B.J. Duarte Críticas B.J. Duarte Críticas Organização Luiz Antonio Souza Lima de Macedo IMPRENSA OFICIAL São Paulo, 2009 GOVERNO DE SÃO PAULO Governador José Serra Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação Segundo o catalão Gaudí, Não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras. De fato, muitos artistas são imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas. Mas como reconhecer o trabalho de artistas geniais de outrora, que para exercer seu ofício muniram-se simplesmente de suas próprias emoções, de seu próprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram à mais volátil das artes, escrevendo, dirigindo e interpretando obras-primas, que têm a efêmera duração de um ato? Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou são muitas vezes inacessíveis ao grande público. A Coleção Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memória de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participação na história recente do País, tanto dentro quanto fora de cena. Ao contar suas histórias pessoais, esses artistas dão-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a consciência crítica da sociedade. Suas histórias tratam do contexto social no qual estavam inseridos e seu inevitável reflexo na arte. Falam do seu engajamento político em épocas adversas à livre expressão e as consequências disso em suas próprias vidas e no destino da nação. Paralelamente, as histórias de seus familiares se entrelaçam, quase que invariavelmente, à saga dos milhares de imigrantes do começo do século passado no Brasil, vindos das mais variadas origens. Enfim, o mosaico formado pelos depoimentos compõe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo político e cultural pelo qual passou o país nas últimas décadas. Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própria voz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpre um dever de gratidão a esses grandes símbolos da cultura nacional. Publicar suas histórias e personagens, trazendo-os de volta à cena, também cumpre função social, pois garante a preservação de parte de uma memória artística genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem àqueles que merecem ser aplaudidos de pé. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos exploram o universo íntimo e psicológico do artista, revelando as circunstâncias que o conduziram à arte, como se abrigasse em si mesmo desde sempre, a complexidade dos personagens. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente aos estudiosos das artes cênicas, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram abordadas a construção dos personagens, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns deles. Também foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que neste universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Memória Falar de Benedito Junqueira Duarte lança-me a luz de um passado distante, mas ainda muito presente em mim. Possuidor de caráter e dignidade ímpar, sempre fiel a si mesmo e aos amigos, era um homem sensível a tudo o que fazia com empenho, de coração pleno de paixão. Versátil, praticou de forma brilhante a fotografia, o documentário cinematográfico, a crítica de cinema, o ensaio e a escrita memorialista. Deixou vasta produção artística e intelectual que, embora de indiscutível valor, é pouco conhecida. O cinema foi uma das grandes paixões de Benoit. Além de ter dirigido filmes importantes para a memória brasileira, como A Metrópole de Anchieta, inaugurou o cinema médico-científico entre nós. Só neste gênero produziu cerca de 600 fitas, recebendo 49 prêmios dentro e fora do país. Sempre batalhou por um bom cinema nacional. Em 1946, fundava, com um grupo de sonhadores o 2º Clube de Cinema, que realizava exibições e debates sobre grandes filmes. Em 1948, já lutavam pela criação de uma cinemateca. Na década de 1950, ao retornar da França, Paulo Emílio se juntaria ao grupo e à sua luta. As solicitações que faziam ao Governo eram assinadas por Paulo Emílio, Almeida Salles e B.J. Duarte. Mais ou menos na mesma época, B.J. Duarte começava a escrever crítica de cinema no jornal O Estado de S. Paulo; passaria, em seguida, à Folha de S. Paulo, onde colaboraria até 1965. Nos anos 50 também escreveu sobre cinema na revista Anhembi, dirigida pelo irmão, Paulo Duarte. Seu método era direto, sincero e sem concessões. Parte do material escrito por ele, no período, encontra-se neste livro. Rute Ginaque Duarte Será o Benedito? 18 maio 1968 - A Gazeta (SP) Benedito Junqueira Duarte – B.J. Duarte para milhares de leitores que guardam viva lembrança dos artigos sobre cinema que escreveu em tanto jornal e revista. Benito para os familiares. Ditão para mim. Somos grandes amigos, mas moro longe dele, trabalhamos cada qual num canto, não o vejo nunca e para completar, falamos embrulhado no telefone. Tenho a impressão às vezes que passo anos sem encontrá-lo. Sem falar no outro dia – quando sucedeu o que daqui a pouco vou contar – acho que a última vez que nos encontramos foi numa extraordinária exibição de seus filmes que Rudá Andrade organizou na Sociedade Amigos da Cinemateca, a SAC. (Não confundir com a Sociedade Inimigos da Cinemateca, SIC, também ativa e animada. Isso de amigos e inimigos vem ao caso, aliás, pois durante anos a fio Benedito Junqueira Duarte foi o amigo mais fiel, tenaz e eficiente que a Cinemateca já teve). Voltemos àquela noite longínqua em que Rudá nos fez ver no Museu de Arte uma seleção de filmes de Benedito. Foi aí que se cristalizou algo de que apenas desconfiava: B.J. Duarte tinha se transformado numa grande figura internacional do cinema científico. Lembro que manifestei minha surpresa feliz num semanário que era chamado o jornal dos padres: o saudoso, bravo e puro Brasil Urgente. Dias atrás – aqui chego ao que venho – relembrei tudo isso na sessão solene que a Faculdade de Medicina convocou para entregar a B.J. Duarte alguns dos prêmios internacionais que conquistou ultimamente. Pude então contemplá-lo com vagar. Talvez estejam apontando em maior número os cabelos brancos que tardaram a chegar. Em determinado momento pareceu curvar-se: estava vergando sob o peso dos troféus. E se logo após embaraçou-se um pouco foi porque não tinha mãos e braços a medir diante da catadupa de diplomas e documentos, comprobatórios de vitórias nos mais prestigiosos certames internacionais do cinema científico. Quando falou, era o Ditão de sempre: espigado e espinhoso como um cacto, fazendo do tom zangado uma comporta para o sentimento. A primeira parte do seu discurso foi ótima. Indicou de forma impecável o que significa para um país como o Brasil o filme a serviço da ciência e da técnica além de denunciar lucidamente a falta de amparo a esses empreendimentos. A parte final da sua oração consistiu numa definição ideológica e novamente pude então constatar – com o espanto de sempre – quanto Benedito é conservador. O fato em si não me surpreende: todos nós que giramos em torno dos cinqüenta somos por demais conservadores. O que me espanta é ter levado tempo para descobrir essa faceta do meu amigo. A verdade é que Benedito Junqueira Duarte sempre desafiou minha perspicácia: já não confessei que foi preciso que decorressem anos para eu descobrir que ele era uma notabilidade mundial? Paulo Emilio Paixão, Polêmica e Generosidade Na apresentação de Cinema e Verdade, Carlos Augusto Calil lamenta o atraso da obra. Reconforta-se, no entanto, com a sua edição, ainda que tardia. A iniciativa possibilitou, não só?àqueles que fomos testemunhas do amoroso ofício que Francisco Luiz de Almeida Salles dedicou ao cinema, mas também, aos mais moços,?ter?reunidas?várias lições do mestre. Seis anos depois, nova lacuna foi suprida. Publicou-se Um Filme por Dia, de Antonio Moniz Vianna, também importante crítico, do?valoroso jornal carioca Correio da Manhã. Faltava um terceiro expoente: Benedito Junqueira Duarte, que deixou suas Crônicas da?Memória, mas não teve a oportunidade de ver em volume, parte de sua?relevante e extensa?obra. Provavelmente, alguém pergunte: E o Paulo Emilio? Muitos o identificam como crítico, colocando-o ao lado dos acima citados que, quase todos os dias, analisavam filmes ou tratavam de matérias relacionadas ao cinema. Assim como outros vejo o autor de Jean Vigo, como um brilhante ensaísta. Para Almeida Salles, o PE, como às vezes rubricava, foi o ensaísta da crítica. Acho que acertou. Acrescentaria o fato de ter sido intelectualmente honesto e dono de tocante simplicidade. Por último, vale lembrar o seguinte trecho constante da coletânea de seus escritos: Mentalidade cinematográfica não significa muita coisa. Cultura cinematográfica, sim. Ela é, aliás, inseparável da cultura tout court. Um profissional cinematográfico ou um fanático de clube de cinema podem estar longe da cultura cinematográfica quanto alguém que nunca vai ao cinema. Poderia ser mais atual? Há bom tempo Rute Duarte, viúva de Benedito, e eu, tivemos as primeiras conversas, tendo em vista reunir alguns de seus textos para publicação. O?ano passava. A empreitada foi retomada, agora já com a mão?na massa. Em imensos e grossos livros, lá estava boa parte do tesouro, aguardando por uma seleção. Difícil, mas gostosa tarefa. Os recortes das críticas foram presos com fita adesiva, e alguns se soltaram com o calor e o tempo. Sem falar da maratona que é mudança de endereço. E houve três! Felizmente, parte se salvou. Pensei em ter análises do mesmo filme feitas por B.J.Duarte, Moniz Vianna e Almeida Salles. Infelizmente só foi possível em alguns casos. O titular do Correio da Manhã deve mesmo ter sido o recordista, em quantidade de críticas. Escrevia todos os dias, no jornal onde trabalhava em tempo integral. Esse fato não aconteceu com seus dois colegas paulistas. Ainda assim, o número de textos deixados por Benedito é considerável. É preciso, também, ter em vista que B.J esteve ausente da crítica diária em jornal, de 1950 a 1956, período em que se dedicou ao documentário científico. Esse fato não é levado em conta, por quem costuma comparar, quantitativamente, a produção dos principais críticos do eixo Rio/São Paulo. Mas como era Benedito? Reservado diante daqueles que desconhecia, mas conversador, simpático e expansivo com os amigos. Ouvia histórias com interesse e as contava com bom humor. E sendo o assunto cinema brasileiro, aí então a conversa ia longe. Gostava de vinhos, tintos e brancos. Dos bons. Rute lembra os Bordeaux. Em suas memórias B.J. fala de tomar cerveja no verão, um copo de velho Borgonha, cheiro de civilização e de uma taça de champanhe dos vinhedos de França, gosto de mulher bonita. De Madri, diz que frequentou, além dos museus, é claro, bodegons e tavernas típicas. Comeu de seus pratos, bebeu de seus vinhos, do Rioja ao Xerez, esse inimitável Xerez espanhol, com o perfume de seu passado... Não era fã de uísque, bem ao contrário de alguns amigos próximos e colegas de ofício. Recebia para deliciosos jantares, preparados com esmero por Rute e sempre elogiados por ele, um gourmet e gourmand de mão cheia. Escreveu que ensinou à consulesa do Brasil, em Milão, a correta maneira de se fazer camarões à moda genovesa. Desses não provei. Não abria a porta para convidado, caso estivesse sem paletó, nem ficava com a barba por fazer ou se esquecia da colônia preferida. Foi um homem bom, trabalhador, fiel, generoso, humano e civilizado. Gostava de escrever e o fazia, na maioria das vezes, nas madrugadas, devido à insônia. Além das críticas, algumas delas presentes neste volume da Coleção Aplauso, deixou ensaios sobre cinema, crônicas e cartas, muitas cartas. Datilografadas ou manuscritas, se dirigia carinhosamente aos mais chegados. Sempre pedia notícias, sem deixar de agradecer um favor, mesmo simples, prestado por um amigo. Narrou viagens, de forma saborosa e instrutiva. A primeira paixão: a fotografia, que aprendeu com seu tio-avô, José Ferreira Guimarães, proprietário de um estúdio, em Paris. Depois trabalhou para o Chez Reutlinger, local de famoso retratista. Na capital francesa ficou de 1921 a 1928. Voltando a São Paulo continuou a lidar com as imagens estáticas, no Departamento de Cultura da Prefeitura, a convite de Mário de Andrade, onde chefiou a Seção de Iconografia. Exemplos dessa larga produção merecem – e devem – ser conhecidos. Fotos importantes como memória da cidade, revelam o artista atento à boa técnica, à composição criativa e dramática. Sempre ocupado com o significado humano e social de seus temas. Com o mesmo propósito atuou na imprensa paulistana como repórter fotográfico. Atraído pelas possibilidades da dinâmica do cinema, registra vilas de operários, sem se esquecer dos locais onde estavam os ainda mais pobres. Também captou a São Paulo tranquila e sítios históricos do interior do Estado. Filmes realizados com modéstia de meios, mas total liberdade, para se exercitar na nova linguagem. Começou pelo simples, sem virtuosismo. Um decisivo noviciado. Aliás, como mais tarde viria recomendar àqueles que se iniciavam no cinema de longa-metragem, sem passar pelo aprendizado das fitas de curta duração. Com sensibilidade e muito trabalho, B.J.Duarte realizou centenas de filmes, vários premiados aqui e no exterior. Com o curta-metragem Metrópole de Anchieta, de 1954, ganhou o Saci do jornal O Estado de S.Paulo. Autor de outras tantas obras didáticas, institucionais e de informação, tendo como assunto questões relevantes, para a vida da cidade, a ocupar ainda hoje, os administradores públicos. Destaque para os documentários voltados ao campo médico-cirúrgico, admirados por doutores-especialistas, daqui e de fora, pois exibidos em festivais e congressos científicos de meio mundo. Concretizava-se, de certa forma, segundo ele, a congênita paixão: a medicina. E novo reconhecimento veio com o Prêmio Arnaldo Vieira de Carvalho concedido pela Congregação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Com alegria e justificado orgulho concluiu o seu discurso homenageando o Colegiado: que me recebe e me acena com este diploma honorífico, um título honoris causa que dignificará o resto de minha vida. Benedito Junqueira Duarte exerceu a crítica cinematográfica por cerca de 30 anos em atividade quase diária, em O Estado de S.Paulo (1946/50), nas Folhas (1956/65) e, mensalmente, na revista Anhembi (1950/62). Foi coerente em sua visão do cinema e com os valores que prezava: domínio da técnica, precisão da linguagem, conjugação lógica de conteúdo e forma, unidade e ritmo. Sem a ideia fixa com a qualidade formal, destacava os aspectos humanos e sociais encontrados nas histórias, onde esperava haver clareza e concisão. Aqueles que acompanharam seu trabalho e leram seus textos sabem que ele se debruçou sobre o cinema de diversas origens, sem priorizar um país ou continente, como afirmam alguns distraídos. Dava atenção a todos os gêneros e prestigiava as produções modestas, desde que realizadas tendo conhecimento do ofício e longe da mediocridade e improvisação. Em sua atuação nas Folhas, nas três edições, manhã, tarde e noite, não se limitou a criticar filmes, mas tratava de todos os aspectos do cinema, suas gentes, biografias de seus técnicos e atores, necrológicos, problemas de sua indústria e de seu comércio, preservação e prospecção de filmes brasileiros antigos, formação de uma consciência cinematográfica de cunho universal, mas com raízes profundas a se ramificarem no chão fértil de um cinema brasileiro genuíno. Defendeu um cinema aplicado às pesquisas, ao estudo, ao ensino, destacando o seu papel de auxiliar didático, em todos os níveis. A esse respeito vale a pena dar-lhe, de novo, a palavra, por sua importância e atualidade: O filme científico, didático e de informação é eficiente subsídio para a prática do ensino... um excelente recurso audiovisual para as técnicas da educação. Não visa, porém, substituir o professor, nem constituir-se em aula. A contribuição humana do professor, sua presença, participação intelectual e cultural na prática do magistério permanecem intactas, insubstituíveis. O filme será uma ilustração da aula, muitas vezes demonstração viva e dinâmica de certos fenômenos de apresentação impossível, não raro sob outra forma que não a do cinema... É claro que a lição vale para as TVs criadas com finalidades educativas. Mas seus responsáveis, a partir de certo momento, fugiram do auxílio ao ensino, como o diabo da cruz. Ainda nas Folhas, com o Dr. Rui Bloem, sugeriu que o auditório do jornal servisse a distintas atividades culturais e educativas, com apresentações musicais, exposições de pinturas, fotografias e cursos especializados. E sobre cinema, é claro, por sua importância no campo da comunicação humana. B.J.Duarte não deixava de criticar o filme de um amigo, ou elogiar a obra de um inimigo. Dois casos: o primeiro com Trigueirinho Neto e seu Bahia de Todos os Santos. O outro, com Flávio Tambellini, por causa de O Beijo. A polêmica estava no sangue. Almeida Salles, ao falar do amigo beneditino, disse que ele aliava o respeito à verdade, ao culto da indignação, porque nada o fazia sofrer mais do que a incompreensão, a má-fé e, principalmente, a leviandade no juízo crítico. Assim foi. Com Rubem Biáfora as discordâncias aconteceram devido à adoração do autor de Ravina, por determinados estilos, diretores e filmes. Também não suportava certos termos e expressões, presentes tanto na escrita, como na fala do adversário. As diatribes chegavam ao grupo que concordava, no todo ou em parte, com essas opiniões e ao modo de se exprimir. O saudoso crítico Carlos Maximiano Motta, era um deles. Fomos companheiros, assíduos frequentadores da Filmoteca do Museu de Arte Moderna, dos debates no Cineclube Dom Vital e colaboradores da coluna de cinema do jornal Shopping News. Outro desafeto: Fernando de Barros, ator, produtor, diretor de cinema e crítico do Última Hora. Um dos episódios a render muita tinta, resultou de suas notas para o jornal, contrárias às iniciativas que visavam atender à Cinemateca Brasileira, vítima de incêndio, na noite de 25 de janeiro de 1957. A entidade ocupava algumas salas na sede dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril, no centro da cidade de São Paulo. O fogo devorou um acervo de raridades do cinema brasileiro e de importantes filmes estrangeiros. Além da biblioteca, onde estavam coleções das sempre lembradas revistas A Cena Muda, Cinearte, Sight and Sound, Cahiers du Cinéma e Revue du Cinéma, entre muitos outros documentos da história de nossa cinematografia. Fui testemunha, a tempo de ver como ficaram os espaços onde trabalhavam Paulo Emílio Salles Gomes, Rudá de Andrade e Caio Scheiby, recebendo, gentilmente, quem os procurasse. Pois o produtor de Arara Vermelha usou de sua coluna no jornal, edições de 12 e 14 de março de 1957, para condenar as iniciativas, cujo objetivo era proporcionar novas condições à correta guarda e preservação de filmes. Entendeu que seria melhor destinar o dinheiro à produção cinematográfica e não a museu. Referiu-se à Cinemateca Brasileira como uma filosofia que ardeu e, àqueles que se esforçavam a seu favor, como uma camarilha a pretender tirar recursos dos produtores. As respostas não tardaram. As Comissões de Cinema do Município, e sua coirmã do Estado de São Paulo reagiram com indignação. B.J. Duarte, bem a seu estilo, disse que o jornalista se comportou como um refinado farsante e procedeu com aquela costumeira má-fé. Quanto à edição de 1959 do prêmio Saci, criado pelo jornal O Estado de S.Paulo, Benedito não se conformou com as sete estatuetas dadas a Ravina. Tanto na Folha como em Anhembi não economizou adjetivos para condenar a obra de Biáfora, sabidamente a película mais ridícula do ano, sendo mesmo um dos malogros artísticos mais lamentáveis de toda a história do cinema brasileiro em geral. Flávio Tambellini teve relevante papel, na área cinematográfica: crítico do Diário de São Paulo e do Diário da Noite, membro das Comissões do Estado e do Município, integrante de júris de premiação, produtor e diretor de filmes. Esteve à frente do Instituto Nacional de Cinema Educativo, o Ince, e presidiu o Instituto Nacional de Cinema, o INC. Com ele B.J. Duarte também polemizou e a refrega, longa e violenta, em certos momentos. Os motivos iam da diversidade de gostos por fitas e seus autores, a questões bem mais importantes, como às relativas aos assuntos submetidos às citadas Comissões, onde ambos tinham assento. Para o bem de todos houve a reconciliação. Conversaram, se entenderam, com Benedito a elogiar O Beijo, ainda que com certas restrições e Tambellini, a convidar o antigo adversário, a colaborar no Ince. Deixaram de lado as discussões de ordem pessoal, as preferências e idiossincrasias. Uniram esforços, em benefício do cinema que tanto amavam. A respeito da representação brasileira ao Festival de Santa Margheritta Ligure, de 1960, houve divergência com o crítico carioca Ely Azeredo. Depois de algum tempo e vários escritos, seu colega paulista reconheceu o engano da posição que adotara e o caso foi encerrado. O assunto agora é a Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, considerado por Benedito como mais um panfleto polêmico, do que uma revisão crítica... porque seu livro se parece com ele, na sua linguagem pouco cuidada, seu estilo irreverente, às vezes desabrido e extravagante, no seu modo de ver e julgar gentes e coisas do cinema brasileiro, principalmente as coisas e gentes do cinema paulista. A esse respeito, B.J. diz que, na Revisão Crítica, homens como Cavalheiro Lima, Jacques Deheinzelin, Chick Fowle, Lima Barreto, Flávio Tambellini e outros, empresas como a Vera Cruz constituem objeto da ira possessiva de Glauber Rocha, que não perde uma única oportunidade para diminuí-los, ou pejorativamente a todos se referir, às vezes até a insultar vulgarmente, como em muitas páginas acontece com Rubem Biáfora. A questão relacionada à descoberta de Humberto Mauro reaparece na reedição ampliada do livro de Glauber, que reproduz artigos de Benedito J. Duarte, publicados pela Folha de S.Paulo. Ao final de um deles, edição de 1/12/63, diz o crítico: Pois não é que o Cinema Novo foi quem descobriu Humberto Mauro?!... A propósito dessa mentira, urdida na Revisão Crítica, direi, no próximo domingo, de como o velho Mauro, meu amigo, muito querido, veio a ser descoberto em São Paulo, lá pelos idos de 1949. Segue-se uma Nota do Editor, nos seguintes termos: B.J. Duarte não fará esta revelação por motivos vários, que agora não posso revelar. A sua leitura sobre a recuperação de Mauro somente vem à tona quatro anos depois em Roteiro de Humberto Mauro, no Estado de S.Paulo de 2 de setembro de 1967, Suplemento Literário, p. 4. Neste artigo, B.J. Duarte afirma que o texto fora escrito em 1963 para um livro que seria publicado pela Civilização Brasileira, o que não ocorreu. Infelizmente, as referidas análises de Benedito deram margem à interpretação maldosa, como parece indicar a referida Nota do Editor. Provavelmente não houve tempo suficiente para a pesquisa. Caso contrário seu responsável teria evitado a triste insinuação. Ao se referir aos idos de 1949, B.J. deve ter considerado o ano em que se consolidou a sua amizade com Humberto Mauro, quando Caio Scheiby o descobriu, no Ince, como consta do capítulo O Freud de Cascadura, de suas memórias. Pois nessa parte da obra está toda a história, desde o livro que não saiu, até o episódio envolvendo o autor de Ganga Bruta. O conhecimento da publicação relativa à Primeira Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro (1952), teria sido útil ao editor. Igualmente instrutivo é o Catálogo do Festival, realizado no âmbito das comemorações do IV Centenário da Cidade de São Paulo: Retrospectiva do Cinema Brasileiro (1954). Filme Cultura, prestigiada revista criada por Flávio Tambellini, traz em seu número 3, de janeiro/fevereiro de 1967, no ensaio de Paulo Perdigão, a seguinte nota: O cinema de Humberto Mauro começou a ser objeto de revisão crítica por ocasião da I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, promovida pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo em setembro de 1952, quando foram exibidos alguns filmes do diretor. Mais tarde, em 1961, o Festival de Cataguases assinalou o conhecimento da obra pela crítica jovem, que passou a reconhecê-la como precursora do novo cinema independente. Será preciso juntar mais provas? Já que não gostava do Cinema Novo, o premiado documentarista aproveitou para abater Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade, aclamado pelo autor de Barravento como: um poema épico, o maior de todos os outros até agora escritos na literatura brasileira. Para B.J. Duarte, a película não passa de um amontoado de imagens soltas, pessimamente aproveitadas, pessimamente montadas, tudo sem contar o texto do filme, demagógico e pueril, claudicante e ridículo. Revi o filme, na 31ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ainda bem que Joaquim Pedro, anos depois, realizou, talvez, a sua maior obra: o simples, conciso e poético O Padre e a Moça. Chegou o momento de conhecer o que ilustres figuras falaram de B.J. Duarte. De Paulo Emílio já ficou, no início deste volume, um texto enxuto, de fina e sutil ironia. Na entrevista dada a Maurício Stycer, Almeida Salles indagado sobre os críticos de sua preferência cita, em primeiro lugar, Benedito Duarte, por sua idoneidade crítica. Moniz Vianna, Paulo Emílio e Rubem Biáfora vêm em seguida. Múcio Porphirio Ferreira foi amigo de Benedito e jornalista de primeira ordem. Fundaram, ao lado de outros, o Segundo Clube de Cinema de S. Paulo, depois Filmoteca do Museu de Arte Moderna, e daí, Cinemateca Brasileira. Desse grupo não fez parte Paulo Emílio Salles Gomes, que estava na França, na época. No prefácio para o primeiro volume da trilogia memorialista, de B.J., Múcio Ferreira lembra fatos da carreira e faz justiça ao companheiro. Diz da versatilidade de sua arte, de seu humanismo e sensibilidade. Mas lembra também a mordacidade e o realismo, presentes em vários de seus escritos. Múcio resume bem a personalidade de Benedito. Mas há uma faceta de seu humanismo que precisa ser explicitada: a generosidade. A esse respeito lembro alguns episódios. Jurandyr Pimentel, que atuara em Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, suicidou-se, jogando-se de um viaduto, na capital paulista. Benedito tomou todas as providências legais e burocráticas que o caso exigia. Outra passagem triste foi em relação a Caio Scheiby que, doente e sem recursos, morreu só, em modesto apartamento da Av. São João, também na cidade grande. Os dois corpos foram sepultados no jazigo da família de B.J., no cemitério São Paulo, no bairro de Pinheiros. A informação sobre o local do sepultamento devo a Rute Ginaque Duarte. Essas ações foram motivadas por caridade cristã, sem alarde ou demagogia. Ainda houve vários gestos de generosidade. Entre eles a doação dos honorários a que teve direito pelo documentário Transplante Cardíaco Humano. Em meados dos anos 50, B.J. Duarte colaborou, desinteressadamente, com o Grupo de Cultura Cinematográfica que, sob a liderança de Hélio Furtado do Amaral e de Álvaro Malheiros, promoveu cursos e palestras em colégios católicos, na capital e no interior de São Paulo. O objetivo era iniciar um conhecimento sobre o cinema, o que conduziria a melhor e mais ampla compreensão dos filmes. O auxílio de Benedito incluiu a publicação dos trabalhos de final de curso, na revista Anhembi, de duas aplicadas alunas: Heloisa Buarque de Holanda e Maria Teresa de Araújo e Silva. A iniciativa, igualmente, teve o reconhecimento dos dirigentes da Cinemateca Brasileira. A propósito vale consultar o artigo de Paulo Emílio, Catolicismo e cinema, que integra o volume I da publicação Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Na apresentação, identificada como Trailer, de Um Filme por Dia, Crítica de choque, Ruy Castro tece merecidos elogios a Antonio Moniz Vianna. Revela curiosos e importantes episódios relacionados ao crítico, seus autores preferidos e o reconhecimento prévio de fitas que se tornariam clássicas. Tudo isso com o honroso privilégio de ter o apresentado como seu interlocutor. Conta que o ex-secretário de redação do Correio da Manhã estimulou o jornalista Carlos Heitor Cony a escrever sobre cinema. Uma pena não ter o autor de Quase Memória, seguido, totalmente, a sugestão. Digo assim, porque, volta e meia, Cony, ainda bem, fale ou escreva sobre cinema, com a sua invejável cultura geral e cinematográfica. Para Ruy Castro, praticamente, só a sua turma do Rio de Janeiro, a chamada Geração Paissandu, gostava, lia e recortava Moniz Vianna. Tivesse vindo mais vezes a São Paulo e a outras praças, encontraria admiradores do crítico, cuidando, até hoje, de suas colunas. Entre elas a que elogia o citado O Padre e a Moça, ausente de Um Filme por Dia. Lamentável que o autor do excelente O Anjo Pornográfico, sobre Nelson Rodrigues, cometa a injustiça de não incluir B.J. Duarte entre os críticos lembrados em seu texto. Pode não gostar da pessoa, do estilo, ou de seus premiados documentários. Mas esquecê-lo, aí já é demais! Outro caso de amnésia ideológica encontra-se no verbete Documentário, constante do volumoso Dicionário Sesc – A Linguagem da Cultura, ao tratar de nosso país fala de figuras pioneiras, como o português Silvino Santos. Também se faz justiça a importantes documentaristas brasileiros e suas relevantes obras sobre a nossa realidade. No entanto, nem uma linha sobre Benedito J. Duarte, Marcos Margulies, Rodolfo Nanni, Trigueirinho Neto, Alfredo Sternheim, Ivo Branco e outros. O verbetista não é identificado. No entanto, como a nota Cinema Brasileiro no Final do Século XX, da mesma publicação, esteja assinada por Ismail Xavier e Leandro Saraiva, permite supor que a dupla também tenha se responsabilizado pelo texto, parcial a mais não poder, relativo ao documentário. Danilo Santos de Miranda, com seu status e no papel de Diretor do Departamento Regional do Sesc de São Paulo, assina o texto de apresentação do Dicionário, com sabedoria e bom senso. O que vai adiante, quanto a enganos e injustiças, só pode ser atribuído à imaturidade e à ideologia, precocemente apropriada pelo autor, de um guru mais velho. Quem sabe? Caso contrário, seria má-fé, hipótese que afasto, em benefício da dúvida. Ocorre que o então garoto Arthur Autran escreveu uma tese, depois transformada em livro, enaltecendo o crítico e cineasta Alex Viany, aliás, Almiro Viviani Fialho. Até aí tudo bem. Viva o direito de expressão. Tanto dele, quanto o meu. Acontece que, para atingir seu propósito, preferiu diminuir e ironizar outros críticos. Veja quem: Almeida Salles, Benedito J. Duarte e Moniz Vianna, não-alinhados, ideologicamente, com o colega homenageado, nem com o jovem mestre. Apropria-se da curiosa classificação de Fábio Lucas, para atestar que os três ilustres estariam entre os esteticistas, isto é, que consideram o cinema como realidade artística regida por leis que lhe são singularmente peculiares. Para estes, deve-se extirpar qualquer fio que ligue a arte do cinema a concepções sociopolíticas... Já os históricos seriam Salvyano Cavalcanti de Paiva, Carlos Ortiz e Walter da Silveira. Para esses, o que interessa no filme exibido é a mensagem que traz implícita ou explícita, contentando-se aqui o crítico com isolar os elementos discursivos que, alimentando a opinião pública, possam ou não influir nos destinos humanos. O autor atrapalhou-se todo, ao dizer que B.J. Duarte não teve carreira tão brilhante, se comparado com críticos de sua época, sendo a sua principal tribuna a revista Anhembi. A primeira afirmação é um juízo de valor, sabe-se lá de onde saiu. Sim, porque diante da diferença de idade, alguém deve ter, também aqui, lhe assoprado nos ouvidos. A revista Anhembi criada por Paulo Duarte era mensal e seu irmão teve mais espaço e maior presença nos jornais diários, especialmente nas Folhas. Aqueles que insistiram em ignorar Benedito Junqueira Duarte, ou dele falaram bobagens, talvez tenham se arrependido pela injustiça que cometeram, não raro com explícita desonestidade intelectual. Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Organizador - Agosto 2008 Agradecimentos Uma palavra a Carlos Augusto Calil, secretário de Cultura do Município de São Paulo, pelo interesse inicial à idéia de reunir as críticas de B.J. Duarte. A Rubens Ewald Filho, coordenador geral da Coleção Aplauso, por sua generosa atenção. Imprescindível o papel de Rute Ginaque Duarte, ao tornar possível o acesso ao arquivo de seu marido. A Lygia Fagundes Telles e Lúcia Telles devo a honrosa cessão do artigo de Paulo Emílio, Será o Benedito? Não vou me esquecer do estímulo que recebi de John Herbert, Rodolfo Nanni, Alfredo Sternheim, Geraldo Moraes e Inácio Araújo, quando lhes dei notícia sobre o projeto. À Cinesdistri, produção e distribuição audiovisual, por seu diretor Anibal Massaini Neto, devo a gentileza da cessão da foto de o Pagador de Promessas. Por fim, mas não menos importante, sou grato a Aurora Duarte, por seu trabalho em localizar os textos de B.J. sobre A Morte Comanda o Cangaço e a Fernando Henrique Santos de Macedo por sua competente ajuda na área da informática. Luiz Antonio Souza Lima de Macedo Críticas (organizadas por ordem alfabética) Acorrentados (The Defiant Ones) de Stanley Kramer, EUA, 1958 20 fevereiro 1959 Já era tempo de Stanley Kramer retornar à casa antiga, isto é, às películas em que a tese e a mensagem são o que mais conta. Orgulho e Paixão deixou uma lamentável impressão pelo vazio de seu conteúdo, a grandiloqüência de sua linguagem e o esplendor inútil de sua forma. Mas, agora volta Stanley Kramer à velha temática e isto é o principal. Há por detrás desse produtor corajoso um passado respeitável que não deve ser esquecido e no qual, em plena maré macartista, houve aquela tentativa intrépida de desmascarar os métodos intimidantes, de coação e corrupção, que o senador McCarthy punha em prática, à sombra de uma bandeira que se afirmava ser de defesa e de preservação das chamadas “instituições nacionais”. Stanley Kramer não se intimidou e por pouco consegue firmar acusação mais ousada, numa fita, que, a princípio, se intitulava “The Library” e que acabou sendo realizada por Daniel Taradash, algum tempo depois da morte de McCarthy, sob o título de “The Storm Center”, aqui exibida, em maio de 1957, traduzida para “No Despertar da Tormenta”. Agora, aborda Stanley Kramer um tema não menos ousado, difícil e perigoso no cinema norte-americano – da segregação e preconceito de raças no território dessa imensa nação. E de relance afronta também esse produtor, na sua censura e no seu libelo, a questão sempre palpitante do sistema penitenciário norte-americano, falto de humanidade e cheio de lacunas, como é sabido. A prática medieval de se acorrentar homens, aos pares, de se unir principalmente um branco e um negro, num país de população sensibilíssima ao preconceito de raças, da mais alta classe social à sua camada mais baixa. Também em “The Defiant Ones” de modo severo e implacável, não poupando sequer o ódio com que uma autoridade civil ou militar considera o delito e o delinqüente. Toda a sua fita é assim um requisitório inflexível contra um estado de coisas institucionais e um estado de ânimo coletivo. Entretanto, como em quase toda peça de tese, como em quase toda película de mensagem, “Acorrentados” peca, por vezes, pelo excesso de demonstração. Há nessa fita cenas em que um longo diálogo, cheio de frases feitas e de figuras de retórica estica a ação e a torna gongórica, não raro monótona. Isso se verifica notadamente depois que os dois homens acorrentados, safando-se ilesos da viatura que os transferia de uma prisão para outra, empreendem aquela fuga desesperada, através de campos encharcados e de pântanos intransponíveis, em busca de uma liberdade, ainda que transitória. Mas, toda essa seqüência inicial, bem como algumas outras inseridas depois, se apresentam tocadas de uma rude e patética beleza, muito bem pontuada por uma notação fotográfica do melhor e mais funcional efeito. A montagem e a edição da pelí­cula, por sua vez, se aproveitam disso e fazem a transição do tempo, de uma ação para outra, através da iluminação pura e da sonoplastia bem aplicada, quando o corte direto não é utilizado a propósito. O discurso cinematográfico se apóia assim num ritmo e composição fotográfica capazes de dispensar os longos diálogos e por isso tornando-os inúteis e deslocados no corpo dessa peça excelente. É lamentável que nem sempre os freqüentadores das salas escuras estejam à altura de um espetáculo de tal nível. A exibição de “Acorrentados” se prejudicaria muitíssimo, ante a triste demonstração de incultura, por obra e graça do comportamento grosseiro desse tipo indesejável que infesta nossas salas de espetáculo. Acossado (A Bout de Souffle) de Jean Luc Godard, França, 1960 De toda a já vasta experiência empreendida pelos jovens na Nouvelle Vague, especialmente pela equipe atrevida do Cahiers du Cinéma, esta “A Bout de Souflle” me parece constituir uma das tentativas mais curiosas e da maior importância no campo do cinema moderno. Trata-se, em verdade, de uma peça de vanguarda, a elevar-se talvez ao mesmo nível atingido por “Hiroshima, mon Amour”, guardadas as devidas proporções de gênero e de estilo, está claro, tanto “Hiroshima” quanto “A Bout de Souffle” se apresentando com a mesma força de penetração, ambas a surdir de uma intensa e inquieta celebração, do inquieto e intenso terra a terra, em que hoje vive aquela geração nascida sob a sombra monstruosa dos cogumelos atômicos, quer se tenham eles formado sobre um deserto do Nevada, quer tenham sido provocados por cima das ruínas calcinadas de Nagasaki e de Hiroshima. Jean-Luc Godard, intelectual de seu tempo, panfletário, crítico e realizador de cinema a um tempo, com esta sua estranha e pertubadora “A Bout de Souffle”, remaneja um tema já abordado por Gide e por Camus (o autor de L´Etranger); a imotivação de gestos e de atos, ou a força do ato gratuito, num mundo em que o homem, pobre mortal, ou se vê a braços, com uma natureza, rude e imperecível, regendo o comportamento humano, numa época inteira, ou apenas numa fração de tempo. “A Bout de Souffle” é assim inteiramente composto (creio que nesta película, o termo “composto” deve substituir o vocábulo “realizado”) por fragmentos (ou toda uma série) de atos gratuitos ou de gestos imotivados. É um gesto gratuito que move Michel a suspender a saia de uma desconhecida em plena rua; é um ato gratuito que leva Michel a assassinar um guarda rodoviário, em sua viagem de Marselha a Paris; é um ato imotivado que impele Patrícia a denunciar Michel ao inspetor de Polícia; é um gesto motivado que leva este a matar Michel, quando facilmente poderia prendê-lo ali na rua, pois, nesse momento, Michel já era um ser entregue e realmente “a bout de souffle”. E tão cedo, certamente, não se verá de novo um filme em que a montagem, chocante por sua gratuidade, tão bem acompanhe, tão bem faça integrar, em sua dinâmica, os diálogos, o espí­rito, o comportamento das personagens (não raro com a sua imagem fora de campo), uma dialética em geral pontuada por movimentos de câmara impossíveis, por travellings circulares ou retos, ora completos em seu trajeto, ora bruscamente interrompidos e, também aqui, nem sempre motivados. E os atores seguem perfeitamente essa linha sinuosa da criação cinematográfica de Godard, que sabe tirar deles um resultado que, afinal, está longe de ser gratuito nesse mosaico de motivações. E isso é o que vale em cinema, ou em qualquer outra obra humana. A Aldeia dos Amaldiçoados (The Village of the Damned) de Wolf Rilla, Inglaterra, 1961 08 março 1961 Há poucos dias, eu afirmava aqui, a propósito de “O Solar Maldito”, a minha aversão aos filmes chamados de “horror”, ou de “ficção científica”, dada a sua absoluta inverossimilhança, a ausência total em seus argumentos de um mínimo aceitável de realismo e de aproximação humana. Creio, repito, que para esses gêneros cinematográficos atingirem certo interesse dramático, é preciso que haja também em suas narrativas esse mínimo exigível, dentro de toda a irrealidade com que são concebidos os “horrores” do cinema, nesse ponto bem distante dos “horrores” do teatro, pois é sabido que aqueles espetáculos de “Grand-Guignol”, vistos em salas especializadas de Paris, oferecem no palco, o que nem sempre o cinema apresenta na tela: uma intriga de tal forma interpretada e cenarizada, que seus espectadores suam sangue em suas poltronas, tal a fidelidade do real vista e sentida à frente deles. Pois hoje tenho que abrir exceção, para uma das películas mais interessantes do gênero “science fiction”, não apenas do ponto de vista de seu enredo, mas também no que se refere à sua construção cinematográfica. Há, primeiramente, um espírito de sátira visível, espicaçando aquela elite ariana com que Hitler sonhava dominar a Europa, o mundo a seguir. Lembro-me bem ainda (e é preciso lembrar-se sempre dos crimes horrorosos cometidos contra a humanidade por aquele demagogo paranóico) das chamadas “juventudes hitleristas”, que hoje seriam os dirigentes do universo, jovens louros, de olhos claros e frios, educados de modo espartano, destinados a uma ação futura, implacável e desumanizada. Houve crianças, ao tempo de Hitler, que denunciavam serenamente os próprios pais, os próprios irmãos ao martírio inquisitorial da Gestapo, ou aos fuzilamentos dos “SS” sinistros, cometiam as maiores barbaridades sem que uma fibra sequer de seus músculos se retesasse, tangida por algum sentimento perdido, ou pelo resquício de alguma emoção transviada em seus corações. Em “A Aldeia dos Amaldiçoados”, a lembrança dos pequenos monstros dessas elites infantis, de fato amaldiçoados, está nitidamente evocada, no grupo louro das doze crianças, geradas numa manhã de letargia, por seres invisíveis e sumamente poderosos. Essa seqüência está admiravelmente descrita no início da película, antes dos letreiros, pontuada apenas por efeitos sonoros, ruí­dos campestres, sem qualquer música demagógica a corromper o instante maravilhoso de cinema puro. Tudo nesse momento é sugestão, é síntese, é raciocínio e sensibilidade, é linguagem cinematográfica de ótima origem. Mas, a seguir a narrativa terrível continua sob o mesmo ritmo dramático, sob a mesma dinâmica emotiva, a marcar-se ao longo dos episódios, sem qualquer ruptura da linha expectante e em verdade aterrorizadora. Não há imagem mais pungente do que a daqueles meninos de olhar cruel, cheio de um estranho fascínio, meninos sem o encanto e a espontaneidade da infância, autômatos arianos a servir de instrumento a seres misteriosos e, no entanto, sempre presentes em cada situação, em cada cena do filme. É essa atmosfera de sortilégio, de algo cientificamente possível, embora cientificamente inexplicável, que confere à “A Aldeia dos Amaldiçoados” aquela profundidade humana capaz de transformar um pensamento, o exercício intelectual, a invenção literária e fictícia, numa profecia espantosa, plenamente realizável alguns anos, ou alguns séculos depois. Os Amantes (Les Amants) de Louis Malle, França, 1958 11 novembro 1959 Por fim, aí está na sala do “Monaco” esta “Les Amants”, em sua versão integral, sem aqueles cortes que certo moralista de arribação tudo faria, no Rio, para obter. Já, agora, a questão debatida, com o seu desfecho judiciário, pouco mais interessa. “Les Amants” e a lição que encerra exibem-se livremente em São Paulo, como o foram no Rio e o serão em todo o Brasil e isso é o principal. Compreende-se, aliás, a campanha sofrida, a ter como patrono certo cronista social, de jornal e revistas cariocas. O “mundo” que em “Les Amants” se condena é o mundo da frivolidade, do ócio, até da corrupção no seio das famílias. É isso que Louis Malle satiriza e combate em sua fita, com um senso mordaz, documental e poético a um tempo, estilo muito próprio para provocar urticárias na pele de quem não suporta se fale de cordas em casa de enforcado. Louis Malle, com “Les Amants” confirma os propósitos delineados esplendidamente em “Ascenseur pour l´echafaud”, sua película de estréia. Há, nesse jovem autor da “nouvelle vague”, um ânimo quase panfletário, certo ímpeto de apresentar as questões com uma crueza sem preconceitos, capaz de, na exposição, dispensar a discussão, tão claros e convincentes se propõem os seus dados. Já na primeira seqüência de “Les Amants” esses dados se jogam: “Raoul”, “Maggy”, “Jeanne” definem o meio frívolo em que vivem. As seqüências seguintes, até o aparecimento de “Bernard”, completam essa visão de um mundo sem significado humano, só a adquirir importância depois que, casualmente, no caminho de “Jeanne”, na estrada que liga a província à capital, que une seu lar a “garçonnière” de “Raoul”, surge aquele que preencheria o vácuo e a inutilidade de uma existência sem sentido. Os amantes vivem então sua noite de amor, uma noite quase irreal, transcorrida entre a luz de estrelas e a penumbra de alcovas, em imagens foscas, como se iluminadas por dentro, pela opalescência úmida das madrugadas. E a seqüência final é a fuga para um outro dia, lavado e purificado, mas ainda cheio de remorsos e incertezas. Jeanne Moreau e Jean-Marc Bory vivem as emoções desse casal de amantes deslumbrados. Cada seqüência, cada cena dessa fita é a lâmina em que se concentra um microclima social, ampliada pelo microscópio da comédia humana. “Raoul” e “Maggy”, “Jeanne” e seu marido e, por fim, “Bernard” animam esse microcosmo da sociedade moderna, cujas questões morais não são de hoje, nem sequer de ontem, mas de todos os tempos e de todas as sociedades. Por ser atual e universal, sua visão machuca e magoa aqueles que retrata, sem retoques, nem preconceitos. “Les Amants”, por isso, há de ser uma película maldita que muitos abominam. Outros, porém, hão de usufruí-la como uma grande obra de arte, como uma lição de moral até, surdida de um mundo complexo, mas, apesar de tudo, digno ainda de ser vivido. Ascensor para o Cadafalso (Ascenseur pour l’echafaud) de Louis Malle, França, 1958 26 novembro 1959 Por ordem cronológica de realização, esta “Ascensor para o Cadafalso” deveria ter sido apresentada antes de “Les Amants”, já que a fita agora estreada, constituiu-se na primeira peça que Louis Malle dirigiu, com plena responsabilidade de sua criação. Antes de “Ascensor para o Cadafalso”, Louis Malle fora assistente de Robert Bresson, em “Um Condenado à Morte Escapou”, e do comandante Cousteau, naquela sua fita admirável “Le Monde du Silence”. Até então, Louis Malle só fizera crítica e escrevera ensaios no “Cahiers du Cinéma”, de cuja redação saíram também outros elementos pertencentes à chamada “nouvelle vague”, como Claude Chabrol e François Truffaut. Aliás, ao ser estreado “Ascensor para o Cadafalso” em Paris, “Cahiers du Cinéma” não pouparia seu realizador, criticando imparcialmente a fita através de um comentário assinado por Eric Rohmer, em sua edição de fevereiro de 1958. Em certo sentido, ainda que esteja de acordo com Eric Rohmer, para quem os pecados de Louis Malle, nesta sua primeira fita, não são mortais, mas apenas veniais, sou mais entusiasta por essa obra do que aquele crítico do “Cahiers”. Ora, por ser exatamente a obra de um estreante é que “Ascensor para o Cadafalso” se apresenta sob forma narrativa incisiva e linguagem cinematográfica atrevida. Louis Malle, como todos os seus companheiros do movimento da “nouvelle vague” (nova onda), não se perde em circunlóquios formais, nem nas delongas das pesquisas estéticas, ao desenvolver seu tema. Vai direto ao assunto, apresenta desde logo os aspectos essenciais da história, põe à frente as personagens que nela se envolvem e faz fluir a narrativa sem perder-se em desvãos. Quando uma das personagens se vê presa num elevador, à noite, entre dois andares, percebe-se, desde logo, a condenação irremissível desse prisioneiro do acaso. Tudo quanto possa daí por diante acontecer não salvará “Julien”, mesmo que provada fique sua inocência no crime que não cometeu: o da morte dos dois turistas alemães. Mas, nem com essa certeza, deixa o espectador de participar das angústias daquele homem fechado numa caixa de ferro, como um animal, numa armadilha, à noite, no edifício deserto, a ansiar e a temer a vinda do dia, que tanto poderia livrá-lo dali, quanto denunciá-lo irremediavelmente. Em verdade, tal como seu título indica, toda a história se conta entre dois andares e nos quatro ângulos do elevador fatídico. Ao entrar nele, “Julien” já era um homem a subir para o cadafalso. Nada mais pretendeu Louis Malle, senão retirar desse núcleo dramático os elementos circunstanciais, expulsos pela força centrífuga de sua intriga policial. Do centro do elevador para a auto-estrada em que “Louis” e “Veronique”, no automóvel de “Julien”, rumariam para a aventura e o homicídio. Do centro do elevador para a perambulação nas ruas e nos bares, onde “Florence” passaria a noite à procura de seu amante. Do centro do elevador, finalmente, para os interrogatórios policiais e daí para o desfecho penal, que a fita apenas sugere, em seu título e em suas cenas últimas. Três direções opostas, originárias de um mesmo centro: o ascensor para o cadafalso...Haverá, no cinema policial, um tratamento dramático tão esquemático, tão singular e tão rico de sugestão? O Assalto ao Trem Pagador de Roberto Farias, Brasil, 1962 07 setembro 1962 Quando Roberto Farias estreou no cinema com o seu primeiro filme dramático, embora fizesse eu muitas restrições a essa obra de iniciação – “Cidade Ameaçada” – considerei seu esforço como capaz de constituir-se numa grande esperança para o cinema brasileiro, chegando mesmo a atribuir muitas das falhas de sua fita à intromissão de seu produtor na realização de “Cidade Ameaçada”, o que me valeu uma tremenda descompostura por parte daquele cavalheiro, permanecendo calado nessa oportunidade Roberto Farias, com seu silêncio a concordar com minhas afirmativas, cujos fundamentos, aliás, eu calcara em solo firme, através de informações seguras. Lamentei principalmente o fato de não haver “Cidade Ameaçada” restringido sua circulação ao mercado interno, pois a fita do sr. Orsini, seu produtor, conseguira varar fronteiras, indo a Cannes representar o Brasil, onde acabou sendo recebida melancolicamente, como era de prever-se. Agora, o caso se repete por dentro e por fora, de nada valendo as lições do passado. Nem Roberto Farias deixou de incidir nos mesmos erros de realização cometidos em sua primeira fita, nem o Itamaraty deixou de dar o seu beneplácito a “O Assalto ao Trem Pagador”, escolhendo-o para a representação do Brasil em Veneza. Ora, o comparecimento do Brasil a festivais internacionais só deve perfazer-se com muito critério, só realmente quando haja obras dignas de tal distinção. Do contrário, apenas dissabores e prejuízos poderão causar em Cannes, Veneza ou Berlim obras como “Areião”, “Tumulto de Paixões” ou “Os Cafajestes”, ao contrário de “O Cangaceiro”, “Sinhá Moça” e ultimamente “O Pagador de Promessas”, detentora do laurel máximo de Cannes-1962, de fato películas de valor universal e perfeitamente integradas ao “nacional” das tradições e dos costumes genuinamente brasileiros. E o que escrevi a respeito de Roberto Farias quanto à sua ação em “Cidade Ameaçada” é válido para esta “O Assalto ao Trem Pagador”, sem tirar nem pôr. Película insegura, de estreante ainda, por vezes realizada com ótima movimentação, por vezes esbarrando aqui e ali em vacilações e incongruências de roteiro, notando-se o constrangimento de seu criador em muitas passagens de sua fita, irritantes por seu primarismo e por sua demagogia barata. E infelizmente agora não é mais possível afirmar-se seja Roberto Farias uma promessa e que, com um pouco mais de traquejo, possa vir ele a ser um diretor muito hábil e imaginoso do cinema brasileiro. A experiência de “Cidade Ameaçada” deverá ter-lhe servido – e muito para a realização de “O Assalto ao Trem Pagador”. Mas, pelo visto, Roberto Faria estagnou sua inventiva e limitou seu conhecimento de cinema à cartilha de “Cidade Ameaçada”, contentando-se com isso. Sua última obra, afora um ou outro momento em que sua direção se mostra menos canhestra e sua imaginação menos vacilante, no mais apenas demonstra o exagero na procura do efeito fácil e o afã de expressar-se pelo discurso grandiloqüente. Uma prova disso está bem afirmada na personagem interpretada por Grande Otelo e no modo de visualizar a favela e de incluí-la na cenografia da fita. Tal inclusão se faz sempre de forma ostensiva, deliberadamente a descrever o morro e a existência de seus moradores nos seus mínimos pormenores, numa ênfase às vezes a perturbar até a narrativa cinematográfica. Quando, a certa altura do filme, Grande Otelo aponta para o enterro da criança, descendo a encosta da favela, declamando seu texto como se fora candidato a vereador e estivesse num comício em época eleitoral, sua tirada, ao invés de comover o espectador e integrar-se na fala dramática da peça, ao contrário, perturba a imagem pungente e tira-lhe qualquer expectativa emocional. E isso porque a fala da personagem não disfarça o efeito fácil da cena, nem mascara a demagogia do texto, “decorado” e não “sentido”. E o que vale em cinema é sentir a realidade e fazer com que o público participe de tal emoção. Sem essa comunicabilidade, fica o cinema restrito apenas à área da tela em que é projetado, sem a profundidade da dimensão humana que lhe é imprescindível e que lhe dá o espírito da verdadeira obra de arte. “O Assalto ao Trem Pagador” está bem longe disso, com seus elementos dramáticos e o talento de seus atores dispersos aqui e ali, como Rute de Souza, por exemplo, perdida numa seqüência solta, sem nenhuma função na narrativa. A Aventura (L’ Aventura) de Michelangelo Antonioni, Itália, 1960 05 outubro 1961 Um crítico francês, Jacques Doniol-Valcroze, do “Cahiers du Cinéma,” colocou esta “A Aventura” no mesmo plano de “Hiroshima, Mon Amour” a seu ver inaugurando ambas as películas o que Valcroze denomina de Le nouveau cinéma. Aliás, quase todo o grupo de “Cahiers du Cinéma”, classificou “A Aventura” como um filme excepcional, o que em verdade, nada quer dizer, ou quer dizer muito, pois esse que grupo da revista francesa nem sempre se caracteriza pela uniformidade de seus julgamentos, ora valoriza ao máximo o medíocre, ora exalta o que realmente deve ser louvado sem restrições. Por outro lado, foi no “Cahiers du Cinéma” que se formou a nouvelle vague, um movimento que registra exatamente essa linha ondulante, ora capaz de contornar uma obra-prima legítima, ora a traçar a peça dúbia, senão mesmo sem nenhum sentido estético, ou social mais importante. Quanto a mim, não me entusiasmou muito essa “A Aventura”, no mesmo grau com que me enterneceu “Hiroshima, Mon Amour”. E se na fita de Resnais a sua estrutura funcionalmente fragmentada representa tanto o símbolo de uma cidade estraçalhada pelo engenho ciclópico da bomba atômica, quanto o da mente torturada de um ser largado na voragem das guerras, já essa conformação racionalmente despedaçada na fita de Antonioni não denota a mesma profundidade universal, nem alcança emocionalmente a compreensão, ou o senso comum do espectador de “Hiroshima”, a sofrer com esta um impacto psicológico imediato, a perceber, com “A Aventura”, um travo cerebral de identificação retardada. A obra de Resnais é a percepção súbita de um sentimento subjacente em todo homem que sofre e que vem à superfície sob tal estímulo. A película de Antonioni, com a sua ação arrastada e a sua interpretação sofreada, é um raciocínio frio, necessitado de um desdobramento, ou da exposição de suas premissas para (talvez só depois da exibição da fita) chegar-se às suas conclusões. Um silogismo enervado, uma exposição lógica, ao contrário de “Hiroshima”, uma emoção espontânea a surdir logo, ao fim de cada cena, de cada seqüência. Não há dúvida, contudo. A obra de Antonioni é algo de respeitável. É obra nova que merece meditação, trata-se certamente de un nouveau cinéma. Mas, justamente por se tratar de um cinema novo é que não pode ser julgada sem ponderação mais detida, sem aquela dimensão do tempo, na falta da qual não é possível compreender-se o infinito do universo, ou pelo menos a sua relatividade. E tanto “Hiroshima” quanto “A Aventura” são dois pequenos universos largados em órbita no grande espaço da sociedade contemporânea. Bahia de Todos os Santos de Trigueirinho Neto, Brasil, 1961 Introdução Diga-se, preliminarmente, que a entrada de “Bahia de Todos os Santos” marca uma vitória da perseverança e de uma dura vontade de auto-realização. Lembro-me bem quando, há anos, tivemos em mãos (Almeida Sales, Desidério Gross e eu) o primeiro tratamento de “Bahia de Todos os Santos”, cheio de fotografias impressas em “off set”, que Trigueirinho Neto desmembrara de um álbum sobre a Cidade do Salvador, através de cujas ilustrações levantara os primeiros cenários, que iriam ser o palco de sua história. Trigueirinho Neto estava, nessa época, na Itália, terminando seu curso no “Centro Sperimentale di Cinema” e de lá nos enviara o calhamaço de “Bahia” com a narração primeira de seu drama juvenil. Lemos com o maior interesse e ternura o argumento ainda tosco, pesamo-lhes as possibilidades de produção e ao cabo de um estudo em comum dos dados relativos a um planejamento inicial, seria com tristeza que escreveríamos uma carta única ao nosso amigo na Itália, desaconselhando-o de levar por ora seu projeto à frente, dadas as más condições vigentes na indústria cinematográfica do Brasil, capazes de provocar um colapso na realização, quando fosse a meio caminho a sua tomada de cenas, a necessitar de amplos meios financeiros, na reconstrução de uma época, na estada de toda uma equipe fora de São Paulo, no suprimento até de muitas lacunas técnicas, verificáveis certamente na capital baiana, onde seria tomada “in loco” a grande maioria das seqüências do filme. Trigueirinho Neto não desanimou com nossa franqueza e ante os óbices realistas que púnhamos na rota de seus projetos. Continuou a trabalhar seu argumento, a discriminar e a prever os itens e os encargos de seu plano de produção, até mesmo a modelar seu ator principal, Jurandir Pimentel, nessa época na Itália também, a seguir cursos de arte dramática e que desde logo se integraria no papel de “Tonio”, imaginado expressamente para ele. Estava eu sempre a par de tais trabalhos de preparação na Itália, pois durante toda a permanência de Trigueirinho Neto na Europa, uma correspondência graúda nos unia quase que semanalmente. Foi contudo com inenarrável surpresa que recebi, em março de 1958, a inopinada notícia de que ele se achava em viagem para o Brasil e com indizível alegria o abraçaria alguns dias depois. Retornara a São Paulo com uma única determinação: realizar “Bahia de Todos os Santos”. Viera disposto a tudo e sempre disposto a tudo empreendeu a sua longa aventura, já agora numa baía de todos os transtornos...Seu plano de produção estava pronto, faltava-lhe contudo o principal: o financiamento para realizá-lo. Um pedido de empréstimo na carteira de crédito cinematográfico do Banco do Estado, seria torpedeado impiedosamente por certas forças ocultas, que então tronavam, ou que contribuíam para a concessão desse crédito. Imposições de todo gênero faziam pressão sobre os responsáveis bancários de quem dependia o empréstimo, apregoando-se a imoralidade de “Bahia”, cobrindo-a de doestos os mais virulentos. Mas, Trigueirinho Neto tudo enfrentou, já agora com a participação de alguns amigos, conscientes de seus propósitos honestos. O cineasta perseverante chegou até a procurar a Confederação das Famílias Cristãs, a submeter seu roteiro à Orientação Moral dos Espetáculos e obter dessas autoridades (honra lhes seja feita) uma carta de aprovação que teve, junto ao Banco do Estado, o condão de torpedear, a seu turno, a calúnia e o despeito. E com a promessa de crédito garantida e com o fundo financeiro que particularmente conseguira levantar, abalou-se para Salvador, já agora laureado com o Prêmio Fábio Prado para o roteiro cinematográfico, que pela primeira vez se distribuía na União Brasileira de Escritores. Na Bahia todo o mundo se pôs à disposição, autoridades administrativas e personalidades particulares, levando-o, assim amparado, ao bom termo dos trabalhos da realização efetiva de sua fita, apesar das angústias e dos dissabores surgidos no curso dessa realização, como é natural, aliás. Mas, nem com o término dela, se desafogariam as mágoas e as preocupações. Inscrevendo sua película na representação do Brasil ao Festival de São Francisco, viu Trigueirinho Neto recusado o seu pedido no Itamaraty, pois a esse Ministério mais interessa (ainda?...) evidentemente o turismo e a falsa dramaturgia do cinema brasileiro, do que a história humilde de alguns adolescentes, no realismo cotidiano de suas vidas, no cenário barroco de São Salvador. Sobre essa história no cinema, suas qualidades e restrições que oponho à realização de “Bahia”, escreverei em próximo artigo. Bahia de Todos os Santos de Trigueirinho Neto, Brasil, 1961 Parte II - 18 março 1961 Em “Bahia de Todos os Santos” há um aspecto muito importante, há um setor da criação cinematográfica em que Trigueirinho Neto melhor se revelou: o da direção de atores. Lidando com um elenco, em grande maioria composto por atores estreantes, sem qualquer experiência dramática, conseguiu obter deles uma interpretação muito homogênea, em linhas dominantes despidas de individualismos, cada qual se salientando, em cada seqüência em que deveria normalmente predominar. Está claro que alguns atores teriam que se sobressair em relação aos demais, ou porque as circunstâncias da ação assim o exigiam, ou porque dotados de uma sensibilidade artística mais profunda, teriam eles que “viver”, mais profundamente também, os episódios fragmentados da película. Estão neste rol Araçari de Oliveira e Jurandir Pimentel, ambos estreantes, entretanto ambos a demonstrar uma maturidade dramática tão realizada, que, em certos momentos, logram até escapar da contenção que lhes impôs Trigueirinho Neto, preocupadíssimo em evitar “estrelismos” e em integrar seus atores nas teorias de Brecht, isto é, fazer com que os atores julguem suas próprias personagens e não fazer com que as “revivam”; não sintam profundamente os diálogos, mas os submetam ao espectador, para que neste se realize o mesmo mecanismo racional. Porque Brecht não deseja que o público seja transportado de sensação em sensação, mas que se aproxime do autor e dos atores, através da idéia central do drama, que deve ser a base de toda peça (uso aqui a própria terminologia de Trigueirinho Neto, aplicada num comentário que para a revista “Anhembi”, junho de 1956, escreveu, a propósito de “Sr. Puntilla e seu criado Matti”, filme de Cavalcanti, tirado de uma peça de Brecht). Segundo essa ordem de idéias, não há quase sentimento na interpretação brechtiana, não há quase emoção, mas uma análise rigorosa que precede o julgamento e uma crítica fria que o coroa. Pois, em muitos momentos, na grande maioria deles, Araçari de Oliveira e Jurandir Pimentel escapam da direção racionalista de Trigueirinho Neto e, num à vontade esplêndido, dão asas à sua emoção e deixam que seus sentimentos de intérpretes se identifiquem à emoção e aos sentimentos das personagens. Sente-se na fita que foi impossível controlá-los nesses instantes de fuga e de inspiração individual. Por isso mesmo, tanto Araçari, quanto Jurandir, principalmente este último, por ser detentor do papel principal, se apartam dos demais e realmente se apoderam da interpretação “emocional” da película, em contraste com as demais interpretações, essas sim, satisfatoriamente integradas nas intenções do diretor. De se notar, nesse setor, o desempenho de Antonio Luís Sampaio (“Pitanga”), Francisco Contreiras (o “Desenhista”) e Geraldo Del Rey (“Manoel”), todos estreantes, mas todos a obedecer com dignidade artística à orientação que lhes traçou o diretor. E no final destes já longos comentários sobre “Bahia”, continuo a lamentar que seu criador não houvesse dado à sua fita (inegavelmente importante como um exercício de estilo no cinema brasileiro) uma estrutura dramática e formal mais acessível, menos cerebral e, por isso mesmo, mais humilde, mais realista e mais emotiva. De nada lhe valeu o barroco de São Salvador, nem mesmo funcionalmente, como pano de fundo para essa história de adolescentes marginais baianos. Tal como está estruturada, a obra de Trigueirinho Neto, de temática universal sem características regionais, tanto poderia ter como cenário um bairro popular de São Paulo, quanto uma favela no Rio, ou uma viela em Nápoles. E a Bahia, tão plástica e tão humana, ficou apenas no título convencional da película. O Beijo de Flávio Tambellini, Brasil, 1966 Parte I Flávio Tambellini, valendo-se de um jogo hábil e imaginoso posto na equação imagem-som (imagem estática da pintura, som dinâmico dos diálogos proferidos pelas personagens reais da intriga), estabelece uma surpreendente integração da pista sonora à continuidade dos fotogramas, pesquisa pura de cinema de tanto quanto aplicação autentica do artesanato cinematográfico (o de Luciano Emmer e de Alain Resnais, notadamente), na técnica do filme já então industrializado. Há seqüências em que sente a presença de um criador inquieto à procura de um resultado estético, que não é mais um esforço de conseguir a fluência narrativa de uma historia, mais a ânsia e o cuidado de apresentar com requintes a evolução de uma tragédia, até atingir-se o ápice estético expressionista. A seqüência do enterro (aquele longo e interminável esquife negro a atravessar a tela), a marcação dramática do interrogatório de “Arandir” no gabinete do delegado Cunha, a expressão de uma estado de consciência convulsivo nessas criaturas nauseantes (Ribeiro, Cunha, o sogro, até mesmo Selminha), uns aproveitadores do escândalo e das misérias alheias, vincula “O Beijo” ao que de mais sério e profundo se tem procurado fazer no cinema contemporâneo brasileiro e ao assistir a essas seqüências tão trabalhadas e de simbologia tão íntima, lembrei-me de um livro excelente, ultimamente publicado – “O homens e seus símbolos”, de Carl G. Jung e colaboradores – de que destaco este trecho a mim parecer bem apropriado a certos filmes de Tambellini: “Cada homem, só conhecendo o mundo através de sua psique individual, percebeu diferentemente os outros homens. O homem, a mulher, a criança vêem o mesmo espetáculo, mas para cada qual há fragmentos diferentes do panorama que aparecem nítidos e os esfumados. O mundo só existe ‘exteriormente’ em nossa percepção consciente, mas na verdade, estamos envolvidos por algo de completamente desconhecido e irreconhecível”. Ah, sim, lembrei-me de Jung, de Pirandello, da verdade de cada um, com o “delegado Cunha”, a criar, em sua psique, um mundo à imagem e semelhança do mundo que o cerca, pois, tendo por norma de profissão de lidar com delinqüentes, não pode admitir que “Arandir” não seja um. Para o delegado Cunha, aquele beijo no asfalto seria um ato libidinoso, conseqüente de um ato criminoso. Para Ribeiro, o repórter policial, o beijo seria um brado de escândalo e não um gesto de misericórdia. Para o sogro a semente do ciúme e o fulcro de uma inapelável condenação. Para Selminha o túmulo aterrado em que sepultaria paz e amor conjugal. Para Dália, apenas o prelúdio de uma outra tragédia, em cujo desfecho haveria um outro beijo. Só o mundo de Arandir permanecia irreconhecível para todos, até para o próprio telespectador. Todos que presenciaram o beijo no asfalto viram a ocorrência de modo diferente, conceberam na percepção consciente algo de irreconhecível para os outros, apenas sensível a si próprios. A verdade de cada uma, interpretada pelos os outros. Assim é, se lhe parece... E lamento que Flávio Tambellini, ao onerar pesadamente seu trabalho com a carga temática de Nelson Rodrigues, se houvesse também deixar prender pelo fascínio de um cinema expressionista, com toda a sua simbologia, até mesmo com um certo histrionismo excessivo. A seqüência da morte de Arandir é um desses momentos de interpretação gongórica, quase grotesca. O bailado no bar, a envolver Ribeiro, naquele seu processo de culpa e de exame interior, é outro trecho excedente, que, se cortado do conjunto dramático, não faria falta nenhuma. E em geral os intérpretes não estão à altura das situações mais significativas do tema. Não há ainda no Brasil atores suficientemente formados para o cinema do porte de “O Beijo”. Jorge Doria, Xandó Batista, Nelly Martins e Norma Blum se incluem neste setor deficiente. Apenas Reginaldo Faria e Fregolente enfrentam e si contém nos lances mais comprometedores. O Beijo de Flávio Tambellini, Brasil, 1966 Parte II Imagem estática, som dinâmico... Ao sair da sala, encontrei-me, com Flávio Tambellini, realizador de “O Beijo”, que eu acabara de assistir. Não tive dúvida, nem acanhamento, em dizer-lhe, lealmente, o que pensava de seu filme, de transmitir-lhe a comoção que me causaram os ótimos momentos de cinema, contidos em “O Beijo”, tanto quanto a impressão deprimente provocada por suas falhas dramáticas, a meu ver imputáveis à índole grosseira, à linguagem desabrida a cercar tudo quanto escreve Nelson Rodrigues, uma peça de teatro, um romance, uma crônica de jornal, tanto quanto um filme baseado em tais escritos. Tambellini ouviu-me um tanto contrafeito e como logo percebi seu constrangimento, deixamos o assunto e falamos de outras coisas, comentamos com entusiasmo a beleza tranqüila e profunda do filme de curta-metragem “O Universo”, realizado no Canadá e a acompanhar “O Beijo”, em complemento de programa. Mas, no dia seguinte, telefonava-me Flávio Tambellini, já de partida para o Rio. Telefonava para assegurar-me que todas as deficiências do filme, tanto as de adaptação quanto as de realização deveriam ser debitadas a um único setor de criação, o da produção e direção do filme, de sua inteira responsabilidade, nada tendo contribuído para a ocorrência de tais falhas a colaboração de seu amigo Nelson Rodrigues, de perfeita cooperação, infenso à vaidade, nunca a recusar seu integral apoio durante toda a realização de “O Beijo”, sempre a conferir absolutamente liberdade em todos os setores de sua criação, inclusive nas modificações que ele, Tambellini, propusera e depois introduzira na estrutura dramática e narrativa do filme. Essa atitude de superioridade e de maturidade de espírito, essa integridade profissional tão alheia do cinema brasileiro e de seus autores em geral, comoveu-me profundamente, contudo, como, em minha atividade crítica na imprensa, não alimento o menor preconceito em relação a quem quer que seja, por adotar uma escrupulosa imparcialidade em meus escritos, sem jamais poupar um amigo (quando me parece falha sua obra), ou de exaltar um desafeto (quando me impressiona favoravelmente o seu trabalho), sinto-me à vontade para comentar “O Beijo”, super-estimulado além do mais pela tomada de posição de seu realizador. Entretanto, apesar das afirmações em contrário de Flávio Tambellini, continuo a crer que as falhas maiores de seu filme decorrem de sua origem literária, de seus diálogos e das situações chocantes imaginadas por Nelson Rodrigues em sua peça e conservadas com as características pessoais e estilísticas do autor de “Vestido de Noiva”. Há em “O Beijo” seqüências de pura criação cinematográfica e um espírito de análise psicológica e de síntese narrativa muito aprofundado. Há, por exemplo, uma exata função expressionista nas cenas estáticas dos quadros de pintura sacra antiga e de cenário, e o aproveitamento da própria cenografia, em longas e distanciadas perspectivas, naquele significado de fuga interior, de que estavam possuídas quase todas as personagens do drama. Ademais, na utilização das figuras desse quadro bíblico (a acusação de Cristo pela tuba de seus algozes), Tambellini se vale de um jogo inteligente e imaginoso, posto, numa equação rigorosa e em perfeita equivalência, no binômio imagem-som, imagem estática de pintura e do desenho, som dinâmico dos diálogos proferidos pelas personagens da intriga. O Belo Antonio (Il Bell´ Antonio) de Mauro Bolognini, Itália, 1960 31 maio 1961 Diga-se de início que esta “Il Bell’ Antonio”, de Mauro Bolognini, à primeira vista, desconcerta e acabrunha o espectador desprevenido, tal a rudeza do tema e do seu tratamento, áspero e impiedoso. É preciso, para bem compreender a obra de Bolognini, se integre o seu espectador na comunidade social em que é vivida a ação de “Il Bell’ Antonio”, na província italiana, ou, mais precisamente na Sicília, na cidade de Catania, num ambiente ainda tomado de superstições, de tabus de crenças primitivas, de preconceitos, os mais retrógrados. Confesso que, a princípio, me chocou muitíssimo a grosseria com que Mauro Bolognini tratou seu tema, e foi preciso que Claude Blum, aos usos e costumes sicilianos (pouco identificáveis geograficamente na película), quanto à funcionalidade dessa estrutura dramática, cheia de arestas e aparentemente vulgar, que tanto me decepcionara, quando, no primeiro momento, me defrontei com a tragédia desse belo Antonio, sensível e frustrado. Antes tais esclarecimentos, reformaria eu a seguir o meu primeiro juízo, só então passando a me impressionar a película de Mauro Bolognini, com seu cenário pesado de arquitetura barroca, com suas personagens a lembrar figuras de Zola, com aquelas cenas da vida burguesa e, acima de tudo, o drama humano de Antonio, a pureza de seus sentimentos em relação ao amor, sentimentos platônicos de um poeta, nunca sensualidade carnal de um sátiro ou de um libertino. Assim considerada “O Belo Antonio” assume a força de uma peça documentária, o poder descritivo de uma obra verista, em que as personagens só podem ser o que são, não podem nunca aturar qualquer traço da ficção e da fantasia. “Il Bell’ Antonio” é, pois, uma dissertação sociológica, antes mesmo de ser uma análise psicológica. Antonio é uma criatura sensível a negar o meio em que nasceu, a repelir sua ancestralidade, tentando firmar sua personalidade traumatizada no ambiente de que logrou libertar-se moralmente, mas a cujas obsessões e preconceitos se vê irremediavelmente jungido. Seu drama, no filme, não é apenas um sofrimento individual, mas a tragédia de toda uma comunidade, atos e heranças a se transferirem para cada um dos seus elementos, todos participantes, na sua escala, do mesmo “status”. Os Boas-Vidas (I Vitelloni) de Federico Fellini, Itália, 1953 05 outubro 1963 Os “vitelloni” (os “bezerrões”, numa tradução ao pé da letra, ou ainda, “os boas-vidas”, no termo mais popular) são o símbolo da indolência e da irresponsabilidade, esses rapazotes já em idade de tratar da vida, mas que continuam a existir à custa dos pais, como certos bezerros crescidos que, ao invés de trotar pelos pastos, com aquele sentimento de independência próprio dos verdes anos, ficam à sombra dos currais, à espera da alimentação materna, como parasitas incorrigíveis. Com esse material humano – o mesmo com que o cinema norte-americano e o de outras procedências realizaria inumeráveis películas sobre a chamada “juventude transviada” – Fellini compôs peça satírica, cruel e impiedosa, ainda que narrada sob um tom inocente. Há seqüências de um extremo despojamento formal, a contrastar com o peso compacto de seu conteúdo: os “vitelloni” nas ruas provincianas de Pesaro, à noite, a passear a sua vadiação; a caricatura crua do baile de carnaval, a “ressaca” de Alberto, a fuga de sua irmã, tudo a acontecer como se o carnaval ainda continuasse; o grotesco do espetáculo de variedades, as pobres figuras do velho comediante e de suas atrizes; e, na seqüência final, a ternura tépida da partida de “Moraldo”, o esboço do homem solitário, a contemplar do trem, já em movimento, a paisagem humana que deixaria para trás, no prosaísmo de seus lares, uns ainda a dormir, outros já às voltas com suas ocupações cotidianas, todos mostrados do ponto de vista de Moraldo, como se fossem vistos da própria janela do trem. E a última cena, o momento chapliniano muito puro escurece por sobre o vulto de “Guido”, o pequeno amigo das madrugadas, a equilibrar-se nos trilhos, essas paralelas que nem no infinito se encontram, o último símbolo da solidão a sintetizar o tema e a constante de Fellini em toda sua obra posterior, derradeiros despojos do neo-realismo, que nem a imbecilidade de uns, nem a ganância de outros conseguiu perverter e destruir. Revendo hoje “Os Boas-Vidas” e relendo o que escrevi por ocasião da estréia da fita de Fellini em São Paulo, em dezembro de 1957, não pude deixar de transcrever o que então eu comentava nesse jornal, pois o filme desse grande cineasta resiste não apenas ao tempo, permanece tão vivo na atualidade quanto o fora ao ser realizado como continua despertando aquelas primeiras impressões causadas pela força de sua criação. E nessa semana, duas foram as reapresentações interessantes para aqueles que realmente cultuam o cinema: “O Delator” (aqui já comentado por meu colega A. Carvalhaes), a obra inesquecível de John Ford, e o filme de Federico Fellini. Duas grandes peças do cinema universal, que devem ser revistas a cada vez que “milagrosamente” surjam em cartaz, ou de uma sala comercial, ou na de uma academia de estudos cinematográficos. A Casa dos Segredos (The House of Secrets) de Guy Green, Inglaterra, 1957 05 setembro 1957 Trata-se de uma película de enredo a tirar-se, provavelmente dos arquivos da Interpol, polícia internacional, de quadros compostos com elementos recrutados nos corpos policiais de muitas nações e destinados a cuidar da vigilância e da segurança de todos os povos e cuja sede, se não me engano, foi fixada em Paris (onde também transcorre a ação de “A Casa dos Segredos”). O contrabando, o lenocínio, o tráfico dos entorpecentes, todos os problemas policiais que possam interessar à tranqüilidade coletiva, à estabilidade e ao bem-estar sociais preocupam a Interpol e seus inúmeros departamentos “A Casa dos Segredos”, à Rue du Bac, em Paris, é a sede da repressão contra falsificadores e contrabandistas e em sua história se enredam as façanhas de uma quadrilha especializada em ambas as coisas: falsifica, com perfeição, notas de cinco libras e aproveita a oportunidade para o exercício rendoso do contrabando de ouro. Toda a intriga da película se conta num estilo vivo, fluente e bem acordado à técnica narrativa da fita policial, gênero a fazer no cinema uma escola própria, com feições diferentes em cada país. Evidentemente, uma dessas escolas maiores – uma verdadeira “universidade”... – se situa no cinema norte-americano, com muitos fatores favoráveis ao seu desenvolvimento e à apuração de sua estética: riquíssima literatura especializada a seu dispor, fatos verídicos, os mais complexos e inesperados, a acontecer todos os dias, um cinema com recursos sem conta e sem par para realizar os argumentos mais ambiciosos. E tudo isso a fazer-se com certa liberdade de ação, impossível em outros gêneros no cinema norte-americano. Mas, a França e a Inglaterra, não ficam atrás. Seus “modos” são diferentes, é certo, mas não menos interessantes. Clouzot, na França, fez com que algumas de suas peças policiais entrassem definitivamente para a história do cinema – “Le Corbeau”, “Quais des Orfèvres”, “Les Diaboliques” – com suas fórmulas algébricas de investigação criminal, singulares e tão caracteristicamente pessoais. E quanto ao cinema inglês, com o seu humor, próprio, de cores várias, do rosa ao negro mais profundo, é preciso não esquecer que Alfred Hitchcock nasceu em Grã-Bretanha, ali realizou algumas peças notáveis no gênero policial, honrando muito o cinema de seu país e o dos Estados Unidos, onde criou peças inesquecíveis, com técnica e pesquisas originalíssimas. E ainda no cinema inglês, aí está, em fresca memória. “O Quinteto da Morte”, um “policial” “sui-generis”, obra-prima de humor, de malícia e de sátira. Pois, “A Casa dos Segredos” não desmerece a tradição do cinema britânico no gênero policial: é obra de ritmo nervoso, de trama complexa, mas logicamente exposta, a dispor-se na continuidade narrativa em seus clássicos mistérios, só perceptíveis e desvendáveis nos últimos carretéis da película. Muito bem interpretada, com aquela sobriedade dramática tão própria aos atores ingleses, “A Casa dos Segredos” transcorre com um interesse sempre crescente, a que não faltam os momentos de expectativa e algumas lutas, entre policiais e delinqüentes, das mais reais vistas ultimamente. A cidade de Paris serve de pano de fundo a essas aventuras. Suas estradas, suas avenidas, ruas, becos e escadarias formam o cenário natural, de grande efeito plástico, a valorizar-se ainda, pela cor excelente da fotografia de Harry Waxman. Casinha Pequenina de Glauco Mirko Laurelli, Brasil, 1963 30 janeiro 1963 Mazzaropi acaba de levar a cabo sua segunda fita em cores, essa “A Casinha Pequenina”, película sem pretensões como sempre foi o cinema de Mazzaropi, peça, entretanto, cheia de qualidades e de ótimas intenções. Das intenções já falei aqui, quando apresentou “Tristezas do Jeca” no ano passado, peça em que já se previam as qualidades agora tão visíveis em “A Casinha Pequenina”. Qualidades sim, e muitas. A começar pela indicação do nome de Glauco Mirko Laurelli para a direção dessa película, o principal propiciador das virtudes do filme. E ao assistir à película, é possível, desde logo, reconhecer a influência do antigo diretor de dublagem da Gravasom, não apenas no setor da dialogação, em que Glauco Mirko Laurelli se tornara um especialista, mas também na direção de elenco (com atores bem marcados, movimentando-se à vontade sem qualquer constrangimento dramático), principalmente no enquadramento da película, em muitas seqüências a apresentar uma composição fotográfica e uma dinâmica cinematográfica raras no cinema brasileiro, feito em cores, de função dramática diferenciada na narrativa e no encadeamento de sua dinâmica, a constituir por isso, um problema a mais à frente de um realizador inteligente e sensível. Pois Glauco Mirko Laurelli, nesta sua fita de estréia, com o auxílio certamente de seu iluminador, esse grande e competente artista que é Rodolfo Icsey, com o trabalho irrepreensível do tratamento da cor, a cargo da Rex Filme, enfrentou esse problema com uma desenvoltura e um sentido de composição cinematográfica só encontráveis em cinema altamente categorizado. Algumas cenas de reconstituição de época (a ação do filme se passa no fim do século, pouco antes da abolição da escravatura) lembram gravuras de Debret, na disposição dos negros no terreiro de café, nas plantações da fazenda, nessa cenografia tão simplificada do patriarcado rural, que marcou, com a casa grande e a senzala, os últimos anos do patriarcado do café, até então sustentado pelo braço escravo e a desconhecer o trabalho e os costumes do imigrante. “A Casinha Pequenina” vale por esse trabalho de composição, de aproveitamento da cor pura, de ótima cenografia (a cargo de Pierino Massenzi), e pela direção de elenco, setores de criação salientes nessa estréia de Glauco Mirko Laurelli, a torná-lo desde já como capaz de algo mais importante nos quadros do cinema brasileiro. Quanto a Mazzaropi, já que cuidou tão bem da parte formal de suas fitas, é preciso agora voltar suas vistas para o seu conteúdo, ainda a caracterizar-se pela fragilidade e inconseqüência de seus argumentos. Cinema sem pretensões esse de Mazzaropi, destinado, sem dúvida ao divertimento de seu público habitual. Não o censuro por isso. Mas, gostaria de cumprimentá-lo com o mesmo calor sentido em relação à técnica de suas fitas atuais, se suas futuras realizações apresentarem também histórias e adaptações mais consistentes e de alcance social mais profundo. Tenho certeza de que será capaz de fazê-lo. Cidade Nua (The Naked City) de Jules Dassin, EUA, 1948 19 janeiro 1959 “Jules Dassin está fazendo em ‘The Naked City’ um trabalho magnífico, por uma razão: ele é um novaiorquino. É também um jovem diretor, com idéias extremamente boas, algumas muito avançadas. Deixei-o inteiramente sozinho em seu departamento, simplesmente porque ele sabe o que faz.” – Estas palavras de Mark Hellinger, produtor de “Cidade Nua”, escrita pouco antes de sua morte, ocorrida em princípios de 1948, denunciam a importância de dois elementos nos setores primordiais da criação cinematográfica: a inteligência do produtor e a competência do diretor. Essas duas faculdades espirituais realmente criam o cinema e o tornam o verdadeiro meio de expressão dos tempos modernos. Mark Hellinger, antigo jornalista, compreendendo muito bem a força desse binômio, restringiu toda a sua atividade profissional no cinema à função de produtor e, graças a essa determinação, iniciou uma revolução no cinema norte-americano, de processo só interrompido pela ocorrência de sua morte. Mas o exemplo ficou e muitas películas surgidas depois foram fortemente influenciadas pela obra do jornalista, que abandonara sua máquina de escrever para impelir exclusivamente suas câmaras cinematográficas. Produzida e realizada por dois homens nascidos em Nova Iorque, toda ela fotografada por dentro e por fora da grande metrópole, “Cidade Nua”, após duas horas de espetáculo, dá a impressão de que seus realizadores não obedeceram roteiro algum, a nenhum plano de produção. Tomaram da câmara, postaram-na nas ruas e praças, nas esquinas e nos becos, nas docas e nas casas, nas estações subterrâneas e no topo dos altíssimos edifícios e deixaram a película correr por entre as engrenagens do fabuloso instrumento. Pontuaram depois essas imagens, essas frases colhidas em plena vida, instantâneos fugazes de coisas e gentes, num ótimo trabalho de montagem e com um ritmo nervoso nasceu “Cidade Nua”, uma história, uma reportagem, uma crônica de Nova Iorque e de seus oito ou dez milhões de habitantes, num período de 48 horas. Oito ou dez milhões de pessoas e 48 horas de tempo são muita coisa para ser narrada em menos de 120 minutos de projeção. Por isso, os cineastas limitaram sua reportagem à vigência de um fato surpreendido através de uma janela, um drama em que se envolveram, durante dois dias, alguns personagens tirados do elenco da grande metrópole. E em torno desse drama, que para a maioria dos habitantes de Nova Iorque passará totalmente despercebido, um drama ao preço de dez ou quinze “cents”, o preço de um jornal diário, gira toda a ação de “Cidade Nua”, descrita com o espírito de narração sintética, próprio das melhores reportagens. Citarei apenas um exemplo, descompondo em quadros, uma seqüência quase toda: pela madrugada, uma mulher é narcotizada e morta por asfixia dentro de uma banheira. Tudo quanto ocorre durante o crime e depois dele – o assassínio, a descoberta do cadáver, o aviso à polícia, as investigações preliminares, a classificação do fato delituoso – é narrado por uma sucessão de quadros impressionantes pelo seu poder de sugestão: a vítima sendo assassinada (uma torneira que se abre) a imagem que se funde com as mangueiras usadas na limpeza matinal da cidade; o despertar da metrópole; a descoberta do cadáver (o rosto horrorizado da criada de quarto da vítima); conectores telefônicos que se engatam nos orifícios do “PBX” e a fundir-se com a imagem de uma ambulância do Hospital Roosevelt; conectores telefônicos novamente a estabelecer ligação com os laboratórios de pesquisas criminais e, afinal, com o Departamento de Homicídios da Polícia de Nova Iorque. Tudo isso a acontecer numa movimentação nervosa e funcional, numa excelente aplicação de termos e recursos cinematográficos, num entrosamento perfeito de som e imagem, tudo a obter-se por meio de todos os recursos técnicos e intelectuais de uma montagem dinâmica. Em boa hora, realmente, se propôs “Geralartes” uma reapresentação dessa obra de Dassin-Hellinger. Nada mais oportuno do que essa revisão de obras de Cinema, a fazer-se, infelizmente, em ocasiões muito raras, se bem que sempre tenham muito interesse histórico. O Corvo Amarelo (Kiiroi Karasu) de Heinosuke Gosho, Japão, 1957 19 outubro 1961 Eis uma película realizada por um dos diretores mais sensíveis do Japão, Heinosuke Gosho. Pois, a cada filme importante do cinema nipônico que se exibe em São Paulo mais e mais se surpreende o espectador, o estudioso de cinema, pela versatilidade dos cineastas de lá, pela competência e emotividade surgida do trabalho de suas equipes técnicas, pela delicadeza e profundidade com que são tratados os temas mais simples e os mais complexos. Este “O Corvo Amarelo” está entre os mais complexos e, apesar disso, foi exposto com simplicidade comovente. Em verdade, o corvo amarelo é apenas um símbolo, pois o corvo real, que só aparece lá pela segunda metade da fita, continua a ser o pássaro negro habitual, portador de mau agouro, a grasnar como sempre sua revolta contra a organização das coisas neste mundo que o repele supersticiosamente. O corvo amarelo é muito mais importante. Gerado pelo lápis de cor de uma criança, esse pássaro estilizado, no colorido berrante em fundo preto, é um brado de revolta, representa conflitos internos, processos psicológicos de defesa, de catarse, de fuga, de derivação na mente do menino, crescido longe do pai, para ele um estranho, um usurpador do carinho materno. O lápis de cor para essa criança que se sente abandonada é um derivativo e sua pintura um desabafo. Todo esse conflito sentimental é tratado com sutileza espontânea, a obrigar o espectador a integrar-se na fabulação, a sofrer com esse menino o seu pequeno drama interior, que, numa criança, pode tornar-se uma grande tragédia adulta. Está claro que as cores, as admiráveis cores do cinema japonês participam intensamente dessa narrativa e desses embates psíquicos. E a água, a chuva é também um elemento do drama, faz parte do cenário, integra-se nele através daquela fotografia que só os japoneses sabem fazer com a água, a chuva, o mar, ou um simples fio líquido a cortar seus jardins, os tranqüilos jardins dos lares nipônicos. A fuga do menino, através de bosques e campos batidos pelo vento e pela tempestade, num cenário todo feito de roxos e azuis cambiantes, conforme a iluminação intermitente dos relâmpagos, constitui um dos momentos mais admiráveis do cinema contemporâneo moderno. De se lamentar que a espontaneidade dos diálogos, traduzidos com inteligência pelo sr. e sra. Takeshita, não tenha sido inteiramente preservada no trabalho de inserção dos letreiros em português. Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, Brasil, 1964 04 setembro 1964 Parte I Ao afirmar, desde logo, que não me agradou o filme de Glauber Rocha, não quero, com essa apreciação preliminar e radical negar a inteligência de seu realizador, nem menosprezar seu entusiasmo de jovem, no manuseio dessa história de cangaço e misticismo, na sua ambição de realizar algo definitivo nesse indefinido “cinema novo”, de que é ele o campeão insuperável e o guarda-costas mais fiel. Uma longa conversa com Glauber Rocha antes de assistir ao filme foi-me muito benéfica, na antecipação da análise da obra, e as declarações prestadas por seu realizador a respeito de suas idéias, gerais e particulares, sobre “Deus e o Diabo”, a abarcar o panorama do cinema brasileiro atual, firmaram posições, definiram pontos de vista e esclareceram satisfatoriamente algumas contradições e incoerências de atitudes encampadas no livro de Glauber Rocha – “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” – sobre o qual eu escrevera exaustivamente neste jornal. E, como após a leitura desse livro, a impressão que fica, ao acender das luzes depois da projeção de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, é a de que Glauber Rocha deu um passo maior do que as pernas, claudicando grotescamente ao fim desse esforço no campo áspero do cinema. Seu filme é algo de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica, a demonstrar por parte do autor o desejo de colocar o cinema do Brasil na órbita de um movimento “artístico” surgido na Europa ultimamente (embora as idéias que o configuram sejam antiquadas e superadas), chamado na França de “cinéma-verité”, aqui caricaturado a expensas do nosso “cinema novo”, também esse, como é sabido, sem ostentar nenhuma novidade digna de atenção e de respeito. De fato, até agora, tudo quanto apregoa o “cinema novo” brasileiro ou é algo de muito velho, ou algo de muito ruim. Suas derivações mais recentes, Glauber Rocha as contou, em prosa inflamada, na sua “Revisão Crítica”, nesse livro tentando a árdua empresa de ordenar o “modus faciendi” da técnica de suster uma câmara na mão, sem apoio de tripé, sem óculos dos filtros, sem a reverberação compensatória dos rebatedores, coisa de adolescentes que, pela primeira vez, conseguiram ter à mão uma câmara de amador e que, através do visor restrito, descobrem um mundo novo, configurado por uma ótica que desconheciam. Acontece que o mundo, para eles novo, continua a ser o mundo velho sem as porteiras de sempre e o que o aparelho consegue captar são as imagens capengas e canhestras, só formativas da obra característica de aprendizes. Aprendizes de feiticeiro, que ao final, ou ao meio da produção, não sabem como situar-se no tumulto que criaram, nem como terminar a empreitada que a princípio lhes parecia tão fácil. “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é bem um exemplo disso. Projeção trêmula, quadros trepidantes, incríveis vaivéns de panorâmicas sem função, desrespeito absoluto pelas regras mais elementares da técnica cinematográfica, iluminação precária da fotografia (não raro fora de foco), totalmente apartada da dramaturgia cinematográfica, desintegração total da unidade dramática, ausência de qualquer elemento criador na montagem, narrativa fragmentada, descosida, muitas vezes incompreensível, eis o espetáculo de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, algo a que se assiste com o enfado e fadiga, cujo final se recebe com alívio e desafogo. Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, Brasil, 1964 05 setembro 1964 Parte II “Uma ópera popular primitiva, brasileira e sem rebuscamentos”, eis como define sua obra o próprio Glauber Rocha, ao referir-se a “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, em entrevista concedida a este jornal. Primitivo, sem dúvida, seu filme o é; mas primário seria melhor qualificação. Primário na exposição do tema, primaríssimo em sua feitura e em seu acabamento, uma negação total de seu próprio título. Não há Deus, nem Diabo, nem Sol, nessa terra em que Glauber Rocha erigiu o cenário de sua ópera. O seu Deus é um pobre diabo negro, enfático e declamador, incapaz de convencer o mais bronco dos sertanejos. O seu Diabo é um deus caricato, cabeludo, metido a filó­sofo do sertão e bailarino das caatingas. E o Sol brilha por sua ausência, nessa terra que deveria estar crestada por ele, nesse chão sofrido que os cantadores populares descrevem como algo de ressequido e morto. Pois a paisagem de “Deus e o Diabo”, ainda que árida, se apresenta sob o foco (ou fora do foco) da “câmara na mão” de Glauber Rocha, sempre sob um céu nublado, nunca sapecado pelo sol abrasador. Nesse pano de fundo, não raro neutro e sem características maiores, movem-se os personagens da “ópera”: Manuel e Rosa, Sebastião e Corisco, os camponeses do Nordeste, os escravos da gleba, o cego Julio, os minguados cabras de Corisco, o Antonio das Mortes, chapelão texano, capa preta a envolver esse “Zorro” do sertão. Tudo isso pode ter sido concebido de modo metafórico, alegórico, simbólico, aceito de bom grado essa possibilidade na expressão de “Deus e o Diabo”. Tais recursos, entretanto, sempre foram utilizados pelo homem, desde que, antes de ter uma câmara na mão, pôde segurar um estilete, ou uma pena para pôr na pedra, no papiro, ou no papel suas idéias, sua sensibilidade e assim descrever os abismos de sua alma, ou figurar os anseios de sua condição humana. Mas, é preciso que tais recursos – metáforas, alegorias, símbolos – sejam propostos no momento exato, conforme as circunstâncias e de modo funcional. Um homem vestido de capa preta, chapéu de aba larga, lenço ao pescoço, espingarda à mão, a andar de lá para cá, a correr ou saltar no campo cinematográfico, sem integrar-se na linha, no cenário, no âmago da ação dramática e na compreensão da história, só continuará a ser um homem de capa preta, simbolizando talvez um Tenório em Caxias, ou um “zorro” ao tempo das missões na Califórnia, nunca a expressar um “coro”, ou um “prólogo” das tragédias antigas, ou mais simplesmente o “Antonio das Mortes”, matador de cangaceiros, no sertão de Cacorobó... Não sinto nenhum prazer, senão apenas um sentimento de melancólica decepção ao ter que comentar o filme de Glauber Rocha, não de modo metafórico, mas às claras e sem preconceitos. Admiro a inteligência do jovem cineasta baiano e tenho-o na conta de alguém capaz de muitas coisas no cinema brasileiro. Falta-lhe contudo a maturidade dos velhos, a experiência dos que envelheceram sob a luz dos refletores, desse instrumental cinematográfico que Glauber tanto condena. Mas, isso não é irremediável. O passar do tempo lhe dará tudo e mais alguma humanidade, que é coisa de muita importância na realização do cinema legítimo, desse cinema que tanto ele quanto eu próprio almejamos para o Brasil. Vamos esperar, por isso. A Doce Vida (La Dolce Vita) de Federico Fellini, Itália, 1960 09 janeiro 1961 A cada película de Federico Fellini que assisto, sinto-me impelido a reexaminar certos conceitos expostos aqui mesmo, nesse canto de página da Folha de S. Paulo, quando escrevi sobre esse grande mestre do cinema universal, a propósito de uma de suas peças, “Il Bidone”, ou “Il Vitelloni”, não importa. E, a cada reexame, convenço-me da justeza da observação, quando afirmei que “algum psicólogo perseverante há de achar algum dia, na obra de Fellini, material bastante para a pesquisa psicanalítica da personalidade desse cineasta obcecado e introvertido, numa eterna luta dentro de si próprio, emaranhado por entre o desvario da dúvida e a alegria de reencontrar-se na exaltação criadora da obra artística pura e simples. Que explicação subjetiva se poderia obter através da análise dessa obsessão de Fellini, do seu drama de homem só, tão realçado e tão repetido em toda a sua obra? Ninguém sabe, ninguém se lembrou de perguntar isso a esse homem, em Roma onde ele próprio vive isolado apenas com sua mulher, essa encantadora Giulietta Massina, que, em três películas de Fellini, interpretou personagens também solitárias: ‘Gelsomina’, ‘Iris’ e ‘Cabiria’”. E agora, ao assistir “La Dolce Vita”, ressurge de novo a observação, reencontro novamente o Fellini torturado pela dúvida ou subjugado pela exaltação, em muitas seqüências dessa fita perturbadora e angustiada; reencontro novamente o Fellini em sua tragédia de homem só, numa das personagens mais simbólicas de “La Dolce Vita”, aquele “Steiner” introvertido, que se considerava minúsculo ante uma catedral gótica, ou a ouvir uma fuga de Bach, aquele homem desajustado e perdido no emaranhamento do mundo moderno, que temia a paz e o silêncio, mas que só na paz e no silêncio terá encontrado talvez a resposta definitiva para as interrogações sugeridas nas noites de insônia, ou ante o panorama milenar da paisagem urbana de Roma. Mas, “Steiner” é apenas um elemento geométrico do caleidoscópio social, perdido na composição abstrata, que se forma a cada volta do tubo, através do qual se observa a doce vida. “Steiner” se integra e acaba mesmo desaparecendo entre “Marcello”, “Emma”, “Silvia”, “Madalena”, ou por entre os freqüentadores noturnos da Via Veneto, por entre os crentes e os comerciantes da fé, naquele pátio de milagres em que a “Madonna” surge sob a chuva, ao sabor da imaginação infantil, ou sob o estímulo da ganância dos exploradores da religião. “La Dolce Vita” é um caleidoscópio, sim. Mas, um microscópio, também, por cima do qual Fellini se debruça e através de cujas oculares examina as lâminas de toda uma camada social. Examina-as apenas, sem tirar qualquer conclusão. Há monstros nesses microcosmos, monstros humanos, um monstro marinho até, já meio apodrecido, mas de olhos bem abertos ainda, com sua pupila voltada para as criaturas atônitas em torno de si, ou dirigida para a figura fresca, ingênua e arejada de uma menina, cuja voz Marcello não pode mais ouvir, cujos gestos nem sequer pode interpretar, separado que está pela lama da maré baixa, ou pelo lodo dos mais baixos instintos. Fellini expõe e analisa sem se preocupar com o antecedente, nem o conseqüente. Inconformado talvez, sempre em dúvida, mas a acreditar ainda, num mundo que não é o dele, submete-se à tortura de sua análise, sem apegar-se a resíduos objetivos. Prefere sublimar-se no símbolo, numa simples alusão, num esboço apenas. O rosto da menina, a última imagem do filme, tem de surgir assim, como uma declaração de fé, no futuro da própria humanidade, tal como o cenário do “Caracalla’s,” levantado sobre ruínas romanas, ou as cariátides do castelo, por onde perambulam os últimos representantes de uma aristocracia decadente, são símbolos de um mundo acabado, que agora só tem interesse histórico, ou somente uma importância arqueológica. E se há angústia e desespero, orgia e suicídio, sarcasmo e impiedade nesse filme amargo e comovente, numa constante e paradoxal dinâmica, há também, por detrás dessa doce vida, inútil e suja, a pureza de um olhar, o asseio de um rosto adolescente, a esperança infantil de sua última imagem com um lampejo fugaz de repouso, breve a surgir na noite do desencanto e no abismo da degradação. A Doutora é Muito Viva de Ferenc Fekete, Brasil, 1957 20 novembro 1957 De fato, “A Doutora é Muito Viva”, constitui-se numa autêntica revelação cinematográfica. Quando pela primeira vez fora eu informado das intenções de Fekete, nessa sua incursão pela direção de cena, saindo ele de seu ambiente habitual – a direção da fotografia, onde sabe realmente impor os seus conhecimentos e a sua sensibilidade – estava eu certo de que essa obra apenas continuaria a sagrar o molde de “A Pensão de da. Estela”, inenarrável aventura de que participou Fekete, em companhia de Alfredo Palácios, peça cuja existência no cinema brasileiro é preferível esquecer-se. Mas, na proporção em que avançam os trabalhos de estúdio de “A Doutora é muito viva”, modificava-se também a opinião de quantos, de um modo ou de outro, tomavam conhecimento da realização de Fekete. A fotografia era magnífica, a interpretação criava algo de novo dentro desse gênero tão desmoralizado pelo cinema carioca – a comédia leve, o espetá­culo cinematográfico sem as pretensões e a grandiloqüência da superprodução. Entretanto, mesmo já sabendo das qualidades da fita de Fekete, foi para mim uma enorme surpresa a exibição de sua cópia “standard”. Pois, não só “A Doutora é muito viva” se apresenta como uma fita incomum no gênero tão pervertido pelos medíocres do cinema brasileiro, como vai além das dimensões estritas de uma peça de linha comercial, com técnica perfeita, cuidada em todos os setores da criação cinematográfica, a par de um argumento muito simples (simples até em demasia), narrado com a fluência dos estilos castigados. Nesse sentido e guardadas as devidas distâncias diferenciais entre um argumento e outro, a película de Fekete equipara-se à realização de Anselmo Duarte. De fato, tanto “Absolutamente Certo”, quanto “A Doutora” são películas de linguagem do Cinema, com uma produção caprichadíssima, neste setor tão complexo se tornando uma animadora evidência os cuidados de Osvaldo Massaini, na produção da película de Anselmo Duarte e os de Carlos Szili, na de Francisco Fekete. Em verdade, na manufatura cinematográfica, o êxito industrial depende quase que exclusivamente do setor da produção. E no que concerne ao cinema brasileiro, tem surgido desse lado o seu problema maior. Foi o setor da produção dos negócios da “Vera Cruz” que mais falhou em toda a sua curta e dispersiva existência industrial. O malogro técnico, artístico e comercial da grande maioria das películas nacionais origina-se sempre do flanco da produção, o setor que, num exército em operações, se equipara ao da função do Estado Maior e ao de seu abastecimento em homens e material. Que tática ou estratégia poderá cercar-se de êxito sem planos racionais de campanha e sem um roteiro seguro do abastecimento das tropas em movimento nas vanguardas e em exercício, ou repouso, nos acampamentos da retaguarda? A produção no cinema é o estado maior dos exércitos. Se falham os chefes, por imprevisão ou incompetência, que resultados finais poderão esperar-se de uma batalha, ou da operação cinematográfica? Foi graças a Osvaldo Massaini e a Carlos Szili, que se reuniu uma equipe selecionada entre os maiores, com um elenco de gente nova, planos e recursos, homens e material, tudo a funcionar, perfeitamente. Daí a surpresa com que ambos os produtores surgiram pela qualidade da forma e se fizeram pelo significado de seu conteúdo e se tais planos consagraram os resultados da campanha, por que não prosseguir pelos rumos dessa tática, por que não aproveitar os ensinamentos de tal estratégia? Quanto ao mais, isto é, quanto aos ignorantes, os espertos, os aventureiros de todo gênero e nacionalidades, quanto a isso... ai dos vencidos! Um último louvor, nessa película tão cheia de louvores: à fotografia de Rudolf Icsey (nunca São Paulo esteve tão bem fotografado, nunca os noturnos paulistanos se cantaram com tanta poesia); à montagem e edição de Lucio Braun, digno discípulo de Oswald Hafenrichter; ao laboratório da Rex Filme, a se ultrapassar no tratamento de cada película que se lhe confia; à atuação do elenco escolhido, num padrão interpretativo da melhor classe (como Augusto Machado de Campos e Francisco Negrão estão distantes das baboseiras da televisão, onde o talento de ambos quase sempre se perde irremediavelmente!); ao som tão bem modulado pela técnica de Boris Silitschanou; à esplendida cenografia de Pierino Massenzi. Um “bis” a todos, inclusive ao produtor e realizador de “ A Doutora é muito Viva”. Doze Homens e Uma Sentença (Twelve Angry Men) de Sidney Lumet, EUA, 1957 24 janeiro 1958 Ante certas circunstâncias objetivas, que estão a tomar corpo continuamente, não sei se o advento da era da televisão e o lugar que essa máquina infernal conquistou na preferência das massas, não terão sido, em última análise, muito favoráveis ao cinema norte-americano, bem em contradição com o que se afirmara anteriormente, isto é, concorrentes perigosos de Hollywood, capazes mesmo de destruir sua hegemonia no domínio falaz do espetáculo, ou até desequilibrar a balança comercial norte-americana, onde, como é sabido, o cinema é um peso respeitável. É verdade que, inicialmente, muitos estúdios se fecharam, ou passaram a produzir exclusivamente para as numerosas estações de televisão. Isso obrigou Hollywood a pesquisar novos campos de atração para o produto de suas indústrias, a inventar novas técnicas de exibição cinematográfica suscetíveis de enfrentar, com êxito, a concorrência da TV e a trazer de volta o espectador das salas escuras, que, num verdadeiro e alarmante êxodo, as houvera abandonado, em benefício do espetáculo gratuito desfrutado no conforto e na tranqüilidade doméstica. Sem dúvida, engenhosas e importantes técnicas se criaram: as telas panorâmicas, o cinemascope, o som estereofônico, quase a terceira dimensão cinematográfica. Mas, nada disso teve grande importância para o conteúdo do Cinema, muito embora tudo isso provocasse uma transformação quase completa no espetáculo cinematográfico tradicional. O que realmente importou para o cinema norte-americano, foi a possibilidade de se renovarem os seus quadros, com a entrada de muita gente moça, até então a militar na televisão, onde iniciara sua carreira e adquirira uma experiência que o cinema super industrializado de Hollywood seria incapaz de proporcionar. Uma geração nova, decidida, experimentada, acostumada a trabalhar com pouco e rapidamente surgiria assim nos estúdios, toda ela vinda da TV e disposta a aplicar no Cinema as lições aprendidas à frente e por detrás das câmaras de transmissão. Há agora em Hollywood uma porção desses jovens a movimentar os estúdios cinematográficos, ou como cenaristas, ou como realizadores: Stanley Kubrick, Frankenheimer, Ritt, Paddy Chayefsky, Delbert Mann e mais alguns são os trânsfugas da TV, ora a adquirir certa nomeada mesmo por entre os “velhos” do Cinema. Com “Doze Homens e uma Sentença”, aparece em Hollywood, mais um desses técnicos da televisão: Sidney Lumet, em sua primeira película, a ele confiada por Henry Fonda e Reginald Rose, aquele intérprete principal também, este cenarista e autor igualmente da peça que, de início, levara aos palcos da TV norte-americana. E logo de saída, realiza Sidney Lumet algo muito ambicionado por muitos cineastas consagrados em Hollywood: a concentração do tema, a sobriedade dramática, o cenário exíguo, onde a câmara mal pode mover-se e onde, apesar disso, deve ser contada uma história cinematográfica. Bem poucos conseguiram resultados satisfatórios e de todos os “grandes” vou citar apenas um – William Wyler com a sua admirável “Detective Story”, aqui exibida sob o título de “Chaga de Fogo”. Toda a ação de se passa na sala de um distrito policial, por onde desfilam, nas 24 horas de um plantão, as personagens díspares, mas participantes de dramas de uma grande cidade. Nesse ambiente restrito, Wyler analisa, um por um, os representantes da fauna das ruas e, não satisfeito com isso, examina também os caracteres dos policiais em serviço, os inspetores, os delegados, os seus prepostos de plantão, como se fora uma coleção de tipos humanos, cada qual com uma função, a passar ante os olhos do espectador para estudo e classificação. Sidney Lumet se propôs, senão o mesmo tema, pelo menos a mesma técnica narrativa, que Reginald Rose adotara na televisão: 12 homens encerrados no aposento trancado aos jurados de um tribunal de justiça, devem decidir a sorte, a morte ou a vida de um menino de 18 anos, suposto assassino de seu próprio pai. A sentença desses 12 homens deveria ser unânime, 12 a 0, culpado ou inocente, conforma manda a lei norte-americana. Mas, entre eles, um houve, considerando inocente o menino, pelos demais já de antemão condenado à cadeira elétrica. Em torno dessa voz discordante – “há sempre alguém para atrapalhar e estragar a festa”, diz a certa altura uma personagem num diálogo – gira toda a película, sem que seus atores e o drama de consciência que passam então a viver ultrapassem as quatro paredes da sala onde se proferem veredictos, de onde se manda um homem para a luz do sol, ou para as trevas da morte. O tema da película é a própria instituição do Júri, a função desse micro organismo sociológico numa democracia, infalível em tese, mas sujeito, como obra humana que é, a erros e irreparáveis injustiças. A Reginald Rose e a Sidney Lumet não interessa a vida privada de cada um dos homens reunidos acidentalmente, para julgar um réu. Não interessa também a existência pregressa do acusado, nem as circunstâncias por que teria assassinado o próprio pai. O que é importante na fita é apenas o seu realismo crítico e tal tese foi, inegavelmente, exposta com uma sóbria e austera eloqüência. Sidney Lumet resolveu com inteligência a questão do espaço. Sua narrativa se faz com tal força e expressão dramática, que a questão do espaço se torna secundária, pois é o próprio espectador quem, a certa altura do drama, passa a decidir e a prolatar a sentença. E isso para Lumet e para o próprio espectador é o que importa. Por um jogo de planos próximos, aproveitando-se dos mínimos movimentos de seus atores, de suas reações fisionômicas e de sua câmara, Sidney Lumet desenvolve a sua dialética. Os menores incidentes da ação são utilizados em benefício dessa eloqüência. A ida de uma das personagens ao “reservado” é para esse diretor uma figura de retórica que ele aplica à discussão, com isso quebrando, paradoxalmente, a tensão emocional criada nos debates, nos quais homens, que nem de nome se conhecem, decidem a sorte de um terceiro que, esse sim, eles pensam conhecer suficientemente. Mas, é possível que a verdade nunca venha a ser desvendada integralmente. Entretanto, a dúvida válida deve ser posta a favor do réu. Esse princípio jurídico foi o espírito triunfante de uma discussão em que o espaço não importou, só o tempo valeu. Entre Deus e o Pecado (Elmer Gentry) de Richard Brooks, EUA, 1960 03 dezembro 1959 Sinclair Lewis, na literatura moderna dos Estados Unidos e na era contemporânea de sua sociedade, é uma espécie de Zola ou Balzac (mais Balzac do que Zola), com a cunha de sua crítica psicológica e social a penetrar fundamente pelas camadas burguesas, usos e costumes do homem americano do norte, tomando a comédia humana, ou o drama das classes médias como elemento de algo maior: a tragédia universal do Homem, simplesmente. Isso foi muito bem compreendido pelo diretor quando se propôs levar à tela o tema admirável de “Elmer Gentry”, resolução aliás compreensível em Richard Brooks, jornalista de profissão antes de se tornar cineasta, atividade a influir muitíssimo em sua carreira posterior no cinema, na realização de algumas películas que, em verdade, se constituí­ram em grandes reportagens, em candentes documentos sociológicos: “Deadline USA”, “Blackboard Jungle”, “Something of Value” e esta excelente “Elmer Gentry”. Pois, “Entre Deus e o Pecado” precisaria de uma longa e pormenorizada análise nesta minha coluna de crítica, infelizmente impraticável, dada a crise do espaço com que lutam todas as empresas jornalísticas no dias atuais. Tenho pois que me limitar a uma panorâmica menos detida sobre o grande painel desdobrado por Richard Brooks na tela enorme, em que através de enérgicas e precisas pinceladas expõe o grande tema de Sinclair Lewis, numa interpretação excepcional de seus atores, incansavelmente trabalhados por esse diretor de grande fôlego e pulso tão firme. Mas, além dessa contribuição dramática de Burt Lancaster, Jean Simmons, Shirley Jones, Arthur Kennedy e de todos os coadjuvantes, há que se admirar a notável contribuição técnica da equipe reunida por Brooks, desde seu iluminador até o montador, este num trabalho preciso, quase matemático e de ritmo a medir-se pela própria dinâmica dramática dos diálogos. Eis uma película digna de ser vista muitas vezes, tal a sua riqueza, em cada setor de criação, impossível de apreciar-se numa única visão. A Esperança é Eterna de Marcos Marguliés, Brasil, 1954 28 agosto 1957 Essa peça de Marguliés teve uma carreira cheia de êxitos. Compareceu ao Festival de Punta del Este de 1955, ali quase conquistando o maior prêmio internacional do certame. Laureou-se com o “Saci” de 1955, a maior recompensa destinada ao cinema brasileiro, promovida pelo “O Estado de S. Paulo”; conquistou uma Palma no Festival de Berlim, na categoria de películas sobre arte. Tantas recompensas vieram apenas coroar os esforços de quem dedicou toda a sua atividade intelectual e profissional ao cinema, ao cinema brasileiro notadamente. Pois, “A Esperança é Eterna” passou com a melhor acolhida do público. E isso me permite agora alguns comentários em torno dessa peça e de seu caráter de “película sobre arte”. Se bem me lembro, é esse o terceiro documentário sobre arte que Marguliés realiza em São Paulo. Nos dois primeiros – “Os Tiranos”, baseado num quadro de Antoine Caron, e “O Descobrimento do Brasil”, segundo a iconografia antiga e a pintura histórica relativa a este país – não contava esse documentarista paciente com nenhum recurso técnico, que lhe facilitasse a realização cinematográfica nesse ramo tão áspero do cinema documentário contemporâneo. Já com “A Esperança é Eterna”, não. Não só pode usar na execução da película, na análise da obra de Segall, um equipamento próprio para a montagem de uma “fita sobre arte”, como até música expressamente composta para grifar as imagens pôde ser aplicada à sua fita. A esses elementos positivos se deve, em grande parte, a eliminação de todos os defeitos notados nos dois documentários anteriores. Além disso, Marguliés evoluiu muitíssimo entre a execução daquelas peças e a de “A Esperança é Eterna”. Sua presença nas aventuras do cinema brasileiro, vividas na “Maristela” ou na “Multifilmes”, seus trabalhos e estudos que jamais abandonou, a experiência que adquiriu durante seu estágio naqueles estúdios, lhe valeram, certamente, a segurança que a sua realização, agora re-exibida, está a mostrar em cada metro de película projetada. É essa firmeza que se nota logo ao apagar das luzes. Firmeza na concepção do argumento e na do roteiro. Firmeza no traçado da linha dramática da película. Firmeza na seleção das obras de Segall. Firmeza na sua enquadração e no transpor a gama cromática das peças fotografadas para a película do branco e preto. Firmeza, finalmente, no jogo dos planos, na sua duração e no seu rendimento na montagem. Não há hesitação nesse trabalho tão sutil, que é o de compor uma continuidade e de lhe insuflar aquele sopro vital interior que é o ritmo de uma obra cinematográfica. Sou talvez um tanto suspeito para comentar uma fita sobre arte. Nessas peças, reconheço um enorme valor didático, sem dúvida, mas escassa importância cinematográfica. Para mim, há sempre algo de artificial, de superficial nessa ânsia do cineasta de querer dinamizar o que, por natureza, é estático. A pintura, por exemplo, ou o desenho. Muitos, entretanto, asseveram que mesmo na pintura ou no desenho “há movimento”. E há, realmente, mas esse movimento é incompleto, há apenas uma fração de movimento. E é essa parcela que vai servir, mais tarde, ao sabor das circunstâncias, de ponto de partida para a obra de um cineasta, cuja maior ambição nada mais será, senão a de procurar completar o movimento, apenas traçado numa fração fixada na mente e na tela do pintor, ou no papel do desenhista. Quando, por exemplo, em “Moulin Rouge”, de John Huston, se pretendeu fazer a pintura e o desenho de Toulouse-Lautrec dançarem aquele ”can-can” nas telas de todo o mundo, houve de tudo ali: prodígios de habilidade, de paciência e de montagem, mas CINEMA só existiu em doses muito pequenas, porque não é possível dinamizar o que, por natureza, é estático. No caso próprio de “A Esperança é Eterna”, em circunstâncias idênticas, na seqüência em que se focaliza a obra de Segall, sofrendo já a influência do meio, tomando o samba e o sensualismo da terra tropical para o conteúdo de sua pintura, Marcos Marguliés teve a virtude e a coragem de não cair na tentação do virtuosismo, e não pretende fazer a obra de Segall dançar o samba e o batuque. Ficou apenas na sugestão do sensualismo, emergido através de cortes secos, de planos de curta duração – quase que se poderia afirmar em ritmo de samba....E tal seqüência ganhou muito em dramaticidade e até em movimento interior, o que é o principal. A “A Esperança é Eterna” seria cabível talvez uma restrição: quando as “falas” da pista sonora pretendem explicar as situações do argumento. Principalmente quando essas falas são ditas por vozes femininas. Aí reside, na pluralidade dos locutores e no excesso dos textos, o ponto mais fraco de “A Esperança é Eterna”. O que em parte se justifica por se tratar de obra didática, destinada à explicação da arte às camadas mais populares. Daí também a razão possível de aquele grande letreiro inicial ser também falado, quando deveria apenas destinar-se a ser lido. E diga-se finalmente que Marguliés teve dois grandes colaboradores: Bernardo Segall e George Tamarski, o primeiro autor da música e o último responsável pela fotografia. Não se poderia desejar partitura melhor, mais dramática e mais exata, posta ao serviço da imagem, pronta para sustentá-la no momento oportuno, para deixá-la em silêncio, quando também este se torna paradoxalmente uma expressão sonora. E a fotografia de Tamarski, em sua tarefa dificílima de mostrar no branco e preto os matizes de Segall, cumpriu serenamente sua missão. A Fortaleza Escondida (Kakushi-toride no san-akunin) de Akira Kurosawa, Japão, 1958 13 novembro 1959 “A Fortaleza Escondida”, de Akira Kurosawa, o grande realizador de “Rashomon” e de tantas outras películas do nunca assaz louvado cinema japonês. Uma decepção, entretanto, me aguardava. Eu não veria ali uma fita que a inteligência e a sensibilidade de Kurosawa costumam realizar, aquela sobriedade dramática, aquela construção cinematográfica austera, aquele “cinema” enfim de Akira Kurosawa que o incluiu no rol dos maiores cineastas contemporâneos. Em “A Fortaleza Escondida” não há um Kurosawa autêntico, capaz de transpor para o “seu” cinema um romance de Dostoievski, ou uma tragédia de Shakespeare, narrando essas histórias de outras épocas e de outras terras dentro da mais rígida tradição dramática japonesa; não há um Kurosawa trazendo para as telas brancas do século XX a saga eterna dos samurais, com toda a autenticidade das lendas desses guerreiros, mas um Kurosawa displicente, vacilante, valendo-se de um cinema sem inspiração, de um cinema de imitação (uma espécie de “western” japonês), a transcorrer em época indefinida, com guerreiros utilizando-se de armas de fogo, até uma “cow-girl”, vestida de “short”, a participar da aventura, da fuga por entre desfiladeiros e dos “rodeios”, no “festival do fogo”...Não, positivamente, não é esse o Akira Kurosawa que eu esperava admirar nessa fita, cujo título já era a esperança de um espetáculo digno dele e do cinema japonês. E nem algumas seqüências otimamente conduzidas, o “festival do fogo”, a revolta de prisioneiros nos subterrâneos de um castelo feudal, do duelo entre dois guerreiros, trariam à película o interesse que o nome de seu realizador de pronto despertara. Ao lado desses momentos, de excelente cinema sem dúvida, há o resto, seqüências arrastadas e episódios insossos, por vezes animados por uma dupla de atores cômicos, sem outro fim senão o de vulgarizar ainda mais essa peça de “pastiche”, cujas intenções não sei bem como classificar. Mas a esse cinema de imitação, prefiro aquele de nobre inspiração, o cinema dos “Sete Samurais”, o de “Trono Manchado de Sangue”, o cinema desse homem, só ele, no cinema japonês, capaz de sentir, com toda a força de sua cultura e de sua inteligência, a beleza e o significado de uma peça de Shakespeare, o terrível sentido de um romance de Gorki, ou de Dostoievski, a maravilhosa poesia das lendas dos samurais, a nobreza austera das tradições milenares do povo nipônico. Freud – Além da Alma (Freud) de John Huston, EUA, 1962 13 junho 1964 Sou grande admirador de John Huston e gosto da maioria de seus filmes. Huston no cinema norte-americano teve que abrir seu caminho a golpes de inteligência, até que os produtores reconhecessem nele o cineasta inquieto, o homem de cultura e aquele espírito criador legítimo, que o anima e o impele a realizar no cinema obra original e pesquisa real. Há ainda poucos dias pôde o espectador paulistano rever uma de suas obras melhores – “O Tesouro de Sierra Madre” – que o tempo conservou intacta em toda a sua essência cinematográfica mais pura. E há apenas poucas semanas passadas, tivemos em São Paulo aquele excelente “A Lista de Adrian Messenger”, obra de sátira e humor, de grande penetração crítica e admirável forma de revestimento estilístico. Pois, se não conhecesse tão bem John Huston, se não soubesse que seu espírito continua irrequieto, sempre inquiridor e insatisfeito, eu diria que este “Freud – Além da Alma”, é uma obra de decadência. Há no filme algo que não sei bem o que seja, que me constrange, não me satisfaz e não me convence, como se eu próprio fizesse parte daquele grupo de médicos que no filme, embora admirasse Freud, não se satisfazia, nem se convencia com os primeiros resultados obtidos por esse admirável cientista, na sua incansável e perambulante pesquisa nos labirintos e confins da alma humana. Já muitas personalidades ilustres da Sociedade Paulista de Psicoterapia e Psicologia de Grupo se manifestaram a respeito desse filme, todas elas pesando os muitos méritos na obra de Huston, mas reconhecendo no filme “algo incompleto, nem sempre rigorosamente fiel aos fatos históricos”, como se manifestou o prof. Darci Mendonça Uchôa, ou como afirma o prof. Henrique Schloman: “o filme não pôde evitar certas deformações e incorreções históricas, ainda que os aspectos da vida de Freud sejam bem apanhados e tenham intensidade dramática, ao mostrar esse grande gênio lutando, pela verdade, isolado do mundo. Mas, quando a fita tenta divulgar e explicar algumas concepções da psicanálise (regressão, transferência e sexualidade infantil), não consegue convencer”. De fato, talvez estejam esses argumentos, que não convencem, e esse algo que não satisfaz, nas seqüências em que Huston tenta movimentar o estranho e complexo mecanismo interior dos sonhos, em função de uma realidade, ou de um estímulo exterior, a meu ver a parte mais fraca do filme, quando, em verdade, deveria constituir-se nas seqüências mais importantes e que melhor poderiam explicar as teorias primeiras de Freud. Isso quer dizer que Huston esbanjou exatamente aquele fabuloso material onírico, de símbolos, alegorias, sugestões e alucinações de toda sorte, que leva o cinema, quando bem inspirado, a níveis dramáticos, estéticos e plásticos que nenhuma outra arte consegue atingir. Glória Feita de Sangue (Paths of Glory) de Stanley Kubrick, EUA, 1957 17 outubro 1958 Somente 23 anos após haver sido adaptada para o teatro, é que os produtores do cinema se animaram a trazer para a tela a obra de Humphrey Cobb, “Paths of Glory”, que na versão cinematográfica, tomou o nome de “Glória Feita de Sangue”. Por ser talvez matéria capaz de provocar reações perigosas e apaixonadas polêmicas, tal fato explica certamente a hesitação dos produtores em se apoderar do livro de Humphrey Cobb, para destiná-lo à exibição cinematográfica internacional. Foi preciso que alguns independentes se munissem de coragem, os componentes da “Bryna” (incluídos, com essa fita, ao lado dos “revoltados de Hollywood”), James Harris, Stanley Kubrick e Kirk Douglas, para que hoje contasse o cinema com uma de suas obras mais importantes e que mais cruamente aborda um tema perigosíssimo, sempre visto com a maldição do mau olhado dos patrioteiros e daqueles para quem uma vida humana pouco vale em determinadas circunstâncias, provocadas pela alucinação coletiva de uma guerra. E embora Humphrey Cobb se valesse de documentação autêntica, de fatos comprovadamente válidos e indiscutíveis, a fita, que de sua obra se extraiu, levantou imediatamente uma onda de indignação em determinados países, França e Bélgica principalmente, no território daquela nação havendo sido proibida “Glória Feita de Sangue”, no da Bélgica vaiada com grandes tumultos e em muitas salas, e acerbamente comentada por vários críticos de Bruxelas e de outros centros europeus. Entretanto, Humphrey Cobb aponta lealmente as fontes de onde tirou o material de seu livro: “Les Crimes des Conseils de Guerre”, de R. G. Reau, “Les Fusillés pour exemple”, de J. Galtier Boissière, “Les Dessous de la guerre revelés par les Comités Secrets” e “Images Secrètes de la Guerre”, de Paul Allard. Eu mesmo me lembro de haver lido, há muito tempo, numa revista francesa de combate e polêmica, “Le Crapuillot”, um tremendo libelo de J. Galtier Boissière contra certos atos arbitrários praticados pelos Conselhos de Guerra, durante a carnificina de 1914-1918, fartamente documentado por fatos inegáveis e provas indiscutíveis. Evidentemente, a equipe da “Bryna”, James Harris e Stanley Kubrick particularmente, ao realizar “Paths of Glory”, não limitou a denúncia dos odiosos acontecimentos ali narrados ao âmbito do exército francês, ou à pessoa de um ou dois militares inescrupulosos, ávidos de glória a qualquer preço, mas generalizou o seu libelo e as suas acusações, fazendo-as mesmo alcançarem o próprio exército norte-americano, à semelhança do que fez, mais objetivamente, Robert Aldrich, em sua película “Attack” (“Morte sem Glória”), o que lhe valeu não apenas o mau olhado do Pentágono, senão também a oposição de muitos circuitos exibidores norte-americanos, temerosos das reações contrárias que o público de lá poderia manifestar por ocasião do lançamento de “Attack”. Assim, é visível a intenção dos realizadores de “Paths of Glory”em estender o seu libelo a outros exércitos, principalmente quando, na seqüência do julgamento dos três soldados, acusados de covardia mediante um sorteio odioso, se adota, em pleno conselho de guerra francês, não o rito consagrado pelas leis do processo penal da França, mas os usos e as praxes do sistema criminal norte-americano: o promotor e o defensor andando de um lado para outro, à frente dos jurados, tal como faria um “district attorney” (promotor público) em qualquer tribunal norte-americano... Em “Glória Feita de Sangue”, Stanley Kubrick tiraria o maior partido de todos os setores da criação cinematográfica. Não fosse ele próprio um grande criador, um homem que conhece profundamente o Cinema, a direção, a montagem, a iluminação, havendo feito de tudo isso numa de suas primeiras fitas, aqui passada obscuramente sob o título de “A Morte Passou por Perto”. Em “Paths of Glory” cuidou com inteligência desses elementos, cuja harmonia e concatenação lógica e visual (ainda quando desprezam a própria cronologia da ação dramática e temática), fazem do cinema o meio de expressão mais representativo da idade contemporânea. Que se atente, em tal sentido, para a cenografia e a iluminação de “Paths of Glory”, notadamente para as seqüências vividas no castelo onde o comando de um setor militar fizera sede de seu Q.G. Todos os cenários dessas seqüências, alguns decorados com quadros e tapeçarias da Renascença, são cruamente iluminados, de forma a se opor às personagens, que em tais ambientes se movimentam, vistos em recortes de sombra violenta, ou delineados pela luz contrastada, provinda através das altas janelas. O efeito obtido é de grande força expressionista, de patética beleza, tudo a grifar-se pelo eco retumbante das falas perdidas nas salas imensas, onde se consumavam inconfessáveis infâmias dos homens... Uma fita excepcional, digna de figurar ao lado dos grandes momentos do cinema, das clássicas películas de guerra, de “Sem Novidade no Front”, de Lewis Millestone, até “Os Deuses Vencidos”, de Edward Dmyctrick, de “Um Passeio ao Sol”, também de Lewis Millestone, até “Morte sem Glória”, de Robert Aldrich. A Grande Feira de Roberto Pires, Brasil, 1961 08 fevereiro 1963 O que menos contou em “A Grande Feira” foi o aspecto puramente documentário da Água dos Meninos, as entranhas da velha capital baiana, cuja topografia, na parte baixa de Salvador, confere essa feição visceral invocada por uma das personagens, a certa altura dos diálogos. Em vez de remexer esse caldo fertilíssimo de cultura, onde o homem e a paisagem, o drama e o cenário, se integram intimamente, preferiu Roberto Pires entrosar suas personagens numa intriga que abarcasse a cidade toda, de alto a baixo, fazendo-o de modo superficial, contudo. Sua crônica esbarra apenas de leve no ambiente do escritório de um advogado, nas cortinas do “boudoir” e do quarto de dormir de “Eli” (péssima e vulgaríssima cenografia, em que aparece, às vezes, um mordomo em mangas de camisa, desajeitado e desalinhado), num automóvel de luxo antigo, numa varanda de casa de rico, onde esse automóvel vem estacionar, já noite, depois das exaltações eróticas de “Eli” e do “Sueco” numa lancha sem direção, ali à entrada de Salvador. Nisso se resume a classe abastada do “melting pot” baiano. Quanto à Água dos Meninos, o cabaré de Zazá, um refúgio de mendigos, uma tenda de jogo de bicho com algumas mesas toscas para servir-se uma cerveja mais ou menos gelada aos usuários e alguns aspectos dos feirantes nesse mercado sujo e belo da baixada de Salvador, foram o bastante, segundo Roberto Pires, para o desenvolvimento de uma história rala que o Cuíca de Santo Amaro berra ao pé do Elevador Lacerda. E o resíduo social de tudo isso destila-se de alguns metros de película em que se impressionaram as cenas rápidas do comício de um líder sindical e em que se gravou a dialogação desajeitada entre as várias personagens, ao correr de todo o filme. Personagens um tanto constrangidas (com exceção de Luisa Maranhão, “Maria”, de Helena Ignês, “Eli”, e de Geraldo Del Rey, “Ronny”, mais seguros), sob a luz dos refletores, e sentindo diante de si o olho implacável da câmara de Valdemar Lima. De fato, só Luisa Maranhão, em quase todo o seu desempenho; Helena Ignês e Geraldo Del Rey em muitos dos lances que interpretam se mostram mais à vontade sob a direção de Roberto Pires. Os demais, vacilantes e redundantes, principalmente Antonio Luís Sampaio (Chico Diabo), que mais representa com as mãos em gestos desordenados, do que com a sensibilidade de que é visivelmente dotado. É que faltou a Roberto Pires a maturidade do cinema que só a experiência e aprendizado mais profundo podem conferir, na contenção do ator e no rendimento dramático que cada qual pode dar. Quanto à fotografia de Hélio Silva e à cenografia de Teixeira, uma equivale à outra em vulgaridade e falta de função no drama. O primeiro pouco construiu com suas luzes, nos interiores do filme, e de nada se valeu do riquíssimo manancial plástico da Água dos Meninos. Que me perdoem todos a frieza de meu comentário. Prefiro magoá-los a iludi-los com o falso incentivo das exaltações pouco construtivas. Louvo-lhes as intenções e admiro o entusiasmo da equipe inteira, de Rex Schindler e Braga Neto, a Walter da Silveira e Riachão, dos produtores aos modestos atores coadjuvantes. E tenho certeza de que “A Grande Feira”, com todos os seus defeitos, permanecerá como um ponto de partida, nunca como um símbolo de malogro, na história contemporânea do cinema brasileiro. O Grande Golpe (The Killing) de Stanley Kubrick, EUA, 1956 10 maio 1957 Duas fitas de alto valor cinematográfico, ambas distribuídas pela “United Artists”, passaram praticamente desapercebidas. A primeira é “A Morte num Beijo” (Kiss me Deadly), de Robert Aldrich. A segunda é essa “O Grande Golpe”, de Stanley Kubrick. A respeito de “ A Morte num Beijo” fora eu alertado por meu amigo Almeida Salles, velho companheiro de muitas campanhas em prol da cultura cinematográfica do Brasil. Nada sabia a respeito de Stanley Kubrick antes dessa sua fita que acabo de ver. E segundo informes que estou lendo agora nas “Indicações da Semana” de um matutino paulistano, Stanley Kubrick é um dos diretores mais jovens de Hollywood (29 anos), que as duas primeiras fitas de sua carreira – “Fear and Desire” e “Violated” – conferiram-lhe grande renome nos meios intelectuais, graças a seu estilo de cineasta de vanguarda. Esse “O Grande Golpe” foi realmente para mim uma surpresa. Sem qualquer preparação, eis-me abruptamente ante uma película narrada com um rigor quase matemático (um locutor, em certos trechos, pontua a história com dados cronométricos), ante aquele estilo exatamente exigido pelo gênero policial no cinema – nervoso, criando expectativa a cada momento, incluindo o espectador no jogo e no problema das personagens, aproveitando-se, com um senso preciso de oportunidade dos movimentos da câmara, da sua maleabilidade, dos recursos da montagem, fazendo mesmo chegar sua precisão narrativa à dupla descrição de uma seqüência, para melhor encaixá-la na continuidade temática. Nesse sentido, é típica (e muitíssimo original) a seqüência em que “Maurice” provoca uma rixa no bar do hipódromo: da primeira vez, a seqüência se narra por inteiro; da segunda, repetem-se seus lances principais para ligá-los convenientemente ao comportamento anterior de certa personagem (“Johnny”), vivido meia hora antes. Só depois dessa repetição preliminar, inesperada, mas muito lógica, é que se inicia nova seqüência, em prosseguimento da anterior, com a entrada de “Johnny” no departamento de contabilidade do hipódromo e com o assalto a seus cofres. Só esse pequeno trecho de antologia e de força narrativa puramente cinematográfica, demonstra plenamente a capacidade e a fibra nervosa do estilo vivíssimo de Stanley Kubrick. Há mais, no entanto. O massacre compacto de quase todas as personagens, no apartamento de “Randy”, com a câmara a passar por cima dos cadáveres, numa longa tomada subjetiva e sem cortes; o modo de dispor esses corpos na enquadração da cena, naquelas atitudes grotescas que se fixam no último gesto, de derradeiro estertor, ao esvair-se a vida; a morte de “Sherry” e de “George”, o silêncio que se segue a esse momento de violência, apenas perturbado pela voz esganiçada de um papagaio; a expectativa e as reações fisionômicas de toda a quadrilha, a seguir pelo rádio a descrição do assalto à caixa do hipódromo, momentos antes de serem eles próprios assaltados também; as cenas tomadas em plena corrida dos cavalos e muitos outros trechos dessa fita singular, colocam sobre os ombros de Stanley Kubrick as esperanças daqueles que almejam para o cinema dos Estados Unidos um quadro mais real e mais humano, a ser colocado bem distante do falso otimismo, da riqueza fictícia, com que se distorce hoje a realidade norte-americana, por artes e gramática dos seus fazedores de fitas. Creio que, sem contraste violento, pode pôr-se Stanley Kubrick ao lado dos Richard Brooks, dos Roberto Aldrich, dos Jack Webb e de outros que hoje melhor representam a ala moça e resoluta nos quadros de Hollywood. O Homem do Braço de Ouro (The Man with the Golden Arm) de Otto Preminger, EUA, 1955 14 agosto 1957 Há muito tempo que Otto Preminger se tornou o produtor de suas próprias fitas, já quando, com “Laura”, iniciava sua carreira cinematográfica, considerando ele essa película como a primeira de sua cinegrafia, conforme declarações suas a uma revista francesa. E de todo seu currículo, só em algumas fitas deixou de ser o produtor delas, neste posto figurando Ernst Lubitsch, William Perlberg, Howard Hughes e poucos mais. Isso quer dizer que a acumulação desses dois cargos na hierarquia cinematográfica, defere-lhe inteira liberdade de execução e criação, faculdade nem todos a possuí-la, como é notório em Hollywood. Isso explica também a razão por que suas fitas têm aquela forma trabalhada, aquela direção de atores levada às últimas conseqüências, sua câmara e suas personagens sempre em movimento constante. “O Homem do Braço de Ouro” é um exemplo dessa atividade artesanal que Preminger incute em suas peças. Há nessa película um extremo capricho, posto em todos os setores de criação, desde a técnica de iluminação de seus cenários até no da música (por sinal que trabalhada um tanto em excesso, segundo me pareceu). A câmara raramente se imobiliza, na captação de um plano; percorre os ambientes, passa por entre os atores e os objetos componentes do quadro, sobe e desce escadas, perambula pela rua. Quase ao final da fita, em sua última seqüência, quando uma das personagens se atira de um quarto andar, a câmara quase que cai também, ao lado do corpo largado no ar. Mas, se não faz isso propriamente, não perde, porém, a oportunidade de acompanhar um dos atores, que assistiu àquele ato de desespero, na sua louca descida por uma escada de incêndio, de quatro em quatro degraus, até o rés-do-chão, quando a tomada termina, sem corte, num plano próximo das duas personagens, uma estendida na sarjeta, a outra de joelhos a seu lado. Essa técnica dinâmica se desenvolve sobretudo do meio da película para o fim, como se Otto Preminger quisesse compensar o desenvolver arrastado das primeiras seqüências, ritmo lento, funcional evidentemente, ao expor todos os problemas psicopatológicos do tema e de suas personagens. Com essa forma, apurada por um paciente trabalho, Otto Preminger é tido hoje, em Hollywood, por seus técnicos, como um dos diretores mais difíceis de contentar, sempre a optar pelas soluções mais complexas, num movimento ou num ângulo de câmara, na iluminação de um cenário, no gesto ou na expressão de um intérprete, por mais secundário que seja na estrutura narrativa. Ator excelente ele próprio, por isso costumam dizer, nos estúdios, que Preminger é sempre uma figura avulsa no elenco de suas películas. E “O Homem do Braço de Ouro” nesse setor, ainda é um exemplo eloqüente. Orientado, de certo, por algum conselheiro científico consciencioso, não descuida de nenhum pormenor no decorrer desse tema, perigoso entre todos. E muitas vezes teve de contornar certas situações do enredo, presas por um fio entre o melodrama e o ridículo, de um lado, entre o grotesco e o dramalhão de outro. De todas as situações, entretanto, saiu-se com a maior sobriedade. Mesmo naquelas em que descreve os primeiros sintomas do entorpecente agindo nas criaturas, aquela sensação de força e bem-estar, a loquacidade do início, o desaparecimento a seguir dessa euforia, o enfraquecimento das funções intelectuais, as grandes crises, a fadiga, a exaustão, as insônias, as coceiras e o formigamento insuportável e por fim o emagrecimento do paciente, seus olhos encovados, suas pupilas dilatadas, queda da pressão sanguínea, tremores e calafrios indizíveis. Sua peça, de ambiente de vício, jogo e entorpecentes, sufocante pela sua dramaticidade e seu realismo, é também uma galeria de tipos. “Frankie”, “Zosh”, “Sparrow”, “Vi”, “Louie” e aquele repulsivo promotor de batotas, de nome arrevesado, com seu charuto sempre a mastigar-se num canto da boca, a acender fósforos nos dentes, são de fato alguns dos participantes daquela ampla tragédia, que La Fontaine dizia ter no palco o universo. Algumas seqüências em que estas personagens evoluem, são dignas de registro: o jogo a varar a madrugada, a crise aguda de um toxicômano na cadeia, o acesso de fúria de “Frankie” no apartamento de “Louie”, a morte deste na escada, o suicídio de “Zosh” quando vê descoberta sua odiosa simulação, etc. E, evidentemente, as concessões habituais aos códigos da produção, põem as suas restrições a essa peça, apesar disso digna de ser vista, digna, sobretudo, por ser uma realização de Otto Preminger, um grande artesão e um excelente contador de histórias, sem dúvida. O Homem Que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance) de John Ford, EUA, 1962 11 maio 1962 John Ford, embora haja manejado argumentos e temas os mais disparatados ao longo de sua profícua carreira no cinema, sempre demonstrou uma particular predileção pelas histórias do Oeste norte-americano, pelas aventuras dos pioneiros, pelos costumes agrestes do Wyoming, ou pelos “casos” vividos nas áridas planícies do Texas. Sua obra clássica nesse gênero, – “No Tempo das Diligências” ainda hoje é lembrada, toda vez que se fala em “western” e muitos dos realizadores que se aventuraram pelos caminhos do oeste não se constrangeram em tomar por modelo o “Stagecoach” do velho Ford. Sou do número de seus antigos e persistentes admiradores. Exulto-me quando reparo com um John Ford legítimo, a demonstrar todo o vigor de sua inteligência e de sua imaginação (“O Delator”, “No Tempo das Diligências”, “Depois do Vendaval” etc); entristeço-me instintivamente quando em obras menores desconheço John Ford, ao manifestar cansaço de espírito e embotamento de sua sensibilidade – e “Um Crime por Dia” é exatamente um exemplo disso, com o seu humor por vezes espesso, bem distante do sal da deliciosa ironia com que o velho mestre salpicara as seqüências de algumas de suas fitas, notadamente a sua “Depois do Vendaval”, uma tranqüila reminiscência da paisagem e dos costumes de sua Irlanda natal. Nesta “O Homem que Matou o Facínora” reencontro o velho cineasta dos seus melhores tempos. Reencontro-o em companhia de seus atores preferidos e é comovente revê-los todos – John Wayne, Andy Devine, John Carradine (faltaram ao chamado Thomas Mitchell e Ward Bond, já levados pela morte, ou Maureen O’Hara e Claire Trevor, não sei por que ausentes desse elenco sentimental, a tornar o tempo de projeção de “O Homem que Matou o Facínora” num “tempo” de saudade típico das emoções de John Ford...). Aí está, realmente, o velho Ford em plena forma, em pleno hausto de sua imaginação criadora, capaz de transformar o gesto casual de um ator numa atitude de boa-fé, ou num símbolo premonitório de conflitos próximos. John Ford, mais talvez do que qualquer outro cineasta sabe dosar seus efeitos dramáticos ou cômicos, sabe como dar-lhes seqüência ou transforma-los em conseqüências. E duas cenas rápidas desse delicioso “O Homem que Matou Liberty Valence” são uma comprovante desse controle psicológico tão característico do estilo do criador de “No Tempo das Diligências” já nessa fita tão notoriamente engastado: a cena da aula de alfabetização, em que o pequeno mexicano levanta o braço e dois dedos, no seu pedido de “ir lá fora” e o trocadilho dramático proferido por “Peabody”, ao ser torturado por “Liberty Valence”, em que o nome desse facínora se presta ao jogo de palavras e de frases – “Liberdade”, “tomar-se de liberdade” e “liberdade de imprensa”... Nestas duas cenas, tiradas a esmo, ao longo da narrativa dramática de John Ford, está o seu espírito, terno e jovem, sarcástico e irônico, tudo dependendo das circunstâncias. Sim, reencontro o velho Ford a usufruir de toda a sua juventude espiritual. É um prazer revê-lo assim rejuvenescido, nessa fita que é uma aragem outonal por sobre o deserto espúrio desses jovens do “cinema novo”, parece que já nascidos cansados, exauridos e senis, sem haver participado de qualquer dos momentos generosos que a vida costuma oferecer aos jovens. Lawrence da Arábia (Lawrence of Arábia) de David Lean, Inglaterra, 1962 07 novembro 1963 Já fui daqueles que encaravam o espetáculo cinematográfico como uma praga daninha no campo da criação artística, por isso era preciso combatê-lo por todos os meios, para alcançar tal fim qualquer recurso servindo. Não penso mais assim porque hoje tenho os pés presos à realidade do cinema, os anos vividos, dia a dia, em contato com suas gentes e coisas proporcionaram-me uma visão direta e prática sobre a existência do cinema, seus múltiplos e complexos aspectos foram para mim dados de experiências a trazer um conhecimento objetivo do fenômeno que mais implicações sociais, sociológicas e psicológicas provocam na vida do homem contemporâneo. Porque o cinema hoje, como ontem, como arte e expressão humana de seu tempo, precisa do espetáculo, condiciona-se ao espetáculo, é, antes do mais, um espetáculo. Que seria do cinema sem a existência da indústria e do comércio, a usina e o distribuidor do espetáculo? Seria, evidentemente, uma arte a depender, por sua complexidade e por seu custo altíssimo, do simples mecenato e os mecenas, com motivos de sobra, se tornam, nesta nossa época turbulenta, cada vez mais raros... Hoje, pois, encaro o espetáculo cinematográfico como uma necessidade e, quando bem realizado, sou dos primeiros a aplaudir e a usufruí-lo. Não me envergonho absolutamente quando confesso de público a fruição do prazer proporcionado por um filme como “Spartacus”, pelas aventuras do cinerama, ou pela beleza épica deste agora “Lawrence da Arábia”, um magnífico espetáculo, dos mais perfeitos em forma e conteúdo a que já me foi dado assistir. Atinge-se neste filme de David Lean à perfeição da cor, à pureza, fidelidade e expressão do som, à beleza de composição fotográfica no amplo mural da tela panorâmica, tudo a deferir ao espetáculo do cinema contemporâneo uma dignidade ainda não suspeitada, dimensões planas, sem dúvida, mas capazes de provocar o “relevo” (sonoro e pictórico), essa pedra filosofal que os alquimistas da técnica e da indústria do cinema tanto buscam, através de anos de perseverança nos laboratórios de pesquisas deste nosso admirável mundo novo... Não conheço o livro “Os Sete Pilares da Sabedoria”, em que se baseou David Lean para estruturar seu filme. Pouco sei a respeito da estranha figura do coronel Lawrence e de suas andanças no deserto e por entre os homens da Arábia. Em torno desse homem misterioso constituiu-se uma lenda e erigiu-se um mito. Há até quem ponha em dúvida sua própria existência. De qualquer forma, David Lean soube como figurar, soube como recortar o vulto e engastar o espírito de Lawrence no deserto escaldante de suas atividades, por entre a organização tribal dos árabes, soube como contar, na imagem do cinema, a vida, ou melhor, a fábula desse homem fascinante. Há uma indizível beleza, uma épica narrativa na primeira metade do filme. E se depois decai um pouco o ritmo e o interesse dessa narração, isso não impede que a obra conserve o seu atrativo inicial, de forma tanto quanto de interpretação. Eis, pois, um espetáculo. E que esplendor de espetáculo! Longe dos Olhos (Perfect Strangers – Inglaterra, Vacation from Marriage – EUA) de Alexander Korda, Inglaterra, 1945 13 outubro 1946 É preliminarmente uma fita cem por cento britânica: no tema, na ação, na direção, na interpretação, a caracterizar-se, principalmente, por uma sobriedade raramente sentida no cinema em geral, mas muito própria do cinema britânico. Há essa justa medida em cada momento que surge na magnífica realização de Alexander Korda. Até mesmo na descrição daqueles terríveis momentos, dos mais graves da história da Inglaterra – setembro de 1940 – tão próprios para o cinema cometer os seus habituais exageros, desde a ação dos que defendiam os céus de Londres até os que resguardavam seu solo. Contudo, o heroísmo daqueles idos de 1940 é apresentado na fita de Alexander Korda de modo simples e comovente, em apenas algumas dezenas de metros de película, em meia dúzia de quadros, feérica e intermitentemente iluminados pelo clarão sinistro das bombas nazistas. Dentro desse ambiente de guerra – onde se sente a guerra e quase se não a vê – desenvolve-se a história imaginada por Clemence Dane e Anthony Pelissier, um tema humano, real, caprichosamente recortado no tecido grosso da vida diária, a história de dois entes desajustados – iguais a tantos outros – que se uniram, não se sabe por que, e viveram, não se sabe como, uma existência rotineira, na pasmaceira aborrecível de um bairro populoso de Londres. Foi preciso uma guerra, uma brusca separação daquelas duas criaturas inseparáveis e três anos de afastamento para que elas se achassem a si próprias, para que descobrissem um outro “eu” latente em sua personalidade, a se revelar vigorosamente nas agruras dos combates navais e nos horrores dos bombardeios aéreos. E o reencontro desses dois temperamentos, primeiramente nas trevas de Londres e, depois, sob a luz crua do “bar da esquina”, permitiu a Alexander Korda, o grande cineasta húngaro, agora inglês “par droit de conquête”, a realização de cenas, prenhes de “humour” e de observação, dos mais finos que o cinema tem proporcionado. E sob essa diretriz bem traçada, há um perfeito equilíbrio na interpretação, Robert Donat e Deborah Kerr, Glynis Johns e Ann Todd. A Marca da Maldade (Touch of Evil) de Orson Welles, EUA, 1957 13 fevereiro 1959 Quando, há pouco tempo, foi possível rever-se, na Cinemateca Brasileira, a primeira fita de Orson Welles, aquela sua admirável “Cidadão Kane”, com certo ceticismo eu entraria na sala do Museu de Arte, no início da projeção da película lendária e clássica. Temia uma decepção, ao assistir de novo à peça que admirara extasiado e cuja lembrança eu receava ver destruída sob a perspectiva implacável do tempo decorrido. Mas, ao contrário, o tempo ao invés de aniquilar “Cidadão Kane” conferira-lhe outras dimensões, conservara intacta toda a sua força, sem abalar e sequer arranhar o arcabouço de sua solidíssima estrutura. Com essa “A Marca da Maldade” aconteceria o mesmo, idêntico ceticismo se faria de novo presente, agora já em conseqüência de uma impressão contrária: o tempo não viria denunciar sinais evidentes e definitivos da decadência do criador de “Cidadão Kane”, depois de haver ele tentado, em muitos anos e por todos os meios, consolidar sua experiência inicial, em películas várias, algumas excepcionais, como “The Magnificent Ambersons” e “The Lady from Shanghai”, outras de resultados discutíveis, como “The Stranger” e “Confidential Report”? “A Marca da Maldade” surgiria assim com uma peça, que se espera com ansiedade e inquietação, entre a expectativa alternada e paradoxal da contemplação próxima de uma obra-prima, ou a visão irremediável de um desastre completo. Acontece ainda que Orson Welles, ele próprio, renegou em muitos pontos a própria obra, segundo ele remanejada, sem a sua presença e aprovação nas salas de corte e de montagem, cuja entrada lhe fora interditada depois de finda a tomada de cena de “A Marca da Maldade”. Era, pois sob expectativa contraditória que eu iria assistir a “Touch of Evil”. Que dizer agora, depois do estranho ainda um Orson Welles a ostentar, a desperdiçar até o seu talento enorme, a sua inteligência vivíssima, o seu poder criador fecundíssimo nesse “policial”, que em outras mãos seria uma peça sem importância, talvez medíocre, mas que, nas suas, atinge o mais alto nível da criação pura. Ao realizá-la, fá-lo-ia como um pródigo, gastando desabridamente um patrimônio espiritual, de certo a lhe parecer inesgotável, sem poupança de suas reservas físicas e mentais. Em “Touch of Evil” está o Orson Welles de “Cidadão Kane” e de “Soberba”, as duas fitas de sua mocidade, de posse completa de seu espírito inovador incrível, em plena junção de seus métodos narrativos típicos, a ordem lógica a prescindir da ordem cronológica; a fluência livre dos acontecimentos, embora alterando a continuidade temática, não prejudicando a sua compreensão; a exposição prévia dos fatos posteriores auxiliando a explicação dos fatos anteriores, os cortes bruscos da ação de uma seqüência a fazer suceder a ação de outra seqüência, embora sem ligação aparente, provocando espetáculo proporcionado por essa película admirável? Pois aí está a perspicácia do espectador, espicaçando constantemente sua atenção, estimulando-a incessantemente e de modo até inconsciente, provocando esse espectador sob contínua pressão, fazendo-o participar da intriga cinematográfica, tornando um paciente ativo aquele que, em geral, é apenas um agente passivo da narração fílmica. Por isso, ao apagar-se a última imagem de “A Marca da Maldade”, tal como em qualquer outra de suas grandes realizações, “Soberba”, “Cidadão Kane”, ou “Macbeth”, o espectador, sentado ainda em sua poltrona, é um ser extenuado, mas ainda com forças suficientes para discutir e muitas vezes tentar compreender o espetáculo que, sob sombras e luzes, sem profundidade física, acaba de projetar-se à sua frente. O espetáculo desse cinema personalíssimo continua realmente depois de acabado. E essa continuidade dramática, impossível de analisar-se sem a inteligência e o raciocínio é que torna grande e clássica um “Cidadão Kane”, feita sob aclamações e fama, ou uma “A marca da Maldade”, realizada na provação e amargura. De 1940, ano de “Cidadão Kane”, a 1957, época de “A Marca da Maldade”, dezessete anos se passaram, dezessete anos envelheceram prematuramente um grande criador, um grande pensador do Cinema. Orson Welles hoje, adiposo e encharcado, não se distingue mais do jovem lépido dos tempos em que levava o pânico às ruas com a simples audição de um espetáculo de rádio, a simular a invasão da Terra por hipotéticos seres de outro planeta. Mas, embora sob o físico da decadência, seu espírito conserva a agilidade dos verdes dias, encorpado, agora, pela maturidade advinda por muitos anos de provação. “Cidadão Kane” torná-lo-ia um homem sem pátria, mas sagrá-lo-ia cidadão do mundo, do estranho e insondável mundo da Inteligência e da Criação. Maré da Vida (Ruten) de Tatsuo Ohsone, Japão, 1957 04 dezembro 1959 Realizado por Tatsuo Ohsone, um dos mais versáteis diretores do cinema japonês, ora na empresa Shochiku, onde maneja à vontade e com a mesma inteligência o tema cinematográfico, da comédia dramática, ao “policial” puro e simples. Esta sua fita de agora prova, uma vez mais, a sua capacidade. Por desconhecer a primeira versão de “Maré da Vida”, não posso agora estabelecer um paralelo entre a fita de hoje e aquela realizada em 1938. Valho-me apenas das impressões, profundas e enternecedoras deixadas pela exibição atual e provocadas pela delicadeza da realização de Tatsuo Ohsone no tratamento cinematográfico desta sua obra. Aliás, é sempre arriscado à critica ocidental julgar uma película oriental pelos padrões costumeiros com que o faz em relação ao cinema do lado de cá... O ambiente daqui e de lá, os costumes, a mentalidade, quase diria a “consciência coletiva” de uns e outros povos de ambos os lados do universo, exigem critérios diversos no julgamento e na compreensão de uma obra cinematográfica, no tratamento a que foi submetida, através da capacidade e da sensibilidade de cada cineasta. No caso de “Maré da Vida”, tão intimamente integrado aos costumes mais tradicionais do povo nipônico, só a sensibilidade pode valer quando aqui se assiste a essa fita. Isso é o bastante para caracterizá-la como uma autêntica obra de arte, que, em geral, só também com a sensibilidade pode ser contemplada. Gosta-se ou não se gosta de uma pintura, de um desenho, de uma escultura, eis tudo. Não é preciso conhecer as “escolas” ou as “tendências” a que pode estar filiado o artista, nem sequer é preciso vislumbrar em sua obra as suas “intenções”, ou o “seu” tema. Gosta-se, ou não se gosta e acabou-se. A fita do cine Nippon também está incluída na hipótese. Gosta-se dela, ou não. Excluem-se a compreensão e o conhecimento dos usos tradicionais, do significado dos bailados simbólicos, da música e do canto expressionistas que os pontuam, das leis milenárias, escritas ou costumeiras, que regem os homens de lá, em comunidade, ou simplesmente em seus lares. Basta que o espectador de “Maré da Vida” saiba sentir toda a beleza material e moral de que está imbuída essa fita. Basta sentir o alcance que para “Shingiro” e “Oaki” tinham, em suas vidas, a sua música e sua dança. Basta que se saiba fruir todo o repousante matiz de uma fotografia, parece que “pintada” em aquarela. Basta que se perceba, com o cérebro e os sentimentos, toda a dignificante beleza do Humano de que está porejada essa fita japonesa. O resto não importa. Porque, só com isso, caracteriza-se a peça, como uma obra de “sensibilidade” universal. E isso é o suficiente. Morangos Silvestres (Smultronstället) de Ingmar Bergman, Suécia, 1957 17 outubro 1962 Parte I Finalmente, aí estamos ante esta mui esperada “Morangos Silvestres”, que em São Paulo ninguém queria exibir, só a encontrar guarida na sala confortável do Marco Pólo, cerca de cinco anos após sua realização! Bem haja a esses exibidores de coragem e bom gosto, a quem vai ficar devendo o público lúcido de Ingmar Bergman. Trata-se, realmente, de uma obra singularíssima do cinema moderno, realizada com aqueles requintes de observação psicológica, de experiências vividas, talvez até – quem sabe lá? – feita com reminiscências biográficas desse autêntico autor do cinema da Suécia. Em verdade, toda obra de Ingmar Bergman, a surgir com uma pontualíssima regularidade, uma impressionante e versátil evolução, constitui uma surpresa a contribuir para tornar mais denso o mistério de sua mecânica criadora. Muitos pensam conhecer em profundidade o âmago da dialética bergmaniana e a sistemática de sua exposição, após a visualização de algumas ou de muitas de suas películas. Há mesmo imitadores seus, uns poucos em toda parte, na França, na Itália, tanto quanto na Argentina e no Brasil (não me admirarei se aqui, no chamado Cinema Novo, aparecer um dia destes algum “Amoras do Mato” ou, melhor ainda, de acordo com a sistemática de Bergman, “Pitangas de Verão”). Mas o certo é que cada película sua em estréia constitui-se numa questão aberta, numa interrogação interior, a que só ele e mais ninguém possa responder. Não lhe interessa, contudo, desnudar sua verdade, cada qual que conserve a própria, segundo a tese pirandeliana. Para uns, Bergman é um criador amargo e angustiado, só ele é capaz de realizar “Noite de Circo”, num exemplo típico. Para mim, no entanto, só há alegria e otimismo nesse homem que tanto ama o verão, o curtíssimo verão de seus horizontes domésticos, que cultua o sol, o sol nada quente, pouco mais do que tépido, dos céus da Escandinávia. E poderá haver amarguras e tristezas num homem que ama o verão, que cultua o verão, que cultua o sol dos campos abertos, que sabe sentir o vento do mar largo? Que Ingmar Bergman seja um insatisfeito, um ser inquieto sempre em busca da melhor e mais rica expressão artística em sua obra, admite-se de bom grado. Mas insatisfação não quer dizer pessimismo, ao contrário. O pessimista é um conformista que aceita o fato consumado, a rotina e o evento futuro já bitolados, numa mesma medida negativa, temporal e espacial. E Ingmar Bergman, longe de ser um conformista, é um revoltado permanente, que se insurge contra a rotina e se integra exuberantemente no tempo e no espaço, no “seu” tempo e no “seu” espaço, sempre à procura de melhor, histórias e argumentos, pureza de estilo e de forma, genuinidade de expressão etc, conforme já debati aqui, com meu amigo Almeida Sales, a propósito de “Sorrisos de uma Noite de Amor”, para o crítico de O Estado de S. Paulo, película a representar “o mundo pessimista” do cineasta sueco. Pois, para mim, essa divergência de opiniões em pessoas que, em linhas gerais, são concordes sobre certos aspectos do cinema contemporâneo, representa bem a atitude de perplexidade em que se integra o espectador ante cada obra nova de Bergman. Mas, a pesquisa inquieta, a precisão da linguagem, a exuberância e a exaltação da forma, a profundidade do conteúdo serão uma característica do pessimismo, ou tão-somente a marca pessoal de um homem que à gargalhada sarcástica, a um rictus mordaz, prefere sorrisos e malícias, à frieza de um espírito conformado, prefere o calor do verão e a poesia do amor? Com tais considerações, eis-me afastado de “Morangos Silvestres”. A importância desta fita impôs tal divagação necessária. Ao espetáculo do Marco Pólo voltarei amanhã. Morangos Silvestres (Smultronstället) de Ingmar Bergman, Suécia, 1957 18 outubro 1962 Parte II Cinema da Alma Ingmar Bergman, a propósito de um filme seu, (“Ansiktet” – “O Rosto”), apresentado em Veneza em 1959, onde conquistou o Prêmio Especial do Júri, declarou numa entrevista concedida a “Match,” respondendo à seguinte pergunta: -“ Em “O Rosto”, o “close up” tem uma função ainda mais importante do que em outros de seus filmes. Dentro em pouco, dos olhos você passará a focalizar apenas as pupilas... E daí?” “Talvez, nesse momento, responde Bergman, eu descubra uma fenda na pupila de minhas personagens, por onde eu possa entrar com minha câmara para registrar o que se passa aí detrás...A câmara cinematográfica é um instrumento de força penetradora e poder especulativo ainda pouco suspeitado. E o que me interessa é o cinema da alma...” Tal afirmação se ajusta bem a esta admirável “Morangos Silvestres”, realizada dois anos antes de “O Rosto.” Trata-se de um cinema feito dentro do subconsciente de um homem de 78 anos, preso de sonhos estranhos, de presságios angustiantes, perdido nas reminiscências de sua infância, de cujo cerne, na ação onírica, não participa mais, é apenas mero espectador, um pobre fantasma que da janela do Tempo assiste à sarabanda de suas lembranças, sob sua forma física atual, como se fora um filho mais idoso do que a mãe, ou um noivo que poderia ser o avô de sua amada... Quando, pois, Bergman anuncia que vai tentar descobrir uma fenda nos olhos de suas personagens para desvendar o que haja detrás do muro de sua alma, em verdade ele já falava com conhecimento de causa, pois já fizera sua câmara penetrar no subconsciente do“dr. Borg” (personagem principal de “Morangos Silvestres”) e das nebulosas de sua alma trouxera, para o mundo físico do cinema, o que lá perquirira. “Morangos Silvestres” é, assim, um cinema de psicanálise, um cinema de catarse, um cinema de sublimações, em que o símbolo tem uma função preponderante, em que o galho desfolhado de uma árvore, ou o prego fincado numa parede e a rasgar a palma da mão da personagem assume um significado denunciador de recalques, de complexos, das frustrações da infância, dos conflitos da adolescência. Entretanto, embora faça um cinema assim profundo, Bergman não se utiliza de nenhum virtuosismo, nem da trucagem em geral aplicada à realização de tais temas. Sua câmara pouco se movimenta, suas personagens, mesmo as dos sonhos, são criaturas comuns, com os defeitos e as qualidades humanas. Até os símbolos de que se valeu são coisas e fatos do nosso velho mundo físico. Só a plástica fotográfica age intensamente. Mas, sempre funcionalmente. No primeiro sonho do dr. Borg, aquela tétrica visão de um cenário morto, de janelas sem vidraças, de ruas sem gente, de relógios sem ponteiros, a fotografia é dura, seca, contrastada. Em outras visões oníricas, contudo, os quadros são bucólicos, a fotografia é fluida e cheia de matizes, a ação é marcada como se fora sob um ritmo de música de câmara, um “concertino” de Vivaldi, ou um quarteto de Mozart. Já no terceiro sonho, quando o dr. Borg é submetido a um exame escolar, naquela sua idade provecta, como se fora um candidato jovem no vestibular de Medicina, a fotografia é carregada, de sombras e luzes violentas, em fundos sem matizes. E, evoluindo nesses cenários sem penumbras, ou nesses ambientes onde desponta a primavera, agem as personagens de Bergman, os fabulosos atores do cinema sueco! Todos cumprem sua missão, todos representam seu papel sem uma falha, sem uma vacilação. Uma vez mais, Ingmar Bergman é aquele diretor de elenco que se integra em cada personagem, que participa da vida, da sensibilidade, da imaginação, das alegrias e tristezas de cada um. Cinema da alma, sem dúvida. Cinema, da Inteligência, da Cultura, cinema do Humano, enfim. A Morte Comanda o Cangaço de Carlos Coimbra, Brasil, 1960 29 dezembro 1960 Parte I Há muito está precisando o cinema deste país do ar livre de sua paisagem, da pureza e do pitoresco de seus costumes, da doçura de suas estórias, só de quando em quando a insuflar a obra de alguns raros cineastas sinceros... Se admiro muito aqueles que procuram um estilo, que pesquisam uma forma, que pretendem sinceramente insuflar sua inteligência com o ânimo criador de escolas, de influências, com o substrato de gêneros e de estéticas de várias procedências e caracterização, detesto, por outro lado, os simuladores confusos, os imitadores servis, os aproveitadores de circunstâncias ocasionais, os contra-fatores de toda espécie, os improvisadores, quaisquer que sejam e onde quer estejam colocados. Ora, numa ante-estréia beneficente, uma mulher e alguns homens do cinema brasileiro proporcionaram uma humilde lição a muitos dos simuladores e dos pretensos cineastas, que infestam este país. Uma lição realmente, de humildade, de inteligência e de sensibilidade, ao narrar uma estória de cangaço, a saga eterna do Nordeste, da sua paisagem torturada pela seca, ou subitamente verde, quando chega o “inverno” vivicante da estação das águas, normalmente distribuídas. Pois, Aurora Duarte, vinda de Pernambuco pela mão de Cavalcanti para integrar-se no cinema brasileiro (no cinema de “O Canto do Mar”), no cinema de São Paulo, onde se radicou depois, quis, na primeira tentativa de sua empresa produtora, voltar ao Nordeste de suas origens, para ali buscar as cores, o clima, os costumes, as personagens de um filme autenticamente brasileiro, certa de que lá encontraria tais ingredientes, parcialmente manipulados em nosso cinema, ainda que abundantemente utilizados pelos “cantadores” populares, esses humildes rapsodos nordestinos, através de cuja lavra ainda é possível guardar e difundir as lendas do cangaço e a mitologia heróica das caatingas. Não importa que, há já alguns anos, uma outra criatura tenha perambulado, pela primeira vez, por esses caminhos do chão seco do Nordeste e, através deles, com Galdino e seus cabras, tenha atingido os centros mais civilizados e mais distantes do mundo. Lima Barreto, homem inteligente e sensível também, valeu-se da saga do cangaço, para com isso fazer um cinema brasileiro genuíno, a deitar raízes atrevidas no cinema universal. Tomou de um tema o autor de “O Cangaceiro”, que permite todas as incursões e proporciona estórias infinitas. Mas, para analisar “A Morte Comanda o Cangaço” não é preciso hoje lembrar “O Cangaceiro” e estabelecer paralelos, como para analisar um “western” norte-americano, ou um samurai japonês, não é preciso lembrar obrigatoriamente “No tempo das Diligências” e “Shane”, nem “Rashomon”e “As Portas do Inferno”. Esses temas são de todos e não pertencem a ninguém. Por isso, não assisti à “A Morte Comanda o Cangaço” pensando em Lima Barreto, ou no cabra Galdino – que eles têm feição e personalidades próprias. Preferi ver a fita de Aurora Duarte, admirando Carlos Coimbra, aplaudindo Raimundo e... Mas, isso será objeto de uma próxima nota. A Morte Comanda o Cangaço de Carlos Coimbra, Brasil, 1960 31 dezembro 1960 Parte II O Diretor e a Narração É com indizível satisfação que volto a escrever sobre “A Morte Comanda o Cangaço”, realizada em grande parte no Ceará, pela equipe reunida em São Paulo por Aurora Duarte, sob a produção de Marcelo de Miranda da Torres. Mas, a três homens principalmente, dentro dessa equipe homogênea e discreta, se deve o resultado técnico e artístico fora do comum e acima de qualquer expectativa, alcançada por essa película paulista, digna realmente de ser considerada como uma película brasileira genuína: a Carlos Coimbra, que a dirigiu sóbria e firmemente, trazendo seus atores para aquela contenção dramática saída do melhor naturalismo cinematográfico; a Tony Rabattoni, iluminador da fita, com seu trabalho a obter uma fotografia em cores de padrão internacional, mais alto ainda do que o fruído pela fotografia em branco e preto de “Cidade Ameaçada”, já considerado excepcional, entretanto: e a Osvaldo Kemeni, técnico da Rex Filme que no laboratório tratou dessas cores e lhes deferiu uma uniformidade, uma limpeza, uma “gama cromática” admirável, comparável aos resultados melhores alcançados pelos técnicos europeus, ou norte-americanos. Em “A Morte Comanda o Cangaço”, Carlos Coimbra atinge o ápice de um longo e paciente aprendizado, em que nunca se valeu da improvisação, nem da mistificação. Iniciar-se-ia, entretanto, no cinema, com o “pé esquerdo”, como assistente em um filme muito ruim – “Luzes nas Sombras”, de Carlos Ortiz. E foi também com outra fita muito medíocre, que surgiria sua primeira oportunidade de direção – “Armas da Vingança”, inexplicável e inesperadamente contemplada com cinco ou seis “sacis”, em 1955, inclusive um para a sua direção... Depois dessa surpresa Carlos Coimbra trabalhou em “Dioguinho”, em “Crepúsculo de Ódios”, na montagem de “Padroeira do Brasil”, “Rastros nas Selvas” e “Fronteiras do Inferno”, tal atividade proporcionando-lhe um exercício técnico contínuo, a contribuir certamente para a obtenção da segurança narrativa e da frase coerente, ora sentida na edição de sua “A Morte Comanda o Cangaço”, completando-o na sua função de diretor, onde realmente se distinguiu e agora se firma como um dos melhores orientadores de elenco do cinema brasileiro contemporâneo. Graças, pois, à energia de sua direção, à fluência de sua narrativa e à uniformidade dramática obtida com seus intérpretes, pôde Carlos Coimbra apresentar sua fita ao público e à critica que, desta feita, não mais se sentiu constrangida, ao surgir à luz das salas de espera, depois que se apagou a dos projetores, nas salas de projeção... Algumas restrições sérias devem ser feitas a “A Morte Comanda o Cangaço”. Prefiro, contudo, deixar para outra ocasião a análise desses tropeços, só consignando agora os aspectos positivos que mais categorizam a obra, os momentos de grande beleza, plástica ou dramática, que mais a caracterizam. Há, realmente, cenas ou seqüências que se poderiam classificar de “antológicas” se esse termo já não tivesse caído no lugar-comum. E “A Morte Comanda o Cangaço” não merece que sobre sua crônica incida o lugar-comum. Seqüências como a do apresamento de um boi, em pleno cerrado nordestino, com aquela movimentação de câmara, de homens e de animais, construindo um dos trechos mais significativos de plástica, de cor, de discurso cinematográfico; cenas como as do casamento ao luar, da distribuição de armas aos vaqueiros de Raimundo, dos tiroteios por entre os penedos da “Caatinga do Espinheiro”; episódios como o do ataque e do incêndio da casa de “d. Cidinha”; o aproveitamento plástico e sonoro do prólogo da fita, um poema bucólico enternecedor; a descrição telúrica do funeral rústico, na vila assaltada pelos cabras de Silvério, ou as exéquias vagnerianas do “cabra Coruja”, são realmente momentos do mais alto nível cinematográfico, obtido pela conjunção ótima de um diretor inteligente, de um iluminador sensível, de uma equipe funcional e plenamente integrada na criação de uma obra cinematográfica digna dessa qualificação. Em outra oportunidade, analisar-se-á “A Morte Comanda o Cangaço” sob considerações outras, que essa peça ainda sugere. A Morte Comanda o Cangaço de Carlos Coimbra, Brasil, 1960 05 janeiro 1961 Parte III Considerações Finais Volto hoje a escrever sobre “A Morte Comanda o Cangaço”, num último contacto crítico, fechando a série de crônicas que a essa peça dediquei. Até então, não quis referir-me às restrições que faço à película de Aurora Duarte – Carlos Coimbra, preferindo exaltá-la quando posso, a criticá-la quanto devo. Sobre seus aspectos positivos principais, já me referi exaustivamente – produção bem planejada, fotografia em cores e tratamento de laboratório excelentes, direção segura, narrativa fluente, nível internacional de qualidade cinematográfica amplamente alcançado, predicados muito raros no cinema brasileiro de todos os tempos. Faltou, contudo, em minhas considerações, uma referencia à interpretação, a meu ver a mais homogênea observada na produção paulista destes últimos anos. E, justamente por ter atingido a tal homogeneidade, não quero agora destacar este ou aquele, pois qualquer referência mais pessoal quebraria esse padrão de conjunto interpretativo, para cuja obtenção cada ator contribuiu com o seu esforço particular, colaborando plenamente com Carlos Coimbra, em quem desde logo certamente reconheceram um orientador capaz e a saber o que fazia. Creio que Alberto Ruschel, Aurora Duarte e Milton Ribeiro, por ordem meramente alfabética e como cabeças de elenco, se igualam naturalmente, na vivência sincera de suas personagens, tanto quando Apolo Monteiro, no papel de “Mortalha”, Edson França no de “d. Cidinha”. Estreantes no cinema e intérpretes coadjuvantes se realçam igualmente, cada qual no seu papel, de maior ou de menor importância. Talvez nesse setor (dos estreantes) deva-se incluir Lyris Castellani, muito embora essa dançarina já tenha trabalhado em outras fitas, onde, contudo, não teve a menor oportunidade dramática. Nesta “A Morte Comanda o Cangaço”, Liris Castellani se revela também uma excelente intérprete, ainda que num papel de curta duração, mas muito expressivo. Rute de Souza vive a sua intromissão na fita com uma segurança e uma sinceridade que há muito lhe houvera fugido, em ravinadas e americanadas de má morte, em que todo o seu talento se perdera na mediocridade geral que imperou nesse cinema falsificado. Foi pena que Carlos Coimbra não houvesse trabalhado um pouco mais sua película, quer na tomada de certas cenas, quer na edição final delas. Há pequenos senões que lhe prejudicam a sintaxe da frase, rompe-lhe o ritmo cinematográfico da ação, ou ofuscam-lhe a eloqüência do discurso, que ora atinge um nível muito alto de poder convincente, ora cai na demagogia dramática, fácil demais para ser aceita sem discussão. Justamente foi esse lado discutível do filme, que impediu Carlos Coimbra de atingir os limites da obra cinematográfica completa. Assim ao correr das lembranças, quero assinalar a longa duração do xaxado, dançado pelos cabras de Silvério, arrastando-se em demasia e retardando a dinâmica do filme; a cena em que Raimundo é ferido no assalto à sede da fazenda de “d. Cidinha”, uma “tomada” fraca, incluída numa seqüência, contudo, de grande força dramática; o diálogo à beira do cercado, enquanto o Beato procede à encomendação dos corpos das vítimas de Silvério, um “tête-à-tête” tecnicamente bem realizado, prejudicado, entretanto, pelo diálogo convencional, sem espessura em sua função de complemento da imagem. Note-se finalmente a par de outras restrições de menor importância, a música, francamente ruim e muitas vezes inoportuna, de Simonetti, das piores partituras desse compositor, em sua longa atividade no cinema brasileiro. Que mais dizer sobre essa fita, sobre esse sopro rejuvenescedor do cinema brasileiro? Apenas uma palavra de estimulo a mais, a todos que dele participaram, mais efetivamente: a Aurora Duarte, por sua perseverança e acerto em sua produção; a Carlos Coimbra, que de hoje em diante assume sérios compromissos com o cinema paulista e não pode mais retroceder; finalmente, a Marcelo de Miranda Torres, que, com tanta fé, abriu o crédito de sua confiança a seus colaboradores e que com a contribuição deles conseguiu reanimar o corpo quase exangue do cinema brasileiro. A todos a sinceridade de meu aplauso e o atestado de minha crença na obra que certamente já devem estar planejando. Vamos esperar por esse futuro, que não haverá de iludir, nem desiludir ninguém. Morte à Fera (Yaju Shisubeshi) de Eizo Sugawa, Japão, 1959 26 setembro 1962 É inegável que, depois de se calar o último canhão em 1945, a juventude que voltava das frentes de batalha, ou a que houvera curtido os horrores da retaguarda, em sua maioria, mais se dirigiu para as universidades, para os laboratórios, para os anfiteatros do que procurou as “caves” de Montparnasse, ou os antros dos “beatnicks”. Nesses tugúrios enfumaçados ficaram os exibicionistas, os pseudo-inconformados, que por mera atitude se transformaram em seres hirsutos negativistas, amorais, símbolos da indolência e da irresponsabilidade. Em todos os países do mundo, mesmo naqueles que pouco sofreram com a guerra, existem eles, a viver à custa da bolsa dos pais, como certos bezerros crescidos, que ao invés de trotar pelos pastos com a independência própria da idade, ficam à sombra dos currais, à espera da alimentação materna, como parasitas incorrigíveis, os mesmos que, numa paráfrase, Fellini chamava de “I Vitelloni”, ao descrever, numa deliciosa película, os “transviados” de certa cidade da província italiana. Mas “Morte à Fera” não trata desses. Seu herói é, na verdade, um psicopata obcecado, um paranóico calculista e agressivo, que mata, premeditadamente, com prazer, com volúpia, mais do que por impulso incontrolável. Estudante numa universidade, escreve tese insólita, a fim de concorrer a uma bolsa de estudos nos EUA. “Os mesmos efeitos de hoje já não se geram mais das mesmas causas de antigamente” – escreve ele em sua monografia. Outras influências determinam agora outras conseqüências. O delinqüente dos tempos presentes não é mais o mesmo das eras passadas. Ele está agora na burguesia, nas escolas, nos meios intelectuais, mais do que entre as classes mais baixas. É em verdade um autômato movido pela engrenagem social dos dias atuais. Está claro que esse estudante inteligente e culto há de pôr à prova, numa dramática demonstração, a teoria de sua tese. Passa a agir não apenas anti-socialmente, como criminosamente. Tal é o conteúdo desse “policial” impressionante, realizado por Eizo Sugawa, a marcar sua fita por uma sintaxe cinematográfica corretíssima, a serviço de uma dialética personalíssima, caracterizada por um teor plástico e emotivo incomuns. A utilização dos recursos formais e da linguagem do cinema em “Morte à Fera” transcendem da rotina industrial para atingir o nível superior da pesquisa, próprio das obras de vanguarda, “Morte à Fera”, por sinal, me faz lembrar uma outra fita japonesa em que havia também “jovens feras” no título e no tema cinematográfico, também da Toho Filmes, aqui exibida em fins de julho de 1959. Ambas as fitas se caracterizam por essa ânsia de renovação, ambas a tratar de problema atual e atuante, ambas realizadas por cineastas jovens, mas a denotar em sua obra o classicismo dos bons autores. Mulheres e Milhões de Jorge Ileli, Brasil, 1961 14 outubro 1961 Escrevi há poucos dias sobre a inconveniência de se lançar um crítico à prática do filme dramático, nessa realização (que não é mais gerada na tranqüilidade dos gabinetes, mas a concebida sob as agruras dos estúdios) a se confundir, quase sempre, em estilos e modos dos cineastas que mais admira, disso resultando, quase sempre também, o “pastiche” puro e simples, pouco de pessoal, ou de pesquisa mais profunda. Os exemplos são muitos, lá fora, tanto quanto aqui dentro e, para não entrar eu a rebater essa tecla desafinada, limitar-me-ei agora ao exemplo atualíssimo proporcionado por “Mulheres e Milhões”, uma vez mais a comprovar a tese. Desta vez, saímos do mundo “intimista”, para cair no prosismo do “policial”. Se não há Bergman, ou Stiller e Wyler, temos o Dassin, de “Rififi”, que por sua vez viera de Huston de “O Segredo de Jóias”, este realmente a constituir-se na explosão original daquela reação em cadeia. No Rio, “Mulheres e Milhões”, fascinou os comentaristas especializados, mas em São Paulo está sendo mais comedida a crítica. Meu colega Almeida Salles já se manifestou e fê-lo com ponderação, reduzindo a justa medida essa “Mulheres e Milhões”, para ele um filme frustrado, se bem que de bom nível técnico e com algumas qualidades no setor da interpretação. A mim impressionou ainda menos o filme de Jorge Ileli. Não lhe discuto o nível técnico alcançado, principalmente no setor da fotografia, otimamente iluminada por Rudolf Icsey. Mas, que dizer da interpretação que vai apenas do razoável ao péssimo, das situações ridículas, das cenas de um deplorável mau gosto (a cena da sedução vivida por André Dobroy e Norma Benguel, esta com aquela sua malha colante horrorosa, aquele a demonstrar que não dorme com sapatos...), dos diálogos artificiais e tolos, do coitado do José Mauro, em situações do cinema mexicano, ou naquele final bobo, dispersando seu talento, juntamente com os milhões tangidos pelo vento, um final já visto pelo menos em duas ou três películas do cinema universal, entre as quais, se bem me lembro, “O Tesouro da Serra Madre”, de John Huston, e “Touchez pas au Grisbi”, de Jacques Becker, em que realmente o símbolo das ambições perdidas, levadas pelo vento, funciona perfeitamente? Mas, a mesma idéia em “Mulheres e Milhões”, apenas dá um toque a mais de um cinema de imitação, nunca de um cinema de criação. A Estrada da Vida (La Strada) de Federico Fellini, Itália, 1954 19 agosto 1957 A humaníssima película de Federico Fellini – “Na Estrada da Vida” – ao tempo de sua estréia em São Paulo muito mal-recebida pela crítica, não se sabe por que razões estéticas, ou de outra origem, ainda que, em verdade se trate de uma das películas mais importantes do cinema contemporâneo. O drama humilde de “Gelsomina” e de “Il Matto”, a tragédia tremenda de “Zampano” não comoveram o espírito de muita gente e a fita, na opinião desses críticos, foi um malogro cinematográfico, foi apenas o esboço de outra peça, a ser feita por outros, em ocasião oportuna. E a admirável interpretação de Giulietta Masina, para eles, não passou de uma imitação da personagem que Chaplin, no seu Cinema, transformou num mito, como se a influência desse criador ilustre em qualquer película, sobre quaisquer cineastas, pudesse diminuí-los e à sua obra! É evidente que Chaplin e sua criação fabulista teriam de incutir duramente a sua marca, não apenas na sua extensa cinegrafia, desde os tempos da “Mutual” ou da “Keystone”, até “Luzes da Ribalta”, mas, também, na de muitos outros cineastas, já mortos, em atividade, ou ainda por chegarem. Vittorio de Sica e o próprio neo-realismo italiano – um grande cineasta, um ator dos maiores e toda uma escola – se apegaram muito à obra e até ao estilo chapliniano. De mitos e de influências o Cinema está cheio e, ainda que arte novíssima, sua tradição se conta por séculos. “La Strada”, no dizer de Dominique Aubier, vem provar, uma vez mais, que o Cinema de hoje precisa mais de alguns homens com estrutura mental, do que daqueles a cujo alcance se põe somente uma estrutura técnica bem consolidada. Pois, sem dúvida, vale muito mais a estrutura mental de “La Strada” – a saga humaníssima do homem solitário – do que a sua estrutura técnica, forma humilde a revestir a tragédia de três criaturas diferentes, só igualadas em sua triste condição humana. E tão humildes quanto o próprio drama narrado por Fellini foram os atores que o interpretaram. Giulietta Masina, pouco conhecida no cinema italiano, Anthony Quinn e Richard Basehart, atores secundários do cinema norte-americano, em cujos elencos nunca passaram de coadjuvantes, ou de intérpretes de peças das chamadas “classe C ou B”, as mais modestas dos planos anuais de produção. Aliás, foi o próprio Fellini quem delimitou o significado de “La Strada” – obra de inspiração franciscana. É ainda Dominique Aubier (“Cahiers du Cinéma” n° 49), nesse sentido, quem analisa cada personagem em termos e em função da figura do “povorello” de Assis. Evidentemente, uma obra de tal simplicidade não podia adaptar-se à estrutura oca e frágil de certas estéticas confusas (serão mesmo uma estética?), cujas características não foram até hoje definidas com clareza. E a clareza da linguagem de “La Strada”, tal como a de Chaplin, no seu despojamento e na sua universalidade, terá que chocar aqui e lá fora aqueles que preferem gravitar em torno de nebulosas. “Zampano”, “Gelsomina”, “Il Matto”, três personagens a se repelirem por força de seus temperamentos e de seus impulsos, mas unidas como os pontos de um triângulo. Nessa área geométrica vivem e atraem-se mutuamente. Mas, quando um deles quebra a unidade ternária, destrói-se a si próprio, eliminando a figura e seus pontos de contato. Morto “Il Matto”, acaba-se “Zampano”, muito antes de acabar-se “Gelsomina”. Entretanto, só com o sacrifício dos dois outros é que “Zampano” vem a humanizar-se. Mas esse processo, pelo qual um homem torna-se Homem, será lento e doloroso. A dor e o remorso se implantarão em “Zampano” desde o momento em que seu ódio se apazigua com a morte de “Il Matto”. Daí em diante, porém, sofrerá com os olhos assustados de “Gelsomina”, sempre voltados para ele, sofrerá com o despertar de sua consciência, sofrerá com a sua decadência, sofrerá com o desaparecimento da parceira, que, numa manhã de inverno, abandonara à beira de uma estrada, à sombra gélida de um muro em ruí­nas. Sua solidão será agora mais cruenta, porque “Gelsomina” não terá substituta. Nem o trabalho rude, nem o álcool, nem o tempo apagarão de sua memória rústica o vulto grotesco da companheira, simplória e assexuada, que, certa vez, comprara numa praia deserta, por um milhar de liras, de uma família faminta. E noutra praia deserta, na sombra noturna, ao quebrar de ondas e uivar de ventos, ouvirá, pela primeira vez, o rugido de dor de sua alma, a morrer apenas nascida... Tal é a tragédia franciscana que Fellini narrou ao longo das estradas, à beira do mar, nas encostas das colinas, no tope das montanhas. Numa linguagem sem atributos, nem adjetivação fácil; contou a história de um homem solitário, preso dentro de si mesmo. As correntes que envolvem seu tórax e que arrebentam sob a tensão de seus peitorais num picadeiro de circo, ou à vista de basbaques numa esquina, até elas têm valor simbólico na temática da película – uma longa libertação de almas e de impulsos. O mesmo valor das pedras e dos seixos dispersos pelos caminhos do vasto mundo. Nas Garras da Fatalidade (I Became a Criminal / They Made Me a Fugitive) de Alberto Cavalcanti, Inglaterra, 1946/1947 06 julho 1949 Logo nas primeiras imagens de “Nas Garras da Fatalidade”, se traçaram, iniludivelmente, os contornos de uma grande peça de cinema, tão forte e absorvente quanto “Na Solidão da Noite”, ou “O Condenado” (“Odd man out” de Carol Reed), com as quais mantém estreitas relações estéticas e semelhanças de temas. Já nas primeiras imagens, em verdade, não é mais possível escapar-se da intensidade da narração de “I Became a Criminal”, que vai envolvendo o espectador na sua narração e no seu clima, de modo a fazê-lo respirar, insensivelmente, a atmosfera densa daquele drama derivado das conseqüências inelutáveis dos conflitos armados. A Alberto de Almeida Cavalcanti se deve essa grande peça de cinema que é “Nas Garras da Fatalidade”, um cineasta que não é “potencialmente um dos maiores”, segundo asseveram certos juízos apressados. Cavalcanti não está nessa “potencialidade”. Seu passado no cinema francês e no cinema da Inglaterra está pejado de um lastro cinematográfico da melhor qualidade, com origens no cinema mudo e em plena floração no cinema moderno. Passando por aquela fase intensa da pesquisa estética ou da experiência técnica, a fase do cinema de vanguarda, Cavalcanti pode hoje exibir um estilo pessoal, provindo de uma atividade intensíssima nos estúdios da França e da Inglaterra e no qual se acha sedimentado tudo quanto de sólido apurou ao tempo de suas realizações de “Em Rade” ou “Rien que les Heures”. Longo, em verdade, foi o caminho por ele percorrido para atingir a integridade artística de “Na Solidão da Noite” e de “Nas Garras da Fatalidade”. As obras de história do cinema e as de sua antologia aí estão para quem souber ler ir buscar o atestado dessa competência afetiva e devidamente reconhecida, que alguns, por paixão ou preconceito, querem negar de qualquer forma. Para esses, evidentemente, incapazes de sentir toda a beleza poética de um “La Belle et La Bête”, a beleza rústica e violenta de um “O Tesouro da Serra Madre”, ou simplesmente o lado humano de “Um Dia na Vida”, há de passar despercebido todo o valor estético e cinematográfico que um “Nas Garras da Fatalidade” possa conter. E um dos aspectos mais importantes dessa película de Cavalcanti é sua integração dentro do chamado “neo-expressionismo” e o interesse artístico que daí decorre. Nesse sentido, “Nas Garras da Fatalidade” é uma das obras mais representativas dessa tendência, a superpor-se talvez às do próprio Fritz Lang, dentro do cinema norte-americano. Nessa sua última película, Cavalcanti expõe, com uma sinceridade e uma emotividade dignas de seu passado, todos os elementos formadores dessa corrente artística no cinema atual. Porque tudo no filme tem o seu valor próprio, se bem que cooperante para a realização integral do conjunto. Fotografia e plástica, direção e interpretação, montagem e ritmo, tudo se liga rigidamente para a criação total da peça, dentro desse expressionismo tão decisivo na formação de Cavalcanti (diga-se de relance que esse grande cineasta colaborou ativamente, em 1923, com Fernand Leger, Mallet-Stevens e Claude Autant-Lara, na cenografia de “L´lnhumaine” de Marcel L´Herbier, tida por muitos como “O Gabinete do dr. Caligari” do cinema francês). De fato, o cenário, por exemplo, como, aliás, todos os demais elementos de criação de “I Became a Criminal”, tem uma função primordial na formação artística, no clima psicológico que envolve as personagens, tomadas em conjunto, ou separadamente, como seres de uma coletividade a sofrer em sua carne todas as inevitáveis conseqüências de uma guerra, como essas provindas do último conflito: fome, privações, alcoolismo e banditismo, mercado negro e aproveitadores de toda espécie, desde os de alimentos até os do vício e das meias “nylon”. O próprio expressionismo, não terá sido, também ele, uma conseqüência direta da guerra de 1914-18? Dentro desse ponto de vista, citaremos o exemplo tirado de algumas cenas de “Nas Garras da Fatalidade”, em que é mais evidente a função do cenário, composto como um desdobramento físico do estado de espírito dos participantes do drama, ou como a condensação de sua atmosfera: as cenas iniciais, que situam o espectador nos quadros de ação, o contraste daquele coche funerário estacionado numa rua plácida e de onde homens de negro tiram um esquife para com ele penetrar numa dessas “casas de morte”, organizações comerciais que tudo fornecem, desde o ataúde, até a sala para o velório; o aproveitamento desse ambiente tétrico para nele fazer decorrer os lances mais intensos do enredo, aquela armadilha para aprisionar “Clem Morgan”, a luta que nela se desenvolve, o seu terrível desfecho, momentos em que o corte e a montagem se fazem rigorosamente certos; o encontro entre “Narcy” e “Sally”, no camarim desta, onde as lâmpadas acesas se acham multiplicadas ao infinito e onde um espelho deformante reflete toda a brutalidade do cará­ter de “Narcy”; a estrada infinita, a se perder na bruma, onde os faróis de um caminhão são dois olhos postos num homem que foge; o diálogo, entre este e o motorista, um contraponto de falas e imagens da estrada e da paisagem esquiva; as cenas da prisão de “Sua Majestade”, mostrada pelos pés dos sentenciados, em tomadas próximas, em fusões sucessivas, uma síntese vem marcada de um largo período de tempo decorrido,...... a ambientação úmida e brumosa a reinar em toda a fita... e citaríamos a continuidade inteira de “Nas Garras da Fatalidade” se prosseguíssemos nessas observações. Mas, ao lado do nome de Cavalcanti, notemos os de Otto Heller e Marius François Gaillard, diretor da fotografia e autor da partitura musical da película, dois elementos de criação de notável plasticidade, impregnados de uma violência descritiva bem acordada ao ritmo e à movimentação geral da obra. No Tempo das Diligências (Stagecoach) de John Ford, EUA, 1939 23 abril 1950 Moniz Vianna, crítico de cinema do “Correio da Manhã”, ao comentar “No Tempo das Diligências”, coloca essa fita numa das poucas subdivisões do “western”: o “western” psicológico, segundo suas próprias palavras. De fato, aí está um dos valores positivos e permanentes da fita de Ford. Até então o chamado “western” não se preocupava com outra coisa senão com a aventura pura e simples, a envolver o trio clássico: o par de namorados e o bandido temível. Todas as demais personagens eram apenas acessórios, a girar em torno das três principais. Em “No Tempo das Diligências”, Dudley Nichols e John Ford, cenarizador (roteirista) e diretor de cena respectivamente, eliminaram a preponderância das três figuras principais, nivelando-as a todas as outras. Assim, todo o elenco de “Stagecoach” passou a ser a soma das funções de cada desempenho de per si. Uma interpretação de conjunto, já se vê, onde cada um dos caracteres é analisado dentro da função por ele desempenhada no decorrer do drama e sem se superpor um ao outro. A soma de todos, passa ser o espelho da própria sociedade de certo momento histórico: o aventureiro do ouro e do gado; o banqueiro inescrupuloso, a aparentar moral e honestidades; a pobre mulher decaída a seguir como uma sombra os rastros do “gold rush”; o vaqueiro foragido da Justiça, que se tornara criminoso por uma questão de vingança e de honra familiar; o “sheriff”, o vendedor de bebidas, a esposa de um soldado que o procura de guarnição em guarnição, para a seu lado ter o filho longamente esperado; o médico filósofo que afoga no álcool o seu drama incompreendido, são figuras humanas, heterogêneas como o próprio meio em que evoluíam, desprezadas até então pelos cineastas do “western” e de que Dudley Nichols e John Ford se apropriaram para analisar e estudar as respectivas reações, em face de um perigo comum e sob circunstâncias diversas. Ora, se bem que essa análise psicológica seja por vezes superficial, por vezes convencional, não resta dúvida de que “No Tempo das Diligências” representa a escola e a forma de que saíram depois todas as grandes obras do mesmo gênero. Até outras peças do próprio Ford, como “Paixão dos Fortes”, superior, do ponto de vista psicológico, a “No Tempo das Diligências”. Essa importância de “Stagecoach” é inegável e indiscutível. Acrescente-se a isso, outras qualidades que possui, como a magnífica seqüência da corrida desabalada da diligência perseguida, o combate vertiginoso entre os seus ocupantes e os índios, as quedas dos atingidos, principalmente a daquele “apache” por entre as patas dos cavalos que lhe passam por sobre o corpo, largado depois na areia escaldante, uma movimentação tremenda que a câmera acompanha numa das mais significativas panorâmicas de que se tem memória no Cinema. Só a montagem e o corte desta seqüência bastariam para tornar “No Tempo das Diligências” uma peça clássica. Clássica, sem dúvida, mas não íntegra. Muitas restrições se opõem a essa realização de Ford; personagens caricatas, como a do médico, vivido por Thomas Mitchell e a do cocheiro da diligência, personificada por Andy Devine, cuja voz arroucada, ultra-explorada pelo diretor de cena, serve até de elemento cômico, numa deslocada aplicação em certas cenas da fita; abuso do elemento sonoro, como os berros do cocheiro em todas as suas tomadas próximas, como a música de fundo, sempre a mesma, a surgir todas as vezes em que tomadas distantes mostram a diligência a cortar a planície; o arrastamento das cenas primeiras, a demagogia com que se narram outras mais (como o vício do médico e a desonestidade do banqueiro), são os pontos negativos dessa fita, hoje integrada na história do Cinema. Esteticamente, “Stagecoach” resiste ainda à ação dissolvente do tempo. Mas é possível que após a passagem de mais alguns anos, tenha apenas um valor meramente histórico, representativo de certa época em que Ford era ainda um criador. Com a lamentável repetição de si próprio, advinda principalmente depois que andou chefiando missão cinematográfica durante a guerra, Ford hoje nada mais é do que uma sombra de que foi. Que o digam as suas últimas realizações: “Sangue de Heróis” e “O Céu mandou alguém”, em que teve a direção de cena, e “O Monstro de um mundo perdido”, que lhe pertence, como produtor. A Noite (La Notte) de Michelangelo Antonioni, Itália, 1961 23 junho 1962 Com esta “La Notte”, Antonioni consegue fazer com que seu espectador, em duas horas, viva uma noite inteira; consegue fazê-lo participar desse período em claro e insone, através de uma de suas personagens, insatisfeita, deprimida, angustiada, a atravessar a festa na mansão luxuosa como se fora sonâmbula, passando dos jardins para os salões, e de dentro para fora novamente, como se não existissem obstáculos nem paredes, no ar, num deslizamento de vigília sem fim, a ansiar pela luz da madrugada. Tanto quanto o espectador pela sala de projeção, anunciando o término dessa “La Notte” fatigante e arrastada. A fita de Antonioni, com sua ação lenta e sua interpretação sofreada, é um raciocínio frio de que não participa o sentimento, apenas a sensação, um raciocínio necessitado do desdobramento de suas premissas para (talvez só depois da exibição da fita) chegar-se às conclusões ou às intenções de seu autor (ou de seus intérpretes). Reconheço que “La Notte”, tal como a obra anterior de Antonioni, “A Aventura”, é algo respeitável, é uma experiência sensorial que ele deseja traduzir através de um cinema puramente cerebral. Mas não me entusiasma muito esse cinema raciocinado, em que tudo parece ter sido medido e provado, o gesto de uma personagem, tanto quanto um movimento de câmara, uma demonstração cinematográfica do velho princípio aristotélico (será mesmo de Aristóteles?): nada existe no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos. Pois Antonioni não faz por menos. Seu espectador tem de sofrer com suas personagens, sofrer com todos seus sentidos, antes de construir, ou melhor, antes de sentir sua tese. Por isso, apesar de ser obra sofrida é fria e fatigante. Mas, por ser justamente uma obra de tais dimensões, não pode ser julgada sem a participação do tempo, não pode ser ponderada sem essa dimensão temporal, cuja falta torna impossível compreender-se o infinito, ou pelo menos sua relatividade. E tanto “La Notte” quanto “A Aventura” são dois pequenos universos largados no espaço infinito da sociedade contemporânea. O que se disser de um, adaptar-se-á perfeitamente ao outro, ambos obedecendo a uma lei irreversível de semelhanças, um princípio que se não percebe, mas que está presente em todo o transcorrer da obra singular de Antonioni, estranha e densa. Noite de Lua Minguante (Night of the Quarter Moon) de Hugo Haas, EUA, 1959 12 dezembro 1959 Há algo na carreira de Hugo Haas que a ninguém será lícito negar: a sua coragem, tantas vezes demonstrada, não apenas em sua luta pela vida, num mundo cheio de desleais competições, o mundo profissional do cinema, senão também na defesa e na exposição de suas idéias, na realização de suas fitas, todas elas de conteúdo definido, nunca vazias de significado humano, nem de objetivos inconseqüentes, como costuma acontecer com a maioria da produção de Hollywood. Hugo Haas não teme ninguém, não se arreceia em abordar temas de glosa perigosa, a psicanálise, por exemplo, que aproveitou numa película cheia de dignidade e de beleza interior, a sua “Desejos Ocultos” (Lizzie), em que Eleanor Parker, com a sua segurança e sua inteligência nunca assaz louvada, encarnou um tipo hebefrênico, de personalidades distintas, a se manifestarem, física e psicologicamente, com feições e comportamentos diferentes. E é preciso não esquecer ainda de outra fita corajosa de Hugo Haas, aquela que sob o título de “Do Abismo do Ódio” (The Other Woman), satirizou e desmascarou certos métodos de produção e certos tipos de produtores tronantes em Hollywood. Em tal película, Hugo Haas interpretou, ele próprio, a personagem de um cineasta europeu, largado à própria sorte na Babel do cinema, no ambiente ultracomercializado da produção de linha, personagem a viver as situações por vezes grotescas, que os atritos entre uma cultura e o progresso podem deflagrar. Eis que agora, Hugo Haas envereda por outra via, não menos cheia de abrolhos – a do preconceito de raças, da segregação e da miscigenação. Tema ingrato, em verdade, a não comportar meio-termo: ou torna a peça que o desenvolve em algo de expressivo e realmente importante, ou fá-lo derivar para uma demagogia que a custo se suporta. Hugo Haas, entretanto, conseguiu o impossível, conseguiu esse meio-termo. Isso quer dizer que sua película nem é algo de insuportavelmente demagógico, nem tampouco uma grande peça que se vê com admiração e de que se lembra com respeito. “Noite de Lua Minguante” permanece exatamente entre ambos os extremos. Aborda com a costumeira coragem o problema lancinante, cuja existência enodoa a civilização de certas nações, mas, de certo modo, não pôde fugir das injunções que a exposição do tema normalmente apresenta. Uma dessas injunções é a exigência de muita demonstração para situar a questão, o que, logo de início, sobrecarrega o preâmbulo da discussão e provoca aquele excesso de provas, afinal a prejudicar o próprio poder de convicção de quem se propôs apresentar e discutir o assunto. Hugo Haas obteve o resultado que dele se esperava. Saiu-se muito bem da enrascada e inteligentemente soube conduzir o espetáculo e os debates que provoca com muita habilidade. A grande maioria dos espectadores, ao acender das luzes, estará mais disposta a aceitar seus argumentos, do que a contradizê-los. E isso para um cineasta de seu porte já não será um excelente resultado? Solidariedade a Walter Hugo Khouri 30 setembro 1964 Uma vez mais – e certamente não será a última –, enfrenta o cinema brasileiro a incompreensão e a intolerância da censura, à vista do que, à hora em que escrevo, está acontecendo a Walter Hugo Khouri e seu filme, “Noite Vazia”, cuja estréia deveria ter-se verificado anteontem, no circuito do Cine Ipiranga. Submetida a obra aos censores de Brasília, foi-lhe recusado o visto liberatório, não sei a que pretexto, impedindo, assim a apresentação da fita na data marcada, isso acarretando aos produtores e distribuidores enormes prejuízos, programação tumultuada, publicidade desperdiçada, tempo perdido em viagens a Brasília, dinheiro dispersado inutilmente nos vaivéns entre São Paulo e o Distrito Federal. Diga-se desde logo que não vi ainda o filme de Walter Hugo Khouri, se bem que uma apresentação reservada tenha sido feita a vários membros da crítica e do corpo cinematográfico de São Paulo. Diga-se ainda que não faço parte do grupo de admiradores, incondicionais de Walter Hugo Khouri ou de sua obra permanecendo eu o comentarista mais severo e menos benevolente. De mim para mim, acredito que o autor de “Noite Vazia” não precisa mais da benevolência de quem quer que seja, sua cinegrafia, vultosa agora, carece mais de uma análise em profundidade do que da extensão de aplausos fáceis nas colunas de jornais, ou perante as comissões de premiação, oficiais ou não, tronantes em São Paulo. Contudo, se em Khouri recrimino principalmente a tendência irrefreável na imitação de estilos vários, reconheço-lhe sinceramente, em contrapartida, uma inteligência espontânea e uma integração consciente na fenomenologia do cinema, no que tem esta arte de mais elevado em meio da sensibilidade e dos comportamentos humanos. Assim, com o maior respeito à sua personalidade e às suas preferências, totalmente diversas das minhas embora, julgo-o incapaz de qualquer ato menos digno contra o cinema, que é algo de todos nós, contra o “seu” cinema, que pode ser só o dele. Quero, por isso, estar inteiramente a seu lado nesta emergência, quero tornar pública minha atitude (que é também a deste jornal, por tradição e por convicção), uma vez que, particularmente, disso o cientifiquei por intermédio de comunicação feita à sua esposa, durante sua ausência de São Paulo, às voltas com a censura em Brasília, como é sabido. Não vi ainda “Noite Vazia”, repito. É possível que pessoalmente eu não aprecie a obra e, a seu respeito, depois de assistir a ela, possa vir a cercá-la de muitas restrições. Mas, em nenhum momento, posso admitir tenha Walter Hugo Khouri derivado para a vulgaridade e a pornografia, como tem acontecido ultimamente com certas películas aqui exibidas (“Os Cafajestes”, “Boca de Ouro”, “Bonitinha, mas Ordinária”, “Asfalto Selvagem”), entretanto apenas proibidas a menores de 18 anos, sem qualquer outro obstáculo levantado pela Censura, na circulação desimpedida de tais obras. Não hesito pois a me colocar ao lado de Walter Hugo Khouri, em tais circunstâncias, ainda que, em outros campos, nos domínios do debate de idéias, estejamos bem distantes, separados por tendências e preferências divergentes. No momento, entretanto, tudo precisa ser posto à margem, só valendo o problema mais premente, o de um artista, o de um autor impedido de livremente expressar-se. Sim, isto é o que vale agora. N. da R. – O comentário sobre a interdição de “Noite Vazia” já se encontrava paginado, quando chegou à Redação a notícia da desinterdição. É publicado, porém para fixar o ponto de vista pessoal de B.J. Duarte em face do episódio, passível de repetição. Noite Vazia de Walter Hugo Khouri, 1964 15 dezembro 1964 Bem, aí estamos ante essa “Noite Vazia”, ou vadia, ambos os qualificativos lhe assentam bem, vazia realmente de qualquer conteúdo humano legítimo, vadia pelo espírito de suas personagens, dois homens e duas mulheres, vazios e vadios todos. Não sei bem como comentar esse filme deplorável; só com ânimo deprimido poderei lamentar suficientemente a decadência mental de seu realizador, desse cineasta, jovem ainda, que tanto prometia no início de sua carreira e que ao cabo de menos de uma dezena de filmes criados, já se apresenta decrépito e senil, como esses pobres velhos escleróticos, a viver de lembranças sensuais e que para melhor excitá-las se valem da fotografia e do filme pornográfico, procurados num desvão de esquina, ou em casas clandestinas, especialistas no fornecimento do estimulante dessa devassidão crepuscular... Não tenho dúvidas de que “Noite Vazia”, reduzida para a bitola do 16 mm, depois de esgotada sua exibição fescenina nas salas comerciais, ainda proporcionará boa renda em projeções privadas, nesses apartamentos de encontros escusos, tão bem descritos no filme de Walter Hugo Khouri. Porque sua fita é uma enciclopédia de modos e práticas sexuais, ilustrada com imagens que vão das gravuras de livros eróticos, à vulgaridade e grosseria das películas pornográficas francesas, das excitações sáficas, à depravação dos atos mais íntimos, praticados em comum entre esses homens e essas mulheres, que se revezam como animais em cio. A isso se resume o filme do sr. Walter Hugo Khouri. Formalmente bem-feito (a fotografia de Rodolfo Icsey é das mais belas do cinema brasileiro de todos os tempos), é realmente de lamentar-se tão boa cera gasta com defunto tão decomposto. Entretanto, já estou vendo daqui essa noite vazia a encher-se com todos os prêmios oficiais e particulares, a serem distribuídos para a produção de 1964, concedidos por esse grupo permanente e em constante ação nas comissões de seleção, do “Saci” ao “Governador do Estado”, com baldeação pela “Municipalidade de São Paulo”. Enfim, aí está essa “Noite Vazia”, de tédio e prostituição cheia. Ao resolver assistir a ela, tive a precaução de ir sozinho ao “Ipiranga”, tirando bom proveito do aviso que me proporcionou um velho amigo, obrigado a deixar a sala do “Astor” na metade do filme, de tal forma se constrangeu na presença da esposa ao lado. Que assim procedam aqueles que, como nós, não querem sofrer vexames junto de noivas ou familiares mais chegados. Para evitar tais inibições, não teria sido mais proveitoso para todos que o filme de Khouri houvesse sido exibido na sala “especializada” do “Jussara”, ou naquelas da Rua Conselheiro Nébias?... Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria) de Federico Fellini, Itália, 1957 Possivelmente algum psicólogo perseverante há de achar algum dia, na obra de Fellini, material bastante para a pesquisa psicanalítica da personalidade desse cineasta obcecado, certamente introvertido, numa eterna luta dentro de si mesmo, emaranhado por entre o desvario da dúvida e a alegria de reencontrar-se na exaltação criadora da obra artística pura e simples. Já escrevi isso aqui há tempos e esses conceitos me parecem sempre atuais, a cada peça que assisto do criador de “La Strada”, agora com “Le Notti di Cabiria”, a atingir o último elemento de uma trilogia muito sintomática, composta por essas duas películas citadas e mais “Il Bidone”, todas elas de certo a expressarem algo torturante para Fellini: a tragédia do homem solitário. Em “La Strada”, três são as criaturas erradias, a se repelirem por força de seus temperamentos e de seus impulsos, mas unidas como os pontos de um triângulo: “Zampano”, o rústico, “Gelsomina”, ingênua e simplória, “Il Matto”, um louco lúcido, cheio de comiseração humana. Nessa área geométrica, vivem e atraem-se mutuamente. Mas, quando um deles rompe a unidade ternária, a figura destrói-se a si própria, eliminando-se seus pontos de contato. Morto “Il Matto” acaba-se “Zampano”, muito antes de acabar-se “Gelsomina”, três criaturas distintas, solitárias, cada qual a viver um mundo todo próprio. Em “Il Bidone”, muitas são as figuras isoladas, apartadas uma das outras, mas a mover-se num meio único, o dos vigaristas. “Augusto”, entretanto, representa o isolamento comum, é “Augusto” quem sofre, castiga-se, morre sozinho, em plena luz do dia, à beira de um precipício, tal como “Zampano”, em “La Strada”, morria numa praia deserta, na sombra noturna. Finalmente, no terceiro ramo da trilogia, há, ainda e sempre, o drama de um ser isolado no seu íntimo, nos dias e nas noites de Cabíria. Que explicação subjetiva se poderia obter através da análise dessa obsessão de Fellini, tão realçada em sua obra? Ninguém sabe, ninguém se lembrou de perguntar a esse homem, que, em Roma, vive também isolado, com sua mulher, um dos tipos constantes da tripeça, “Gelsomina”, “Iris”, “Cabiria”, no apartamento tranqüilo, que, para ambos, deve ser também um mundo à parte. Pois a saga humaníssima do homem solitário desenvolve-se com exuberância e atinge seu ápice mais pungente nas noites de Cabíria. A pequena rameira, que só terá caído nos abismos dessa degradação humana por forças de circunstâncias que a intriga da fita não revela, mas sugere de leve, a velha história de sempre, a pequena rameira, em seu mundo de ingenuidade e de bondade pueril, acredita nos homens apesar de tudo, e por causa da solidão em que vive está sempre à procura de um companheiro, que a queira por si mesma, nunca pelo dinheiro, que, só Deus e ela própria, sabem a que duras penas conseguiu amealhar. Apesar de tudo, dos enganos brutais e das desilusões amaríssimas, acredita nos homens, em todos os homens. Basta por parte deles um gesto de carinho, ou de simples compreensão humana, para que Cabíria lhes volva os olhos confiantes, sem maldade ou malícia, cheios daquela pureza que só existe nos olhos da mulher quando ama, quando é mãe, ou quando é santa. Cabíria, no decorrer de sua história, passará golpes rudes, conhecerá muitos homens, quase morrerá afogada por um deles, que lhe rouba a bolsa de seu dinheiro suado e a atira nas águas sujas de um rio. Que seja, entretanto, o malandro que vive à sua custa, que só veste camisa de seda, só Cabíria sabe a que preço obtida, que seja o ator de cinema, polpudo de glória e de fortuna, que numa noite de fastio e de despeito a leva para o luxo de seu apartamento, que seja o homem do último logro, funcionário público e que parecia tão só quanto ela própria, para todos há de volver Cabíria seus olhos confiantes, sem maldade nem malícia, a troco apenas de um gesto de bondade e de compreensão humana. E quando, afinal, despojada de tudo, de sua fé, de seu dinheiro, de seu homem, Cabíria acorda, novamente sozinha, no meio de uma estrada ao crepúsculo, envolvida por um bando de adolescentes a gozar o fim de um piquenique, basta uma simples frase – “Buona notte, signorina” – pronunciada por uma dessas crianças, para que Cabíria se reencontre, a si, a sua fé, a sua crença na vida. Volverá então seus olhos comoventes para o espectador, para o público que sofreu com ela e, sem pousá-los na multidão da sala escura, há de distinguir no meio de todos, aquele que um dia talvez a queira para si, por ela própria, sem maldade e sem intuitos de iludi-la. E esse, então, será o fim das noites de Cabíria. Oito e Meio (8 ) de Federico Fellini, Itália, 1963 23 maio 1964 Parte I Quem quer tenha assistido “Oito e Meio” e, como eu, lido algo do que se publicou na Europa a respeito desse filme estranho e sobre as próprias confissões de seu autor, há de sentir a obra, já de participar da sensação de dúvida e confusão em que se envolvem as situações, no entrechoque de sua vivência no plano da realidade ou nos meandros do sonho e pesadelos. Embora Fellini pouco tenha falado sobre o seu filme, sobretudo quando este se realizava, sempre que se abriu, entretanto, se mostrou titubeante, cheio de incertezas, talvez assim vacilante de modo premeditado, como se quisesse transpor para aqui, na realidade de seu cotidiano, as dúvidas, as incertezas, as vacilações, alucinante confusão mental vivida pela personagem típica de “Oito e Meio”, esse Guido Anselmi, um reflexo em duas dimensões do físico e do espírito do próprio Fellini. Tal estado de consciência, que deve ser o desse grande criador, quando engendra e realiza seus filmes, se fazia sentir antes de iniciar “Oito e Meio”, segundo se depreende dos termos de uma excelente reportagem publicada em “Cinema 631”, de autoria de Camilla Cerderna, jornalista que acompanhou Fellini quando este procurava em Milão uma criatura capaz de interpretar o papel de “Carla”, amante de “Guido Anselmi”, na intriga do filme. Isso acontecia pouco antes de Fellini principiar a filmagem de sua película, tendo ele confessado então: “Francamente, até agora não sei por quantas ando. Resolvi realizar o filme e o farei de qualquer modo, mas tudo se apresenta como um trem a que faltam os trilhos. Imagine-se alguém que comprou sua passagem, que se põe em fila com os outros viajantes, que coloca sua bagagem no vagão e se apresta para ouvir o sinal da partida. Mas, e as rodas do comboio? Tenho uma porção de pequenos trechos escritos do meu roteiro, sim, mas tudo se transforma continuamente, eu disponho de situações em número infinito, tudo isso não basta, entretanto. Tais situações eu não consigo localizá-las, é o trabalho artesanal que me falta. E enquanto eu me atemorizo por não ser capaz de configurar esse filme, vejo-me, por outro lado, envolto pela mecânica de sua produção, que, essa sim, vai de vento em popa. De falto, muita coisa já está em plena realização. Mastroiani (ator principal) já foi contratado, e Fracassi (produtor executivo), louvando-se em minhas mentiras (“claro, dentro de três, quadro dias no máximo, o roteiro estará concluído. Não acredita? Minha palavra não basta?...”) está pronto com o planejamento da produção, a construção dos cenários já se iniciou, pois com imprecisas indicações minhas, Gherardi (cenógrafo) executou alguns belos “decórs”. Entretanto, há ainda poucos dias, quase tomei Fracassi pelo braço para lhe dizer: é melhor desistir de tudo; paciência, não faremos mais “Oito e Meio”...” A obra de Fellini apresenta-se, realmente, como algo tumultuado, pelo menos em sua aparência, desnorteante muitas vezes, ligado por uma lógica absurda, a lógica dos sonhos, em que realidade e ficção se alteram e se misturam, reminiscências da infância e eventos atuais se interligam e se engastam em cenários barrocos, ou, num contraste significativo, extremamente despojados, povoados por fantasmas, por gente de um outro século, pela fauna exótica dos estúdios e dos meios artísticos, da caterva da produção, ou pelas feras da crítica cinematográfica... Fellini não poupa ninguém, nem a ele próprio. Coloca-se no mesmo plano em que situa as demais personagens e se dá ênfase ocasional ao seu tipo, num “close up” eventual, é para, a seguir, trazer à mesma linha de aproximação, os atores secundários ou para sublinhar um episódio mais característico da ação. Oito e Meio (8 ) de Federico Fellini, Itália, 1963 24 maio 1964 Parte II Tudo em “Oito e Meio” se constrói, se desdobra, se revela, ou se narra através de uma linguagem em contraponto, sob a expressão de contracampos, numa alternância de ficção e realidade, do sonho e da vigília, sonhos antigos e sonhos recentes, recordações da infância e a vivência da fase adulta. O cenário participa da contradição e dos termos em contraposição, ora com a sua carga barroca a pesar sobre o jogo dramático dos atores, ora com o seu despojamento influindo sobre a nudez subjetiva das personagens. Nudez, em verdade, porque em todo o desenvolver da ação turbilhonante desse tema complexo Fellini não faz outra coisa senão desnudar, pela analise psicológica, toda a galeria das personagens do filme, ele próprio, seus amigos e colaboradores, os produtores da película, até os críticos poderosos e implacáveis, ou o mais humilde artesão da equipe realizadora da obra. Seqüências há e uma admirável, patética e contida composição dramática, estruturadas em elementos de decomposição alegórica, subjetivas no cenário estático, objetivas na movimentação dos tipos, soltos na intriga desordenada, presos na atualidade coletiva (como se fora uma fatia viva da massa social), ou a fundir-se na solidão individual desse homem atormentado nos abismos de sua consciência, perdido na corrente contínua de sua imaginação, largado no meio maledicente da classe profissional de que depende, a que se incrusta, mas que repele e é por ela repelido, ao mesmo tempo em que é por ela atraído. “Queria fazer um filme e nada consegui. Em ´Oito e Meio´ apresento as minhas tentativas”, teria dito Fellini, ao estrear o filme em Roma. Terá sido sincero o grande criador dessa obra singular? Ou teria sido irônico consigo próprio, numa atitude esnobe que gosta de assumir, ou em relação a um público, que, em grande maioria, não compreenderá essa obra premeditadamente desigual e contraditória? Passado, presente, futuro, tempo/espaço não contam para Fellini. Seu filme se movimenta pelo impulso adquirido inicialmente na explosão de sua lógica fragmentada e numa atmosfera, ora rarefeita, ora adensada, alcança apogeus e perigeus de êxitos e malogros, de ódio e amor, de sarcasmo e ironia, do grotesco e do patético. Em certos momentos de “Oito e Meio”, Fellini atinge os extremos de sua sensibilidade criadora e não apenas se vale de suas próprias recordações, projetadas nas da infância de sua personagem no filme, numa incrustação dramática pungente, como atualiza esse passado, na justificação de seu comportamento de adulto, quase como querendo autojustificar seus deslizes humanos em relação à sociedade em que vive, ou à mulher que ama. Assim é em todas as seqüências em que Guido Anselmi recorda fases e acontecimentos de sua meninice, provocadores, certamente, através de fenômenos catárticos, ou de fixação, de suas indecisões, dos tormentos de sua imaginação artística, a serviço de sua profissão. E na ronda grotesca da última seqüência, com o bailado burlesco de todas as personagens do drama, fantasmas acusadores do malogro de Guido, só a derradeira imagem do filme permanecerá pura, vivaz e otimista no desfilar contínuo de todas as demais: um menino de branco a tocar um pífano solitário, enquanto se esfumam as figuras da farsa, padres e palhaços, camponeses e prostitutas, um caleidoscópio humano, patético e mordaz de que, afinal, só há de restar a imagem de um menino de branco, a tocar um pífano solitário... Pacto Sinistro (Strangers on a Train) de Alfred Hitchcock, EUA, 1951 16 março 1962 Fui rever “Pacto Sinistro”, do velho Hitchcock, talvez uma de suas peças de gênero melhor realizadas. Manejando uma excelente cenarização (roteiro), um grupo escolhido de atores e um iluminador competente, levou Hitchcock sua fita ao ápice da tensão emocional, aproveitando ao máximo as situações criadas pelo enredo. E é por isso que se sente o dedo desse veterano cineasta em todos os momentos da película, até em pequenos pormenores, valorizando-os e nivelando-os num conjunto da mais alta expressão cinematográfica. Vejam-se, por exemplo, os trechos iniciais da película. Em alguns metros e poucos minutos de projeção, identificam-se as personagens pelas tomadas próximas dos pés descendo de um táxi, perambulando pela estação ferroviária, subindo ao carro “pullman” e, finalmente, cruzando-se, frente a frente, por debaixo da mesa do bar. O mesmo contra-ponto irá repetir-se mais tarde, numa situação trágica, quando os esforços do campeão de tênis se mobilizam até o auge para vencer, em poucos “sets”, o seu adversário, ao mesmo tempo em que os esforços do assassino paranóico se conjugam para reaver um isqueiro comprometedor, caído desastradamente dentro de uma “boca de lobo” urbana. Tais situações são inúmeras em todo o transcorrer de “Pacto Sinistro”, temperadas às vezes por momentos em que um humor macabro, tão grato a Hitchcock, dá um travo amargo-doce à sua peça, quando a personagem vivida por Robert Walker demonstra, a duas damas, em plena recepção em casa de um senador da República, como se pode matar em silêncio um marido muito querido... O inesperado do lance e a sugestão das imagens não só criam atmosfera de alta dramaticidade, provocadora mais de um esgar do que de um sorriso, como também mostram num relance a periculosidade mórbida da personagem, capaz de tudo, até de assassinar o próprio pai, pelas mãos de um estranho, casualmente encontrado num trem. E seriam muitos os trechos a citar. Mas não posso deixar de falar sobre aquele que descreve a morte de “Miriam”, mostrada através de um par de óculos caído ao chão, numa atmosfera de parque de diversões, ao som da música de realejo, apenas entrecortado pelo ruído sinistro de um pulmão a sufocar-se. E o desmantelamento de um carrossel, em seguida à luta de dois homens, por entre o pavor dos cavalinhos de pau, são momentos hoje raros no cinema, em que poucas vezes se terá mostrado maior sobriedade e maior dramaticidade em tão poucos metros de película. Mas, só Deus e Hitchcock sabem quanto custou tão pouco... O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte, Brasil, 1962 08 agosto 1962 Parte I Bem, aí está esse “O Pagador de Promessas”, que tanto deu de falar de si, aqui e alhures, bem e mal lá fora (certos críticos franceses não se conformaram com a concessão da Palma de Ouro à película brasileira), bem e mal aqui dentro, pois, por incrível que pareça, já se destratou “O Pagador de Promessas” em São Paulo, logo após a sessão especial dedicada à crítica, antes mesmo do Festival de Cannes. Mas isso não tem importância e o principal é o fato de haver a Palma de Ouro sido conquistada num confronto duro, imparcialmente julgado e em que se colocavam, como vencedor certos, homens como Buñuel, Bresson, Antonioni, Pietro Germi ou Otto Preminger. O mais modesto de todos, um jovem desconhecido, quase um estreante na direção cinematográfica, foi contudo o vencedor e, com a outorga do grande prêmio, talvez quisesse o júri de Cannes distinguir exatamente o mais modesto, o mais jovem, o estreante do festival, numa homenagem à sua juventude e ao cinema que ele representava, tão digno da Palma, quanto os grandes ao seu lado. Não importa, realmente, que o despeito se haja manifestado dentro e fora. “O Pagador de Promessas” não precisa desses exegetas de mau agouro, seu valor independe da opinião deles. Impressionara-me profundamente a obra de Anselmo Duarte, quando a assisti em abril último, antes de Cannes. Revi ontem, com a mesma emoção profunda, a transposição dessa peça do teatro brasileiro moderno para os quadros do cinema, brasileiro, principalmente. Cinema genuíno, original e sem imitações. Filme que, prendendo-se ao regional, ao nacional, se integra no universal e que, por ser a partícula de uma comunidade, é a célula de uma universidade. Cinema de linhas simples mas de realização tão complexa, exatamente por se relacionar a uma intriga de raízes psicológicas, sociológicas, sentimentais e telúricas tão íntimas. Mas, apesar de contar com recursos que o teatro não possui, não quis Anselmo Duarte fugir da dimensão geográfica e dramática ideada por Dias Gomes em sua peça, limitando, como num desafio toda a ação cinematográfica ao âmbito muito restrito do adro da igreja de Sta. Bárbara, palco (e esse termo vem a calhar, justíssimo) de toda a tragédia daquele homem rústico, que faz de sua promessa uma questão de honra e de dignidade. O adro de Sta. Bárbara seria assim um início e um fim. Início do cumprimento da palavra dada e fim da vida de Zé do Burro. E em redor desse pequeno mundo, a girar, como satélites, as personagens secundárias da ação, atraídas pela força centrípeta do drama interior de Zé do Burro, gerada naquele diálogo de surdos, entre ele e o padre Olavo. Um, firmado em sua fé de homem simplório, curtida ao sol do sertão. Outro, apoiado nos espeques do dogma, nas sutilezas teológicas e em seus preconceitos de seminário. A fé, a boa e ingênua fé, contra a intolerância e a incompreensão. E em redor dos dois surdos, a cidade antiga. E no cenário barroco, os festeiros de Sta. Bárbara, os capoeiras de Canjiquinha, a mãe de santo, o Galego do Boteco, as vendedoras de acarajé, o Zé Coió, o Bonitão, explorador de Marli, as beatas do pequeno submundo da Bahia, de Salvador, tão bem aproveitado por Anselmo Duarte, numa função certa e essencial na caracterização universal de sua película. Um microcosmo em que costumes, crendices, superstições ancestrais se entrechocam com a fé, o dogma, a liturgia religiosa, num sincretismo por vezes primário e agressivo. E se para alguns “O Pagador de Promessas” é um libelo contra a Igreja, creio que para muitos é uma exaltação da fé católica e da infinita tolerância de Cristo. Assim pensou o clero da Bahia, que deu a Anselmo Duarte toda a sua ajuda. Bem haja a esses padres inteligentes. O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte, Brasil, 1962 09 agosto 1962 Parte II Direção e Interpretação Em crônica de ontem, analisei o tema de “O Pagador de Promessas” e o tratamento dramático que lhe deu Anselmo Duarte no cinema, quase que limitando sua ação a um único cenário, no adro de Sta. Bárbara, onde fez evoluir a tragédia de Zé do Burro, na inutilidade de seu diálogo com padre Olavo, à frente de algumas dezenas de personagens secundárias, o povinho das ladeiras de Salvador. Propósito árduo, levado a termo, contudo, através de soluções inteligentes, não raro engenhosíssimas. Aquele longo “travelling” ascendente, desdobrado no plano inclinado das escadas de Sta. Bárbara, com a câmara a seguir padre Olavo e Zé do Burro, à luz cinzenta da manhã nascente, é um exemplo bem representado da habilidade com que se houve Anselmo Duarte e sua equipe, na execução prática dessa inventiva, realizada com tal precisão que só os enfronhados das sutilezas técnicas do ofício podem perceber a existência do artifício, sem imaginar entretanto a armação da carpintaria necessária a essa movimentação de câmara tão complexa. O efeito obtido por essa subida de escadas (a transformar-se no símbolo capital da obra, o calvário de Zé do Burro) é surpreendente e funcional, provoca no espectador a impressão de que é o cenário todo que se movimenta em torno das duas personagens, abafando-as, mantendo-as quase imobilizadas no centro dramático da cenografia barroca. Há assim, visivelmente caracterizada em “O Pagador de Promessas”, uma ânsia de criação raramente sentida antes no cinema brasileiro talvez apenas objetivada em seqüências esparsas de muitas de suas fitas, sem conseguir caracterizar-se num bloco orgânico. Sente-se esse ânimo criador a insuflar toda a película de Anselmo Duarte. Apenas num único momento abre-se uma brecha nesse bloco: quando aquele repórter sensacionalista, com a turba da televisão, entra no campo das câmaras, invadindo os degraus de Santa Bárbara com sua demagogia jornalística. Que houvesse o demagogo a perturbar, com sua presença, o espírito popular e a visão folclórica da festa pitoresca, seria admissível e funcional pela força do contraste. O que destoa, contudo, é o traço, por demais carregado de caricatura, com que Anselmo Duarte delineou sua personagem, a mais insignificante de toda a galeria de tipos de “O Pagador de Promessas”. Fora disso, não há como deixar de admirar a segurança e o “aplomb” com que Anselmo conduziu seus intérpretes nos meandros pejados de sutilezas psicológicas da representação dramática. E de que intérpretes conseguiu ele valer-se! Leonardo Vilar, primeiramente, por ser o centro de toda a intriga, numa demonstração até esbanjadora de seu talento, de sua versatilidade de ator. Sai das dimensões restritas do palco e vai lá fora enfrentar as câmaras, não raro numa tomada próxima em que vale mais o significado de um gesto, ou a centelha de um olhar, do que o fraseado do diálogo, ou a implicação da mímica. A enfrentá-lo, outro ator não menos seguro, não menos sombrio: Dionísio de Azevedo, o meu amigo Dionísio, que tanto se ressentiu, quando, há alguns anos, tive a sinceridade de, neste jornal, lhe dizer, sem rodeios, minha opinião sobre a fita que ele realizara então.Dionísio, por essa época, andava emperrado na falsa estética de um teatro de televisão que se dizia de vanguarda. Mas soube libertar-se dele, a crise passou e Dionísio pode aparecer como, em verdade sempre foi, o ator genuíno que é, com aquela humildade artística que tanto admirei, ou no teatro (“A Morte do Caixeiro Viajante”), ou no cinema (“A Primeira Missa”). Agora aí está ele em “O Pagador de Promessas”, em “Padre Olavo”, papel tão difícil quanto o de “Zé do Burro”, ao lado de Leonardo Vilar, na mesma linha emotiva e humana, sem nunca se apartarem ambos da austeridade de suas funções. E há que falar de Glória Menezes, de Norma Benguel, de Geraldo D´El Rey, de Roberto Ferreira, de todo aquele elenco secundário e humilde que dignifica a película de Anselmo Duarte. Mas isso ficará para outra oportunidade. O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte, Brasil, 1962 10 agosto 1962 Parte III Comentários finais Não tenho dúvidas de que um dos grandes fatores do êxito de “O Pagador de Promessas” em Cannes foi a absoluta originalidade de seu tema, de sua cenografia exterior, do aproveitamento do folclore riquíssimo da Bahia e, só mais remotamente, o da interpretação de todos os atores. A arte dramática na Europa chegou a tal refinamento que um ator de fora, um ator sem a formação profissional (e só Deus sabe quão complexo e árduo é esse aprendizado), adquirida em escolas especializadas, em academias dramáticas e no aperfeiçoamento com grandes professores, dificilmente há de impressionar um júri, num festival internacional, em Cannes, em Veneza, em Berlim, em Edimburgo ou em Locarno. Acredito, pois, mais no fator da originalidade do tema, do cenário barroco baiano, do aproveitamento folclórico com que se armou a película de Anselmo Duarte (e na sua criação pessoal, está claro) a ter certamente uma extraordinária influência no júri de Cannes, do que na possível contribuição dos intérpretes de “O Pagador de Promessas” na conquista da Palma de Ouro. É evidente que essa interpretação teve o seu peso no conjunto criador da película, mas não foi, a meu ver, o fator decisivo da vitória. Ninguém, contudo, há de esquecer a figura patética de Leonardo Vilar, o vulto torturado de Dionísio de Azevedo, o rosto conformado de Glória Meneses, a extrema vitalidade de Norma Benguel, a contenção dramática de Geraldo D´El Rey, o talento histriônico e chaplinesco de Roberto Ferreira, aquele sinceríssimo “Zé Coió”, e a intuição dramática de todo o elenco secundário de “O Pagador”, em que se sobressai a sensibilidade de Gilberto Marques (o “Galego”), de Antonio L. Sampaio (“Pitanga”), de Milton Gaúcho (o guarda), de Maria Conceição (a “Tia”) e a da turma dos capoeiras de Canjiquinha. Glória Meneses é realmente uma grande esperança (sua estréia em “O Pagador” já é mesmo uma certeza), desde que tenha a sorte de encontrar em suas próximas criações um diretor de elenco que, como Anselmo Duarte, saiba o que quer. O mesmo se dirá de Norma Benguel, irreconhecível em “O Pagador”, totalmente diversa daquela atriz apática e passiva de “Os Cafajestes”, a demonstrar, em toda cena em que aparece, de quanto é capaz numa interpretação dramática verdadeira e sincera. Geraldo D´El Rey, que vi apagado e apático também em “Bahia de Todos os Santos”, de Trigueirinho Neto, ressuscita-se em “O Pagador” no papel dificílimo de “Bonitão”, sobriamente vivido, sem os exageros e a demagogia próprios do tipo que interpreta. Na mesma linha de contenção se coloca Antonio L. Sampaio, “Pitanga”, que também em “Bahia de Todos os Santos” pouco se distinguiu (quanto vale um diretor que saiba sofrer o papel de seus intérpretes, que saiba orientá-los nos meandros perigosos da dramaturgia cinematográfica). Enfim, “O Pagador de Promessas” se apresentou dentro e fora do Brasil como uma película mais completa, técnica e artisticamente, que até hoje se fez neste país. Nenhum setor de sua criação foi menosprezado, desde o da esplêndida fotografia de Chick Fowle, um dos trabalhos mais importantes de seu currículo brasileiro, até o acabamento da película, obra de montagem e de edição digna de grandes mestres (a Carlos Coimbra pertence esse setor, que ele soube valorizar com a sua competência, seu espírito de equipe e seu ânimo de criador). Finalmente os louvores ao trabalho do grupo da Rex Filme, laboratórios que se encarregaram do tratamento de “O Pagador”, e a Osvaldo Massaini, o produtor corajoso que soube acreditar em Dias Gomes, em Anselmo Duarte e na vitalidade admirável do cinema brasileiro. A todos o meu aplauso comovido e sincero. A Ponte do Destino (Across the Bridge) de Ken Annakin, Inglaterra, 1957 02 fevereiro 1961 Em toda a sua literatura, talvez seja esta novela de Graham Greene – “Across the Bridge” – a que melhor se adaptou à linguagem dinâmica do cinema, dentro daquele jogo de paradoxos e contradições, tão caro a esse escritor amante de sarcasmos e ironias, a manejar suas personagens em meio de eventos ambíguos e expectantes, como se fora, ele próprio, um deus humorista a rir-se lá de cima das esquisitas situações que provoca entre os homens aqui embaixo. Sua linha dramática sempre se orientou nesse sentido e, em todas as películas oriundas de seus livros, há a predominância do jogo de antítese, a gerar sofrimentos, a fomentar ódios, a criar angústias e tensas expectativas. “A Ponte do Destino” é uma película típica de Graham Greene e, diga-se desde já, uma peça excelentemente realizada, que há muito não se assistia no cinema inglês, nesse gênero tão caro a seus criadores maiores, Hitchcock inclusive, nesse misto de filme policial e de análise psicológica. Em “A Ponte do Destino”, conservaram-se fielmente as características do estilo e das intenções do escritor inglês, integrando-se o diretor do filme, ao espírito mordaz de Graham Greene e à atmosfera dramática e documentária própria do cinema britânico. Quase toda a peça foi realizada na Inglaterra, nos estúdios de Pinewood, estando perfeitamente ambientados os cenários do filme, cuja ação ora transcorre em território norte-americano, ora em ruas e interiores de uma pequena cidade da fronteira do México. Mas, é o lado humano que mais interessa nesta película inglesa, perfeitamente enquadrada numa técnica excelente, sob forma e dinâmica eminentemente cinematográficas. O drama do financista, do estelionatário fugitivo (há quase sempre um fugitivo na ficção de Graham Greene), possuidor de milhões e que com o seu amor ao dinheiro não pôde comprar sua liberdade e sua tranqüilidade, encontra nesta “A Ponte do Destino” o quadro expressivo para desenvolver-se, numa fuga contínua e esquiva, em linhas retas ou ondulantes, ora a quebrar-se aqui, reatando-se mais adiante, ora a traçar-se ininterruptamente até de novo arremeter contra novos e imprevistos obstáculos, quando então tem de recompor-se e assim sucessivamente, atingindo afinal seu ponto último em outra linha, essa a barrar a fuga, na ponte internacional, a linha da fronteira, posta entre o México e os Estados Unidos. A película está otimamente interpretada, com Rod Steiger sobriamente contido, sem os exageros histriônicos do “Actor’s Studio”, bem adaptado à escola naturalista do cinema inglês. Mas, a seu lado, há outra intérprete que é preciso destacar: “Dolores”, uma pequena cadela “spaniel”, que só falta falar. Rod Steiger e “Dolores” são realmente os intérpretes maiores, o homem vivendo o seu drama de homem solitário (e há sempre um homem só na obra de Graham Greene), o animal participando desse drama com o seu próprio drama, também o drama de um ser solitário. A Primeira Missa de Lima Barreto, Brasil, 1960 junho de 1961 Maio último viu passar pelas telas paulistanas a mui esperada película “A Primeira Missa”, que Lima Barreto, seu criador, vinha preparando e depois realizando, por conta e risco da Cinematográfica Campos Elíseos. Segui intensamente a preparação liminar, a realização a seguir, acompanhando de perto o trabalho do autor de “O Cangaceiro”, pois tudo quanto faz Lima Barreto no cinema ou fora dele é para mim motivo de alto interesse e pretexto para com ele debater problemas do cinema em geral, do cinema brasileiro em particular. Apesar disso, sempre me sinto desgarrado de qualquer vínculo sentimental ao tratar da obra de Lima Barreto, com quem sou de uma severidade sem freios, justamente por se tratar do cineasta experimentado e inteligente que é e não do estreante da criação cinematográfica, esse sim, a merecer indulgências, senão mesmo remissão de todos os pecados. Lima Barreto não precisa mais de benevolências. Carece agora de uma crítica imparcial, dura e penetrante quando for o caso, eis que sua obra, vasta e versátil no cinema documentário primeiramente, mais reduzida, mas de repercussão internacional quanto ao cinema dramático, exige se escreva sobre suas películas com o rigor que sua importância impõe, toda vez que numa sala escura se projete algo assinado por ele. “A Primeira Missa” aí esteve nas salas escuras de São Paulo. E talvez por haver sido muito esperada, constituiu-se essa peça romântica do criador de Galdino num decepcionante espetáculo; a fazer que o próprio público a quem se destinava “A Primeira Missa” saísse das casas de espetáculo onde se exibia a fita sem aquele sentimento de entusiasmo que contribui para a melhor propaganda de uma película, a propaganda oral, transmitida de boca em boca, da porta dos cinemas às residências de cada espectador, a se difundir com a rapidez de uma gota de azeite caída sobre uma toalha de linho. Diga-se, contudo, desde já, que “A Primeira Missa” não é uma película ruim. É apenas uma película do meio-termo, o que, em se tratando de Lima Barreto, se torna realmente uma decepção. Mas, antes de tudo, “A Primeira Missa”, apesar de toda a sua paciente preparação intelectual, é uma peça pouco trabalhada. E se Lima Barreto, nas primeiras seqüências de sua fita, acertou em cheio – todo o trecho da infância de Bentinho –, já nas últimas deixa-se levar por uma demagogia sentimental que acabou por enredá-lo e o levou a perder-se no seu turbilhão dramático, prejudicando sua fita e comprometendo seu cinema. E se nas seqüências iniciais se houve ele com um ótimo cinema, aquele cinema de um Lima Barreto lúcido, aquele cinema vindo de quem sabe o que quer, nas finais, desgraçadamente, houve apenas algo de melodramático um tanto pueril e pouco inspirado, com soluções fáceis, com caracterização falsa, com situações convencionais, uma interpretação facciosa, por vezes a desandar pela caricatura simplória (as cenas da quermesse, com um Luciano Gregory insuportável, um “Luar do Sertão” intolerável, um leilão de roça a servir de símbolo de transição de tempo, sem funcionalidade) e concessões transigentes (o horror de Mestre Zuza a bater no peito num insustentável “mea culpa”) incompatíveis num homem intransigente como Lima Barreto, cineasta de alta inteligência, inegavelmente um ótimo diretor de elenco (o que conseguiu ele do menino José Mariano Filho, no papel de Bentinho é algo que roça pelo milagre). Por outro lado, não conhecendo a novela de Nair Lacerda, que serviu de base e inspiração para “A Primeira Missa”, não sei até que ponto o autor de “O Cangaceiro” se tomou de liberdades para adaptar a peça literária à tela. Creio, contudo, que Lima Barreto usou e abusou em sua adaptação, em sua realização sobretudo, fazendo da novela uma outra novela, esta numa linguagem de cinema, por vezes gongórico, enfático e até redundante. É isso, justamente, o que mais recrimino em “A Primeira Missa”, em sua versão definitiva. Os enxertos, as interpolações, as seqüências por demais esticadas, ou excessivamente cortadas, fizeram da película uma obra fragmentada, não raro gratuitamente artificiosa. Não há uma estrutura narrativa uniforme e compacta, como seria de esperar de um Lima Barreto, com toda a experiência e a fruição de todas as lições proporcionadas por “O Cangaceiro”. Há somente fragmentos, alguns excelentes, de uma obra ótima, trechos dignos de uma antologia do cinema brasileiro, mas perdidos nessa peça desigual. E há ainda uma agravante: seqüências inteiras foram suprimidas na edição definitiva da fita, umas das quais hei de lamentar sempre a omissão: a do velório de “Nhô Tonico”, quando uma pretinha de Remanso, que certamente em sua existência humilde só vira velas acesas em bolo de aniversário, ao entrar no quarto em que jazia Tonico entre os quatro círios tradicionais, entoa o “parabéns a você”, sob o ritmo alegre das palmas e dos gestos com as mãozinhas ingênuas...Pois esse momento de excepcional inspiração cinematográfica, que eu vi no copião grosso de “A Primeira Missa”, foi impiedosa e inexplicavelmente podado da versão definitiva. Outras cenas foram também suprimidas, quando poderiam ter sido apenas encurtadas, algumas, em compensação, foram encurtadas em demasia, daí talvez a origem desse ritmo torto, desse aspecto desigual da película de Lima Barreto. Desigual, em verdade, ora a denunciar um Lima Barreto legítimo, apurado e romântico, ora um Lima Barreto grandiloqüente, até primário cinematograficamente. Genuíno, cheio de ternura, lá está o velho Lima, jogando apenas com Bentinho e Mestre Zuza (admiravelmente interpretado por Dionísio de Azevedo). Enfático, ou simplesmente caricatural, aí está um Lima Barreto falsificado, resolvendo situações ou frases de sua narrativa em fusões sem função, ou em movimentos de câmara na construção de símbolos ou alegorias, há muito superados, ou pobremente imaginados. Desigual sim, até mesmo na formalística litúrgica do catolicismo, com Lima Barreto, tal como o fizera com a novela de Nair Lacerda, se tomando de liberdades com o ritual das cerimônias religiosas, como foi o caso do ritual da “primeira missa” de Bentinho, aquele entra e sai de oficiantes no altar mor da igreja de Remanso, lance cinematográfico assim realizado somente com o fito de criar expectativa emocional em “Nhá Colaquinha”, à espera da aparição do filho no altar, e, evidentemente, no público, à espera também da personagem na tela. Por outro lado, há certas incongruências imperdoá­veis na estrutura dramática da fita. Por exemplo: não é admissível que um seminarista formado, se lance num curso superior de extensão cultural e de doutorado em Teologia, sem haver rezado sua primeira missa, como o óbvio. Pois, Bentinho, não só passou toda sua infância, depois sua adolescência, a seguir parte de sua idade adulta sem uma vez sequer visitar sua mãe em Remanso (o que seria uma desumanidade por parte das autoridades eclesiásticas, que não fariam isso em nenhuma hipótese), como também Bentinho, já sacerdote formado, se foi para a Universidade de Louvain, lá se doutorou, sem haver rezado uma única missa, reservando essa cerimônia, que seria, quero crer, uma espécie de “colação de grau” da carreira sacerdotal, para oficiá-la em Remanso, tudo por obra e graça de Lima Barreto, um cineasta a se achar cercado por conselheiros, sacerdotes eruditos, sem dúvida. Não os culpo, contudo, levo tudo à conta do diretor da fita, às vezes teimoso e intransigente em suas realizações. Mas, se “A Primeira Missa” se produziu primordialmente, tendo em vista narrar a história de uma vocação, se a Igreja tinha todo interesse em reconstituir nessa história uma realidade essencial e espiritual, por que haveria Lima Barreto de falsear essa realidade e a Igreja de permitir o desvirtuamento de suas próprias liturgias? E que dizer de Mestre Zuza, quando se propõe preparar Bentinho para o seminário? Então preparar um menino humilde, semi-alfabetizado, é papaguear erudição, é explicar-lhe as teses da Summa Theologica, é integrá-lo no pensamento tomista? Não teria sido melhor haver ensinado a Bentinho a declinação de “Rosa-ae” e deixar São Tomás sossegado? Perdido nesse “imbróglio” litúrgico, nesse emaranhamento dramático, Lima Barreto deixou escapar a única oportunidade que já teve de realizar uma obra-prima completa no cinema brasileiro. Sua fita, se posta sob a luz da atualidade de nosso cinema, é apenas uma boa fita. Se colocada sob a dinâmica do cinema universal é uma peça francamente ruim. Fragmentária e dispersiva, salvam-se retalhos de “A Primeira Missa”, com interpretação em geral muito boa, fotografia de Chick Fowle fora do comum, música de Gabriel Migliori também a seguir o bom nível técnico da película. Que as boas graças da madrinha de Bentinho alcancem também Lima Barreto e o ajudem daqui por diante a mudar de caminho. Atitudes esparramadas e trabalho com olhos fitos em prêmios e honrarias só podem trazer doestos e angústias. Humildade perante a grandeza do Cinema e modéstia perante a obra humana é o que deve agora contar. Agora e sempre, amém! Revista Anhembi O Príncipe Encantado (The Prince and the Showgirl) de Laurence Olivier, Inglaterra/EUA, 1957 09 julho 1958 Depois de haver demonstrado convincentemente de como se deve manobrar para agarrar-se um milionário, no cinema norte-americano, Marilyn Monroe reaparece agora empunhando outro corolário, que se propõe demonstrar também, desta feita no cinema inglês: como agarrar um príncipe legítimo, a reinar numa região qualquer dos Bálcãs. Cansada, talvez, de tanto rebolar-se, por obrigação e força contratual, farta possivelmente das glórias de seu campeão de “baseball”, grosseiro e chucro, Marilyn não pestanejou: tratou dos estatutos de nova sociedade conjugal, paragrafando-os com Arthur Miller – o excomungado do macarthismo – e de posse dessa carta constitucional, foi tentar vida nova em sua carreira dramática na Inglaterra, ao lado de um dos maiores intérpretes de Shakespeare, no cinema e no teatro – Laurence Olivier. Desse conúbio artístico nasceu o “O Príncipe Encantado”. Pois, ali estão, perfeitamente comprovados, dois fatos novos: a direção de Olivier, derivando dos mares caudalosos da tragédia shakespeariana e a bifurcar para as águas mais amenas da comédia satírica; e a experiência de Marilyn Monroe, menosprezando alguns milhões de devotados admiradores, de todas as idades, e de quem se tornara a “pin up” preferida, para, em outras plagas, tentar a comédia dramática, gênero por que se sentia irresistivelmente atraída. Ambas as experiências se conjugaram perfeitamente nessa película engraçada, tão bem e sobriamente levada a cabo por Olivier, que ao lado de Marilyn, interpreta-a a seu modo, isto é, num estilo clássico, quase litúrgico, naquele seu ritual costumeiro, estigmatizado em suas criações no cinema desde “Henrique V” até “Ricardo III”. Evidentemente, a distância é longa, no espaço e no tempo, entre Shakespeare e Terence Rattingan, autor da peça e do argumento cinematográfico de “The Prince and the Showgirl”, e na afirmação anterior não vai o menor intento de equiparar o comediógrafo moderno, com o bardo antigo. Laurence Olivier, entretanto, soube aproximá-los discretamente, dentro da dignidade da dramaturgia, nivelando-os na correção de sua “cineturgia”, seja-me permitida a expressão. Sentem-se, assim, na comédia satírica de agora, o estilo tão pessoal, o criador, o intérprete das tragédias apaixonadas do poeta do Avon. E nem Shakespeare se sentiu diminuído com isso, nem a Terence Rattingan será licito envaidecer-se com o fato, todo o mérito cabendo a Olivier, na verdade, um dos homens mais inteligentes do cinema e do teatro contemporâneos. O tema de “O Príncipe Encantado” não é novo, nem no teatro, nem no cinema. O “vaudeville” e a opereta exploraram-no até exaustão no palco e, na tela, não faltaram também os seus aproveitadores, Ernst Lubitsch, notadamente. Mas a fita de Olivier não é “vaudeville”, não é opereta, nem muito menos poderá ser aproximada de qualquer das fitas de Lubitsch. Este último realizador costumava impor às suas películas um “toque” de malícia, mais do que sátira, um sinete mais latino, do que saxônico. Olivier, não. Sua formação cultural e suas origens essencialmente britânicas conduziram-no diretamente da crítica de costumes à sátira, ao sarcasmo e à ironia, tendências espirituais, que os ingleses cultivam reverentemente e de que sua literatura se fez um espelho cheio de reflexos. A sua interpretação do regente balcânico está mais próxima de um príncipe de Gales, do que, em verdade, de qualquer príncipe do Danúbio. O regente é ferino, fleugmático e irônico até as raias da crueldade, como todo bom “gentleman” dos princípios do século. Só a ingenuidade, a sinceridade, a bondade de coração da corista bonita e plebéia enfrentariam com sucesso a insolência desse regente dos Bálcãs, mas tão britânico, sob a pele de Laurence Olivier. Desse contraste entre os dois intérpretes – a arrogância de Olivier e a beleza simples de Marilyn Monroe – nasce o encanto maior desse “O Príncipe Encantado”, que é toda uma corrente, fluida e contínua, de seqüencias e cenas de encantadora e oculta malícia. É sob a ponta amável, mas aguçada, de seu espírito, que Olivier vergasta a nobreza, a tradição, os costumes, a inquebrantável etiqueta das cortes européias, da inglesa principalmente. Quando o príncipe condecora a corista com uma ordem de segunda classe, mas muito mais vistosa do que qualquer outra de primeira, fica-se a pensar como se condecoraria uma Eva Perón, por exemplo, se a corte britânica se visse enredada em tal alternativa diplomática... E ao sair a pobre corista do palácio, com as jóias e os “souvenirs” conquistados por essa dama de um só dia, abrigada agora no seu impermeável humilde, em substituição à capa de arminho que envergara na véspera, imaginam-se facilmente todas as gatas borralheiras, da fábula e da realidade, que viveram neste e em outros séculos com as glórias dos reis e o escárnio das multidões, a arrastá-las, depois, nas sarjetas de todas as revoluções. Quando Fala o Coração (Spellbound) de Alfred Hitchcock, EUA, 1945 05 julho 1946 Por várias vezes tem tentado penetrar o cinema norte-americano nesse mundo de sonhos e recalques, do consciente e do subconsciente do libido e do complexo: o mundo da psicanálise. E malogro total quase sempre tem resultado dessas tentativas, não raro a adernar para um ridículo sem apelação, abalroando a realidade em situações falsas e pueris, sem qualquer consistência, como, por exemplo, “A mulher que não sabia amar” (“Lady in the dark”), em que Ginger Rogers desperdiçou o seu talento e o “tecnicolor” a paleta de seus matizes. O tema, em verdade, atraente e apaixonante, não comporta meio-termo; ou proporciona elementos da mais alta qualidade, tanto para um diretor de cena sutil e, principalmente, culto como a burilação de efeitos especiais de fotografia, cujos técnicos, bem enfronhados no assunto, têm, nos meandros do inconsciente as mais fantasmagóricas arestas por onde se agarrar a composição analítica de seus quadros; ou acomoda tudo isso e possibilita uma obra de arte, de puro cinema, ou descamba a experiência para um fracasso absoluto, como, até agora, em geral, tem acontecido. Que nos lembremos, um diretor apenas realizou qualquer coisa nesse sentido, ainda que não haja baseado o tema de seu trabalho na psicanálise tão-somente: Curtis Benhardt, em “Conflitos d’alma”, esse refugiado alemão, que se revelou plenamente nos estúdios da Warner Brothers aflorou naquela fila, a tese absorvente, havendo obtido notáveis resultados na demonstração cinematográfica dos processos interiores da mente de um psicopata. Alfred Hitchcock não tentara ainda a aventura. Lançou-se, finalmente por esse caminho cheio de abrolhos, mas tê-lo munido de todas as precauções contra o inimigo escorregadio – o ridículo -, a espreitar sua vítima, pronto para o bote oportuno, em cada fase da realização de tais temas no cinema. Cercou-se de conselheiros, técnicos, de psiquiatra, de habilíssimo cenarista, de artistas de alta sensibilidade, de fotógrafo mestre em sua arte, de notável diretor artístico e, até, de um pintor moderno, pois talvez só a pintura, a surrealista, principalmente, poderia objetivar, de modo preciso, a abstração do mundo dos sonhos. Pois Hitchcock ultrapassou qualquer previsão; o que, para muitos, poderia ter parecido irrealizável, para esse diretor britânico a tese se transformou numa vivíssima dramatização, glosada com tal pureza e simplicidade, que os estados de consciência por ele descritos vêm cá fora, desprendem-se da tela numa terceira dimensão, peneiram na mente do espectador, fazendo com que ele, dali por diante, participe da luta e do sofrimento naquele emaranhado mórbido, de ação por vezes violentíssima, em torno do qual gravitam a fé e a paixão inacabáveis, comoventes, da “Dra. Constance” pelo pobre e esquálido “J.B.”. Só grandes mestres em cinema e de arte em geral poderiam realizar uma película do valor excepcional dessa “Spellbound” – titulo originário, a significar “encantamento, palavras mágicas”, que o tradutor comodista verteu para “Quando fala o coração”. Grandes mestres como Alfred Hitchcock, na direção de cena, James Basevi, na direção artística, Ben Hecht, o cenarista, Salvador Dalí, o surrealista catalão, autor dos desenhos descritivos do sonho do pseudo “dr. Edwardes”, um dos mais loucos e notáveis momentos que o cinema tem alcançado: George Barnes, o mago da fotografia, que ultrapassou a sua técnica, toda própria, na perfeição daqueles impossíveis efeitos que logrou atingir nas seqüências de “Quando fala o coração” (veja-se, entre outros, o primor da cena tomada através de um copo de leite a mergulhar, gole a gole, o consciente de “J.B.” na brancura do nada; a visão interior, no intimo do “dr. Edwardes”, do processo psicológico provocado pelo primeiro beijo trocado entre ele e a “Dra. Constance”; a penúltima cena da fita, aquele realíssimo suicídio, aquele tiro desfechado, à queima-roupa, no coração do próprio espectador, num clarão avermelhado tomando instantaneamente a tela toda, a concepção mais arrojada de um tiro de revólver, jamais realizada no cinema.) O elenco esteve à altura dos executores: Ingrid Bergman, num dos melhores desempenhos de sua carreira; Gregory Peck, a sobriedade personificada, na expressão de um dificílimo papel; Michael Chekhov, - uma autoridade em matéria de teatro americano e europeu, sobrinho do grande dramaturgo Anton Chekhov -, pela primeira vez, na tela, personifica um psicanalista que desta feita convence, em verdade; Rhonda Flemming faz a sua estréia nessa fita, na pele de uma neurótica e fá-lo expressivamente. Os demais participantes seguem essa linha de alta qualidade dramática, um conjunto unido, sem restrições, numa obra de puro, de puríssimo cinema. Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot) de Billy Wilder, EUA, 1959 03 dezembro 1959 A esta película de Billy Wilder – “Some Like it Hot” – os franceses a chamariam certamente de loufoque (lunática,maluca), tais os desatinos que nela se cometem e a lógica do absurdo que em seu argumento se desenvolve. No Brasil, para muitos, a comédia será apenas uma variante da “hora da saudade”, transposta para o cinema e destinada a trazer à tona da memória as lembranças cinematográficas dos tempos antigos, da época em que Al Capone reinava absoluto em Chicago e Hollywood dele e de seus homens se aproveitava para explorar nas telas as conseqüências da “proibição” e as aventuras das “gangs” organizadas. Para mim, contudo, “Quanto mais quente melhor” é um misto disso tudo, tratado numa saborosíssima comédia, pontuada de sátira ao próprio cinema, não apenas aquele em que Mack Sennett apresentava suas “bathing beauties”, senão também o de Howard Hawks, valendo-se das façanhas dos “gangsters” para denunciar nas telas a corrupção pelo poder trazida nos rastros de uma lei puritana e reacionária – a lei da Proibição – mais danosa para a grande nação norte-americana, do que os efeitos do álcool que pretendia suprimir. Com tais elementos, Billy Wilder realizou sua “Some Like it Hot”, tudo a se prestar para uma dessas sátiras que ele, mais do que qualquer outro, compõe com perfeição. De fato, a moda de 1929 (tão grotesca então, quanto ridícula a de hoje, que procura imitar a daquele tempo), os feitos “gloriosos” dos “gangsters” e os tipos inigualáveis de suas quadrilhas, os estilos e as tendências cinematográficas da década dos anos vinte transportados para o cinema da era atômica, de alta fidelidade eletrônica, tudo haveria de resultar, por absurdo, no mesmo efeito que um mosqueteiro desbragado produziria num convento, ao tempo do fogo da Inquisição. Esses efeitos de surpresa, Billy Wilder soube tirar do argumento de sua comédia, transformando-os em “gags” irresistíveis, pelo contraste de seu tratamento: o estilo cinematográfico de 1929, desenvolvido com a técnica aperfeiçoadíssima e os recursos infinitos do cinema de 1959. E para que tudo se cobrisse de um verniz de autenticidade, desdenhou Billy Wilder a cor e o cinemascópio, elementos característicos do cinema moderno, para adotar uma fotografia em branco e preto cuidadíssima, nas dimensões antigas, elementos próprios do cinema de então. E no seu elenco fez figurar nomes de velhos atores, numa rememoração dos velhos tempos também: George Raft, Joe E. Brown, George E. Stone, Pat O’ Brien e outros de feições características, especializados na interpretação de tipos representativos das antigas quadrilhas de Chicago, Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon se encarregam dos papéis principais. Não será preciso dizer que se comportam com a inteligência e a sensibilidade costumeira, nessa fita desempenhando papéis e vivendo situações totalmente opostas àqueles que rotineiramente lhe são confiados. Um espetáculo inteligente e divertido, poucas vezes visto nestas últimas temporadas. Romance na Itália (Viaggio In Itália) de Roberto Rossellini, Itália/França, 1953 25 novembro 1957 De uma dramática ironia se reveste a exibição em São Paulo de “Romance na Itália”, de Roberto Rossellini, pouco tempo depois de ser conhecida a separação de Ingrid Bergman desse cineasta italiano, a realidade, como sempre, ultrapassando, de muito, os limites da simples ficção. Ao tempo em que foi realizada a fita, Rossellini e a bela atriz sueca vivem serenamente a história de amor, iniciada, poucos anos antes, nas encostas do Stromboli. Em Nápoles se desenvolve “Viaggio in Italia”, nessa cidade de estranha plástica, em cuja atmosfera paira um sentimento realista, imediato e profundo, o sentimento da vida eterna, conforme o próprio Rossellini descreveu o ambiente de sua película. Nápoles e seus “lazzaroni” espertos, as “scunizzas” de grandes olhos negros e álacres de seus becos e vielas, os seus museus eternos, Miguel Ângelo, ou o escultor cujo nome os séculos tornaram desconhecido, as catacumbas, iluminadas pela chama de centenas de velas, lâmpadas votivas comoventes, que a superstição e a bondade inata do napolitano por ali dispuseram, em memória de uma criatura morta há mais de mil anos, Capri bem defronte, o Vesúvio lá ao longe, Herculanum e Pompéia acolá, eis a paisagem antiqüíssima a envolver, um casal de ingleses, tocado por aquela mútua indiferença surdida de vidas malogradas. Mas, cada canto de Nápoles, impregnado de misteriosos sortilégios, estranhos eflúvios deixados pela tradição dos muitos conquistadores da antiga cidadela, começa a soprar o seu calor na alma de ambos, tão fria e imune aparentemente à influência desse meio sentimental. Cada elemento dessa paisagem contribui para a transformação dos dois seres que se amam secretamente: os ingênuos oratórios das ruas, as mulheres grávidas em peregrinação por certos recantos da cidade velha, as estátuas dos museus, os ossos das catacumbas, o comovente despertar dos mortos de Pompéia, retornando à forma e à posição em que foram surpreendidos em suas casas, nas ruas, nos banhos, subitamente cobertos e sufocados pela chuva de cinzas e a onda de gases cuspida pela montanha terrível e impiedosa, tudo é um símbolo de esperança, um sinete revelador, uma contribuição para o retorno aos verdes anos, ao amor antigo, que incompreensões e orgulhos mal feridos atingiram profundamente. Rossellini conta essa história com a sua sutileza característica, abrindo, uma vez mais, o mundo introspectivo de suas personagens, para uma análise psicológica, mais sentida num olhar, num movimento dos atores ou de câmara, do que cruamente exposta à vista ou à perspicácia do espectador. Entretanto, embora narrada subjetivamente, eis a fita de Rossellini que mais se ajusta aos princípios da escola de que foi um dos mais ilustres fundadores – o neo-realismo, princípios para ele, aliás, a constituírem uma posição moral, antes de se tornar uma posição estética. Mas, “Viaggio in Italia” será talvez uma posição estética, antes de ser uma posição moral. Abrindo novas perspectivas à linguagem do cinema, descobre novos aspectos de sua paisagem infinita. Numa obra de tal envergadura, a dotar a tela de uma terceira dimensão, que não vem de nenhuma técnica atual, sem cinemascópio para rasgar grandes amplitudes, apenas emergida da inteligência e da sensibilidade desse grande cineasta, nessa película excepcional, não há pormenores nem supérfluos. Tudo nela é essencial. O Hércules de Miguel Ângelo ou o casal de pompeanos, despertado do seu sono milenar sob o ímpeto de uma instilação de gesso, para acordar a consciência de dois entes que se amam neste século, tal e qual se amavam o patrício ou o plebeu na antigüidade dos gregos e dos romanos. Milagre napolitano, milagre de “San Gennaro”, milagre de Rossellini, numa época tão avessa aos milagres. Milagres do cinema, simplesmente. Seduzida e Abandonada (Sedotta e Abbandonatta) de Pietro Germi, Itália/França, 1964 26 março 1965 Em verdade, esta “Seduzida e Abandonada” é uma seqüela imediata de “Divórcio à Italiana”, obra do mesmo realizador, Pietro Germi, com alguns dos atores que participaram do elenco daquele filme em 1962, a transcorrer até no mesmo cenário na Sicília, a província italiana cujos costumes e tradições têm servido de tema na obra naturalista de tantos realizadores do cinema peninsular. Ao tempo de “Divórcio à Italiana”, escrevi aqui a respeito de Pietro Germi: “Com esta sua ‘Divórcio à Italiana’, Pietro Germi despoja-se inteiramente de qualquer escrúpulo, de qualquer censura subjacente, numa comédia de crítica por fora, numa tragédia burguesa por dentro. Peça tragicômica, se quiser, para mim uma obra amarga implacável e sarcástica, mas capaz de provocar um ricto de saturação do que um sorriso de satisfação. Desta feita, ninguém escapa do olho ferino e mordaz de Pietro Germi. Toma ele de uma comunidade provinciana, disseca-a primeiramente e a reduz a lâminas, expondo-a depois aos olhos do espectador com crueza impiedosa e ampliada ainda pelas lentes de fundo alcance de sua câmara. As lâminas se vão renovando na tela, na proporção em que se desdobra a dramaturgia cinematográfica, dentro de quadros próprios, do cenário rococó, em que todos os recursos do cinema são válidos, mesmo os do cinema mudo, até os de um cinema surrealista, até os de uma música gongórica como a de uma ópera, ou como a eloqüência retórica de um tribuno da plebe.” Pois bem, eis que retorna o diretor ao cenário provinciano, com o mesmo ímpeto anterior, com fúria redobrada agora, não apenas sarcástica e ferina, mas francamente caricatural e impiedosamente demolidor. Não satisfeito de haver satirizado em “Divórcio à Italiana”, uma aristocracia decadente de grandeza só restante no brasão esculpido em pedra carcomida, à porta das mansões quase em ruínas, Pietro Germi arremete agora contra a burguesia, classe eterna, que não desaparecerá nunca. Agora é a vez do chefe de clã, intransigente em matéria de honra familiar, prepotente e grosseiro, capaz de moer de pancada a filha que prevaricou e perverteu-se e que para salvaguardar as aparências cometerá os atos mais prosaicos e brutais, por meio de subterfúgios, evasivas e barganhas. Pietro Germi se compraz nesses impulsos furiosos e furiosamente arrasa tudo. Numa turbulência raramente vista em cinema, teatro ou literatura, vai às últimas conseqüências de um ato, esmiúça um comportamento no que possa ter de mais íntimo, analisa uma situação individual ou coletiva em seus traços mais ásperos, em sua índole mais rude. Por isso, seu filme, por vezes, se apresenta irreverentemente chocante e até repulsivo. Mas, em muitas seqüências, assume proporções patéticas, como a da morte do chefe da família, algo tão bem descrito, tão dramaticamente observado, quanto “La Mort du Père”, narrada em “Les Thibauds”, de Roger Martin du Gard, páginas eternas da literatura universal, fragmento cinematográfico digno de uma antologia. E o final do filme, a pedra tumular com sua divisa tribal – “Onore e Famiglia” – é ainda uma última e mordaz tirada de Germi às gentes e costumes da Sicília, pequeno microcosmo da grande aventura humana no Mediterrâneo, que, com pequenas derivações, tanto poderia viver-se ali, quanto no Atlântico ou no Pacífico. Ao assistir ao espetáculo, tive a impressão muitas vezes de me achar debruçado à janela a observar a vida lá embaixo, no Brás, Bexiga ou Barra Funda... Fiquei a me lembrar de Antonio de Alcântara Machado, o escritor paulista que tão bem descreveu o pitoresco mundo ítalo-brasileiro, o mundo da “Bianca” e da “Carmela” (“se via que era distinta”...) e do “Gaetaninho”, que “amassou o bonde”... Sorrisos de Uma Noite de Amor (Sommarnattens Leende) de Ingmar Bergman, Suécia, 1955 06 fevereiro 1959 Anunciada há muito tempo, aguardava-se com grande expectativa a exibição de “Sorrisos de uma Noite de Amor”, cujo diretor, Ingmar Bergman, é hoje um dos realizadores mais inteligentes do cinema europeu, talvez um dos mais inquietos desse cinema singular qual é o da Suécia. Sob grande expectativa, sem dúvida, era esperada sua película, pois esse cineasta desfruta de enorme prestígio em São Paulo, desde que a Cinemateca Brasileira, atendendo à solicitação de alguns estudiosos de sua obra, conferiu-lhe as honras da apresentação de um ciclo de suas películas, há questão de uns dois ou três anos. Tudo que se fizer, realmente, em benefício do maior conhecimento de Ingmar Bergman e de sua cinegrafia, justifica-se de plano, eis que se trata de um homem excepcional dentro dos quadros do cinema contemporâneo, um homem sensível e culto, dotado de grande poder de observação, de fertilíssima imaginação, atributos que sabe colocar a serviço de “seu” cinema, personalíssimo e poético, um cinema que não é feito de improviso, mas sob paciente e árduo trabalho de pesquisa e de elaboração. “Realizar uma película, diz Ingmar Bergman, é organizar, cada vez, um universo novo, é jogar com os elementos da indústria, dinheiro, meios de fabricação, tomadas de vista, revelação da película, a observância de um horário pré-estabelecido (que nunca pode ser levado à risca, entretanto) e de um plano de produção rigorosamente estudado e todos aqueles fatores imprevisíveis e irracionais, aos quais é preciso conceder a maior porcentagem, no total previsto. Mas, realizar uma película é também suportar dias e dias de trabalho obstinado, é também a luta ininterrupta entre a vontade e o dever, entre a visão e a realidade, entre a consciência e a preguiça. E quando afirmo isso, refiro-me igualmente às noites sem dormir, refiro-me a um sentimento mais agudo do que a própria continuidade da vida, a essa espécie de fanatismo em que só o trabalho conta e pelo qual eu me torno uma parte integrante da mecânica do cinema, eu me transformo num aparelho ridiculamente minúsculo, cujo único defeito é o de precisar comer e dormir”. Nessa afirmação sincera e exaltada está toda a dinâmica criadora da obra de Bergman, certamente um místico do cinema, um iluminado da gênese cinematográfica, um de seus poetas maiores e mais sutis. Toda peça sua é um ímpeto febril, é aquela exaltação que move e impele os que crêem, os que precisam gerar algo e sentem que não têm muito tempo para fazê-lo. Trabalham assim sob uma constante exuberância, estado de ânimo a se refletir depois na obra gerada. As fitas de Ingmar Bergman provocam realmente essa impressão exultante, a traduzir-se em todos os seus setores de criação, na composição do quadro, na sua funcionalíssima iluminação, na intriga da história, no seu ritmo narrativo e sobretudo na inspirada direção de atores. “Sorrisos de uma Noite de Amor” é bem um hino à gestação, é bem uma obra parece que feita sob o choque de um único impulso, sob o atrito daquela centelha do infinito, pela qual um ser superior pôde criar todas as coisas, segundo a dialética hegeliana. Introspectivo ao extremo, cultiva Bergman os símbolos e se expressa por meio de constantes, que também são uma afirmativa de seu temperamento exaltado. Assim por exemplo, o curto verão nórdico é uma obsessão em sua obra: “Sommarlek”, “Sommaren Med Monnika”, “Sommarnattens Leende”, a palavra “Sommar” (Verão) a repetir-se incessantemente nos diálogos de muitas de suas fitas, nessa “Sorrisos de uma Noite de Amor” mais particularmente, e cujo título original é “Sorrisos de uma Noite de Verão”. Aliás, tanto o Verão, quanto o Amor, símbolos de criação e procriação, constituem os temas preferidos de Ingmar Bergman, fato perfeitamente explicável, pois tanto o sentimento, quanto a curta estação climática das regiões nórdicas são uma exaltação, são uma febre avassaladora a envolver todas as coisas e todos os seres, para que tudo possa gerar, crescer e frutificar, antes que surjam, nas planícies, a bruma, os ventos, os gelos e as neves dos invernos. Autor genuíno e puro, suas comédias, cheias de sátira e malícia ainda que personalíssimas, talvez possam ser tidas como a sofrer a influência de Lubitsch, ou de Feydeau, pois, à primeira vista, o estilo de Bergman se traduz assim com aquela leveza da opereta ou das peças quase dançantes do teatro de “vaudeville”. Mas, Bergman, como já disse, está isento de influências, o tratamento de suas fitas revela a genuinidade e a força pura desse artista singular, talvez único no quadro universal do cinema contemporâneo. A película que ora se apresenta em São Paulo é obra admirável, que bem revela a estranha temática desse autor original. Terei a ela de voltar, logo que uma oportunidade se ofereça. Spartacus (Spartacus) de Stanley Kubrick, EUA, 1960 23 março 1961 A carreira de Stanley Kubrick no cinema norte-americano pode ser classificada como a de um jovem que venceu súbita e triunfalmente. Já aos 23 anos, Kubrick era documentarista, iluminador, roteirista, montador, editor, produtor, fazendo tudo isso no “seu” cinema, ora no documentário simples, como “Flying Padre”, ora no filme de longa-metragem, como “A Morte Passou por Perto”, ou “O Grande Golpe”, além de ser um polemista veemente com aquela sua excepcional “Glória Feita de Sangue” (proibida em muitos países europeus) ou com a sua próxima “Lolita”, em curso de produção. Entrementes, lançar-se-ia na realização do grande espetáculo, com “Spartacus”. Por se tratar justamente de um espetáculo de alta montagem, como é de hábito no cinema norte-americano, em tal gênero de produção nada se negou a Stanley Kubrick, até mesmo lhe foi proporcionada a película de bitola larguíssima, a cor caríssima do “tecnicolor”, a cenografia ambiciosíssima, um elenco enorme, composto de grandes nomes e um corpo de técnicos de primeira grandeza. Estamos, pois, muito distantes das modestas produções de Kubrick, em que esse jovem fazia de tudo em sua realização. Mas, mesmo lá no alto dos escalões cinematográficos de grande montagem, Kubrick não deixou que sua inteligência e sua competência se comprometessem, conseguindo que “Spartacus”, como peça de cinema, propriamente dita, se colocasse bem acima de “Ben-Hur”, ou de “Os Dez Mandamentos”, nada lhes ficando a dever em matéria de riqueza de montagem, ultrapassando-as de muito no que concerne à estrutura cinematográfica, à dinâmica, à pesquisa plástica e à sintaxe do cinema. Realmente, Stanley Kubrick conseguiu infundir ao grande espetáculo aquela ânsia de renovação com que costumava caracterizar suas películas mais modestas. “Spartacus” reflete bem as pesquisas antigas, iniciadas na conquista de um vocabulário que tanto serviu para os exercícios de estilo, para o jogo das figuras de retórica, das elipses, das ênfases, dos paradoxos, dos termos novos que tanto marcaram “A Morte Passou por Perto”, ou que entraram na construção, mais sóbria, de “Glória feita de Sangue”. Em “Spartacus”, há momentos de inexcedível beleza, na cor, na técnica, na interpretação, na cenografia, na movimentação da câmara e de atores, tudo se conjugando em perfeita enquadração, tudo se completando na edição final. Vejam-se as cenas do treino dos gladiadores; a seqüência da morte de Marcelo; as sessões do Senado Romano, as da batalha campal entre os escravos revoltados; a Via Appia, com suas margens sinistras fincadas pelo martírio dos crucificados. Momentos de uma beleza épica, de uma poesia trágica, de cor e plástica participantes. E foi pena que Stanley Kubrick não houvesse contido a eloqüência muitas vezes inoportuna de Alex North, autor da partitura musical da fita, obra bombástica e gongórica, a abafar quase sempre a sonoplastia da película e a atordoar não raro o espectador envolvido pelas faixas do som estereofônico, sem defesa em sua poltrona. E ante o realismo reconstituído de “Spartacus”, fico a imaginar o que seria uma película desse gênero, de argumento calcado no esplendor de Roma, com todos os seus diálogos em latim. Latim erudito e latim plebeu, desse latim talvez bárbaro, mas de onde se originou a maioria das línguas ocidentais, com que Cícero, Gaio e Ulpiano erigiram o monumento do Direito Romano, base ainda hoje de toda a estrutura jurídica dos povos modernos. A Trapaça (Il Bidone) de Federico Fellini, Itália, 1955 16 abril 1958 Possivelmente, algum psicólogo perseverante, há de achar, um dia, na obra de Fellini, material bastante para a pesquisa psicanalítica da personalidade desse cineasta obcecado, certamente introvertido, numa eterna luta dentro de si mesmo, emaranhado por entre o desvairo da dúvida e a alegria de reencontrar-se na exaltação criadora da obra artística pura e simples. Pois, a cinegrafia de Fellini, ainda que relativamente curta no setor da realização cinematográfica, compõe-se já de uma trilogia muito sintomática: “La Strada”, “Il Bidone” e “Le Notti di Cabiria”, todas essas peças a extravasarem, de certo, algo torturante para Fellini: a tragédia do homem solitário. Na primeira fita, três são as criaturas erradias, desemparceiradas, a se repelirem por força de seus temperamentos e de seus impulsos, mas unidas como os pontos de um triângulo – “Zampano”, o rústico, “Gelsomina”, ingênua e simplória, “Il Matto”, um louco lúcido, cheio de comiseração humana. Nessa área geométrica, vivem e atraem-se mutuamente. Mas, quando um deles rompe a unidade ternária, destrói-se a si própria a figura, eliminando-se seus pontos de contato. Morto “Il Matto”, acaba-se “Zampano”, muito antes de acabar-se “Gelsomina”, três criaturas distintas, solitárias, cada qual a viver um mundo todo próprio. Em “Il Bidone”, muitas são as figuras isoladas, apartadas uma das outras, mas a mover-se num meio único, o dos vigaristas. “Augusto”, entretanto, representa o isolamento comum, é “Augusto” quem sofre, castiga-se, morre sozinho, em plena luz do dia, à beira de um precipício tal como “Zampano”, em “La Strada”, morria numa praia deserta, na sombra noturna. Finalmente, no terceiro ramo da trilogia, há, ainda e sempre, o drama de um ser isolado no seu íntimo, nos dias e, principalmente, nas noites de Cabiria. Pois, a saga humaníssima do homem triste desenvolve-se exuberantemente em “Il Bidone”. “Augusto” quase não ri, apenas um rictus deformante lhe corta por vezes o rosto torturado, tal como o grunhido momentâneo de “Zampano” riscava suas faces lanhadas, nos instantes de bom humor. “A Trapaça” é toda pontuada por esse rosto tumefacto, feito de traços grosseiros, sempre preocupado, sempre na expectativa da chegada da polícia, ou das alternativas angustiosas da próxima trapaça. Fellini explora ao máximo essa máscara dolorosa e inquieta, nos primeiros, ou nos planos gerais. E é tal o poder de comunicação de sua linguagem, a força de convicção do vigarista emérito e sofredor, que na seqüência final da película, “Augusto”, no último esforço de uma façanha derradeira, não apenas convence o chefe do bando do malogro da última trapaça, como também inclui o espectador nesse estado de espírito. Ao descobrir-se a farsa, não são apenas os seus comparsas que se revoltam contra a burla, mas os próprios assistentes do drama, igualmente, já então colocados entre a repulsa e a piedade. E o rosto ferido de “Augusto”, o seu vulto jogado na paisagem hostil, o seu corpo a galgar, de arrastão, o talude pedregoso, até que a morte venha surpreendê-lo à beira do abismo, depois de havê-lo poupado no fundo dele, são ainda o símbolo cruel da solidão humana, num mundo que não é mais o de homens, mas o de lobos, prestes a se entre devorar, numa aflição faminta. Mas, se a condição humana de “A Trapaça” se demonstra pela ação de um ator, todo o seu conteú­do se revela pelo desenvolvimento de três seqüências: a do cortiço, quando ali penetra o bando de vigaristas para, em seus moradores aplicar o “conto da casa própria”; o da festa de fim de ano, no apartamento de “Rinaldo” e a da morte de “Augusto”, numa paisagem abrupta. Três seqüências antológicas, que tão bem definem a obra e a sensibilidade de um dos maiores cineastas contemporâneos. Um Condenado à Morte Escapou (Un Condamné à Mort s´est Echappé) de Robert Bresson, França, 1956 07 novembro 1959 Robert Bresson é um realizador singular dentro do cinema francês. Cineasta de poucas fitas, homem de poucos gestos e quase nenhumas palavras, cabelos grisalhos, mas jovem no andar, olhos claros, calmos e frios, voz grave e envolvente, grande mãos viris, que servem para grifar, em gestos tranqüilos, suas palavras comedidas, eis a descrição física desse homem perturbável e enigmático, de cuja última obra, essa “Um Condenado à Morte Escapou”, não se sabe bem o que pensar. Ao que dizem seus colaboradores, quando Bresson trabalha no estúdio ou fora dele, em plena criação da tomada de cena, mesmo julgando excelente o último “take”, sempre o repete uma vez mais, “para maior segurança”. Ora, para se apreciar essa “Um Condenado à Morte Escapou” será sempre necessário também,”para maior segurança,” assisti-la uma vez mais, tal a impressão esquisita que produz no espectador, mesmo prevenido como era o meu caso. E ainda assim não sei agora, ante uma folha de papel em branco, como comentar a película de Bresson, nem se de fato eu a senti como uma grande obra do cinema contemporâneo, capaz de conquistar para seu realizador o prêmio maior de Cannes, quanto à direção de cena, como aconteceu naquele festival, em 1957. Há, primeiramente, por parte de Bresson (neste ponto a parecer-se com Jacques Tati, por maior que seja o antagonismo dessa comparação) um arrogante desprezo pelos recursos técnicos, que possam oferecer, à realização artística, as câmaras e os laboratórios do cinema. A dinâmica de “Um Condenado à Morte Escapou” não se faz formalmente, pela deslocação de câmara (quase imóvel) pela duração dos planos (por vezes longos e irregulares, cortados por “escurecimentos” e fusões sem sentido), mas pelo “animus” de cada cena, de cada situação, pelo ritmo interior de sua coordenação e pela transposição do temperamento individual do realizador às suas personagens. Todos os tipos de “Um Condenado à Morte Escapou” são frios em seu sofrimento, impassíveis em suas atitudes de prisioneiros, impossíveis de classificar-se em suas reações de homens martirizados. Com tal comportamento por parte de todos, teria de ressentir-se muito a continuidade dramática da fita. O espectador nunca, em nenhum momento, é levado a colocar-se no lugar das personagens, em nenhum instante se sente encarcerado também, dentro da cela, do pátio, dos muros, da prisão de Montluc. A evasão de “Fontaine” e a sua preparação transcorrem tão naturalmente, tão facilmente (em planos e situações repetidos ao infinito), que o espectador não chega a participar das angústias e dos medos que um prisioneiro, prestes a se evadir, deve sentir certamente. Entretanto, segundo suas próprias declarações, Bresson quis conferir, à sua fita, a forma e o sentido do documentário. Não me pareceu assim, ao assistir, pela primeira vez, à sua película. Nem mesmo sua fotografia, despojada e com intenções visíveis de parecer “ambiental”, pode ser tida como participante da natureza naturalista do documentário. Faltou a “Um Condenado à Morte Escapou” aquele calor humano, aquele sopro de vida, aquela espontaneidade realista que dá à imagem do cinema, ainda que sem cor, a terceira dimensão das imagens coloridas do mundo. Estranho homem, em verdade, esse criador introvertido do cinema francês!... O Grande Momento de Roberto Santos, Brasil, 1958 07 janeiro 1958 Parte I Tal como aconteceu com “Cara de Fogo”, a película de estréia de Galileu Garcia, também “O Grande Momento”, de Roberto Santos, outro estreante, seria obscuramente apresentada em São Paulo, sem publicidade preparatória, numa época ruim, sob a indiferença de todo o mundo, público e exibidores. Mas, em verdade, por que haveria Roberto Santos de, em sua fita, tentar sair do padrão comum do cinema brasileiro, por que haveria ele de, honestamente, integrar-se nas novas tendências do cinema contemporâneo e, dentro delas, contar a sua história simples, vivida entre a gente humilde da Mooca e do Cambuci?... Por que foi ele intrometer-se na vida, sem importância, de suas personagens, homens desconhecidos, perdidos no anonimato cruel da enorme cidade? Ora, a existência dos submundos urbanos, numa narrativa despojada, nunca poderia mesmo interessar público e exibidores, uns por falta de preparação espiritual, outros porque, antes de tudo, têm transações comerciais a cuidar, obrigações a saldar todo fim de mês e não há de ser com um produto de pouco consumo que se enfrentarão os compromissos mercantis e inadiáveis do negócio cinematográfico. Por isso, antes do mais, “O Grande Momento”, tal como “Cara de Fogo”, representa uma atitude de coragem, que só o inconformismo e a indocilidade dos jovens podem fazer valer, na sua ânsia de contar uma história a seu modo. Mas, no caso de Roberto Santos e Galileu Garcia, tal atitude assume proporções maiores. De fato, quando os inconformados surgem em outros meios, de público mais educado e mais sensível às inovações artísticas como um Rossellini, na Itália, ou um Paddy Chayefsky, na América do Norte, sua obra, como um brado revolucionário, há de ecoar irresistivelmente nas bilheterias das salas de espetáculo, pelo menos quando, de surpresa, aparecem tais peças, como ainda mesmo exemplo, foi o caso de “Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini e “Marty”, de Chayefsky, um lançamento, na Europa, o chamado do neo-realismo, outro captando na América do Norte a mensagem dessa tendência do cinema moderno, ambos obtendo, num e noutro lugar, a enorme repercussão, de crítica e de bilheteria, como é notório. Que poderiam, no entanto, esperar de Galileu Garcia e Roberto Santos do clamor inquieto, contido em “Cara de Fogo” e “O Grande Momento”, senão a indiferença de um público, ou obscurecido e viciado pelo entorpecente das “lucrécias” e das “baronesas”, ou descrente da versatilidade do cinema brasileiro, desmoralizado inteiramente pela ação daninha de aventureiros de toda sorte? Por isso, antes do mais, “O Grande Momento” e “Cara de Fogo” representam uma atitude de indomável coragem. Representam, a seguir, duas peças de importância insuspeita na análise do cinema brasileiro de hoje, não na sua estéril atualidade, mas, principalmente, quando, em futuro, às duas películas, deferir o tempo a sua perspectiva austera, indispensável à sua compreensão, à afirmação definitiva de suas linhas, no panorama histórico e estético de nosso cinema. E, de certa forma, terá sido excelente a oportunidade de haverem ambas as fitas sido apresentadas na mesma época, ainda que prejudicial aos interesses da bilheteria. Assistidas, entretanto, quase que na mesma semana, o seu julgamento, por parte da crítica lúcida, foi valorizado pelo paralelo que ambas oferecerem, se bem que cada qual levemente a divergir em seus rumos, uma a tomar os caminhos de um naturalismo rural da melhor procedência poética, outra a tender para um realismo social mais doutrinário, as duas se igualando e atingindo o mesmo nível de importância, quando postas sob a mesma luz da discussão e da análise crítica. “O Grande Momento” merece outras considerações, relativamente à sua forma e ao seu conteúdo. A escassez do espaço agora me obriga a transferir para outra ocasião a oportunidade de seu comentário. O Grande Momento de Roberto Santos, Brasil, 1958 11 janeiro 1958 Parte II Sem dúvida, a fita de Roberto Santos foi um grande momento em nosso cinema. Primeiramente – até que enfim! – porque marcou no cinema brasileiro a primeira tentativa válida de um ensaio neo-realista, uma película em que, em seu conteúdo e em sua forma, não é preciso a ninguém andar em busca de qualquer coisa para com a fita e seu autor ser benevolente, ou tolerante. “O Grande Momento” é uma peça que vale por si mesma, a denunciar a cada instante a inteligência de seu criador, a firmeza de sua direção e a existência autêntica de seus intuitos. Não há gratuidade narrativa em nenhuma de suas cenas, permanecendo fluente a sua continuidade em suas seqüências, ligadas umas às outras ou pela própria vivência da ação, ou pelos termos exatos da linguagem cinematográfica, extremamente despojada de artifícios. Roberto Santos, ao levantar a estrutura dramática de “O Grande Momento”, conservou-se fiel a si mesmo, nem permitiu que algo viesse trair o significado social, artístico e estético da “escola” a que se vinculara, conservando sua essência pura e íntegra em todos os setores da criação cinematográfica da película, de sua cenografia, de armação sóbria e a adotar apenas o indispensável, à fotografia, também, rigorosamente depurada. “O Grande Momento”, em última analise, é uma obra de moços, pertencentes a uma geração que presenciou as etapas por que passou o cinema brasileiro, de 1949 até hoje, por vezes participando intensamente dos avanços admiráveis e dos desanimadores recuos, verificados principalmente no cinema paulista. Nessa década, poucos surgiram, mas os que conseguiram expressar-se e varar a barreira dos demagogos e dos aproveitadores, felizmente não se corromperam. Valeram-se da escola dos estúdios e dos ensinamentos das cinematecas dos cursos e das “retrospectivas”, permanecendo puros e sinceros. Deles depende agora uma decisão definitiva nos destinos do cinema brasileiro e de sua sobrevivência, como expressão social e artística. Ou continuam puros e sinceros e o cinema brasileiro viverá, ainda que a se mover nos “exteriores” da Mooca e do Cambuci a chorar a sua miséria, ou se corromperão também e o cinema brasileiro perecerá de vez. Que Roberto Santos e os da geração dos novos, puros e sinceros escolham o caminho: Mooca e Cambuci ou o rumo das venezas de estúdio e das mansões de fancaria... Película feita sem recursos materiais, “O Grande Momento”, teria de ressentir-se enormemente em sua forma. Tanto sua fotografia se prejudicaria no tratamento precário de um laboratório de técnica instável, quanto sua pista sonora se apresentaria muito deficiente, com o aproveitamento integral da banda do “play-back” na expressão definitiva dos diálogos, muito lesados, assim, com a interferência do eco de sons parasitas, proporcionados por estúdios levantados sem a devida proteção insonora. Por outro lado, nem sempre os atores do elenco observaram a contento a linha rígida da interpretação neo-realista, por natureza a exigir sobriedade conventual, quer nas situações mais dramáticas, que nas de maior distensão emocional. Assim, Jaime Barcelos é o ator que mais destoa no quadro de “O Grande Momento”, não porque seja um mau ator, mas por se tratar de intérprete muito marcado pelos cacoetes da televisão. Assim também, Paulo Goulart, embora mais contido pelo diretor da fita. Mas entre os que militam profissionalmente na televisão, Norah Fontes foi a grande surpresa. Talvez por se tratar de participante mais humilde nos inumeráveis “tele-dramas” (alguns insuportáveis), Norah Fontes, também com humildade, viveria o seu papel em “O Grande Momento”. E vivê-lo-ia magnificamente, sobressaindo-se pela sua modéstia e pelo exato lugar em que sempre soube colocar-se no quadro da composição dramática da película. Quanto aos componentes do Teatro de Arena, nunca será bastante louvá-los. Sua colaboração foi eficiente e conclusiva, cada qual no seu papel, principal ou coadjuvante, Gianfrancesco Guarnieri e Vera Gertel, ambos estreantes no cinema, se não me engano, e ambos dotados de um absoluto controle dramático. Grianfrancesco Guarnieri nunca se deixando levar pelos exageros histriônicos a que tanto se prestava seu papel, Vera Gertel grácil e “espevitada”, nas exatas medidas exigidas por seu tipo, na galeria humana de “O Grande Momento”. Restrições sérias, sem dúvida, mais de forma que de conteúdo, restrições, entretanto, sem força suficiente para diminuir o mérito da película de Roberto Santos, concorrente respeitável, a “pari passu”) com “Cara de Fogo”, de Galileu Garcia), aos prêmios cinematográficos de 1958. Que as comissões de julgamento saibam ver nesses “novos” as grandes esperanças que representam, na permanência do cinema brasileiro e legítimo. Uma Mulher de Osaka (Aru Osaka no onna) de Eizo Sugawa, 1962] 19 julho 1963 Eizo Sugawa, com esta “Uma Mulher de Osaka”, vem consolidar ainda mais a posição que atinge no cinema moderno, posição de rígida coerência consigo próprio e de lúcida observação dos problemas humanos de sua época. Seus filmes, na proporção em que são realizados, denotam, mais e mais, a maturidade artística que esse cineasta, apesar de tão jovem, alcançou, ou através da sintaxe corretíssima de sua linguagem, (em que as relações entre as frases cinematográficas ligam-se, com justeza, às expressões de seu pensamento) ou pela inquietação sociológica dos temas constantes de suas películas. Sugawa realiza-se plenamente com a técnica do cinema mais avançado, não oculta suas preferências pela manufatura seca de seu discurso, ao modo, certamente, do cinema que ora se faz na Europa, na França e na Itália, notadamente. Entretanto, o que possa parecer pesquisa e mera experiência em Resnais, ou em Antonioni, em Sugawa tudo se apresenta consolidado, sob um estilo irrequieto e ardente, mas sóbrio e apurado na dinâmica dramática de sua narrativa e na análise psicológica de suas personagens. Por causa talvez de sua juventude e de sua própria formação, para Sugawa o cinema é uma forma de inquérito, um modo de interrogar testemunhas e de registrar depoimentos. Apresentam-se os fatos. Sugawa os observa, mas não os discute, nem lhes tira conclusões. Quem quiser que o faça, depois dele. Para isso, fornece ao seu espectador os dados para discussão, levanta, logo aos letreiros iniciais, o cenário dos fatos, aquele painel urbano de Osaka, à noite, à tarde, ao crepúsculo e ao iniciar-se a aurora, cidade de aspecto frio e implacável, fisionomia impassível desse Moloch metropolitano, que deglute e digere seus súditos sem que uma feição única de seu rosto denote a menor emoção humana. As grandes cidades são assim, principalmente os grandes centros industriais. Já nessa fria visão de Osaka, Sugawa deixa pressentir o drama, o símbolo dramático da intriga que ali vai viver-se. E as personagens vêm logo a seguir, engastadas no cenário da história, sem possibilidades de livrar-se desse pano de fundo a cuja frente se agitam os títeres humanos. Seus intérpretes nada mais expressam, senão a representação de elementos típicos de uma estatística a fazer-se. Mas, a ponderação dos dados colhidos só se representará mais tarde, quando a mulher de Osaka, na última cena da fita, se imobilizar na paisagem urbana e tudo se tornar estático no quadro fatal, na pequena área deste mundo de conflitos e paixões, covardia e maldade. É este, se não me engano, o segundo filme em cores de Eizo Sugawa, o primeiro sendo aqui exibido, em dezembro de 1962, sob o título “Desafio à Vida”. Já nessa película, Eizo Sugawa manejava com propriedade as cores do “eastmancolor”, aproveitando-as e a seus matizes nas situações mais críticas dos conflitos psicológicos de suas personagens, ou nos cenários em que atuavam. Em “Uma mulher de Osaka”, as cores também funcionam assim, também se exalam dos cenários e atuam na representação dos comportamentos de seus tipos. Cores frias, cinzas e azuis, no cenário urbano, cores mais quentes, vermelhos e derivados, ao cair da noite sobre Osaka, nos interiores das casas de diversão noturna, nos pequenos apartamentos, onde os homens “respeitáveis” do mundo dos negócios escondiam seus amores clandestinos. E a frieza cromática retorna novamente, nas seqüências circulares, quando, na Polícia, se interrogam as testemunhas do drama solitário de “Ayako” (Reiko Dan), pobre, pequena e patética mulher de Osaka, figurante na trajetória urbana, incrustada definitivamente no fundo do palco, em que se movem, indiferentes, os comparsas daquela comédia humana, de cem atos diversos, cuja cena pode ser a do universo, como diria o velho La Fontaine, brincando com bichos e com eles retratando homens... Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1963 09 maio 1964 Parte I Tristão de Ataíde, numa de suas crônicas para este jornal, depois de haver assistido à “Vidas Secas”, de Nelson Pereira dos Santos, confessa que jamais poderia supor algum êxito na transposição do livro de Graciliano Ramos para as imagens do cinema. “Como acreditar na versão cinematográfica brasileira desse Machado de Assis do sertão, seco como uma queimada de agosto, com seu intencional estrangulamento emotivo e despojamento paisagístico?” – indaga Tristão de Ataíde, justificadamente assombrado. E, realmente, essa adaptação tão fiel ao espírito tão austero da obra literária pura, difícil entre todas de qualquer tradução, seja para outro idioma, seja para a linguagem do cinema, constituiu a grande surpresa e o enorme espírito desse filme, um dos mais importantes já realizados em toda a nossa atribulada história cinematográfica. Creio que desde a época em que conheci Nelson Pereira dos Santos – e já lá vão dez anos, quase – alimentava ele o desejo, uma idéia fixa, de realizar “Vidas Secas”, no cinema. Em 1960, se bem me lembro, chegou a atrair-se para os sertões do Norte brasileiro, com toda a sua equipe, para ali produzir “Vidas Secas”, segundo uma adaptação por ele trabalhada, anos a fio. Contudo, fora esse um ano excepcionalmente chuvoso no Nordeste, com inundações e desabamentos por toda a parte, a invalidar e a adiar os projetos de Nelson Pereira dos Santos. Pois, talvez lhe tenha sido proveitoso o adiamento. Em suas andanças posteriores por aquelas regiões dramáticas do Brasil, teria Nelson Pereira dos Santos não apenas a oportunidade de amadurecer sua criação, senão também a de escolher definitivamente seus locais de filmagem, delimitados em Alagoas, na Fazenda do Encantado, distante 30 quilômetros de Palmeira dos Índios, onde nasceu Graciliano Ramos, nessa propriedade agrícola exercendo ainda a profissão de vaqueiro um irmão do escritor, Clovis Ramos, que foi um eficiente informante dos realizadores do filme e seu consultor durante toda a produção da obra. Assim assessorado, poderia Nelson Pereira dos Santos trabalhar sua película, no próprio clima do livro, no próprio chão pisado por Fabiano, à sombra do juazeiro em que os meninos e a cachorrinha Baleia caçavam preás e se espojavam no areião, no próprio casebre em que Sinhá Vitória, acocorada, as saias presas entre as pernas, soprava o lume do fogão primitivo. Com tais elementos, documentários, dramáticos e até ecológicos, o filme ganharia aquelas dimensões sociológicas, tão raras no cinema brasileiro, que Nelson Pereira dos Santos alcançou sem a menor demagogia e sem se afastar um palmo sequer do espírito da obra literária. As personagens do livro adquirem na tela aquele sopro do infinito, aquela centelha do Humano, que fazem do “nacional”, até do “regional”, uma obra, uma personagem do “universal”, algo de eterno e sempre atual. Há seqüências em “Vidas Secas” que se tornarão inesquecíveis como criação cinematográfica, como documento social, como um terrível e pungente depoimento, sobre que, agora, deverão meditar, com seriedade, os homens da política, da administração, da sociedade brasileira (prosseguirei na análise de outro aspecto de “Vidas Secas”). Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, Brasil, 1963 12 maio 1964 Parte II Em “Vidas Secas”, o que mais se admira é a equivalência cinematográfica daquilo que o cérebro, a sensibilidade e o estilo de Graciliano Ramos descreveram em seu livro. Nelson Pereira dos Santos conseguiu espelhar, na seqüência de seu filme, os capítulos, ou melhor, os períodos do romance de Graciliano Ramos, cuja arquitetura pode ser “desmontada”, em partes distintas, como observou Rubem Braga, com muita sagacidade. Há, realmente, essa equivalência entre a imagem literária e a frase do cinema, em quase todo o filme, com pequenas exceções que não prejudicam a visão de conjunto da obra nem lhe desviam o curso do estilo original. Episódios inteiros se decalcam, assim, sobre a criação de Graciliano Ramos, como o da morte de Baleia, por exemplo, a comovente cachorrinha do livro, de que Nelson Pereira dos Santos teve a boa sorte de encontrar a sósia num pequeno “vira-lata”, com o físico e o “espírito” do animalzinho do romance, personagem tão importante no elenco literário, quanto à dos meninos, a de Sinhá Vitória, ou a de Fabiano. Pois, a Baleia de Nelson Pereira dos Santos é o reflexo exato da de Graciliano Ramos e a seqüência de sua morte será, daqui por diante, um trecho antológico do cinema brasileiro de todos os tempos. Entretanto, ao lado desse ímpeto criador, do rigor desse trabalho artesanal, há descaídas desequilibrantes na realização do filme, algumas imputáveis à própria direção cinematográfica, outras verificáveis sob a responsabilidade de alguns membros de sua equipe. Recrimino em Nelson Pereira dos Santos, preliminarmente, a sua displicência na concepção de vários momentos (muito ruins) de sua película, sem desculpa, nem justificação por parte de quem, em quase toda a peça, houvera procedido a uma paciente e estafante elaboração artística e dramática. A seqüência de Fabiano no cárcere, a sofrer sua flagelação, em cenas mal enquadradas, mal dirigidas, a destoar da composição sóbria que preside a grande parte do filme; a do menino mais velho em que repete, interminavelmente, a palavra “inferno” e sobretudo as cenas do reisado do bumba-meu-boi, pessimamente anguladas e de iluminação primaríssima, são exemplos, entre outros, do desmazelo de Nelson Pereira dos Santos em sua direção e no acabamento de seu filme. ... Pois, agora, nesta “Vidas Secas”, tão digna de conteúdo, que deverá ser para Nelson Pereira dos Santos uma obra de maturidade artística e intelectual, continua ele a demonstrar o mesmo relaxamento formal... É de lamentar tal experiência pueril num filme tão adulto como “Vidas Secas” Viver (Ikiru) de Akira Kurosawa, Japão, 1952 15 maio 1964 Eis-nos finalmente, em presença dessa “Viver”, a figurar na cinegrafia de Kurosawa entre os primeiros filmes que realizou, da época do seu “O Anjo Embriagado”, do tempo em que esse grande diretor mais se influenciava com a obra de cineastas europeus. Foi tal e tão perceptível essa influência, que era moda, há poucos anos, dizer-se que Kurosawa se tornara no mais ocidental dos cineastas orientais. “Viver” reflete bem esses “modos” europeus, essa maneira de realizar cinema através de filmes de grande profundidade psicológica e de observação subjetiva predominante. Mas ao assistir-se hoje a essa peça de 1952, torna-se curioso verificar-se que, de lá para cá, quase nada de original se criou no cinema, que são muito precárias e falhas as inovações tão apregoadas como características de um “cinema novo”, do “cinema-verdade”, da “nouvelle vague” ou que outro título tenham esses movimentos, às vezes de permanência tão transitória e de realização tão parca em resultados cinematográficos legítimos. Pois “Viver” me lembrou, em muitos momentos, a técnica da “nouvelle vague” e de outras “escolas” antecedentes ou decorrentes: direção de atores espontânea com a reação deles captada “sur le vif”, cenários ao natural, fotografia despojada de efeitos, montagem dinâmica (às vezes, um corte brusco na ação fragmenta o “tempo” dramático, sem qualquer transição), pontuação nervosa e sem qualquer trucagem. A acreditar nesses jovens que se dizem inovadores, poder-se-á também qualificar Kurosawa, lá no Japão, na época com o seu cinema quase desconhecido, como um pioneiro dos movimentos renovadores, se é que antes disso, já não se fazia cinema assim. Mas, em “Viver”, há antes de tudo, o poder expressivo de uma interpretação levada aos últimos extremos dramáticos. Takashi Shimura, no papel de um chefe de seção dos quadros funcionais de algum município nipônico, vive intensamente a tragédia de um homem atacado de câncer gástrico, com seus dias contados, por isso a querer sair de sua rotina burocrática para desfrutar, em uns poucos meses, o que, em muitos anos, ele não houvera sabido extrair do “terra a terra” do seu cotidiano. É um outro mundo que se espraia à sua frente, a fazer surgir diante dele, no ocaso de sua existência, a curta alvorada de um universo até então desconhecido. Pois Takashi Shimura, sob o impulso criador de Kurosawa, vive essa tragédia solitária e quase silenciosa, com o mínimo de palavras e o máximo de ação dramática, por vezes só expressada por um jogo mímico de muita eficiência. E em certos momentos, Kurosawa se mostra capaz de uma implacável mordacidade. Quase já ao final do filme, há a seqüência em que se desenvolve uma cerimônia fúnebre, em memória do sr. Watanabe, o funcionário municipal, já morto então, em conseqüência do câncer inoperável. Kurosawa constrói tal seqüência com impiedoso sarcasmo, vergasta costumes e homens com o ácido corrosivo de seu espírito de sátira e de crítica social. O filme é um tanto arrastado e, por vezes, um tanto monótono. Mas, é peça de grande importância na filmografia do grande criador de “Rashomon”. Winchester 73 (Winchester 73) de Anthony Mann, EUA, 1950 11 abril 1962 Eis, em verdade, uma excelente reapresentação essa “Winchester 73”, uma das melhores realizações de Anthony Mann, tirada da saga eterna do “western”, mas a fugir do escalão habitual das fitas sobre o Oeste norte-americano. Realmente, o Oeste, em “Winchester 73”, é apenas o cenário de vários eventos, ocorridos em torno de um rifle Winchester, uma dessas esplêndidas espingardas que só se fabrica uma em cada mil. Na proporção em que a arma muda de mão e de dono, o cenário, embora permanecendo o mesmo, faz surgir nova história, completando e esclarecendo a anterior. E têm-se, então, seqüências excelentes, muito bem narradas pela direção segura de Anthony Mann, otimamente fotografadas por William Daniels e – não seria preciso dizer – inteligentemente interpretadas por James Stewart, Stephen McNally, John McIntire, Millard Mitchel e outros. Sob certo aspecto, “Winchester 73” é uma espécie de antologia clássica das histórias do Oeste, a desdobrar ante os olhos do espectador os episódios mais característicos, as aventuras mais expressivas dos pioneiros norte-americanos no seu desbravamento da terra e na sua luta bravia contra os rigores da natureza, o primitivismo da região, de armas e munições, a luta entre índios e brancos, os episódios do saloon, os assaltos a bancos e diligências etc., uma espécie de “pot-pourri” daqueles tempos e dos costumes daquela época, como muito bem observou Moniz Vianna, numa crônica antiga, quando no Rio se apresentou a fita de Anthony Mann. Uma película que vale a pena rever, ou assistir pela primeira vez, a qual recomendo particularmente aos amantes do western, que os sei muitos, dispersos por esta nossa velha São Paulo. Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Memória – Rute Duarte 11 Será o Benedito? – Paulo Emilio 13 Paixão, Polêmica e Generosidade 15 Agradecimentos 51 Críticas 53 Crédito das Fotografias Acervo Organizador 36, 37, 41 Cinearte 196 Divulgação 82, 179, 193, 194, 214, 216, 260 Demais fotografias pertencem ao acervo de B.J. Duarte A despeito dos esforços de pesquisa empreendidos pela Editora para identificar a autoria das fotos expostas nesta obra, parte delas não é de autoria conhecida de seus organizadores. Agradecemos o envio ou comunicação de toda informação relativa à autoria e/ou a outros dados que porventura estejam incompletos, para que sejam devidamente creditados. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Agostinho Martins Pereira – Um Idealista Máximo Barro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Antonio Carlos da Fontoura – Espelho da Alma Rodrigo Murat Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto O Bandido da Luz Vermelha Roteiro de Rogério Sganzerla Batismo de Sangue Roteiro de Dani Patarra e Helvécio Ratton Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Cláudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboards de Fábio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Geraldo Moraes – O Cineasta do Interior Klecius Henrique Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito Ivan Cardoso – O Mestre do Terrir Remier João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina Marcel Nadale José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Mauro Alice – Um Operário do Filme Sheila Schvarzman Miguel Borges – Um Lobisomem Sai da Sombra Antônio Leão da Silva Neto Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Orlando Senna – O Homem da Montanha Hermes Leal Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Vladimir Carvalho – Pedras na Lua e Pelejas no Planalto Carlos Alberto Mattos Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca A Hora do Cinema Digital – Democratização e Globalização do Audiovisual Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Arllete Montenegro – Fé, Amor e Emoção Alfredo Sternheim Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Celso Nunes – Sem Amarras Eliana Rocha Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Elisabeth Hartmann – A Sarah dos Pampas Reinaldo Braga Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Ewerton de Castro – Minha Vida na Arte: Memória e Poética Reni Cardoso Geórgia Gomide – Uma Atriz Brasileira Eliana Pace Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira Isabel Ribeiro – Iluminada Luis Sergio Lima e Silva Joana Fomm – Momento de Decisão Vilmar Ledesma John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Jonas Bloch – O Ofício de uma Paixão Nilu Lebert José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Lolita Rodrigues – De Carne e Osso Eliana Castro Louise Cardoso – A Mulher do Barbosa Vilmar Ledesma Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Mauro Mendonça – Em Busca da Perfeição Renato Sérgio Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Nívea Maria – Uma Atriz Real Mauro Alencar e Eliana Pace Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Regina Braga – Talento é um Aprendizado Marta Góes Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sônia Guedes – Chá das Cinco Adélia Nicolete Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Vera Nunes – Raro Talento Eliana Pace Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Walmor Chagas – Ensaio Aberto para Um Homem Indignado Djalma Limongi Batista Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 280 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne Editor Assistente Felipe Goulart Editoração Selma Brisolla Aline Navarro dos Santos Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Revisão Dante Pascoal Corradini IMPRENSA OFICIAL Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Macedo, Luiz Antonio Souza Lima de B.J. Duarte: críticas / Luiz Antonio Souza Lima de Macedo – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 280p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-704-1 1. Crítica cinematográfica 2. Críticos de cinema – Brasil I. Duarte, B.J. (Benedito Junqueira), 1910-1995. I. Ewald Filho, Rubens. II. Titulo. III. Série. CDD 809.2 Índice para catálogo sistemático: 1. Cinema : Literatura : História e crítica 809.2 Proibida reprodução total ou parcial sem autorização prévia do autor ou dos editores Lei nº 9.610 de 19/02/1998 Foi feito o depósito legal Lei nº 10.994, de 14/12/2004 Impresso no Brasil / 2009 Todos os direitos reservados. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800 01234 01 sac@imprensaoficial.com.br Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria IMPRENSA OFICIAL