preto e branco. Eu não podia ficar em pé, é verdade, mas adorei a aventura. Em baixo construímos uma pequena arquibancada que comportava, apertadas, não mais do que 15 pessoas. Apesar do espaço minúsculo, ganhamos novo fôlego. Era nosso. Ainda não se chamava Pod Minoga, mas lá veio a se configurar um grupo que já não era o da Faap. Participaram dessa fase Mira Haar, Carlos Moreno, Tacus, Noel, Flávio del Carlo, Analu Prestes, Guilherme Viana, Cíntia e Laís de Souza, Eduardo Iacoponi, Ângela Baeder, Luci Bouquet. Esse foi o núcleo principal, que se firmou na casa da Rua Mato Grosso. Depois, quando tive que sair dali, ficamos sem espaço. Então, os atores Dionísio Azevedo e Flora Geni, pais do Taco e do Noel, generosamente cederam a sua casa para continuarmos a trabalhar. Não se importavam com nossa bagunça. Ensaiamos e fizemos espetáculos lá e, em seguida, nas casas do psiquiatra Flávio Gikovate e dos pais do Flávio de Souza, Cláudio e Terezinha, no Morumbi. Por causa da criação coletiva, fui obrigado a entrar como ator e me senti a pessoa mais ridícula do mundo. No grupo que mais tarde viria a ser o Pod Minoga, houve uma continuidade do processo de criação que empregávamos na Faap. Uma história, conhecida ou criada a partir de ideias discutidas em conjunto, ganhava corpo por meio de improvisações de cenas, e alguma sequência era estabelecida. Daí partia-se para uma distribuição de personagens. Já havia necessidade maior de ensaios, nos quais se firmavam melhor as falas, as marcações, as características das personagens. Não era mais um jogo tão espontâneo, tão improvisado e livre quanto o que ocorria na sala de aula. Tínhamos a preocupação de elaborar um espetáculo. Nessa fase, ainda, não escrevíamos diálogos e nos baseávamos apenas num simples roteiro de cenas que determinava: agora acontece isso e isso, o personagem tal sai e entra não sei quem. Alguns assuntos eram sugeridos para os diálogos que iam nascer improvisados. Parecia um tosco pré-roteiro de filme, com cenas curtas, algo parecido com os jogos da Commedia dell’Arte, estilo que mal conhecíamos. Sem formação cultural ou acadêmica, nosso nível de informação era um tanto baixo. Muitas vezes, na vida, senti falta de uma formação escolar, pois, terminado o colégio, nada mais cursei, fazia tudo instintivamente. Claro que se aprende com o que se vê, com leituras e filmes, mas eu gostaria de ter tido um pouco de estudo sistematizado. Voltando ao Pod Minoga, à nossa linguagem se misturava a do musical americano e, talvez, das chanchadas carnavalescas cariocas. Eu era louco por musicais americanos, vivia de olho na programação dos jornais, à caça de alguma reprise nem que fosse num cinema de bairro distante. Vi quase todos os musicais americanos, das operetas de Jeannette MacDonald e Nelson Eddy até os mais modernos que pararam de ser produzidos talvez no final dos anos 50. E os alunos que formaram o grupo que viria a ser o Pod Minoga tinham assistido aos mesmos musicais na TV, na Sessão da Tarde. Quem diria que a Sessão da Tarde teria uma influência estética desse jeito? Então houve um encontro de gostos. Não foi uma coisa que impus. Surgiu de uma vontade de todo mundo o impulso de mexer com esse material. Em relação às pessoas que formaram o grupo, houve como que uma seleção natural. Os que sentiam mais afinidade comigo foram os que permaneceram ao meu lado depois que resolvi sair da Faap. Por essa disposição do grupo, os espetáculos passaram a ter características do musical. Um musical feito de maneira imaginativa, mas muito tosca. As produções eram feitas com pouquíssimo dinheiro. Os atores cantavam em cima de gravações. Para escrever as letras, púnhamos o disco LP, a gravação da canção em inglês, a repetíamos quantas vezes fossem precisas, e eu escrevia com eles letras em português, completamente surreais. Sem interromper a conexão criativa iniciada na Faap, onde fizemos uma anárquica Tempestade cheia de músicas, no período da casa da Rua Mato Grosso fizemos uma libérrima biografia do imperador romano Nero, nada fiel ao que a história costuma narrar. Chegava a ponto de Nero se encontrar e disputar espaço e poder com Aída, da ópera verdiana, cuja Marcha Triunfal também ganhou uma letra. Era absolutamente anárquico. Foi quando começou a aparecer Zé Celso Martinez Corrêa na nossa platéia. Zé Celso gritava: O teatro morreu! E eu pensava, apavorado: Justo agora que eu comecei? Antunes Filho, figura frequente, acompanhava o trabalho desde a Faap. Ficamos muito honrados com a presença deles, pois foram os primeiros da classe teatral a fazer contato. Capítulo VIII Júlia Pastrana Aconteceu, na casa da Mato Grosso, Júlia Pastrana, um espetáculo curto, não chegava a 40 minutos e quase totalmente visual, praticamente sem falas, com uma tênue história de fundo, baseada em fato real. Era um espetáculo imagético que mexia muito com as pessoas. Aquelas imagens ficaram na memória de quem viu, tem gente que se lembra e conta coisas que nem aconteciam na peça. Analu Prestes fazia a personagem-título, uma mulher barbada. Eu era o dono do circo, Ângela Baeder fazia uma bailarina, Guilherme Viana interpretava um declamador que dizia um pedaço da Divina Comédia em italiano. Não tinha quê nem pra quê aquilo de ele declamar Dante em italiano, mas tanto eu quanto ele adoramos a ideia, que surgiu sabe Deus de onde, e incluímos a cena, por sinal, belíssima, no espetáculo. Era um espetáculo escuríssimo, quase um breu total, fato que ajudava o público a viajar mais profundamente naquela história tão triste. No final, Júlia dava à luz uma criança tão peluda quanto ela. Mãe e filha morrem, mas o dono do circo mandou embalsamá-las e continuou a exibir os corpos. Isso aconteceu mesmo com Júlia Pastrana, num circo do século 19. Esse espetáculo foi muito marcante. O elenco: Analu Prestes, Guilherme Carrão Viana, eu, Tacus (Dionísio Jacob), Carlos Moreno e Zezé Brandão. Logo após Júlia Pastrana, Analu foi convidada por Luís Antônio Martinez Corrêa para trabalhar com ele em O Casamento do Pequeno Burguês. Deu uma ciumeira, ficamos inconformados, pois, afinal, ela era um dos membros mais antigos do grupo. Mas o amor continuou, e eu trabalhei com ela no Rio em mais quatro espetáculos e espero repetir em muitos outros. Capítulo IX Intermezzo Baiano – Cachoeira Não posso me esquecer de um fato acontecido quando eu ainda dava aulas na Faap. No começo de 1968, fui convidado para um trabalho na Bahia, numa cidade histórica chamada Cachoeira. Lá, ajudaria na formação de um museu de arte popular e religiosa e ainda criaria uma escola de arte para crianças e adolescentes. Fiquei muito entusiasmado com a perspectiva e acabei ficando sete meses em Cachoeira, onde nem tudo correu bem. Voltei de ônibus para São Paulo no dia do Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro daquele ano. E veja como os garotos do grupo que seria mais tarde o Pod Minoga não tinham noção da gravidade das coisas. Eles me esperaram na rodoviária de São Paulo com bandeirinhas brasileiras, alguns com chapéus de papel de seda, e papel picado verde e amarelo, uma coisa muito tropicalista, porém proibidíssima pelos militares no poder. Naquele dia, poderíamos ter sido presos e torturados pelo desrespeito aos símbolos nacionais. Não fomos. Felizmente um anjo da guarda de asas muito grandes e esclarecido nos protegeu. Nunca esqueço da Mira Haar fantasiada de bandeira brasileira. Perigosíssimo! Durante a viagem, no ônibus, eu havia escutado no rádio que o presidente Costa e Silva havia assinado o AI-5. Saímos correndo de lá. Apesar das grandes dificuldades com a organização que me convidara, o trabalho na Bahia deu comoventes frutos. O grupo de meninos e meninas que estudou comigo teatro e artes plásticas, certos de que eu voltaria, continuou a trabalhar. Os meses que fiquei à espera da reforma do espaço destinado à escola de arte haviam acabado com minha vontade. A precária reforma do andar térreo do lindo casarão do século 19 (talvez fosse ainda mais velho) só ficou em condições de funcionamento nos últimos meses de minha temporada cachoeirense. Trabalhei furiosamente com eles, mas já era tarde para mim. Quando saí de lá, os alunos não se conformaram, e durante anos recebi cartas e mais cartas daquele povo. Era muito comovente, eles tinham certeza de que eu ia voltar. Só retornei uma vez, para entregar a casa alugada, cheia de cupins, e pegar o resto das minhas coisas que lá tinham ficado. Não queriam me deixar vir embora. Depois de Júlia Pastrana, a dona do imóvel em que eu morava, na Rua Mato Grosso, pediu a casa e tive que sair de lá. Adeus casa charmosa, adeus teatrinho, adeus Cemitério da Consolação, por cujas alamedas tanto passeamos. Na casa que aluguei, em seguida, na Pompéia, não havia condições para continuarmos o trabalho. Mas o ímpeto criativo continuava aceso e eu agi conforme aquilo que preguei aos alunos: Não existe “Não dá”, tem que dar. Já que não temos sede, vamos nos tornar ambulantes. Olhe o nosso percurso: começamos no corredor do espaço onde ficavam os ateliês de artes plásticas de crianças e adolescentes; quando chegaram os horripilantes estudantes de engenharia nos mudamos para um salão no segundo ou terceiro andar, onde haviam improvisado um palco para aulas de dança; expulsos de lá pela invasão das escolas técnicas, nos apresentamos no grande hall com escadarias, onde estão até hoje aquelas feias réplicas de gesso dos profetas do Aleijadinho; de lá fomos ocupar a garagem e os aposentos da criadagem da mansão do conde Álvares Penteado. A grande casa, onde dona Lilly, a viúva, deve ter falecido, à qual nunca tivemos acesso, já tinha sido esvaziada das obras de arte que foram transportadas para outro lugar. Eu gostaria muito de ter conhecido essa senhora, mas só a vi de muito longe, pouquíssimas vezes. Na minha imaginação aquela velhinha elegante de aparência solitária tinha algo a ver com a personagem do conto O Fantasma do Hotel San Marino, do americano Ben Hecht. Para isso serve a imaginação. Capítulo X Hotel San Marino Gentilmente acolhidos por Dionísio Azevedo e Flora Geni, artistas maravilhosos, fizemos da sala de visitas da casa deles no Sumaré nosso local de reuniões, ensaios e de duas apresentações para convidados. Não sei se eu teria tanta generosidade quanto eles. Diariamente alterávamos a disposição dos móveis, ensaiávamos, fazíamos muito barulho. O grupo havia aumentado, pessoas que mal conhecíamos foram aceitas para o próximo trabalho que nem sabíamos direito como sairia. O Hotel San Marino foi uma fusão (ou confusão?) de três contos americanos descobertos numa coletânea. Rip Van Winkle, de Washington Irving, O Fantasma do Hotel San Marino, de Ben Hecht e, se não me engano, Loira e Grandalhona, de Dorothy Parker. Os três contos reunidos deram origem a um enredo que duvido que alguém tenha entendido. Citações, números musicais, imagens aos montes. Vivemos a experiência de fazer teatro nas casas das pessoas, porque a ideia de parar era inadmissível para todos. Fizemos só três apresentações de O Hotel San Marino. Apenas no período em que estivemos na Rua Mato Grosso, tivemos condições de apresentar mais sessões de cada espetáculo. Porque mesmo na Faap fazíamos duas ou três apresentações. Depois de O Hotel San Marino, passamos por um período de desânimo, dispersão, mas tomamos coragem e nos instalamos numa velha oficina mecânica da Rua Oscar Freire. O colunista Telmo Martino, que escrevia no Jornal da Tarde, nos sacaneava e escrevia que nosso estúdio ficava no lugar errado da Oscar Freire. Tradução: estávamos na direção oposta aos Jardins, lugar dos chiques e ricos. Deixa pra lá. A ocupação do futuro Pod Minoga definiu quem levava mesmo o teatro a sério e quem estava só de passagem. Naquele lugar evoluímos, uma nova etapa começou. Embora nossos espetáculos fossem feitos na raça, com o material que tínhamos à mão, nos sobravam criatividade, imaginação e uma gana de trabalhar com alegria, difícil de encontrar. A formação em artes plásticas dava um diferencial. E realmente nos divertíamos com nossas ideias e talentos. Hoje dá para ver que aquelas crianças, aqueles adolescentes continuaram e estão brilhando. Muitos espectadores nos adoravam, mas também fomos chamados de alienados. Éramos coloridos, musicais, mas eu não acho que o que fazíamos fosse manifestação de alienação. Nosso trabalho, sem seguir cartilha política da época, era mais crítico do que muita coisa que se propunha a ser crítica então. Nenhum de nós era ligado à chamada oposição, nem participamos de movimentos que os milicos consideravam subversivos. Mas sabíamos muito bem, estávamos informados de tudo o que acontecia naquela época. Capítulo XI Tempos de Pod Minoga e Outras Aberturas Bem, então, no início da década de 1970, entramos na fase mais visível do grupo. Alugamos o tal barracão da Oscar Freire e eu decidi morar ali. Era a única maneira de termos um espaço e, por razões econômicas, ou eu morava no mesmo local do ateliê, como havia acontecido na Rua Mato Grosso, ou a gente não teria um local de trabalho. Eu pagava metade do aluguel, e eles pagavam a outra metade. O local era coberto por grandes chapas de cimento-amianto, não tinha ventilação. Era muito frio no inverno e infernalmente quente durante no verão. Mas a fantasia faz milagres. Construímos uma arquibancada e um tablado que era o nosso palco, obra de um dos antigos alunos, John Orberg, que foi morar nos Estados Unidos e vive em Nova York há muitos anos. John veio passar férias com a família exatamente quando estávamos nos instalando no barracão da Oscar Freire. Foi uma mão na roda. Ele tinha aprendido carpintaria e marcenaria na escola americana, no interior de Michigan. Desenhou tudo, calculou material, meteu a mão na massa, serrou praticamente sozinho toda aquela madeira e foi montada a estrutura da arquibancada e do tablado. Foi uma bênção do céu a ajuda do John. Nossos sonhos de Broadway foram resolvidos à base de chita, miçangas, strass e plumas, tesouras e muita cola. Mais imaginação, criatividade e trabalho. Na época, fui convidado para criar (copiar qua-se igual) o boneco Garibaldo, personagem de Vila Sésamo. Era uma versão de Sesame Street, programa americano. A versão brasileira estava em produção na TV Cultura. No barracão da Oscar Freire o grupo viria a ganhar o nome Pod Minoga. Naquela época, quase todos os grupos tinham nomes políticos, revolucionários, proféticos, em geral terminados em ão: como Libertação, Revolução. A gente não gostava disso, mas era necessário batizar a nossa trupe. Não dava mais para trabalhar sem um nome. O acaso nos ajudou. Frequentamos anos a fio o apartamento de dona Ana Haar, mãe da Mira. Todos já haviam sentado numa determinada poltrona, ao lado de uma estante. Em uma das prateleiras, bem na altura de nossos olhos, ficava, entre muitos outros, um livro chamado Cafe Pod Minoga, um romance polonês. Ninguém jamais tinha tocado no volume nem comentado nada sobre o título do tal livro. E foi na casa de dona Ana que aconteceu a reunião para definir o nome do grupo. Depois de alguns copos de Ki-Suco gelado, enquanto discutíamos nomes e mais nomes – uma lista imensa de possibilidades –, alguém, não me lembro quem, talvez o Tacus, sugeriu de farra: Pod Minoga. Os outros, espantados, perguntaram: De onde você tirou isso? Acontece que todos já tinham visto o título do livro e ninguém havia comentado. Achamos muita graça. Era nossa intenção, desde o começo, batizar o grupo com um nome sonoro. Dona Ana Haar, polonesa e amante das artes, explicou que minoga queria dizer sardinha em polonês. Rimos e ela continuou dizendo que o Café Pod Minoga era um café de Varsóvia, e o livro era um romance sobre os frequentadores desse café. O nome sonoro agradou em cheio e acabou sendo escolhido por unanimidade. Engraçadinhos sem graça fingiam errar e diziam Pó de Minhoca. Foram cinco os fundadores da trupe: eu, Mira Haar, Carlos Moreno, Tacus e Flávio de Souza. Flávio, antigo aluno da Escola Americana do Mackenzie, se agregou ao grupo na produção de O Hotel San Marino. Houve outros agregados – Regina Wilke, Beto de Souza, May Shuravel, Lucy Bouquet, Ângela Grassi, Ângela Baeder, Berenice Baeder, Rose Carmona, Carolina Young e outros. Pela ordem cronológica, o primeiro espetáculo que apresentamos no Pod Minoga Studio foi Miscelânea. Como não conseguíamos chegar a um consenso sobre um enredo ou adaptação, resolvemos trabalhar criando esquetes, números musicais, cada um teve certa liberdade de escolher o que queria mostrar, como se fosse um espetáculo de fim de ano de alunos de escola ou um show de variedades ao estilo do antigo teatro de revista. A abertura de Miscelânea era apoteótica. Depois, cenas invariavelmente cômicas, pois não conseguíamos ser sérios, números musicais e um final mais apoteótico e coreográfico do que a abertura. A coreografia, hilária, era inventada por nós mesmos. Não existia essa coisa de pedir a um profissional que trabalhasse para nós. Não havia como pagar. E, também, é verdade, queríamos fazer tudo, “imitar” os filmes, brincar com a ridicularização de algo que tivéssemos visto. Nossos refletores eram latinhas com lâmpadas dentro que eventualmente estouravam, esquentavam demais. Figurinos, nós mesmos fazíamos, a música era escolhida e gravada de discos que ouvíamos centenas de vezes. Como era a operação do som? Ficávamos segurando o LP, com a agulha no ponto, e soltávamos no momento marcado. O espetáculo tinha todos os defeitos possíveis. E bem visíveis. Nossa técnica era precária, da gente, mas aprendemos a tirar partido dos erros e das precariedades. Carlos Moreno, então Carlinhos, foi o autor de um sábio conselho: Onde houver um defeito, cole em cima uma lantejoula. Acho que a criatividade era tanta, que compensava as falhas técnicas. Em Miscelânea participei de um esquete em que fazia um sujeito muito tímido, que prestava concurso para ser locutor de rádio no Cairo. Inventei um locutor afônico, morto de medo, trabalhei com meus defeitos. O espantoso é que Antunes Filho gostou tanto de mim naquele papel, que me chamou para fazer o personagem central em um teleteatro que dirigiu, adaptação de uma peça do Luís Carlos Cardoso, chamada O Bolo Perfeito, que foi gravada em um estúdio da TV Cultura e algumas externas. Antunes tinha se equivocado, eu não era um ator. Morria de medo, tinha dificuldade para decorar as falas, não dormia nos dias anteriores às gravações. O especial foi exibido no mesmo dia em que o Uri Geller apareceu entortando garfos em um programa, acho que na TV Globo. Penso que nem minha mãe assistiu a O Bolo Perfeito. Graças a Deus, parece que um incêndio acabou com essa fita. Antunes deve ter ficado muito decepcionado e constrangido com minha atuação. Depois de Miscelânea veio Violeta Allegro,a saga de uma cantora amalucada que resolvia as dificuldades da vida com som e fúria. Mira Haar interpretou uma inesquecível Violeta num espetáculo muito colorido, cheio de música e dança. A produção seguinte foi São Clemente, espetáculo no qual Taco vivia o próprio São Clemente. A trama era vagamente baseada em textos tirados de Les Prairies Du Seigneur, um livro que eu tinha lido havia muito tempo, sobre vidas de santos pré-medievais. São Clemente, um beberrão capaz de milagres, tinha o dom de fazer chover. Nos apossamos daquela história e a transformamos, claro. Eu adoro esse livro até hoje. É uma obra curiosa, conta as vidas dos santos mártires de maneira um tanto irônica. Os algozes cortavam as cabeças dos santos, os seios das santas, as mãos, e sempre havia pessoas piedosas que disputavam as relíquias. Entre as narrativas, o livro tem folhas em branco para que o fiel leitor possa anotar seus pensamentos e meditações. Gozação, sátira? Dali saiu São Clemente, com toda uma história musical em volta. Era muito bonito e foi nesse espetáculo que começamos a ver sinais de avanço em cenografia, no apuro pictórico dos telões, alguns depois emoldurados e colocados em paredes. Carlinhos Moreno começou a desenvolver habilidades cenotécnicas muito especiais. Ele enrolava os telões, que ficavam suspensos no teto, e quando era preciso caíam lá de cima. A gente achava o máximo! Inventou também um sistema de cortinas que corriam e dividiam as cenas ou os ambientes. Tudo na base do náilon, da chita ou do failete, pano para forro de roupas, cetim barato. Mas fazia um baita efeito. E a famosa maleta do Carlinhos, com tudo arrumadíssimo? E nosso material de maquiagem, os pastéis a óleo das mais lindas cores... Graças a Deus ninguém era alérgico e todos tinham peles resistentes. Era tudo muito colorido. O Pod Minoga Studio foi muito colorido. O último espetáculo que eu fiz com eles se chamou Cenas da Última Noite, e tinha umas referências fantasmagóricas, baseadas em Hieronimus Bosch. Para uma cena, fizemos a reprodução tridimensional de um quadro sobre o Apocalipse que dava até medo. Era um grande painel dividido em planos, onde as figuras humanas e demoníacas, representadas por bonecos, se movimentavam. Cenas da Última Noite foi, talvez, uma tentativa de mostrar ao público que também podíamos ser sérios. E foi o começo do fim da minha trajetória com o Pod Minoga. No espetáculo seguinte do grupo, Folias Bíblicas, tive uma participação pequena. Quando penso no passado, sinto que o fecho do meu caminho com o Pod Minoga foi Cenas da Última Noite. Folias Bíblicas marcou a transição da trupe para o profissionalismo. A montagem, que nasceu na Oscar Freire, algum tempo depois migrou para o Teatro de Arena, que acho que já estava rebatizado de Teatro de Arena Eugênio Kusnet. E do espetáculo seguinte, Salada Paulista, por conta de uma cirurgia e de compromissos profissionais, não participei. Quem nos profissionalizou, nos inscreveu no sindicato e administrou nossas confusas vidas de artistas, foi o Arte, o querido Artelino Umbertino de Macedo e Silva, grande pessoa, personagem fundamental para a vida particular e profissional de muita gente de nosso meio. Seguramente foi uma das pessoas que mais amaram o teatro. E como eu mesmo enchi o saco dele com minhas lamúrias e fraquezas! Artelino cuidou de nós em todos os sentidos, cuidou até de nossos parentes, foi ele que me telefonou e “mentiu” que meu pai havia falecido. Cuidou de tudo, do morto e dos vivos. Quando ele mesmo foi embora um dia, me telefonaram de um jornal para saber onde e que horas seria a missa de sétimo dia. Meu primeiro impulso foi ligar para ele e perguntar. O Pod Minoga e muita gente boa o reverenciam. O Pod Minoga foi uma experiência marcante, decisiva, em minha vida. Lá experimentei e exerci com alegria e liberdade todas as funções que o processo teatral pede – fui contrarregra, costureiro, pintor, ator, cenógrafo, dramaturgo e diretor. Durante a montagem de Folias Bíblicas, comecei a perceber que havia uma separação em curso. Estava ficando nítida a questão das idades, eu com 30 e poucos, eles com 18, 20. Vontades e pensamentos diferentes, com necessidade de expansão e liberdade. Era hora de separar. Houve um abalo, mas conseguimos não brigar. Outra fase de vida, de carreira, estava para começar. O Pod Minoga parece um assunto inesgotável. Claro, ele não saiu de dentro de mim. Como depois eu comecei a escrever, penso nas verdades que um dia defendi. Como éramos adeptos da criação coletiva e defensores da criatividade de todos, teimávamos em não escrever o texto com diálogos e forma parecida com algum modelo, mas, mesmo que a gente não escrevesse o texto, ele se escrevia, se fixava, pois era repetido todas as noites. Sem nenhum método, sem ser assistente de ninguém, aprendi a dirigir, a fazer cenários, figurinos, a sonorizar. Mas não defendo o modelo autodidata e sei que um pouco de formação e informação não me teriam feito mal. No Pod Minoga chegamos a ter cinco máquinas de costura, porque, quando quebrava uma, saíamos correndo desesperados em direção à Rua São Caetano, região das lojas de noivas e das máquinas de costura usadas. Nossos figurinos eram feitos da seguinte maneira: costurávamos um saco, com aberturas para os braços e para passar a cabeça. Metido no saco, o ator passava por um processo de estilo, costura aqui e ali, franze, repuxa e, em geral, a roupa não saía do corpo. Não sabíamos pregar um zíper ou fazer casa para um botão. O resultado, quase sempre bonito, mas incômodo, tinha mais a ver com a escultura do que com a costura. E ainda por cima pintávamos, coloríamos aquelas roupas. Certos figurinos precisavam ser refeitos todo dia. Aprendi a viabilizar as coisas, de um jeito ou de outro. Isso se tornou uma característica do meu trabalho. Quando comecei a escrever peças como Maratona, No Natal a Gente Vem Te Buscar, elas pareciam inviáveis. Quem lia, dizia: É impossível montar isso, não dá. A aparente impossibilidade vinha do fato de a ação se passar em muitos lugares, de a trama requerer muitos personagens. Se eu não tivesse passado pelo Pod Minoga, ia concordar que era impossível mesmo. Uma mudança começou depois que me afastei do Pod Minoga. Entretanto, foi acontecendo aos poucos. Maratona tinha muito de Pod Minoga, eu recorri bastante a alegorias, ao colorido característico, ao musical. Por meio da arte exorcizei ou aprendi a conviver com meus fantasmas e traumas. Em que estado eu estaria hoje se o caminho tivesse sido diferente? É bem verdade que ninguém pode responder a uma pergunta dessas. Atualmente, meu modo de trabalhar com os atores é diferente. No Pod Minoga, o texto, a direção e a interpretação nasciam juntos. Devo dizer também que havia naqueles atores um frescor, uma alegria de representar que eu nunca mais encontrei. Talvez porque tudo aconteceu na infância e adolescência deles – e na minha – por que não? O forte do Pod Minoga eram a comédia, a sátira. Tristeza, nem pensar. Até tentamos em Cenas da Última Noite, mas em seguida vieram as Folias Bíblicas, comédia total. Nesse espetáculo apenas contribuí com meu primeiro texto, um monólogo escrito especialmente para Mira Haar. A personagem, Dodó Galvão, era a presidente de um grêmio literodramático. Exuberante, ela se apresentava ao público e contava sua vida cheia de boas intenções e aventuras. Era uma espécie de supermulher, benemérita, praticava caridade. Missionária, converteu índios, africanos, hereges. Mira fazia com brilho dona Dodó Galvão. Aprendi vendo o que os outros faziam. O Teatro de Arena, as direções do Augusto Boal me ensinaram muito, embora eu não soubesse que estava aprendendo. Eu assistia quase obsessivamente às peças do Arena, quatro, cinco vezes. Mudava só de lugar. Aquilo me fascinava. E no Oficina vi as peças extraordinárias dirigidas pelo Zé Celso com um elenco fantástico, cenários e figurinos do Flávio Império! Claro que eu vi outras coisas também, vi tudo o que se apresentava no Teatro Bela Vista. Mas meu maior aprendizado aconteceu no Teatro de Arena e no Oficina. Eu adorava ir ao teatro pelo simples prazer de ir ao teatro. Meu amigo João Cândido Galvão me apresentou ao Teatro Popular do Sesi, que ocupava o Teatro Taib. Saudade de teatros como o ótimo Bela Vista, destruído para dar lugar ao Sérgio Cardoso, e o Teatro Federação, na Brigadeiro Luís Antônio, que depois virou o Teatro Cacilda Becker. Era muito bom subir aquela escada íngreme enquanto via as fotos das peças encenadas naquele espaço. Capítulo XII Vila Sésamo Meu primeiro trabalho profissional foi Vila Sésamo, a convite do multitalentoso maestro e produtor Cláudio Petraglia. Ele me conheceu na época em que eu fazia bonecos e dava de presente para amigos em aniversários e Natais. Como tinha ouvido falar dos tais bonecos, foi me visitar. Depois de ver o que eu fazia, que não tinha nada a ver com o que ele procurava, me mostrou uma foto do Big Bird e perguntou se eu seria capaz de fazer algo parecido. Sem pensar, eu disse sim. Depois que ele saiu, tive uma crise de choro. Nunca tinha visto aquilo, eram bonecos americanos impecáveis, sensacionais, tecnicamente diferentes de tudo o que já tinha sido feito no Brasil. Mas, apostando no vamos ver no que vai dar, cumpri minha palavra. Fiz os bonecos. Não muito bem, reconheço, mas o poder da televisão e a alta qualidade daquele projeto tornaram-nos muito populares. Cláudio Petraglia foi o primeiro e melhor produtor de Vila Sésamo, e o encenador Ademar Guerra dirigiu a primeira série, produzida nos estúdios da TV Cultura. Contratado para fazer a manutenção dos bonecos – sempre havia problemas com o bico, os olhos ou o braço bobo do Garibaldo – eu ficava de bobeira, sempre à espera de algum trabalho. Foi quando aprendi a tomar café, coisa que até então era pra mim um tanto repulsiva. Eu morria de vontade de fazer outras coisas, mas não deixavam. Tinha uma vontade imensa de trabalhar na adaptação dos scripts, ficava horas e horas lendo os roteiros. Mas a dramaturgia era atribuição de outras pessoas, e não me deixavam participar. De tanto cuidar daqueles bonecos, acabei entrando no café. Graças a Deus, não aprendi a fumar. A segunda fase deveria ser dirigida por Antônio Abujamra, mas ele não gravou um dia sequer. Ficou de tal forma enfurecido com alguma coisa que aconteceu no estúdio, ou no projeto em si, que se mandou. As gravações, então, eram feitas nos estúdios do SBT, ao lado do lixão da Vila Guilherme. O lugar fedia a carniça, era um mar de urubus comendo animais mortos. Técnicos e atores viviam cobertos de moscas. Era uma coisa pavorosa. Nunca vou me esquecer do dia em que terminaram as gravações da segunda temporada. Aracy Balabanian saiu do estúdio da Vila Guilherme de costas e fez um juramento de nunca mais pôr os pés naquele lugar. A terceira série, mais uma série de remendos, decadência total, foi gravada no pequeno estúdio da antiga TV Globo, na Praça Marechal Deodoro. Entrei no projeto para fazer os bonecos Garibaldo, Gugu, Funga-Funga e fiquei até o melancólico fim. Vila Sésamo, para mim, serviu mais para consolidar meu nome do que qualquer outra coisa. Aprendi algo de tanto ler roteiros. Mas não pude praticar a escrita, pois eu era o cara dos bonecos. É bem verdade que vivi daqueles bonecos por um bom tempo e criei alguns para filmes comerciais. Meu irmão, Beto de Souza, que começou como meu assistente e sempre foi muito mais habilidoso do que eu, virou um profissional de mão-cheia e hoje encara projetos dificílimos. E foram meus trabalhos com o Pod Minoga e em Vila Sésamo que me fizeram ser chamado para a cenografia e os figurinos de El Grande de Coca-Cola. Capítulo XIII El Grande de Coca-Cola Essa criação teve um lado de muito encanto. Finalmente eu atuava de fato no teatro profissional, via meu nome impresso no programa, nos cartazes. Eu tinha uma afinidade muito grande com o mundo de que tratava o espetáculo, o universo do teatro de revista vagabundo, de que eu gostava demais. O elenco também era muito interessante. Armando Bógus, ator de quem eu nunca vou esquecer, Laerte Morrone, Ricardo Petraglia em começo de carreira, Suely Franco e Cacilda Lanusa. Cacilda era genial, uma atriz brilhante, especial. E Suely Franco continua maravilhosa. Cacilda infelizmente escolheu outro caminho. Era uma grande atriz, é uma pena não vê-la mais no palco. O diretor, o grande cineasta Luís Sérgio Person, que tinha filmado São Paulo S. A. e O Caso dos Irmãos Naves, era uma pessoa difícil. Sóbrio era um encanto de pessoa; mas, quando embriagado, terrível. Foi difícil para toda a equipe. O bom foi que entre mortos e feridos salvaram-se todos, e ele dirigiu muito bem, apesar das dificuldades surgidas no caminho. Encenou com muita precisão o espetáculo, que foi um grande sucesso, virou o que hoje se chama cult. As pessoas voltavam várias vezes para ver. Celso Curi a assistiu umas dez vezes. O visual do espetáculo era bem definido, os cenários, os figurinos, uma coisa decadente, um luxo fajuto, coisa do tipo Pod Minoga. Foi a primeira vez que a crítica do jornal O Estado de S. Paulo, Mariângela Alves de Lima, falou mal de meu trabalho. E nunca mais parou de fazer isso. Muitas vezes, meu nome foi omitido. Ela não gosta da minha arte e ponto-final. Deixa pra lá. Quando nos encontramos, agimos como pessoas civilizadas. Em El Grande de Coca-Cola, e nas produções do Pod Minoga, eu desenvolvi uma marca pessoal na linguagem, na cor,no desenhodo espetáculo. Éum traço meu que já estava presente lá no início. Mais de dez anos depois, o produtor Adaury Dantas quis montar uma nova versão de El Grande de Coca-Cola no seu Teatro de Arena, do Rio de Janeiro. Adaury não poupou esforços e nos proporcionou uma produção esplêndida. Figurinos maravilhosos de Rita Murtinho, cenário meu, com toques do restaurante Assyrio, e um elenco que hoje não seria possível juntar – Pedro Paulo Rangel, Diogo Vilella, Raul Gazolla, Guida Viana e Zezé Polessa. A música, especialmente composta por Marcos Leite, era a delícia das delícias. A crítica e parte do público nos acusaram de fazer propaganda da Coca-Cola. Não mesmo! Capítulo XIV Caminho Meu caminho, embora trabalhoso, não foi dos mais difíceis. Tem gente talentosa que tropeçou bem mais durante o percurso. Não tive nem tenho, claro, unanimidade. Mas tive uma boa recepção, sim. Em Maratona, que foi minha primeira exposição como escritor e diretor, assumindo a autoria plena do trabalho, teve gente que ficou decepcionada por eu não fazer mais criações na linha Pod Minoga, mas outros se revelaram fãs ardorosos. Houve quem gostasse muito do primeiro ato e detestasse o segundo. E também o contrário. Para mim, que ali começava, as opiniões pareciam o som de duas orquestras, uma tocava música sacra, e outra, música eletrônica. Mas o resultado de público foi bem positivo. Ao contrário, o final de Vila Sésamo foi deprimente. Contratado pela Globo, fiquei um ano sem fazer nada, porque não queriam que eu fosse para outra emissora. Capítulo XV Falso Brilhante No segundo semestre de 1975, Myriam Muniz me convidou para fazer cenários e figurinos de um show com Elis Regina, César Camargo Mariano e banda, que viria a se chamar Falso Brilhante. Eu não tinha uma imagem muito positiva da Elis, não era um fã, gostava mais da Nara Leão, Maria Bethânia, Chico Buarque. Grande cantora, Elis tinha uma imagem pública perturbadora, agressiva. Quando Myriam me convocou, a ideia do trabalho era um breu absoluto. Ela não tinha a menor ideia do que ia fazer, só sabíamos da missão de melhorar a imagem pública da cantora. Fiquei bastante excitado e aceitei o convite, principalmente porque era a maior chance de ficar ao lado da Myriam, que eu tanto admirava. E também me sentia atraído pela proximidade do Flávio Império, grande amigo da Myriam. Sentia em relação a ele uma admiração apaixonada e ao mesmo tempo um medo pavoroso que me pelava, porque Flávio tinha um jeito crítico, um humor feroz, muitas vezes de extrema acidez. Isso me balançava. Já conhecia e admirava a sua obra pelos trabalhos que fez no Arena, no Oficina e em muitos teatros. Lembro dele de terno e gravata dando aula na Faap. Um dia Flávio me aterrorizou. Eu estava na secretaria dos cursos com um pedido para fabricarem um material que precisava usar em minhas aulas. Eram cubos grandes de madeira os quais crianças e adolescentes podiam manipular para montar cenários. Eu estava debruçado no balcão mostrando o desenho que seria passado para o marceneiro quando, de repente, senti alguém atrás de mim. Virei e vi Flávio Império, com um sorriso de enregelar. Encostou o queixo no meu ombro e disse, rindo: As crianças vão cair, bater com a têmpora na quina do cubo e vão morrer! Quase cancelei o pedido. Eu o adorava, mas sempre com certa reserva, um pé-atrás, porque em muitas ocasiões, sem que eu entendesse a razão, ele me magoava. Isso aconteceu desde que a gente se aproximou. Mas o que está claro pra mim hoje, sem dúvida, é que eu tinha uma tremenda admiração por ele. Os ensaios de Falso Brilhante aconteceram em sua maioria na Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, na casa que foi do Mário de Andrade. Ali funcionava a escola da Myriam e do Silvio Zilber, a primeira escola Macunaíma. Lá eu conheci J. C. Violla, convidado para fazer a preparação corporal de Elis e dos músicos. Myriam Muniz e Silvio Zilber, donos da escola, davam aulas de interpretação. E tinha também, nessa mesma casa, sessões de psicanálise com Roberto Freire. Às vezes, as coisas se misturavam e eu não apreciava muito. Era um ambiente agitado, criativo, mas, para o meu gosto, dominado por aquele tipo de psicanálise em que eu não botava muita fé. Depois de inúmeras reuniões e trabalhos de mesa, começamos a ensaiar o show. Ouvimos o material que eles já cantavam e tocavam, sugerimos outras músicas e o roteiro foi tomando forma. Foram seis meses de intensa convivência. Embora se esboçasse uma biografia, tomamos o cuidado de não mexer na vida pessoal da Elis. Pensamos o roteiro como se fosse o retrato da carreira de muitos artistas, um percurso que tinha início de infância e seguia pela vida, passando pelos altos e baixos de qualquer carreira. O final do primeiro ato, momento de forte crise, era quase uma crucificação, Elis cantava usando uma camisa de força, sob um imenso boneco que a achatava. A plateia delirava. O segundo ato, ora sentimental, ora com algo de político, mostrava cenas de uma boa carreira e terminava num auge, um apogeu, uma feliz celebração no meio do público. Foi um show feito para a cantora e para a plateia que a idolatrava. Ensaiamos numa época sombria, cheia de incertezas e perigos. Artistas eram visados pelos militares, muitos foram submetidos a interrogatórios e coisa pior. Naqueles dias morreu Wladimir Herzog, e a tensão aumentou. Elis era dedicadíssima, disciplinada. César Camargo Mariano, então seu marido, fazia a direção musical e os instrumentistas participavam ativamente dos ensaios. Todos faziam as aulas do Violla. Formamos um conjunto tão profissional e afetivo que não podíamos imaginar o que aconteceria depois. Para Falso Brilhante eu desenhei cenários, figurinos e bonecos, confeccionados à mão por mim e pelos integrantes do Pod Minoga. Desenhei também o programa, criei imagens que são usadas até hoje na capa do CD. Meus desenhos foram grosseiramente alterados por um arte-finalista da gravadora sem minha autorização. Mas tudo tinha a minha marca. O próprio roteiro, feito com Myriam, Elis e César, tinha certa familiaridade com os do Pod Minoga. E em tudo estava também a forte personalidade da Myriam, talvez a minha atriz favorita. Os figurinos não foram confeccionados por mim, é difícil um figurinista executar, cortar e costurar figurinos. Meus desenhos foram passados para uma confecção de propriedade de um aluno da Myriam. É preciso falar sobre essa questão, pois ela me incomoda muito e gostaria de esclarecer as coisas. Os meus desenhos, não só para Falso Brilhante, mas para todas as peças às quais concebi figurinos, não são certinhos, não têm aquela estética padronizada, semelhante à daqueles profissionais das lojas da região da 25 de Março. São croquis feitos por um artista plástico profissional de palco, alguém que indica o formato da roupa e se entende com quem vai cortar e costurar. Meus desenhos criativos foram redesenhados e a confusão se estabeleceu. Minha criação foi alterada e os figurinos atribuídos a outra pessoa. Meus desenhos desapareceram, mas continuo afirmando: as ideias eram minhas. Não gostei completamente do que foi executado, pois foram usados tecidos sintéticos vulgares e enfeites que, vistos de perto, tinham um aspecto que me desagradava. Preciso falar também de outra situação confusa, dessa vez com um grande artista, um grande amigo, um mestre. No dia em que Flávio Império morreu, um jornalista escreveu matéria em que atribuiu o cenário de Falso Brilhante ao Flávio. Fiquei numa situação difícil, tendo que desmentir o engano numa hora tão triste para todos nós. Fui salvo por um amigo também jornalista, que se manifestou e restabeleceu a verdade: Alberto Guzik, autor desta entrevista. Flávio deu um apoio amoroso, amigo, durante a montagem. Como era artista de pôr a mão na massa, nos ajudava a costurar, pintar, era uma deliciosa companhia. Nunca pretendeu ser autor daqueles cenários. Ele foi grande por si, muito maior que eu. Flávio, sem frescura, foi mestre de uma geração. O show, assim que estreou, se revelou um sucesso estrondoso. Era uma produção que a cidade nunca tinha visto e, de certa forma, nunca voltaria a ver outra igual. Um grande trabalho, em todos os sentidos. Se não tivesse acontecido lamentável desentendimento, uma belíssima parceria artística poderia ter dado continuidade a Falso Brilhante. Como nos tornamos muito amigos durante o tempo da criação do show, nunca assinamos contrato de nada. Nem eu nem Myriam nem Violla assinamos contrato. E o que ganhamos durante os seis meses da criação foi um cachê simbólico. Verbalmente, com Elis e sua produção, estava acertado que eu e Myriam iríamos receber 5% da renda bruta da bilheteria. Estreado o espetáculo, o que tinha sido verbalmente acertado foi esquecido. Sem contrato assinado previamente nem acordo entre as partes, o caso foi parar na justiça e nos meios de comunicação. Um escândalo se armou naquele começo de 1976. Ficamos todos muito mal. Eu tive que fazer análise, pois nem me conformava nem gostava de estar num barraco daqueles. Pensei até em abandonar a carreira, voltar a ser professor. Durante um ano a história se arrastou até que, graças à interferência do Paulo Autran, os advogados fizeram um acordo. Recebemos uma quantia ridícula. Mas, apesar de tudo isso, Falso Brilhante também foi outro marco para mim. Com o tempo raiva e mágoa foram perdendo a nitidez. Na minha opinião, Myriam saiu mais machucada do que eu. Nunca mais trabalhamos juntos, que pena! Queria ter escrito uma peça para ela, mas não o fiz. Ela era genial. Fiquei muito abatido, perdi a confiança, recusei fazer os cenários e figurinos da primeira produção de Os Saltimbancos, no Canecão do Rio. Fui até lá, conversei com toda a equipe, aceitei e, de volta a São Paulo, telefonei recusando. Grande erro! Deprimido, fui salvo pelo amigo Celso Curi, que me introduziu ao mundo da dança ao me indicar a Antônio Carlos Cardoso, então diretor do Balé da Cidade e coreógrafo muito original. Criei os cenários e figurinos de Nosso Tempo, que estreou no Teatro Municipal. Fiquei comovido ao ver meu nome na ficha técnica, numa tabuleta afixada na frente do teatro. Ainda estava longe o tempo dos banners e dos artistas gráficos de hoje. Tudo era resolvido por um simples pintor como o seu pincel. Capítulo XVI Maratona Maratona foi a primeira peça que escrevi e dirigi. Como contei antes, conheci o Violla durante os ensaios de Falso Brilhante, e aí estabelecemos uma parceria que se revelaria importante para a carreira dos dois. Escrevi Maratona para o Violla e a Regina Wilke, uma estudante de arquitetura e integrante do Pod Minoga. Pouco antes de Maratona, havia feito com os dois um exercício teatral chamado Quem é Gilda?, no Pod Minoga. Foram só algumas apresentações. Uma coisa bem experimental mesmo, curta, que apresentamos umas poucas vezes. Acho que era muito ingênua. Mas levantei ali alguns temas que foram retomados em Maratona. A partir de Quem É Gilda? comecei a sentir a necessidade de escrever sobre assuntos que tinham mais a ver com a minha idade. Dez anos mais velho que os outros do grupo, não me sentia confortável. Os atores do Pod Minoga estavam com todo o gás natural da idade deles e eu me sentia um corpo estranho. Percebi que tinha me tornado um adulto havia um bom tempo e estava prestes a me transformar em um velho ridículo. Uma amiga, com humor e maldade, nos chamou de Naum e suas crianças amestradas. Era hora de mudar. Então comecei a escrever Maratona. Hoje, pensando em Maratona, reconheço que ela é aquela típica primeira obra de um autor, quando ele quer pegar o mundo com as mãos, explicar em 50 páginas o sentido da vida. Claro que na ocasião não percebi nada disso, não tinha condições. Escrevi com todo o entusiasmo do mundo. Quando saíram as críticas, fiquei muito chateado. Quase todas diziam que a segunda parte não cumpria o que a primeira prometia, que o texto resultou desequilibrado. Um crítico dedicou duas páginas inteiras da revista IstoÉ, se não me engano, para me esculachar. Um cineasta, que eu só conhecia de vista, disse-me a seguinte frase: O desastre é iminente. Não entendi até hoje por que razão aquele moço disse aquilo. Como minha tendência era prestar mais atenção nas críticas negativas do que nas positivas, levei sustos e aprendi a nunca mais perguntar, após uma estreia: E daí, você gostou? Há muito tempo evito ler críticas e, se algum abelhudo vem contar que falaram mal de mim, viro inimigo. Embora algumas pessoas gostassem muito do segundo ato de Maratona, eu mesmo, ao longo dos anos, fui gostando cada vez menos. Acho que eram seduzidos pelo visual e pela mistura de linguagens. Quase tudo o que escrevi nesse segundo ato foi resultado de minha imaturidade. E hoje proíbo montagens de Maratona, mas tem gente que insiste. A cada três anos aparece alguém querendo montar. É um texto do qual nem eu mesmo tenho cópia. Não sei como ele circula, mas já apareceram pedidos de várias partes do Brasil. Nunca foi publicado em livro, nunca saiu na revista da Sbat. Provavelmente anda por aí em cópias xerox. Embora eu não goste que a encenem, Maratona teve função muito importante, foi um marco, o meu primeiro texto longo, que trazia sementes de obras que viriam no futuro, como No Natal a Gente Vem te Buscar e A Aurora da Minha Vida, por exemplo. Então, em 1977 escrevi Maratona, e a montagem acho que foi em 78. Escrevi o roteiro seguindo sempre uma tendência minha, que é contar histórias que se estendem por longos períodos. A peça começa com duas crianças que depois se tornam dois adolescentes e, por fim, dois adultos. No Natal... e A Aurora... têm estruturas mais ou menos parecidas. Os adultos artistas de Maratona terminam frustrados, cheios de desencanto e dúvidas. Essa era a experiência que eu não tinha e desconhecia. Escrevi a peça, fiz os cenários e dirigi. O figurino não foi meu, mas de uma estilista, Ana Frida, uma artista de muito bom gosto que fazia coisas muito delicadas, mas não tinha conhecimento de teatro. Criou peças lindas, mas quando começaram os ensaios com figurinos, as roupas se revelaram uma armadilha. Eram todas fechadas por botões e casas minúsculos e os atores tinham que se trocar no escuro. Tragédia que foi solucionada. Minha primeira direção pecou pelo excesso. Tinha muitos acessórios, e eu fui acrescentando coisas até a última hora. Eu tinha vindo do Pod Minoga, com aquela tendência para o barroco, o uso das artes plásticas. E Maratona, no segundo ato, tinha um grande número de alegorias, acredito que incompreensíveis para o público. A estreia de Maratona em Santo André foi um desastre. Não estávamos com a peça pronta, mas o produtor, o psicanalista doutor Flávio Gikovate, um entusiasta das artes, muito generoso com a gente, assinou contrato com o Teatro Municipal de Santo André, tínhamos por obrigação estrear em determinada data. Aconteceu. A peça não estava acabada, os dois atores eram completamente inexperientes, o diretor, eu mesmo, também era bastante inexperiente. Dois atores e uma produção exagerada por mim concebida. Nem tivemos tempo para um ensaio geral razoavelmente decente. Dados os três sinais, começamos a peça. Estava indo muito bem, até que chegou num ponto em que o Violla e a Regina se enganaram com o texto ainda mal-assimilado – detalhe: eu vivia reescrevendo – e começaram a repetir o que já haviam falado. Várias vezes, e nenhum dos dois tinha experiência para chutar a bola para frente. A coisa foi ficando cada vez mais encrencada, os dois em lágrimas, apavorados, eu na coxia pensando em me enforcar nas cordas. De longe, eu gritava o texto, mas Regina e Violla, naquele imenso palco do Teatro de Santo André, nem ouviam. Gritei para o moço da cortina: Fecha! Tremendo, fui para frente da cortina e expliquei ao público (graças a Deus, tinha um pingo de gente, porque ninguém nos conhecia naquele tempo) que a peça ainda não estava pronta, mas que nós íamos terminar de qualquer maneira. Seguiu-se um longo intervalo, alguns foram embora reclamando. Antônio Petrin, o ator, meu bom amigo, sentado na plateia, tinha uma expressão de pavor no rosto. Conversei com meus atores, cortei quase todas as cenas do malfadado segundo ato e fomos direto para o final. Ficou uma coisa completamente sem pé nem cabeça, embora visualmente bonita. Voltamos para casa arrasados, chorando, certos de que nunca mais na vida íamos ter outra chance. O produtor, doutor Flávio, nos estimulou a continuar. No segundo dia, chegamos cedo ao teatro, analisamos os erros e fizemos uma apresentação mais digna. No terceiro espetáculo, entre acertos e erros, a peça fluiu. Maratona foi a primeira experiência do J. C. Violla como ator. Ele era bailarino e professor. Nosso encontro foi muito intenso, porque talvez eu tenha visto nele o ator ideal para as coisas que eu tinha na cabeça. Muito pelo fato de dançar, Violla era uma figura exuberante. Na época tinha 27 anos e não dava para entender como uma pessoa com aquele talento ainda não tinha acontecido. Antes de Falso Brilhante, nunca tinha ouvido falar no Violla. E ele, sem querer ou saber – nem eu sabia –, acabou fornecendo o tema central de Maratona. Violla era um bailarino excepcional, um artista consumado, mas conhecido por pouca gente. Maria Duschenes, a grande mestra do balé moderno no Brasil, a húngara que veio morar aqui e trouxe com ela as técnicas de Laban, adorava Violla. Era o aluno dileto, o correspondente masculino de Juliana Carneiro da Cunha. Ele estava sempre se preparando, mas nunca estava pronto. Dava a impressão de que ou tinha medo de se expor pra valer ou tinha estabelecido para si mesmo uma data, um dia para ficar pronto. Maratona fala de uma pessoa que quer ficar perfeita, mas não tem coragem de se jogar, de encarar os erros e acidentes necessários a uma carreira artística. Eu sentia o Violla um pouco assim. Ele ficava muito protegido pelas aulas. Mesmo querendo ser um artista, não se jogava. O talento de intérprete mais aquela formação corporal precisavam de um empurrão. Além de ter-se revelado um ator que falava bem o texto, ainda dominava as técnicas de corpo, que depois usamos em Depois do Arco-Íris (texto escrito a quatro mãos com Alberto Guzik), o qual dirigi no Teatro de Dança que funcionava na Sala Galpão, onde é hoje a Sala Dina Sfat do Teatro Ruth Escobar. Como eu vinha de uma série de trabalhos como cenógrafo e figurinista, muitas matérias e críticas se referiam a mim da seguinte maneira: peça do cenógrafo e figurinista... Eu nunca era citado como diretor. Pode ser que a função do diretor se confunda com a do dramaturgo, do cenógrafo, do figurinista. Na época da estreia de A Aurora da Minha Vida, entre elogios, um crítico escreveu que se outro diretor tivesse encenado o texto, teria sido melhor, teria rendido mais. Talvez, quem sabe? Capítulo XVII Macunaíma Entre Maratona e No Natal a Gente Vem Te Bus-car aconteceu Macunaíma, direção de Antunes Filho, um dos diretores que tenho como mestres. Eu trabalhava na TV Globo, ainda na Praça Marechal Deodoro, na agonia do Vila Sésamo ou já em novo projeto, talvez na cenografia das aulas de inglês do Telecurso Segundo Grau. Um dia, Antunes foi me procurar – ele já estava trabalhando no Teatro São Pedro, ali perto – na porta da Globo, me chamou pra conversar e convidou para trabalhar com ele como cenógrafo e figurinista em Macunaíma, projeto que nos absorveu durante um ano inteiro. Cheguei a viajar com o grupo para os Estados Unidos, para a Europa. Antunes já me conhecia havia muitos anos e tinha acompanhado um pouco do meu trabalho pedagógico. Por recomendação de alguém, ia ver espetáculos dos meus alunos na Faap, acompanhou as peças montadas na Rua Mato Grosso – Nero, Júlia Pastrana – e tudo o que foi montado no Pod Minoga. Naquele início de Macunaíma, ainda estava com a direção de uma nova montagem de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, com Raul Cortez e Tônia Carrero. Já apaixonado por Macunaíma, não parecia muito feliz com Virginia Woolf. Impressão minha da época, posso até estar equivocado. Antunes, naquele ponto, queria dar uma guinada na sua, até então, brilhante carreira no teatro, na televisão e mesmo no cinema. Não cheguei a assistir a Virginia Woolf. Só vi a versão dirigida por Maurice Vaneau, com Cacilda Becker, Walmor Chagas, Lilian Lemmertz e Fúlvio Stefanini, um espetáculo arrebatador. Antunes organizou um grande teste ao qual muitos atores, em sua maioria jovens, compareceram. Houve a primeira seleção e uma intensa programação foi estabelecida. Antunes fazia os laboratórios de interpretação, com ênfase na vida indígena, Murilo Alvarenga trabalhava a parte musical e eu, as artes plásticas, usando o mesmo método de estímulo à criatividade que usava com meus alunos. Materiais tradicionais e muitos outros, como os jornais que acabaram por dar uma forte identidade visual ao espetáculo. Desde o trabalho com crianças e adolescentes caiçaras, acontecido em Ubatuba no começo da década de 1960, eu me especializara em transformar lixo em arte. O primeiro grupo era integrado por cerca de 30 pessoas selecionadas nos testes. Estavam ali atores mais velhos e alguns inteiramente estreantes. Não foi um processo fácil. Foi árduo para todos os envolvidos. Não havia quase dinheiro, Antunes era obrigado a se virar com uma verba muito pequena saída da Secretaria de Cultura. Macunaíma, um livro complexo, de difícil leitura, foi esmiuçado pelo elenco, no qual se destacaram as cabeças brilhantes de Isa Kopelman, Mirtes Mesquita, Cacá Carvalho, Theodora Ribeiro, Jair Assumpção, Luiz Henrique, Beto Ronchezel, Guilherme Marbach, Ilona Filet, Salma Buzzar, Ângela Ribeiro e outros. Dia e noite aquele elenco trabalhava em duras condições. Laboratórios, aulas de música, artes plásticas, leitura de montes de livros, seminários e palestras. Comiam e dormiam mal. Na verdade, as improvisações feitas pelo elenco com Antunes deram origem ao texto final, compilado por Jacques Thiériot a partir de gravações dos laboratórios. Uma boa parte das cenas finais foi resolvida pelo próprio Antunes à medida que a estreia se aproximava. Macunaíma teve um processo criativo mais ou menos parecido com o que eu empregava com meus alunos. Os atores recontaram Macunaíma. Isa Kopelman, que depois trabalharia comigo na produção paulista de No Natal, foi um dos esteios do Macunaíma. A contribuição intelectual dela foi muito importante, porque sempre foi estudiosa, uma cabeça pensante, uma inteligência fora do comum. Depois de tantos meses de preparação, chegou uma hora em que era preciso terminar aquela fase, tínhamos de parar com aqueles eternos laboratórios. Era um espetáculo que dava a impressão de que não ia estrear nunca. Ficou visível o cansaço do processo. Os atores foram se tornando feios, magros, por causa do excesso de atividade. Na reta final, Antunes fez uma amarração e dirigiu o espetáculo. Eu fui o responsável por cenário e figurinos. Mesmo com a minha condução, não há dúvida de que houve participação dos atores em toda a criação, como ocorreu com o texto, e também na parte musical. Aproveitamos muitas coisas que tinham sido elaboradas no processo, mas outras, como os figurinos da cidade, eu tive que desenhar e mandar fazer. Macunaíma foi um trabalho que na época me deixou muito confuso. Foi difícil para todo mundo. Como havia durado muito tempo aquela longa criação, às vezes tinha a impressão de que eu não havia feito nada. Uma sensação desagradável. Tive muitos pesadelos com Antunes e Macunaíma. Foi um período sofrido e as más recordações custaram a passar. Quando apresentamos em Nova York, John Orberg, o mesmo que construiu a arquibancada do Pod Minoga, na Oscar Freire, foi assistir. Por acaso, ele tinha sido meu assistente na ceninha do Peer Gynt, para a qual Antunes havia pedido que eu criasse um efeito visual para o monólogo em que Stênio Garcia, no papel-título, comparava a vida a uma cebola. Era a cena da constatação do vazio interior, um texto brilhante. Então, inventei um trio de atrizes nuas, o corpo branco de pó, cobertas apenas por um véu transparente, e elas ficavam indo e vindo, passando por trás de Stênio. Depois de ver Macunaíma, John disse: Olha que coisa engraçada, as estátuas de Macunaíma lembram a cena da cebola em Peer Gynt. Só então comecei a refazer minha cabeça. Um velho cenógrafo americano, chamado Kermit Love, que conhecia meus desenhos por intermédio do John, tinha visto Macunaíma no mesmo dia. Depois, conversando, Kermit disse que o espetáculo era a cara dos seus desenhos! Só assim comecei a me sentir mais seguro, a ter mais certeza de que tinha feito alguma coisa. Foi bom participar do trabalho, ganhei prêmios, Macunaíma marcou muito minha carreira. Depois, Antunes Filho tirou meu nome dos créditos. Não sei por que ele fez isso. Fui assistir novamente ao espetáculo e vi que uma das atrizes do elenco assinava os figurinos. Eram os mesmos ou quase iguais, o meu trabalho ainda estava no palco. O primeiro cenário, feito para o Teatro São Pedro, um grande telão pintado com milhares de pontos de cor, por dificuldade de adaptação em outros teatros, desapareceu na primeira viagem, enquanto eu ainda estava comprometido com a produção. Foi substituído por uma rotunda preta. Um pouco da beleza plástica inicial sumiu com aquele belo telão. Para essa primeira versão eu também havia pintado no chão uma enorme árvore. O telão, o piso do palco, os corpos dos atores – um quadro tridimensional. E Antunes, bom iluminador, fez uma luz muito simples e bonita. Esses elementos de cenografia podem ter mudado, mas os figurinos continuaram sendo aqueles que eu havia concebido com apoio do primeiro grupo de atores. Hoje reconheço que Macunaíma sem dúvida deixou um legado importante para mim. Foi um período difícil, mas deixou um saldo muito positivo. Foi a única vez em que trabalhei próximo do Antunes Filho, artista que tem uma rara noção de plástica e composição. Macunaíma, que estreou com mais de quatro horas, ao longo do tempo foi sendo encurtado. Cacá Carvalho, o genial ator que criou Macunaíma, assim como muitos outros, saiu da companhia para seguir carreira. Capítulo XVIII Algumas Considerações sobre uma Dramaturgia Nascente Depois de Maratona, parti para o meu segundo texto, que nasceu durante as viagens de Macunaíma. Sem que eu perceba, certas ideias me assaltam. Vivo à procura. Muitos autores trabalham com mais organização do que eu. Até certo ponto, meu processo de criação sempre foi tumultuado. As ideias aparecem sabe-se lá de onde, mas eu sei que elas sempre surgem de uma tentativa de entender a vida, não tenho dúvida. No primeiro ato de Maratona, eu colocava em foco, primeiro, duas crianças e, depois, dois adolescentes, e terminava com dois adultos. Já em No Natal... eu parti para uma temática mais ampla, com foco mais preciso, mas sem perceber exatamente que fazia isso. Nunca soube com clareza por que estava escrevendo alguma coisa. Mais tarde é que você olha para trás e diz: Nessa obra eu estava tentando explicar aquele fato, ou explicar para mim mesmo por que aquilo aconteceu, por que eu me formei assim. Tem gente que diz que é um processo analítico. Pode ser. Nada de psicanalítico. É um processo analítico que vem junto com o ficcional. O ficcional é muito forte. Você adota um modelo que pode ser até seu conhecido, mas aquele não é único, você não é fiel a ele. Pegamos coisas daqui e dali e quando vemos, percebemos dez satélites girando em volta, dando condições de criar um personagem. Em No Natal a Gente Vem Te Buscar, a figura da Solteirona foi baseada em lembranças familiares, mas sempre foi claro para mim que não estava escrevendo uma biografia. No início de Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, o personagem Pai mata o rapaz que seduziu sua filha dentro de um templo protestante. Uma pessoa amiga, depois da estreia, perguntou à minha mãe: Aconteceu tudo isso? E ela respondeu: Meu marido nunca matou ninguém! Minhas três primeiras peças têm tramas que se passam em diversas idades. São obras longas, e muitas encenações posteriores cometeram cortes excessivos, como os que fiz eu mesmo em 2008, para uma produção de No Natal..., no Rio de Janeiro. Ficou leve demais, perdeu-se muita coisa. Pressionado, senti medo do cansaço do público de hoje, sobretudo o carioca, que comparece em maior número aos musicais ou monólogos cômicos, muitos de natureza feminista, com farta referência à vida sexual. Não tenho nada contra, se o texto e o intérprete forem bons. Grande parte do público carioca, hoje, é composto pelas famosas velhinhas das vans que preferem se divertir em espetáculos curtos. Maledicência ou não, vale registrar que se o espetáculo for longo, as senhoras podem ficar em apuros para ir ao banheiro. Funcionários dos teatros contam em segredo que algumas poltronas têm que ser reestofadas. No Natal..., desde sua estreia, há quase 30 anos, teve no papel da Solteirona grandes atrizes como Isa Kopelman, em São Paulo, Marieta Severo, no Rio, Mirna Spritzer, em Porto Alegre, e Cecília Guimarães, em Portugal. A temporada carioca de 2008 mostrou pouco fôlego no que diz respeito ao público. Nem as ótimas críticas influenciaram. Um dos produtores me contou que as velhinhas acham a peça bonita, mas muito triste. E uma conta à outra, aconselha a não ir. Os espertos empresários que as buscam e conduzem aos teatros aconselham: Quer ganhar dinheiro? Monte um musical. Triste situação. A televisão, veículo de inegável eficiência, bela fonte de sustento para tanta gente, fez um estrago considerável. Infelizmente, poucas vezes o teatro consegue sustentar aqueles que o praticam. Mas tudo continua. Nunca o teatro jovem foi tão vivo. São Paulo, sede do Teatro da Vertigem, dos Satyros, dos Parlapatões, do Circo Zanni e de outros pequenos espaços e grupos que surgem a toda hora, fervilha de criatividade. Cursos de dramaturgia, seminários, novos auto-res, diretores, atores, leituras públicas que não mais condenam os textos à prisão das gavetas. No Rio e nos demais Estados, o panorama não é diferente, o que se faz no Brasil circula mais, tem mais visibilidade. Nunca, como agora, o teatro foi mais vivo. Capítulo XIX Processo de Escrita Vou falar um pouco do meu processo de escrita, que nada tem de excepcional, mas dá trabalho, porque não acerto na primeira versão. Antes, no tempo da máquina de escrever, os textos eram montados com tesoura e cola, não existiam as facilidades do computador. No Natal...., A Aurora... e Um Beijo..., antes de publicadas em livro, tiveram mais de 20 versões cada uma. Eu as encadernava, os volumes ficavam grossos. O primeiro passo é a escrita de um relato, um conto, sem preocupação de estilo. Elaborado esse conto, eu o divido em seqüências, já pensando no palco. Depois, cada seqüência é recheada de fatos, idéias, esboços de diálogos que surgem ao acaso. Escrevo biografias extensas de cada personagem, colho bastante material. Muitas leituras são necessárias e em cada uma faço mais anotações. Durante esse trajeto pode haver alterações na ordem das sequências, o que era começo pode virar fim, pode virar o meio. Geralmente sou muito caudaloso, muito material precisa ser cortado. Mas posso acrescentar mais, também. No Natal a Gente Vem Te Buscar, em São Paulo, teve um final de ato que depois foi modificado. Na última cena do primeiro ato, o personagem do Primo era seduzido por uma tia ninfomaníaca. Cortei a cena na produção do Rio de Janeiro porque era excessiva, não havia razão para ela na peça. A cena era bem escrita e me fascinava a ideia de aquela tia seduzir o rapaz na hora da escola dominical. Só para eu me vingar das lembranças da escola dominical? Masnãocabia.Vaificarparaoutrapeça. Capítulo XX No Natal a Gente Vem Te Buscar A estreia desastrosa de Maratona foi dura, mas útil como experiência. Claro que voltei a errar, mas com menos intensidade. A encenação de No Natal... foi até certo ponto simplíssima. Até certo ponto, pois não foi fácil pôr no palco sua longa história, que ocorria da infância à velhice, em muitos ambientes. Como já contei antes, algumas pessoas leram a peça assim que a julguei pronta e me disseram que não havia possibilidade de ela chegar ao palco. Muitos ambientes, os mesmos atores fazendo as crianças, que se tornam adolescentes e depois adultos. Passa-se de um ciclo para outro com o auxílio de um pouco de música e da iluminação. Cortes possíveis apenas no cinema. E havia dúvidas: Como eles vão envelhecer? Prevaleceu minha experiência no Pod Minoga e a crença do tem que dar. Deu. Durante o processo de escrita já estava imaginando soluções para os problemas. As cenas se passam dentro de um trem, na plataforma de uma estação, no dormitório de um asilo para velhos, num quarto de crianças, outro de adolescentes, numa sala de jantar, num quarto de hospital. Tudo termina num asilo. A opção por uma cenografia simples, com quatro cadeiras, um guarda-roupas, uma geladeira velha e alguns biombos na parte de trás do palco resolveu tudo. A imaginação do público contribui de maneira poderosa. A geladeira, com o pinheiro natalino congelado, acabou tornando-se um símbolo inesquecível do final de No Natal... A primeira montagem da peça, em São Paulo, com Isa Kopelman, Alexandra Correa, J. C. Violla e Paulo Giandaglia (depois substituído por Roberto Arduin) foi feita na base do heroísmo e da boa vontade de todos os envolvidos. Não tínhamos um tostão. Quando começamos os ensaios, a peça não estava totalmente pronta, eu tinha um roteiro amarrado e algumas cenas já dialogadas, mas trabalhamos o tempo todo sem fazer laboratórios, foi pura escrita e ensaio. Se eu distribuísse prêmios, daria um para cada ator do valente quarteto, mas a Solteirona criada por Isa Kopelman foi tão extraordinária que ela ganhou por todos. À medida que os ensaios corriam, nem sempre na ordem de cenas da forma final, eu escrevia, reescrevia. Lulu Librandi, então diretora da Funarte, confiou em mim. E estreamos no teatro da entidade, a Sala Guiomar Novaes, em São Paulo. Sem patrocínio, precisamos investir algum dinheiro. Eu não era mais professor de artes plásticas, já atuava como cenógrafo e figurinista, o Violla dava aulas de dança, e os outros trabalhavam em diferentes atividades. Leda Senise fez os figurinos. Foi o primeiro trabalho dela. E era complicado, os personagens mudavam de idade, precisávamos de três a quatro figurinos para cada um, e os atores tinham que se trocar num segundo. A troca era feita à vista do público somente em uma cena, quando os meninos passavam da infância à adolescência. Leda concebeu roupas lindas que os atores vestiam umas sobre as outras para que as trocas fossem muito ágeis e não emperrassem a ação. O teatro foi-me ensinado pelo cinema. O texto parecia sugerir cortes e montagem, fusões suaves. Quase não vi teatro quando criança, ou adolescente. Fui ver teatro em São Paulo, já adulto. Minha experiência teatral antes disso foi pequena e veio das festas de Natal, Dia das Mães, na Igreja Presbiteriana Independente, no circo teatro, aquele gênero tão caro a artistas como Carlos Alberto Soffredini e Fernando Neves. E o Céu Uniu dois Corações, Vem Buscar-me que Ainda Sou Teu, O Ébrio, Sansão e Dalila, A Paixão de Cristo. Demorei a conhecer Ibsen, Shakespeare e outros autores. Em Pirajuí não se falava deles. Voltando a No Natal a Gente Vem te Buscar, sempre defendi a ideia de montar a peça com quatro atores. E a ideia que me inspirou foi a seguinte: tenho uma irmã mais velha que tem um jeito de observar as pessoas que, de certa forma, bem vagamente, passa para a personagem de No Natal. Ela tem um universo muito famíliar, então, sempre tem uma coisa assim na sua conversa: Não sei quem é tão parecida não sei com quem, a prima fulana é a cara da beltrana. Então, eu queria focar esse universo pequeno de semelhanças. Por isso eu insisto em que todos os personagens sejam vividos por quatro atores. Seria uma forma de chamar a atenção para esse universo de semelhanças, de confusões de parentesco criadas a partir da cabeça da Solteirona. Em geral, evito ver encenações de minhas peças feitas por outros diretores. Ciúme? Acho que não é bem isso. Quando assisti a produções em que cada personagem era interpretado por um ator, a impressão que tive era de que esse recurso banalizava a peça. Ficava tudo muito explicado demais. E eu queria que as coisas não ficassem assim. Desejava que houvesse uma participação da plateia, do espectador, preenchendo as lacunas. Isso é tão intencional que em minhas peças, até Um Beijo, Um Abraço, Um Aperto de Mão, nenhum personagem tem nome. Esse é mais ou menos o meu universo, o universo que vivia em minha casa: aquele moço, aquela moça, o tio, o vovô. Eu queria, então, que cada pessoa na plateia nomeasse seus parentes, que cada espectador contribuísse com suas lembranças. Essa opção nunca causou estranheza a ninguém. A identificação com a plateia, desde que a peça existe, tem sido muito forte. Na estreia no Rio, no final, um ator se aproximou de mim e falou: Você conhece a minha família, você pôs coisas da minha família na peça por que você conhece! E eu nunca o tinha visto mais gordo. Os assuntos enfocados são tão banais. Bom, já que eu usei a palavra banal, é bom dizer que eu tenho também obsessão por diálogos muito simples. Em minhas peças, ninguém fala nada de filosófico, não escrevo grandes frases, daquelas boas para citações ou lápides. Mas uma fala de No Natal... ficou famosa. Quando a Solteirona está em plena crise, os dois irmãos a acodem e ela cobra de Deus a promessa de que, se a gente for bom, vai ser feliz. O irmão, então, pergunta: Mas como é que ela pode ser assim? A irmã responde: Foi assim que a gente aprendeu, só que ela acreditou! Em 1980, a produção ganhou uma versão carioca, com Marieta Severo, Analu Prestes, Mário Borges e Rodrigo Santiago. Foi quando ganhei uma projeção que ainda não tinha. Naquela época o Rio era o centro do Brasil, tudo acontecia lá. Capítulo XXI Marieta Severo Conheci Marieta durante a temporada de Maratona no Studio São Pedro. Analu Prestes e Luís Antônio Martinez Corrêa tinham ido ver e gostaram tanto que um dia voltaram em companhia de Marieta e Chico Buarque. Eu me lembro bem do susto e do coração que deu uma acelerada – eles eram muito famosos! Um encontro amável, carinhoso, e eles voltaram para o Rio. Depois, quando montei No Natal..., Analu viajou a São Paulo, viu e conversou com Marieta que também veio ver e gostou muito. Nascia naquele momento uma grande amizade que dura até hoje. Naquele tempo Marieta tinha certo receio de produzir para ela mesma fazer um papel principal. Achava um abuso alguém pagar para fazer um bom personagem. Já era uma atriz de bela carreira no Rio quando decidiu produzir No Natal... e interpretar a Solteirona. Foi um encontro artístico maravilhoso. Minha parceria com Marieta foi equivalente à que estabeleci em São Paulo com o Violla. Muitos trabalhos viriam depois. Marieta, mulher naturalmente refinada, elegante, entregou-se de corpo e alma à personagem da Solteirona. Abriu mão da beleza para interpretar aquela criatura troncha, desconcertante, cômica e patética. Merecidamente, ganhou muitos prêmios. Marieta, Isa, Mirna, Cecília e muitas outras trabalharam a favor da Solteirona, e não na contramão. O personagem, ao longo dos anos, revelou-se poderoso. Em São Paulo, Isa Kopelman, Alexandra Correa, J. C. Violla e Paulo Giandaglia, jovens desconhecidos, surpreenderam público e crítica. No Rio, Marieta Severo, Analu Prestes, Mário Borges e Rodrigo Santiago formaram um time imbatível. A encenação foi igual à montagem paulista. A mesma cenografia, os mesmos figurinos. Como Leda não pôde viajar, eu me encarreguei dos figurinos, e segui a mesma linha definida em São Paulo. A repercussão de meu trabalho no Rio foi grande. Fui muito bem recebido. O público adotou a peça e o boca a boca foi intenso. Yan Michalski, o grande crítico do Jornal do Brasil, então o mais importante, escreveu com carinho e entusiasmo. No Rio, aconteceu um incidente engraçado. Depois de muitos ensaios, pronta a peça, tudo em cima, nada a retocar, fizemos na véspera da estreia um ensaio aberto para poucos amigos. Na plateia estavam umas três ou quatro pessoas, e uma delas era a atriz Yara Amaral. Quando acabou o espetáculo, perguntamos: E aí, Yara, gostou? Ela estava muito constrangida, era visível. Tentando dizer alguma coisa simpática, consoladora, ela disse: É uma peça miúra, que talvez possa interessar a asilos de velhinhos. Ficamos confusos, surpresos, indignados e arrasados. Como assim, asilos de velhinhos? Por que o teatro sempre vive essa ameaça: Para quem vai interessar? Ah, quem sabe a gente vende o espetáculo para escolas. Vender para escolas espetáculos que nada têm a ver com crianças ou adolescentes é um terror, uma indignidade, um pedido de esmola. Ficamos imaginando um público de idosos laçados em asilos, casas de repouso. Felizmente, os acontecimentos mostraram que a Yara estava equivocada. Ela achou que era um espetáculo difícil, porque era muito diferente do que estava acontecendo no panorama daquela época. No Natal a Gente Vem te Buscar foi um sucesso muito grande, de público e crítica. Depois disso, começaram a chover pedidos de representação de todo o Brasil, de Portugal, Argentina. Paraguai, Uruguai. Além dos principais jornais e revistas, entrevistas em rádio, televisão, palestras em universidades, várias teses de doutores das universidades brasileiras e americanas. Começou um período em que vivi na ponte aérea. Eu me tornei uma espécie de muso daquele verão carioca. Saíram matérias dos figurinos até em revistas de moda, em páginas inteiras. Marieta e Analu, sorridentes, vestidas como as personagens. Uma delas tinha uma chamada assim: A elegância Jeca da Solteirona. Figurinos criativos, muitos garimpados em brechós, davam à peça um ar de autenticidade pouco usual. O mesmo não ocorreu na montagem de 2008. Os figurinos por mim assinados não têm o mesmo encanto, por muitas razões, todas alheias à minha vontade. A nova cenografia, inspirada na original, teve melhor resultado, as interferências destrutivas não conseguiram desfigurá-la. Há quase 30 anos, a temporada carioca de No Natal... foi marcada por um afeto e uma receptividade ímpares. O clima entre o elenco era feliz, amoroso. Analu e Marieta enfeitavam seus camarins com cromos, flores, faziam álbuns com fotos, recortes, vivíamos nos presenteando, saíamos juntos toda noite para jantar. O Rio era ainda uma festa. Todo dia alguém escrevia em algum jornal. Até o bispo ou cardeal dom Marcos Barbosa, sem ver o espetáculo, escreveu que No Natal... pregava a dissolução da família. Desaconselhava aos fiéis, de orelhada. Não assistiu mesmo. Santa Inquisição, Santa Censura. Capítulo XXII A Aurora da Minha Vida A razão mesma de eu me debruçar sobre o universo escolar foi a crítica do Yan Michalski a No Natal a Gente Vem Te Buscar. Ele escreveu mais ou menos isso: pelo fato de ter sido professor, eu havia conseguido fazer uma demonstração didática do universo familiar. Dizia que eu tinha um método. Por causa dessa observação me veio a ideia de escrever sobre a escola. Durante parte da vida tinha sido aluno e, na outra, professor. Eu conhecia os dois lados do campo. Foi um período em que as memórias da escola, recheadas de amores e os terrores, vieram todas à tona. A Aurora... foi uma peça criada em São Paulo para um elenco formado por alguns atores e atrizes do grupo Pessoal do Victor e por outros que convidamos. Isa Kopelman, que fizera No Natal..., havia trabalhado com o Pessoal do Victor. Naturalmente formou-se um grupo – Isa Kopelman, Cristina Pereira, J. C. Violla, Paulo Betti, Eliane Giardini, Carmo Sodré, Tacus e Roberto Arduin. A primeira coisa que falei foi: Não vai ser uma criação coletiva. E a segunda: Não vamos formar um grupo. Eu já estava numa viagem autoral e não queria me prender à estrutura de um grupo. A ideia de grupo me dava aflição. No Natal... tinha um roteiro definido, tinha uma história. A Aurora... se configurava mais como um painel sobre os tempos escolares. À medida que escrevia, ensaiávamos. Cenas surgiam sem que eu tivesse certeza da ordem. Fui escrevendo, escrevendo, o material ficou extenso e precisou de cortes e ajustes. Um dos atores, Roberto Arduin, com quem eu trabalharia muitas outras vezes, me ajudou a pôr ordem nas cenas. Era uma estrutura complexa, com canções e poemas da tradição escolar brasileira. Como foi feita para quatro atores e quatro atrizes, que se revezavam nos papéis de professores e alunos, foi bem difícil a distribuição dos papéis. Arduin foi fundamental. A Aurora..., de certa forma, tem um formato parecido ao de No Natal... Leveza no primeiro ato; no segundo, drama, tensão e um final irônico e pessimista. Também é uma peça longa. Focada em três períodos – pré-primário, primário e ginasial, A Aurora... critica amorosamente a formação escolar brasileira. Alunos, professores, matérias, incidentes, ternura, incompreensão, convivência, dúvidas, descobertas, competição. Lembranças de uma escola que ensinava o Latim e onde uma das matérias se chamava Canto Orfeônico. Uma escola onde obrigatoriamente se exaltava o Brasil. De maneira tola. Em A Aurora... nenhum aluno, nenhum professor foi fielmente copiado de algum colega, de algum mestre. É obra de ficção. Quem vê a peça se reconhece e identifica seus personagens. E minha visão, que acaba transparecendo na peça, não é risonha, por que acho que a escola é um tempo muito angustiante. Encontrei pessoas que dizem se lembrar de um período róseo, risonho e franco, mas, sinto muito, não acredito. Oh, que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais... A infância é angustiante, a adolescência é angustiante. E, pra falar a verdade, e o resto da vida também é angustiante. Mas a escola é um período particularmente terrível. E é um tempo no qual, ainda por cima, você está sendo moldado por uma ideologia política. Porque a escola funciona segundo o que os dirigentes querem. E no meu tempo, aquele tempo getulista, mussolínico, mais ainda. Frequentei uma escola rígida, repressiva, chata. Eu não lembro de uma escola agradável. A primeira produção de A Aurora foi feita com pouquíssimo dinheiro. Naquele tempo era quase impossível conseguir patrocínio. Conseguimos produzir por conta da aplicação, da vontade de todos e do acordo quanto à porcentagem da bilheteria. Mais uma vez Leda Senise fez figurinos lindos, precisos e elegantes. Takao Kuzuno, grande artista japonês radicado no Brasil, com poucos recursos fez uma luz linda. Samuel Kerr, com pesquisa e composição, criou uma trilha maravilhosa. O amigo, compadre e brilhante fotógrafo Miro produziu imagens tão ou mais belas que aquelas de No Natal... E Wesley Duke Lee concebeu o mais belo cartaz. Mário Cravo Jr. fez as fotos do programa. Os vestidos das formandas do final da peça vieram da Rua São Caetano – ganhamos o que estava amarelado e empoeirado nas vitrines. Leda e eu os enfiamos na máquina de lavar roupas e depois de secos os adaptamos às atrizes e enfeitamos. Agulhas, linhas, flores artificiais, muitas risadas, noites em claro. Não nos esquecemos da vida de ninguém. A Aurora da Minha Vida foi sucesso desde o primeiro dia. Estreou em São Paulo, no Teatro do Bexiga, hoje rebatizado de Ágora e muito mais confortável graças à genial reforma feita por Sylvia Moreira. Uma coisa curiosa acontecia diariamente, pra você ver a força da memória. O Teatro do Bexiga tinha uma disposição peculiar, que obrigava o público a passar pelo cenário quando entrava na sala de espetáculos. No momento em que viam as carteiras, as pessoas paravam, algumas chegavam a sentar nos bancos. Além de olhar com atenção, abriam os cadernos, pegavam os lápis. Muitos, depois do espetáculo, falaram da emoção causada pela sala de aula. Contaram que procuravam seus nomes nos cadernos e livros. Passavam as mãos nos bancos e na gaveta onde ficava guardado o material escolar. Alguns procuraram goma de mascar sob a prancha. Foi uma sensação A Aurora... As plateias adoravam, muitos voltavam e traziam amigos e familiares. O espetáculo era longo, tinha quase três horas, e as cadeiras da plateia, concebidas para teatro infantil, uma tortura. Apesar de tudo, o pequeno Teatro do Bexiga foi abençoado. No ano seguinte, A Aurora... foi para o Rio, onde, produzida por Adaury Dantas, foi representada por outro elenco: Marieta Severo, Analu Prestes, Stela Freitas, Cidinha Milan, Pedro Paulo Rangel, Mário Borges, Carlos Gregório e Roberto Arduin – e a repercussão foi muito maior que a de No Natal... Adaury Dantas havia visto a peça em São Paulo e se apaixonara. Ligou muitas vezes e eu demorei a responder, porque não o conhecia. Acostumado à ideia de trabalhar em cooperativa, não tinha noção da figura do produtor. Adaury produziu com generosidade e eficiência. Desconheço outra pessoa tão refinada e elegante de alma como ele. A estreia da peça no Rio, no Teatro de Arena, coincidiu com a aposentadoria de Yan Michalski do Jornal do Brasil, e ele escreveu sobre ela uma longa e emocionada matéria. Ele viu o espetáculo antes da estreia oficial, o que gerou certo desconforto. Outros críticos não gostaram do privilégio, mas... Yan era o pai da ideia. Quando remontei A Aurora da Minha Vida, em 2004, a crítica Bárbara Heliodora, do jornal O Globo, lembrou que 20 anos antes não se falava em outra coisa, e que a peça fazia cada um lembrar das suas memórias de escola. Hoje, acho que A Aurora... já está desgastada devido à desenfreada pirataria das muitas montagens não autorizadas e adulteradas por amadores, escolas de todos os graus, clubes, grêmios, escolas de interpretação. Artistas que fizeram parte de júris de premiação em festivais de teatro amador me contaram que houve um tempo em que eles não aguentavam mais assistir a montagens de A Aurora... Soube de atrocidades cometidas em encenações dessa peça, grosserias e maus gostos cometidos na composição dos personagens. Um sujeito no Rio de Janeiro chegou a montar uma empresa que vendia espetáculos e até mesmo uma versão do meu texto devidamente encurtado e melhorado. O mau elemento deve ter ganhado muito dinheiro, mas desapareceu assim que o descobri e minha advogada lhe mandou uma carta. Mas houve uma montagem que eu lamento não ter visto, de uma ONG que trabalhava com prostitutas em Belo Horizonte. Imagino que tenha sido muito interessante. Capítulo XXIII Um Beijo..., Novos Caminhos e Experiências Depois do sucesso de A Aurora, Adaury Dantas, mesmo sem ler e saber qual o tema, se ofereceu gentilmente para produzir minha peça seguinte, Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, que eu defino como uma fantasmagoria. Já me encontrava em num momento mais sombrio. Quando escrevi a peça, meu pai já havia morrido. Embora eu pensasse que não tinha nenhuma afinidade com ele, sua morte teve em mim um impacto mais forte do que a de minha mãe, temor que eu tive desde que me lembro como gente. Acho que todo mundo enfrenta o fantasma de E o dia em que minha mãe morrer? Meu pai morreu vários anos antes dela. Quando o vi no caixão, tive a exata certeza de nunca ter conversado com ele pra valer, de não ter falado as coisas que eu deveria ter falado nem ouvido o que se passava na cabeça dele. Nunca brigamos de verdade. Na adolescência tive aquelas brigas típicas da idade mas, adultos, nós nunca nos defrontamos. Depois de ele virar um velhinho dependente dos filhos, eu inventei para mim mesmo que tinha superado todos os problemas. Não tivemos uma ruptura e sim um afastamento geográfico porque me mudei de Lucélia para São Paulo para continuar os estudos. E, muitos anos depois, quando eu e meus irmãos tivemos de cuidar dele e de minha mãe, eu já era um adulto que os via com olhos de quem está cuidando. Meu pai, afável e brincalhão fora de casa, nunca foi uma pessoa de sorrir ou falar muito no próprio lar. Minhas irmãs contam que, quando eram pequenas, ele era alegre, brincava com elas. Meu irmão mais novo também guarda dele ótimas recordações. Eu não tenho a mesma lembrança. Meu ponto de vista, talvez injusto, foi diferente. Sempre achei que foi um homem com pouca vocação para ser pai. Cumpriu seus deveres, cuidou da família, trabalhou muito. Mas não se dirigiu a mim, pelo menos na medida em que eu queria ou precisava. Quando, nas manhãs de domingo, íamos à igreja, ele andava na frente, sozinho, enquanto minha mãe puxava os cinco filhos. Não sei por que, meu pai falava sozinho na rua e nós, ou ríamos ou ficávamos com vergonha. E ele ficava bravo quando perturbávamos aquele seu mundo fechado. Conversava com os próprios problemas, com seus fantasmas? Havia o fantasma da fazenda perdida, que assombrou meu pai e seus irmãos a vida inteira. Era uma coisa meio Jorge Andrade, mas sem características paulistas quatrocentonas. Nobreza rural, escravocrata, sem cultura, com restos de orgulho que nem chegaram à cidade grande. Tudo começou e acabou com a Fazenda Pau d’Alho, no Vale do Paraíba. Os personagens do Jorge Andrade são gente até refinada, entre o rural e o citadino. Meus antepassados perderam escravos, café e a bela fazenda. Ficaram descalços, com o pé no chão. Meu pai e meus tios trabalharam na roça. Meu avô, o pai dele, pelo pouco que contam, foi um homem esquisito e deprimido. Minha avó batalhou para sustentar a casa com suas costuras. Meu pai sempre foi uma pessoa aparentemente muito fechada e solitária. Quem se lembra dele o descreve como simpático, cordial, trabalhador. Mas, em casa, não falava muito durante as refeições e tínhamos de adivinhar o que ele queria comer, pois apenas estendia a mão em direção às travessas, sem definir se queria bife ou batata. Toda tarde, ao voltar da livraria, ficava impaciente caso houvesse algum problema familiar ou fizéssemos alguma solicitação. Dormia logo após o jantar. Deitado na cama, escutava o Repórter Esso e adormecia. Não achava graça em festa de Natal, Ano Novo ou nossos aniversários. Era um homem que nunca saía de casa, não existe histórico de traição, de deslize. Ele sempre esteve ali, mas para mim não esteve. Era uma presença ausente. Originalmente de família muito cató lica, converteu-se ao protestantismo quando se apaixonou por minha mãe. Nem acredito que tivesse muita fé, mas temia a congregação, a vigilância e a maledicência dos “irmãos na fé” da congregação. Minha mãe, quanto a isso, era mais leve. E foi uma mulher que sempre se recolheu em discretas orações e leituras da Bíblia, remédio para qualquer ocasião. Disso tudo nasceu Um Beijo, um Abraço... Queria escrever sobre a religião, sobre a influência da religião numa família. Mais uma vez me explicando, tentando entender o sentido das coisas. No enredo de Um Beijo, um Abraço... aparecem elementos biográficos. Há um crime. Claro que meu pai não cometeu aquele crime, não matou, mas, por outro lado, ele esteve na prisão. Eu fiz ficção, criei um assassinato. Na peça, o pai mata o deflorador da filha, coisa que nunca aconteceu na minha família. Mas o assassinato tem uma função dramática em Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão..., a ficção fica mais ficção ainda. Um beijo... aconteceu também por causa do Orlando, de Virginia Woolf. Fiquei apaixonado por aquele livro, pela Virginia Woolf, comecei a ler os contos, os outros romances, as cartas, as biografias. Cheguei até a rabiscar esboços para escrever uma peça sobre a vida de Virginia Woolf. Em Lisboa assisti a uma peça chamada Virginia, de Edna O’Brien, aqui traduzida pela mãe da Marieta Severo. Pensamos em uma produção, mas o texto não nos animou. Orlando me atraía, mas nem me passava pela cabeça adaptá-lo para o teatro. O personagem mudava de sexo no meio do livro! Mas os esboços de roteiro foram tomando outro rumo e, quando percebi, estava modelando Um Beijo... Surgiu então a ideia de criar duas versões da mesma peça. Para a montagem paulista, protagonizada por J. C. Violla, o centro foi o Moço. No Rio, Marieta foi a Moça. A troca de sexo do personagem protagonista teve consequências diretas em tudo que vinha depois. Foi preciso trocar também o sexo de alguns outros personagens. A Cunhada virou cunhado, a noiva, que se casa com o moço, virou noivo. Foi muito estimulante esse processo. Há muitas diferenças entre os dois textos. Na versão masculina, o clima incestuoso entre os irmãos fica mais estranho, porque gera certo tom de homossexualismo. A trama dos dois irmãos é desconfortável, complicada, um sabota a vida do outro por causa de um amor supostamente fraterno. Quando as pessoas assistem à versão feminina, ninguém pensa em sexo. Já na versão masculina era constante esse tipo de pergunta. A questão foi abordada pelo professor Severino J. Albuquerque no livro Tentative Transgressions – Homosexuality, Aids and the Theater in Brazil, publicado pela Wisconsin University Press. Ele enquadra Um Beijo, um Abraço... como um texto que trata do homossexualismo. E faz isso de uma maneira aguda, inteligente, muito própria. Acho que em Um Beijo... mergulhei fundo. Muito radical. Dei pouco espaço para o humor, em geral presente nas outras peças. A peça é impregnada de sombras e de um protestantismo implacável, que não admite saídas, muito diferente do catolicismo. Implacável é a palavra. Não existe Nossa Senhora ou outro santo para interceder. Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados. Para aliviar a humanidade não existe confissão, comunhão, indulgência, nada. É inferno direto, sem saída. Não foi um grande sucesso nem um fracasso em São Paulo e no Rio. O espetáculo era sombrio, a cor predominante, o azul acinzentado. Tinha uma beleza melancólica. Os tristes figurinos, mais uma vez desenhados por Leda Senise, vestiam os personagens à perfeição. Vidas sombrias, mesquinhas, reprimidas, tementes a Deus. Muitos anos depois das produções de São Paulo e Rio, eu vi uma montagem em Montevidéu, no Uruguai, dirigida pelo gaúcho Luciano Alabarse. Os atores, intérpretes perfeitos, tinham o physique du rôle. Há muito tempo distanciado da peça, fui ficando achatado e me abaixava cada vez mais na poltrona. Quase desligado do fato de ser o autor da obra, eu pensava: Credo, o que é isso? Por que não para essa sucessão de desgraças? O espetáculo, na versão masculina, termina com um nada absoluto, a família a comer em volta da mesa, insensível. Todos falam ao mesmo tempo, ninguém escuta ninguém. O Moço, sem vigor, reza sem fé, barrigudinho, diante de um aparelho velho de televisão. No final da versão feminina, ela está para ser internada. A Moça, eufórica, não entende que chegaram os enfermeiros. Por muitos motivos Um Beijo... é uma das peças de que mais gosto. Por que ali estou exposto mais do que nunca. O protestantismo aparece inteiro no Beijo... A realidade e a ficção caminham de mãos dadas. Uma das consequências de Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão foi meu mergulho em um vale negro de considerável tamanho. Escrevi a peça sob um impacto emocional sombrio, e os resultados da recepção dela foram ainda piores. Eu vinha de dois grandes sucessos e me apavorei ao ver que o público se decepcionou com o novo trabalho. As críticas também não foram lá muito boas, os comentários meio contidos, mas ganhei o prêmio Mambembe no Rio como o melhor autor do ano. Mais uma vez Yan Michalski escreveu um artigo, não publicado na imprensa, que orgulhosamente inserimos no programa da peça. Um texto comovente, analítico. Fiquei um bom tempo, alguns anos, bloqueado. Capítulo XXIV Enquanto não Saía Nada de Dentro de Mim Enquanto não saía nada de dentro de mim, escrevi com empenho e prazer, deixo claro. Assim como fiz nas peças sob encomenda: Suburbano Coração, comédia musical (para Fernanda Montenegro), Nijinsky (para J. C. Violla) e a adaptação de Big Loira, baseada numa série de contos de Dorothy Parker (para Cristina Mutarelli e Iara Jamra). Sou muito ruim com datas, mas me recordo bem, era 1987. Naquele ano, ainda traduzi Cenas de Outono, dois textos do moderno teatro nô, de Yukio Mishima (para Marieta Severo e Sílvia Buarque), corroteirizei Dona Doida, de Adélia Prado (para Fernanda Montenegro) e dirigi o show Francisco, que marcou a volta de Chico Buarque aos palcos depois de um longo tempo. Capítulo XXV Dona Doida 1987 começou com Dona Doida, uma colagem da prosa e da poesia de Adélia Prado. Eu havia lido alguns livros dela. Foi a primeira vez que trabalhei com Fernanda Montenegro. Confesso que logo depois que ela oficializou o convite, fiquei com muito medo. A gente já se conhecia. Quatro anos antes, tínhamos nos reunido para iniciar a produção de uma peça nova do Millôr Fernandes, chamada Duas Tabuas e uma Paixão. Antes, porém, Fernanda tinha um compromisso com um espetáculo que, segundo ela, ficaria apenas poucas semanas em cartaz, um texto alemão um tanto difícil que interessaria a um público pequeno. Era simplesmente As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, de Rainer Werner Fassbinder. Fez um sucesso tamanho, que ficou mais de quatro anos em cartaz. Quando a temporada de Lágrimas Amargas se aproximava realmente do fim, Fernanda me chamou de novo, conversamos e surgiu a ideia de fazer alguma coisa a partir dos poemas da Adélia Prado. Um monólogo. Fernanda e seu marido, Fernando Torres, já haviam feito a pré-seleção de alguns poemas e textos e quando eu cheguei começamos a trabalhar realmente no roteiro. Feito um esboço, pedi à Adélia permissão para passar alguns dias com ela em sua casa, e lá fui eu para Divinópolis, Minas Gerais, onde passei quase uma semana trabalhando. Adélia é grande artista, sábia, bela, profunda, católica de verdade, ser humano incomparável, indescritível. Antes de voltar, viajei para Diamantina e outras cidades próximas e me apaixonei definitivamente por Minas Gerais. Quando voltei ao Rio, cheio de ideias e coisas novas sugeridas por Adélia, trabalhamos mais ainda naquele roteiro que foi sendo modificado até perto da estreia. Caminhávamos no escuro, sem saber onde nosso barco ia atracar. Quando queremos elaborar um roteiro, tentamos vários caminhos e um deles é contar uma historinha que em geral se revela frágil, pouco original. Foi o que aconteceu. Então, optamos por colar os poemas e os textos em prosa de acordo com as ordens de nossas sensibilidades. A gente pensava: este fica legal depois desse, e ali ficava bom a personagem entrar numa crise... Um dia, depois de muito trabalho, vimos que tínhamos um roteiro, algo que até poderia ser chamado de uma história, contada só com palavras de Adélia Prado. Fernanda trabalhou incansavelmente em cima daquele material. Mais ou menos dois meses antes, quando peguei o avião em São Paulo e fui para o Rio para começar os ensaios, entrei num pavor tamanho que nem sei. Fiquei elaborando na minha cabeça um texto para dizer à Fernanda que eu não podia fazer o espetáculo. Pensei em dizer que tinha alguma coisa, tinha ficado doente. Mas daí, na primeira reunião e ela falou o seguinte: Eu tenho muita experiência, já trabalhei com muitos gêneros, sei fazer muitas coisas, mas quero começar do zero. Fiquei mais calmo, respirei. Fernanda, a grande atriz, é uma pessoa de inteligência invulgar. E realmente trabalhou como uma operária. Pegava aquele texto e o mastigava, estudava sem parar. Me contou que na hora de dormir punha o texto embaixo do travesseiro. Em caso de insônia, pegava-o e estudava. Assim que começaram os ensaios, meus temores diminuíram. É bom lembrar que ela é um grande nome nacional, e eu nasci lá longe, em Pirajuí. Ela agia de modo absolutamente natural. Assim como o Chico, que é normalíssimo, não tem nada de comportamento de estrela. Claro que o talento dela em tudo que faz e, também, sua experiência de vida são muito grandes. Pude observar seu respeito pelo palco, uma espécie de altar, lugar especial e sagrado. Sem ostentação. Durante a carreira, sempre chegava muito antes da hora do espetáculo, andava pelo palco seguindo as marcações e falando baixo o texto. Quando comecei a frequentar os teatros, havia uma coisa chamada enterro de peça. Os atores se lixavam para a plateia, em geral fraca, e pregavam peças uns nos outros. Esguichos de água, tombos, falas improvisadas, cacos desastrosos. Um ator se esmerava em deixar o outro em situação difícil. Entendi que eram coisas da tradição teatral, mas, como público, eu me sentia desrespeitado. Há, pouco tempo vi uma atriz fazendo coisa parecida com um texto meu. Desrespeito ao público, a mim, ao teatro, a ela mesma. Fernanda Montenegro leva o teatro a sério e os deuses sabem disso. Convivemos quase dez anos por conta de Dona Doida e todos os dias foram sagrados e impecáveis. Escolhemos as músicas, fomos juntos comprar o figurino que não podia ser mais simples: uma calça de sarja, uma blusa azul, e um sapatinho de lona. Fiz um cenário asséptico, quase japonês, que até serviu de base para a montagem da peça do Yukio Mishima, que fiz logo depois, no mesmo teatro. Dona Doida também foi um grande sucesso de público e crítica. Nunca podíamos imaginar que, depois do Teatro Delfim, minúsculo, a peça iria acontecer em salas grandes, como o Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, ou nos maiores e mais belos teatros de Lisboa e do Porto. O espetáculo excursionou por cidades brasileiras e portuguesas. Ficou anos em cartaz. Capítulo XXVI Cenas de Outono Cenas de Outono, de Yukio Mishima, veio logo após Dona Doida, também no Teatro Delfim. A produção do texto, sugerido por Augusto Boal, foi feita por Marieta Severo. Fiquei muito apaixonado pelo tom maldito, fantasmagórico, do autor japonês. Duas peças curtas, dois “nô”. Eu inventei o título Cenas de Outono para amarrar os dois textos. Um deles tem como tema o fantasma vivo de uma mulher rejeitada que vai a um hospital matar a esposa do amante. A outra mostra a eterna espera de uma jovem apaixonada, que enlouquece numa estação ferroviária à espera do homem que ama. Traduzi os textos de uma versão francesa. Tive que cortar páginas e páginas, muitas divagações e repetições que tornariam o espetáculo cansativo. O resultado foi lindo, mas difícil para certo tipo de público. Foi a primeira vez que o compositor e instrumentista Edgar Duvivier criou músicas para um trabalho meu, e continuo trabalhando com ele até agora. Marieta Severo, Silvia Buarque e Eduardo Lago, vestidos com os elegantes, belos figurinos de Rita Murtinho, dominaram as dificuldades do texto e provocaram arrepios. A trilha sonora de Edgar Duvivier representou uma enorme parte da alma dessa encenação. Capítulo XXVII Francisco Foi o retorno de Chico Buarque aos palcos, depois de 13 anos sem fazer shows de fato, nos quais ele fosse o centro do espetáculo. Como tínhamos ficado amigos durante aqueles anos todos, por conta da minha proximidade com Marieta Severo, dirigi aquele show. Francisco foi uma coisa muito incrível do ponto de vista emocional, e sei que, eu mesmo, nada fiz de excepcional. Era um show muito simples. Raciocinei da seguinte maneira: tenho que valorizar o grande artista que é Chico Buarque. Percebi que tinha que deixar Chico seguro, claro e cristalino no palco, sem acompanhamento de cascatas, bailarinas, nada que tirasse a atenção do foco do show, que era a figura de Chico. Foi um show musicalmente muito bem produzido, com músicos excepcionais. Todos adoravam Chico, eram muito amigos. O próprio Chico fez o roteiro. A gente conversava um pouco sobre letras, arranjos, mas o poder mesmo estava nele. O Brasil estava com enorme saudade daquele homem único, seu maior artista da canção. A comoção foi tremenda. Estreamos no Rio, no Canecão. A casa lotou todos os dias, a temporada se prolongou, e poderia ir em frente. O público gritava, aplaudia, chorava, homens arrancavam as camisas e agitavam no ar. Muita gente atribuiu a mim o fato de o Chico estar à vontade no palco. Eu não sei. Acho que tem coisas que acontecem no momento certo. Naquela época, ele queria voltar a fazer shows. Estava feliz, seguro e até dançou um pouco em cena. A sua obra não tem pontos baixos. Tem tantos pontos altos que fica difícil alguém selecionar os melhores. Chico brilha o tempo todo. É um ser incomum. Há poucos anos, Pedro Paulo Rangel e eu criamos um one-man-show chamado Soppa de Letra, baseado em letras da música popular brasileira. Auxiliados pela sabedoria e memória de Antonio de Bonis, penamos para fazer a seleção. Tínhamos que nos policiar para não fazer o roteiro baseado apenas nas músicas do Chico. Porque tudo dele é bom, Chico fala bem todas as coisas que a gente quer falar. Francisco foi histórico na música popular brasileira. E por sorte eu estava perto, num papel de condutor, claro. Capítulo XXVIII Além de 1987: Suburbano Coração Depois de Dona Doida, Fernanda Montenegro quis fazer uma comédia com músicas, e eu escrevi, praticamente de encomenda, Suburbano Coração. Convidamos Chico Buarque, e o título da peça saiu de uma música que ele havia composto, anos antes, para um show de Maria Bethânia. Desenvolvi uma história e Chico compôs, como sempre, inspiradas músicas e letras, dessas que só ele consegue fazer. Com apenas quatro atores – Fernanda, Otávio Augusto, Ivone Hoffman e Ana Lúcia Torre – e um trio musical regido pelo maestro Marcos Leite, Suburbano Coração ficou quase um ano em cartaz no Teatro Clara Nunes. Fernanda e, principalmente, Otávio criaram muitos personagens. Escrevi para que os atores dessem shows de interpretação. Deram, claro. A romântica Lovemar de Fernanda amava, sofria, mas não desistia de procurar o amor. Otávio fez todos os maridos de Lovemar, do afeminado e maldito Frederico ao caminhoneiro Amado. Fernanda se desdobrou representando a própria mãe, dona Escolástica, a sogra portuguesa dona Alma e Alfredinho, bofinho, o interesseiro e cafajeste amante de Frederico. Muito riso, muita alegria. Figurinos deslumbrantes de Rita Murtinho e cenário de Cláudio Torres. Eu já estava medindo o palco do Teatro Cultura Artística em São Paulo para levarmos o espetáculo para lá quando fomos detonados pelo famigerado Plano Collor. Desistimos desse projeto e retomamos Dona Doida, que teve longa vida. Capítulo XXIX Big Loira Big Loira também foi um projeto atingido pelo Plano Collor. Com o trabalho bancado por Cristina Mutarelli e Iara Jamra, cheguei a achar que a produção não chegaria ao palco. As duas atrizes proporcionaram as melhores condições possíveis dentro do caos que se instalou com a tragédia econômica. Cenários de Felippe Crescenti, figurinos de Leda Senise e música de Hélio Ziskind. Iara interpretava a autora, Dorothy Parker, que narrava e dialogava com seus personagens. Cristina Mutarelli, figura forte e bela, interpretou Hazel, a Big Loira. Violla ficou com Herbie, o namorado de Hazel. Ainda tínhamos no elenco Teca Pereira, Malu Pessin, Gézio Amadeu e Décio Pinto, que representavam vários papéis. Eu já conhecia o texto, porque décadas antes havia sido publicado na revista Senhor como Loura e Grandalhona. Dorothy Parker, grande escritora, provoca risos na primeira leitura que fazemos. Humor ácido ou enorme desencanto com o mundo? Cristina tinha uma autorização que lhe permitia usar vários contos de uma coletânea, e isso foi ótimo, pois me ajudou muito na adaptação para o palco. Big Loira e Outras Histórias tinha sido o livro sensação no ano anterior à montagem peça. Descoladinhos, fashion & beautiful people, quem havia lido um único livro na vida e mesmo quem só o conhecia pela capa, todos eles citavam Dorothy Parker em colunas sociais – virou a deusa do humor maldito. Sim, os contos permitem risos maldosos, mas também revelam muita amargura. Os personagens mergulham e nadam em piscinas olímpicas de álcool e frustração. Capítulo XXX Nijinski Em minha obra, Nijinski é quase um parêntese, corresponde ao impulso de escrever algo objetivamente para os talentos de bailarino e ator do Violla. O personagem era fascinante, e eu tinha nas mãos um ator muito raro, que podia interpretar um texto e dançar. Violla, coreografado por Célia Gouvêa e dirigido por mim, confirmou ser o ator ideal para o papel. Célia foi muito além da recriação dos originais. A dupla trabalhou horas, dias, meses. Célia e Violla representam um casamento artístico perfeito, ambos são obsessivos, perfeccionistas. Para escrever Nijinski fiz uma grande pesquisa, li 16 livros. Mas, como dramaturgo caí nas mesmas armadilhas de muitos que se propõem a escrever peças biográficas. Tomei algumas liberdades, inventei um hipotético encontro de Nijinski com Isadora Duncan, mas o medo de não ser fiel à vida do biografado me acorrentou um pouco. É muito complicado biografar para o palco. A biografia se dá melhor com o livro. Penso até em nunca mais me meter a teatralizar vidas. Entretanto, volta e meia dá vontade. As versões teatrais que se pretendem fiéis não satisfazem. Cada adorador de Nijinsky tem seu ídolo na cabeça. Pensando bem, fizemos um lindo espetáculo, não tão convencional. Violla dançou como um doido, emagrecia dois quilos por espetáculo, mas em seguida os recuperava com alimentação certa e cuidados com médicos e nutricionistas. Financiou tudo sozinho e passou anos pagando a dívida acumulada numa produção primorosa, como tudo que ele se propõe a fazer. Capítulo XXXI Longa Jornada de um Dia Noite Adentro Foi e continuará sendo ótimo dirigir textos de outros autores. Quando Hermes Frederico me convidou para dirigir no CCBB do Rio um texto como Longa Jornada de um Dia Noite Adentro, de Eugene O’Neill, pensei: Depois desta direção, posso morrer, nada mais tenho a fazer nesta terra. Diante dessa peça, as minhas não interessam. Tive um elenco que não podia ter sido mais teatral e precioso, pura harmonia e talento: Cleyde Yáconis, Sérgio Britto, Marco Antônio Pâmio, Genézio de Barros e Flávia Guedes. Cenário de Celina Richers, figurinos de Miko Hashimoto, trilha sonora de Edgar Duvivier e luz de Aurélio de Simoni. O elenco era tão dedicado que todos chegavam muito antes do espetáculo, todos os dias, para passar aquele enorme texto. Carinho, respeito e admiração de todos para com todos. Com muito bom humor, sem preguiça, é bom dizer. Poucas vezes (talvez nas primeiras montagens de No Natal a Gente Vem Te Vuscar e A Aurora da Minha Vida), eu senti tanto prazer, me senti tão honrado com o fazer teatral. Longa Jornada..., texto de mestre, fundamental, com bela tradução de Bárbara Heliodora, foi um dos maiores presentes da vida. Obrigadíssimo, Hermes. Capítulo XXXII Pequenas Raposas Mais ou menos dois anos mais tarde, novo convite do Hermes, dessa vez para dirigir Pequenas Raposas, de Lillian Hellmann, também no CCBB do Rio. Outra grande peça, desta vez com um elenco de dez atores, encabeçado por Beatriz Segall e Sérgio Brito. Embora eu goste mais de Longa Jornada..., Pequenas Raposas também tem uma escrita brilhante. Grande teatro. Trama intrincada, personagens ambiciosos, intrigantes, do aristocrático Sul americano. Brancos e negros, diálogos entrecortados, muitas vezes com todos em cena. Os ensaios foram difíceis, decorar o texto não foi fácil. Ótima carreira no Rio e em cidades próximas. Infelizmente não chegamos a São Paulo. Elenco: Beatriz Segall, Sérgio Brito, Rogério Fróes, Ednei Giovenazzi, Joanna Fomm, Léa Garcia, Patrícia Werneck, Ayres Jorge. Roberto Pirillo, Pedro Osório. Capítulo XXXIII Na Dança Desde 1976, comecei a me maravilhar com o mundo da dança. Graças a Celso Curi, que não se conformou com a depressão causada em mim pelo episódio de Falso Brilhante. Foi como cenógrafo e figurinista em Nosso Tempo, coreografia de Antônio Carlos Cardoso, no Teatro Municipal de São Paulo que comecei a atuar nesse território. Em seguida, nas mesmas funções, voltei a trabalhar com Antônio Carlos e com o espanhol Victor Navarro. Mas onde me realizei mais plenamente foi nos espetáculos criados por J. C. Violla, nos quais atuei na criação de roteiros, trilhas, direção de arte, direção geral. A coreografia era do Violla, pois quem entende de dança é ele. Violla tinha um grupo formado por alunos que já estudavam com ele havia muito tempo. Aconteceu então a Bienal de Artes, com curadoria do crítico e jornalista Casimiro Xavier de Mendonça, que havia escolhido como tema mitologia e religião. Eu e Violla fomos incumbidos de criar uma coreografia que viria a se chamar Senhores das Sombras, Últimos Santos. Havia acontecido na época, na Guiana Inglesa, aquele caso do reverendo Jim Jones, chefe de uma seita formada por americanos, instalada no meio da selva. Acuados pelo governo, que ordenou uma investigação, Jim Jones e seus seguidores, ingerindo veneno, se suicidaram. Centenas de velhos, moços, crianças, morreram. Muitos se suicidaram, outros foram assassinados. Fizemos um espetáculo baseado nessa temática. Como Violla tinha alguns movimentos coletivos desenvolvidos em aulas, escrevi um roteiro, incorporamos os movimentos, e mantivemos a música que ele já usava. Outros desenhos coreográficos foram incluídos depois. Senhores das Sombras, Últimos Santos tem a ver com essa coisa apocalíptica que a gente vê crescer cada vez mais, com essas religiões oportunistas que se encontram por aí. Nesse trabalho, comecei a interferir mais diretamente no movimento, na elaboração da coreografia, introduzi noções de interpretação teatral. Não sei dançar, nunca dancei, não tenho a menor aptidão. Mas descobri que para mim era muito familiar interferir na criação do movimento. Talvez isso venha da minha formação plástica, do fato de ser pintor. E eu tinha muita intimidade com a criação do Violla. Vínhamos trabalhando numa parceria havia muito tempo, desde as participações dele nos meus textos teatrais. Das montagens teatrais até Senhores das Sombras, se passaram alguns anos. Depois veio Valsa para Vinte Veias, espetáculo que foi um marco, fez muito sucesso – de público, inclusive. Foi no período em que o Teatro Galpão, no Teatro Ruth Escobar, se transformou em sala destinada à dança. Se não me engano, quem encabeçou o movimento pela criação daquele espaço foi a artista multimídia Emilie Chamie, com a colaboração de nomes expressivos do mundo da dança. Ela era uma das figuras mais fortes do movimento de teatro-dança, e usava uma mistura de poemas com movimentos. Naquela sala fizemos Valsa para Vinte Veias. Como na coreografia anterior, Valsa... surgiu em parte de movimentos que Violla já vinha trabalhando com os alunos. Depois ampliamos o material e eu interferi mais ainda no processo, sugerindo músicas, opinando na estrutura do roteiro. Com a permissão do Violla, às vezes eu fazia direção de atores, quando uma cena permitia. Valsa, criado para o grupo de Violla, foi depois remontado pelo Balé da Cidade de São Paulo, no Teatro Municipal. Depois viria, na sequência, FlipperSports, coreografia baseada em movimentos de atividades esportivas. Aí veio uma fase de colaboração com Célia Gouveia, no período em que fizemos Petruchka, com música de Stravinsky. Reescrevi o roteiro e transferi a história russa para São Paulo, e a ambientei no Carnaval brasileiro. Célia Gouveia criou a coreografia e eu fiz a direção cênica do espetáculo. Foi um grande passo, bastante diferente das obras anteriores. Violla interpretou um comovente boneco Petruchka. Flávio de Souza foi o Mago em uma cadeira de rodas. Cristina Brandini foi a bailarina, e Hermes Barnabé, o Mouro. O grupo, sob o comando de Célia, dançou de maneira impecável. Petruchka estreou no Teatro São Pedro e depois se transferiu para o Procópio Ferreira. Pela primeira vez, que eu saiba, um espetáculo de dança permaneceu vários meses em cartaz, sempre lotado. Acho que o contato com a dança aprimorou o meu trabalho de composição plástica. Isso me ajudou muito na direção, no deslocamento das figuras em cena. Ao assistir a minhas peças o espectador vê marcações que têm um desenho quase dançado. Claro que eu tomo um grande cuidado para não deixar isso muito visível, para não parecer artificial. Depois veio outro trabalho de dança que surgiu sem que eu esperasse. Não me lembro em que ano, Violla resolveu dar um curso de férias base-ado em danças de salão, gênero semiesquecido, restrito a alguns bailes em salões de clubes da cidade. Com sua obstinação natural, primeiro cuidou de se preparar, estudar com velhos pés de valsa de São Paulo e do Rio de Janeiro. O primeiro curso foi um sucesso tão grande que precisou de ser repetido, prolongado e acabou virando uma das especialidades de seu estúdio. Feito isso, ele tratou de estudar mais. Saiu buscando informações pelo Brasil e por vários países, para aumentar seus conhecimentos e manter um repertório. Poucos anos depois, nasceu a ideia para o primeiro grande espetáculo, Salão de Baile, com 20 pares de alunos, o próprio Violla participando de algumas sequências. Superprodução, cenário de Flávia Ribeiro, direção e figurinos meus, coreografias, em sua maior parte, do Violla e algumas, de Célia Gouvêa. Grande sucesso de público que lotou o Teatro Sérgio Cardoso por muitas semanas. A temporada continuou no Teatro do Tuca. Anos mais tarde, aconteceu Bailes do Brasil, no grande palco do Teatro Cultura Artística de São Paulo. De novo, o sucesso com um grande elenco e público que aplaudia freneticamente. Temporada prolongada, enormes filas para comprar ingressos. Capítulo XXXIV O Grande Circo Místico Tudo começou quando me apaixonei pelo poema do Jorge de Lima. O Grande Circo Místico entrou em minha vida de maneira curiosa. Uma vez ganhei de presente uma almofada de cetim na qual estava escrito, com tinta própria para tecido, um pequeno trecho do Grande Circo Místico. Não lembro qual parte havia sido copiada. Entre parênteses, embaixo, vinham o nome do autor e o título do poema: Jorge de Lima, O Grande Circo Místico. Fiquei tão interessado que saí atrás do resto do poema. Comprei o livro do Jorge de Lima, li e fiquei maluco com aquele Circo Místico. Por quê? Não sei. Fiquei inquieto e não sosseguei enquanto não fiz uma série de desenhos e bonecos, que expus na bonita Galeria Tenda, do amigo querido Ideo Bava. A vida inteira fui fascinado pelos freaks, artistas como a mulher barbada, o homem mais forte, o homem elefante, essas infelizes criaturas que ganhavam a vida sendo exibidas em circos. E o O Grande Circo Místico continha o mundo do circo, a religiosidade católica de Jorge de Lima, o sexo. Um circo místico, em lugar da serragem, o incenso de igreja. O mistério, a perfeição. Confeccionei bonecos baseados em todos os personagens do poema. Muita gente conhecia meus alegres e coloridos bonecos, criados sob a estética Pod Minoga. Na Tenda, me mostrei diferente. Os bonecos eram grotescos, bordados com fios de prata, bonecos que não eram mais felizes, mas, sim, estranhos. Eu os coloquei dentro de redomas de vidro com pétalas de rosa fenecidas. Tinha um ar funéreo aquilo tudo, e não eram bonecos vendáveis. Tudo muito diferente do que eu tinha feito antes. E, então, comecei a sonhar com um espetáculo para ser feito com o grupo do Violla, um espetáculo de dança. Como a produção seria difícil e cara, não levamos a ideia adiante. Alguns anos mais tarde, fui para Curitiba fazer um cenário para um balé, Jogos de Dança, com músicas do Edu Lobo. Depois que estreou, Edu me falou que o Teatro Guaíra lhe havia feito um novo convite e perguntou se eu tinha alguma ideia para um roteiro de coreografia. Eu falei de O Grande Circo Místico. Mandei fotografias dos desenhos e bonecos da exposição e o poema, para o Edu. Ele gostou muito, então chamamos o Chico Buarque, que topou escrever as letras. Os dois criaram uma obra fantástica. Foi uma união feliz. Sem usar uma única palavra do poema, Chico escreveu letras incríveis para o roteiro que eu havia articulado para o balé. Infelizmente, com a encenação do balé Circo Místico eu não tive nada a ver. Quando a direção do Teatro Guaíra impôs seu coreógrafo oficial, eu me afastei, pois sabia que a estética de Carlos Trincheiras não era a ideal para o que eu tinha na cabeça. Nada pessoal. Como ele seguia uma rígida linha clássica, eu tinha que me afastar. Então, abri mão da direção, que foi feita por Emílio Di Biasi. Eu não sonhava o Circo Místico que foi para os palcos e se transformou num sucesso incrível. Meu Circo Místico seria sombrio, com cheiro de incenso, com aquela tonalidade católica das igrejas barrocas mineiras. Emílio Di Biasi dirigiu, Carlos Kur fez os cenários e Irineu Chamiso, os figurinos, muito bonitos. Vinte anos depois, nova montagem, coreografada por Luís Arrieta. Muito interessante, moderna, ousada, com maravilhoso visual de Rosa Magalhães. Mas, para encerrar esta parte, eu diria que o meu Circo Místico nunca chegou ao palco. Me contentei com os desenhos e ilustrações que fiz para as várias edições da trilha sonora de Edu e Chico. Capítulo XXXV Na Ópera Certamente foi a incômoda recepção a Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão que me afastou da escrita durante tanto tempo. Culpa de um processo interno depressivo. Outros autores não recuaram por causa de decepções até maiores. Mas aconteceu comigo, as ideias fugiam da mente, não chegavam ao papel ou ao computador. Durante esse período não fiquei parado, pois precisava ganhar a vida e minhas gatas Prissy e Bibi precisavam comer boas rações. Jamais consegui cantar ou tocar um instrumento. Nos corais escolares, sempre me escondi na última fila e fingi cantar, movimentando os lábios. Como já falei antes, tive aulas particulares de piano com mestres e mestras de Pirajuí, mas nunca ultrapassei a clave de sol. Entalei na clave de fá. Minha mãe, orgulhosa de ver a filha Neide tocando harmônio na igreja, imaginava que o mesmo poderia ser feito por mim. Na adolescência, tentei o violão, mas não suportei a dor nos dedos. Para piorar, meu pai dizia que violão era instrumento de bêbados. A melhor solução que encontrei foi me conformar em ser ouvinte. Entretanto, a música sempre foi uma necessidade no fazer teatral. E, por obra do destino, ou seja, lá pelo que for, acabei me apaixonando pelo mundo da música, fosse ela popular ou erudita. Trabalhei com Elis Regina, Chico Buarque, Maria Bethânia, Pena Branca e Xavantinho, Renato Teixeira, Gonzaguinha. Trabalhei também com os maestros Jamil Maluf, Samuel Kerr, Mário Zaccaro, Mara Campos, Roberto Tibiriçá, Sérgio Bizetti, Abel Rocha, Ira Levin. Com cantores e cantoras de ópera do porte de Céline Imbert, Cláudia Riccitelli, Sílvia Tessutto, Rosana Lamosa, Edna Oliveira, José Galliza, Fernando Portari, Sebastião Teixeira, José Marson, Luciano Ramos e outros. Como isso pôde acontecer? Não sei, não tenho uma explicação lógica. Talvez, mesmo sem saber ler partituras, eu tenha uma musicalidade embutida que me permite dialogar com elevados artistas, mestres em suas áreas. Embora apaixonado pela música, em especial pela ópera, era muito forte e dolorosa a sensação de estar me afastando de minha rota maior que sempre foi o teatro. O texto, as discussões sobre ele e os personagens, as ideias, o milagre da interpretação pareciam ter me abandonado. Passei a buscar caminhos paralelos. Emílio Kalil, então diretor do Teatro Municipal de São Paulo, convidou algumas pessoas para integrar um conselho que daria opiniões sobre a programação. João Cândido Galvão, eu, maestro Samuel Kerr, Ana Maria Lobo, representantes da orquestra e do coro, maestros. Feliz por estar sempre naquele teatro, aconteceu a oportunidade de me aproximar dos artistas ligados à ópera. E entrei numa fase de muita atividade musical. Participei, com o maestro Alessandro Sangiorgi, das Vesperais Líricas, em que minha função era de diretor cênico. Improvisava cenários, pedia emprestados figurinos do acervo do teatro, dava aos cantores uma tímida orientação de interpretação teatral. Na verdade, como sempre, eu aprendia com a experiência em território desconhecido. Quando alguém, oriundo do teatro, passa a trabalhar com cantores de ópera, a tendência é pensar que vai dar uma condução teatral para eles, mas não é bem assim. Quem manda na interpretação operística é, acima de tudo, a música. O compositor de uma ópera, ao escrever as notas na partitura, inclui emoções, estados de espírito, silêncios, gritos e sussurros. O texto teatral, que nasce sem música, está mais aberto a interpretações. Levei algum tempo para entender que, ao dirigir um cantor, era muito importante fazer marcações aparentemente naturais ou estéticas que o deixassem sempre em contato com a regência. o coro, a parafernália de cenários, figurinos, O conjunto formado pela orquestra, os solistas, iluminação, os urdimentos nos quais ficam presos os cenários, tudo que está fora de cena, é apavorante, tem algo dos perigos do circo, da altura dos trapézios, da fúria das feras que saltam e atravessam o arco de fogo. Parece que a qualquer momento pode acontecer um erro, uma tragédia, o cantor e a orquestra podem se desencontrar. Talento, técnica, um tanto de milagre fazem com que tudo dê certo. Profissionais e plateia se arrepiam. Quando dirijo ópera ou um grande texto teatral, procuro o caminho do bom-senso, ou seja, o do respeito ao autor. Minha admiração por compositores, instrumentistas, maestros, cantores é imensa. Infelizmente, nossa programação operística é muito pequena e realizada com grandes dificuldades econômicas. Devido a isso, são raras as oportunidades para dirigir. Comecei com a Ópera dos 500, uma tentativa de criar uma obra brasileira. Internamente, para os comprometidos, serviu como uma grande aula. Capítulo XXXVI A Ópera dos 500 O resultado, pela própria natureza da encomenda petista, foi ingênuo, meio demagógico. Mas serviu como um grande e complexo exercício. Dois corais, muitos solistas, figurantes, bailarinos, circenses, uma multidão no palco. Funcionou, mas tenho consciência de que meu libreto não tem boa qualidade literária. A parte musical ficou a cargo do maestro Nelson Aires e de Rodolfo Stroeter. A encomenda foi feita de última hora, a ópera estava aprovada, mas não havia verba na secretaria. O PT acabava um mandato, sendo Luíza Erundina a prefeita, e a secretária de cultura, a filósofa Marilena Chauí, autora da ideia que originou o libreto. As campanhas para a nova prefeitura rugiam enlouquecidas no Anhangabaú enquanto ensaiávamos na cúpula do teatro. Só contamos com solistas e artistas brasileiros que se dedicaram com entusiasmo ao projeto. Marlui Miranda se destacou dando beleza e credibilidade à parte indígena, e J. C. Violla e seu grupo atuaram em vários momentos do espetáculo. Participaram os solistas José Marson, como Colombo; Mônica Martins, como a rainha Isabel da Espanha; Sílvia Tessutto, como uma mendiga que cantava uma belíssima ária; e outros. O diretor artístico do teatro, nesse período, era Emílio Kalil. Capítulo XXXVII Os Pescadores de Pérolas Depois dirigi e fiz toda a parte visual de Os Pescadores de Pérolas, de Georges Bizet, que voltaria a encenar dez anos mais tarde no Teatro Municipal de São Paulo e no Palácio das Artes de Belo Horizonte. Os Pescadores..., uma fantasia oriental muito ao gosto do século 19, era ágil, curta e tinha melodias deliciosas. O público delirou com os mergulhadores que inventei para ilustrar a abertura. Wagner Freire criou uma luz mágica, encheu o palco de fumaça e bolhas. Tinha de tudo – romance, luta, amor, maldição, incêndio. Regência do maestro Jamil Maluf. E os solistas foram Cláudia Riccitelli, Fernando Portari, José Gallisa e Sebastião Teixeira, além do Coral Paulistano. Atores e circenses faziam a figuração. Capítulo XXXVIII Jenufa Vários anos depois, o maestro Ira Levin, à frente da orquestra do Teatro Municipal de São Paulo, decidiu montar Jenufa, de Leos Janacek, inteiramente cantada em tcheco. Nunca, que eu saiba, havia sido encenada no Brasil. Jenufa foi baseada em fato real acontecido na então Tchecoslováquia – uma mulher religiosa, intencionalmente, deixou um recém-nascido morrer na neve. Um drama realista de forte carga dramática, praticamente uma obra teatral cantada. Não fosse a competência de João Malatian e Bebel Nogueira, eu não teria conseguido dirigir essa ópera. A língua me era totalmente desconhecida e os cantores brasileiros aprenderam a pronúncia com uma senhora tcheca que lhes dava aulas. O texto, na partitura, estava escrito apenas em tcheco e alemão! Dois solistas americanos falavam alemão e já haviam cantado a ópera em outros países, mas a intérprete de Jenufa foi uma polonesa grandalhona e ótima cantora, que apenas falava polonês e alemão. Nada de inglês, francês, espanhol ou alguma língua ao meu alcance. Depois da estreia, ao sentir o tamanho do sucesso de sua colega americana, a mulher polonesa pirou e revelou uma grossura que até então não havia demonstrado. Por pouco não apanhei da mulher. Tenho um amigo que, em Xerxes, por motivo algum, levou um tapão de uma prima-dona inglesa. Folclore da ópera. São admiráveis os solistas e os coralistas – cantam em qualquer língua. Capítulo XXXIX Lucia di Lammermoor A minha última direção de ópera foi uma desapaixonada encenação da surrada Lucia di Lammermoor no Teatro São Pedro. O que aconteceu durante o processo é inenarrável. A 20 dias da estreia, nenhum sinal da verba para figurinos e cenários. Fomos socorridos por uma pessoa culta e sensível, amante da ópera. Para fazer o papel da moça que enlouquece de amor, veio uma cantora da Argentina que bem podia ter ficado em casa. Temos dúzias de cantoras melhores do que aquela senhora, de cujo nome felizmente já me esqueci. Capítulo XL Uma Hesitante Retomada da Escrita Mesmo trabalhando sem parar em projetos di-versos como o da exposição Brasil Quinhentos Anos, em desfiles de moda encenados para a Fórum, Daslu, na escrita de contos para o jornal Diário Popular, a cobrança dentro de mim não cessava. No fundo eu sabia que minha vocação maior é o teatro e eu, timidamente, voltei a escrever. Eu havia relido os beats americanos, principalmente Allen Ginsberg, um dos meus favoritos. A nova leitura do Kadish, do Allen, foi um empurrão para eu escrever Água com Açúcar, peça que nasceu em outro formato. Eu nem sabia em que ia dar aquela alternância de prosa com forma poética. Água com Açúcar foi um ponto diferente na minha escrita teatral. Ao iniciar o projeto Água com Açúcar, eu me sentia enferrujado, tanto para a escrita quanto para a direção. Uma sensação incômoda, de não estar completamente integrado. Tinha ficado tanto tempo afastado... Ao juntar várias narrativas curtas diferentes num mesmo texto, não estava seguro de que o personagem central era verdadeiro. Eu pensava: Será que não estou fazendo um arranjo? Não estou forçando a barra? Quase ninguém viu. Eu acho que Alberto Guzik, foi a única pessoa da imprensa que assistiu a esse espetáculo. Os outros jornalistas e críticos ou não foram ou mantiveram um constrangido silêncio. Amigos não foram ver, por medo de não gostar. Isso acontece também comigo... Mas não fiquei abatido pelo insucesso de Água com Açúcar. Minha querida assistente Guga Pacheco estava ao meu lado e tinha excelente humor. Miko Hashimoto, parceira das boas, criou o único e bonito vestido. Isa Kopelman gostava tanto de fazer a peça que, mesmo com poucas pessoas na plateia, ela entrava em cena com tudo. Eu já sabia que seria outra coisa, quando Isa e eu resolvemos montar a peça no pequeno e aconchegante Teatro da Cultura Inglesa de Pinheiros, espaço bonito, bem equipado, dirigido por gente amável e civilizada. Muito pouca gente foi nos ver. Diziam, talvez para nos consolar, que era um problema de estacionamento. Não sei. Quando as pessoas gostam ou ficam interessadas, vão a qualquer lugar. Talvez não fosse a hora... Enquanto não escrevia outras peças, fiquei alterando Água com Açúcar. O monólogo original chegou a se transformar em peça para vários personagens, a personagem central virou um homem, mudei sequências de posição. Fiz muitas leituras, inclusive com alunos de um semestre em que trabalhei na Escola de Arte Dramática. Para eles finalizarem o curso, escrevi Festas do Amigo Secreto, praticamente uma compilação de trechos e personagens de várias peças de minha autoria. Com esses alunos eu viria a for-mar um grupo e chegamos a ter uma sala na Vila Madalena. Capítulo XLI O Teatro da Rua Girassol – Os Comediantes da Aurora Um dia, deu vontade de recuperar o espírito do Pod Minoga. Como tinha dado um curso de interpretação de um semestre na Escola de Arte Dramática e outro no ateliê da Cristina Mutarelli, juntei os ex-alunos das duas turmas e abrimos um espaço teatral na Vila Madalena ao qual chamamos de Os Comediantes da Aurora. Dividimos o espaço com um grupo de jovens circenses, mas essa quase sociedade revelou-se frustrante à medida que atividades barulhentas como capoeira – cantos e instrumentos de percussão – e uma enorme cama elástica posta à nossa porta tornaram inviável o belo e pequeno teatro. Formaram o grupo: Ana Andreatta, Fernanda Couto, Ester Lacava, Bha Bocchi Prince, Kiko Vianello, Fábio Espósito, Guilherme Freitas, Paulo Barroso, Rodrigo Salazar, Walmir Pavam, Rogério Curi, Luísa de Oliveira e Marina Leme. Para a trupe saída da EAD, adaptei um conto meu, Strippers, e para os outros, O Pivô. Sempre apaixonado por São Paulo, pelo centro da cidade em especial, mergulhei no submundo paulistano. No centro da São Paulo do começo dos anos 60, vi as primeiras manifestações de intelectualidade, assisti ao nascer de uma geração de jovens poetas, músicos, artistas plásticos e gente de teatro. Nós costumávamos passar as noites, muitas vezes de capa e guarda-chuva, nas ruas da zona bancária, o centro velho, observando aqueles prédios antigos, os edifícios art déco lindos. Uma vez, depois de muita andança, amanhecemos no Jardim da Luz e lavamos o rosto num chafariz. Íamos também para a vida noturna que rolava na área da Avenida São Luis, a Galeria Metrópole, o Leco, até o Ferro’s Bar, lugares bons para varar a noite conversando. Para mim era uma delícia e um problema porque, dia seguinte, eu tinha que trabalhar como datilógrafo na Companhia de Seguro Minas Brasil. Strippers e O Pivô contêm personagens urbanos, os anônimos do centrão, que eu vinha abordando nas crônicas e contos do Diário Popular. Às vezes me inspirava em coisas que aconteciam na realidade, mas a maioria dos temas era inventada. Os Comediantes da Aurora durou quase um ano, mas não foi adiante principalmente por dificuldades financeiras. Não tivemos patrocínio, apoio, juízo e capacidade administrativa. Queríamos ter nosso espaço e fazer peças, só. Entendo que os órgãos governamentais não tenham dado dinheiro, porque, na verdade, não procuramos, não fomos atrás para valer. Foi chato o projeto passar quase em branco no mundo cultural. Isso eu acho mais grave, porque pensava que pelo menos haveria curiosidade pelo que estávamos fazendo. Capítulo XLII Strippers Até certo ponto fiquei muito satisfeito com o resultado do espetáculo, por causa do talento e empenho do elenco. Os personagens complexos precisaram ser procurados não na vivência dos intérpretes e sim in loco, nos perigosos modelos, nos teatros de revista decadentes do centrão. Nossa primeira visita foi cheia de percalços. Exceto pelas strippers, que se apresentavam no palco e perambulavam pelos corredores a se oferecer aos homens da plateia, a presença de mulheres estranhas naquele lugar era impensável. E, um dia, chegamos em grupo. Foi um espanto, até os homens, velhos ou novos frequentadores estranharam. Cochichos meio assustados, olhares enviesados, sentiam que estavam sendo observados. Um homem, gerente ou dono, veio conversar com a gente, explicamos o objetivo e ficaram mais sossegados, prontos para colaborar. Certa hora, nossas atrizes foram ao banheiro, que também servia de camarim para as strippers, e com elas conversaram, receberam informações sobre quem costurava os figurinos, etc. Tudo muito amigável. Os lugares da primeira fila, disputados por tipos interioranos ruidosos, eram mais caros e permitiam ver tudo ginecologicamente e também tomar liberdades maiores. As moças se aproximavam e os homens passavam a mão em peitos e bundas. Caso avançassem demais nas intimidades, levavam um tapão na cara. Nada de briga, altas gargalhadas. Algumas ficavam nuas no espaço entre um setor e outro da plateia, com tubos de Vasenol na mão. Por dez reais, deixavam o freguês lambuzar seus corpos. Ali, ninguém era malservido. Enquanto os intermináveis e monótonos stripteases rolavam no palco, outras moças, nuas, passavam entre as apertadas fileiras e permitiam que os espectadores as apalpassem. Fomos brindados com um número de luxo, feito especialmente em nossa homenagem. Demorou certo tempo para armarem no palco uma enorme teia de aranha feita de grossas cordas. Começou a música e assistimos ao combate entre duas mulheres-aranha, um striptease artístico e lésbico. Juro que saímos até comovidos. Diante da igreja que ameaçava, aquela gente era pura inocência. Capítulo XLIII O Pivô A peça foi escrita para o grupo oriundo do estúdio de interpretação de Cristina Mutarelli. Usei o conto O Pivô, uma tragicomédia, e a ele adicionei situações e personagens de outros contos também publicados no Diário Popular. Dentro de um vagão de metrô, em tom altíssimo, indiscreto, Alfeu Fedegoso, rapaz fanhoso vindo de um estado do nordeste brasileiro, narra a Elpídia Mangabeira, hippie madurona, suas desventuras, sua paixão por um policial de sua terra, o pivô de uma tragédia. Ele próprio tem um dente pivô por conta da porrada que levou de seu amante. A montagem oferecia uma sucessão de acontecimentos com personagens tirados da grande massa anônima paulistana. Capítulo XLIV Aquele Ano das Marmitas – A Retomada A ideia de escrever Aquele Ano das Marmitas veio do esforço de voltar ao caminho, de reencontrar de certa maneira a família semi-imaginária abandonada em Um beijo... Acho que tenho um caminho, demonstrado pelas peças que escrevi. Com mais de 60, dá pra olhar para trás e ver que você tem uma história, que seu trabalho tem um formato. E o tema de Aquele Ano das Marmitas me perseguia havia muito tempo. Houve na história da minha família um fato vagamente parecido com o que é narrado na peça. Eu me perguntava por que os ídolos fazem a cabeça da gente. Não foi apenas o acontecido com meu pai que me fez querer tratar desse tema. Por exemplo, tive um amigo de juventude, logo que cheguei a São Paulo, que, mais velho para a nossa geração de jovens artistas da Faap, ele representava tudo. De tão influenciados, houve um tempo em que não falávamos com ideias nossas, só repetíamos o que ele dizia. Era inteligente, culto, refinado, irônico, mas aos poucos fui me afastando daquela influência, que não chegava a ser nefasta, mas eu queria respirar. Como já contei antes, influenciado por um suposto amigo, meu pai fez negócios confusos e teve de cumprir um ano de prisão. Durante esse tempo, eu levei marmitas para ele, para que não tivesse que comer a comida fornecida pela cadeia. Era um acordo feito por meus tios e eu fui o encarregado de transportar as marmitas. Claro que aquilo me marcou muito. A peça é narrada do ponto de vista do filho, já adulto, que levou as marmitas. É um flashback de lembranças aos pedaços, fragmentos imprecisos. Trabalhei com aquilo que eu apenas ouvi falar, com a aflição de não ter mais a quem perguntar, pois todos os comprometidos já haviam partido deste mundo. Tentei em Aquele Ano das Marmitas mostrar que as histórias, contadas muito tempo depois, são fantasiosas e fragmentadas. Os fatos podem ter acontecido, mas de outro jeito. O vilão seria mesmo um vilão? Ao longo dos anos, perdemos peças do quebra-cabeça e ele não pode ser mais completamente reconstituído. Aquele Ano das Marmitas é a peça mais consistente que escrevi nesses últimos anos. Foi lançada em livro, mas ainda está inédita no palco, e eu gostaria muito de encená-la. Houve uma leitura no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, dirigida por Marco Antônio Pâmio, mas não pude assistir porque estava no Rio dirigindo Soppa de Letra, com Pedro Paulo Rangel, e depois Pequenas Raposas, no CCBB do Rio. Eu li a peça em Portugal, em 2004. Capítulo XLV Os Contos do Diário Popular Aconteceu em 1994 uma coisa importante. O jornalista Miguel de Almeida me convidou para fazer parte de uma equipe de escritores que deveria escrever um texto semanal sobre a cidade, para o jornal Diário Popular. Tema urbano, assuntos relacionados à cidade. Aquilo me obrigou a um exercício muito salutar. Durante quatro anos redigi crônicas semanais, até ser despedido, em 1998 por estar brincando muito com a esposa do então prefeito. Era um personagem daqueles. E aconteceu um novo convite de Miguel de Almeida para escrever um conto para a revista É, do Sesc. Escrevi Strippers, um embate entre o pior teatro que pode existir, o teatro de revista do centro da cidade, 30% show de strip-tease, 70% de prostituição, contra uma igreja evangélica que está comprando diversas casas de espetáculos. Minha grande dor naquele período era a transformação do Cine Metro, na Avenida São João, em uma igreja evangélica. Outras grandes salas desativadas como o Marrocos, o Paissandu, o Astor, estavam na mira dos pastores. Então escrevi Strippers. Fizeram uma antologia sobre o Natal no Brasil, que incluía trabalhos de vários contistas brasileiros, como Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles, e Strippers foi incluído nessa coletânea. Depois, os mesmos contos foram traduzidos e publicados na França, com o lucro das vendas destinado a fins beneficentes. Vários contos publicados no Diário Popular foram adaptados para o teatro: O Pivô; Ilmo. Sr.; Domingo Feliz no Calçadão; Arrebatada e A tia é muito Esquisita. Capítulo XLVI Obras quase Completas Da mesma maneira que não me sinto confortável em ser biografado em vida, as obras completas editadas em Portugal não são bem completas, pois uma peça como O Pivô ficou de fora porque cismei que estava datada. Arrebatada ainda não havia sido escrita e Um Ato de Natal foi publicada sem uma boa revisão. Em 2005, a editora e casa de estudos portuguesa Cena Lusófona editou minha obra quase completa, um livro que chega perto das 1.500 páginas. Já tenho várias peças editadas aqui no Brasil, mas achei meio inacreditável quando me falaram em fazer aquela grande edição em Portugal. Fiquei muito feliz, comovido. Parecia sonho, mentira. Senti coisa parecida quando Hermes Frederico me convidou para dirigir Longa Jornada. Era coisa demais para um menino nascido em Pirajuí. Era o que eu mais queria, um presente do céu, um presente de Natal nunca ganho. Esse livro também, para mim é um lindo presente, algo de muito especial. Adoro os livros, esse especialmente, que a Cena Lusófona produziu com capa dura e páginas em papel-bíblia. Fazem parte da coletânea, prefaciada por Alberto Guzik, as seguintes peças: No Natal a Gente Vem te Buscar, A Aurora da Minha Vida, Um Beijo, Um Abraço, Um Aperto de Mão, Suburbano Coração, Água com Açúcar, Ilustríssimo Senhor, Aquele Ano das Marmitas, Um Ato de Natal, Nijinski, Ódio a Mozart (peças longas), Domingo Feliz no Calçadão e A Tia É muito Esquisita (peças curtas). Capítulo XLVII Considerações e Reflexões Aprendi que cada manifestação artística tem a sua linguagem. E que o bailarino, antes de tudo, tem que dançar. Ele é um dos artistas que me-nos chance tem de pensar quando executa seu trabalho durante um espetáculo. O jogador de futebol tem que improvisar, mas pode planejar suas jogadas. O bailarino, se ele foi coreografado, tem que seguir uma linha de movimentos e controlar seus músculos para chegar ao melhor resultado. Pode-se dar um toque de interpretação ao trabalho dele, mas funciona mais quando esse toque é dado no momento em que a coisa está sendo criada. Nunca dirigi um bailarino como dirijo atores, é muito diferente. Assim como o cantor de ópera: na própria composição que ele está executando está mais ou menos embutida a emoção. O compositor colocou o grito naquele lugar, o lamento naquele outro, a música passa tudo isso. Então, é preciso ter uma direção apropriada para cada veículo com que se trabalha. Isso eu aprendi. O bailarino tem que fazer intermináveis exercícios para que a perna chegue ao ponto que o coreógrafo imaginou e para cair no chão da maneira determinada, para contracenar com a bailarina. É o diálogo do corpo de um ser em harmonia com o corpo do outro. Ou o diálogo dos conjuntos, dos deslocamentos. O ouvido do bailarino para a música é diferente, ele ouve a música contando tempos. Ouve de maneira técnica, porque tem que coordenar a música ao corpo. Depois que domina a coreografia, os movimentos, a coordenação do corpo com a música, lógico que aí entra a emoção. Por isso existem bons e maus bailarinos, por isso existem aqueles que comovem o público com sua interpretação. Há também os que não interpretam, são meros atletas. Mas mesmo nas competições esportivas, há atletas que são mais impressionantes que outros, os movimentos daqueles são mais bonitos. Ao contrário do que achava quando professor, hoje tenho a certeza de que nem todo mundo pode ser artista. E sei também, infelizmente, que o artista pode se perder quando se comercializa além de certo ponto. O intérprete que passa longo tempo apenas na televisão ou dedica a maior parte de sua carreira a fazer apenas comédias de mau gosto, para satisfazer um público de baixa exigência, esse artista vai aos poucos perdendo a chama interior. Woody Allen aborda isso em Desconstruindo Harry. O ator perde o foco. O contato com as artes em geral me levou a um aprimoramento interior. Fiquei mais exigente. Hoje, eu tenho um olhar mais atento para o todo e os detalhes do que antigamente. E sinto grande dor e indignação quando adulteram meus textos bobamente, só para mendigar risos grosseiros da plateia. Durante alguns anos, não escrevi textos saídos diretamente de minha alma, mas criei com todo o empenho alguns de encomenda. Dirigi espetáculos teatrais a partir de textos de outros autores, bem como grandes desfiles de moda, festas de premiação. Pintei quadros. Continuei a trabalhar com dança, música, óperas, continuei a fazer cenografias, figurinos, escrevi crônicas. Até com circo eu tive contato. A maior das razões para tantos caminhos talvez seja a curiosidade de enfrentar novos desafios. Outro fator que pesa muito é aquela vontade de realizar o sonho, de viver da minha maneira aquilo que parecia impossível. Não tive condições ou vontade de ser ator, mas adoro dirigir atores. Nunca fui capaz de cantar Feliz Aniversário em festas, nem hinos na igreja e nos corais escolares. No circo, ficava apavorado com o trapezista que se balançava e se jogava nas alturas, morro de medo de altura. Quanto a dançar, tropeço um pé no outro e caio. Talvez essa capacidade de trabalhar com diferentes veículos seja um dom natural que veio comigo. Os desafios sempre me fascinaram. Claro que algumas vezes tive medo. Muitas vezes enfrentei os riscos, mas em outras também recuei. Quando Fernando Bicudo estava na direção do Teatro Municipal do Rio, ele me convidou para dirigir O Morcego, do Strauss, eu agradeci e disse: Não tenho capacidade para fazer isso! E não fiz. Quando me chamaram, muito tempo depois, para dirigir Os Pescadores de Pérolas, de Georges Bizet, aceitei o convite, e daí pareceu uma coisa natural. Eu tinha reunido bagagem suficiente para encarar aquilo. Capítulo XLVIII Minhas Peças Dirigidas por Outros Encenadores Depois das primeiras encenações dirigidas por mim, meus textos têm recebido muitas montagens. Não tenho mais o total controle cênico de meu trabalho que tive em outras épocas. Mas ainda tento fazer pelo menos com que a primeira montagem seja minha. Porque é nessa primeira montagem que vou ver defeitos que a peça recém-escrita contém. É raro uma peça sair perfeita na primeira escrita. Então, pelo menos a primeira montagem eu quero fazer. Depois que o texto se torna público, fica difícil controlar as montagens. Eu sofro muito, às vezes. Já assisti a encenações de textos meus, feitos por outras pessoas que me deixam mal, seja pela interpretação do diretor ou do ator ou pelos cortes ou inserções que fazem sem me consultar. Às vezes prefiro não assistir pra não passar mal depois. Quem não gosta do texto de um autor que escreva o seu próprio texto. Mas vi, também, montagens de textos meus dirigidas por outras pessoas que me agradaram. Sem dúvida, coloco nesse caso as produções feitas em Porto Alegre. Tanto as que a Irene Britzke dirigiu, No Natal a Gente Vem Te Buscar e A Aurora da Minha Vida, quanto de Luciano Alabarse, que encenou Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão. Houve muito respeito e nenhum sinal de uma coisa que me incomoda muito: a tentativa de adaptação ou modernização. Por exemplo, uma vez pediram licença para encenar Maratona (peça que em geral não autorizo) e puseram um figurino futurista nos atores. Só vi as fotografias. Muito tempo depois, recebi uma cópia do texto que usaram. Toda alterada, cenas trocadas, com inserções de cenas e diálogos de outras peças de minha autoria! Não dá. Vi uma montagem de No Natal... em que a cada fase da peça o figurino tinha uma cor. E os atores estavam todos descalços. Fiquei olhando mais para o pé dos atores do que para o resto do espetáculo. Não entendi até hoje por que os atores estavam descalços. Então, às vezes, eu prefiro não ver e deixar que cada um faça sua interpretação, eu faço algumas restrições, geralmente, mas eu sei que nem todo mundo obedece. É incômodo. É delicada a interpretação de uma obra. Eu sempre tive muito medo de ser mal-entendido em certas passagens que foram escritas como críticas ao comportamento da classe média. No Natal a Gente Vem Te Buscar tem uma sequência na qual duas brancas preconceituosas usam termos como negrinha, encardida e outras coisas tão injustas quanto. A sociedade brasileira, acostumada e acomodada na escravatura, guardou conceitos e preconceitos. São abundantes as piadas racistas, a literatura e as letras de músicas estão repletas de termos hoje incorretos. De tanto medo que a cena fosse ofensiva demais, na última montagem, eu mesmo substituí os negros da cena pelos pobres. E isso acontece. Uma vez vi numa cidade mineira uma bela montagem de A Aurora..., na qual o diretor tinha dado ao personagem do padre uma linha completamente desmunhecada. Ao ver aquilo, pensei: Mas eu não escrevi isso! Nos tempos do teatro político, do teatro de resistência, todo clérigo era invariavelmente apresentado como veado. Esquerda machista. Mas eu não escrevi A Aurora... daquele jeito. Aquele diretor deu ao personagem outra leitura, não a minha. Quem fica com a má fama em geral é o autor. Afinal, o diretor e o ator estão escondidos atrás do texto. No caso, o diretor era o ator. Tenho dirigido muitos textos que não são meus. É importante estar apaixonado. Gosto de dirigir textos de outros autores. Por muitos motivos. O maior deles talvez seja pela hora dos trabalhos de leitura em volta da mesa. Nessa hora lemos, discutimos. É muito bom ouvir os diálogos falados pelos atores. Quantas vezes reescrevi, cortei ou adicionei diálogos durante uma leitura. Seja o texto bom ou mau, se aceitei dirigir, luto por ele, procuro descobrir até o que ele não tem. O texto para mim é o mestre maior, o grande orientador de tudo. Costumo ficar com os atores às vezes mais de um mês na mesa. Seguro os atores até se discutir tudo. Se possível, até o ponto em que eu esteja ouvindo uma peça radiofônica na mesa, até que tudo esteja conversado, descoberto. Muitos ficam impacientes, sobretudo aqueles que se habituaram à pressa característica da televisão. O autor é o guia, o texto é o guia. Mesmo que você faça uma adaptação não pode alterar regras do jogo, pois elas são fundamentais, não adianta lutar contra. Se alguém, ao dirigir uma peça da qual não gosta, fizer cortes, pode fazer cortes errados. O resultado vai ser trágico. Outra saída infeliz é encher de efeitos. O texto e os atores têm que estar bem até no escuro ou na luz de serviço. Capítulo XLIX Grandes Textos Dirigi algumas peças bem difíceis. Poucas, na realidade. Longa Jornada de um Dia Noite adentro, de Eugene O’Neill, com Cleide Yáconis e Sérgio Britto foi uma delas. A família Tyrone me dominou. Com a morfina de Mary e os porres de James e dos filhos. Poucas vezes, dores e amores tão genuínos apareceram num palco. Poucos anos depois, assinei a direção de Pequenas Raposas, de Lillian Hellmann, com Beatriz Segall. Acho que a dimensão de Longa Jornada é a de uma obra-mestra, talvez a mais importante de Eugene O’Neill. Pequenas Raposas tem diálogos brilhantes, virulentos, entrelaçados: um fala daqui, o outro responde ali, o outro suspira, o outro observa e trama, um passa a perna no outro. Quando se pensa que um está ganhando a parada, o outro passa uma rasteira. É um jogo cênico, uma ação extremamente difícil de ensaiar. Mas também é uma peça rica, que tem um sabor maravilhoso, muito inteligente. Esses grandes textos são deliciosos desafios. Aprende-se muito quando a gente trabalha com atores do porte de Cleyde Yáconis, Sérgio Britto, Fernanda Montenegro, Beatriz Segall e outros. Não percebi métodos ou segredinhos especiais e sim um forte senso de trabalho antes de qualquer coisa. Estudo incansável do texto, atenção respeitosa ao diretor e aos colegas. Descobertas dos sentidos da peça, dos diálogos, das intenções do autor. Tentativas, acertos e erros. A função do diretor é fazer uma espécie de regência com os instrumentos sob a sua batuta. Pode ser um monólogo, um dos gêneros mais difíceis, ou uma peça com mais atores. Durante os ensaios, interpretações e direção têm que se casar harmoniosamente. Quanto aos atores, a interpretação de um tem que casar com a do outro, um modifica o outro, e unificar isso é a função do diretor. Antes de pensar se a encenação vai ser num teatro convencional ou num espaço como uma obra do metrô, ou se os atores estarão suspensos num mecanismo, ou amarrados numa máquina, tudo tem que ter vindo do autor, do texto, e do casamento dos atores com o diretor. Inteligência e sensibilidade casadas. Já vi espetáculos em que era evidente que o figurino, o cenário ou a própria encenação tinham vindo antes da compreensão do texto. E esses espetáculos, embora encantassem a vista, careciam de profundidade. Existem textos que eu gostaria muito de dirigir. Sonho com O Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, outras obras de Eugene O’Neill, entre elas The Iceman Cometh, obras de Arthur Miller... Agora, em São Paulo, André Garolli está fazendo um belíssimo projeto com a obra de O’Neill, grande paixão. Conforme vou amadurecendo, ficando mais velho, mais gosto de dramaturgia. Há pouco tempo, conheci Thomas Bernhardt. Se fosse possível voltar no tempo, gostaria de rever e conviver com artistas como Myriam Muniz, Eugênio Kusnet. No único filme comercial que fiz como ator, Kusnet era meu mordomo. Como pode? Ele era muito melhor que o patrão, claro. Queria ter visto Cacilda Becker mais vezes. E todos os trabalhos de Cleyde. Não cheguei a ver Sérgio Cardoso, mas vi Leonardo Villar e Dionísio Azevedo em O Pagador de Promessas. No TBC, vi peças de Jorge Andrade! No Arena, com aquele elenco, Myriam Muniz, Juca de Oliveira, Paulo José, Dina Sfat, Isabel Ribeiro, vi A Mandrágora, O Noviço, e não sei quantas outras. No Oficina, me deslumbrei com as direções do Zé Celso, vi aqueles elencos nos quais se sentia a mão do Kusnet. Pequenos Burgueses, Andorra, Os Inimigos, Galileu Galilei... E também vi Antunes Filho pré-Macunaíma -A Falecida, Bonitinha mas Ordinária, Bodas de Sangue, Peer Gynt, Black-Out. Aprendi. Dos diretores internacionais, grandes impressões e influências. Bob Wilson e Victor García pareceram super-homens. Personalidades únicas. Se copiasse aquilo, nunca iria passar de um ridículo imitador. Nunca conseguiria reproduzir aquela poética violência que Victor pôs em cena no Cemitério de Automóveis e no Balcão. Eles não me influenciaram, eu sabia que não podia com uma estética daquelas. O teatro hoje é diferente, melhor do que quando eu comecei. O nível das produções é evidentemente melhor. Mas, às vezes, eu sinto falta de peso nas coisas que são feitas. Eu não sei se é a memória que me trai, mas faz tempo que eu não vejo um espetáculo como Andorra, por exemplo, como Pequenos Burgueses. As montagens do Zé Celso na primeira fase do Oficina me emocionavam de verdade. Entretanto, nos dias de hoje surgiu uma criatura excepcional como Antônio Araújo e sua obra. Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1.11 foram obras do maior impacto. Antônio Araújo tem um caminho original, único e é um encenador incomparável. Os críticos, obrigados pela profissão a ver quase tudo, reclamam da quantidade e da qualidade do que há em cartaz. Aumentou a população, aumentaram os meios de comunicação, há mais acesso para todo mundo a tudo, até aos espetáculos. Francamente, vejo com simpatia até os equívocos dos jovens ou dos veteranos. Acho que as pessoas têm o direito de se manifestar. No fim, vem a peneirada. Os bons vão ficar e muita coisa vai para a lata de lixo da história. Mas acho que o sagrado direito de fazer tem que ser preservado. Minha intuição indica que devo me dedicar cada vez mais à dramaturgia e à pintura, atividades individuais, de acordo com a idade, que insiste em aumentar. Porque acontece um processo de depuração. Outro dia peguei toda a minha biblioteca de teatro de bonecos e dei para meu irmão Beto. Juntei muitos livros de culinária que também estou doando. Dei alguns ao Lincoln, refinado motorista de táxi, estudante de gastronomia que conheci no aeroporto de Congonhas. Muitos foram parar na estante do sítio de minha querida Guga Pacheco. Já sei que não vou ser um cozinheiro. Se fizer bonecos uma hora, vou fazer alguns bonecos, mas não vou ser mais o bonequeiro que uma vez fui, que queria saber tudo sobre o universo de bonecos. Percebo que já está acontecendo um processo de seleção e depuração. A pintura e a dramaturgia acenam como focos do futuro. Hoje, já abro mão de fazer cenografia, figurinos. Por exemplo, em Longa Jornada... e Pequenas Raposas, Celina Richers fez o cenário; Miko Hashimoto e Betty Filipeck criaram os figurinos. São coisas que antes eu fazia questão de realizar, mas das quais estou abrindo mão para me concentrar em outras. Eu não preciso mais pegar o mundo com as mãos. Acho que já o peguei o bastante. Agora, o que desejo mesmo é pegar minhas anotações, tenho muita coisa anotada, para transformar em obra, e talvez fazer uma obra com mais planejamento, quem sabe? Escolher determinados temas e criar pequenos ciclos, fazer uma obra mais pensada, não esperar tanto pela inspiração. Muitas peças eu escrevi saindo de minha casa e me mandando pra algum hotel. Algumas escrevi em Águas de Lindoia, Caxambu, Itanhaém, Poços de Caldas, lugares ótimos para eu me concentrar. Eu levava o computador e... Acho que para Águas de Lindoia eu cheguei a levar máquina de escrever. Aquele Ano das Marmitas eu terminei no computador, em Santa Catarina, num hotelzinho muito simpático e vazio na praia de Jererê, numa semana chuvosa. Infelizmente, eu não tenho aquela constância disciplinada de tantos escritores. Admiro o Ignácio de Loyola Brandão, que se levanta de madrugada para escrever. Eu gostaria de adquirir um pouco de método para escrever. Mas quando tenho de terminar uma obra e a ideia já está embalada, escrevo dia e noite, onde estiver. Capítulo L Algumas Considerações Gerais Hoje, como sempre, continuo gostando muito de cinema e de ver filmes. E gosto do meu trabalho. O período de ensaios me deixa muito satisfeito. Como não sou ator, depois que a peça estreia meu interesse diminui bastante, me dá uma espécie de depressão pós-parto. O ator adora se apresentar todo dia, não é? É diferente do diretor. Meu interesse pelas artes plásticas permanece. Continuo me informando sobre a contemporaneidade, para gostar ou não gostar. Com música acontece uma coisa engraçada, parece que a gente para num ponto e não vai mais à frente. Pra mim existe essa sensação, ainda de que eu tenha que enfrentar muitos gêneros, conforme o trabalho. Sinto que chegou uma época em que tudo virou uma salada, não me entendo bem com os eletrônicos e afins. Eu acho que parei nos Beatles, me sensibilizei com os Rolling Stones. E olha lá. Mas tive uma abertura para a música erudita e para outros estilos que eu não costumava ouvir. Fiz dois shows com Pena Branca e Xavantinho, e adorei trabalhar com eles. Eram pessoas mansas, dois anjos. Montanha-russa musical, adaptação a muitos gêneros. Ao trabalhar com dança, enfrentei os vanguardistas eletrônicos e uma trilha sonora pode ser uma colagem de Steve Reich, Johann Strauss, Arthur Napoleão, Villa-Lobos e sabe Deus o que mais. Felizmente, essa abertura eu tive, não fiquei fincado em nada. Nem no teatro. Porque acontece de às vezes as pessoas ficarem fincadas em algum período. Como aqueles que acham que, depois do teatro político, não houve mais nada. Tem gente que acha isso. Enfim... O teatro deu passos significativos, que estimulam, se não estivermos mortos por dentro. Não adianta achar que a novidade da praça, o rebelde da vez, é a verdade definitiva, e se sentir ultrapassado. Isso está errado. Acho que você tem que ver quem é o rebelde da vez, que tipo de coisa ele está trazendo, e se ele puder te modificar de alguma forma, é ótimo, é ganho. Acho que os jovens têm trazido muita coisa para o palco. Mas temos que sentir também o nosso valor, o nosso peso. Um negócio que sempre me deu muita raiva era aquela coisa de a dramaturgia está morta, o dramaturgo brasileiro não existe. Atitudes como essa indicam preguiça e más intenções. Falava-se muito da inexistência da dramaturgia brasileira, o que não era verdade. A obra de muitos dramaturgos não chegou a sair das gavetas. Hoje tem leitura dramática em tudo quanto é canto, o que é muito salutar. Tem muito dramaturgo jovem sendo encenado, os tempos são melhores. Mesmo que a política cultural seja caótica e injusta, ela existe mais hoje do que antigamente. Sem a cegueira otimista da Pollyanna, a gente tem que olhar para isso como sinal de melhora nos tempos. E eu vejo com otimismo a saúde do teatro brasileiro. E não acho que em outros países haja uma saúde parecida. Às vezes, em outros lugares, as coisas são mais mortas, mais cheias de regras. Eu tenho um amigo, Magno Fernandes dos Reis, crítico de artes plásticas autoexilado no México há muitos anos, que diz: Sabe por que é que o artista brasileiro não é melhor? É por que ele é pobre! É uma grande verdade. Eu não conheço outro país onde haja tanta efervescência como aqui. E agora é que estamos começando a conhecer o Brasil. Não tínhamos noção. Só sabíamos que existiam São Paulo e Rio. Depois a gente começou a saber o que era Porto Alegre, Minas... Hoje chegam obras da Paraíba, do Amazonas, de Roraima, do Norte, do Sul, do Leste, do Oeste. Você ouve falar de uma companhia de dança excelente de Goiânia, um movimento de artes plásticas também de Goiânia, que é muito bom. Você começa a saber mais de outros lugares. De Pernambuco, que é um celeiro de artistas da maior qualidade. E o Brasil, por menos que seu livro venda, por menos que seu quadro ande por aí, ainda é uma terra que, cheia de oportunidades, você tem a chance de fazer alguma coisa. Às vezes, as pessoas perguntam qual a minha peça favorita entre as que escrevi, eu falo, acho que é No Natal a Gente Vem Te Buscar, porque acho que é uma semente. Se perguntar de novo, geminianamente posso dizer que é Um Beijo..., a filha rejeitada que devo proteger. Outra coisa que acontece é que as peças dos outros também passaram a ser minhas, e as minhas também já começam a pertencer aos outros. Acho que não fiz nenhum trabalho que eu preferisse não ter feito. Talvez a recente montagem de No Natal... no Rio. Outro diretor poderia ter dirigido. Mas eu aceitei o convite. O que me mobiliza acho que é a arte em geral. A arte como uma paixão por muitas coisas. Acho que a minha vida é dedicada à arte. Capítulo LI O Cinema. E Romance da Empregada Tem muitas coisas que eu não posso morrer antes de fazer. Um filme, por exemplo. O mais perto que cheguei do cinema foi a redação do roteiro de O Romance da Empregada, que tem uma historinha curiosa. Certa vez, houve um concurso, acho que da Secretaria Municipal de Cultura. Não sei se foi Abujamra que teve a ideia. Era um argumento segundo o qual toda vez que um casal se encontrasse, chovia. Roberto Santos fez um filme chamado Os Amantes da Chuva. Acho que essa ideia saiu da cabeça do Abujamra, e eu me lembro que escrevi um esboço, alguma coisa, que não foi aceito. Depois, houve um concurso da secretaria. Eu escrevi um roteiro pra valer e ganhei um dos prêmios. Alguns cineastas ficaram furiosos, porque eu não era de cinema. Mas eu falei: da cá que o prêmio é meu! Fui escolhido por uma comissão cujos integrantes eu desconhecia. Mais tarde, comecei a trabalhar com Bruno Barreto e Edu Lobo no roteiro de um musical, mas ficou uma coisa vaga. A gente se encontrou algumas vezes e não saiu nada. Daí o Bruno me perguntou Você não tem nada escrito para cinema? Ele conhecia minhas peças, tinha gostado delas. Eu disse que tinha um trabalho feito para o cinema, mandei o roteiro de Romance da Empregada e do Segurador de Placa. Ele leu e, no dia seguinte, falou: Vou filmar! E começou a filmagem do Romance da Empregada, que escrevi pensando na periferia de São Paulo; mas Bruno Barreto, habilmente, transpôs a ação para a periferia carioca. Apesar disso, houve muito respeito aos diálogos. Os atores do filme – que foi protagonizado pela Betty Faria, Daniel Filho e o doce e genial Brandão Filho – contam que Bruno ficava em cima para eles não alterarem os diálogos de jeito nenhum, para ser do jeito que eu havia escrito. Não pude acompanhar as filmagens, mas gostei muito do resultado. Na minha cabeça, a personagem central deveria ser feita por uma atriz negra e volumosa, mas Bruno escalou Betty Faria e o resultado foi excelente. Nós temos planos de filmar No Natal a Gente Vem Te Buscar, mas ainda não rolou. Quero fazer um filme, vários filmes, mas não tenho coragem. Tenho a impressão de que está tudo dentro de mim, só que penso que eu não sei realizar. Bloqueio. Uma hora espero que passe e eu pegue numa câmera sem medo. Na hora de desenhar, pintar, escrever, também existe o pavor de começar. A tela branca, o papel branco... Ainda não apareceu a coragem. Um dia, quem sabe? O aparato técnico me apavora. Não sei se cinema é minha maior paixão, mas é a mais antiga. Vem desde a infância, das revistas da casa de meu avô Alberto e do Cine São Salvador de Pirajuí. Li muitas biografias de diretores, muitos começaram por brincadeira, pegaram uma câmera e saíram fazendo pequenos filmes. Preciso fazer como as crianças, começar brincando com a câmera. Cacá Diegues pensa em filmar O Grande Circo Místico a partir de um roteiro meu. Meu e dele, claro, o mestre no assunto é ele. Capítulo LII Composição Musical e Trilha Sonora Quando peço a colaboração de um músico para compor a trilha de um espetáculo de dança ou teatro, preciso pelo menos ter em mente alguma coisa para poder pedir, sugerir. Não posso me limitar ao gosto ou não gosto. Tenho que dialogar com o compositor, indicar o que quero, onde quero que a música aconteça, o que eu desejo passar em determinada cena tem esse tipo de emoção, se quero uma coisa mais pesada por que tenho que sublinhar um clima ou se não quero nada. Às vezes, acerto, outras vezes erro. Nessas horas é bom calar um pouco a boca e escutar o que o outro tem a dizer. Trabalhei com gente da mais alta qualidade: Samuel Kerr (A Aurora da Minha Vida, Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão), Marcos Leite (A Aurora da Minha Vida, Suburbano Coração, El Grande de Coca-Cola), Edgar Duvivier (Cenas de Outono, Longa Jornada de um Dia Noite adentro, Pequenas Raposas), Hélio Ziskind (Nijinsky, Big Loira), Paulo Tatit (Nijinsky), Sérgio Bizetti (A Hora da Estrela). Capítulo LIII Palestras e Encontros com Jovens As peças que vieram depois, como Aquele Ano das Marmitas, que também tem outra forma, é de certa maneira aparentada com No Natal..., Um Beijo... Fiz há algum tempo uns encontros no Sesc Copacabana com jovens atores, dramaturgos lá. Li com eles algumas peças, justamente para mostrar as obsessões que os autores têm, as influências, os pontos coincidentes. Eu falava: Vocês repararam que este personagem de No Natal é muito parecido com este, de outra peça? E eles mesmos tiraram suas conclusões. Um deles disse que Um Beijo lembra um pouco Vestido de Noiva, do Nelson Rodrigues. Eu afirmei que existem influências de Nelson e de outros. É como as coisas vão passando de um artista para outro. Cada autor também tem suas obsessões. A religião, como eu a vejo, aparece em todas as minhas peças. Capítulo LIV Aos Que Estão Começando É preciso insistir. É isso que eu tenho a dizer ao artista que está começando: que insista! Eu acredito mesmo naquilo que eu falei sobre o sagrado direito de se expressar. Isso parece uma lição antiga para mim, parece que lá, com as crianças, eu aprendi isso, com os meus orientadores. Toda pessoa tem o sagrado direito de se expressar. Se vai se expressar bem ou mal, aí já são outros quinhentos, tanto é que tem aí pessoas de quem a gente não gosta, mas têm, como nós, todo o direito de fazer isso, expressar-se, dizer o que pensam. É um mundo difícil, confuso, um mundo onde às vezes você vê triunfar as nulidades, como dizia Rui Barbosa. Citações como essa ficam mesmo na nossa memória, A Aurora da Minha Vida está aí que não me deixa mentir. Muitas vezes, o sujeito se vê em embates mesquinhos de invejas, disputas. Tem aquele dia em que você diz que vai abandonar tudo. Mas essa promessa é logo esquecida. Sempre repito que a história de No Natal a Gente Vem Te Buscar é exemplar. Falavam que era uma história de caipiras, interioranos; depois, que era uma história de paulistanos; depois, uma história de protestantes; uma história que os cariocas nunca iam comprar e, no fim, ela ultrapassou fronteiras e teve vida longa. Ainda está aí. E se eu não tivesse insistido, não teria ido para a frente. Outra coisa que percebi é que no meu período depressivo, depois das críticas em que não me aplaudiram como eu estava querendo, fiquei abatido, mas saí do abatimento por causa da insistência. Nos cursos de dramaturgia, que hoje existem aos montes, alguns muito bons, é comum os alunos lerem suas peças e um tentar anular o outro com críticas. Por que você não faz isso, não faz aquilo? Um crítico escreveu assim quando da estreia de A Aurora da Minha Vida: Você ignora as regras da dramaturgia! Aconselho aos jovens dramaturgos que escrevam. Leiam e escutem suas peças, façam anotações. A leitura permite que a gente perceba como ela pode melhorar. Não dá para evitar ataques, insinuações maldosas. Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Não sei quem escreveu a letra dessa música. Grande conselho. Quando eu era jovem, imaginava que não ia chegar ao ano 2000. Cronologia 2008 • No Natal a Gente Vem te Buscar (teatro): texto, direção, cenário e figurinos de nova produção da obra 2006 • Lançamento no Brasil e em Portugal do livro Teatro, editado pela CenaLusófona, reunindo 14 textos teatrais do dramaturgo 2005 • Os Pescadores de Pérolas (ópera): remontagem da produção de 1995 2004 • As Pequenas Raposas (teatro): direção • A Aurora da Minha Vida (teatro): texto, direção e cenário • Soppa de Letra (teatro): roteiro, com Antonio de Bonis e Pedro Paulo Rangel, direção e figurinos 2003 • Jenufa (ópera): direção, cenário e figurinos 2002 • Doze Movimentos para um Homem Só (balé): roteiro, direção, cenário e figurinos • Longa Jornada de um Dia Noite Adentro (teatro): direção • Bailes do Brasil (balé): roteiro, direção, cenário e figurinos 1997 • O Pivô (teatro): texto, direção, cenário e figurinos • Strippers (teatro): texto, direção, cenário e figurinos 1996 • Do Amor de Dante por Beatriz (teatro): cenário e figurinos 1995 • Água com Açúcar (teatro): texto, direção e cenário • Os Pescadores de Pérolas (ópera): direção, cenário e figurinos 1994 • Festas de Amigo Secreto (teatro): texto e direção • As Guerreiras do Amor (teatro): cenário e figurinos 1993 • Salão de Baile (balé): roteiro, direção, cenário e figurinos • Ato de Natal (teatro): texto, direção, cenário e figurinos direção 1992 • Ópera dos 500 (ópera): roteiro, direção e figurinos 1990 • Big Loira (teatro): texto, adaptado de contos de Dorothy Parker, e direção 1989 • Lulu (teatro): direção, cenário e figurinos • Suburbano Coração (teatro): texto e direção 1988 • O Romance da Empregada (cinema): roteiro, filmado por Bruno Barreto 1987 • Cenas de Outono (teatro): texto (adaptado de contos de Yukio Mishima), direção e cenário • Dona Doida, um Interlúdio (teatro): direção, cenografia e figurino, para textos de Adélia Prado • Francisco (show de Chico Buarque): direção • Nijinsky (dança-teatro): texto, direção e cenário (com Miro) 1986 • El Grande de Coca-Cola (teatro): direção • Vera (cinema): cenário e figurinos do filme de Sérgio Toledo 1985 • Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, versão feminina (teatro): texto, direção, cenografia e figurinos • A Divina Sarah (teatro): cenário e figurinos 1984 • Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão, versão masculina (teatro): texto, direção e cenário • Gonzaguinha (show): cenário • A Hora da Estrela (show de Maria Bethânia): direção, cenário e figurinos • Kleiton e Kledir (show): cenário 1983 • Circo no Arena!/Viva o Circo! (teatro para jovens): texto, com Flávio de Souza • O Grande Circo Místico (balé): roteiro e ilustrações da capa do CD • O Romance da Empregada (cinema): criação do roteiro 1982 • Petruchka (balé): adaptação do roteiro, direção, cenário e figurinos 1981 • A Aurora da Minha Vida (teatro): texto, direção e cenário • O Homem Elefante (teatro): cenário e figurinos • Jogos de Dança (balé): cenário e figurinos • À Moda da Casa (teatro): cenário e figurinos 1980 • Não me Maltrate, Robinson (teatro): cenário e figurinos • Valsa para 20 Veias (balé): roteiro, direção, cenário e figurinos 1979 • Eva Perón (teatro): cenografia e figurinos • No Natal a Gente Vem te Buscar (teatro): texto, direção e cenário 1978 • Depois do Arco-Íris (dança-teatro): texto (com Alberto Guzik) e direção • Macunaíma (teatro): cenário e figurinos • Margarida Margô do Meio-Fio (dança): direção, cenário e figurinos 1977 • Corações Futuristas (balé): cenário e figurinos • Era uma Vez (balé): cenário e figurinos • Maratona (teatro): texto, direção e cenário 1976 • Folias Bíblicas (teatro): autor de um dos esquetes, colaboração no cenário e figurinos • Nosso Tempo (balé): cenário e figurinos 1975 • Cenas da Última Noite (teatro): corroteirista e diretor • Falso Brilhante (show de Elis Regina): roteiro, com Miriam Muniz, confecção de bonecos, cenário, figurinos, ilustrações e design gráfico do programa e da capa do disco • Ai de ti, Mata Hari (teatro): cenário • O Incidente no 113 (teatro): cenário e figurinos 1974 • A Fabulosa Saga de Violeta Allegro (teatro): corroteirista e diretor • El Grande de Coca-Cola (teatro): cenário e figurinos 1973 • São Clemente (teatro): corroteirista e diretor 1972 • Miscelânea (teatro): ator e corroteirista. Este espetáculo marca o início das atividades do grupo Pod Minoga • Vila Sésamo (televisão): criação de bonecos na coprodução TV Cultura/TV Globo 1971 • Hotel San Marino (teatro): ator, corroteirista e coordenador • Julia Pastrana (teatro): ator, corroteirista e coordenador 1966 a 1969 • Professor na Escola de Arte da Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Alberto Guzik 11 Infância, Família, Escola... 15 Crise e Diáspora Familiar 29 Descoberta das Artes 39 O Fim da Infância 49 Interior, Capital, Litoral, Capital... 53 Surge o Artista 63 Da Faap para a Rua Mato Grosso 75 Júlia Pastrana 83 Intermezzo Baiano – Cachoeira 85 Hotel San Marino 89 Tempos de Pod Minoga e Outras Aberturas 93 Vila Sésamo 105 El Grande de Coca-Cola 109 Caminho 115 Falso Brilhante 121 Maratona 131 Macunaíma 141 Algumas Considerações sobre uma Dramaturgia Nascente 151 Processo de Escrita 155 No Natal a Gente Vem Te Buscar 157 Marieta Severo 169 A Aurora da Minha Vida 173 Um Beijo..., Novos Caminhos e Experiências 183 Enquanto não Saía Nada de dentro de Mim 193 Dona Doida 195 Cenas de Outono 201 Francisco 203 Além de 1987: Suburbano Coração 205 Big Loira 207 Nijinski 209 Longa Jornada de um Dia Noite adentro 213 Pequenas Raposas 215 Na dança 219 O Grande Circo Místico 227 Na Ópera 235 A Ópera dos 500 239 Os Pescadores de Pérolas 241 Jenufa 243 Lucia di Lammermoor 245 Uma Hesitante Retomada da Escrita 247 O Teatro da Rua Girassol – Os Comediantes da Aurora 251 Strippers 255 O Pivô 257 Aquele Ano das Marmitas – A Retomada 259 Os Contos do Diário Popular 261 Obras quase Completas 263 Considerações e Reflexões 265 Minhas Peças Dirigidas por Outros Encenadores 269 Grandes Textos 273 Algumas Considerações Gerais 279 O Cinema. E Romance da Empregada 283 Composição Musical e Trilha Sonora 287 Palestras e Encontros com Jovens 289 Aos Que Estão Começando 291 Cronologia 293 Crédito das Fotografias O biografado agradece aos seguintes fotógrafos: André Gardenberg Ary Brandi Derli Barroso Guga Melgar João Caldas Leonardo Crescenti Neto Marisa Alvares Lima Miro Sergio Keuchegerian Vera Cristina Azevedo A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero O Contador de Histórias Roteiro de Mauricio Arruda, José Roberto Torero, Mariana Veríssimo e Luiz Villaça Críticas de B.J. Duarte – Paixão, Polêmica e Generosidade Org. Luiz Antônio Souza Lima de Macedo Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Salve Geral Roteiro de Sérgio Rezende e Patrícia Andrade O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior Federico García Lorca – Pequeno Poema Infinito Roteiro de José Mauro Brant e Antonio Gilberto João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cecil Thiré – Mestre do seu Ofício Tania Carvalho Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Fernanda Montenegro – A Defesa do Mistério Neusa Barbosa Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Umberto Magnani – Um Rio de Memórias Adélia Nicolete Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Tônia Carrero – Movida pela Paixão Tania Carvalho TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 332 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Coleção Aplauso Série Perfil Coordenador Geral Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Projeto Gráfico Editor Assistente Editoração Tratamento de Imagens Revisão Rubens Ewald Filho Marcelo Pestana Carlos Cirne Felipe Goulart Selma Brisolla José Carlos da Silva Sárvio Nogueira Holanda © 2009 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Guzik, Alberto Naum Alves de Souza: imagem, cena, palavra / Depoimento concedido a Alberto Guzik. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 332p.: il. – (Coleção aplauso. Série Perfil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-736-2 1. Diretores e produtores de teatro – Brasil – Entrevistas 2. Teatro – Brasil 3. Souza, Naum Alves de, 1942 I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 792.098 1 Índice para catálogo sistemático: 1. Brasil : Teatro : Diretores e produtores 792.098 1 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2009 Todos os direitos reservados. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria