Orlando Senna O Homem da Montanha Orlando Senna O Homem da Montanha Hermes Leal IMPRENSA OFICIAL São Paulo, 2008 GOVERNO DE SÃO PAULO Governador José Serra Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação Segundo o catalão Gaudí, não se deve erguer monumentos aos artistas porque eles já o fizeram com suas obras. De fato, muitos artistas são imortalizados e reverenciados diariamente por meio de suas obras eternas. Mas como reconhecer o trabalho de artistas geniais de outrora, que para exercer seu ofício muniramse simplesmente de suas próprias emoções, de seu próprio corpo? Como manter vivo o nome daqueles que se dedicaram à mais volátil das artes, escrevendo, dirigindo e interpretando obras-primas, que têm a efêmera duração de um ato? Mesmo artistas da TV pós-videoteipe seguem esquecidos, quando os registros de seu trabalho ou se perderam ou são muitas vezes inacessíveis ao grande público. A Coleção Aplauso, de iniciativa da Imprensa Oficial, pretende resgatar um pouco da memória de figuras do Teatro, TV e Cinema que tiveram participação na história recente do País, tanto dentro quanto fora de cena. Ao contar suas histórias pessoais, esses artistas dão-nos a conhecer o meio em que vivia toda uma classe que representa a consciência crítica da sociedade. Suas histórias tratam do contexto social no qual estavam inseridos e seu inevitável reflexo na arte. Falam do seu engajamento político em épocas adversas à livre expressão e as conseqüências disso em suas próprias vidas e no destino da nação. Paralelamente, as histórias de seus familiares se entrelaçam, quase que invariavelmente, à saga dos milhares de imigrantes do começo do século passado no Brasil, vindos das mais variadas origens. Enfim, o mosaico formado pelos depoimentos compõe um quadro que reflete a identidade e a imagem nacional, bem como o processo político e cultural pelo qual passou o país nas últimas décadas. Ao perpetuar a voz daqueles que já foram a própria voz da sociedade, a Coleção Aplauso cumpre um dever de gratidão a esses grandes símbolos da cultura nacional. Publicar suas histórias e personagens, trazendo-os de volta à cena, também cumpre função social, pois garante a preservação de parte de uma memória artística genuinamente brasileira, e constitui mais que justa homenagem àqueles que merecem ser aplaudidos de pé. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa a resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileira vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada na história brasileira, no tempo e espaço da narrativa de cada biografado. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos extrapolam os simples relatos biográficos, explorando – quando o artista permite – seu universo íntimo e psicológico, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade por ter se tornado artista – como se carregasse desde sempre, seus princípios, sua vocação, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. São livros que, além de atrair o grande público, interessarão igualmente a nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Desenvolveram-se temas como a construção dos personagens interpretados, a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção e a opção por seu formato de bolso, a facilidade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza de suas fontes, a iconografia farta e o registro cronológico de cada biografado. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição e o empenho dos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagem, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que nesse universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de to-do o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Uma coisa é certa. Orlando Senna tem realmente uma história fabulosa e oportuna que precisa ser contada. Sua biografia se mistura com a história de seu tempo. Foi uma das cabeças pensantes na Bahia dentro do movimento que gerou o Cinema Novo, o Cinema Marginal e a Tropicália. Orlando estava imerso nesse caldeirão produzindo teatro, cinema, jornalismo e música, junto com figuras que marcaram as artes para sempre, como Caetano Veloso, Glauber Rocha, Jorge Amado, Tom Zé, Gilberto Gil, entre uma infinidade de amigos e parceiros. Uma turma que se conheceu na juventude e gerou uma efervescência sem precedentes na cultura brasileira nos últimos 40 anos. Estamos diante de um incansável andarilho e artesão de múltiplas ferramentas: cineasta, roteirista, diretor de teatro, jornalista quase a vida inteira e educador, mas creio que é acima de tudo um escritor, um narrador de histórias. Prova disso é seu livro mais recente, o romance Um Gosto de Eternidade (2006), que resgata para a literatura o inconsciente mágico comum no homem brasileiro e nos nossos vizinhos da América Latina, um relato de viagens como tem sido sua vida. Histórias de um diretor de filmes marcantes como Iracema, uma Transa Amazônica (1974) e Gitirana (1975), polêmicos por mostrarem a realidade brasileira em plena ditadura, ao narrar o Brasil profundo que a censura do regime tentava impedir que fosse vista. Polêmicos por ousarem inventar linguagem, filmes onde inexistem fronteiras entre o documentário e a ficção. Por causa de seus filmes sofreu perseguição dos militares e o peso da censura. Em Diamante Bruto (1977), que dirigiu sozinho (os dois primeiros foram co-dirigidos com Jorge Bodanzky) retorna a Lençóis para filmá-la, a cidade que é a geradora de todo o seu universo de descobertas do mundo, o porto de partida para tudo que iria acontecer ao longo do seu caminho. Lençóis é uma cidade marcada pelo garimpo e suas lendas, cravada no alto das montanhas de grande beleza da Chapada Diamantina, na Bahia, onde Orlando teve uma vida moldada pelo pequeno e fabuloso universo que uma cidade do interior possui, maior que o resto do mundo. Numa região fria em meio ao calor do sertão, vivenciou todos os acontecimentos dos meados do século XX, do final da Segunda Guerra aos jogos da Copa do Mundo de 1950, o teatro amador com a mãe e o som dos atabaques dos terreiros de candomblé. Uma mistura que foi ganhando significado à medida que ia crescendo e percebia as influências mágicas e materiais que o diamante e as pedras preciosas da Chapada Diamantina exercem nas pessoas. Este livro narra uma história épica. Inicia-se no mundo mágico de Lençóis, que ficou pequena quando Orlando chegou à adolescência e precisava estudar o colegial. Muda-se para Salvador aos 12 anos e um dia encontra um garoto da sua idade, mas com uma postura diferente, falador e provocador, durante uma reunião de estudantes gremistas. Era Glauber Rocha. Apresentaram-se, Glauber disse que era ator, ele disse que também era, participavam nos grupos teatrais de seus colégios, Orlando em um católico, Glauber em um protestante. Depois desse encontro não se separaram mais e iniciaram uma das mais profícuas agitações culturais que o País viveu no século passado. A Bahia foi sacudida por várias convulsões culturais no final dos anos 50 e nos anos 60. Ele esteve em todas. Na efervescência dos CPCs da UNE se engaja na política estudantil dirigindo peças de teatro e filmes politizados. Larga a faculdade de Direito, realiza documentários, ingressa no cinema profissional como assistente de Roberto Pires, faz o mitológico curso de cinema de Arne Sucksdorff. O golpe de 64 chega de surpresa e tudo muda de repente, conhece a clandestinidade. A interferência de Jorge Amado consegue apaziguar um pouco a vida do jovem jornalista e cineasta. Jorge encontra uma solução surpreendente para Orlando voltar à vida ativa de jornalista (como vocês verão). Assim é a vida descrita nessas páginas, veloz e cheia de suspenses e surpresas. Da Bahia se desloca para São Paulo, Rio e depois, como jornalista ou cineasta, por toda América Latina e África. Suas missões e sua curiosidade o transformam em um globe trotter, um cidadão do mundo. Nos anos 1990 segue outro rumo, dedica-se a escolas de cinema, participa ativamente da gestação da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, ao lado de Gabriel García Márquez e Fernando Birri, da qual será diretor, realizando uma gestão histórica. Seu prestígio intelectual cresce na América Latina, percorre o continente criando escolas, cursos, oficinas. Depois de dez anos vivendo em Cuba volta ao Brasil para organizar uma Escola Brasileira de Audiovisual com Darcy Ribeiro, que morre antes de concretizarem o projeto. Funda e dirige, com Maurice Capovilla, o Instituto Dragão do Mar do Ceará, um projeto que encantou o Brasil. De repente o vemos alçado à condição de Secretário Nacional do Audivisual do governo Lula, lado a lado com o ministro da Cultura Gilberto Gil, onde comanda a abertura de uma nova era para o cinema e a televisão brasileiros. A tentação é a de continuar escrevendo esse trailer, alimentada exatamente pela riqueza da história desse homem das imagens e das letras, que também já foi granjeiro e se sente todo o tempo garimpeiro. Dá vontade de continuar contando, mas essa é uma missão para ele, em primeira pessoa. Minha tarefa foi a de atiçar a brasa, escutar, gravar e editar, com o mínimo de interferência possível. Biografias geralmente são escritas de fora para dentro, expondo a vida do biografado a partir de uma pesquisa externa, cruzando diferentes fontes. Mas a autobiografia nos tira este peso, e nos dá outro, o de ser um bom ouvido e um insistente provocador. O resultado foi um trabalho primoroso, que nasceu com horas e horas de gravações de tudo que havia na memória de Orlando, continuou com um longo trabalho de ordenação de minha parte e por último o acréscimo de um ou outro detalhe por parte dele. Não quis mexer muito, disse que ia ficar faltando muita coisa de qualquer jeito. E brincou: e vai ficar faltando o mais interessante, que é o que ainda não vivi. Pois que viva e muito, e que seu santo preferido, Oxumaré, orixá da beleza e das artes, ilumine seu caminho. Hermes Leal Capítulo I Garimpeiro Nasci no dia 25 de abril de 1940, em um lugar que na época se chamava Estiva, um distrito do município de Lençóis, na Chapada Diamantina, no centro geográfico da Bahia. Na Cordilheira Azul, como também é conhecida, um dos chakras do planeta, segundo os esotéricos. Uma vila de garimpeiros de diamantes, uma comunidade pequena, uma praça comprida com uma igreja ao fundo, no alto da montanha, calor sufocante no verão e muito frio no inverno, ventos gelados, cortantes. Água por todo lado, lagoas, rios, cachoeiras, corredeiras. Um lugar com histórias fortes sobre aventureiros, bandidos, santos, mulheres milagreiras, toda a gama de realidades e imaginações dos garimpos de diamantes. Não mudou muito desde então, está lá do mesmo jeito de sempre. Hoje se chama Afrânio Peixoto, em homenagem ao cientista e escritor polígrafo, uma das grandes figuras de Lençóis. Cheguei aí porque duas pessoas se juntaram, uma da família Senna e outra da família Salles: minha mãe Semírames de Almeida Salles, nascida em 1914, e meu pai Esmeraldo Coelho Senna, nascido em 1911. A família Salles é de Macaúbas, na Chapada Velha, extremo oeste da Chapada Diamantina, já descambando para o rio São Francisco. Meu avô Samuel Baptista de Salles casou-se com minha avó Anatária de Almeida, filha de um dos baronetes da região, o coronel Martiniano de Almeida. A junção de Samuel e Anatária configurou o que se define genericamente como raça brasileira, já que misturaram nos filhos genes portugueses, africanos e indígenas. A avó materna da minha avó Anatária era índia, na mitologia familiar essa ancestral foi pega a laço, no mato. Meu avô Samuel garimpou com escafandro no rio Araguaia quando era moço, depois se afastou fisicamente da cata de diamantes mas se manteve política e culturalmente militante em defesa dos garimpeiros. Só comprava e vendia algumas pedrinhas, quando farejava um bom negócio, mas se dedicava ao seu cartório, era tabelião. E também ator amador, orador preciso e eloqüente e, referendando sua condição de garimpeiro cultural, presidente durante décadas da Sociedade União dos Mineiros, agremiação dos garimpeiros locais. Um tipo alegre, bemhumorado, hoje é nome de praça em Lençóis. Samuel e Anatária mudaram-se da Chapada Velha para Lençóis, a fim de assumirem o cartório, e tiveram dois filhos, minha mãe Semirames, por toda a vida chamada Santa, e meu tio Nivaldo, que me iniciou nas modernidades do século XX, advogado, muito cedo foi Juiz de Direito, me lembro o orgulho de meu avô — o mais jovem juiz da história do Brasil. Ele tinha um pequeno projetor de cinema e mostrava filmes para os sobrinhos, desenhos animados e paisagens de várias partes do mundo. A família Senna veio da Itália, da Toscana, em algum momento entre 1810 e 1820. Sua origem é uma pequena comunidade entre Pisa e Florença chamada Metato. Os Senna imigrantes, ao que tudo indica, saíram de Metato já com o objetivo de buscar fortuna com pedras preciosas. Pouco tempo depois se estabeleceram na zona diamantífera de Minas Gerais, em Grão-Mogol. Por volta de 1840 se deslocaram para as serras do centro da Bahia, onde novas minas estavam sendo descobertas. Caçadores de diamantes, seguiram as levas de garimpeiros, milhares deles afluindo de toda parte, que aportaram no novo Eldorado, um chapadão cheio de diamantes, a Chapada Diamantina. No decorrer desse século e meio que nos separam daqueles tempos heróicos, parte da família se fixou no centro da Bahia e parte dela se espalhou pelo Brasil, alguns se aventurando pela Venezuela. Esse espalhar sempre teve a ver com descobertas de novos garimpos, com novas corridas do diamante que aconteceram em Goiás, Mato Grosso e outros pontos. Para saber onde existem pessoas da família Senna basta pegar o mapa minerológico do Brasil e procurar as zonas diamantíferas. O garimpeiro de diamantes de uma maneira geral, mas particularmente o da Chapada Diamantina, tem uma conexão mística e ritualística com o seu objeto de desejo, de busca, de trabalho. Um dos nomes utilizados na região para designar o diamante é metal e é especialmente interessante, nessa conexão, que os Senna tenham vindo de um lugar chamado Metato. É uma cultura mágica. Para o garimpeiro, não é ele que encontra o diamante, é a pedra que o encontra, que o escolhe, é uma junção do destino com a sorte. O achado de um diamante tem a ver com três letras d. O primeiro d é o dono, o dedo do dono, ou seja, do garimpeiro que já foi previamente escolhido pelo diamante para ser o seu dono, para que essa pedra se entregue a ele. O segundo d é o dado, o destino, ou seja, o que faz com que esse homem seja escolhido por aquela pedra para ser seu dono. O terceiro d é o próprio diamante, a matéria mais dura e mais transparente da natureza, chamada pedra feiticeira, pedra mestra. A liturgia desse universo mítico é o Jarê, um candomblé-de-caboclo que só existe na Chapada Diamantina, fusão dos rituais nagôs com entidades indígenas e catolicismo rural e diferenciado pelo culto direto à pedra, ao elemento mineral. O centro do culto é o diamante, mas ele se estende à montanha como um todo e a todas as formas minerais. Durante minha infância foi constante o som dos atabaques e dos ganzás do jarê soando na noite de Lençóis, só não tão constante como o ruído do rio que passava cascateando no fundo da casa. Da casa de Lençóis, pois apenas nasci em Estiva, com poucos meses fui transferido para a bela Lençóis, a 50 quilômetros de distância. A decisão de Esmeraldo e Santa de deixarem Estiva teve a ver com segurança (em 1940 o bandido Riquizado promovia fartos tiroteios na vila) e com prosperidade, com o plano de abrir um comércio, uma loja, a futura Casa Esmeraldo. Lençóis foi o segundo e mais efervescente centro de garimpagem descoberto na região. No início do século XIX já havia garimpeiros na Chapada Velha, sem muito alarde. Em 1840 aconteceu a corrida para Lençóis, que cresceu em ritmo alucinante. Ninguém sabe exatamente o porquê desse nome, há três versões a escolher. A primeira tem a ver com os lençóis de espuma que se formam no sopé das numerosas cascatas. A segunda faz referência às primeiras barracas dos pioneiros, apenas quatro paus e um pano branco esticado em cima, que vistas do alto pareciam milhares de lençóis estendidos. A terceira está relacionada com os lençóis de diamantes, já que o diamante não se manifesta em veios, como o ouro, e sim em lâminas planas, em lençóis. Até o início do século XX a cidade viveu uma prosperidade impressionante, com milhares de escravos, donos de minas bilionários, comércio direto com a Europa. É a época da chamada aristocracia do diamante, com muito fausto, muita gastança e muita guerra também, disputas por serras e por poder político entre os Coronéis da montanha. A partir de 1920 as pedras escassearam e aconteceu o êxodo, a cidade de 30 mil habitantes passou a ter quatro mil, um período de decadência que só foi superado nos últimos anos do século, com o advento do turismo. Foi no meio da fase de decadência, com Lençóis perdida lá na serrania, esquecida do mundo, embriagada pelo passado e buscando soluções, caminhos para o futuro, que vivi minha infância, um tempo de maravilhas. O Pai e a Política Meu avô paterno chamava-se Jacinto, nome de flor mas também de uma pedra. O nome de meu pai é o masculino de esmeralda. Outros nomes de pedra podem ser encontrados na família, Safira, Ônix. Jacinto Senna e Laura Coelho, meus avós paternos, tiveram quatorze filhos. Me desvio um pouco para recordar minhas duas avós, Anatária e Laura, pessoas completamente distintas, a primeira em contínuo e constante atrito e a segunda em eterna e alegre sintonia com o mundo. Anatária era mal-humorada, insatisfeita, exigente e tentava controlar com mão de ferro e inutilmente seu entorno. Laura era aberta para a vida, otimista, esparzia energia positiva por onde andava, levantava os ânimos, organizava festas. Anatária não viajava porque enjoava tanto a cavalo como em automóvel, o cheiro de gasolina lhe causava vômitos. Laura viajava o tempo todo, circulando pelas muitas casas de seus filhos e parentes e cunhando frases inesquecíveis. Uma delas: o ruim da viagem é chegar ao destino, as viagens não deviam ter chegada. Vendo, convivendo e sendo alvo dessas duas atitudes, dessas duas qualidades de trato com a vida, achei (e continuei achando até hoje) que se tratava de opções, de livre-arbítrio, que as pessoas podem escolher entre a amargura e o prazer, entre a mágoa e o perdão, entre a raiva e a eterna busca da felicidade, uma busca que já é quase a própria felicidade. Anatária e Laura. Escolhi ser Laura e trabalho nisso desde então. Pois, a bela Laura e o garimpeiro Jacinto tiveram quatorze filhos. Vivi meus primeiros anos e parte da adolescência no meio de uma quantidade enorme de primos, primas, tios, tias, tios emprestados, tias emprestadas. Uma família de peso naquela pequena cidade de quatro mil habitantes. Todos ligados de alguma maneira à mais preciosa de todas as pedras: garimpeiro ou sócio de garimpo ou comprador/vendedor (capangueiro na gíria dos garimpos), ou lapidário (a família teve grandes lapidários). O único filho de Jacinto e Laura que se afastou do garimpo de diamantes de uma maneira prática, como opção de vida, foi meu pai. Desde muito jovem se sentiu negociante e montou a Casa Esmeraldo, um magazine. Outra paixão da vida foi a fazenda, a criação de gado. Foi o único dessa família que desandou para fora do garimpo, mesmo assim não completamente pois sempre teve pequenos trabalhos de faiscação em suas terras, nunca fechou a porta para os mistérios do diamante. E uma terceira paixão foi a política. Começou a carreira política na Era Vargas, durante o Estado Novo. Era um dos jovens mais dinâmicos da sociedade de Lençóis, inteligente, empreendedor, as pessoas o convenceram a assumir responsabilidade política. Acabara de se casar, bem jovem, mas foi nomeado interventor. Na época não havia prefeito, a autoridade municipal era um interventor nomeado por Vargas. Ele fez uma administração revolucionária para a época, no sentido de administração urbana, abertura de ruas, infra-estrutura sanitária, duplicação dos equipamentos educacionais, luz elétrica nos distritos, construção de estradas, frentes de trabalho, estímulo a iniciativas agrícolas. Durante a Segunda Guerra liderou um movimento de produção de mamona, para fabricação de óleo, e coleta de objetos de chumbo, para fabricação de balas, sua foto foi publicada na revista Em Marcha como uma figura importante no esforço de guerra dos Aliados. Depois da guerra, na democratização pós-Vargas, foi eleito prefeito com uma votação consagradora e a partir daí, durante muitos anos, foi um líder político decisivo na região. Era do Partido Social Democrata-PSD, sempre aliado ao Partido Trabalhista Brasileiro-PTB e em luta contra os conservadores da União Democrática Nacional-UDN. Depois do golpe de 1964 saiu da região porque a situação ficou muito desconfortável para a política que praticava, popular, desenvolvimentista, juscelinista. Mudou-se para Salvador, mas continuou tendo muita influência na política da região até perto de sua morte, no final da década de 1970. Fui criado e educado por meu pai para ser político. Político profissional, partidário. Ele aceitou ser prefeito da cidade por duas vezes, elegia deputados, tinha prestígio estadual mas nunca quis se candidatar ele mesmo a deputado federal ou estadual. Dizia que não era preparado para esses vôos, preparada era a minha mãe, que era professora. Era um homem de pouco estudo formal mas de muitas luzes, um sábio autodidata, muito prático, muito conhecedor das psicologias das pessoas que o cercavam, mas não se achava capaz de discursar em um parlamento. Tinha esperança que um de seus dois filhos pudesse gostar da política e o foco foi no primogênito que sou eu. Além da minha falta de vocação, o golpe de 1964 acabou com esse sonho dele, entendeu que os tempos haviam mudado. Tinha uma percepção muito aguda da História. Ele me disse, no segundo ou terceiro dia depois do golpe, que os militares ficariam no poder durante muito tempo, coisa para vinte anos ou mais. Não deu outra. A Mãe e o Teatro Minha mãe, Santa, era professora primária, diretora de escola e tinha um grupo de teatro amador. Tocava piano e também pintava, moça culta, educada em internatos de freiras francesas em Uberlândia e Salvador. Lia muito, assinava re-vistas francesas e brasileiras. Desde a mais tenra idade estive presente nos ensaios de teatro, canto e dança que ela dirigia na garagem de nossa casa ou no palco do Cine Rex. Minha memória dos ensaios e dos espetáculos é onírica, está entre a lembrança e a imaginação. E se mistura, se confunde, com outra atuação de minha mãe que era a utilização da expectativa, do suspense, ao contar histórias na hora de dormir. Contava as histórias até certo ponto e prometia terminar na noite seguinte se eu e meu irmão nos comportássemos bem. Na noite seguinte terminava a história, começava outra e interrompia (só muito depois entendi que ela imitava a Sherazade de As Mil e uma Noites). Com uns seis anos de idade passei a atuar em algumas das peças que minha mãe montava. A lembrança desses palcos da infância é muito difusa, só me lembro com mais nitidez de uma peça em que eu fazia Joel, um menino amigo de Jesus. Há um fato curioso nesse espetáculo, cujo nome não recordo. Minha mãe queria um ator com a imagem mais comum de Jesus: jovem, bonito, louro, cabelos longos. Não havia nenhum rapaz em Lençóis com todas essas características, principalmente quanto aos cabelos longos, nenhum homem tinha cabelos longos naquela época. E não ficava bem Jesus de peruca. A solução foi dar o papel a uma moça com cabelos longos e louros. O Jesus mulher, suave, tranqüilo, doce, foi um sucesso, repetiu três ou quatro vezes. São lembranças paralelas às da Segunda Guerra. Flashes de cenas, conversas, notícias no rádio entre meus três e seis anos de idade. Dois momentos permanecem muito vivos. O primeiro é o de meu tio Nivaldo indo para a guerra. Além de ter um pequeno projetor de cinema, Nivaldo desenhava, me explicava a guerra desenhando. Fazia uma caricatura assustadora de Hitler, duas suásticas no lugar dos olhos, dentes pontiagudos como balas de canhão e pernas superarqueadas. As pernas arqueadas, dizia, era porque o horrível Hitler estava sempre montado em um cavalo, dormia em cima do cavalo, sempre pronto para fugir quando os soldados brasileiros se aproximavam. Eu tinha pesadelos com essa imagem de Hitler, o monstro que queria destruir o Brasil. Nivaldo foi convocado e, fardado, saiu cavalgando em direção à guerra, o povo aplaudindo, minha avó Anatária aos prantos, meu avô também chorando e gritando à vitória, à vitória. Uma emoção sufocante é o que guardo na lembrança. Mas Nivaldo não chegou aos campos de batalha, a guerra acabou antes que embarcasse. O segundo momento é o espetáculo que minha mãe montou para celebrar o fim da guerra e a vitória, intitulado Guerra e Paz. Para mim e para os meninos de Lençóis, e talvez também para muita gente adulta, o Brasil ganhara a guerra. Não os Países Aliados, mas sim e só o Brasil, que foi lá e ganhou como se fosse futebol. Havia uma marcha de carnaval que fazia alusão à tomada da Sicília e ao jingle de um produto de limpeza muito popular na época: pra mostrar que braço é braço, eu conquistei Sicília, enfrentei bala de aço mas conquistei Sicília. O Brasil conquistou. Nesse clima de euforia minha mãe montou o espetáculo em um palco armado na praça principal, bem embaixo do sobrado onde morávamos. Por algum motivo, acho que gripe, não me foi permitido descer até a praça e tive de assistir ao espetáculo da janela do sobrado. E daí se via tudo e ao contrário: em primeiro plano as coxias, depois o palco e por último a platéia. Desse ponto de vista invertido, mas privilegiado, via os atores se prepararem e em seguida atuarem e um fato me chocou profundamente: a atriz que fazia a Paz, e que dizia coisas bonitas e poéticas no palco, se transformava em um capeta quando estava nas coxias, nos intervalos da sua atuação. Beliscava os outros atores, perturbava, fazia macaquice e, para meu absoluto espanto, fumava cigarros. Já a Guerra, que tonitroava no palco, ameaçava, xingava, socava o ar, era um doce de pessoa quando estava nas coxias, ficava quieta, imóvel, talvez rezando. A ficção e a realidade se mesclaram diante de meus olhos naquele teatro tão absolutamente transparente e, para sempre, no meu espírito, no meu entendimento do mundo. A Família Minha família nuclear é formada por cinco pessoas, somos três filhos de Santa e Esmeraldo: eu, primogênito; em seguida, com a diferença de um ano, Ronaldo de Salles Senna, professor universitário, antropólogo, uma pessoa muito considerada nas atividades acadêmicas da Bahia, produz um livro a cada dois anos; e Lêda Lúcia, que seguiu os passos da minha mãe como educadora e professora. Lêda Lúcia não é minha irmã de sangue, ela é minha prima, mas foi adotada muito menininha e virou irmã integral, a melhor das irmãs e a melhor das filhas, porto seguro emocional de toda a família. Casou, enviuvou, é mãe de duas filhas e avó de duas netas, hoje vive no sul da Bahia, envolvida com projetos culturais. Nos anos 1990 Ronaldo fez um trabalho importante para Lençóis, implantando lá um campus avançado da Universidade Estadual de Feira de Santana. Trabalhou décadas em salas de aula e pesquisas, correu mundo e voltou para sua terra com uma universidade embaixo do braço. É casado com Célia, um filho, duas filhas, três netos. Está lá feliz da vida, coordenando o campus, escrevendo seus livros e tomando banho de cachoeira. Um projeto inteligente que eu talvez também adote algum dia: voltar a viver em Lençóis com uma coisa estimulante para fazer. Meu pai morreu em 1978, com 67 anos de idade. No leito terminal, pediu aos filhos que dedicássemos algum tempo e algum esforço ao progresso de Lençóis, ao nosso povo da serra. Estamos fazendo o possível. Minha mãe se foi faz pouco tempo, em 2006, com 92 anos de idade. No aniversário dela em 2005, dos 91 anos, fomos todos celebrar em Salvador, e em determinado momento ela disse a vida é curta. Mas logo se corrigiu — não, a vida é longa, mas é muito rápida. Eu também começo a sentir isso, a velocidade acelerada do tempo, nestes meus 68 anos de vida. Shangri-lá Uma infância vivida prazerosamente nas ruas e nos casarões coloniais de Lençóis, no Cine Rex, no campo de futebol, nos rios, nas grutas sombrias, nos poços azuis, brincando de mocinho e bandido na serra, descobrindo bichos e plantas engraçadas no mato, matando cobras, viajando a cavalo com meu pai ou meu avô. Desde quando me entendo e até o início da adolescência o tempo da família era dividido entre Lençóis e a fazenda Lagoa do Piroca, um paraíso incrustado em um ponto bem mais alto da montanha. Oito meses em Lençóis, quatro meses na Lagoa. Fazenda antiga, uma igrejinha branca dominando a pequena sede, um terreno amplo com uma árvore gigantesca no meio, com carros-de-boi e cavalos aos redor. Do lado direito a nossa casa e mais outras seis ou sete dos moradores, do lado esquerdo o curral, a desnatadeira (produção de manteiga e queijo), a tenda do ferreiro, a casa de farinha e a moenda de cana girada por juntas de bois. Atrás dessas instalações, uma chácara com centenas de árvores frutíferas. Ao fundo da igreja, a lagoa esverdeada, deslumbrante, que dá nome à fazenda e, mais adiante, um rio serpenteando com trechos encachoeirados e poços de profundidades variadas onde crianças e adultos podiam nadar. Uma fazenda com muitas atividades mas basicamente dedicada à criação de gado, com pastos, vaqueiros, marcações a ferro e castração de bois, partos de bezerros, as vacas e os garanhões chegando no fim da tarde para pernoitar no curral, o ritual de acordar bem cedo para assistir à ordenha e beber leite espumante diretamente do ubre da vaca. A Lagoa estava sempre cheia de parentes, os primos e as primas, os colegas e amigos que convidávamos para passar temporadas, uma meninada buliçosa e, excitada pelo esplendor e segredos da natureza, ousadamente aventureira. Uma das aventuras mais radicais era caçar pedra-de-raio na tempestade, também chamada fulgurito: ficávamos observando onde caiam os raios, quando algum caía perto corríamos e marcávamos o lugar, depois cavávamos em busca da pedra, dificílima de achar, nunca achei mas outros meninos sim (a pedra-de-raio é um elemento sagrado no jarê). Muitas quedas, braços quebrados, escoriações. Uma vez caí de uma goiabeira, bati a nuca no chão e fiquei sem fala durante um bom tempo, mas mesmo mudo impedi que a turma avisasse aos adultos; minha mãe só soube uma hora depois e foi um Deus nos acuda. De outra feita subi na torre da igrejinha e toquei o sino, com a intenção de causar o estouro de uma boiada que ia passando, como víamos nos filmes bangues-bang das matinês do Cine Rex; o sino abrigava uma casa de marimbondos, que me atacaram sem piedade, a cara inchou, virou um balão. Um amiguinho nosso bebeu grande quantidade de caldo de cana na moenda, sob sol escaldante, o caldo fermentou no estômago e ele teve coma alcoólica, para desespero dos adultos. Meu irmão Ronaldo incendiou os cabelos ao se aproximar de uma fogueira. Há um episódio arrepiante comigo. Em um dia chuvoso, a terra molhada e escorregadia, estava fazendo alguma coisa na chácara, do lado em que ela fazia limite com o curral dos bois. De repente um touro em disparada aparece a poucos metros, saindo dos pés de café que se espalhavam por toda a chácara, exatamente em minha direção. Atrás de mim o tronco de uma jaqueira, o touro ia me amassar contra a jaqueira. Tão assustado quanto eu, o boi travou as patas e veio deslizando contra mim, resvalando na lama. A cena deve ter durado um ou dois segundos, mas é absolutamente nítida em minha memória e gerou alguns sonhos, pesadelos infantis. O touro só conseguiu se estabilizar a um palmo da minha cabeça, olho no olho, e desviou como um raio para a direita. Fiquei lá um tempo com as costas pegadas na árvore e meio sufocado, renascendo. Mas nenhum acidente ou incidente atrapalhava a esfuziante e inocente fruição da vida. Da qual fazia parte espiar as mulheres tomando banho nuas no rio. A curiosidade sexual começou muito cedo nesse ambiente de alta intimidade com a natureza e com as meninas, vendo a cada instante os coitos dos animais, o boi em cima da vaca, o cavalo rinchando em cima da égua, o pato tremendo em cima da pata e depois caindo de costas desmaiado. O início da minha iniciação aconteceu na garagem da casa de Lençóis, antes de um dos ensaios de teatro. Vi as luzes acesas, entrei e lá estavam três moças mudando de roupa, vestindo os trajes da peça. Elas fecharam a porta e me mostraram suas partes íntimas, perguntaram se eu estava com o pinto duro, quiseram ver e parou por aí, havia o perigo de chegar alguém. Um tempo depois, em uma festa na fazenda, aniversário de meu pai, a casa cheia, altas horas da noite, me deu sono e fui para a cama; um tempo depois fui despertado por alguém me acariciando, era uma senhora loura, casada, amiga da família; me abraçou, me beijou na boca, dirigiu minha mão até seu sexo, brincou com o meu. Tudo em silêncio, eu espantadíssimo mas superinteressado. A iniciação completa aconteceu um tempo depois, em Lençóis, quando eu já tinha onze anos de idade, pelas mãos (e por todo o resto do corpo) de Nina Bocão. Lençóis, como possivelmente outras pequenas comunidades interioranas brasileiras naqueles meados do século XX, tinha uma tradição de mulheres especialistas (ou especialmente interessadas) em iniciar os garotos. Geralmente eram prostitutas. Nina Bocão tinha sido prostituta mas teve uma filha e abandonou a profissão, passou a trabalhar com corte e venda de lenha e, apenas por prazer, sem qualquer ganho, como iniciadora sexual. Ela me levou para o mato, estendeu uma colcha-de-retalhos no chão e ensinou. Tivemos outros encontros, sempre no mato, para completar a iniciação, para chegar aos detalhes. Nina Bocão era pequena e rechonchuda, pele rosa acobreada, lábios grandes e estofados, musculatura de lenhadora e extremamente carinhosa. Anos depois soube do seu fim, inexplicavelmente assassinada pela policia, durante a ditadura militar. Fiquei tristíssimo, chorei. O episódio mais marcante da Lagoa do Piroca, na minha memória, é uma possessão. Um dia, amanhecendo, o pessoal ainda na faina da ordenha no curral, começou o alvoroço: uma jovem mulher, a saudável e risonha Petrina, moradora e trabalhadora da fazenda, estava destruindo o interior da igrejinha, quebrando os santos, danificando o altar, virando os bancos. Algumas pessoas tentaram entrar na igreja e foram rechaçadas. Meu pai, respeitadíssimo, dono da fazenda, também não conseguiu entrar. As crianças foram impedidas de se aproximar mas acompanhávamos tudo de longe, ouvíamos os gritos de Petrina dentro da igreja. Estava endemoniada, como todos diziam. Dois vaqueiros invadiram a igreja e foram expulsos, jogados para fora. Mais vaqueiros entraram, em grupo, e também foram lançados porta afora. A possuída tinha uma força enorme, descomunal. Organizaram rezas diante da igreja, as mulheres debulhando os rosários e cantando ladainhas, a notícia correu pelos arredores, juntou gente. No meio da tarde chegou um padre, que tentou entrar exibindo um grande crucifixo e rezando alto em latim e também foi expulso. Pouco depois apareceu um sacerdote do jarê, o curador Isac, que, enfim, conseguiu entrar na igreja. Ficou lá dentro um tempão, todo mundo em silêncio. E saiu abraçado com Petrina, calma, de cabeça baixa. Entramos na igreja para ver o estrago, tudo quebrado, o rastro do diabo no meu paraíso. Muita comoção e muitas descobertas nesses tempos da Lagoa do Piroca, mas a lembrança genérica e recorrente é a de um lugar e um tempo de delícias, de exacerbado prazer sensorial. Os sentimentos guardados nessa lembrança são de deleite, aconchego, conforto, placidez e também, em perfeito equilíbrio com essa bemaventurança, o júbilo, o regozijo, a volúpia, uma qualidade infantil e animal de luxúria. A memória desse tempo e lugar de êxtase não é só minha, é de todos os que viveram aqueles dias e noites da Lagoa encantada, os que éramos crianças e também os adultos. Recentemente, em Lençóis, casualmente nos reunimos alguns sobreviventes dos tempos da Lagoa, e confirmamos mais uma vez que a memória de todos, coletiva, é a desse êxtase perdido no passado, a nossa Shangri-lá. Cinema e Futebol Nos meses em que ficávamos em Lençóis, contando os dias para voltar à Lagoa, as aventuras pelas trilhas e águas da serra faziam parte do dia-a-dia. Fui Escoteiro de Montanha, havia uma organização escoteira comandada por um sargento do exército, a chamada era às cinco da manhã, no inverno era dureza, um gelo e tudo coberto de névoa. Subíamos as encostas com nosso equipamento, cordas, faca, cantil de água, apito. Acampávamos, tínhamos aulas práticas de botânica e treinamento de sobrevivência na montanha, principalmente no que se refere às cobras, numerosas e variadas naquela zona. Nessas caminhadas pelas serras de Lençóis e principalmente na Lagoa usávamos todo o tempo, pendurado no cinto ou no pescoço, um saquinho contendo rosalgar e outras substâncias que afastavam as cobras. Essa ligação direta e diária com a natureza era um dos aspectos do meu viver infantil, estendendo-se até o início da adolescência. Os outros eram o cinema, o futebol e a religião. Quando nasci o Cine Rex já funcionava em Lençóis, que foi uma das primeiras cidades pequenas do interior brasileiro a ter eletricidade (uma usina hidráulica local) e cinema. O Cine Rex era de um primo meu e tinha um camarote destinado à família e convidados ilustres, o que me permitia acesso fácil e também burlar a vigilância e ver filmes impróprios para menores. O primeiro filme que vi foi o desenho animado Bambi, de Walt Disney, e o segundo foi um filme adulto, O Ébrio, com Vicente Celestino. Vi muito desenho animado, mas vi filmes não só impróprios para crianças como também para mulheres, eram as sessões só para homens. Pelo menos um desses filmes proibidos eu me lembro, intitulado Mocidade Louca, com mulheres nuas. O ponto de encontro mais importante da cidade era a feira. O segundo era o cinema, refúgio de namoros permitidos e proibidos, ocasião para encontros e conversas. Os filmes eram brasileiros (alguns dramas e muitas chanchadas), mexicanos (melodramas) e americanos (bangue-bangue). Um ou outro filme europeu. Tudo em preto-ebranco, só de vez em quando aparecia um colorido, um musical de Hollywood. Mas a relação com o cinema e seu fascínio ia além do ato de ver filmes: colecionávamos quadros, ou seja, fotogramas dos filmes exibidos, organizados em álbuns artesanais com quadradinhos vazados. Os quadros eram vendidos pelo projecionista do Cine Rex e funcionavam como moeda, apostavam-se quadros nos jogos de bola-de-gude e outras disputas, uma cena de luta valia duas cenas de paisagem, uma cena de beijo valia três cenas de luta, cenas coloridas tinham mais valor. A abertura mental proporcionada pelo Cine Rex resultou em um dos direcionamentos da minha vida, complementando e potencializando a experiência seminal do teatro amador de minha mãe: a beleza e a função da arte, a fronteira sutil, transparente, entre o material e o imaginário, entre real e irreal, o concreto e o intangível. O futebol proporcionou outra diretriz, referenciada ao comportamento social. Devo ter começado a jogar bola muito cedo, mas a memória registra a partir dos dez anos de cidade, após a Copa do Mundo de 1950, quando o ato de jogar passou a ter uma importância consciente, quando passei a ouvir partidas narradas no rádio, colecionar figurinhas de jogadores, usar chuteira e ser torcedor do Bahia e do Vasco. Jogava todo dia, já mais taludo me fixei em um time organizado, com camisa e algo longinquamente parecido com um técnico, um treinador, que era o médico da comunidade. Jogávamos, todos os times, em formação absolutamente ofensiva, com dois zagueiros, três meios-de-campo e cinco atacantes, algo impensável no futebol atual. Adolescente, alcancei a glória de ser escalado para a seleção de Lençóis, no meio do campo, e jogar contra os times das cidades vizinhas. Continuei jogando até os trinta e cinco anos de idade, peladeiro, introjetando cada vez mais o ensinamento já pressentido nos primeiros anos de futebol em Lençóis: a possibilidade de amalgamar, de fundir, o individual e o coletivo. Essa fusão é arterial em todos os esportes coletivos mas se revela especialmente necessária e pulmonar no futebol, onde todas as estratégias e soluções só podem prosperar se o indivíduo e o grupo estiverem em perfeita sintonia, se a habilidade e a inteligência de cada jogador atuarem ao mesmo tempo como transmissores e receptores da energia grupal e vice-versa, quando o eu e o todo são a mesma coisa. Essa foi a revelação do futebol: a possibilidade de unidade dual e sua aplicação prática na vida. O corriqueiro do futebol, do cinema e das aventuras na serra incluía de vez em quando o assombroso. Se meus olhos esbugalharam na Lagoa, na possessão de Petrina, também esbugalharam algumas vezes em Lençóis, como no episódio da cadela hidrófoba que ensandeceu a comunidade durante quatro dias. Estava acontecendo uma Missão Católica, com bispo e muitos padres, missas, casamentos coletivos, Te Deum, um acontecimento. De repente correu a notícia de que tinha um cachorro doido atacando as pessoas. Não era incomum o aparecimento de cães hidrófobos na cidade, vez ou outra alguém era mordido e tomava a vacina anti-rábica e o animal era sacrificado. Mas desta vez a hidrofobia ganhou uma escala inédita. Muitas pessoas foram atacadas e seus depoimentos causavam calafrios, falavam de um cachorro pequeno mas terrível, com olhos vermelhos. O mais assustador é que informavam sobre ataques em diferentes pontos da cidade na mesma hora. O cão raivoso mordia alguém no Alto da Estrela às dez horas da manhã e na mesma hora mordia outra pessoa na ponte do São José, a quilômetros de distância, com testemunhas confiáveis. No segundo dia da Missão, o tal cachorro invadiu a igreja do Rosário superlotada, mordeu gente, avançou até o altar onde o bispo celebrava, sob uma saraivada de missais e de todo tipo de objetos escapou por uma porta lateral. Um pandemônio dentro da igreja, correria, gritaria, gente pisoteada. Um dos padres, em vez de acalmar os fiéis, gritou apoplético que se tratava do diabo, que o diabo havia se apossado do corpo do cachorro. Foi uma loucura. Eu e outras crianças fomos encerrados em uma casa com nossas mães, todo mundo rezando diante de um altar, um desses nichos que existem em casas antigas — e os homens pegaram suas armas e foram à caça. Lembro-me do som dos tiros, longe, de vez em quando uma série de disparos seguida de silêncio. A angústia só amainou quando mataram o cachorro doido, a tiros e pauladas. Tratava-se de uma cadela, morreu crivada por 28 balas, havia mordido 28 pessoas. Todas tomaram a vacina e foram salvas, com exceção de um homem que recusou o tratamento e, quando sentiu os primeiros sintomas da raiva se fez amarrar, as pessoas iam vê-lo babando e sofrendo preso a uma poltrona, na sala de sua casa, até morrer. Os Nagôs Tanto os Senna italianos como os Salles mestiços eram católicos e a família praticava com regularidade os ritos, íamos à missa, confessávamos e comungávamos, rezávamos antes de dormir, tive aulas de catecismo e fiz primeira comunhão. Minha mãe nos fazia ler, a mim, a Ronaldo e a Lêda Lúcia, vidas de santos e o Novo Testamento. Mas olhemos para fora da casa e da igreja: a cidadezinha encravada na serra, quatro mil habitantes, 80% da população composta por negros, descendentes do grande contingente de escravos importado no século XIX pela aristocracia do diamante. Cercada por paredões de granito cobertos de vegetação, a cidade tem uma acústica de catedral e até onde a memória alcança, e com certeza antes, no limbo dos primeiros dias de vida, escutava constantemente o som hipnótico do jarê. Na minha recordação esgarçada, os atabaques, os contrapontos metálicos e os cantos soavam todas as noites. Era inevitável a aproximação, quando comecei a me mexer por conta própria fui espiar os terreiros. Levado por uma empregada da família, participei de muitas Festas de Erê, rituais para crianças em louvor aos santos meninos Cosme, Damião, Doum, Crispim e Crispiniano. Adolescente e curioso, conversava muito com um paide-santo, um Curador segundo a denominação do jarê, que era nosso vizinho, um sacerdote de grande prestígio na região chamado Pedro de Laura. Ele me ensinou muita coisa sobre o sincretismo do culto, sobre a epifania dos diamantes e concedeu-me as primeiras informações sobre os orixás, sobre a cultura iorubá, ou nagô, o elemento mais importante na composição tripartite do jarê. Esse interesse, as visitas aos terreiros, as conversas com os Curadores também se manifestava em outros meninos da turma e muito especialmente em meu irmão Ronaldo, que se meteu de cabeça no assunto e se transformou em seu maior especialista, autor de pesquisas horizontais e verticais e de livros sobre o complexo universo dessa religião em que o diamante é o centro do universo e a Sorte é uma entidade, uma deusa. Para mim, o jarê foi a ponta do iceberg da cultura iorubá. Tempos depois, em Salvador, com 16 anos de idade, conheci Deoscóredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi. Tudo ao acaso: tarde da noite, voltando de uma farra com amigos, já subindo no ônibus, na Praça da Sé, ouvi gargalhadas vindas de um bar. Não sei por quê, sem me explicar, senti-me fortemente atraído por aquele bar exalando alegria e não subi no ônibus, acenei para a turma e fui para o bar. Lá estava um grupo de negros conversando e bebendo e o centro das atenções era um senhor entre trinta e quarenta anos, elegante, terno branco, voz grave e fala mansa, gestos largos. Não recordo o que estava falando, só a imagem e a voz e a reverência discreta que o cercava. De repente ele se dirigiu a mim, perguntou o que um garoto de boa família estava fazendo naquele lugar, de madrugada. Tentei explicar, todo atrapalhado, riram, ele me convidou para sentar com seu grupo. Naquele momento eu estava conhecendo o sumo sacerdote do candomblé Mestre Didi, Assobá e Alapini, ou seja, cuidador tanto do aspecto dos orixás (os deuses) como do aspecto dos eguns (os mortos, os ancestrais). E também escultor e escritor, filho da grande ialorixá Mãe Senhora, do centenário terreiro Ilê Opó Afonjá. Mestre Didi, querido amigo desde então e para sempre, me conduziu pelos caminhos de luz e sombra da Roma Negra, como dizem de Salvador da Bahia, revelando-me ou induzindo-me a descobrir os segredos, as invisibilidades da cultura de origem africana que ali se instalou. Foi o primeiro movimento de aprendizado, conhecer o universo em que viceja o cambomblé. Depois fui levado aos terreiros, em paralelo a um ensinamento mais orgânico da filosofia iorubá: a inter-relação dinâmica da existência individualizada com a existência genérica, do viver com a morte, do livre-arbítrio com as responsabilidades espirituais e sociais. Começando lá atrás com Pedro de Laura e expandindo-se com a orientação de Mestre Didi, o entendimento ontológico e existencial iorubá passou a fazer parte da minha visão do mundo, funcionando como um balanceador, como um equilibrador com relação à minha formação católica familiar. As coisas ficaram mais claras na minha cabeça, adquiri mais lucidez no trato com a sociedade e com as pessoas, mais atenção e mais cuidado com tudo que me cerca. Quando Mãe Senhora invocou o Ifá e me informou que eu era filho de Iemanjá eu me senti preparado para me jogar no mundo. Mas estou me adiantando, ainda estamos em Lençóis, tenho onze anos de idade e Salvador ainda era um sonho, um sonho ameaçado. Suspense A infância chegou a uma encruzilhada e ao seu fim em 1951. Nós, garotos de onze, doze anos, éramos fascinados com nossos conhecidos mais velhos, adolescentes, que estudavam em colégios de Salvador e vinham passar férias em Lençóis. Esses que estudavam na capital eram recebidos com festa, tratados como príncipes, namoravam com todas as meninas, lançavam modas, traziam novidades, faziam corridas de carros, mandavam ver. E sempre rindo, brincando, arreliando, em constante demonstração de felicidade. Eram nossos heróis e queríamos ser como eles, alcançar aquele estágio. Era um privilégio das famílias mais abastadas mandar os filhos para fazer o segundo grau, o ginásio como se dizia, e os estudos posteriores na capital. Era um investimento caro, não eram muitos os jovens lençoenses que tinham acesso a essa felicidade, a esse salto para um outro estágio, para outra dimensão da vida como pensávamos os que ainda não tinham chegado lá e os que nunca chegariam. Eu tinha acesso, minha família podia fazer o investimento, estava terminando o primário e ansioso, sonhando com o dia da partida para Salvador. Estou nesse impulso, inquieto e exultante, quando uma notícia devastadora põe todos os meus planos, todos os meus desejos, todo o meu futuro por água abaixo, pelo ralo: iam inaugurar um colégio na cidade, o Ginásio Afrânio Peixoto, e todos os meninos e meninas da minha idade estavam convidados a fazer o exame de admissão e formar a primeira turma do ginásio. Eu não podia escapar da armadilha, meu pai era prefeito e teria de dar o exemplo, seus filhos iriam estudar no colégio local. Chorei, berrei, esperneei, infernizei a vida de meus pais mas não tinha jeito, eu não iria para a capital, jamais seria um herói como os estudantes que vinham passar férias, não faria a grande aventura que havia planejado enquanto via filmes no Cine Rex e ouvia histórias de pessoas que haviam viajado, meu destino era ficar em Lençóis para sempre. A vida não tinha mais sentido. Fiquei arrasado, deprimido, com vontade de morrer. Contra a vontade, freqüentei um curso preparatório para o exame de admissão, desinteressado pelos estudos, pouco importando se ia passar ou não no exame. Abandonei o futebol, devolvi a camisa do time, fiquei malcriado. Estava revoltado e perdido, melhor nem ter nascido. E então o destino dá outra volta, uma reviravolta, e o sol volta a brilhar no meu coração: o Ministério da Educação não autoriza o funcionamento do Ginásio Afrânio Peixoto, o ginásio fecha antes de começar. Exultei, celebrei, dancei na rua enquanto toda a cidade lamentava o acontecido. E aí foi uma correria familiar, eu não podia perder um ano de estudos, tinha de ir às pressas para Salvador a tempo de alcançar o exame de admissão dos colégios e, enfim, lá fui eu para a capital, para o mundo. Não podia haver um garoto mais feliz que eu. Capítulo II Me Ajude a Ver Em Salvador, interno no Colégio Marista, emerge uma forte fascinação: a literatura. O interesse pelas letras vinha de antes, garimpada por meu avô Samuel, minha mãe e minha professora Angelina Felippi, mas no Marista, com uma grande biblioteca à disposição, a curiosidade foi aguçada. Lia desordenadamente, fiquei impactado com Gog, de Giovanni Papini, e com Pequena Introdução à História da Estupidez Humana, não sei de que autor. Tanto me fascinavam as idéias contidas nesses livros (as de Papini bem delirantes), como as histórias contadas por Machado de Assis e José de Alencar, leituras curriculares. E também, com gosto de rebeldia, os livros do Index, da lista de títulos proibidos pela Igreja, que procurávamos na Biblioteca Pública da cidade (podíamos sair do internato para cuidar de assuntos importantes) ou conseguíamos com nossos colegas externos. A curiosidade caótica foi pacientemente organizada pelo professor de português Agenor Almeida — um grande mestre, modesto, pobre, que sabia captar os interesses, inibições e tendências de cada aluno e, cuidadosamente, estimulá-los a agir de modo proveitoso para sua formação. Literatura brasileira, com ênfase na geração de 30, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz. Depois os grandes clássicos universais, depois os russos, os franceses e a moderna literatura dos Estados Unidos, John dos Passos, Hemingway, Steinbeck, Fitzgerald, a que mais me estimulou a escrever. O professor Agenor foi um achado, para mim e para muita gente da minha geração, para os futuros escritores, poetas, advogados, jornalistas e cineastas da minha geração, que o digam Geraldo Sarno, Glauber Rocha, Cláudio Melo, Humberto Mariotti, Gilberto Gil, o professor Aristides Teixeira, o advogado João Carlos da Silva Telles, o ex-juiz Augusto Magalhães. O professor Agenor me convenceu que o Latim era a matéria mais importante para a minha formação, estudei latim como um diácono, cinco anos de declinações e de Catilinárias. Agenor tinha razão, o latim me facilitou muito a vida, uma ferramenta utilíssima para meu ganha-pão, que se originaria basicamente do ato de escrever. Entro para o grupo de teatro do colégio, interpreto personagens ultradramáticos com maquiagem pesada, bigodes postiços, nomes franceses. As peças eram apresentadas aos sábados, às 7 horas da noite, para os alunos e seus familiares. Nada de especialmente importante nessa minha segunda experiência como ator, agora com mais consciência do que estava fazendo mas sem muito entusiasmo, sem muita atração para o palco. Em um dos espetáculos, dei uma cambalhota maior do que o espaço disponível, meu pé enganchou no elaborado cenário de pano recortado, representando uma floresta, e tudo veio abaixo. As árvores de pano pintado desabaram em cima dos atores, uma trapalhada, a gente querendo se desvencilhar. O drama se transformou, em um segundo, em um pastelão. A platéia gargalhava, aplaudiu de pé. O interesse pelo teatro só se fixou quando dirigi um espetáculo, Piastras Rubras (veja só o título!). Na verdade, co-dirigi com o Irmão Plácido, o chefe do grupo, que havia estudado teatro em Paris. A composição de um espetáculo, o equilíbrio e a inter-relação entre a abstração da palavra e a concretude do grafismo cênico, me revelaram uma possibilidade de expressão pessoal. Descobri o cineclube: um professor historiava sobre o filme, quando, onde, como, por quê, por quem foi feito; víamos o filme, o professor fazia uma análise (artística, histórica, social, a depender, mas também e sempre moral) e promoviase o debate. Acontecia às sextas-feiras à noite e chamava-se Cine Fórum. A programação era naturalmente tendente aos valores religiosos católicos, a uma catequese elevada, mas sem perder o foco na linguagem, no estudo da linguagem, que era oficialmente o objetivo dessas reuniões. Isso abria o leque para filmes como A Paixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, The Kid de Chaplin, Ladrões de Bicicleta de Vittorio de Sica. Me lembro dos filmes porque anotava. Menino, em Lençóis, anotava em um caderninho o nome do filme e dos atores principais. A partir do Cine Fórum do Marista acrescentei a nacionalidade, o nome do diretor e observações. Foi aí que conheci Walter da Silveira, de vez em quando ele ia a esse foro apresentar um filme — doutor Walter, como todos o chamavam, advogado, crítico e ensaísta de cinema, fundador e mantenedor do Clube de Cinema da Bahia, que nos anos seguintes seria o centro nervoso da cultura moderna em Salvador. Ou seja, os filmes continuaram como uma presença enorme na minha adolescência, inclusive porque a maioria dos meus colegas também era vidrada no escurinho do cinema. Aos domingos e feriados podíamos sair livremente, nos dias de semana só com autorização, na caderneta escolar, do diretor, o sisudo Irmão Cirilo, que tratava a todos os alunos como meu santo. Saíamos e nos enfurnávamos a tarde inteira em um dos imensos cinemas da Baixa dos Sapateiros, que exibiam três longas-metragens nas matinês, além de desenhos animados e cinejornais. Das duas da tarde às sete da noite, para desespero das nossas namoradinhas, meninas finas, que preferiam os cinemas chiques do centro da cidade, que exibiam apenas um filme por sessão. Cinema e namoradinha eram atividades complementares nessa época, estavam diretamente relacionadas, uma se alimentava na outra — porque estávamos descobrindo, elas e nós, os mistérios, as ambivalências, as delícias e os entorces do amor, assuntos recorrentes no cinema que queríamos ver juntos, o par, abraçadinhos; e porque o cinema era um lugar onde o namoro podia alcançar intimidade, onde a pegação era possível. Havia a praia aos domingos pela manhã, uma novidade para o menino montanhês. Conheci o mar aos cinco ou seis anos de idade, quando fui a Salvador pela primeira vez com a família. Foi impactante, quando cheguei diante do mar, na praia da Barra, fiquei extasiado por um tempo e logo meio tonto, escorreguei, deslizei por uma ribanceira, bati a cara em um coqueiro (uma sensação de pequenez que só conscientizei muito tempo depois, ao ler um dos textos curtos do uruguaio Eduardo Galeano, a história de um menino que é levado pelo pai para ver o mar e, diante da imensidão, aflito, pede — pai, me ajude a ver). Adolescente, a praia aos sábados e domingos era um território de prazeres sensoriais e também de aventura, de ter coragem de cantar uma menina desconhecida, de beliscar ou acariciar moças e senhoras casadas embaixo d’água, de enfrentar turmas de valentões e chamar pra briga (e sair correndo, arreliando). E nos dias de semana, todo dia das três às cinco da tarde, futebol nos três campos do colégio, torneios organizados com prêmios e medalhas para os vencedores. Peladas disputadíssimas, com um nível altíssimo de adrenalina. Conto só um episódio. Um garoto cavou um pênalti e foi impedido de bater, outro bateu e perdeu e isso levou o time à derrota. Madrugada, no grande dormitório coletivo, sou despertado para acompanhar, eu e um monte de gente, uma cena insólita de sonambulismo: o tal garoto, dormindo, veste calção e camisa do time, calça as chuteiras, pega uma bola, desce três lances de escada até o campo de futebol, põe a bola na marca do pênalti e, nesse momento, desperta, se assusta e fica apalermado olhando para a gente, seus colegas de pijama, sem entender. Vida de internato masculino nos anos 1950: cerca de cem adolescentes, entre 12 e 18 anos de idade, divididos em três grupos, Maiores, Médios e Menores (cada grupo com seu dormitório, sua sala de estudos, seu campo de futebol), gente de todas as regiões da Bahia, de outros Estados e de variadas extrações sociais. Entre os Irmãos Maristas havia espanhóis, italianos, franceses e alemães, além dos brasileiros. O Colégio Marista Nossa Senhora da Vitória, no bairro nobre do Canela, era prioritariamente destinado a jovens de classe média e alta classe média, o preço do ensino era alto e o da hotelaria (hospedagem, alimentação, roupa lavada, etc.) mais alto ainda, nas nuvens como dizia meu pai. Esses eram a maioria, mas havia um bom contingente de garotos pobres, bolsistas, e essa diversidade de origens sociais e regiões resultava em um cadinho cultural muito estimulante e revelador. A constância, às vezes nirvânica, às vezes sufocante da religião, missas diárias, Apostolado da Oração, Filhos de Maria. A fartura de ofertas esportivas, culturais (cinema, teatro, biblioteca, laboratório químico) e existenciais (a sedução de Salvador, a praia, as namoradas). O fato psicologicamente importantíssimo de estar longe das famílias e da terra natal por primeira vez. A questão da homossexualidade, histórias nunca comprovadas de Irmãos Maristas com alunos, rumores sobre alunos expulsos porque foram pegos. Os interesses e idiossincrasias individuais, a formação de grupos, o surgimento natural e incontível de líderes, as oposições idealistas ou mesquinhas a essas lideranças. E tudo isso vivenciado por esses espíritos quase virgens de tudo em um ambiente fechado, de grande intimidade masculina, como uma grande e estranha família sem mãe, uma colméia sem abelha-rainha. Saltando o Muro As grandezas e as misérias humanas revelam-se com grande nitidez em um ambiente como esse, a literatura e o cinema já abordaram o assunto internato masculino (e também feminino) inúmeras vezes, focando justamente a exacerbação de sentimentos e emoções que marca essas comunidades. Naquele meu internato aconteceu um fato chocante que tem a ver com essa exacerbação (e creio que o fato foi perturbador em todos os outros internatos católicos da época). Entre os livros que éramos obrigados a ler, curriculares, estavam os escritos de um tal Marten (não tenho certeza quanto ao nome), um moralista. Eram livros moralistas que, além de chatos, apresentavam conceitos e conselhos sobre os quais nem todos nós estávamos de acordo, aconteciam discussões com os Irmãos Maristas. Inesquecível: o piauiense Cláudio Melo, 14 anos de idade, enfrentando o Irmão Marcelo, apelidado Já Morreu, no refeitório, diante de todos os alunos e Irmãos: Marten é um hipócrita. Apesar da má vontade da maioria dos alunos com a pregação de Marten, os Irmãos continuavam afirmando que o escritor moralista era um exemplo a ser seguido. Até que, como um rastilho de pólvora, se espalhou a notícia, uma bomba: Marten havia se suicidado. Era verdade, o Irmão Cirilo teve de confirmar diante de todos, constrangido. Naquele dia a relação dos Irmãos com os alunos mudou sensivelmente, nós ganhamos mais respeito, nossas idéias passaram a ser ouvidas com mais atenção. Mas foi outro suicídio que funcionou como divisor de águas naquela década da adolescência: o de Getúlio Vargas. Anos antes, em uma das visitas da família a Salvador, havia visto Vargas desfilando em carro aberto pelas ruas, meu pai me levantou, me colocou sobre os ombros e Vargas passou a poucos metros, lentamente, de terno branco, acenando e sorrindo no banco de trás de um conversível. Uma imagem nítida na memória, incluindo um homem enorme de pé sobre o estribo do carro, negro e vestido de negro e com chapéu negro, Gregório Fortunato. Naquele agosto de 1954 estávamos em um intervalo entre as aulas, no recreio, quando alguém gritou voltem para as salas, Getúlio Vargas morreu. O Irmão Cirilo fez um breve discurso pelo serviço de alto-falantes instalado nas salas, o Brasil estava passando por grave crise política, os alunos externos iriam imediatamente para suas casas e os internos não poderiam sair, todas as autorizações de saída canceladas. Eu me indignei, tinha de sair, queria ver o que estava acontecendo. Com dois colegas, saltei o muro dos fundos do colégio e fui para a Praça Municipal, lugar de maior concentração popular, ouvir os discursos. O grande líder havia morrido por nós, para salvar o Brasil das garras dos Estados Unidos e da UDN. Saiu da vida e entrou na História para nos redimir, para impedir que fôssemos escravizados. Uma multidão no centro de Salvador, gente chorando, desmaiando, gritando, oradores inflamados em cada esquina, Vargas será vingado pelo povo. Voltei ao colégio às nove horas da noite, achando que ia ser expulso e encharcado de política. Se fosse expulso seria uma tragédia mas tinha vivido o segundo dia mais importante da minha vida (o primeiro tinha sido o dia da notícia de que o ginásio de Lençóis não ia funcionar) e tinha planos para o futuro. Mas também podia dar tudo certo, saltaria o muro dos fundos em uma zona escura, evitaria os cachorros (não mordiam, mas faziam um estardalhaço), e sei lá como chegaria impune ao dormitório. Outros haviam conseguido. Saltei o muro e lá estava plantado o Irmão Cirilo, rosário na mão, estava lhe esperando, meu santo. Não fui expulso, o castigo foi um mês sem futebol, de pé todas as tardes na varanda que dava para os campos, junto do sino. Só quem podia tocar o sino, usado apenas nas chamadas para as missas e demais atos religiosos, era o Irmão mais velho da comunidade, o italiano Marcelino. Mas eu estava embebido de política e de liberdade, a palavra mais gritada pelos oradores na Praça Municipal e, na hora mais improvável, no meio da tarde, com três partidas de futebol acontecendo no amplo espaço do colégio, toquei o sino proibido. Me lembro dos jogos parando, os jogadores confusos olhando em minha direção e eu lá, herói de mim mesmo, badalando vigorosamente o sino. Foi grave, ia mesmo ser expulso, meu pai foi chamado e parlamentou com Cirilo e mais uma vez escapei, tendo pesado na decisão as minhas boas notas e o fato de ter sido eleito presidente do grêmio dos alunos internos, o Centro Literário Desportivo Independente. Mas saiu caro: o resto do semestre longe do futebol. E do sino também, metido todas as tardes nas bancas, as salas de estudo. Com uma boa compensação: as férias seguintes, em Lençóis, foram as mais gloriosas de todas. Porque, claro, eu era um estudante da capital e, como havia sonhado quando menino, vivia férias de príncipe em Lençóis. Minhas estripulias no colégio tinham chegado aos ouvidos da pequena comunidade e minha reputação cresceu, tanto na visão da moçada local como na dos outros estudantes da capital, o que era muito importante. Namorei à beça. Tive outras férias quase igualmente gloriosas três anos depois, em julho de 1957, quando introduzi o rock em Lençóis: levei o disco seminal Bill Haley and His Comets e rudimentos dos passos da dança, que havia visto no cinema, no filme Rock Around the Clock, no Brasil Ao Balanço das Horas. Em Salvador o rock’in’roll já se anunciava como uma febre, as músicas de Haley já estavam tocando nas rádios, causando perplexidade, mas ninguém ainda tinha o disco em Lençóis. Foi uma sensação. E logo depois tomamos conhecimento de Elvis Presley, os quadris de Deus, e ficou claro que não era só música acelerada, era uma aceleração que tinha a ver com sexualidade, com política, um novo comportamento. Lençóis se assustou muito com a novidade, um escândalo. Política Estudantil Os padres jesuítas e salesianos, os maristas, as freiras sacramentinas e de outras ordens, proprietários dos colégios religiosos, estimulavam os alunos e alunas a participar da política estudantil secundarista. Os diretores dos colégios protestantes, pastores presbiterianos, tinham a mesma atitude. A idéia deles, que já vinha sendo posta em prática desde uma geração antes da nossa, era conformar um grupo político estudantil conservador, de peso, para fazer frente aos estudantes de esquerda (majoritariamente dos colégios públicos) que estavam ocupando todos os postos nas entidades de classe, nas secundaristas e nas universitárias. O embate era aberta e frontalmente Direita versus Esquerda, os direitistas eram chamados teleguiados e os esquerdistas apelidados sputniks, referências à tecnologia espacial dos Estados Unidos e da União Soviética. As frentes de batalha eram os grêmios dos colégios, a Associação Baiana de Estudantes Secundários-Abes e a União Brasileira de Estudantes Secundários-Ubes. Os padres e as freiras diziam que éramos uma geração especial, moças e rapazes inteligentes e promissores, e nos jogaram na tropa de direita da política estudantil. Mas muitos de nós já haviam passado por experiências como as do moralista Marten e dos discursos no dia da morte de Vargas, aquele dia que incendiou minha cabeça. Muitos de nós estávamos ansiosos por um entendimento das coisas além do que nos oferecia os colégios religiosos, queríamos ouvir os estudantes dos colégios públicos. E ouvimos. Os líderes direitistas, estudantes mais velhos, eram uns brutamontes, acabavam as reuniões na porrada, seqüestravam urnas cheias de votos na frente de todo mundo. Muitos de nós e nossas famílias estávamos política e emocionalmente ligados ao ícone Vargas, ao Vargas eleito pelo povo em 1950 e que se deu em holocausto em nome de idéias progressistas. Vargas não era de direita e ninguém era filho de padre. E deu-se o giro do parafuso da minha geração baiana: a esquerda era o caminho. O projeto dos religiosos professores não deu certo, saiu pela culatra. Eu não era um teleguiado, controlado a distância, eu era um sputnik solto e livre no espaço. Mas as lideranças políticas de direita da Bahia, atentas ao movimento estudantil, lutaram com persistência pela reconquista daquela geração, que se apresentava realmente muito promissora, muito forte, como previram os padres e as freiras. Éramos assediados com promessas de bolsas de estudo no Rio de Janeiro e São Paulo, com programas de visitas a países estrangeiros, nos davam muitos livros de presente. Há um episódio emblemático com Glauber Rocha. Um líder integralista convidou-o para um encontro em um pequeno auditório, alguém o levou até o centro da platéia e ele ficou sentado no escuro, esperando. De repente uma luz acende no palco, um foco de baixo para cima iluminando o tal militante integralista. A iluminação é impressionante, expressionista, o fundo musical é Wagner (imagino A Cavalgada das Valquírias) e o homem discursa dramaticamente sobre os princípios do Integralismo, Deus, Pátria e Família, sobre a reorganização da sociedade a partir de valores espirituais, a partir de valores eternos e não das mentiras perversas do socialismo e do capitalismo. Um show, que o único espectador interrompeu, chamou o cara de palhaço e foi embora (antes da virada Glauber tinha pertencido a uma organização integralista, o Centro de Estudo, Pensamento e Ação-Cepa). De um lado os galinhas verdes da Ação Integralista, do outro o Partido Comunista, o Sigma e a Foice-e-Martelo. Ambas as organizações tinham tentado derrubar Vargas e tomar o poder à força, com as armas, os comunistas em 1935, os integralistas em 1937. O Partido Comunista nos assediava com mais elegância e com estímulos mais interessantes, como a de dirigir nossa atenção para o jornalismo, nos avisar que, se queríamos realmente nos expressar, tínhamos de usar a imprensa. Como foco dessa disputa de adultos, éramos forçados a pensar, a analisar, a refletir, a resistir às tentações, a escolher e a defender nossas escolhas — e a nos conscientizar sobre os muitos patamares da política, desde a ação juvenil-estudantil que praticávamos até as grandes decisões que sacodem a humanidade, como a Revolução Soviética e a Segunda Guerra Mundial. Conheci Glauber nessa época, aos 14 anos de idade, na militância da política secundarista. Cheguei atrasado a uma assembléia e ele estava discursando, descabelado e vestindo uma capa de gabardine, como Humphrey Bogart. Estava defendendo uma idéia completamente nova para mim e seguramente para todos os jovens que ali estavam: dizia que a política era incapaz de construir um mundo novo, que o mundo só seria transformado através da arte. Estávamos ali, dizia, para mudar o mundo, para acabar com as injustiças e a miséria, a única missão digna de uma pessoa inteligente, e só a arte podia fazer isso. Gritou uma palavra de ordem, algo como todo poder aos artistas, e saiu da sala, sem esperar réplicas ou aplausos. Impressionado com essa história do poder da arte, fui atrás dele, estabelecemos contato. Sou ator, ele disse. Eu também, respondi. Estávamos nos referindo ao nosso trabalho teatral nos colégios, eu no católico Marista, ele no protestante Dois de Julho. Empatia instantânea, ficamos amigos para sempre. Ele era um conspirador em tempo integral, logo me incluiu em seu grupo de ininterrupta conspiração, o conceito revolução passou a ser o foco de nossas conversas, leituras e meditações. Arte e revolução. O grupo foi crescendo e começamos a atuar em lances programados, o primeiro foi nos espalharmos por diversos colégios. Sai do Marista e fui para o Antonio Vieira, dos jesuítas, e externo, morando em uma pensão de estudantes. Glauber foi para o Colégio da Bahia, maior colégio público da cidade, território mais fértil para seu projeto de mudar o mundo através do teatro. O segundo lance foi ocupar as posições mais importantes nos grêmios e na Abes, fazendo campanha nos colégios e disputando eleições. Para tanto nos aliamos aos comunistas, embora não simpatizássemos com a rigidez do estilo de vida e das práticas políticas deles, achávamos que eram atitudes conservadoras, quadradas como se dizia na época. Nossa turma, garotos e garotas oriundos dos colégios religiosos, freqüentava a praia e à noite íamos aos clubes e aprontávamos, muitas vezes fomos retirados de boates, pela direção da casa ou pela polícia, por sermos menores de idade. Éramos, em uma palavra, indisciplinados. Estávamos interessados em Marx mas também no rock, na Nouvelle Vague que estava aparecendo, em Brigitte Bardot, em James Dean, no carnaval, no futebol, na capoeira (fui aluno de Mestre Bimba). Mas não se tratava apenas da diferença comportamental, esse era só um aspecto das nossas discussões com os queridos amigos comunistas. O outro aspecto, político-ideológico, emergiu fragorosamente quando a União Soviética invadiu a Hungria. Foi em 1956, um ano de grande politização, com Juscelino Kubitschek iniciando seu governo transformador, após vencer uma tentativa de golpe civil, e a crise do comunismo, o Conflito Sino-Soviético, Kruschev denunciando os crimes de Stalin, os chineses esculhambando os soviéticos. Tudo isso repercutia fortemente na política secundarista. E a União Soviética invade a Hungria, fotos enormes de tanques nas primeiras páginas dos jornais, indignação internacional, perplexidade nas esquerdas. Um da nossa turma, Paulo Gil Soares, publica um poema contra os tanques, nós não apoiamos a invasão. E nesse momento, não sei vindo de onde, começamos a falar em uma terceira opção, alguma coisa como socialismo democrático com os artistas no poder, uma espécie embrionária e romântica do que seria a Terceira Via que hoje se discute. Damas da Noite Dessa minha turma poucos entraram para o Partido Comunista, mas todos mantivemos nos anos seguintes laços de aprendizado e de amizade com grandes figuras baianas do Partidão, como os nossos mestres de jornalismo. Esse mergulho precoce nas complexidades da política não era obsessivo, não ocupava todo nosso tempo e pensamento, tínhamos outras curiosidades, buscávamos outras sensações. E outros mergulhos. Morando na pensão de Dona Bela, completamente independente da família, fui conhecer a noite, uma dimensão da vida que o cinema e a literatura glamourizavam e que eu devia conhecer. Passei a ir a boates, inferninhos, ouvir pianistas. O companheiro mais constante dessas aventuras se chamava Odilard, pouco mais velho que eu, também da Chapada Diamantina, colega de pensão. Odilard era um boêmio de verdade e me revelou outra noite, diferente dos ambientes sofisticados: o negócio noturno do sexo, a prostituição, os cassinos, a miséria abraçada com o luxo. A emoção de estar experimentando aquela vida de cinema incluía o visual faiscante dos cabarés Tabaris e Rumba Dancing, com suas orquestras e cantores, iluminação feérica, dançarinas exóticas, sorteios. Mulheres de todos os tipos e tamanhos, perfumadas e com roupas extravagantes, à disposição para dançar. A cada dança elas faziam um furo em um impresso, uma cartolina, que o freguês apresentava na saída e pagava. Dança a preço fixo, mas as damas da noite caprichavam na sensualidade, colavam o corpo, beijavam a orelha e depois pediam autorização para fazer dois ou três furos. Daí parti para expedições ao Pelourinho e à Ladeira da Montanha, a barra pesada da noite, baixo meretrício, bêbados caídos na rua, brigas, as mulheres sentadas nas portas com as pernas abertas, expondo o sexo. Sempre em grupo, nenhum de nós se aventurava sozinho naqueles antros sombrios. Qualquer contato físico com aquela fauna perigosa, ameaçadora, era evitado, mesmo um apertar de mãos, era visível o risco de doenças sexuais e de outras, a ausência de higiene era chocante. Mas conversávamos com prostitutas e cafetões. A gente só passava por ali, parava um pouco em cada esquina, observava. Uma noite estávamos, eu e Odilard, em uma dessas aventuras arriscadas quando fomos cercados por policiais militares. Uma situação insólita e apavorante, os PMs fecharam o círculo, nos imobilizaram, e não diziam nada. O que é, o que foi, o que a gente fez? E eles nos olhando fixamente e mudos. Ser preso de madrugada no baixo meretrício, aos 16 anos de idade, meu pai não ia entender, minha mãe ia morrer de desgosto. Até que a angústia foi interrompida pela aparição de um sargento, o comandante da tropa, que desfez o cerco às gargalhadas. Era o sargento Domingos Alcântara, ou melhor, Mingo, meu amigo e vizinho em Lençóis, um tremendo gozador, fazendo uma das suas, se divertindo. Jogralescas Em 1957 o teatro de Glauber mudou um mundo: o mundo cultural de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, a cidade de Rui Barbosa e Castro Alves. Foi como um terremoto, um tratamento de choque nas elites intelectual e política, uma casta enraizadamente acadêmica, amarrada à tradição e às formalidades, à erudição pela erudição, à vaidade da oratória rebuscada, gongórica. Esse castelo do século XIX ainda dominava a engrenagem político-cultural da cidade, tinha resistido à Semana de Arte Moderna de 1922 e à ação de alguns modernizantes, o maior deles Jorge Amado. Glauber, sua irmã Anecy e outros estudantes artistas do Colégio da Bahia, entre 16 e 18 anos de idade, fundam o grupo Jogralescas Teatralização Poética: os poetas Fernando da Rocha Perez e Paulo Gil Soares, o artista plástico Calazans Neto, o futuro grande jornalista João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, e outros. O espetáculo Jogralescas estréia com casa cheia, houve um trabalho forte de convites, de atrair todo mundo que era importante na cidade, a estudantada de esquerda deu uma força, eu inclusive. O espetáculo era simplíssimo, limpo, límpido, direto, ascético, os atores com batas de cores claras, descalços, construindo lentas e densas coreografias. Diziam, interpretavam poemas modernos brasileiros e latino-americanos com um tom intimista, como se falassem no ouvido dos espectadores, a anos-luz do barroquismo ao qual aquela platéia estava afeita. A composição plástica perfeitamente integrada ao estilo cool da interpretação e ao conteúdo da melhor poesia do século XX, um teatro que ninguém nunca tinha visto, comovedoramente bonito e ao mesmo tempo contestador e provocador. Causou uma sacudida de tremor sísmico, muito além do que o pessoal do Grupo Jogralescas, ou qualquer um de nós, seus amigos, poderíamos supor, imaginar. O assunto da cidade, manchetes nos jornais, fartos comentários nas rádios, a antiga casta dividida entre o embevecimento com a coisa nova e a defesa de velhos cânones, polêmicas públicas na imprensa e nas universidades, é arte superior, é agressão à arte e à sociedade, é uma maravilha, é uma desgraça, Jorge Amado dizendo que o espetáculo dos meninos era o início de uma nova era da arte moderna brasileira. O espetáculo foi apresentado para centenas de estudantes, em seguida estrearam o Jogralescas II, todo mundo queria ver o fenômeno. Foi a eclosão do grande movimento artístico baiano que vicejou nos últimos anos 1950 e na década seguinte. O escândalo das Jogralescas gerou rapidamente a Editora Macunaíma e as revistas Ângulos e Mapa, trincheiras de reflexão e proposição daquela que passou à História justamente como a Geração Mapa. A cancela estava aberta e aí foi o estouro da boiada. Os Ecos da Ilha A Revolução Cubana é a estrela super brilhante dessa época. Acompanhávamos a evolução dos acontecimentos em Cuba desde 1957 e esse acompanhamento foi desenhando em nossos espíritos o modelo de revolução que poderia aconchegar nossos ideais de mudar o mundo através da arte, um desejo que logo se estenderia para através da cultura. Fazíamos manifestações a favor dos guerrilheiros da Sierra Maestra, jovens heróicos que estavam tentando derrotar uma ditadura sanguinária. Eu me sentia participante do Movimiento 26 de Julio, eu me dizia participante desse movimento dos estudantes cubanos, em sã consciência e sem pudor, acreditando que não havia necessidade de pedir permissão, ou de me inscrever ou qualquer outra formalidade para pertencer ao Movimiento, bastaria ser e atuar. No dia 1º de janeiro de 1959 eu soube, pelo rádio, da vitória dos barbudos de Fidel Castro, que tinha apenas 26 anos de idade. Fiquei emocionadíssimo. Havia feito uma tremenda farra com minha turma na noite anterior, no réveillon, estivemos no baile do Clube Fantoches da Euterpe e amanhecemos o dia na praia do Unhão, bebendo, namorando e, justamente, falando sobre os guerrilheiros cubanos. Era o assunto quente nos jornais e rádios, que não acreditavam na vitória dos guerrilheiros, havia boatos sobre a morte de Fidel, diziam que seus discursos tinham sido gravados antes de sua morte. E de repente o rádio berrando, triunfo da Revolução Cubana. Aquilo significava que era possível materializar os nossos ideais, os nossos planos, os da minha geração como um todo mas, de uma maneira mais aguda, os sonhos de liberdade e transformação social que eu pessoalmente estava alimentando. Era um dia belíssimo, um sol maravilhoso, e os dias seguintes, adrenalínicos, foram ocupados por reuniões, assembléias, passeatas e noites de intensa celebração. Nas semanas seguintes as notícias indicavam uma agitação estonteante em Cuba, transformações radicais, reforma agrária, alfabetização em massa. Não passou muito tempo para que fossem iniciadas relações diretas entre o movimento baiano e os cubanos, alguns emissários de Havana foram a Salvador. Lembro-me da expressão radiosa de Glauber informando-me que Cuba estava organizando uma grande empresa estatal de cinema, que centenas de filmes revolucionários seriam realizados em toda a América Latina, um cinema de guerrilha, o poder de fogo da arte, um cinema novo para o homem novo, um nuevo cine. A relação se estreitou, al-guns amigos visitaram a Ilha, voltavam falando maravilhas. Geraldo Sarno foi estudar cinema no Icaic, o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos, a grande empresa estatal que rapidamente se tornou realidade. Tudo estava se concretizando, eu estava tonto, era como uma espécie de embriaguez. Tempo de Decisão Tão tonto que, em fins de 1959, com 19 anos de idade, ocorreu-me uma crise de identidade. Nunca ouvi falar em crise dos 20 anos, mas eu tive. Também pudera! Aquelas revoluções todas! Havia uma pressão da família e de alguns de meus amigos para que eu fizesse a faculdade de Direito. Das profissões tradicionais era a que mais me atraía, mas não me entusiasmava, eu sonhava com jornalismo e também com teatro e também com cinema. Apesar das revoluções que nos cercavam, meus amigos pareciam ter clareza em seus planos pessoais, todos excitados com a futura vida universitária, muitos já se reconhecendo e começando a ser reconhecidos como escritores ou poetas ou pintores ou cineastas e eu sem me decidir, só agitando e lendo. Até meu irmão Ronaldo, o caçula, tinha certeza que ia estudar Letras e Antropologia. Eu não tinha essa clareza. Fiz o exame vestibular para Direito e não passei, para espanto de meus amigos e da família, pois tinha sido um bom aluno até então, sempre entre os dez melhores da classe. Não passei porque tive notas baixas em Francês, uma matéria com a qual nunca tivera problemas. Fui para Lençóis, fiquei uns seis meses tomando banho de rio, jogando futebol e lendo filosofia, primeiro uma História da Filosofia e depois os complicados meandros de Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Minha aproximação com a filosofia aconteceu no Curso Clássico, no colégio jesuíta, onde constava como matéria curricular. Com a filosofia no sentido da busca ou construção dos princípios que possibilitam o saber, no sentido de ordenação e relacionamento de conhecimentos e ilações, enfim, a filosofia erudita, porque no sentido popular do divagar, do emendar pensamentos, do matutar eu já conhecia desde criança. Sempre escutei que garimpeiro filosofa muito e é verdade, dias e dias sozinho na serra fazem pensar. Lia e relia Nietzsche, encantado com a defesa do espírito dionisíaco, o entregar-se ao sentimento, à ação e à emoção. A preocupação de meus pais era crescente, se eu não quisesse estudar, se eu fosse tão burro a ponto de não fazer universidade, então tinha de trabalhar, o Banco do Brasil tinha uma vaga à minha espera. Funcionário de banco eu tinha certeza que não queria ser, também não ficaria em Lençóis, apesar da boa vida. O Ginásio Afrânio Peixoto já estava funcionando e havia muitos estudantes das cidades vizinhas, muitas moças, eu tinha um jipe (que perderia se não voltasse a estudar) e excesso de testosterona. Me enganchei em um namoro com uma menina chamada Toni, morena exuberante e desinibida. Uma relação orgiástica, sexo e álcool. Nós e um primo meu e sua namorada Teca, também avançada no tempo, ficávamos tardes inteiras na serra, tomando banho de cachoeira e transando. Os namoros eram públicos, mas o sexo era escondido, a virgindade feminina e o pudor ainda eram valores determinantes, se descobrem teríamos de casar. Toni e Teca, figuras inesquecíveis, viviam com antecipação a liberação sexual que só iria acontecer anos depois, umas pioneiras. Enfim me decidi, escolhi tudo: faria os cursos de Direito e de Teatro e ganharia a vida como jornalista. Principalmente, faria a revolução. Nos preparativos para a volta a Salvador, a última surpresa de Toni: como a rapaziada sabia que eu ia embora e Toni era um monumento, formou-se uma lista de pretendentes; Toni pediu que eu decidisse com quem ela deveria namorar depois da minha partida, eu escolhi meu amigo Carlitin e os dois foram felizes por algum tempo. Peguei meu jipe e desci mais uma vez a montanha em direção a Salvador, em direção a um novo capítulo. As dúvidas haviam desaparecido, dissolvidas no fogo de Toni e em uma nova compreensão da existência: eu não tinha de escolher muito, tinha de deixar espaço para o destino. Revolução Cultural Na virada das décadas 1950/1960 acontece uma conjunção, uma soma de acontecimentos raros, que produz uma energia cultural de alta voltagem em Salvador da Bahia, gerando um movimento que se expandiria pelo País e teria repercussão mundial. Ao mesmo tempo que emerge a Geração Mapa, saindo da adolescência e balançando vigorosamente a província, e ao mesmo tempo que a Revolução Cubana ilumina o mundo jovem, materializa-se o projeto da Universidade Federal da Bahia, com um desenho ousado e modernizador. Edgar Santos, criador e reitor da UFBa, é um personagem-chave dessa história: médico e professor, ministro da Educação e Cultura nos últimos meses do segundo governo Vargas, montou uma universidade de ponta, com os cursos tradicionais revigorados, ciências exatas, humanidades e uma rede de escolas de arte. Para todas as áreas, mas especialmente para essas escolas, importou grandes mestres brasileiros e de diversas partes do mundo: Escola de Dança com a bailarina e coreógrafa polonesa Yanka Rudska à frente; Seminários Livres de Música com Ernst Widmer, Walter Smetak e o genial dodecafonista alemão Hans-Joachim Koellreutter; e a Escola de Teatro, com Eros Martim Gonçalves na direção e uma constelação de professores e consultores, Gianni Ratto, Ana Edler, Alberto D’Aversa, Eugenio Kusnet, Domitila Amaral, Sérgio Cardoso. Revitalizou a centenária Escola de Belas Artes e integrou-a a esse complexo. Instalou institutos de estudos específicos e internacionais, entre eles o instigante Centro de Estudos Afro-Orientais, dirigido pelo português Agostinho da Silva. Rapidamente, Salvador da Bahia se transformou no centro cultural mais importante do País, atraindo intelectuais e artistas de toda a parte. Aí estava a italiana Lina Bo Bardi criando e desenvolvendo um projeto arquitetônico e gráfico conciliando a modernidade latino-européia com matrizes da cultura popular baiana e nordestina, construindo o Museu de Arte Moderna, o Museu de Arte Popular do Solar do Unhão, ocasionando uma revolução nas artes gráficas e na cenografia teatral. Aí estava o francês Pierre Verger, fotógrafo extraordinário, revelando e promovendo a verticalização das relações culturais Bahia-África. Aí estavam o gravador alemão-baiano Hansen Bahia e também o pintor argentino-baiano Carybé. Ganhamos, os jovens baianos, novos e brilhantes mestres, inovadores, incendiários, mestres caídos do céu. Cruzaram nossos caminhos, nos deram aulas, conversaram e trocaram idéias conosco estrelas do pensamento do século XX como Sartre, Simone de Beauvoir, Roger Bastide. Também apareciam para encontros na Reitoria ou na Escola de Teatro pessoas tão díspares como os astros do cinema internacional Elsa Martinelli e Tony Curtis (todo o tempo maquiado, causando estranheza) e Juanita Castro falando mal de seu irmão Fidel e sendo vaiada. A atmosfera incandescente gerada por essa dinâmica universitária somada à ação escandalosamente transgressora e inovadora da minha geração, que estava entrando na universidade, potencializou e popularizou um grupo de intelectuais e artistas, de grande talento, da geração anterior, que acrescentou um brilho especial à aventura do espírito que a cidade estava vivendo — refiro-me ao geógrafo Milton Santos, ao antropólogo Vivaldo Costa Lima, ao historiador e crítico de arte Clarival do Prado Valladares, ao escultor Mário Cravo, aos pintores Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Jenner Augusto, Sante Scaldaferri, Rubem Valentim, Raimundo de Oliveira. O fogo da minha geração, atiçado na política estudantil secundarista, na consagração das Jogralescas e na Revolução Cubana, virou lava de vulcão ao se alimentar nessa universidade de vanguarda. E vice-versa: a influência dos jovens estudantes intelectuais na afinação, na arte final dos programas da jovem UFBa e na sua aplicação foi essencial para que tudo acontecesse como aconteceu, como uma torrente, que correria até o final dos anos 1960. Com liderança de Glauber Rocha, o movimento baiano viria a desaguar em uma nova leva de grandes escritores, poetas e artistas plásticos, no Cinema Novo, no Tropicalismo. Não vale a pena detalhar os lances desse movimento, já razoavelmente documentado em livros e filmes. É só para me localizar, para dizer que eu estava imerso nesse fogaréu. Sem deixar de mencionar o extraordinário Clube de Cinema da Bahia, encabeçado por Walter da Silveira, onde vi todo o cinema que deveria ser visto naquela altura da história do cinema. Ao voltar do hiato em Lençóis, me dei conta da velocidade em que as coisas estavam acontecendo em Salvador. Só para falar nos amigos mais próximos: Luis Paulino dos Santos estava filmando Rampa, Glauber estava montando O Pátio, Roberto Pires havia feito um filme longo, em cinemascope, Redenção, e estava organizando uma empresa produtora; Calazans Neto, Emanoel Araújo, Sonia Castro, Juarez Paraíso invadiam as exposições e galerias, conformando uma nova e poderosa geração de artistas plásticos; João Ubaldo Ribeiro despontava como contista, uma nova onda de poetas fazia publicações ou declamações diárias, Florisvaldo Mattos, Jair Gramacho, Fernando da Rocha Perez. Uma pessoa importantíssima nessa fervura: o artista gráfico Rogério Duarte, inteligência faiscante. E tudo sob as bênçãos de Jorge Amado, que adotou a rapaziada com amor de pai. Me dei conta da velocidade das coisas e cumpri o que havia planejado: entrei para a faculdade de Direito, onde já estavam vários dos que acabo de mencionar, e para a Escola de Teatro. Direito pela manhã, teatro à tarde e intensa vida noturna, incluindo noitadas freqüentes no Anjo Azul, um bar existencialista. Escola de Teatro Fiz parte da segunda turma da Escola de Teatro, com colegas que se tornariam grandes atores e atrizes, Othon Bastos, Geraldo del Rey, Helena Ignês, Sonia dos Humildes, Nilda Spencer, Mário Gusmão, Carlos Petrovich. Os processos de atuação dramática me entusiasmaram: Stanislavski, o Método de Lee Strasberg, o distanciamento crítico de Brecht. Meu interesse mais agudo era a direção e me dediquei com afinco, os professores eram excelentes, incluindo os americanos. A escola recebia recursos da Fundação Rockefeller e tinha um convênio com o Actor’s Studio de Nova York, o que nos permitia um contato permanente com a grande escola de atuação norte-americana, intercambiando professores, alunos e informações. Tive como professor de iluminação o Robert Bonini, o cara que estava reinventando a iluminação teatral na Broadway. Tive como professor de atuação e direção nada menos que Charles McGaw, um dos grandes cabeças do movimento que estava transformando o teatro americano. O grande start desse movimento, Um Bonde Chamado Desejo de Tennessee Williams, dirigido por Elia Kazan, com Marlon Brando, ainda estava em cartaz em Nova York quando Charles McGaw veio à Bahia para montar o mesmo espetáculo com os alunos da escola. Um sucesso espantoso, Othon Bastos como Stanley Kowalski, Sonia dos Humildes como Stella. O teatro clássico, o teatro contemporâneo (europeu, americano, japonês) e o teatro brasileiro tinham o mesmo peso e recebiam a mesma atenção no plano de estudos e exercícios. Os espetáculos montados pela escola, com altíssima qualidade técnica, textos ousados, variedade de estilos e muita pulsação criativa (como tudo que acontecia naquele momento), encantaram a população da cidade e os críticos do Rio e de São Paulo. Os espetáculos eram apresentados na sala da escola, no Museu de Arte Moderna, em praça pública e no enorme e semidestruído Teatro Castro Alves, que incendiara antes de ser inaugurado. Peças de Tchecov, Pirandello, Paul Claudel, Strindberg, Garcia Lorca, Yukio Mishima, o Calígula de Albert Camus, a Ópera dos Três Tostões de Brecht. E os nossos, Gil Vicente, Artur Azevedo, Francisco Pereira da Silva, Maria Clara Machado, Ariano Suassuna, João Cabral de Mello Neto. E também peças de alunos, como Cachorro Dorme na Cinza do Echio Reis. E também os primeiros textos de Boal, que foi lá com o Teatro de Arena. Uma pulsação teatral acelerada, ao mesmo tempo horizontal, conhecer tudo de melhor que existe, e vertical, a busca de uma linguagem moderna e própria, baiana, brasileira. À frente de tudo, dirigindo a escola e alguns dos espetáculos, o pernambucano Eros Martim Gonçalves, com formação na Inglaterra, elegante e corajoso. Como o reitor Edgar Santos e o professor Agenor Almeida, Martim Gonçalves, outro personagemchave dessa história, era médico. As escolas de arte funcionavam em rede, Teatro, Música e Dança no bairro do Canela, vizinhas, e Belas Artes no centro da cidade. A atividade interdisciplinar era intensa, os alunos das quatro escolas freqüentavam as quatro escolas. Essa interdisciplinaridade é uma marca também do movimento cultural baiano dos anos 1960 como um todo, poetas, pintores, dramaturgos, cineastas se envolviam em projetos comuns o tempo todo, as distintas expressões artísticas estavam articuladas, enredadas. E chegava muita gente de fora para ver o que estava acontecendo, jovens de todo o Brasil, e até da Argentina, apareciam e eram seduzidos pelaagitação. LuisCarlosMacielveiodo RioGrande do Sul, Márcio Souza veio da Amazônia, Vladimir CarvalhodaParaíbaenãoseiquantosmais.AEscola de Teatro era o centro nervoso do redemoinho, havia encontros com grandes nomes, Jean-Louis Barrault,PierreSeghers.Apareciatambémgentede cinema para palestras e debates, John Schlesinger, figurinistas de Hollywood, muita gente. Um dia estavam conosco a superstar do cinema mexicano Silvia Pinal, chiquérrima, e seu marido, o produtor Gustavo Alatriste, atriz e produtor de Buñuel. O México vivia os últimos momentos da época de ouro de seu cinema, os melodramas mexicanos sendo exibidos em todo o continente. Alatriste estava dizendo como os jovens baianos podiam produzir cinema, como funcionava a economia cinematográfica, quanto custava um filme de longa-metragem. Glauber o interrompeu e, mostrando os grandes brincos de diamantes de Silvia Pinal disse: pra você é fácil falar, sua mulher está com dois longas-metragens pendurados nas orelhas. Passeando com Sartre Uma tarde Jorge Amado e Zélia Gattai trazem à escola Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir para uma conversa conosco. Frenesi, respirações suspensas. Ali estava, ao nosso dispor, o maior filósofo do século XX. O casal, que estava voltando de uma visita a Cuba, era a encarnação do espírito revolucionário do século XX, da chama que me guiava, que guiava toda aquela onda baiana. Simone redefinindo e impulsionando o papel da mulher nas relações humanas, Sartre operando uma reviravolta filosófica: a existência é anterior à essência, o absurdo da vida deve levar a uma justificativa para a existência humana. Nada de buscar um sentido para a existência, mas sim construir esse sentido para a sua vida, viver autêntica e livremente um projeto pessoal de liberdade, rebelando-se contra as convenções sociais, o homem está condenado a ser livre. O primeiro filósofo não-acadêmico, militante, em permanente contato com o povo, com a realidade do dia-a-dia. Um filósofo popular. Durante todos os carnavais dos anos 1950 a marchinha Chiquita Bacana foi sucesso: Não usa vestido / Não usa calção / Inverno pra ela / É pleno verão / Existencialista / Com toda razão / Só faz o que manda / O seu coração. Minha geração era não apenas naturalmente existencialista, mas conscientemente sartriana, a obra de Sartre já circulava entre nós, lembro-me de concorridas leituras públicas de suas peças de teatro As Moscas e Huis Clos e alguns mais avançados haviam lido O Ser e o Nada. O ponto noturno mais importante da minha turma era o Anjo Azul, uma cave parisiense onde bebíamos absinto e ouvíamos Juliette Gréco, um pequeno templo existencialista. A conversa com Sartre e Simone durou até o fim da tarde, uma tarde iluminada. O tema foi a Revolução Cubana, os movimentos de libertação nacionais e a incidência desse cenário no existencialismo sartriano. O filósofo discorreu sobre o marxismo, seu ponto de incidência com o humanismo existencialista (a transformação da sociedade) e sua divergência (determinismo histórico). Ficamos incendiados. Alguns de nós acompanhamos os visitantes até a porta da escola e aí Sartre se recusou a acompanhar Simone, Zélia e Jorge Amado, disse que queria andar de ônibus em Salvador. Os quatro estudantes que ali estávamos nos apresentamos como guias e minutos depois estávamos pajeando o mestre no interior de um ônibus, em direção ao centro da cidade. Um de nós, o poeta Carlos Falk, falava francês razoavelmente, Sartre arriscava frases em espanhol e a comunicação se fez fácil. Pegamos outro ônibus, fomos ao bairro popular do Curuzu. Ele se referiu muito à sensualidade das pessoas, especialmente das moças. Ônibus cheios de fim de tarde, ele curtiu ficar se roçando no corpo das negras volumosas, curtiu e comentou a intimidade corporal com pessoas desconhecidas. Nós o deixamos na porta da casa de Jorge Amado, ele agradeceu exageradamente nossa ajuda em seu mergulho na intimidade de Salvador. E aí acontece uma coisa engraçada. Horas depois, no Anjo Azul, eu celebrava a façanha quando um atordoado Glauber perguntou por que não fora nela incluído. Contei como aconteceu, fomos levar o homem à porta, ele queria andar de ônibus — onde você estava? Eu fui ao banheiro, respondeu Glauber, e todo mundo caiu na gargalhada. Glauber ficou muito chateado, aceitou a contragosto a armadilha que o destino lhe havia preparado e, durante muito tempo, me interrogou insistentemente sobre o que conversamos com Sartre durante o passeio de ônibus, achando que não tinha sido apenas comentários sobre as mulheres, como eu dizia. A Lira de Castro Alves As façanhas juvenis ainda tinham seu lugar, de vez em quando o pessoal aprontava. Fazia parte da turma o Silvio Lamenha, jornalista cultíssimo, que fazia uma coluna social completamente diferenciada das que existiam e viriam a existir, misturando futilidades e filosofia. Era gordo, grandão, carinhoso, e durante um carnaval nos contou o sonho que tivera: estava fantasiado de Nero e levava a lira de Castro Alves, ou seja, uma lira de metal que existia no túmulo de Castro Alves. Decidimos tornar o sonho de Silvio realidade e planejamos e executamos um assalto ao Cemitério do Campo Santo, em plena luz do dia. Era um grupo, estavam Glauber, Paulo Gil Soares, Calazans Neto e outros que não me lembro. Arrancamos a tal lira, fomos vistos por um guarda e saímos correndo, perseguido por apitos. Calazans, o Calá, pequeno e não muito ágil, foi alcançado e levou os guardas na conversa, disse que estava correndo porque viu todo mundo correndo, pensou que era uma alma, um defunto saindo da cova. A lira foi entregue a Silvio e ele se fantasiou de Nero, foi se exibir no baile do Bahiano de Tênis. Misturou bebida com lança-perfume, o que era comum na época, deve ter exagerado, e entrou em coma. Na enfermaria do clube, durante horas de coma, os médicos não conseguiram tirar a lira dele. Ele era uma figura e tanto. Fui encarregado de devolver a lira, telefonei para o cemitério, disse que era do Bahiano de Tênis, havia encontrado uma lira e coisa e tal. Fui lá e devolvi sem problema. Jornalismo como Trincheira Ao mesmo tempo, o jornalismo. Comecei em 1960 como crítico de cinema no Estado da Bahia, um dos dois jornais dos Diários Associados de Assis Chateaubriand (o outro era o Diário de Notícias). Alguns de nós já estavam trabalhando em jornais, inclusive o Glauber, que passou a considerar a ocupação total da imprensa baiana como objetivo prioritário da geração. Ele planejou e comandou a ocupação, utilizando-se da sedução que exercia sobre os poderosos da cidade, do fato de Odorico Tavares, o presidente dos Diários Associados na Bahia, estar inteiramente encantado com ele. Também seduziu a família Simões, dona do tradicional jornal A Tarde. E os semanários também. Estávamos já alocados em toda a imprensa, mas ainda tateantes, sem dominar as técnicas jornalísticas, quando os orixás interferem outra vez, materializam outro milagre: João Falcão, um milionário de esquerda, funda um diário, o Jornal da Bahia, e praticamente nos oferece de presente. No pacote estão os melhores jornalistas veteranos da terra, nossos professores: Ariovaldo Matos, Inácio de Alencar, José Gorender. Aceito o convite e vou para mais essa escola com Glauber, João Ubaldo, Joca Teixeira Gomes, Paulo Gil, Florisvaldo Matos, José Contreiras e outros, e também com os jovens artistas plásticos, os gravadores Emanoel Araújo e Sonia Castro. Primeiro passo, um treinamento intensivo de dois meses, o jornal funcionando normalmente, a todo vapor, com hora de fechamento, imprimindo mas não indo para a rua, tiragem interna. A prática e a teoria ao mesmo tempo. Os mestres ensinando o que-onde-quem-quando-como-por que, lead e sublead, copydesk, editoração, diagramação, a arte dos títulos, a reunião de pauta e a gente indo atrás da notícia na rua. Logo no início do treinamento Glauber foi para a editoria de polícia e eu fui designado repórter policial. Glauber me passa uma pauta na Delegacia de Jogos e Costumes e lá vou eu caminhando em direção à tal delegacia, vou cruzar a ladeira da Misericórdia, olho para um lado e outro e vejo uma mulher na calçada tirando um revólver da bolsa. Ela começa a atirar para o outro lado da rua, um homem é atingido, cai e começa uma confusão, a mulher é imobilizada. O homem sangrando no chão, calado. A polícia chega depressa e dispersa a pequena multidão que se formara. Corro para o jornal e digo eu vi um crime, vi com meus próprios olhos e o Ariovaldo Matos faz as perguntas básicas quem e por que. Eu sei o que, o onde, o quando e o como, mas não sei o quem e por quê, um desastre. Ariovaldo manda um repórter experiente cobrir o crime e me mostrar a matéria e o Glauber diz ok, mas Orlando escreve um box com o título Testemunha Ocular. E assim foi feito e Glauber ficou me chamou a vida inteira de Testemunha Ocular. Com o Jornal da Bahia circulando, um diário belamente diagramado e com o melhor conteúdo que a província já conheceu, toda a imprensa baiana foi forçada a se modernizar. Alguns de nós ficaram no Jornal da Bahia, outros se espalharam pelos Diários Associados, A Tarde, as rádios e a televisão recém-instalada. Voltei para os Associados, fui chefe de reportagem, editor internacional, editor de segundo caderno. Os segundos cadernos, as editorias de cultura e arte, eram uma das metas importantes do plano de ocupação. Foi editando o segundo caderno do Diário de Notícias que conheci Caetano Veloso, recém-chegado do interior, ele se apresentou como crítico de cinema e eu o incluí em uma página de críticas que saía aos domingos. Trabalhei como jornalista diário, ganhando o pão, durante mais de vinte anos, até abandonar as redações em 1982, na Rádio Jornal do Brasil, no Rio. Fazendo Cinema Em 1962 desisto da Faculdade de Direito. Era demais: estudando advocacia pela manhã e teatro à tarde (constantemente se estendendo pela noite), trabalhando como jornalista e de olho no cinema. Deixei de freqüentar as aulas, mas mantive a matrícula durante anos, garantindo o direito de participar em todos os atos da univer sidade e na política estudantil, na UNE. De olho no cinema porque a atração era extremamente forte. Além da liderança que o cinema estava assumindo naquele torvelinho de expressões artísticas em que se transformara a cidade, outro aspecto também pesava: eu tinha visto muita filmagem e a parafernália tecnológica me atiçava a curiosidade. Isso foi possível porque durante a década de 1950 e os primeiros anos da década de 1960 vários filmes estrangeiros foram feitos em Salvador. Eu e alguns de meus amigos mais curiosos, como Glauber, Paulo Gil, Roberto Pires, Walter Webb, acompanhamos muitas dessas filmagens. Segui de perto as filmagens da produção argentina Magdalena, do alemão Sob o Sol da Bahia, de um italiano sobre cangaceiros com o Franco Nero. Os franceses apareciam sempre, com suas gruas, trilhos, arcos voltaicos, geradores, câmeras enormes. De tanto peruar as filmagens da superprodução Le Saint Modique, fiz amizade com os produtores Sacha Gordine e Jacques Gibout e pude estar ainda mais perto do set em outra de suas realizações, Le Tout Pour le Tout. Essas produções estrangeiras foram importantes para o boom do cinema baiano, que estava começando a acontecer naquele momento, não só porque despertou vocações em garotos curiosos mas também porque deixou equipamentos na cidade, inclusive câmeras, e treinou técnicos, maquinistas e produtores que iriam atuar nos filmes baianos. Ou seja, em Redenção, Bahia de Todos os Santos, A Grande Feira, Barravento, Tocaia no Asfalto, O Pagador de Promessas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, Sol sobre a lama, O Caipora, Onde a Terra Acaba, O Grito da Terra e muitos mais, quando Salvador se tranformou em uma Hollywood tropical e de esquerda. Alguns atores e atrizes que brilharam na época de ouro do cinema baiano tinham participado dessas produções estrangeiras. Acompanhei bem de perto as filmagens de Barravento e de O Pagador de Promessas e fiz um estágio em A Grande Feira de Roberto Pires. A palavra estagiário não fazia parte do vocabulário cinematográfico da época, mas foi isso — falei com Roberto quando as filmagens estavam começando, a equipe já completa, e ele me convidou para acompanhar tudo e ajudá-lo com alguns diálogos. Eu escrevia muito nos jornais, tinha duas colunas, e ele achava que eu escrevia bem, podia ser útil. Na verdade só fiz duas ou três sugestões e, emocionado, escrevi as falas de Geraldo del Rey e Helena Ignês em uma cena em que estão na praia. Um ano depois Roberto me convidou para primeiro assistente de Tocaia no Asfalto, com bom salário e nome nos créditos. De 1960 a 1964 trabalhei com muita intensidade em cinema, nos sets de longas-metragens e também realizando filmes curtos em 16 milímetros, sem muito tempo para o teatro mas sem largar o jornalismo. Deve ter sido a época em que menos dormi na minha vida, escrevendo artigos diários, com responsabilidades de editoria em um grande jornal e filmando. Hollywood se Assusta Meu compadre Roberto Pires era um inventor. Em A Grande Feira ele já inventava tecnologia, principalmente para as difíceis filmagens na Feira de Água de Meninos, um enorme mercado a céu aberto com ruas muito estreitas e cheias de gente e mercadorias. Mas em Tocaia no Asfalto ele se desborda. Um exemplo: em uma das primeiras cenas o personagem de Agildo Ribeiro (Agildo jovem, fazendo um papel dramático) aponta um revólver para a cabeça do personagem de Roberto Ferreira; em primeiro plano o revólver, em segundo plano, a poucos centímetros, o rosto de Ferreira; um tiro e aparece um furo na testa de Ferreira e em seguida o sangue jorra. Uma tomada frontal, nenhum corte, nenhum tratamento em laboratório. A cena foi filmada como está na tela. Como foi feito? Simples: uma testa falsa cheia de sangue com um orifício já cortado mas recolocado, pre-so a um barbante pelo lado interno e passando sob os cabelos, controlado lá atrás por alguém. Esse alguém era eu, o assistente. Tudo ensaiado, escuto o tiro e puxo o barbante. Um take só, não foi necessário repetir. Efeito especial gerado diretamente na câmera. Ele construiu um plano inclinado de madeira com uns dez metros de altura, montou em cima trilhos e carrinho e um sistema de cabos, roldanas e ganchos que permitia o controle a distância do deslocamento da câmera, do travelling.O resultado está no filme: um grande plano geral da cidade, feito do alto, que vai se estreitando à medida que o ponto de vista se aproxima do solo, centralizando um caminhão que vem desde muito longe até chegar ao detalhe, enquadrando a placa do caminhão. Ficaria horas falando sobre os inventos de Bob Pires, principalmente se chegássemos até um de seus últimos filmes, Abrigo Nuclear, de 1982, do qual participei como roteirista: uma cidade subterrânea e com alta tecnologia, com elevadores até a superfície onde um carro se desloca sem tocar no chão, tudo feito com lixo industrial, com carcaças de televisão, garrafas plásticas, pneus velhos, tubos vazios de pasta de dentes e sei lá o que mais. Mas todas essas habilidades são secundárias se comparadas à façanha de seu primeiro filme longo, Redenção, de 1958, para o qual ele construiu uma lente anamórfica, uma lente cinemascope, a Igluscope. O pai dele tinha uma loja de equipamentos médicos e ópticos, onde aprendeu a fazer lentes. Fez também o som magnético, cortando com precisão uma fita de gravador sonoro, aqueles de rolo, e colando a estreitíssima fitinha magnética de som na fita de imagem, colando à mão. Um ano depois, quando Redenção foi apresentado no Rio e São Paulo, aparecem na Bahia dois emissários da Motion Pictures Association. Eles vêm conversar com Roberto, achando incrível a feitura dessa tecnologia nos confins da América Latina. Examinaram a lente Igluscope e o som magnético artesanal e foram embora. Poucos meses depois as lentes anamórficas foram patenteadas pelas empresas da Motion Pictures. Eles patentearam o conceito anamorfótico, qualquer tipo de lente anamórfica. E também mudaram a tecnologia sonora do magnético para óptico. Fizeram uma mudança tecnológica que resultou em muitos gastos para a indústria, mas fecharam de novo a tecnologia, impedindo que ela fosse reinventada ou utilizada em uma garagem do Brasil. Acho que os inventos aplicados em Redenção mudaram a indústria do cinema norte-americano. É um fato que nunca me saiu da cabeça, nem da de Roberto. Delírio? Talvez não. Por que aqueles caras foram lá, por que aquela visita, por que aquele interesse e por que acontece pouco tempo depois a mudança tecnológica? O Amor Dentro da Câmera Filmei meu primeiro curta-metragem, Festa, em 1961, ficou pronto no ano seguinte. Peguei uma câmera 16 milímetros, de corda, com meu amigo Denis Araújo, arranjei dinheiro com meu pai para duas latas de negativo e para o laboratório, Roberto Pires ajudou na montagem e na primeira e única cópia. Equipe de duas pessoas: eu e Denis. E meu jipe de guerra. Era um documentário sobre um carnaval fora de época que acontece em Salvador, a Segunda-feira Gorda da Ribeira. Comecei a filmar às dez horas da manhã e logo na primeira tomada aconteceu uma coisa mágica. Tenho de contar a história. Um ano antes tinha conhecido uma menina que me impressionou até as raias da alma, uma sertaneja morena chamada Conceição. Uns amigos comuns nos apresentaram em um ônibus, conversamos durante uns dez minutos, a forte impressão que causamos um no outro foi muito evidente. Tentei encontrá-la e não consegui, os amigos não sabiam, alguém disse que ela tinha voltado para o interior. Aquela beleza de criatura, aquele esplendor, havia desaparecido e eu com sua imagem na cabeça, seu sorriso, sua voz. Me achava meio bobo com essa história, com tanta agitação em volta, tantas garotas. Mas não a esquecia e estava perdendo a esperança de reencontrá-la. Começo a rodar meu primeiro filme, o olho no visor da câmera enquadrando as pessoas que passam e de repente Conceição entra em foco, sorrindo. Pensei que era uma ilusão óptica. Ela não continuou andando, ficou parada, sorrindo e olhando para a câmera, ela tinha me visto, ficamos olho no olho através da câmera. E aí se revelou e se fixou essa nossa relação que dura até hoje. Televisão e Exército Meu segundo filme foi Imagem da Terra e do Povo, feito para a televisão, produção de Glauber, 30 minutos, 16 milímetros. Um retrato de Salvador em 1962, de sua miscigenação étnica e cultural, tendo como roteiro um livro de Odorico Tavares, chefe dos Diários Associados e, portanto, da recém-inaugurada TV Itapoã. Eu estava participando de uma oficina sobre linguagem televisiva, uma iniciativa da própria Itapoã para formar seus quadros, e Glauber teve a idéia, convenceu Odorico e filmei profissionalmente, com uma equipe completa, ou seja, diretor, câmera, som, produtor e um assistente. Era uma novidade absoluta filmar para a televisão e mais novidade ainda o fato de não haver copião, ou seja, as imagens em positivo para fazer a montagem. Para evitar os custos e a demora de mandar fazer copião no Rio ou São Paulo, a TV Itapoã revelava o filme e a montagem era feita diretamente com o negativo. Errar um corte era um desastre. O filme só ficava positivo ao ser exibido na televisão. Com uma câmera 16 milímetros da TV Itapoã filmei exercícios militares dos alunos do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, o CPOR, que também foram ao ar no mesmo processo, montadas no negativo. Porque também teve isso, além de tudo que eu fazia nessa época, fui convocado para o curso do CPOR, exclusivo para universitários. Um ano e meio, 1960/1961, mas sem grandes dificuldades, as aulas e treinamentos aconteciam apenas nos sábados, durante o período escolar, e mais assiduamente durante as férias. A registrar que o comandante do CPOR era o general Sylvio Frota, que teria papel de destaque depois, na ditadura militar, como um dos falcões que queriam perenizá-la. Ás vezes aconteciam discussões acaloradas de alunos com Sylvio Frota, tendo como pano de fundo a Revolução Cubana e a situação política brasileira, conflituada pela renúncia de Jânio Quadros e pela conspiração militar que tentou impedir a posse de Jango Goulart. O general ultraconservador agüentava bem os embates com os alunos, tanto que, na minha lembrança, só deu voz de prisão a um de nós, o escritor Ciro de Mattos, por desrespeito, por haver utilizado a expressão gorila. Me saí bem, recebi a patente de Oficial de Intendência R2, ou seja, da reserva. Fui convidado para seguir treinamento na Academia de Agulhas Negras e fazer carreira e não aceitei. Havia coisas mais interessantes para fazer como, por exemplo, show de crítica cinematográfica. Minha atividade jornalística mais intensa era a de crítico cinematográfico, aquela crítica ousada e propositiva que se fazia na onda do Cinema Novo, como parte do Cinema Novo. Elegeramme presidente da Associação de Críticos Cinematográficos da Bahia-ACCB e inventei uma nova modalidade para o exercício da profissão. Os eventos aconteciam em bairros periféricos de Salvador e nas cidades do Recôncavo Baiano, para onde nos deslocávamos de barco. E também em Feira de Santana, onde estava morando e filmando meu compadre Olney São Paulo. Um produtor organizava tudo, enchia-se a sala e a trupe da ACCB aparecia barulhenta: uns três críticos, duas atrizes, uma cantora. Em estilo jogral os críticos situavam o filme em seu contexto histórico e artístico, com a ajuda das atrizes. Após a exibição o show continuava, a cantora interpretava uma música do filme ou que tivesse alguma coisa a ver com ele, os críticos e as atrizes assumiam personagens para discutir a história: o que diria um bêbado sobre esse filme? e uma dona-de-casa? e um operário? qual seria a opinião de um padre? e a de um general? Era muito divertido, éramos convidados para voltar às cidades, tínhamos uma agenda cheia. Caetano era muito assíduo nessas caravanas, um personagem perfeito para as performances já que era crítico, cantava e tocava violão. Maria Bethânia também participava, e a atriz Gessy Gesse, e a Conceição, agora estudando na Escola de Teatro que eu já havia deixado para trás. Essa invenção, crítica-show, tinha muito a ver com o espírito do Centro Popular de Cultura, o CPC, movimento cultural-político da UNE, cuja versão baiana estava sendo organizada em 1962 e que me entusiasmava. As Auroras de Copacabana A essa altura, o jovem diplomata Arnaldo Carrilho já entrara na História do Cinema Brasileiro ao enviar os primeiros filmes do Cinema Novo (Barravento, Porto das Caixas, Couro de Gato) para festivais europeus, lançando o movimento para o mundo. Já quase findando 1962 Carrilho entrou na minha vida: me deslocou para o Rio de Janeiro, onde eu organizaria minha conexão com o cinema e definiria uma relação amorosa. Cinéfilo apaixonado, ele inventou uma escola de cinema compacta, com duração de nove meses, para uma só turma, às expensas do Itamaraty e da Unesco. Escolheu jovens cineastas ou pretendentes a cineastas nos Estados que estavam produzindo cinema, Rio, São Paulo, Bahia, Minas, Pernambuco, e levou-os ao Rio para um curso intensivo com o documentarista sueco Arne Sucksdorff, celebridade internacional, autor de A Grande Aventura (Palma de Ouro em Cannes), Ritmo da cidade (Oscar), O Vento e o Rio (Festival de Veneza). Antes de viajar para o Rio recebi Arne e sua mulher Ingrid (curiosamente Ingrid Bergman) em Salvador, no histórico Festival do Cinema Brasileiro da Bahia, uma celebração do Cinema Novo que organizei, com patrocínio do jornal A Tarde. Carrilho trouxe o casal sueco para o festival, para que Arne conhecesse as pessoas. Reuni quase todos os filmes Cinema Novo já produzidos até aquela data e muita gente: Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade, Sérgio Ricardo, Miguel Torres, Alex Viany, Paulo Emilio Salles Gomes, produtores, atores, um montão de atrizes, Odete Lara comandando a massa. Arne e Ingrid foram fortemente impactados pela efervescência cultural baiana, pela negritude majoritária, pela exorbitante sensualidade, pela festa dionisíaca desatada pelos mais de cem cinemanovistas que lá estavam, as comilanças, os passeios de barco, os beijos ardentes em público, a nudez em praias desertas. O casamento deles acabou, Ingrid voltou transtornada para a Suécia e Arne ficou no Brasil pelo resto da vida, se casou com uma mulata, depois com uma índia. Eu tinha de ir para o Rio mas estava atormentado com isso. O pivô do conflito era Conceição: ela estava noiva quando nos conhecemos e nos apaixonamos e a dificuldade era terminar o tal noivado, o rapaz não admitia, desesperado, ameaçando se matar. E os pais dela, recémchegados do interior, não entendiam o que estava acontecendo, a transformação por que estava passando a filha, a Escola de Teatro, as noites fora de casa, e temiam a tragédia que o tal noivo, amigo da família, prometia aos prantos. Um dramaço. A família da mãe dela, também da Chapada Diamantina, era totalmente contra mim porque meu bisavô tinha sido inimigo do bisavô dela nos idos do século XIX. Uma loucura, com lances de Otelo e de Romeu e Julieta. Se me ausentasse, pensava, minha amada seria tragada pela família e eu a perderia para sempre, eu me esvaziaria. Carrilho sentiu o drama e arranjou uma bolsa de estudos para Conceição, um curso de teatro no Rio. Esse tempo no Rio significou um enorme avanço em minha vida. A oficina de Arne Sucksdorff, a minha escola de cinema, foi um sucesso. O Suecão, como o chamávamos, era fotógrafo e montador de altíssima competência e revelouse um grande professor, além de nos apresentar equipamentos de última geração (câmera Éclair, gravador Nagra, moviola Steenbeck), que ficariam no Brasil, importados pelo Itamaraty. Também trabalhamos com roteiro, explorando as diferenças e as confluências das dramaturgias e das linguagens da ficção e do documentário. O método do Suecão era direto, prático, mesmo quando o tema era dramaturgia — nos primeiros exercícios ele exibia trechos de filmes e nós escrevíamos o roteiro desses trechos, que eram comparados (as diferenças entre as várias versões provocavam gargalhadas) e o processo seguia até se chegar a um consenso e só então passamos a escrever nossos roteiros. Todo mundo escrevia a mão, é claro, mas o Nelson Xavier, aluno vindo de Pernambuco, usava uma máquina de escrever, aquelas máquinas mecânicas barulhentas da época, e a gente ali tentando se concentrar e ouvindo o toc-toc-toc implacável de Nelson. Também o José Wilker tinha vindo de Pernambuco, ele e Nelson Xavier em missão do Movimento de Cultura Popular, o CPC pernambucano. Todo mundo com vinte anos ou pouco mais, me lembro de Vladimir Herzog, Dib Lutfi, Eduardo Escorel, Luiz Carlos Saldanha, Arnaldo Jabor, Alberto Salvá. Da Bahia vieram, além de mim, Raimundo Mendonça e Geraldo Portela. A oficina era mão na massa o tempo todo, filmando e editando. Com direito a conversas compassadas e deliciosas com Humberto Mauro, que estava montando seus curtas em uma sala ao lado do nosso salão de trabalho, no Instituto Nacional de Cinema Educativo, Praça da República. O aprendizado intensivo corria misturado com um intenso contato com os cineastas do Rio (Leon Hirszman, Cacá Diegues, Gustavo Dahl, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Paulo César Saraceni, Luis Carlos Barreto, Zelito Viana, Alberto Shatovski) e com o pessoal da Bossa Nova (Nara Leão, Carlinhos Lira), que eram uma turma só e estavam envolvidos no CPC Rio. Os dias emendavam com as noites e com as auroras de Copacabana. E no meio do redemoinho, o namoro solto, livre e ardente, Conceição e eu. O tal noivo mandado às favas, as famílias escandalizadas mandadas às favas e o Rio, maravilhoso, como cenário e berço do romance. Meu coração e minha cabeça ferviam juntas, a sensação era que o presente e o futuro se confundiam, era como se fossem a mesma coisa, o mesmo tempo. Não fico para a segunda parte da oficina, gerada na própria oficina, que foi a produção do documentário Fábula de Copacabana, que Sucksdorff realizou com os alunos. Eu estava ansioso para voltar a Salvador, integrar-me ao CPC, fazer filmes e voltar aos braços de Conceição, que já havia regressado, a bolsa terminara. Come back to Bahia. Agito no CPC Estamos no governo Jango e isso significava o coroamento das vitórias da minha geração, da minha turma. Não apenas porque a esquerda estava no poder, também porque a juventude estava no poder, nós os estudantes e os jovens artistas e intelectuais. O instrumento desse poder era o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, o CPC da UNE, fundado em 1961 com o objetivo de, através da arte e da informação, despertar a consciência política no povo, como dizia o manifesto inicial. Era uma vertente do governo transformador de Jango, com recursos do Estado e integrando uma ampla frente antiimperialista com o Comando Geral dos Trabalhadores-CGT, as Ligas Camponesas, a Frente de Mobilização Popular e outras organizações de massa. O CPC expandiu-se rapidamente e teve de pluralizar-se para CPCs, com núcleos fortes no Rio, em São Paulo, em Pernambuco e na Bahia. Todos os movimentos artísticos de esquerda afluíram para os CPCs, cujas ferramentas eram o teatro, a música, a dança, as artes plásticas, a literatura e o cinema. Os objetivos eram divulgar e discutir as reformas de base em andamento (intervenções radicais nas estruturas agrária, administrativa, bancária, fiscal, tributária e política) e entrelaçar, fundir as manifestações populares de cultura com o impulso transformador dos estudantes e dos jovens artistas revolucionários. Já não parecia tão delirante aquela idéia que circulou entre nós na época da política secundarista: o mundo só será transformado através da arte. Toda a moçada baiana, todo aquele movimento vibrante e crescente confluiu para o CPC. Discutíamos com os operários, principalmente os da Petrobras, e com as organizações camponesas de todo o Estado da Bahia, os projetos e os temas das peças, shows, músicas que produzíamos em profusão. Os espetáculos eram apresentados na grande Concha Acústica do Teatro Castro Alves e nas cidades do interior, em caminhões transformados em palcos. E nos sindicatos, nas fazendas, em praça pública. As platéias aumentavam a cada dia. A estréia de Conceição como atriz, por exemplo, foi no espetáculo Arroz, Feijão e Simpatia, na Concha Acústica, diante de cinco mil estudantes e operários. Havia intenso intercâmbio com o CPC paulista, principalmente na área de teatro (Vianinha, Boal, Guarnieri), com o do Rio, na área de cinema (o pessoal de Cinco Vezes Favela) e com o de Pernambuco, mais voltado ao enlaçamento com as manifestações culturais populares. Na Bahia a música era forte, a irreverência de Tom Zé marcava os espetáculos, Capinan criou um impressionante Bumba-meuboi. Aconteceram polêmicas estéticas internas, e bem quentes: reação contra a influência do estilo do Teatro de Arena nos espetáculos CPC, Glauber Rocha (ou Cinema Novo) e CPC Bahia versus CPC Rio sobre abordagens cinematográficas. Não vou me deter nisso, está tudo ou quase tudo historiado em vários livros. O CPC era organizado em áreas de atuação e eu me engajei no teatro e no cinema. Na área de teatro participava do grupo de escritores dos espetáculos de esquetes, uma das modalidades mais utilizadas na Bahia. Escrevíamos pequenas cenas cômicas sobre as atualidades: a política, o imperialismo, o custo de vida, a mais valia, os absurdos do capitalismo. O mais engraçado possível. As cenas eram montadas rapidamente, produzíamos uns dez esquetes por semana. Nesse grupo estavam João Ubaldo Ribeiro, Glauber, Luis Carlos Maciel, Capinan e as reuniões de trabalho eram muito divertidas, criávamos as cenas cômicas rindo muito, chorando de rir. Uma tarde estávamos na casa do sogro rico de Luis Carlos Maciel, trabalhando às gargalhadas e tomando o uísque do sogro e aparece a Conceição para pegar os textos, os atores estavam esperando. Ela nos vê naquela esbórnia, e ainda sem os textos terminados, e nos dá o maior esporro, burgueses, filhinhos-de-papai irresponsáveis — como se pode fazer uma revolução popular bebendo uísque em casa de milionário? Aceitamos a crítica, demonstramos culpa, prometemos trabalhar sério e só beber cachaça. Ela não gostou da ironia e saiu batendo porta e voltamos a rir. Em compensação escrevemos uma cena engraçadíssima para ela, inspirada no episódio. Em fins de 1963 o CPC produz o espetáculo Rebelião em Novo Sol, uma montagem multimídia, dirigida pelo Chico de Assis, do texto de Augusto Boal Mutirão em Novo Sol. Não existia a palavra multimídia, mas o conceito lá estava: uma arte cênica que misturava e fundia teatro, música, dança e cinema. Geraldo Sarno havia regressado de seu curso de cinema em Cuba, trouxe documentários do cinema revolucionário cubano e fomos encarregados, ele e eu, de realizar a parte cinematográfica do espetáculo. Fizemos um documentário sobre as Ligas Camponesas da Bahia, com ênfase no líder Filipão, um personagem fascinante, negro, muito alto, carismático. Há um momento em que Filipão levanta sua espigarda de caçar passarinhos diante da câmera, como um guerreiro, e desdenha da erudição política da equipe, diz que comunismo nem menos comunismo, a revolução sou eu. Nos metemos pelo sertão baiano com o fotógrafo Waldemar Lima, em uma experiência que está na raiz da obra cinedocumental que Geraldo iria desenvolver nos anos seguintes e também na dos filmes que realizei nos anos 1970. Além do documentário com meia hora de duração, que abria o espetáculo, também fizemos cenas documentais e ficcionais, soltas, para a composição multimídia. Por exemplo: em determinado momento, na tela de cinema sobre o palco, um pistoleiro dispara um tiro e um ator no palco, um camponês, é atingido. O contraste entre a imagem gigante do pistoleiro na tela e a pequenez do camponês sozinho no palco era forte. Quem fazia o pistoleiro lá na tela era eu, um detalhe que terá importância no desenrolar dos fatos. Uma curiosidade técnica: como tínhamos pouco tempo para entregar a encomenda ao Chico de Assis (no CPC tudo era feito com muita rapidez) e aconselhados por Roberto Pires, filmamos em película reversível, que grava diretamente em positivo (não passa pelo negativo e é uma cópia só). Sob a orientação de Roberto revelamos o filme lá mesmo em Salvador, outra proeza tecnológica na província. Depois, com calma, poderíamos fazer um contratipo, um negativo, para perenizar a obra. Rebelião em Novo Sol foi o espetáculo de maior público e de maior impacto nos dois anos e meio de existência do CPC da Bahia. Glauber ficou tão tocado com o documentário que abria o espetáculo que diria sobre ele, tempos depois, em seu livro Revolução do Cinema Novo: montado em estilo eisensteniano-vertoviano, o filme influenciaria a epicidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Enquanto isso, em comício multitudinário no Rio, Jango, ao lado da deslumbrante primeiradama Teresa, soprava os ventos da revolução. Estávamos a ponto de mudar o Brasil, primeiro passo para mudar o mundo. Golpe Eu estava no apartamento de meus pais em Salvador, que estavam dividindo o tempo entre Lençóis e a capital para ficarem mais próximos dos filhos em tempos tão agitados. No dia 1º de abril de 1964 meu pai me acordou cedo, fato inusitado, e disse estourou a revolução. Saltei da cama achando que enfim chegara a hora, era a nossa revolução. Mas as notícias no rádio não eram tão alentadoras, alguns generais estavam fiéis a Jango mas outros avançavam com tropas contra o governo. Corri para o centro da cidade, para a redação do semanário Folha da Bahia, onde trabalhava com meus antigos mestres Ariovaldo Matos e José Gorender. No caminho comprei o jornal A Tarde e, na primeira página, duas notas oficiais, do governador do Estado e do general comandante da VI Região Militar, a da Bahia, garantindo fidelidade ao presidente. Na redação, decidimos lançar imediatamente um número extra conclamando a população a unir-se ao governador e ao exército da Bahia em defesa do presidente Jango. Estamos nessa quando alguém nos traz uma segunda tiragem d’A Tarde sem as notas oficiais do governador e do general, com dois espaços em branco no lugar delas, coisa que eu nunca tinha visto. Toca o telefone, Ariovaldo atende e alguém diz a ele que devemos sair imediatamente da redação, que corremos perigo de vida. Pelo sim pelo não Ariovaldo ordena a retirada. A redação ficava no terceiro andar de um prédio na Praça da Sé e decido descer pela escada, já saindo para a rua cruzo com soldados com uniforme de combate, que entram embalados no prédio. Me afasto e fico observando os janelões da nossa redação e o aviso telefônico misterioso é confirmado: vejo os soldados entrando lá e quebrando coisas, um deles tem um machado (depois soube que realmente quebraram tudo em pedacinhos). Voltei para casa atordoado e disse a meus pais que estava em marcha uma luta armada e que eu precisava da única arma da família: o velho revólver de meu pai, ainda do tempo da Lagoa. Eu estava mesmo atordoado, só voltei ao entendimento quando meu pai disse não é revolução nem há luta armada, é um golpe militar e vi na TV Itapoã, preto-e-branco, que era isso mesmo. Um período assustador, suspense contínuo. Amigos próximos são presos, a comunicação por telefone fica difícil, ninguém atende, vou perdendo contato com todo mundo. Nesse momento eu estava participando, entre os muitos afazeres, na Campanha Nacional de Alfabetização e na semana do golpe aparecia nas telas dos cinemas da cidade, no cinejornal da Iglu Filmes, comandando um teste para monitores do Método Paulo Freire. Era um evento enorme, centenas de candidatos no estádio pequeno da Fonte Nova e eu dando entrevista. Na manhã do dia 3 de abril uma pessoa da equipe telefona: policiais foram à sede da Campanha de Alfabetização à minha procura. Pego uma muda de roupa, escova, pasta, sabonete, algum dinheiro e saio da casa de meus pais para a clandestinidade. Por coincidência, ou melhor por sorte (o argentino Ernesto Sábato e os garimpeiros de Lençóis dizem que coincidências não existem), a família de Conceição mudou de casa exatamente no dia 1º de abril e fui para esse novo endereço, que ninguém ainda sabia e que não foi passado para ninguém. Meu irmão Ronaldo também foi para lá. Conceição foi expulsa da Escola de Teatro e, na noite em que isso aconteceu, recebeu a visita de uma vizinha que mal conhecia. A vizinha veio dizer que seu noivo, oficial da policia militar, sabe que o namorado dela, o Orlando Senna, está escondido nesta casa (ela frisava bem o nesta casa) mas que ficasse despreocupada porque o noivo não ia fazer a prisão. Ronaldo e eu ouvindo lá do quarto, me lembro dos olhos esbugalhados dele. Corremos para outro refúgio, a casa da mãe de meu amigo Walter Webb, produtor de cinema. Uma família italiana, com muita comida e muito vinho. A casa, antiga, tinha um espaço oculto entre o telhado e o forro de madeira pesada, um esconderijo de verdade, bem planejado, difícil de ser descoberto. A idéia era que meu irmão e eu nos escondêssemos rapidamente ali se chegasse alguém suspeito. Fizemos treinamento para subir rapidamente até o esconderijo e uma vez tivemos de subir a sério porque bateram fortemente na porta e ouvimos alguém gritando polícia. Foi uma brincadeira do irmão do Walter Webb, que era realmente policial, escrivão da polícia. Minha foto aparecia na televisão, na lista de procurados por subversão, e começaram a pressionar meus pais com telefonemas misteriosos, durante a noite o telefone tocava a cada meia hora. Um dia minha mãe atendeu o telefone e uma voz feminina fez várias perguntas, se o filho dela, Orlando, tinha um jipe de tal cor, se era amigo de uma moça chamada Conceição — e disse que tinha uma má notícia, Orlando ultrapassara uma barreira policial, na saída da cidade, e tinha sido metralhado. Minha mãe desmaiou, teve de ser atendida por médicos, teve de ser levada até meu esconderijo para me ver com os próprios olhos. A angústia dela e de meu pai estava alimentada pela crença de que a Polícia Militar poderia me matar a qualquer momento. Vesti um paletó e fui direto ao quartel-general da VI Região Militar, na Mouraria, me apresentei e pedi para falar com um coronel, um nome que Walter Webb tinha me fornecido. Fiquei esperando umas duas horas na ante-sala até ser recebido pelo tal coronel. Ele examinou uns papéis, disse que eu era acusado de subversão da ordem nos processos referentes à Folha da Bahia, ao CPC e ao Partido Comunista. Eu não seria recolhido à prisão mas deveria me apresentar ali no quartel todos os dias, incluindo sábados e domingos, às seis horas da manhã, para interrogatório. Durante trinta e seis dias seguidos me apresentei no horário e encarei duelos verbais com um tenente e depois com um coronel, alguns interrogatórios eram sem pé nem cabeça, demonstrando a falta de informação dos golpistas com relação às minhas atividades. Chegava às seis da manhã, me liberavam depois da meia-noite e tinha de estar no outro dia às seis da manhã. Em um dos interrogatórios o tenente exibiu na parede a cena de Rebelião em Novo Sol em que eu atirava com um rifle, como prova irrefutável da minha atividade subversiva. Em seguida tirou do projetor a cópia única do documentário que eu fizera com Geraldo Sarno e começou a destruir o filme, partia a película e jogava os pedaços no lixo, o que nós estamos fazendo é jogar seus filmes e vocês todos no lixo da História e depois vamos jogar o lixo no incinerador. Eu disse que ele estava destruindo uma obra de arte e isso era crime, que ele estava cometendo um crime. O tenente ficou vermelho de raiva, desfez o rolo do filme, partiu-o em grandes pedaços e jogou tudo no lixo enquanto gritava que o criminoso era eu, que tinha tentado vender a Pátria aos soviéticos, que recebia dinheiro de Moscou para subverter a ordem e enganar o povo. Eu insisti: destruir livros, pinturas e filmes é crime contra a humanidade e a inteligência. Ele ficou calado um tempo, me fixando, controlando-se, e me mandou sair. Eu tinha perdido um pedaço de mim, doía muito, Rebelião em Novo Sol não existia mais. Capítulo III Pré-Tropicália Os interrogatórios no quartel da Mouraria foram suspensos, eu tinha apenas de me apresentar todas as segundas-feiras pela manhã, para controle. Retomei minhas atividades nos Diários Associados, seguindo a atitude generalizada da militância cultural baiana, que era voltar a ocupar os espaços em que estávamos antes do golpe e resistir à nascente ditadura militar. Neste momento me somo a um projeto que irá revolucionar a música brasileira. O novelo começa em umas reuniões, às sextas-feiras, de varar a noite até o sol nascer, na casa da atriz Maria Muniz, onde a turma se encontrava para conversar, cantar e tomar sopa. Era a Sopa da Maria. Aí estavam Gilberto Gil, meu colega no Marista, Caetano e sua irmã Maria Bethânia e sua amiga Maria das Graças, Tom Zé e outros músicos que, em pouco tempo, transformaram aquelas noitadas em concertos íntimos, apresentando suas novas canções. Às vezes as músicas nasciam ali mesmo, parcerias eram formadas. Eram canções tão bonitas, tão inspiradas, que nos emocionávamos profundamente, inclusive os seus autores. Foi quando Roberto Santana, primo do Tom Zé, sugeriu a montagem de um show e me convidou para ajudá-lo na produção. Ele dirigiu, eu me ocupei da propaganda e tocamos juntos a produção. O show, Nós por Exemplo, foi apresentado no Teatro Vila Velha em 22 de agosto de 1964, palco vazio com alguns praticáveis baixos, os instrumentos e nove músicos e cantores: Caetano, Gil, Tom Zé, Fernando Lona, Maria Bethânia, Gal Costa (então Maria das Graças), o violonista erudito Alcivando Luz, o tecladista Perna Fróes, o percussionista Djalma Correia. Na primeira parte, Caymmi, Noel Rosa, Bossa Nova e uma jóia de Batatinha, um operário compositor, linotipista do jornal onde eu trabalhava, Sofrimento e Padecer (meu sofrimento ninguém vê, sou diplomado em matéria de sofrer). Na segunda parte, as músicas nascidas nas madrugadas da casa de Maria, com ovações estrepitosas para Maria de Gil, Sol Negro e É de Manhã de Caetano. Uma noite de romper corações, um sucesso além de qualquer previsão, uma comoção na cidade. Repetia-se o impacto, o fenômeno das Jogralescas do final dos anos 1950. Duas semanas depois outro show, com o mesmo nome e novas músicas, o Vila Velha superlotado sem querer parar de aplaudir Moreninha de Tom Zé, Samba Moleque de Gil, Sim, Foi Você de Caetano — e uma multidão do lado de fora do teatro querendo entrar. Sempre sob o comando de Roberto Santana, o terceiro show, alguns dias depois, foi apresentado no Teatro Castro Alves, bem maior que o Vila Velha, mais de mil e quinhentos lugares. Desta vez o nome era ainda mais provocador, Nova Bossa Velha & Velha Bossa Nova, com arranjos e harmonias que já delineavam a explosão artística que estava sendo gestada. Seguiram-se alguns shows individuais (João Augusto dirigiu Mora na Filosofia com Bethânia, eu dirigi Borandá com Gil e Terra de Ninguém com Fernando Lona) e logo a turma se dispersou. Bethânia voou direto para o sucesso de Carcará e três anos depois Caetano, Gil, Tom Zé e Gal, como todo mundo sabe, inventaram a Tropicália. Jorge Amado Casamenteiro No fim de 1964 a pressão da ditadura voltou a se manifestar, fui intimado para novos interrogatórios, proibido de sair da cidade e demitido dos Diários Associados. Ser preso a qualquer momento voltou a ser uma possibilidade angustiante, principalmente para minha família. Poderia ser preso, poderia desaparecer, muita gente estava desaparecida. Dormia nas casas de amigos e parentes, não pernoitava duas vezes no mesmo lugar. Recebo um recado de Jorge Amado para ir à sua casa, leve a Conceição. Fomos. Ele ratificou que, apesar da aparência de calmaria, eu ainda corria perigo. As informações eram importantíssimas naquela situação e Jorge tratava de ter acesso ao que podia. Alguns amigos nossos, mesmo presos, conseguiam informar o conteúdo de seus interrogatórios aos que neles tinham sido citados e Jorge soubera que estavam fazendo muitas perguntas a meu respeito. De repente ele perguntou: vocês dois querem se casar? Conceição e eu nos olhamos surpreendidos. A gente não tinha pensado nisso, tínhamos vontade de morar juntos mas casar de papel passado, como sugeria Jorge, não estava nos planos. Vocês foram feitos um para o outro e vão ficar juntos de qualquer maneira, disse ele, e explicou seu plano: um casamento de arromba, com ele e Zélia como padrinhos, mil convidados e muita notícia nos jornais. Disse que eu tinha de sair da semi-clandestinidade, uma situação que era um prato feito para desaparecerem comigo —se a gente fizer esse casamento você volta a ser a pessoa pública que era antes, abre uma coluna no Jornal da Bahia, e aí fica mais difícil para eles. A relação de Jorge com os golpistas era uma rota de colisão de evidência internacional e os generais não sabiam o que fazer com o grande escritor, na época o brasileiro mais conhecido pela humanidade — e como não sabiam o que fazer, não tocavam nele. E Jorge vinha nos oferecer essa sua imunidade, nos acobertar com sua intocabilidade. Conceição chorou ao ouvir a proposta. E assim foi feito, Jorge e Zélia produziram a festa, distribuíram um convite chiquérrimo feito pelo Emanoel Araújo para todas as pessoas importantes da cidade. Nos casamos na igreja dourada de São Francisco com uma multidão de convidados, Fernando Lona e coro cantando em latim, os flashes dos fotógrafos espoucando, a TV Itapoã, os dois cinejornais da cidade (Leão Rosemberg e Iglu) filmando. Éramos um jovem jornalista e uma jovem atriz em início de carreira e, por artes de Jorge, a mídia nos tratava como celebridades. No dia do casamento Zélia adoeceu e quem acompanhou o padrinho Jorge, como madrinha, foi a filha deles, Paloma, uma menininha (ainda hoje, mais de quarenta anos depois, Paloma se lembra de sua atuação como madrinha e guarda o vestido que usou naquele dia). O plano de São Jorge Amado começou a funcionar ali mesmo no casamento: o João Falcão me propôs voltar a trabalhar no Jornal da Bahia e meus companheiros da destruída Folha da Bahia, alguns saindo da prisão, reagrupados em um jornal voltado ao comércio, o IC ShoppingNews, me convidaram para ser editor-chefe. No dia seguinte, começando a lua-de-mel em uma praia na ilha de Itaparica, somos surpreendidos pela aparição da equipe da Iglu Filmes, o Braga Neto e o Oscar Santana, apontando a câmera em nossa direção, pedindo pra gente se beijar. Que brincadeira é essa? Vocês ficaram malucos? E o Braga Neto: o Jorge pediu pra filmar a lua-de-mel também. A lua-de-mel, fora do alcance da Iglu Filmes, se estendeu a Lençóis, fomos agradecer às divindades do jarê a graça da nossa união e nos energizar nas cachoeiras. Tínhamos de refazer as forças porque havíamos superado o abalo de 64 e havia um caminho pela frente a percorrer. Não era como antes, quando eu tinha a sensação de que presente e futuro haviam se juntado em um só tempo: agora tínhamos de construir, outra vez, o futuro. A ditadura militar já não nos parecia o monstro assustador de um ano atrás e ouvíamos cada vez mais, até em Lençóis, a frase, ou a palavra-de-ordem, que se ajustou ao momento: a luta continua. Cultura Enfrenta Ditadura De volta a Salvador, encontro muitos sinais de que, realmente, o bicho não era tão feio como parecia. Estava em curso o período, 1964 a 1968, em que os setores progressistas da sociedade brasileira entestaram abertamente a ditadura, em um movimento crescente que culminou nas grandes passeatas de 1968 e foi barrado pelo AI-5, o segundo golpe. A faísca da resistência se espalhou por todo o País, como se sabe. Na Bahia havíamos tido baixas, alguns mortos, alguns exilados, muitas pessoas sumidas, mas a faísca reacendeu o incêndio que havia sido apagado pelos golpistas: uma nova onda de criatividade e vasta produção cultural é ainda maior que a anterior. Em 1965 é lançado Deus e o Diabo na Terra do Sol e as cabeças dos jovens artistas recomeçam a ferver e com muitos graus acima da fervura que tinha acontecido nos anos anteriores. Minha vida volta a ser tão ou mais agitada como antes, dividindo o tempo entre jornalismo, cinema e teatro. Em 1965 consigo patrocínio da nascente Superintendência de Turismo da Prefeitura de Salvador para a produção de três documentários curtos sobre a cultura baiana e realizo, em cores e 35mm, Lenda Africana na Bahia (sobre o carnaval), Dois de Julho (sobre a guerra da independência) e Bahia Bienal (sobre artes plásticas). Só voltaria a filmar três anos depois, já que estava muito mais envolvido com o teatro. Nesse mesmo ano participo na realização de Teatro de Cordel, uma idéia de João Augusto, o diretor do Vila Velha. O interesse pela literatura de cordel era uma herança do CPC, onde discutíamos a forma como os cordeleiros e os cantadores, os violeiros, contavam suas histórias. Encontrávamos nesse estilo, onde a mesma pessoa relata o acontecido e interpreta os personagens, em constante alternância narrador/ator, uma preciosa tradução popular do distanciamento crítico proposto por Bertolt Brecht. O desafio lançado por João Augusto era concretizar esse estilo no palco, montando uma dezena de folhetos de cordel com um elenco de vinte atores, um espetáculo com vários episódios que iam se emendando e conformando um painel das várias vertentes dessa atividade poética: sertaneja e urbana, naturalista e delirante, homens e animais, comédia e tragédia, introspectiva e extrovertida, crítica e laudatória. Éramos cinco diretores: João Augusto, Othon Bastos, Haroldo Cardoso, Péricles Luís e eu, cada um se ocupando de algumas histórias. Escolhi A História de Mariquinha e José de Sousa Leão, de João Ferreira de Lima, drama amoroso de perfil realista, e Rosa de Milão, na linha cordeleira das narrativas medievais, onde personagens do passado distante promovem reflexos e incidências na atualidade. O primeiro passo foi a edição dos textos, uma interferência a mais mínima possível para que o fluxo da narrativa teatral se mantivesse constantemente atrativo. Não acrescentamos nada, nenhuma palavra, apenas alguns cortes e remanejamento de algumas frases em prol do ritmo do diálogo — e nos esbaldamos na encenação, deixando a imaginação cênica correr solta. Um cenário esquálido, apenas praticáveis, biombos e objetos de cena, mas velozmente funcional, e um figurino basicamente naturalista mas com inserções surpreendentes de detalhes surreais. Cada episódio era conduzido por um narrador que, como os cordeleiros, incorporava personagens durante o relato, que interagiam com os personagens dos outros atores. Esse código era constantemente quebrado, às vezes um dos personagens fixos tomava o papel do narrador, em um dos episódios todos os personagens eram narradores, em uma girândola acelerada de mudanças de personas. Alguma coisa entre o circo mambembe, Brecht e os trovadores de rua, uma arte cênica híbrida e superengraçada. Era como um teatro amador com distanciamento crítico, o público ria e gargalhava. Nessa linguagem, que inventamos como uma brincadeira, que divertia imensamente os atores e diretores durante os ensaios e a temporada, a iluminação tinha importância fundamental, era um elemento dinâmico (e também crítico e também engraçado) da narrativa. Juntamos as experiências de iluminação de Roberto Santana nos shows Nós por Exemplo (os canhões de luz que seriam tão utilizados nos anos seguintes e até hoje nos shows musicais) à sugestão de cortes cinematográficos, uma novidade no teatro. Teatro de Cordel foi o primeiro sucesso de verdade do teatro baiano, o primeiro passo concreto para a profissionalização do teatro em Salvador. Antes os espetáculos, mesmo as grandes produções da Escola de Teatro, eram apresentados em três ou quatro fins de semana e acabou-se. Teatro de Cordel ficou meses em cartaz, com o público se renovando e também com um número grande de pessoas indo ver o espetáculo seguidas vezes, virou um ponto de encontro da moçada. Muita gente do Sul foi a Salvador ver o espetáculo, inclusive o Augusto Boal, que se inspirou no jogo cênico do narrador/intérprete para criar o seu Sistema Coringa, usado na série Arena Conta (Tiradentes, Zumbi). Boal me convidou para uma visita ao Teatro de Arena, em São Paulo, e fiquei por lá umas semanas observando o trabalho deles, refletindo sobre linguagem teatral. Voltei com muito pique desse contato com o Teatro de Arena e montei várias peças, já in seridas no novo cenário do teatro baiano, com contratos, publicidade e temporadas longas. Comecei com Brecht, Terror e Misérias do Terceiro Reich, e segui com textos brasileiros: Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles, O Fardão de Bráulio Pedroso (uma tournée por todo o Nordeste), espetáculos de poesia e um clássico, A Mandrágora de Maquiavel. Queria montar Shakespeare, queria explorar possibilidades cordeleiras no teatro-dentro-do-teatro de Hamlet, cheguei a planejar uma produção mas não deu certo, as pessoas com quem eu estava envolvido nessa atividade tinham outros planos para mim: a direção da Fundação Teatro Castro Alves, o teatrão oficial da Bahia. A questão é que se tratava de uma fundação para o desenvolvimento das artes cênicas na Bahia e só funcionava como sala de espetáculos destinada a produções importadas, do Rio e São Paulo e do exterior. Isso foi no início de 1967 e fazia parte da luta contra a ditadura, surgiu uma oportunidade de ocuparmos o Castro Alves com a nomeação, pelo governo estadual, de um Conselho progressista para a Fundação Teatro Castro Alves, presidido pelo juiz e compositor Carlos Coqueijo Costa. O Conselho estava disposto a me dar carta-branca, minha missão era deselitizar o Castro Alves, abrindo-o para os grupos locais que se multiplicavam. Minha primeira medida como diretor do Castro Alves foi derrubar a obrigatoriedade de paletó e gravata para o público; a segunda foi reativar a Concha Acústica, fechada desde os espetáculos subversivos do CPC, um anfiteatro com cinco mil e quinhentos lugares; a terceira foi criar um espaço para espetáculos pequenos que não condiziam com o grande palco principal, a Sala do Coro, duzentos lugares, em uso até hoje; a quarta foi abrir várias salas de ensaio para os grupos locais. Com três palcos, a programação foi ampliada, abrangendo distintos tipos de espetáculos, tan-to locais como de outras partes. A equipe era excelente, basta citar minha assessora e braço direito Arlete Soares e o produtor e iluminador Roberto Santana. Para celebrar a nova fase do teatro oficial da Bahia, dirigi uma superprodução, apresentada na sala grande: O Gonzaga, de Castro Alves. Entrada gratuita, com milhares de convites espalhados por universidades, escolas, sindicatos, associações, distribuídos nas feiras e nas portas de cinema. Casa cheia todo dia, público variado, heterogêneo, de todas as extrações sociais. O Yan Michalski, do Jornal do Brasil, na época o crítico teatral mais badalado, encontrou convergências entre a montagem de O Gonzaga e o trabalho do diretor e ator francês Jean Vilar, no que se referia à linguagem (divertir para depois discutir, dizia Vilar) mas principalmente no que se referia à proposta de teatro como um serviço público. Jean Vilar refundou, no início dos anos 1950, o Teatro Nacional Popular da França, o TNP, realizando grandes espetáculos ao ar livre para multidões, em Paris e no interior do país. A idéia central é: ninguém deveria pagar para ver teatro. Eu sabia apenas de raspão sobre as atividades do TNP, mas a chamada de Michalski me conduziu até os livros de Jean Vilar, De la Tradition Théatrale principalmente, e tirei bom proveito disso anos depois, quando montei o Grupo Barra no Rio. O Gonzaga é a única peça de teatro de Castro Alves e só tinha sido montada uma vez, cem anos atrás, em 1867, ano em que foi escrita, e com a presença do autor. O desinteresse pela peça, apesar de seus atrativos (Gonzaga visto por Castro Alves, dois grandes poetas libertários), de-via, ou deve-se, ao fato de ser considerada uma prosa literária em forma de diálogos e não uma peça teatral, de ser muito prolixa para o palco. Justamente por isso o trabalho de montagem foi fascinante, desde a enxugada do texto com o cuidado de manter a essência e a poesia, passando pela ênfase nas relações com o momento de resistência que estávamos vivendo até o desenho cênico, com grandes espaços e grandes silêncios. E grandes atores: Harildo Deda, Sônia dos Humildes, Lorival Pariz, Antonio Pitanga. Os bons atores e atrizes com quem trabalhei nessa fase na Bahia e depois, em outros cantos, me transmitiram durante nossas convivências criativas 90% do que sei sobre o teatro, os outros 10% preenchidos pelos livros, professores e alguma experiência própria. E saber sobre teatro é saber sobre a vida. Trabalhar com Othon Bastos, Norma Bengell, José Wilker, Paulo César Pereio, Sônia dos Humildes, Mário Gusmão, Stepan Nercessian, Camila Amado e outros grandes da arte de auto-transformação significou saltos qualitativos na minha vida. E com prazer redobrado na minha parceria de muitas peças e filmes com Conceição Senna, que vem se desdobrando em várias mulheres durante nossa longa convivência. Voltando à história, a deselitização do Teatro Castro Alves irritou a ditadura, abalada pela resistência cultural em todo o País, pela reorganização sindical e pelas passeatas que aconteciam em várias cidades. No início de 1968 estavam acontecendo choques entre o exército (soldados ou polícia militar) e os estudantes, engrossados por muita gente de outras atividades, trabalhadores, donas-de-casa. Estava acontecendo também em outras cidades e era uma coisa louca, kafkiana: os choques, as batalhas campais, tinham horário e local pré-determinados, eram no meio da tarde e na rua Chile, no centro da cidade. Acontecia uma ou duas vezes por semana, os estudantes se articulavam e marchavam pela rua Chile gritando abaixo a ditadura, eram barrados pelos soldados e reagiam com paus, pedras e coquetéis Molotov. Os soldados atiravam e todos corriam em todas as direções, causando um pandemônio. Muita gente ferida, alguns mortos. Um dia, no início da tarde, o Teatro Castro Alves é cercado e ocupado pelo exército, um alto-falante ordena que todos permaneçam em seus locais de trabalho. Vou para minha sala e minutos depois entra um colega meu do Marista, que não via desde aqueles tempos de ginásio. Ele é o chefe da operação e entra furibundo, põe um revólver em cima da mesa e me acusa de ser um dos articuladores das manifestações na rua Chile, que informações para as lideranças estudantis eram transmitidas por telefones do teatro. Enquanto me acusava de subversão e fazia ameaças, eu me lembrava dele menino, no colégio, e de sua história recorrente: ele cantava árias de óperas italianas, tinha uma bela voz, e todo fim de ano se despedia, dizia que não voltaria ao colégio pois recebera uma bolsa para estudar no Scala de Milão. Todo ano ele se despedia mas voltava depois das férias, sempre com o Scala de Milão postergado. Quando ele deu uma trégua nas acusações e ameaças, perguntei — e o Scala de Milão? O cara esbugalhou os olhos, ficou vermelho, pegou o revólver. Pensei que a situação ia ficar feia mas ele levantou, sempre me fixando os olhos, e saiu da sala. Ninguém foi preso no cerco ao Teatro Castro Alves, mas logo depois fui demitido, o contrato rescindido sem explicação e sem indenização. Ao mesmo tempo, a Secretaria de Educação do Estado, sob a qual estava abrigado o Castro Alves, se via envolvida em corrupção, o Secretário acusado de desvio de dinheiro. Como o Castro Alves era um foco de subversão, os acusados tentaram desviar a acusação para o Teatro, se havia rombo era nas contas do Teatro, desvio de dinheiro para a subversão. Diante disso, ex-colegas da Faculdade de Direito, agora advogados, denunciaram a situação à Justiça do Trabalho e ganhei a questão, não havia justificativa para o rompimento do contrato, recebi indenização. O desvio do dinheiro também foi apurado e o Secretário de Educação foi preso. As bênçãos de Jorge Amado Casamenteiro, Ogan de Oxóssi, continuavam atuando. Minha passagem pelo Castro Alves me deu uma visão institucional do teatro baiano, de suas deficiências naquele momento de expansão, de suas fragilidades. Uma delas era a quase ausência de textos locais, os grupos não trabalhavam com peças baianas. Achei que esse era um veio a ser explorado, produzi uma seleção de textos e montei quatro deles, um atrás do outro, no Vila Velha e na sala da Escola de Teatro. A Escolha, de Ariovaldo Matos: a visita de um homem em ascensão social adrenalínica e neurótica, desembestado, a um casal de baixa classe média acomodado na vida. A Engrenagem, também de Ariovaldo Matos: três personagens assustados com o futuro, inseguros quanto ao devir de suas vidas. Sonhadora, de Otto Schipper, contrapondo realidade e desejo, com planos cênicos simultâneos de sonho e mundo material. Companhia das Índias, de Nelson Araújo: alegoria política, um ditador deposto e exilado articulando sua volta ao poder. Eu me esmerava na iluminação, desenhava e redesenhava a luz nas madrugadas depois dos ensaios, usando manequins nas marcas dos atores. Algumas cenas eram protagonizadas pela luz, em alguns momentos a luz era o elemento mais importante da narrativa (guardo um artigo do Glauber sobre A Escolha, centrado no grande plano fixo da primeira cena, onde um casal faz amor com um fundo infinito, um ciclorama roxo avermelhado, dando a impressão que seus corpos são imprecisos, imateriais, quase se desfazendo). Os espetáculos foram bem-sucedidos, exaltados pela crítica e com excelentes bilheterias. Até a censura proibir Companhia das Índias. O espetáculo estreou com sucesso e muita publicidade, era um musical falado em portunhol, com muita rumba, tango, samba, bolero, muito colorido. Rumbeiras, índios, jogadores de futebol, vaqueiros, mariachis e toda uma fauna humana latino-americana compunham um coro ao redor do ditador e sua corte, fazendo referências a ditadores reais e à cumplicidade da OEA, Organização dos Estados Americanos, com as ditaduras. Fiz a canção-tema em parceria com João Ubaldo Ribeiro: que viva Trujillo, Fulgencio Batista / Perez Jimenez y Onganía. / Por la democracia en Latinoamérica / viva Lyndon Johnson y la OEA. O coro, horrorizado com o que vê e ouve na corte do ditador, se transforma em um grupo guerrilheiro transnacional, continental, e metralha todo mundo, inclusive a platéia. Com dez dias em cartaz, o espetáculo foi proibido. Além do cismo psicológico que um fato como este provoca, a depressão, a irritação, a angústia da falta de liberdade, no caso da Companhia das Índias também pesou o aspecto financeiro, o prejuízo. Tive excelentes produtores no teatro baiano, a começar por Domingos Leonelli, que bancou boa parte dos meus espetáculos, mas A Companhia das Índias foi produzido por Conceição e por mim, com as economias resultantes do nosso intenso trabalho teatral. Era um projeto ousado, elenco numeroso, produção cara, mas já tínhamos produzido uma peça antes (A Mandrágora)e tinha dado certo, tivemos lucro. A proibição do espetáculo no início da carreira foi um desastre financeiro para o casal, contraímos dívidas. E o mais grave é que a proibição não foi apenas ao espetáculo, foi também a mim: todos os textos que enviei nos meses seguintes à censura, para aprovação, foram desaprovados. Eu não podia mais montar peças de teatro. Dramas em outra dimensão, tragédias familiares, somaram-se às nossas tristezas nessa época. Muitas mortes na família, todas elas repentinas, trágicas. Meu tio Nivaldo, aquele que tinha um projetor de cinema quando eu era menino, e que esteve sempre próximo, com sua elegância e erudição, cometeu suicídio. Os três irmãos homens de Conceição, todos jovens, também se foram em um período de dois anos: o caçula assassinado no Rio, em Copacabana; o do meio em um acidente; o mais velho de câncer. Um sofrimento enorme. Cinema Marginal Não podia fazer teatro mas podia fazer cinema. Uma nova onda estava se formando no cinema brasileiro, pouco depois batizada de Udigrúdi (de underground) ou Cinema Marginal segundo a crítica. Sganzerla, Maurice Capovilla, Carlos Reichenbach e outros jovens cineastas em São Paulo, Júlio Bressane e Neville D’Almeida no Rio começam a fazer filmes anárquicos, debochados, despojados. Embora filhos do Cinema Novo, inventavam estética própria, filmes urbanos em preto-e-branco, com uma encenação enganosamente desleixada e tendente a focar os mais marginalizados da sociedade, os bandidos, os loucos, os lúmpens. Esse impulso surgiu simultaneamente na Bahia com a realização em 1968 de Meteorango Kid, do meu primo André Luiz Oliveira, e de Caveira my Friend de Álvaro Guimarães, amigo desde o grupo de teatro do Marista. Alvinho Guimarães e eu fizemos um plano de produção para dois filmes, o Caveira my Friend, direção dele, e outro logo em seguida, direção minha. Os produtores eram a família de Alvinho (nenhuma novidade, Meteorango Kid foi bancado pelo pai do André Luiz) e Braga Neto, figura histórica do cinema baiano, ator do mítico Redenção, sócio da Iglu Filmes. Aquele ano, 1968, o mais importante do século XX, foi um ano mágico. Os jovens se levantaram em todo o Ocidente com muito ruído, para se fazer ouvir, e com ímpeto de mudar a História. O filósofo político Antonio Negri diz que a argamassa, o alicerce de 68 foi o desejo, tranformar o desejo em ação, uma forma nova de atuação política. Ele se refere ao Maio de 68 francês, um dos grandes detonantes daquele ano maior que os outros (tivemos a morte do estudante Edson Luiz no Brasil em março, os mexicanos tiveram o massacre de Tlatelolco em outubro). Cohn-Bendit, o líder do Maio Francês, tinha 23 anos, Edson Luiz tinha 16. No Ocidente os jovens enfrentavam o poder capitalista, na Tchecoslováquia os jovens lutavam contra o socialismo, na China os exércitos jovens da Revolução Cultural de Mao radicalizavam em escala colossal — e, nascendo nesse fogo, nessa guerra, a suave revolução hippie, paz e amor. Pois é, paz e amor. A proposta era que a juventude, e não a terceira idade, apontasse os caminhos a serem percorridos pela humanidade, coincidindo com as outras correntes de 68, as que foram para o enfrentamento físico, pegaram em armas. Mas descoincidindo no que se refere a esses caminhos, que seriam oxigenados pela espiritualidade, pelo compromisso com a beleza e com a natureza (flower power), pelo desenvolvimento das capacidades extra-sensoriais e pelas relações pacíficas entre as pessoas. Resgatou-se o mandamento único de Cristo, amar ao próximo como a si mesmo, e a afirmação polêmica e surpreendente de Einstein, maior cientista do século: a imaginação é mais importante que o conhecimento. Cantávamos Imagine, de John Lennon, com a convicção de que realmente podíamos todos nos dar as mãos ao redor da Terra. Esse despertar massivo da juventude para a espiritualidade aconteceu simultâneo e sem prévia articulação em Paris, Londres, Nova York, Amsterdã e também em São Paulo, Rio, Salvador da Bahia. Até em Lençóis. A nova idéia de revolução (revolucionar a si mesmo, revolucionar-se todos os dias de sua vida) estava distante tanto de Marx como de Adam Smith e se traduzia na máxima mais importante do movimento — todo poder à imaginação. Participei como co-roteirista, co-produtor e ator em Caveira my Friend, que foi filmado rapidamente, antes do fim daquele estonteante 1968 estava rodado. Acompanhando o dia-a-dia das filmagens, vivi uma experiência renovadora na minha relação com a linguagem cinematográfica: um tipo de cinema solto, corrido, onde a câmera não determina o ponto de vista, o enquadramento. Ao contrário: é a encenação, a mise-en-scne, quem guia a câmera, mesmo porque a encenação, embora partindo de uma intenção, de uma diretriz, era improvisada. Uma forte experiência vivencial essa filmagem, no momento em que o ideário hippie começava a ser percebido na Bahia e no Brasil, no momento em que as drogas estavam chegando para se fixar como componente nuclear da cultura do século XX. E o filme era exatamente sobre isso, o impacto dessas transformações sobre um bando de assaltantes e um casal careta, um bancário e sua namoradinha. Os Novos Baianos decidiram ser Novos Baianos durante a realização de Caveira my Friend. Aí decidiram fazer o show O Desembarque dos Bichos, no Teatro Vila Velha, que marcou a estréia, ou a tomada de posição, do grupo. Todos os componentes da banda que faria o Brasil trepidar no início da década de 1970 participavam do filme, como figurantes. Eram da turma do Alvinho Guimarães, eu conhecia há muito o Moraes Moreira e o Paulinho Boca de Cantor, Galvão era amigo de infância da Conceição, em Juazeiro da Bahia, onde conviviam com João Gilberto. Estavam todos no filme, inclusive uma amiga deles, a primeira hippie que apareceu na Bahia, Bernardete Yang Sol. Um ano depois, quando estávamos finalizando o filme em São Paulo, os Novos Baianos já estavam atuando e fizeram as músicas para o filme. A hippie Bernadete Yang Sol trocou de codinome, adotando o nome de uma das personagens do filme, Baby Consuelo, interpretado pela Conceição. A ligação do filme com a filosofia, o comportamento e a vanguarda musical dos Novos Baianos, de Acabou Chorare, é direta, é fio descapado com fio descapado. Caveira my Friend foi para o laboratório em São Paulo e iniciei a pré-produção de A Construção da Morte, inspirado em um conto homônimo de Ariovaldo Matos. O plano era montar os dois filmes no mesmo período, em São Paulo, para economizar. Soube do Ato Institucional Número 5 no dia 14 de dezembro de 1968, no dia seguinte à sua decretação. Um sábado com muito sol. Me lembro porque estava na praia com Conceição e alguns amigos e um jornaleiro passou anunciando fechado o Congresso, fechado o Congresso. Compramos o jornal e soubemos o que era o AI 5: poderes absolutos para o regime militar, uma nova fase da ditadura, nenhuma intermediação entre a sociedade e o Estado. Era evidente que as passeatas, as peças de teatro, as manifestações públicas, enfim a resistência que vinha crescendo entre 1965 e 1968, estavam sufocadas. Mas eu não conseguia descortinar, imaginar, o que poderia vir em seguida, que outro tipo de reação seria possível. A minha angústia inicial foi essa, de vácuo, de não saber, talvez nem de ter percebido que estava começando a escalada de proibições, repressões, torturas e assassinatos mais sombria da nossa História. 69 Foi um fim de ano difícil: cair fora? admitir a hipótese de resistência armada? eram possíveis outras estratégias de resistência cultural? eu e os que me cercavam íamos sobreviver? Diante de tantas inquietações, achei que o mais saudável, ou digno, o que realmente atenderia à minha alma, era fazer o filme. Estava tudo organizado, contratado, filmagens marcadas para março e, além disso, eu tinha uma nova situação para ser filmada: já não ia fazer um filme sobre 1968, ia fazer um filme sobre 1969, o que é bem diferente como sabem todos que viveram aqueles tempos. Tanto que o título passou a ser 69-A Construção da Morte. Era meu primeiro filme longo. Dois meses e meio de filmagem, em piques de até trinta horas de trabalho corrido, a equipe e o elenco radicalmente integrados nesse ritmo alucinante. No elenco estavam Sônia dos Humildes, Harildo Deda, Gessy Gesse, Conceição, muita gente, acho que todos os bons atores daquela época na Bahia. A história central é a que está no conto de Ariovaldo Matos: um jornalista impede por acaso o suicídio de um homem, o homem explica que é pobre e está com câncer de pulmão, que é melhor morrer logo do que sofrer e causar sofrimento à família, e o jornalista compra a morte dele, compra a exclusividade da notícia, oferece uma grana para ele se suicidar outro dia, com hora marcada, saltando espetacularmente do Elevador Lacerda. O homem aceita, convencido pela herança inesperada que vai deixar para a família, e o acordo é cumprido até o fim. No filme o tempo entre o acordo e seu cumprimento é alongado, a relação entre o jornalista e o suicida é radicalizada e a metáfora com as perversidades e perversões que estavam acontecendo naquele momento era, além de planejada, inevitável. Aí utilizo por primeira vez a mescla de ficção e documentário que desenvolveria posteriormente com Jorge Bodanzky: fiz um acerto com a editoria de polícia do Jornal da Bahia e nossa equipe ia com os repórteres na cobertura de crimes, perseguições a bandidos, prisões, bocas-defumo. Essas cenas documentais do baixo mundo se justificavam porque tínhamos um personagem jornalista, era o mundo do personagem (feito por um polonês, Ian Sobanski). E a redação do jornal justificava a utilização de fotos e imagens em movimento do que estava acontecendo no mundo, inclusive a viagem do homem à Lua. As filmagens foram feitas discretamente, sem chamar atenção, por temor à reação dos militares. Os negativos eram enviados diariamente para o laboratório em São Paulo. Terminadas as filmagens, fiquei uns meses em Salvador fazendo a desprodução e pagando dívidas, vendo todo mundo cair fora em direção ao Sul ou ao exterior. Fui convocado para mais um interrogatório no quartel da Mouraria, fazia tempo que isso não acontecia. Queriam saber sobre um filme que eu estava fazendo, sabiam que eu tinha filmado a polícia em ação. Eu disse que era um filme sobre o jornalismo, como os jornalistas trabalham. Pediram para ver, eu disse que era impossível, o filme estava no laboratório, só em dois meses. Avisaram-me que não devia sair da cidade, que seria convocado para mais informações. Já estava passando da hora de sair dali e poucos dias depois pegamos um avião, Conceição e eu, e desembarcamos em São Paulo, nos instalamos em um hotel. Capítulo IV Um Produtor em Pânico Nos reunimos com Alvinho Guimarães e montamos os dois filmes, Caveira my Friend e 69-A Construção da Morte, no estúdio Odil Fonobrasil. A barra estava pesada em São Paulo. Vi uma cena diante do estúdio, cito como exemplo do clima: um policial pediu documentos a dois rapazes que trabalhavam conosco, pegou os documentos, disse documento da Bahia não vale e os rasgou e sorriu vitorioso dizendo agora vocês estão sem documentos. E indocumentado era preso na hora. Muitos amigos nossos também tinham vindo para São Paulo, a maioria já na onda hippie, músicos, atores, atrizes. Um grupo barulhento e barbudo, os paulistas com quem convivíamos nos apelidaram baihunos, soma de baiano com huno. Todo mundo sem dinheiro, se virando. Consegui um co-produtor paulista para 69-A Construção da Morte, o George Jonas, cuja contribuição mais importante era uma autorização, um permanente, para que minha equipe comesse em duas cadeias de restaurantes, Um Dois Feijão com Arroz e Restaurante do Papai. Incluí na lista dos restaurantes a equipe de finalização do Caveira my Friend, cuja produção já estava contando centavos, mas o pessoal do Alvinho Guimarães era numeroso, um bando de baihunos, incluindo Os Novos Baianos. O resultado é que muita gente almoçava e jantava conosco, eu apresentava o permanente, assinava e tudo bem. Um dia o Jonas me chama e, com montes de notas dos restaurantes assinadas por mim na mão, surpreso, diz —você comeu o filme. As refeições foram controladas e terminamos 69-A Construção da Morte. Era um retrato contrastado (e em preto-e-branco) daquele ano, daquela situação, confrontando seres humanos sem ética, sem piedade, poderosos, e seres humanos sob pressão determinados a mudar a vida, alguns a vida de todos, outros apenas a própria. Mostrei o filme aos produtores e à equipe, em banda dupla como se fazia na época (bandas de imagem e som separadas, ainda sujeitas a correções). Quando terminou a projeção o produtor Braga Neto estava lívido, pálido, e fez um discurso nervoso e taxativo. Disse que ninguém mais, além das pessoas que ali estavam, devia ver o filme. Que era um absurdo, uma irresponsabilidade minha ter feito um filme como aquele, se o filme chegasse ao conhecimento dos militares nós não seríamos presos, seríamos executados, assassinados. Citou algumas cenas, a que mais lhe apavorava era o diálogo de um casal prevendo atos terroristas, imaginando o que seria explodir o Elevador Lacerda na hora do rush, com milhares de pessoas transitando nele. Havia muitas previsões no filme, tocava-se em várias possibilidades de reações sociais diante da repressão ditatorial: o exílio, a guerrilha, as drogas. O outro produtor, George Jonas, foi menos enfático mas também achava o conteúdo perigoso. Argumentei que o filme poderia ser exibido no estrangeiro, cópias clandestinas de alguns filmes brasileiros estavam chegando à Europa, como era o caso de Manhã Cinzenta, de meu compadre Olney São Paulo. Para Braga Neto a exibição no exterior seria ainda mais grave, teríamos de nos exilar antes que isso acontecesse e ele não estava a fim de exílio. Pedi calma, talvez pudéssemos pensar em alguma coisa, e marcamos reunião para o dia seguinte, lá mesmo no estúdio Odil Fonobrasil. Quando cheguei para a reunião soube que Braga Neto havia retirado do estúdio o material do filme, depois soube que também pegou os negativos no laboratório. O filme desapareceu, e Braga também. Durante anos não tive notícias dele até que um dia apareceu em minha casa no Rio e contou que havia distribuído as latas do filme por diversas pessoas, para escondê-las até as coisas melhorarem, com a esperança que um dia o filme pudesse ser mostrado. Com o correr do tempo, e possivelmente também por medo, as pessoas tinham se desfeito das latas, jogado no lixo. Uns quinze anos depois foram encontrados dois rolos de imagem e dois rolos de som, não correspondentes, na Cinemateca do MAM, no Rio. Estavam em péssimo estado, sem condições de recuperação. Sobraram algumas fotos, o roteiro e a memória de quem participou. Eu estava me transformando em autor de filmes desaparecidos: Rebelião em Novo Sol, agora 69-A Construção da Morte. Carma? Eu estava fadado a não ser um cineasta? Fiquei muito impactado com isso, com a rejeição violenta de algumas pessoas a esses filmes, por raiva ou por medo. Quando fiz o que, no meu entendimento, era verdadeiramente cinema, um impulso de criação e um discurso pessoal, um posicionamento pessoal diante do mundo, que foi nesses dois filmes, fui punido severamente. Punição com dor, com perda irreparável. Fiquei muito atordoado com isso, meio perdidão em São Paulo, desanimado. Tanto que desisto de um projeto que estava escrevendo, apesar do George Jonas mostrar-se disposto a produzi-lo. Era uma alegoria, em um futuro próximo o mundo radicalmente dividido em dois, no Norte os ricos, no Sul os pobres, um embate entre tecnologia e energias espirituais, intitulado Ofélia e suas Guirlandas Fantásticas. Portas da Percepção Mas a vida tinha de continuar e tinha de continuar ali, em São Paulo, porque não tínhamos, Conceição e eu, para onde ir. Não queríamos sair do País, embora nos sentíssemos tentados a isso quando recebíamos notícias de amigos que haviam partido para o exílio (para nós São Paulo já era um exílio). E não podíamos voltar a Salvador, não era seguro e, além disso, todos os baianos nossos amigos que estavam em São Paulo, e nós também, considerávamos a aventura de Salvador encerrada com o AI-5. Ficamos em São Paulo quase dois anos, fazendo teatro e iniciando-nos, Conceição e eu, na filosofia e na prática hippie. Passei a escrever ficção, contos fantásticos para a revista Senhor, que anos depois reuni no livro Máquinas Eróticas (Editora Rocco, 1985). Contos lisérgicos. Já havia me aproximado das drogas em Salvador, as primeiras experiências com maconha tinham sido surpreendentes, iluminações que ao mesmo tempo me atraíam e assustavam. Em São Paulo essa aproximação se fez mais consciente e atenta, eu tinha lido As Portas da Percepção de Aldous Huxley, tomei conhecimento da pregação e das idéias de Timothy Leary sobre o LSD, escutava rock progressivo. Sofri uma transformação física definitiva, acabando com o efeito sanfona que tinha sido minha história corporal: fui um garoto gordo, um adolescente magro e, dos 20 aos 30 anos de idade, de novo gordo, com 84 quilos; em 1970, em São Paulo, estabeleci nos 70 quilos, meu peso até hoje. Me lembro de Zé Celso Martinez Correa assustado com minha aparência, depois de uma destas mudanças: um dia nem seu próprio cachorro vai lhe reconhecer. Uma fase de espiritualização, de me voltar para dentro, repensar minhas atitudes, meus elos com a vida. Mudei a alimentação, me despojei de apegos materiais, em certos momentos até pretendi a santidade. Percebi o que Cristo significava para mim: contrariando a versão da cristandade, percebi (e essa é minha percepção até hoje) que a grandeza de Cristo, ou do mito de Cristo, está no fato de um homem, por sua inteligência e bondade, atingir a dimensão divina. E não o contrário, não existe milagre no fato de um deus todo-poderoso descer à Terra corporificado em um ser humano, já que ele pode tudo. O milagre, o inesperado, a maravilha está em um homem, com sua carga corporal, transformar-se em deus. Depois da desordem psicológica causada pelo desaparecimento do filme, a paz interior resultante dessa nova relação com o sagrado me devolveu a alegria de viver. Depois de um tempo em hotéis, dividimos um pequeno apartamento na rua Maria Antonia com o compositor e cantor Fernando Lona e sua banda Teorema. Vida comunitária e pobre, comíamos quase sempre massa, macarrão, e uma das diversões era inventar molhos para variar o paladar. No edifício, estreito e alto, viviam apenas músicos e as moças que trabalhavam no La Licorne, uma casa noturna que ficava perto, na zona conhecida como Boca do Luxo (em contraposição à Boca do Lixo, que terminou como denominativo do movimento de cinema barato e associado a exibidores que estava sendo feito na época em São Paulo). Até as duas horas da tarde o edifício era absolutamente silencioso, todo mundo dormindo, até as crianças. A partir daí era bem ruidoso, com gente afinando instrumentos, bandas ensaiando (inclusive a nossa Teorema). Boa parte das meninas do La Licorne tinha marido, algumas com filhos pequenos, e eram discretíssimas. Outro aspecto interessante dessa temporada na Paulicéia Desvairada (para nós, põe desvairada nisso) foi um pingue-pongue que acontecia de vez em quando entre a escassez e a fartura. Reencontrei aí um amigo de infância, milionário, atuando no mercado internacional de patentes, e às vezes ele nos convidava para jantares ou festas da alta burguesia (paulistas e estrangeiros), onde tirávamos a barriga da miséria. Depois de dias de macarrão, vol-au-vent, coq-au-vin e vinhos estupendos. Algumas vezes íamos como convidados, outras como integrantes da banda Teorema, que o amigo contratava ou incentivava os outros ricos a contratar. Esse meu querido amigo é sofisticado e absolutamente discreto, não é mencionado nos jornais, seu círculo social é restrito, seu cartão de visitas tem apenas seu nome em suave relevo, difícil de ser percebido, sem telefone nem nada. Porisso não o nomeio, ele vai achar que é muita exposição. Vamos chamá-lo TB. Trabalhei com TB alguns meses, o que melhorou substancialmente nossas finanças, em uma atividade interessantíssima: descobrir inventos, invenções, caçar inventores. Ele precisava de patentes brasileiras para negociar com outros países e bons produtos estavam escassos. Lançamos uma campanha de anúncios dirigidos e apareceram os inventores. Meu trabalho era examinar os inventos, apresentar os melhores a TB e montar um kit dos aprovados (um protótipo e apresentação em vários idiomas). Entrevistei vários tipos de loucos-beleza, dezenas de Professores Pardal, invenções engenhosas mas inúteis, outras já inventadas. Me lembro de uma discussão com um deles, eu dizia isso é um cabide, foi inventado há muito tempo — e ele defendia sua obra na maior viagem, nem pode ser chamado de cabide, bicho, é tridimensional, a roupa vai ficar com a forma do corpo do dono, se for mulher levanta mais as hastes da frente, se o cara for corcunda levanta a haste de trás. Descobrimos um invento que fez sucesso, TB deve ter ganho milhões: o repelente eletrônico, contra mosquitos. Tenho de registrar, nessa época, a provocante experiência que vivemos, Conceição e eu, ao participar de um espetáculo-interferência do Living Theatre no Embu, em São Paulo, sob a regência de Judith Malina e Julian Beck. Foram dois dias de intensa e perfeita integração entre o pessoal de teatro que acompanhava o casal e a população do Embu, na época uma comunidade pequena e carente. O teatro integral, desprovido de textos e concepções cênicas pré-concebidos, de intenções pré concebidas, sem pre-conceitos, sem pre-juizos. Apenas o entregar-se, abrir a alma. A experiência transformou o Embu, os moradores começaram a fazer coisas que não faziam antes, artistas de toda parte foram morar lá, hoje é conhecida como Embu das Artes. Logo depois da visita do Living ao Embu, Judith e Julian foram presos em Minas Gerais e expulsos do país. Formamos com alguns amigos, a maioria baianos, um grupo de amizade e de trabalho: Fernando Lona e sua banda, as artistas plásticas Sonia Castro e Lena Coelho Santos e seu marido o fotógrafo Jorge Bodanzky, a psicanalista Silvia Bloisi, o ator Lorival Pariz. Essas pessoas participaram na criação do espetáculo Os Anjos, uma alucinação cênica que montei no final de 1970, a partir de um texto de um político ligado a Jânio Quadros, o Arruda Castanho, um senhor simpático e delirante. Ele era bem relacionado com o carrossel econômico de São Paulo, com agências de publicidade, e bancou a produção, que era bem cara, com muitos atores, banda de música, cenários de acrílico, engenharia cênica sofisticada (havia uma batalha aérea entre anjos e demônios, todo mundo voando). Claro que se tratava de uma operação antropomórfica, os deuses à imagem e semelhança dos homens, o que será realmente essa tal de criatura humana no leque que vai do canibalismo aos vegetarianos radicais (que estavam em voga), dos camicases aos fisicultores, dos predadores aos benfeitores. Também faziam parte da turma o cientista e crítico de arte Mário Schenberg e sua mulher Lourdes Cedran, papelista e artista plástica e papeleira. Schenberg, o gênio da mecânica celeste, do eletromagnetismo, da gravitação, da evolução cósmica, também um humanista, humanitarista, ambientalista, preso e exilado em 1948 (era deputado constituinte pelo PC), preso em 1964, foi o mestre de que eu precisava naquela fase de transição, de novas descobertas, de estados alterados, experiências lisérgicas. Um dia Lourdes me levou a um pai-de-santo em uma periferia longínqua da cidade, um terreiro de umbanda. Tudo que se referia à paranormalidade nos interessava. O pai-de-santo contou detalhes da minha vida que só minha família podia ter conhecimento, mas era apenas uma preparação, uma prova de credibilidade, para o principal. Ele descreveu alguns quase acidentes que haviam ocorrido em Os Anjos, uma haste de ferro que baixou de repente, com vários atores pendurados, os atores pararam a poucos centímetros do chão; um fragmento de acrílico que se desprendeu sem explicação e caiu perigosamente perto de uma atriz. Confirmei boquiaberto, já que ele não tinha como saber, era altamente improvável que tivesse visto o espetáculo, muito menos que conhecesse alguém do elenco. E ele disse: você tem de tirar aquela cruz de cabeça pra baixo que está lá, ou tira ou muita gente vai sofrer. E tinha mesmo, havia um momento em que o espetáculo se transformava em simulacro de Missa Negra, com uma cruz virada ao contrário. Você está mexendo com coisa que não sabe, não entende, isso é muito perigoso. Tirei a cruz, não houve mais problemas. A adivinhação e o diagnóstico do pai-de-santo renderam noites inteiras de conversa com Schenberg, gordo, tranqüilo, concentrado, o senhor das harmonias. Ele ampliou, para o meu entendimento, o conceito de sacralização da natureza para bem além da natureza terrena e física, na direção da natureza cósmica (matéria e antimatéria) e na direção da natureza mágica, entre parênteses porque não sei se é esta a palavra — a natureza das relações paranormais, extra-sensoriais, entre seres humanos e entre os seres humanos e os animais, vegetais e minerais. Até fiz um rock em parceria com o Fernando Lona, intitulado Meu Corpo é Mineral, dedicado aos meus ancestrais garimpeiros. Mário Schenberg, um sábio para quem Deus e Natureza eram exatamente a mesma coisa. A natureza em todas as suas dimensões, com seus muitos universos paralelos. Voando para o Rio Conceição havia encontrado uma via de expansão para sua religiosidade natural, nata, na exploração de vários caminhos esotéricos, estudava astrologia e astronomia, Madame Blavatski, os avatares, mantinha contatos com a Ordem Rosacruz. Ela querendo ser feiticeira e eu querendo ser santo, o que significava a mesma coisa, uma viagem maravilhosa, maravilhada. Ao mesmo tempo a vida não dava trégua, the material life, com a polícia dando em cima, a gente tendo de se mudar várias vezes, a ditadura tentando fechar o cerco a todo tipo de inteligência ativa e sem dar conta, a nossa necessidade de conseguir mais dinheiro para ter mais segurança. Tivemos de baixar a bola e trabalhar mais, dar mais tempo à caretice, como eu acho que a gente dizia na época. Dirigi shows para casas noturnas, com sambistas e mulatas (e com o ator Nonato Freire, também vindo da Bahia, que se juntou à turma) e também um musical cobrindo toda a história da música brasileira, Ofício de Cantar, com Fernando Lona e Maria Odete, muito populares por haverem vencido alguns dos Festivais da Canção da televisão, uma febre midiática da época. Remontei o texto de Ariovaldo Matos A Escolha, com o título O Desembestado, com o jovem Perry Salles como protagonista, e consegui emplacar um animador sucesso de público e crítica ao retomar a experiência do teatro de cordel. O espetáculo chamava-se Cordel e estreou no Museu de Arte de São Paulo, na Avenida Paulista, com boa repercussão imediata na imprensa. A descoberta, ou a invenção, de uma linguagem tão solta e comunicativa, no espetáculo da Bahia, em 1965, havia contaminado a todos que participaram da experiência. João Augusto, que havia lançado a semente e nos agrupado lá no Teatro Vila Velha, continuou burilando essa vertente durante toda a sua vida, criando espetáculos fascinantes. Eu continuei trabalhando interiormente as possibilidades cênicas do cordel desde aquele momento, lembre-se que eu falei sobre meu projeto cordeleiro para Hamlet, por exemplo. Li mais uns duzentos folhetos que não conhecia e montei o espetáculo com oito histórias, transitando do universo tradicional sertanejo para a adoração a Roberto Carlos, a viagem à Lua, uma aventura no fundo do mar e retornando ao Nordeste, onde Lampião e Maria Bonita, mortos em Angicos, se indispõem com o Céu e com o Inferno, não ficam por lá e voltam ao sertão, imortais. Tudo costurado pelos versos e pela postura debochada de Cuíca de Santo Amaro, famoso cordeleiro urbano de Salvador, meu conhecido. A boa performance em São Paulo resultou em um convite para o Rio, o Teatro Santa Rosa nos importou para uma temporada de quatro meses. Bye bye São Paulo, Conceição e eu estávamos mesmo ansiosos para aportar no Rio, tínhamos notícias do crescimento do movimento hippie nas praias cariocas. Chegamos ao Rio no verão histórico 1971-1972, alugamos um pequeno apartamento no mesmo edifício do Teatro Santa Rosa, em Ipanema, e estreamos o Cordel com sucesso ainda maior que em São Paulo, sustentado por uma ovação crítica, melhor espetáculo do ano, etc. Trabalhávamos à noite e passávamos o dia todo na praia, no Píer de Ipanema, onde a filosofia hippie, a postura hippie se afinava: a salvação pessoal e coletiva só é possível com a prática consciente do amor a si mesmo e do amor ao próximo. O Píer de Ipanema era o centro irradiador mais importante do movimento, secundado por Arembepe, uma aldeia de pescadores na Bahia. Carnaval e Janis Joplin A ponte Rio-Salvador era percurso obrigatório dos hippies. Cabeludo e colorido, voltei a Salvador no Carnaval de 1972 e tomei um susto quando vi o trio elétrico Caetanave. Em dois anos, o carnaval baiano que eu conhecia, com pequenos trios elétricos percorrendo a cidade, muita gente mascarada dançando e aprontando nas ruas, tinha mudado, tinha se agigantado. A Caetanave foi o primeiro trio elétrico gigante que apareceu (não era mais trio, era uma orquestra eletrificada), dando início ao desenho do que é hoje o carnaval baiano. Caetano, o inspirador, voltara do exílio em Londres dois meses antes. Esse carnaval foi como uma epifania, uma possessão, uma visita ao nirvana. O encontro da Bahia, dionisíaca por natureza, com o fluir livre da vida dos hippies produziu uma combustão de felicidade, paz e fé. Faça Amor, Não Faça Guerra não era um slogan naqueles tempos ditosos, era uma definição existencial, uma decisão de comportamento para todos os dias e para toda a vida. O hippismo atingiu seu auge no Brasil no verão de 1971-1972, quando o movimento perdia força na Europa e na América do Norte. Acontece de maneira muito forte mas ligeiramente defasado, deslocado no tempo, o último grande suspiro do sonho descrito por John Lennon em Imagine: nenhum paraíso, nenhum inferno, nenhuma religião, nenhuma propriedade, todas as pessoas vivendo a vida em paz e compartilhando o mundo todo. A grande contribuição dos hippies brasileiros à filosofia hippie foi radicalizar a rejeição ao dogma e a qualquer afirmação revestida de verdade absoluta — acrescentando o ou não depois de suas próprias afirmações. A frase-chave dos hippies do hemisfério norte era por que não?, uma pergunta. A dos hippies brasileiros era afirmativa e conflitante — ou não. Entre 1972 e 1974 fiz algumas viagens à Bahia, viagens no sentido geográfico e no sentido esotérico e lisérgico. Em uma delas fui a Arembepe para conhecer Janis Joplin, que estava por lá em companhia de dezenas de malucos-beleza, musa que era do movimento. Cheguei no fim da tarde e participei de correrias pela praia e banhos de mar, todos nus e abraçados e se beijando. Depois a noite inteira ao redor de uma fogueira enorme, cuja construção também foi uma festa. Já altas horas, uma atitude de Janis me surpreendeu, a mim e a muitos hippies que ali estavam: ela começou a beber cachaça. Bebeu muito. Para nós o álcool era uma coisa superada, uma droga que não servia ao autoconhecimento e à percepção extra-sensorial, não tinha as propriedades perceptivas da canabis e do LSD. Era uma droga careta. Foi um susto, ou não estávamos entendendo o nosso próprio caminho ou a Janis, uma estrela-guia, é que não tinha percebido a verdadeira dimensão daquela aventura. Esse episódio aparentemente sem importância foi o primeiro a descortinar, para mim, a possibilidade de ramificações do movimento, de rupturas internas, a suspeita de que o desbunde era passageiro, que um dia o sonho podia acabar. Um tempo depois, lá mesmo em Arembepe, um fato exponencialmente mais grave marcou o início do fim: alguns hippies deixaram de ser pacíficos (ou seja, traíram o princípio básico do movimento) e um deles foi morto por um pescador. A fraqueza humana, a estupidez humana, o mau uso das drogas e a forte pressão dos poderes conservadores do mundo contra o sonho, que estava sendo posto em prática por aquela geração, fizeram estragos incontornáveis. Em 1974 o hippismo, como movimento planetário, deixou de existir, mas suas sementes continua-ram florescendo no espírito de muita gente. No meu continuam a florescer. Meu comportamento e minha conexão com o mundo são pautados pelos sentimentos pacíficos e pela estetização da vida que herdei daquela militância hippie — e também, em igual medida, pela responsabilidade absolutamente pessoal de tudo que eu faço e que me acontece, que aprendi com os mestres iorubás da Bahia. Grupo Barra No Rio, Conceição e eu organizamos uma trupe de teatro itinerante, em sociedade com o ator Nelson Mariani e a atriz Beatriz Lira: o Grupo Barra. Criamos espetáculos com 50 minutos de duração, adaptáveis para platéias adultas, adolescentes e infantis. Íamos buscar essas platéias nas escolas, universidades, igrejas, associações comunitárias e nas praças públicas, evitando os teatros. Tínhamos uma excelente produtora, Sofia Mariani, a quem chamávamos Mama Sófia, que vendia espetáculos em todo o Estado do Rio de Janeiro. A duração de 50 minutos tinha a ver com o tempo das aulas das escolas, o que permitia apresentar os espetáculos durante o horário escolar. A estratégia era preço baixo e muitos espetáculos. Sofia vendia os espetáculos pelo preço que o freguês pudesse pagar, em todo o Estado, e o grupo fazia as turnês, com três ou mais apresentações por dia, deslocandose constantemente. No início foi trabalhoso mas logo ficou fácil porque os espetáculos agradaram muito aos primeiros compradores, que encomendaram outros e propagaram seu entusiasmo para outras escolas, prefeituras, igrejas e associações. Durante três anos percorremos doze vezes as periferias da cidade do Rio e os municípios do Estado do Rio. Montamos cinco espetáculos, sempre com o elenco fixo (Conceição, Nelson Mariani e Beatriz Lira) e com atores contratados para as diversas peças (Bayard Tonelli, Toninho Vasconcelos, Nery Victor e outros, muita gente participou da experiência). Eu cuidava dos textos e da direção e, às vezes, também atuava. Os temas eram escolhidos com um olho nos nossos interesses artísticos e com o outro na produção, visando aos estímulos e aos acontecimentos públicos. O repertório começou a ser montado com Via Crucis, a Humanidade de Cristo, destinado à época da Semana Santa: Cristo sendo torturado e interrogado durante 50 minutos, acusado de subversão e incitação das massas. Depois, para a época natalina, Natal na Praça, que adaptei do texto de Henri Ghéon, um bando de ciganos que tenta apresentar um Auto de Natal mas se esqueceu do texto e tem de se virar diante do público. Na mesma perspectiva fizemos Natal Outra Vez, de Nelson Mariani, onde os ciganos se apresentavam ainda mais atrapalhados e engraçados. O País estava comemorando os 150 anos da independência e criamos Onde o Brasil Começa, o jogo político palaciano no momento em que Pedro I decide separar-se de Portugal. E fechamos o repertório com um espetáculo etéreo e filosófico sobre o vôo, o desejo humano de voar e a conquista tecnológica do espaço, Céus Nunca Dantes Navegados. Uma viagem no tempo, desde o mito Minotauro-Dédalo-Ícaro até Armstrong pisando na Lua, passando por Santos Dumont. Os textos que mandávamos para aprovação da censura tinham caráter religioso ou histórico, cuidadosamente limpos de qualquer relação com a ditadura. Eram textos enganosos e os censores raramente faziam a censura do espetáculo, como era comum. Dispensavam esse segundo estágio da censura (primeiro examinavam o texto e depois o ensaio geral) porque eram peças religiosas e nas poucas vezes que pediram para ver o ensaio geral foram enganados outra vez porque os atores apresentaram o texto falso. Essa era a característica do Grupo Barra, a de apresentar distintas versões do mesmo espetáculo, um camaleão: para praças, para espaços pequenos, para crianças, para adultos e, claro, para enganar a censura. A preparação dessas montagens moduláveis, adaptáveis, era uma novidade muito estimulante para os atores e para mim, era um constante desafio na construção dos personagens e na encenação, no grafismo mutável do espetáculo. Nos valemos da experiência com o teatro de cordel, do dinamismo cênico desse teatro, tanto que quase todo o elenco era oriundo do Cordel que fizemos no Rio (onde também estava a Isolda Cresta). A estratégia funcionou no que se refere à censura, mas não evitou problemas com alguns diretores de escola e, principalmente, com a Igreja. Houve denúncias de subversão e distorção de fatos históricos contra Onde o Brasil Começa, a censura foi ver o espetáculo, fomos avisados a tempo e conseguimos nova autorização. Mas sabíamos que em qualquer momento podia acontecer um flagrante (censores vendo o espetáculo sem que soubéssemos de sua presença) e isso acarretaria possivelmente o fim da trupe, a proibição do Grupo Barra. Tiramos a peça do repertório e continuamos com as outras. Quanto à Igreja, a questão foi com Via Crucis, a Humanidade de Cristo, com música de Pink Floyd e iluminação psicodélica alcançando toda a nave das igrejas, do teto ao chão (a luz era um barato, equipamentos de última geração e muito potentes, trazidos dos Estados Unidos pelo nosso jovem iluminador Bill, que aportou no Rio fugindo da Guerra do Vietnã e se juntou ao Barra). Tínhamos a adesão entusiástica do Padre Ítalo, da igreja de Copacabana, que recomendou o espetáculo a várias paróquias chefiadas por padres progressistas. Pedíamos novas recomendações a esses padres e elas nos abriam portas de outras igrejas, principalmente no interior do Estado do Rio. Mas também aconteceram fortes reações por parte de outros padres, que nos tacharam de hereges e nos ameaçaram com a excomunhão. Fomos expulsos de algumas igrejas, fomos pivô de atritos entre sacerdotes. E também aconteceram, poucas vezes, reações adversas de espectadores, o mais grave em uma igreja de Botafogo. O espetáculo era apresentado dentro das igrejas, o altar e os corredores da nave transformados em palco. Essa igreja de Botafogo é enorme e estava completamente lotada. Durante a apresentação alguém fez um comentário sobre a sexualidade daquele Cristo (é homem ou mulher ou veado?) e foi duramente contestado por pessoas que estavam perto. A discussão continuou depois da apresentação, no amplo átrio da igreja, e degenerou em uma briga violenta entre dois grupos, luta corporal. A recepção majoritária aos espetáculos do Barra era muita boa, o público se encantava com a atmosfera ao mesmo tempo circense e onírica, com luzes de sonho, as crianças adoravam (por exemplo, em Natal na Praça os atores-ciganos faziam mágicas de circo todo o tempo, objetos desaparecendo e aparecendo, uma cigana tirando metros de pano da boca para poder dizer sua fala e coisas assim). E era muito público, as apresentações pagas pelas prefeituras reuniam pequenas multidões nas praças, milhares de estudantes nos pátios das escolas, igrejas cheias. Mas aquelas reações contrárias eivadas de violência me faziam lembrar da destruição de meus filmes e me punham em guarda contra o pior resultado dessas pressões, que é a autocensura. Era difícil entender que um teatro claramente focado no entendimento entre as pessoas, na convivência pacífica e na evolução espiritual e tecnológica do ser humano pudesse causar ameaças de excomunhão e de prisão — mas tinha de entender, pois se tratava da realidade, do Cristo homem assassinado no passado, de John Lennon assassinado no futuro e de tantos outros tristes exemplos na história humana. Diante de tal quadro, o mais importante era superar o medo e não cair na armadilha da autocensura, da negação de si mesmo. Em 1974 os jornais do Rio registravam a grande audiência de nossos espetáculos e a ditadura tentou cooptar o Grupo Barra: a produtora foi contatada pelo Ministério da Educação e Cultura, que ofereceu uma dinheirama para que montássemos um espetáculo sobre os bandeirantes, a ser apresentado em turnê por todo o País. Havia na proposta uma clara intenção de metaforizar as Entradas e Bandeiras com o governo ditatorial, com a expansão das redes de televisão, com a Transamazônica. Era muito dinheiro e a produtora tentou nos convencer que podíamos utilizar a natureza mutável dos espetáculos Barra para enganar a ditadura, para fazermos um espetáculo nosso e não o espetáculo encomendado. Não aceitamos esse plano, evidentemente inexeqüível, e o grupo foi desfeito. Tínhamos, Conceição e eu, uma opção irrecusável: o convite de Jorge Bodanzky para fazermos um filme (valham-nos coincidências, se é que existem) justamente sobre a Transamazônica. Só voltaria a dirigir teatro nos anos 1980, três espetáculos: Xana, A Voz Humana, Ajaká. O primeiro foi um projeto lincado com o lançamento do meu livro Xana (Editora Codecri, 1979), sobre a Amazônia, uma colagem de cenas, com 20 atores e, digamos, edição cinematográfica, com cortes constantes de uma cena para outra. Teve uma apresentação no Rio, no Parque Lage, com elenco carioca, e duas apresentações em Salvador, no amplo Museu do Unhão, com elenco baiano. No elenco carioca estava Norma Bengell e logo depois eu a dirigi no conhecido monólogo A Voz Humana, de Jean Cocteau, apresentado no Teatro Guaíra, em Curitiba. As pessoas me diziam que era impossível dirigir La Bengell, uma diva temperamental e inteligente, em um monólogo. Que a direção seria atropelada e, portanto, desnecessária. Minha amizade com Norma já era antiga naquela época, vinha do início dos anos 1960 e, se eu sabia do seu famoso lado temperamental, também sabia do outro lado, da sua docilidade e ternura. Fizemos um trabalho a dois, harmonioso e tranqüilo, sem atropelos, com bom resultado. Ajaká foi uma experiência místico-teatral, um musical recriando (ou ampliando) o mito de Ogum na dimensão afro-baiana, no contexto da diáspora africana. Inventei o espetáculo com Mestre Didi, sumo sacerdote do candomblé, e com Juana Elbein dos Santos, autora do livro Os Nagô e a Morte, obra prioritariamente referencial sobre a religião dos orixás (e com quem eu havia trabalhado antes, na concepção do documentário Iyá mi Agbá, direção dela, sobre a Grande Mãe ancestral dos iorubás). Durante todo o tempo, desde a concepção até as apresentações, uma concentração mística profunda e benfazeja envolvendo os dançarinos-atores, os músicos e os autores-diretores. Um elenco negro encabeçado pelo ator-dançarino Mário Gusmão (ele mesmo, hoje, a caminho de se tornar um mito na Bahia), pela dançarina e cantora Inaycira (filha de Mestre Didi, neta da grande ialorixá Mãe Senhora do Iylê Apó Afonjá) e pela mestiça Conceição, já que se tratava de um mito afro-baiano, com ênfase em ambos os conceitos. Uma produção da Sociedade de Estudos da Cultura Negra do Brasil, a Secneb, criada por Mestre Didi e Juana, e da qual sempre participei. Foi apresentado em alguns terreiros nagôs no Rio de Janeiro e fez temporada no pátio da Fundação Cultural da Bahia. Foi a experiência que mais me aproximou do caráter sagrado do teatro, do antiqüíssimo enlace do teatro com a transcendência, com a natureza dos deuses. Aí encerrei, não sei se para sempre, minha intimidade com o teatro, o mergulho nas entranhas do teatro que tinha começado lá na infância, não por falta de amor a esse mundo mágico do palco e das gambiarras, a essa arte seminal, a mais ancestral de todas, na verdade a que mais me atrai. Mas sim porque ela exige disponibilidade absoluta, é uma arte tão visceral e profunda que a única relação admissível com ela é a de entrega total, de corpo e alma. E eu não tenho essa disponibilidade, essa virtude da dedicação absoluta dos verdadeiros artistas teatrais, porque sou dispersivo e curioso com relação à diversidade das linguagens artísticas e não artísticas. É aquela brincadeira: se eu fosse pássaro seria beija-flor, se fosse inseto seria mosca de padaria, se fosse médico seria clínico geral. Jornalista Viajante No Rio voltei ao jornalismo. Ainda vivendo a experiência hippie, no início dos anos 1970, vou trabalhar na editoria internacional do Correio da Manhã, que estava vivendo seus momentos finais. Em seguida vou para a Última Hora, onde fico por um bom tempo e começo um novo ciclo, a vida viageira de jornalista ambulante. De editor e comentarista de assuntos internacionais passei a repórter internacional, deslocando-me de acordo com os acontecimentos. Depois vou para o Jornal do Brasil e faço muito trabalho freelancer para agências de notícias. É uma atividade intensa, interrompida algumas vezes para a realização de filmes, que se estende até 1982. Meu primeiro território de cobertura foi a convulsionada América Latina dos anos 1970 e o segundo foi a África, com várias guerras de libertação nacional e formação de novos Estados. Cobri a volta e a morte de Perón, a ascensão e o assassinato de Allende, o governo do general Velasco Alvarado no Peru, os golpes militares na Argentina, no Chile, no Uruguai. Investiguei e publiquei uma situação grave no Uruguai, envolvendo o presidente Bordaberry, pau-mandado dos militares: o lastro-ouro do país estava no fim, tinha desaparecido por má gestão e roubalheira, e o fato estava sendo escondido dos credores internacionais e das bolsas de valores. Mas esse tipo de trabalho era raro, o meu enfoque era no impacto dos fortes acontecimentos políticos da época, em todo o continente, nas pessoas, na população. Era um entrelaçamento de reportagem e crônica. A opção pelo jornalismo internacional, pelo foco na política global, foi uma estratégia pessoal para que pudesse continuar fazendo jornalismo sem muitos problemas com a ditadura brasileira. É claro que estabelecia pontes entre as situações dos países vizinhos e o que estava acontecendo no Brasil, necessárias em uma visão continental, mas eram sutilezas que a censura e a organização ditatorial não percebiam ou não davam importância, eram matérias na página internacional, notícias de fora. Apesar do meu enfoque preferencial ser a periferia do fato, o impacto do fato nas pessoas não diretamente envolvidas, nas vítimas, muitas vezes fui envolvido diretamente, os tiros chegaram bem perto. Um bom exemplo é o episódio conhecido como Massacre de Ezeiza, ocorrido no aeroporto de Buenos Aires no dia do retorno de Perón à Argentina (20 de junho de 1973) depois de dezoito anos de exílio na Espanha. O peronismo tinha ganho as eleições, eleito Hector Cámpora presidente da República, e nesse dia se esperava a chegada de Perón para que Cámpora passasse o governo para ele (o que aconteceu dias depois). No dia da chegada dele estavam reunidas entre dois e três milhões de pessoas em uma área enorme em frente ao Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Eu tinha de ir com o pessoal da agência UPI, me atrasei, houve um desencontro, tive de pegar um táxi e não consegui alcançar a área destinada aos jornalistas, perto do palanque onde Perón deveria falar. Quando cheguei já estava aquela multidão impressionante, deixei o táxi e continuei a pé. Enquanto cruzava com dificuldade aquele mar de gente em direção ao palanque principal, abrindo caminho com a carteira de jornalista, via lá longe movimentos na multidão, como um redemoinho no mar, redemoinhos de pessoas. Dava para ver longe porque o terreno é ondulado, com elevações. Achei estranhos aqueles movimentos no meio do povaréu e, de repente, vejo perto de mim um cara, louro, altão, tirar de dentro de sua jaqueta de couro um artefato. Era uma metralhadora pequena, uma metralleta. O cara começou a atirar para o alto. Aquele redemoinho de gente que eu via longe começou a acontecer onde eu estava. Gritaria, tiros, correria, uma loucura. Havia alguns carros parados no meio da multidão, ilhados, e me meti embaixo de um deles, duas pessoas também se meteram aí. Durante um tempo interminável ficamos encolhidos ouvindo a gritaria, o ruído das pessoas se chocando contra o carro, que balançava forte. A situação se acalmou e saí de baixo do carro, tentei continuar andando em direção ao palanque, que já estava perto, e novos tiros de metralhadora soaram, o pessoal que estava no palanque também atirava, o palanque era o foco do tiroteio. Virou pandemônio, salve-se quem puder. A muito custo alcancei uma zona com árvores, um bosque, e fiquei deitado embaixo de um arbusto com muita folhagem. Vi pessoas de carro caçando gente com metralhadoras, atirando em qualquer um que se movesse nesse bosque. O que estava acontecendo era uma disputa entre facções peronistas pelos melhores lugares no palanque e por maiores parcelas de poder junto a Perón. Em luta os Montoneros de esquerda e a direita sindical da Central Única de Trabalhadores. O confronto em Ezeiza resultou em 13 mortos e 365 feridos (dizem que foi mais, nunca houve uma investigação oficial). Perón não desceu em Ezeiza, aterrissou em uma base militar. No outro dia, no Brasil, o jornal Última Hora sai com uma manchete espetacular, repórter escapa da morte para contar o massacre. Esse trabalho causava suspense e apreensão em minha mulher e na minha família, a comunicação não era tão fácil como hoje, não havia computadores nem celulares, às vezes eu sumia. Durante o bombardeio do La Moneda, o palácio presidencial do Chile, eu não estava em Santiago, mas minha mulher achou que eu estava. Realmente eu deveria estar em Santiago do Chile no dia da queda do Allende, mas o meu editor Ari Carvalho me deslocou para Buenos Aires, apesar da minha insistência de que não deveria sair do Chile, a situação estava se agravando em ritmo galopante com a reação da direita a declarações de Carlos Altamirano, secretário-geral do Partido Socialista, a crise estava chegando a uma situação limite. Mas o editor estava decidido, você tem que ir pra Buenos Aires, sua base é lá. Quando cheguei a Buenos Aires estavam bombardeando o La Moneda em Santiago e minha gente pensando que eu estava no meio daquela confusão toda. África Na África o cenário não era de golpes e ditaduras militares e sim de guerras de independência e organização política e social dos novos países independentes, incluindo nessa moldura conflitos internos nesses países e interferência armada da África do Sul em Angola, Moçambique, Namíbia e outros países. Era uma colcha-de-retalhos de exércitos nacionais, guerrilheiros e bandos armados. Trabalhei na Tanzânia, Zimbábue, Botsuana, Moçambique e outras zonas de conflagração na região subsaariana e também no norte árabe do continente, principalmente em Marrocos e no Saara, onde os guerrilheiros tuaregues da Frente Polisário enfrentavam o exército marroquino e o plano do rei Hassan II de anexar o Saara Ocidental, ex-colônia espanhola. Em 1975, aproveitando a agonia do regime franquista na Espanha, o rei Hassan II marchou pacificamente Saara adentro com 350 mil marroquinos, tentando ocupar a colônia espanhola. Foi a impressionante Marcha Verde. Imediatamente a Espanha saiu fora do assunto, doando o Saara Ocidental ao Marrocos. Mas o projeto dos sarauis, os habitantes nômades do Saara, os beduínos, era um Estado independente, a República Árabe Saraui Democrática, e enfrentaram o Marrocos com a sua Frente Polisário, formada por guerreiros tuaregues. Em 1976 o deserto estava conflagrado e consegui, em Paris, um contato com a Polisário. Eu queria ver a guerra pelo lado dos sarauis, dos tuaregues. O contato me passou o endereço de um hotel em Marrakesh, onde deveria esperar novo contato. Fui e fiquei muitos dias nesse hotelzinho de árabes, longe dos hotéis de turismo, sem nenhuma notícia. Já estava perdendo a esperança quando dois polisários batem na porta do meu quarto, en-tram sorridentes, pedem desculpa pela demora e, no meio da conversa, enrolam três cigarros de haxixe, um para cada um. E assim me informei sobre as razões e os planos dos tuaregues, em uma viagem de haxixe, hábito milenar dos árabes, usado por Sherazade enquanto contava suas histórias ao sultão durante 1.001 noites e por Saladino enquanto enfrentava os Cruzados. Levaram-me a umas tendas no deserto, não muito longe da cidade (Marrakesh estava superinfiltrada por agentes polisários, por isso esses movimentos eram possíveis), para novo encontro com guerrilheiros tuaregues e de novo o haxixe correu solto. Fiz duas incursões às bases móveis deles, móveis porque são nômades e se misturavam com as caravanas de comerciantes, com os acampamentos dos civis, dificultando os ataques da aviação marroquina. Só não se misturavam com os ciganos, outro povo andarilho do Saara. As caravanas e os acampamentos ciganos e beduínos sempre estão perto uns dos outros, mas eles não se dão, não se falam. Os tuaregues me explicavam, não temos nada a ver, cigano é indiano, beduíno é berbere, fazendo alusão à sua condição de árabe-berbere, falante da língua berbere. Mas voltemos a Marrakesh. Aqueles longos dias de espera pelo contato polisário foi o tempo para me apaixonar por Marrakesh, essa cidade delirante, entre o deserto escaldante e a cordilheira do Atlas com seus cumes nevados. Voltei outras vezes, com Conceição, fizemos amizades eternas, conhecemos a cidade por dentro, seus costumes, freqüentamos a intimidade de algumas famílias, vivenciamos o Ramadan (o mês sagrado muçulmano, abstenção total durante o dia e muita comida, haxixe e sexo à noite). Aproveitamos nossas idas ao Marrocos para conhecer, sempre viajando de trem, todo o norte da África e nenhuma cidade se apresentou a nós com o charme de Marrakesh, que também é um lugar especial, como terminamos descobrindo, para todos os árabes africanos. Quando sinto necessidade de alimentar o espírito vou a Lençóis ou a Salvador da Bahia ou a Santiago de Cuba ou a Marrakesh. Cabeças Cortadas Mas a prioridade era Angola, principalmente após a independência em 1975, quando quatro forças se digladiavam pelo controle do país: o esquerdista Movimento Popular de Libertação de Angola-MPLA, apoiado por União Soviética e Cuba, comandado pelo poeta Agostinho Neto, da nação kimbundu, que tomou Luanda e ocupou o governo; a racial União Nacional para a Independência Total de Angola-Unita, tribalista, liderada pelo rei kuacha Jonas Savimbi, da nação ovimbundu, com apoio dos Estados Unidos e da África do Sul e seu regime do apartheid; a racista Frente Nacional de Libertação de Angola-FNLA, encabeçada por Holden Roberto, um homem estranho e carismático, e apoiada pela República do Congo; e o exército invasor da África do Sul. Várias frentes de batalha, um inferno, o único lugar mais ou menos seguro era Luanda, a capital. Um dia estava em Benguela, ao sul de Luanda, e a cidade foi atacada pelos sul-africanos. Todos os estrangeiros, que eram poucos, foram mandados para a capital em um avião de passageiros, superlotado. Aí estava também Geraldo Sarno exibindo filmes brasileiros (imagine, mostra de cinema no meio da guerra!), que conseguiu o último lugar nesse avião: o banheiro. Fiquei mais algumas horas, anotando as reações da população em pânico, fazendo pequenas entrevistas. O som dos canhões estava cada vez mais perto e fui para o aeroporto, me apresentei a um oficial e ele ficou estarrecido porque eu ainda estava ali, além de estrangeiro, jornalista. Levaram-me para a torre de controle, onde um coronel estava coordenando os preparativos para a defesa do aeroporto, antiaérea e terrestre. Não havia aviões no aeroporto, todos já tinham decolado, e o coronel ficou nervoso com a situação. Alguns aviões soviéticos estavam vindo do sul com refugiados de guerra, passando por cima de Benguela, e o coronel mandou um deles descer para pegar um jornalista. O piloto não obedeceu, desligou o rádio, o coronel ficou furioso, xingou os russos. E o canhoneio terrestre cada vez mais perto e eu sabendo, pelo que ouvia na torre, que um ataque aéreo poderia ocorrer a qualquer instante. Até que o coronel conseguiu baixar um avião, pilotado por angolanos, na base do grito e de ameaças. O avião nem parou para eu entrar, enquanto taxiava lentamente para fazer a volta e subir de novo, baixou a porta traseira (aquelas portas grandes de aviões cargueiros e militares) e subi correndo. Era um avião enorme, com bancos ao longo da fuselagem, e estava entupido de gente e de objetos domésticos, sacos, malas, alimentos, instrumentos de trabalho, perto de mim tinha uma grande gaiola com galinhas. Enorme e lento, levou o dobro do tempo normal para aterrissar em Luanda. Depois soube que não houve o esperado ataque aéreo e que o MPLA, com ajuda dos cubanos, havia detido o avanço sul-africano, Benguela não foi ocupada. Para cobrir os conflitos das ex-colônias portuguesas era indispensável freqüentar Lisboa, onde estava acontecendo o problema dos Retornados, milhares de portugueses e de filhos e netos de portugueses chegando a Portugal, fugindo ou sendo expulsos das ex-colônias. A questão era comida, moradia e emprego para toda essa gente em um momento em que Portugal, justamente por ter perdido as colônias e por ter passado pela Revolução dos Cravos, estava com a economia em frangalhos. Os portugueses nativos reagiam fortemente contra essa invasão, muitas vezes violentamente, vi muitas brigas nas ruas e em restaurantes populares. Boa parte dos Retornados era de gente nascida e criada nas colônias, não conhecia Portugal e tudo que tinha havia ficado na África. Lisboa era pura tensão, todo mundo com os nervos à flor da pele. Além do mais, e isso é importante para um repórter, Lisboa era o centro nervoso dos espiões (aliás, uma antiga tradição da cidade, que teve o fluxo de espionagem mais intenso da Segunda Guerra Mundial, acobertada pela neutralidade de Portugal). Agentes secretos dos três movimentos de libertação de Angola, da Frelimo de Moçambique, da África do Sul, do Congo, da CIA, da KGB freqüentavam todas as noites dois ou três bares do Rocio, os mesmos bares. Um clube de espiões que funcionava e se mexia no meio de bares cheios também de outras pessoas, de gente do bairro, de jornalistas como eu. A reportagem de maior repercussão que fiz nessa época foi gerada em um desses bares do Rocio de Lisboa. Aí tive uma longa conversa com um mercenário português, que se abriu comigo porque estava irritado com os Retornados e com Lisboa, não é mais a minha cidade. Só no fim de seu desabafo me identifiquei como jornalista e ele ficou me olhando um tempo e disse pode escrever, não me importo. Fui para o hotel e escrevi o que tinha ouvido, freneticamente, me esforçando para não esquecer nada, nenhum detalhe. Era um ex-capitão, expulso do exército português por crueldade, daquele exército português colonialista e terrível pré-Revolução dos Cravos. Pois o cara tinha sido expulso por crueldade de um dos exércitos mais cruéis do mundo. Foi para a África do Sul e alistou-se como mercenário, voltando a guerrear em Angola e Moçambique. O título é Cortar Cabeças, uma Profissão como as Outras, publicada no Jornal do Brasil. Apenas reproduzo, sem interferência de qualquer natureza no texto, sem condenação ou crítica, o que aquele homem (que sentia prazer em cortar cabeças de africanos mas muito mais em cortar cabeças de cubanos) me disse naquela noite. Os sentimentos e as idéias daquele mercenário sangrento eram brutalmente chocantes e a reportagem foi muito comentada e difundida, o governo angolano mandou cópias para centenas de autoridades e comandantes militares do país. Em um encontro que tive com o presidente Agostinho Neto alguém o avisou que eu era o autor daquela matéria e ele disse que tinha sido a exposição mais clara e horripilante da mente de um mercenário que já tinha visto. Amir Haddad trabalhou teatralmente esse texto com o grupo carioca Tá na Rua, como exercício para seus atores. Retirada Essa proximidade com a violência não me fazia bem, às vezes me transtornava e eu chorava, muitas vezes me fazia perder o sono. Eu era um pacifista, um hippie, no meio da guerra. O sentimento de deslocamento, de estranho no ninho, de estar fora da minha praia era compensado, ou equilibrado, pelo realismo taurino que também me acompanha. Meu signo é Touro e meu ascendente é Aquário, ou seja, pé no chão mas com a cabeça voando, nas estrelas. Minha natureza aquariana desenvolveu uma repulsa, uma náusea (no sentido sartriano) em contato com a brutalidade da guerra. Minha natureza taurina me fazia pensar que a tal náusea era complexo de superioridade, a soberba de querer ser santo, de me sentir acima das contingências da humanidade, da vida como ela é. Nessa corda bamba fui tocando o barco, querendo saltar fora, mas seduzido pela aventura, pela curiosidade, pelo inestimável conhecimento e experiência que os conflitos ideológicos e políticos de alta violência me proporcionavam no que se refere ao ser humano, ao homo sapiens, incluindo especialmente a mim mesmo. Esse nó psicofilosófico só desatei no início dos anos 1980, quando me demiti desse trabalho, abandonei os campos de batalha, os deles e o meu, particular e interior. Capítulo V Iracema Intercalados nessa atividade de correspondente de guerra, fiz três filmes: em 1974 Iracema, em 1975 Gitirana, ambos em co-direção com Jorge Bodanzky, e em 1976/77 Diamante Bruto. Esses filmes conformam uma trilogia, cujo eixo principal é a aproximação à realidade nua e crua a partir de ganchos ficcionais. Estava terminando o trabalho com o Grupo Barra, início de 1974, e um dia me chega o Jorge com um projeto para a TV alemã, um filme na Amazônia, e me chama para fazermos juntos. Não havia uma idéia precisa sobre o que íamos fazer. O que havia era o tema da Amazônia em plena ditadura militar, o grande interesse da Europa e dos Estados Unidos sobre o tema e a confiança da TV alemã ZDF na câmera de Jorge Bodanzky, um fotógrafo excepcional. Tínhamos de encontrar o filme e fomos caçá-lo. Nos metemos em um fusca, nós dois e mais o produtor alemão Wolf Gauer, e partimos de São Paulo em direção a Brasília, fizemos toda a Belém-Brasília, exploramos Belém do Pará e o Amazonas (os igarapés, a baía de Marajó) e nos metemos pela Transamazônica, do rio Araguaia até a região de Marabá. Viagem longa, parando em todo lugar, conversando muito, uma pesquisa minuciosa. Estive todo o tempo com um pequeno gravador no bolso, gravei dezenas de fitas, centenas de conversas (boa parte desse material está no meu livro Xana, que também narra as filmagens de Iracema e outras viagens amazônicas). Eu gravava as conversas, Jorge fotografava, aprendemos a ficar mais tempo nos lugares para ganhar a confiança das pessoas, para conversar melhor, mais relaxadamente. Parávamos nos pontos dos caminhoneiros, nas quitandas dos igarapés, nos bares onde se reuniam os madeireiros, nos bordéis. Uma vivência bem visceral, em alguns momentos perigosa, com uma polícia militar onipresente e altamente desconfiada, com malfeitores suspeitando de nossos equipamentos e nossas perguntas. Também havia a questão sanitária, tomamos vacinas e remédios contra febre amarela, usávamos repelentes. (Depois, durante as filmagens, quando chegávamos a um daqueles hotéis sujos, alguns repugnantes, Conceição despejava uma garrafa de álcool no banheiro e tocava fogo, para desinfetar; removia as coisas de plástico e as toalhas e tocava fogo, um dia por pouco não tivemos um incêndio). A vida no asfalto da Belém-Brasília era muito agitada, gente de todo o País circulando, tentando se estabelecer nas margens da estrada, a presença ostensiva dos militares. A exploração de Belém e do grande rio nos deu uma visão aguda dessas duas realidades entrelaçadas. Mas foi na Transamazônica que nossas sensibilidades foram tocadas mais fundo. Não penetramos muito na estrada de terra com grandes trechos ainda em construção, não foram mais que uns 500 quilômetros, sempre com paradas prolongadas. Na medida em que nos aproximávamos de Marabá crescia o policiamento e a presença do exército, com muitas barreiras na estrada. Desistimos de prosseguir não apenas pelas barreiras, pela desconfiança que causávamos nos policiais (só depois soubemos o que estava acontecendo na zona), mas também porque já tínhamos visto o bastante, já tínhamos encontrado o caminho do filme. Queimadas gigantescas, prostituição miserável, a angústia dos nativos sendo expulsos para longe da estrada, contrabando de madeira, grandes corporações nacionais e multinacionais se instalando e destruindo a floresta, trabalho escravo. A obra que o governo ditatorial apresentava ao País e ao mundo como a jóia da coroa do milagre econômico era uma mescla de prostíbulo e covil se estendendo por milhares de quilômetros, com alta deterioração ambiental e humana e altíssimo índice de violência. Embora Jorge já trouxesse de São Paulo algumas idéias, o impacto desse universo em convulsão foi a semente real do filme e a decisão foi mostrar o conflito que ali existia, diretamente, e reforçar a informação com uma história emblemática, com uma história que contivesse a dimensão desse conflito em uma relação humana, em uma relação emocionada. Foi aí que falamos por primeira vez, Jorge e eu, em cunha ficcional, em uma alavancagem da realidade no sentido de tornar mais explícita sua incidência no ser humano. Ou seja, ampliar ficcionalmente dois ou três personagens, destacá-los do cenário humano ao qual pertencem, para que os espectadores pudessem se identificar com eles. Havia muitas histórias possíveis, a estrada transtornava e transformava as existências dos nativos e dos imigrantes. A estrada interferia na selva de maneira brutal, extirpando ou expulsando as formas de vida que existiam antes. Por exemplo: índios e animais não existem no trajeto da estrada, tanto que, embora pouca gente tenha notado, não existem animais em Iracema. Não há animais no filme porque eles tinham fugido da estrada, não encontramos nenhum para filmar, com exceção de bichos domésticos. Muitas histórias eram possíveis, mas a que mais se evidenciava era a ligação entre os caminhoneiros e as jovens prostitutas, personagens de grande evidência naquele mundo tortuoso. Uma noite, em um dos muitos hotéis de péssima qualidade que utilizávamos, nos últimos dias da pesquisa, as decisões básicas sobre o filme foram tomadas, incluindo o título. Jorge já pensava em Iracema como nome da personagem, devido ao grande número de mulheres com esse nome em Belém, incluindo várias prostitutas, e a ilação com o romance de José de Alencar, no sentido da relação do conquistador e da conquistada e vice-versa. Naquela noite também ficou decidido que o nome da personagem seria o título do filme. Além desses motivos, me estimulava o fato de Iracema ser um anagrama de América. Voltamos, o Jorge para São Paulo e eu para o Rio, com a tarefa de escrever um roteiro, um roteiro possível na perspectiva que tínhamos escolhido, ou seja, de fato é a estrada que tem de construir a história. O roteiro era necessário para desenhar os movimentos da nossa ficção, as interferências que se fariam necessárias para, digamos, emocionalizar o filme. Também necessário para a ZDF, para que os produtores alemães tivessem uma idéia do que íamos filmar. Ou seja, um roteiro aberto. Para alguém que não estivesse envolvido na operação dramática que estávamos trabalhando, a leitura desse roteiro passaria a impressão de um filme de ficção meio descontínuo, uma seqüência de cenas e diálogos e algumas indicações de locação. Para nós era um alinhavo, apontamentos sujeitos ao destino, ao acontecer diante da câmera. Coloquei ficção entre aspas, quando falei da feitura do roteiro, porque o que fiz foi organizar dramaticamente (ou seja, em ritmo crescente) uma série de acontecimentos e circunstâncias que havíamos vivido ou testemunhado durante a viagem de pesquisa, ou que havíamos escutado nas centenas de conversas e entrevistas. Os longos papos com caminhoneiros e jovens prostitutas, as muitas horas em bares, bordéis, puteiros, tinham conformado os perfis dos personagens Iracema e Tião Brasil Grande, clones de muitas prostitutas com 13 ou 14 anos de idade e de muitos caminhoneiros entusiasmados com o tal milagre econômico, com a abertura de estradas. O resto teria de ser feito pelos atores, em uma linha de atuação de acordo com essa engenharia, com essa ficção entre aspas, com essa reprodução do real, e pelos não-atores, pelas pessoas que seriam elas mesmas. Voltamos a Belém algumas vezes, Jorge e eu, em afazeres de pré-produção mas principalmente para encontrar uma pessoa que pudesse encarnar e particularizar Iracema, uma atriz ou uma não-atriz que se ajustasse à imagem que tínhamos daquele personagem visto tantas vezes na estrada. Estivemos com algumas jovens atrizes e não calhava. Havia a possibilidade de utilizar uma prostituta real, fazê-la viver seu personagem-ela-mesma como nos filmes de Robert Flaherty, mas não consideramos seriamente essa hipótese, que apresentava riscos humanos consideráveis. O tempo estava passando, início de filmagem se aproximando e não encontrávamos a menina. Encontramos em um programa de auditório de rádio, assim como uma revelação: Jorge e eu botamos os olhos em cima dela ao mesmo tempo e soubemos que a busca havia terminado. Ela estava gritando e aplaudindo no meio de outras meninas, no fundo da arquibancada, no lugar mais alto. Era Edna Cereja, 14 anos de idade, mestiça de índio com negro, vivaz, inteligente, curiosa. Disse que nunca tinha visto um filme. Televisão sim, às vezes, mas filme nunca. A aproximação com ela e a família, a explicação da proposta, que íamos levar a menina para a Transamazônica por um mês, foi difícil mas só no começo. Graças à vontade de Edna, a família concordou mas exigiu documentos em que nos responsabilizávamos pela menor. A mãe, índia e severa, entregou sua filha a Conceição, como em um ritual, exigindo a promessa de devolvê-la sã e salva. Uma família operária, mãe índia, pai mulato, os irmãos mais velhos trabalhando na Coca-Cola, Edna estudando. Quando dissemos a ela que seu personagem seria uma prostituta, ela reagiu forte, disse nunca vou ser prostituta. No seu nível social muitas meninas se prostituíam e ela sabia do que se tratava, e por isso rechaçava com veemência tal possibilidade. Mas não demorou a admitir que poderia fazer o papel de uma delas, inclusive porque conhecera meninas, na escola e na vizinhança, que tinham se perdido na vida. Ela não tinha visto filmes, mas, rudimentarmente, acho que, como qualquer pessoa, conhecia o teatro, as encenações que via nos programas de auditório e na TV, as palhaçadas como ela dizia. E gostava de ser palhacenta. Um mês depois desses contatos voltamos a Belém para as filmagens e ela nos disse alegremente que tinha ido ao cinema, tinha visto dois filmes. E disse também que seu nome artístico não seria Edna Cereja e sim Edna de Cássia, e assim ficou. Ela foi, ela é a alma do filme, como todos sabem, mas foi também a personificação da alegria, da pureza infantil e da inteligência faiscante durante as filmagens. Inventou apelidos para todo mundo, inclusive para a câmera: como nunca tinha ganho tanto dinheiro na vida, ela se referia à câmera como a Generosa. Edna é uma pessoa maravilhosa, é professora como queria ser desde menina e já é avó. De vez em quando a gente se encontra, ela continua com o mesmo bom humor, com a mesma alegria de viver. A escolha de Paulo César Pereio foi natural, acho que a palavra é essa, natural. Com ele poderíamos ter um caminhoneiro gaúcho senhor de si, cheio de malandragem, com muito escárnio e ironia. A ironia era fundamental para a duplicidade brechtiana que estava prevista e que Pereio elevou a uma dimensão magistral. Tião Brasil Grande é realmente um adepto da ditadura ou está fingindo que é para se dar bem? Quanto de Tião Brasil Grande e quanto de Pereio, militante contra a ditadura, estão naquele personagem? E quem se esconde atrás de quem? Pereio entendeu e adotou a proposta das dualidades (ator-personagem, personagem-repórter, Tião adepto-Tião fingidor) com rapidez e aprofundou-a quando a pôs em prática na filmagem. A primeira semana em Belém foi dedicada a esses entendimentos com Edna e Pereio. E também com a Conceição que, além de interpretar uma prostituta nordestina (elas são um bom contingente na estrada), se ocupava do figurino, ou seja, de cuidar para que as roupas e os modos dos poucos atores não destoasse em nada dos verdadeiros caminhoneiros e das verdadeiras prostitutas. E preparamos mais quatro atores de Belém, de teatro, para pequenas intervenções. Seguindo a ordem da história que queríamos contar, a aventura da filmagem começou no rio, prosseguiu em Belém e se aprofundou na Trasamazônica. A equipe básica, alojada em uma kombi, era de sete pessoas: o técnico de som Achim Tappen, o produtor Gauer, o assistente Chico Mou Carneiro, Conceição, Edna, Jorge e eu. Na fase em que Pereio estava filmando a equipe road movie somava nove pessoas: os mencionados e mais ele e o camioneiro Lúcio e seu caminhão. Equipamento mínimo e leve, uma câmera Éclair, um Nagra, uma caixa de luz e mais de um mês filmando sem parar. As cenas puramente documentais, as interferências dos atores na realidade e as cenas envolvendo apenas atores, as três modalidades que trabalhávamos, se sucediam ao sabor das circunstâncias, do que íamos encontrando na estrada, ou que íamos reencontrando, porque marcamos alguns lugares na viagem de pesquisa e voltamos a eles. A última seqüência do filme, por exemplo. Aquela casa perdida no meio da estrada a gente tinha conhecido na viagem de pesquisa, foi o puteiro mais devasso, miserável e sujo que conhecemos naquela viagem. Queríamos fazer a cena final ali, com aquelas mulheres imundas, e quando reencontramos a casa ela estava vazia, abandonada. Mas a cena foi feita ali, buscamos mulheres igualmente miseráveis em outro puteiro das redondezas, expliquei o que queríamos delas, elas pediram cachaça e criaram aquela atmosfera que está no filme. Elas achavam que Iracema era uma delas, nunca souberam que se tratava de uma atriz. Esse artifício foi usado amplamente, os personagens reais não se darem conta que Tião era um ator e Iracema uma atriz: eles se relacionavam, eles conversavam, era com um camioneiro e com uma jovem prostituta, com a câmera visível ou não. Nas cenas de violência Iracema-Edna apanha de verdade, quando é agredida por um policial e depois por um outro homem. Essas situações às vezes chegavam a um ponto perigoso e tínhamos de interferir. Mas na maioria das vezes, onde a violência explícita não estava presente, tudo corria bem. Dou um exemplo: a cena em que uma mulher tenta convencer Iracema a trabalhar com costura, a deixar a vida da estrada. Localizamos essa senhora trabalhando em uma casa afastada e eu disse a Edna converse com aquela mulher e peça um emprego. Ela foi lá e Jorge e Achim a seguiram com câmera e gravador, a mulher estranhou aquilo e eu expliquei, disse que estávamos fotografando as moças da estrada, que não se importasse com a gente. E ela não se importou mesmo, deixamos de existir, ela conversou livremente com aquela jovem prostituta. Com variações e muitas surpresas, as interferências se davam dessa forma, eu soprava no ouvido da Edna e do Pereio uma possibilidade de ação ou um tema e eles iam em frente. Em pouco tempo Pereio já estava jogando sozinho e dispensava minha ajuda, eu dizia esses caras podem falar sobre os grileiros e ele enturrava, já percebi, não sou burro. A equipe funcionava como um feixe, articuladíssima. Havia dois níveis de trabalho: as atribuições de cada um e o faz-tudo de todo mundo quando era necessário, e quase sempre era necessário naquela selva. Achim gravava o som. Chico Mou se ocupava do equipamento, da kombi e das necessidades imediatas de produção. Conceição cuidava da continuidade, do figurino, da maquiagem e de Edna; sua ação foi importantíssima não apenas nessas funções mas também na relação com as prostitutas de Belém e da estrada, na confiança que conseguia adquirir das mulheres ao lhes dedicar carinho e compreensão (lembro-me de um episódio que a fez chorar durante um bom tempo: um bando de jovens prostitutas correndo atrás de nossa kombi, após um dia de filmagem nesse lugar, e gritando me leva, Conceição, me leva, Conceição). Jorge se ocupava da câmera, auxiliado por Gauer; eu articulava as cenas e estimulava os atores. Além de nossas atribuições na área da criação, Jorge e eu nos ocupávamos da produção, escolha de locações, figurantes, carros, avião. A coesão da equipe era fruto da própria natureza do trabalho e também da ameaça constante, latente, que nos cercava. Fomos presos duas vezes. A primeira por um tenente PM que nos acusou de usar drogas e que na verdade estava tentando descobrir qual nossa verdadeira intenção ou talvez confiscar as latas de filmes, já que o havíamos filmado jogando roleta em praça pública. Fomos liberados por um agente federal sob condição de nos apresentarmos em sua delegacia em Belém, no prazo de tantos dias. Não nos apresentamos. A segunda vez ficamos detidos um dia inteiro na sede de uma fazenda, enquanto o fazendeiro cercado de capangas checava nossos documentos através de um radioamador. Uma manhã fomos expulsos de um bordel, quando filmávamos o despertar das prostitutas, por um homem armado com um revólver. Tentei conversar com ele, dando cobertura para a equipe se ocultar em um quarto e ele me apontou o revólver bem de perto, cai fora, cai fora, acho que nunca vou esquecer aquela arma apontada para minha cabeça, a mão do cara tremendo. Ele queria dar uma surra em uma mulher mas sem testemunhas, e deu, bateu forte em uma linda menina muito branca, inteiramente nua, que quanto mais apanhava mais o desafiava. Jorge tentou filmar de dentro do quarto e não deu, a coisa engrossou ainda mais e caímos fora, entramos na kombi e Chico Mou acelerou. Logo nos demos conta que a Conceição não estava na kombi, tinha ficado no bordel. Voltamos para resgatá-la, ela estava escondida em um quarto, protegida pelas mulheres. Quando chegamos a Marabá entendemos que, além da violência civil e policial que grassava em toda a estrada, entramos em uma zona de guerrilha, e portanto altamente militarizada. É incrível que a gente não soubesse nada sobre a Guerrilha do Araguaia até aquele momento, quando o conflito já estava praticamente terminado. Só então entendemos as barreiras do exército que nos impediu de alcançar Marabá meses atrás, durante a viagem de pesquisa. Na verdade eu havia escutado rumores, no Rio, sobre movimentos de guerrilha no norte, mas isso saiu de meu foco de atenção, havia muitos rumores. Quando chegamos à zona de conflito, os guerrilheiros estavam mortos ou presos, mas a tensão ainda era muito forte, os habitantes de Marabá nos falava sobre os bombardeios com bolas de fogo, sobre a presença de guerrilheiros na cidade, sobre a brutalidade dos militares. Um tenente monitorou todos os nossos movimentos na cidade, depois de nos interrogar e ser informado que estávamos fazendo um filme para a Volkswagen. Essa atmosfera nos seguiu todo o tempo e nos juntou, como eu disse, em um feixe, um feixe de solidariedade. Sabíamos que estávamos fazendo um cinema ousado, que estávamos inventando um filme de alta denúncia social no meio de uma ditadura feroz (a era Médici) e que isso traria conseqüências. E nos encantava a todos o jeito como se filmava, a velocidade das filmagens, a armação das cenas, o enlace de depoimentos reais com improvisações dos atores, era divertido e estimulante. Desde os primeiros dias de filmagem sentimos estar vivendo uma experiência existencial desgarradora, cada um de nós, que nossas existências estavam sendo marcadas para sempre. Mas não fazíamos idéia que o filme mudaria as vidas de todos nós também de outra maneira, lançando-nos a patamares profissionais bem mais altos, abrindo caminhos para todos, transformando a vida de Edna. O grande sucesso do filme provocou esse outro aspecto da experiência radical de Iracema, ao mesmo tempo uma descida ao inferno e uma iluminação. Gitirana Iracema estreou na ZDF em fevereiro de 1975 e causou um grande alvoroço, a crítica alemã (e logo depois a francesa e a de toda a Europa) ovacionou o filme, saudando a utilização daquela linguagem nova, inesperada, ambígua, no tratamento de graves questões humanas, sociais e ambientais. Logo ganharia o principal prêmio da TV alemã, o Adolf Grimme, e também o prêmio Georges Sadoul da França e iniciaria uma carreira européia apoteótica, na televisão e no cinema. Diante disso, a ZDF encomendou outro filme à Stop Film, empresa de Jorge e de Gauer. E imediatamente, o mais rápido possível. Me reuni com Jorge no Rio, propus abordarmos o Nordeste e um viés mais cultural, relacionado com a literatura de cordel. Jorge propôs tomar como base a peça de teatro Cordel, que eu havia montado em São Paulo e Rio. Mas aquilo era teatro e evoluímos para a idéia de um filme de cordel, cinema de cordel. Com a ZDF nos calcanhares, escrevi um roteiro em duas semanas. Recorri à memória das centenas de cordéis que havia lido, das pesquisas para os espetáculos de teatro, do meu conhecimento da região e organizei uma saga onde o desfile de várias histórias e situações cordeleiras era possível: uma pessoa recebe do Padre Cícero a missão de encontrar o Reino de Miramar, o país da justiça e da felicidade, que está em algum lugar ou em algum tempo do Nordeste. Era outro road movie, desta vez transitando pela realidade e pelo imaginário. Em Iracema a imitação da realidade (a tal ficção entre aspas) se funde com o real. Em Gitirana a fantasia se funde com o real. É uma sucessão de transformações: um garoto fica órfão e recebe a tal missão do Padre Cícero, que o transforma em mulher achando que assim facilitaria a difícil tarefa, essa mulher vai se desbodrando em várias outras, enfrentando o Diabo, a Morte, o Dinheiro e outros obstáculos, sem conseguir encontrar Miramar, no final volta a ser homem, um operário, para ver se consegue e continua procurando. A mesma equipe, ainda mais reduzida: Achim no som, Gauer e Chico Mou na produção e na assistência, Jorge na câmera e eu articulando e estimulando os atores e as situações. A personagem de atração, cumprindo as funções que tinham sido de Edna e Pereio em Iracema, coube a Conceição, que provocava a manifestação das pessoas na pele de vários personagens famosos do cordel, a erotizada Marieta Purribão, a rebelde Filha do Coronel, a guerrilheira Maria Bonita. As filmagens aconteceram entre Juazeiro da Bahia e Juazeiro do Norte, no Ceará, incluindo dramaticamente na história aberta do filme manifestações de cultura popular (Cavalhada, Bumba-meu-boi), reuniões políticas reais, o cinismo explícito de políticos da ditadura e o imenso canteiro de obras da represa de Sobradinho, com milhares de operários. Apesar da mesma estratégia utilizada no filme anterior, Gitirana é bem diferente de Iracema, inclusive porque essa estratégia funcionava de maneira distinta na secura nordestina, produzia respostas mais cuidadosas, mais metafóricas, e a presença da ficção era maior. Utilizamos uns poucos atores amadores de Juazeiro da Bahia e um experiente ator baiano, Ari Barata, que interpreta a Morte. O trilho de fantasia sobre o qual o filme se movimenta não desfocou a realidade da qual nasce essa fantasia, não desfocou a pobreza do agreste sertanejo e as políticas predatórias. Pelo contrário, frisou essa realidade, potencializou essa realidade, tanto que o filme foi proibido no Brasil por excitar as massas contra as autoridades constituídas, ou algo no gênero, considerado como um peça de alta subversão. Apesar de alguns admiradores ilustres, como Paulo Emilio Salles Gomes e Glauber Rocha, e do entusiasmo de artistas e intelectuais nordestinos que o viram, e de ter sido apresentado em Cannes e exibido na TV, a recepção a Gitirana ficou longe do impacto causado por Iracema. Alguns europeus acharam o filme muito intelectualizado, difícil de ser entendido, e muito exótico, muito árabe. Jorge não ficou plenamente satisfeito com o filme, mas eu fiquei, até hoje quando o vejo me emociona a sua secura, a sua aspereza, o seu delírio, camponeses e operários atuando, fazendo imitações de si mesmo, brincando com a imaginação enquanto o pau come ao redor, e a esplêndida performance de Conceição. Esses dois filmes, apesar das descrições que acabo de fazer não darem essa pista, foram feitos praticamente às escondidas, em silêncio, com coberturas falsas (era um filme para a Volkswagen ou uma reportagem para a TV ou qualquer outra coisa), com as latas de negativo seguindo para a Alemanha na maior rapidez e discrição possível e toda uma artimanha para eludir a ditadura, para escapar da repressão. Filmamos sob as barbas dos militares, enganando-os, driblando, fazendo as coisas parecerem outras. Às vezes minha carteira de jornalista servia de disfarce, outras vezes um documento da ZDF, podíamos ser do INCRA ou da Globo, um constante exercício de camaleões. A ditadura só percebeu depois, com o sucesso de Iracema na Europa. Quando filmamos Gitirana os primeiros ecos desse sucesso já tinham chegado ao Brasil e tivemos de nos disfarçar ainda mais. A ferocidade de Médici era crescente, a cada dia mais assustadora. Durante a filmagem vimos no jornal a notícia do assassinato de Vladimir Herzog em um cárcere de São Paulo. Me lembro do grito angustiado de Jorge com o jornal na mão, mataram Vlado. Vlado era amigo próximo de Jorge e meu amigo desde os tempos de nossa convivência no curso de Sucksdorff, no início dos anos 1960. Ficamos arrasados e mais agudamente conscientes de que poderíamos ser interrompidos a qualquer momento. A morte de Vlado apressou as filmagens, filmávamos como uns alucinados, dia e noite, para terminar o quanto antes possível e cair fora. Glória e Censura Iracema se transformou em um escândalo político internacional e em uma referência na luta pelo fim da censura no Brasil. O êxito na Europa foi muito ruidoso, o filme ganhou muitos prêmios internacionais e foi proibido no Brasil. Não apenas proibido: também foi expatriado. O governo ditatorial declarou que o filme não era brasileiro, inclusive com argumentos técnicos estapafúrdios: não era brasileiro porque foi revelado e montado fora do País. O governo se esforçou, através do Itamaraty, para dizer ao mundo que aquele filme não tinha sido feito por brasileiros, que era uma coisa de fora, uma provocação estrangeira. A posição do governo brasileiro provocou reações em toda a parte e oxigenou ainda mais o burburinho, na Europa e no Brasil, todo mundo queria ver o filme, pivô de uma polêmica. No Brasil, Jorge e depois outras pessoas e organizações fizeram exibições clandestinas em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Porto Alegre e outras cidades. O filme era exibido em vários lugares para pequenos grupos, ver Iracema era uma emoção estética mas também um ato político, um ato contra a ditadura. Fizemos várias exibições em minha casa, no Rio. Para mim e para Jorge o risco de prisão era considerável, apesar da suposta blindagem que a fama internacional do filme nos proporcionava. No festival de Cannes de 1976 Iracema foi apresentado na Semana da Crítica e Gitirana na Quinzena dos Realizadores, um fato incomum, dois filmes dos mesmos realizadores em Cannes. Nas muitas entrevistas, Jorge e eu (e também Conceição, que era reconhecida na Croisette aos gritos de Gitirraná, Gitirraná) tivemos de explicar aos jornalistas que não éramos exilados e que por favor não dissessem isso em suas reportagens, pois nossa intenção era voltar ao Brasil. E voltamos, e saímos e voltamos outras vezes ao País sem qualquer problema. O castigo era mesmo a não exibição do filme no Brasil. Dos filmes, porque Gitirana foi aceito como filme brasileiro mas terminantemente proibido. E isso começou a doer, em mim doía. Sabíamos, desde suas concepções, que os filmes não seriam exibidos no Brasil enquanto durasse a ditadura, que o máximo possível eram mesmo as exibições clandestinas, como terminou acontecendo. Mas a explosão de Iracema confundiu minha percepção sobre isso, o desejo de que o filme fosse visto no Brasil, por muita gente, despontou forte. Era absurdo um filme tão radicalmente brasileiro poder ser visto por todo o mundo menos pelos brasileiros. Era uma coisa esquizofrênica, e olha que não sou do time dos esquizofrênicos, sou paranóico de carteirinha. Essa situação esdrúxula só terminou em 1980, com a abertura política, com a liberação de todos os filmes proibidos. Nesse mesmo ano Iracema foi apresentado no festival de Brasília e levou quase todos os prêmios, em uma homenagem-resgate de um filme realizado seis anos atrás, e foi lançado comercialmente. Gitirana foi o último filme a ser liberado, a ser anistiado, e foi distribuído para circuitos alternativos pela Dina Filmes. Granjeiro Logo após a realização de Gitirana e no meio do alvoroço causado por Iracema, me mudei para Lençóis com Conceição e dois casais amigos, a artista plástica Sonia Castro e seu marido João, a psicanalista Silvia Bloisi e seu marido Flávio. Baianas casadas com paulistas, uma gente linda, ainda imbuída da filosofia hippie, eles cansados da metrópole São Paulo e nós, Conceição e eu, nos dando um tempo para pensar um novo filme. Eu já tinha metido na cabeça que deveria fazer um filme em Lençóis, fazer um terceiro filme na linha em que vínhamos trabalhando, imitações da vida misturadas com a vida mesma, mas em uma circunstância diferente dos dois anteriores — centrar em um lugar, em um miniuniverso, uma lupa em uma aldeia, em vez de abarcar grandes espaços, Amazônia, Nordeste. Câmera em um só lugar em vez de road movies como tinham sido os outros. Propus essa idéia a Jorge, que chegou a se interessar, mas nossa estimulante colaboração chegava ao fim devido a desentendimentos envolvendo o produtor alemão, cujo pivô era o produtor alemão Gauer, sócio e colaborador de Jorge. Desfeita essa possibilidade, a idéia continuou germinando de maneira nebulosa, que filme fazer, como fazer. Foi nessa situação que me somei a outra idéia, bem doida, que era a de nos mudarmos para Lençóis com nossos amigos e viver da terra. As duas idéias casavam. No início vivemos em comunidade, na casa que tinha sido de meu avô Samuel, depois cada um arrumou seu canto. Silvia e Flávio, que antes trabalhava com roupas, resgataram uma fazendinha que ela tinha recebido como herança e começaram a trabalhar com lavoura. Sonia e João, que era o único de nós a entender de terra, seu pai era fazendeiro no interior paulista, compraram um sítio perto da cidade e plantaram hortaliças, verduras e legumes. Conceição e eu montamos uma granja de frangos, que a comunidade precisava e sugeria. Compramos livros sobre o assunto, fizemos contatos em Salvador. Meu pai se associou ao projeto entrando com o terreno e decidi construir eu mesmo o galpão da granja. Me meti a arquiteto. Mais pesquisa, mais livros do tipo Como Construir uma Granja, Arquitetura das Granjas Modernas. Desenhei uma moderníssima, paguei um engenheiro para fazer os cálculos e construímos a granja com muita economia, com um planejamento minucioso e criativo. Nosso capital não era grande coisa, mas deu para construir e para equipar e para comprar a primeira ninhada em Salvador. Aí começou o trabalho de granjeiro, a sensação de ser granjeiro: dirigindo uma camionete carregada com caixas de pintos. E aí também começou um drama sentimental: Conceição se encantou com as centenas de pintinhos dourados e macios, criaturinhas lindas de Deus, se acarinhou, bloqueando o fato de que se tratava de animais de corte, para serem abatidos. Um tempo feliz em Lençóis, há quase vinte anos não curtia a cidade, tinha feito poucas e rápidas visitas por motivos familiares. Voltei a jogar futebol quase diariamente, andar na serra, nadar. A cidade estava encolhendo, muita gente indo embora, a produção de diamantes baixíssima, e havia tentativas por parte de algumas pessoas de criar novas fontes de trabalho para os garimpeiros, novos veios econômicos: café e outras agriculturas, criação de gado. Nessa perspectiva, nossas iniciativas (a granja e as produções de nossos amigos) eram bem-vindas e contaram com a simpatia da comunidade. Nos associamos a um senhor de Feira de Santana que tinha um carro-frigorífico e que dizia entender do negócio e que passou a gerenciar a empresa. O plano era simples: como a granja operaria apenas com o carro-frigorífico, sem um frigorífico fixo, os abates seriam coordenados com os compradores, a cada encomenda se faria o abate e a entrega imediata. Tracei um raio de ação de 50 quilômetros, alcançando várias comunidades além de Lençóis, que nos indicaram os dias que as entregas deviam ser feitas, geralmente coincidentes com os dias de feira de cada uma delas. Fizemos alguns testes, o carro-frigorífico levou alguns lotes às comunidades vizinhas, os frangos chegavam congelados, nos conformes. Quando estava próxima a data em que a granja iria começar a funcionar, a fornecer frangos regularmente aos compradores, dois acontecimentos derrubaram o projeto, ambos ligados ao nosso gerente. Primeiro descobriu-se que ele estava tuberculoso, tivemos de afastá-lo dos frangos e fazer exame médico em duas mil aves. Não havia contaminação. Contratamos outra pessoa para operar o carro-frigorífico e veio o segundo golpe: o tal carro pifou. O sistema de refrigeração começou a apresentar defeitos sérios, pondo em risco a saúde dos consumidores. Os frangos tinham de chegar congelados ao destino, segundo regras específicas da Saúde Pública e o nosso carro-frigorífico não congelava. Tentamos alugar outro carro-frigorífico, não ha-via muitos à disposição e eram caros para o nosso periclitante capital inicial. E o tempo passando e os frangos crescendo além do período previsto, entupindo a granja e comendo cada vez mais. Decidimos fazer o abate geral, duzentos frangos por dia, e distribuir para a população. Aí aconteceu o drama sentimental da Conceição, que tinha acompanhado a evolução de seus lindos pintinhos dourados de penugem macia, dia a dia, até vê-los adultos e prontos para serem sacrificados. Causava sofrimento, ela não agüentava isso. Nem eu. Não era nossa praia, não sabíamos lidar com aquilo. A granja foi fechada, o grande galpão que construí ficou com meu pai e existiu por muitos anos, servindo a outros fins, até ceder lugar para um hotel. Enquanto vivia como granjeiro me aproximei ao máximo das pessoas da cidade, resgatando a intimidade dos meus tempos de criança e adolescente. A idéia de filmar ali tinha evoluído para o propósito de um filme arraigadamente comunitário, que fosse orientado pela comunidade desde seu nascedouro. Comecei conversando com os garimpeiros, primeiro um a um, depois em grupos, depois com suas famílias e por fim em reuniões na Sociedade União dos Mineiros. E também com a elite e com a classe média, pouco numerosa naquela época em Lençóis, por razões históricas e porque estava abandonando a cidade. E também, e muito, com os estudantes. Conceição fez um belo trabalho, estimulando e arregimentando os jovens para falar sobre cinema, aproximando-se de um grupo de teatro amador que estava tentando existir. Depois de muito discutir a situação social e econômica da cidade em decadência, começamos a construir o filme. Partimos de uma pergunta para a comunidade, uma reflexão: que filme devemos fazer aqui? que filme interessa a vocês? Diamante Bruto Era uma comunidade de quatro mil habitantes, praticamente todo mundo se conhecia e não foi difícil envolver as pessoas nesse exercício coletivo de pensar, o assunto era comentado nas ruas, no colégio. Uma maioria de opiniões, um quase consenso, recaía sobre uma tradução cinematográfica do romance Bugrinha, de Afrânio Peixoto, um lençoense, glória local. A história acontece em fins do século XIX, um jovem rico e branco volta a Lençóis depois de longa temporada de estudos em algum lugar, e reencontra uma menina com quem convivera na infância, pobre e mestiça, agora uma mulher, desenrolando-se uma trágica história de amor. As pessoas, além da natural atração pelo chamado romance de Lençóis, viam na história a possibilidade de uma síntese das relações sociais que se desenvolveram no local durante um século e meio, a proximidade da classe alta com a classe trabalhadora (os escravos e os garimpeiros livres) sem uma classe média numerosa no meio, funcionando como amortecedor. Essa história, concordaram todos, seria contada nos dias atuais, transplantada para aquela Lençóis decadente e, como diziam meus conterrâneos, sem futuro, vivendo do passado. Essa compreensão dos habitantes de que iríamos contar essencialmente essa história mas não íamos reproduzir fielmente o romance, de que iríamos contá-la à nossa maneira e espelhando a atualidade, ficou clara quando os estudantes sugeriram uma moça negra para fazer o papel de Bugrinha. Não uma morena, como está no romance. O argumento era que a população da cidade tinha (acho que ainda tem) 80% de afro-descendentes. Lembro-me de um professor dizendo que Afrânio Peixoto tinha adoçado a pílula ao definir a personagem como morena, que o conflito que o escritor propunha era mais verossímil entre um branco e uma negra, tanto no passado como no presente. Os estudantes discutiram muito quem deveria ser a Bugrinha e votaram, elegeram uma menina negra linda e viçosa, agitada, que despertava atenção pela sua personalidade, seu jeito ousado de ser. Chamava-se Gilda e, embora eu deixasse correr solta a iniciativa dos estudantes, também era a minha escolhida. Não sei o que teria acontecido se a eleição não coincidisse com minha opção, mas isso teria sido impossível porque Gilda se impunha com muita força na comunidade, seu carisma mantinha seus colegas estudantes como hipnotizados. Quando a coisa engrenou na comunidade, escrevi um roteiro com o título Diamante Bruto e consegui o apoio da Embrafilme, da Pilar Filmes (de meus compadres Maria Augusta e Olney São Paulo) e dos queridos amigos paulistas Raquel e Inácio Gerber. José Wilker topou fazer o homem poderoso que regressa à terra natal, na nossa versão transformado em uma estrela da televisão chamado José. As aproximações ator-personagem foram tão ajustadas como nos filmes anteriores: Wilker como uma estrela de TV, Gilda como uma nativa envolvida com os ritos do jarê (exatamente como ela) e, completando o triângulo, Conceição como uma forasteira ganhando a vida na terra dos diamantes (exatamente como estava acontecendo). Além de Wilker e Conceição apenas mais um ator profissional, o Wilson Melo, e todos os outros personagens, extras, figurantes, depoentes era gente da comunidade. Uma equipe mínima, é claro: o fotógrafo João Carlos Horta, o assistente de câmera Jaime Schwartz, o técnico de som Antonio César, a continuísta Sueli Seixas e o produtor de campo João Neiva. Conceição se ocupou da assistência de direção e figurinos e, como desta vez estávamos estacionados em um só lugar, pudemos montar a sede da produção lá mesmo, comandada pela Maria Augusta São Paulo. A equipe cresceu em Lençóis, quando os técnicos incorporaram a ela jovens nativos como assistentes e ajudantes. As filmagens duraram um mês e meio. Toda a comunidade de alguma maneira envolvida, ou diretamente na produção ou atuando ou dando informações preciosas ou ajudando em qualquer coisa — ou simplesmente dando apoio moral, seguindo de perto o que estava acontecendo, criando uma atmosfera positiva, uma energia estimulante. A esse processo de criação, inédito para mim, somava-se o fato de estar filmando na minha terra, com minha gente, com meus familiares, com meus garimpeiros. Uma emoção muito particular, muito quente, uma volta ao útero mas com uma câmera na mão. A relação da população com o filme, uma novidade absoluta para ela, produziu todo tipo de reações na comunidade: ciúmes, maledicências, desavenças familiares e também muita solidariedade e impulsos para criar coisas, para inventar. O filme mexeu muito com aquelas quatro mil pessoas, a cidade saiu da letargia, se agitou. Filmávamos a história do milionário e famoso José com a pobre e anônima Bugrinha, as interferências dos personagens ficcionais na realidade e as cenas reais no mesmo estilo, com o mesmo tratamento e no mesmo pique, às vezes fazíamos cenas de amor com os dois pela manhã e entrevistas ou conversas com garimpeiros à tarde. Completando uma coisa que eu disse lá atrás e que tem a ver com a trilogia da qual estou falando: em Iracema a imitação da realidade se funde com o real, em Gitirana a fantasia se funde com o real, em Diamante Bruto o melodrama se funde com o real. Diferentemente dos filmes anteriores, quando as pessoas, os transeuntes, que nos viam trabalhando sabiam que se tratava de uma filmagem (em geral para a TV) e que estávamos registrando os acontecimentos, ou seja, fazendo um documentário, nas filmagens em Lençóis aconteceram momentos de mescla absoluta, de confusão, entre realidade e ficção. Às vezes uma cena era interrompida ou mudava de rumo porque alguém entrava nela, entrava na conversa para perguntar ou informar tendo como referência a vida da cidade. Me lembro de uma cena no mercado em que um personagem encarnado por um nativo convida Wilker para almoçar lá em casa e aparece um feirante rindo, dizendo que o Grimaldo (o ator) não podia convidar ninguém para almoçar em sua casa pois ele não tinha casa, estava morando em uma pensão. Em outra cena, nesse mesmo mercado, Gilda está atuando, procurando aflita outra personagem, gritando Rita, Rita, e seu tio pensa que se trata da irmã de carne e osso da Gilda, coincidentemente de nome Rita, e se assusta, quer saber o que está acontecendo. Coisas assim, toda a comunidade em um estado fronteiriço entre a vida e a imaginação. O melodrama se funde com a realidade dos garimpos de diamantes da Bahia em um momento de crise, cujos elementos são uma economia em franca decadência, pobreza, êxodo e cultura mágica. Os garimpeiros expõem sua visão de mundo, a dureza de seu trabalho e os encantamentos que os cercam por fora e por dentro. A magia do diamante, os mistérios da pedra feiticeira, os êxtases provocados por ela, a sacralidade da montanha e toda uma gama de relações extraordinárias centralizadas e animadas pelo jarê. O filme trata da decadência da cidade, do fim de um tipo de vida, do fim de um sonho. Terminamos as filmagens, fui para o Rio montar o filme com Roberto Pires, fizemos a finalização em Nova York e voltei com uma cópia para Lençóis, para exibir o filme para a comunidade. Minha pressa era movida pelo receio de que também Diamante Bruto fosse proibido, como já estavam Iracema e Gitirana, era meu quarto longa-metragem e eu continuava inédito no Brasil. A população compareceu em peso à exibição no mercado municipal, havia uma curiosidade enorme. Começou a projeção e uns vinte minutos depois parou, o projetor pifou, caso sem jeito, tinha de mandar vir outro de Salvador. Para grande decepção de todo mundo. Uma nova projeção foi marcada para a noite seguinte. Acontece que a projeção do filme havia para-do exatamente depois de um fazendeiro, um boiadeiro, esculhambar os garimpeiros, dizer que garimpeiro é preguiçoso. Uma hora depois, estou em casa lamentando a estréia fracassada e aparece um grupo de garimpeiros, muito chateados com o que o fazendeiro dissera no filme, esses forasteiros vêm pra nossa terra, não conhecem nosso trabalho e ainda ofendem a gente. Estavam decididos a dar umas pancadas no fazendeiro, um corretivo, e tinham vindo me informar sobre essa decisão. Eu disse que não precisavam fazer isso, que eles respondiam essa ofensa no próprio filme, e muito bem respondida, que esperassem a exibição completa no dia seguinte. E foi o que aconteceu, eles ficaram satisfeitos com a resposta que dão na tela. Essa estréia, a que valeu, foi uma bomba cultural. Havia ainda mais gente do que no dia anterior, as primeiras cenas exibidas antes do projetor pifar funcionaram como um trailer poderoso. A comunidade ficou profundamente impactada ao ver-se na tela, impactada com a exposição de seus problemas, de sua religião, de sua intimidade comunitária. Estava começando aí uma segunda fase da história desse filme, algo que ninguém esperava, que não tinha sido previsto nem sonhado: Diamante Bruto motivou aquela gente, estimulou a população, ocasionou reuniões e decisões, as pessoas começaram a trabalhar em soluções para a lastimável situação da cidade. Passou a ser uma referência para a auto-estima e também, para usar uma palavra muito lençoense, um relicário de imagens, já que praticamente toda a população aparecia no filme. Nesses trinta anos o filme foi visto e revisto centenas de vezes em Lençóis e a cada ano se torna mais precioso na medida em que aumenta o número de mortos na tela, de pessoas que já morreram e permanecem vivas no cinema. Muita gente vai assistir ao filme quantas vezes ele seja exibido na cidade para ver seus entes queridos que já se foram e que ganharam a imortalidade de luz do cinema. A relação dessa comunidade com esse filme vai além dos aspectos psicoculturais, já que ela acredita que Diamante Bruto foi a ignição para uma nova economia, a do turismo, que começou a se desenvolver no início dos anos 1980 e deu nova vida a Lençóis. O documentário Brilhante, realizado pela Conceição e lançado em 2006, conta essa história e os seus surpreendentes desdobramentos, para o bem e para o mal. Um filme pode mudar uma pessoa? Pode. Um filme pode mudar uma comunidade? Não é normal que isso aconteça, mas pode, a depender das circunstâncias. E devendo levar em conta que qualquer mudança provoca conseqüências inesperadas e às vezes indesejadas, além das conseqüências esperadas. Essa conexão do cinema com Lençóis se desenvolveu através de outras pessoas, de jovens cineastas que acamparam por lá nos anos 1980, organizaram um cineclube, incensaram a mitologia local de Diamante Bruto, fizeram filmes — Moisés Au-gusto, Jorge Felippi, José Araripe, Póla Ribeiro que fez A Lenda do Pai Inácio, e outros. Jovens nativos se envolveram com o cinema e hoje são profissionais, como a produtora Solange Lima. Brilhante trata exatamente das várias facetas dessa relação, tanto que foi anunciado pela distribuidora como um caso de amor entre uma cidade e um filme. Angola Em 1977 e 1978 minha relação com Angola passou da esfera jornalística para a do cinema. Logo após assumir o governo, o presidentepoeta Agostinho Neto iniciou um movimento audiovisual muito dinâmico, com muita gente envolvida, muita gente filmando, uma televisão com muitas unidades de gravação, muitos correspondentes de guerra. O escritor Luandino Vieira estava à frente do recém-criado Instituto Angolano de Cinema e da Televisão Angolana e me convidou para escrever um roteiro, uma versão cinematográfica do romance Mayombe, que o comandante guerrilheiro Pepetela tinha escrito durante a ação, enquanto guerreava. Era um projeto angolano-moçambicano: um romance angolano e o diretor seria o moçambicano Ruy Guerra. Fiquei uns meses em Luanda trabalhando com Pepetela, que me levou a conhecer de perto, com lente de aumento, essa cidade fundada pelos portugueses em 1576 como base de exportação de escravos para as Américas. Nessa época havia uma grande escassez de alimentos e a economia era delirante, nas feiras um quilo de carne tinha o mesmo valor de um jeans ou de uma TV preto-e-branco. Era a kandonga, o grande mercado informal, feiras ao ar livre onde se misturavam as dez línguas africanas do país e o português bem-humorado dos angolanos (onde existem verbos como desconseguir, deschegar, descomer, ou desir no sentido de não ir). Havia um fenômeno que o governo não conseguia entender, ou seja, desentendia: as notas de dinheiro desapareciam, o governo imprimia mais dinheiro e não adiantava, desaparecia. Até que descobriram o mistério: as quitandeiras, as mulheres que dominavam a kandonga, guardavam as notas (geralmente em potes ou grandes garrafas de vidro), não as devolviam à circulação nem depositavam em banco. Cada feirante era seu próprio banco, a acumulação de dinheiro era uma obsessão. Procedimentos como esse compunham o quadro de uma situação culturalmente dramática: devido ao acirramento da guerra interna pósindependência, milhares de pessoas do interior fugiram ou foram transferidas para Luanda, a grande maioria vindo diretamente das tribos, de aldeias primitivas e perdidas no tempo, para edifícios de apartamentos na beira do mar. Os grandes e belos edifícios abandonados pelos colonos ricos portugueses e agora propriedade do governo revolucionário socialista. O choque cultural era tremendo. Basta contar um episódio que presenciei. Um desses edifícios foi inteiramente ocupado por famílias de uma tribo e tempos depois teve de ser desocupado para consertos de grande porte, inclusive estruturais. O que tinha acontecido: os moradores tinham arrancado todos os tacos de madeira dos assoalhos para fazer fogueiras e quando os tacos acabaram usaram os móveis, e usaram o poço do elevador como lixeira, jogando ali todos os dejetos domésticos e humanos. Quando o governo se deu conta, o elevador estava amassado no andar térreo, soterrado por toneladas de lixo úmido, com água correndo por todo lado, infiltrando-se pelas paredes. E não havia prédios de apartamentos para todos os refugiados, o que resultou nos musseques, as grandes favelas de Luanda. Pepetela e Luandino Vieira, amigos queridos, me iniciaram na complexidade da diversidade étnica e cultural do país, da convivência sob as mesmas leis de etnias com costumes e hábitos diferentes: kimbundu, ovimbundu, bakongo, umbundu, bosquímanos, mumuílas, kuanhamas, nianekas e outras. De diversas religiões, todas elas animistas, na verdade uma composição entre animismo e teísmo (a idéia de um Deus maior pode ser percebida na entidade Kalunga, que tem outros nomes). A veneração a ancestrais, a seres humanos que aperfeiçoaram a natureza, como Féti, o primeiro de todos, o Adão do mundo congo, e como a rainha kimbundu Nzinga, que guerreou contra os invasores portugueses em 1600. Com seus feiticeiros respeitadíssimos, os Kimbandas. Essa iniciação era necessária para que eu pudesse ajudá-los no treinamento de jovens cineastas, porque o trabalho no roteiro de Mayombe se estendeu para uma atividade de formação e produção, onde já estavam trabalhando outros estrangeiros, outros cooperantes (aí começou minha amizade com a grande montadora francesa Jacqueline Meppiel, anos depois fomos juntos para a Escola de Cuba). O filme não vingou, por desentendimentos entre Angola e Moçambique, mas o contato e o intercâmbio de idéias com o nascente cinema angolano me renovou, foi uma salutar oxigenação na minha relação com o cinema. Vale acrescentar que eram os primeiros anos da nova Angola, com o poder nas mãos de poetas e militares, como uma propagação da figura do líder Agostinho Neto, um poeta-soldado ou vice-versa. Os artistas tinham o mesmo peso dos militares nas decisões de Estado. Esse equilíbrio de forças entre intelectuais e generais, entre imaginação e ação, não durou muito, foi se desfazendo até deixar de existir com a morte de Neto em 1979, já que a guerra falava cada vez mais alto: os artistas foram afastados, os militares assumiram o comando. Mas enquanto durou foi uma experiência política extraordinária, um platonismo africano, aquela coisa do filósofo-rei que Platão propõe no seu livro A República. Os angolanos faziam filmes poéticos, filmes sobre seus mitos, mas basicamente se tratava de um cinema de guerra, principalmente no que se refere à televisão. Luandino Vieira estava instalando a Televisão Popular de Angola, TPA, e me convidou a participar desse trabalho, ajudando-o a desenhar a emissora e treinando jovens roteiristas e cameramen — que naquela nova cultura em formação podiam ser chamados de cinegrafistas, cameristas ou camarógrafos. Um trabalho difícil fazer uma televisão naquelas circunstâncias, um país em conflito agudo, mas foi feito. Hoje se chama Televisão Pública de Angola. Alguns daqueles jovens com quem convivi, com quem estive conversando longamente sobre documentários e movimentos de câmera, morreram em ação, filmando combates. Vou contar um episódio exemplar dessa minha aventura. Um dia estava na sede da televisão, em uma reunião, quando eclodiu um movimento, uma tentativa de golpe de estado, que passou à história como Fraccionismo. Os golpistas puseram tanques na rua, houve uma forte convulsão popular, o número de mortos do dia da tentativa de golpe e da repressão que se seguiu foi de 30 mil (segundo o governo) a 80 mil (segundo organizações não governamentais). Estávamos na sede da televisão e imediatamente foram enviadas várias equipes de gravação para cobrir os acontecimentos, eram equipes de duas pessoas, câmera e som, e mais o motorista. A última equipe a sair (composta por Fininho, um negro muito alto e magro, e por um marroquino atarracado, ambos muito bem-humorados, engraçados) deu de cara com um tanque que vinha em direção ao prédio da TV. Eu vi toda a cena da janela do primeiro andar do prédio — o tanque avançou até bem perto com o canhão apontado para nós. Fininho e seu companheiro, já fora do prédio, ficaram a poucos metros do tanque. Fininho levanta a câmera e começa a filmar. O tanque, ostensivamente, movimenta o canhão em direção aos dois cinegrafistas, aponta para eles, mas Fininho continua filmando e o marroquino levanta o microfone. Aquela expectativa angustiante e, de repente, abre-se a portinhola do tanque e aparece um militar. Ele chama os dois para dentro do tanque, diz que eles vão filmar de lá de dentro. Os dois sobem no tanque e passam a filmar a partir desse novo ponto de vista. Soubemos (e vimos) depois que o tanque percorre várias ruas sem entrar em combate, apenas dispara duas ou três vezes, e os garotos filmando, inclusive entrevistando os golpistas. Ficaram uma hora no tanque filmando a cidade convulsionada, gravando as informações e as ordens que chegavam pelo rádio. Quando o rádio diz que tanques e tropas leais ao governo avançam para o lugar onde estão, os dois garotos da TV são expulsos do tanque fraccionista, correm e se protegem atrás dos tanques do governo e passam a filmar daí, da rua. Ou seja, filmam dos dois pontos de vista, dos dois lados do combate e nos trazem esse material precioso, exultantes, rindo às gargalhadas. É só um exemplo, outras situações surreais aconteceram naquela dura realidade, naquele cinema perigoso. Roteiros Onde começou o roteirista? Não sei, meu primeiro interesse de expressão artística foi escrever, desde menino, depois foi o teatro, só depois veio o cinema. Escrevi os roteiros de Iracema, Gitirana e Diamante Bruto, mas eram roteiros não convencionais, abertos, experimentais. Aí pelos meados dos anos 1970 Hector Babenco e Geraldo Sarno tratam de me convencer que devo me dedicar ao roteiro, já que eu era um cara que filmava e escrevia, referindo-se ao meu trabalho jornalístico. Com Hector escrevi O Rei da Noite, seu primeiro filme, de 1976. Uma experiência intensa, na medida da intensidade de Hector. Ele tinha uma história na cabeça, com uma saída e uma chegada muito boas e o miolo por ser construído. E foi isso que fizemos em muitas horas de trabalho em minha casa, no Rio: fomos arquitetando a história de Tertuliano, apelidado Tezinho, da infância até a velhice. Um homem comum, anônimo, de boa família, classe média, funcionário público, católico, mas que é capaz de manipular pessoas e matar. Boa parte da história é a vida noturna de Tezinho, de prostitutas e cafetões, e eu me inspirava nas noites de Salvador e Hector nas noites de Buenos Aires. Localizamos a história em uma época indefinida da primeira metade do século XX, em uma São Paulo influenciada por Buenos Aires, com tangos tocando nos bordéis. E mergulhamos no melodrama, sem medo. Inventamos dois finais: um happy-end surrealista, impensável, e um unhappy-end, uma ilusão passageira, uma miragem de reencontro com o amor perdido para agudizar a solidão trágica do personagem. Creio que os dois finais foram usados, um atrás do outro, em algumas sessões monitoradas pelo Hector, mas a versão comercial traz apenas o final happy-end, com direito a coração cor-de-rosa emoldurando o casal. Quem viu o filme sabe que estou falando em happy-end com ironia e até cinismo, aquilo não é final feliz coisa nenhuma. Hector fez um primeiro filme marcante, encharcado de emoções primitivas, as tais emoções baratas, esses destemperos tão humanos, tão profundos, com composições excelentes de Paulo José, Marília Pera e Vic Militello. Foi o primeiro passo de Hector em sua pungente filmografia sobre os desajustados, os deserdados da sorte, os marginais. Em seguida escrevi Coronel Delmiro Gouveia com Geraldo Sarno, outro universo, outra vez o Nordeste, e outra metodologia. Depois de nosso trabalho conjunto no CPC da Bahia, mais de uma década atrás, Geraldo tinha realizado um trabalho excepcional como documentarista, articulando com Thomas Farkas a histórica caravana de jovens cineastas que filmaram o sertão nos anos 1960 e realizando clássicos como Viramundo e Casa de Farinha. Tinha feito um filme de ficção para crianças, indicado também para adultos, O Picapau Amarelo, com os personagens rurais de Monteiro Lobato contracenando com os urbanos e tecnológicos Batman e Capitão América, e com cowboys e o Capitão Gancho, uma salada bem-humorada com ingredientes do imaginário literário-cinematográfico infantil da nossa geração. O que tínhamos, ao nos dispor a organizar um filme sobre o empresário Delmiro Gouveia: um ou dois livros sobre sua vida, o período histórico brasileiro e mundial onde sua história se inseria e depoimentos gravados por Geraldo nos anos 1960 com pessoas que haviam convivido com Delmiro. Precisávamos nos embeber mais do personagem e fomos pesquisar no sertão onde Delmiro havia atuado, o agreste de Sergipe e Alagoas, a cachoeira de Paulo Afonso. A forma de contar a história nasceu nessa viagem. A diversidade de opiniões sobre o personagem, tanto entre os que o haviam conhecido como entre os que guardavam uma memória coletiva e regional dos fatos, nos levou a contar a saga do empresário brasileiro assassinado pelos ingleses a partir de distintos pontos de vista. O primeiro capítulo é narrado por sua mulher, o segundo por um coronel sertanejo, o terceiro por seu sócio e o quarto por um de seus operários. A intenção era que as diversas visões expressassem a complexidade de Delmiro, um negociante sagaz, ousado, inovador, mulherengo, radicalmente nacionalista, autoritário e capaz de desenvolver um sentimento socialista, de que sua fábrica era mais dos operários do que dele. Trabalhamos com o binômio economiavalores pessoais, jogando com a dramaticidade das finanças internacionais e com as expectativas que elas geram nas pessoas, com a interferência direta dos grandes negócios no comportamento individual. Um elenco de peso: Rubens de Falco, Jofre Soares, Isabel Ribeiro, José Dumont, Nildo Parente, Sura Berdichevski. O filme, lançado em 1977, repercutiu favoravelmente, ocasionou reflexões e debates importantes, foi aplaudido e discutido em dezenas de festivais pelo mundo. Durante anos Geraldo e eu fomos convidados a seminários de empresas e federações de indústrias para debater o filme com seus executivos. Trabalhar com Geraldo é um exercício de escavação mental. Todos os caminhos são pensados e analisados, todas as possibilidades dramáticas de uma situação são exploradas convergindo sempre para a síntese, para esse princípio básico do cinema, a arte sintética por excelência. Em geral os cineastas e roteiristas com quem trabalhei formulam seu relato a partir de seqüências, de várias cenas encadeadas. Geraldo sempre está buscando uma cena, um take, que diga o máximo, que substitua toda uma seqüência. Essas colaborações com Hector Babenco e Geraldo Sarno, em projetos tão absolutamente diferentes e com metodologias também diferentes, aumentaram consideravelmente minha sedução pela dramaturgia, pelo prazer de construir histórias, pelo xadrez que a pessoa joga consigo mesma quando está inventando uma história, organizando a desorganização da vida. Foi nesse impulso que me interessei também pelos roteiros para documentários, pelo roteiro feito antes das filmagens, possível para documentários mais clássicos (e aberto às manifestações do acaso e da inspiração do diretor), e pelo roteiro armado depois das filmagens, sobre o material filmado. Logo depois de Coronel Delmiro Gouveia trabalhei com Mestre Didi e Juana Elbein dos Santos na concepção do documentário-ensaio Iyá mi Agbá, direção de Juana, lançado em 1979, um tema da cultura iorubá sobre o qual já falei. Esse aspecto da minha atividade de roteirista teve e tem mais a ver com uma reflexão dramatúrgica sobre um tema ou um material bruto da realidade do que com a roteirização propriamente dita, com a préordenação de documentários. Nos últimos vinte anos me dediquei bastante a essa vertente do trabalho de roteirista, a enfrentar o desafio de organizar a realidade sem traí-la, de expor uma verdade pessoal (porque é isso que faz o documentarista) sem maquiar a verdade que a câmera registra. É o que Santiago Alvarez batizou como Informaturgia, a dramaturgia da informação. Nos anos 1990 trabalhei com Octávio Bezerra em documentários para a BBC de Londres, um deles teve bastante repercussão, Debt Life, ou A Dívida da Vida, sobre a incidência perversa da dívida externa, dos pagamentos dos juros da dívida externa nas décadas de 1970 e 1980, sobre a qualidade de vida das crianças e dos índios brasileiros, os grupos mais desprotegidos em nossa sociedade. Foi a partir desse documentário que a Europa tomou conhecimento dos suicídios rituais dos guaranis-caiovás, que estavam se enforcando em árvores sagradas ou ingerindo agrotóxicos em protesto contra o avanço da agroindústria sobre suas reservas. Dou um exemplo do trabalho do roteirista em Debt Life: Octávio filmou longamente uma imensa esteira de toros de madeira descendo em um rio da Amazônia e queria mostrar apenas um momento audiovisualmente razoável dessa cena, alguns segundos; eu o convenci, e também ao pessoal da BBC, que a cena deveria ficar inteira, longa e lenta e angustiante e com a música acentuando esse sentimento. O drama ambiental é mais nítido, incomoda mais ao espectador, em uma cena com essa densidade gráfica e musical, com esse tom grave, do que com uma série de imagens espetaculares de árvores caindo ou floresta queimando. Ainda no início dos anos 1990 produzi e fiz o roteiro de Sabor a Mi, direção de Wolney Oliveira. Uma produção envolvendo vários países e a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, conhecida como Escola de Cinema de Cuba, sobre a qual vou falar depois. É sobre o bolero, o único gênero musical comum a todos os países da América Latina, embora tenha nascido em Cuba e se desenvolvido no México. Há um momento no documentário em que pessoas da Argentina, Cuba, Colômbia, Paraguai e México juram que o bolero Vereda Tropical é de seu país. A decisão dramatúrgica mais importante nesse trabalho foi a de nos deixar levar pelo espírito romântico,àsvezestrágico, às vezes brega,do bolero. Não fazer apenas um filme sobre o bolero mas um filme-bolero, o que exigia a inclusão de algumas cenas ficcionais. Algumas letras de boleros deveriam ser visualizadas, traduzidas audiovisualmente, para que o estilo bolero impregnasse a linguagem, a gramática do filme. Isso foi muito divertido. Além desses trabalhos explícitos, fiz e ainda faço muita assessoria para documentários, principalmente em países da América Latina, trabalhei também para a produtora francesa de documentários Filmes du Village, e também para a Televisão dos Trabalhadores, a TVT, produtora da Central Única de Trabalhadores-CUT. E assessoria informal para meus velhos amigos documentaristas brasileiros, principalmente Geraldo Sarno, Octávio Bezerra e Silvio Tendler. O centro dessa minha colaboração formal ou informal é sempre a estrutura do filme, o esqueleto, como o pensamento deve ser organizado visando à maior clareza e dramaticidade possíveis, de que maneira a história deve ser contada, qual a melhor abordagem para os propósitos do cineasta. Mas voltemos à ficção. Ainda no apagar das luzes dos anos 1970 escrevi o roteiro de Abrigo Nuclear, filme de Roberto Pires, lançado em 1981, a Conceição e a Norma Bengell no elenco. Em um futuro indeterminado, o que resta da humanidade vive em uma cidade subterrânea porque a superfície do planeta está contaminada por radioatividade, provocada pelos resíduos das usinas e demais instalações nucleares. Contaminação provocada não por uma guerra atômica nem nada parecido, mas pela utilização pacífica da energia nuclear. Ninguém sabe disso na cidade subterrânea, onde se acredita que a superfície é o inferno, território de demônios vetado aos seres humanos desde sempre, um mito mantido pela elite ditatorial. Mas a memória genética e acesso a informações privilegiadas levam um grupo a iniciar um movimento revolucionário para a volta do ser humano à superfície do planeta, mesmo que o processo dure milhares de anos. Durante muito tempo fui leitor voraz de ficção científica e espectador fiel de filmes do gênero, tinha escrito contos fantásticos e de ficção científica em São Paulo (alguns deles reunidos no livro Máquinas Eróticas) e curti muito inventar essa história a partir do nada, as tais histórias originais para o cinema, como tinha sido O Rei da Noite. A produção do filme do Roberto foi muito atribulada, as filmagens duraram quase três anos, com intervalos de meses entre uma e outra, e essas condições o levaram a fazer adaptações no roteiro. Resultou em um filme muito interessante, principalmente no que se refere à engenhosidade da cenografia, mas aquém do que prometia, ou do que desejávamos. A criação de histórias originais me dá um prazer extra nesse labor de roteirista, a invenção desde a semente até a forma final. Metade dos roteiros que escrevi foi a partir de alguma informação pré-existente, seja um romance, uma peça de teatro, folhetos de cordel, uma história real, uma investigação e esse tipo de trabalho tem o seu prazer criador, os neurônios se agitam muito. O prazer extra das histórias originais é assumir por inteiro o papel de Deus, criar um mundo do nada, materializar criaturas que nunca existiram antes. Como O Rei da Noite, Abrigo Nuclear e também Caveira my Friend nos anos 1960, O Lado Certo da Vida Errada e Iremos a Beirute nos anos 1990. Em Iremos a Beirute, do Marcus Moura, provei um pouco de um dos meus persistentes desejos, que é fazer filmes sobre futebol. No interior do Ceará, anos 1970, todo um time adolescente de futebol-de-salão está apaixonado pela filha do dono do time (menos o irmão dela, também jogador), que promete fazer uma escolha depois de um jogo importante. No meio do tal jogo, com o time perdendo, o pai e dono do time, que havia apostado o que não tinha, morre do coração e a partida é interrompida. Trinta anos depois, a filha do dono do time remonta o jogo interrompido, com todos os jogadores e a partir do momento em que foi interrompido e, mais uma vez, promete se decidir depois do jogo. A difícil decisão tem seu motivo no incesto, na sua preferência irreprimível pelo irmão. Em meados dos anos 1980, quando eu já estava dividindo meu tempo entre Brasil e Cuba, o Ruy Guerra me convoca para fazer o roteiro de Ópera do Malandro, com ele e Chico Buarque, autor do musical que fazia grande sucesso no teatro. Uma equipe estimulante para a criação de um filme musical: um cineasta buscando a renovação da linguagem, um músico e um dramaturgo. O xis do problema é que não tínhamos referência de um filme musical brasileiro. O conceito era o dos musicais de teatro e do filmusical europeu e americano: as canções e as danças como parte integrante da trama, do enredo, e, portanto, empurrando a história para a frente, dando continuidade ao encadeamento de causa-efeito das histórias. Nossas referências eram os musicais americanos e a intenção era um musical brasileiro. Tínhamos a grande escola da chanchada, que não eram filmes musicais no sentido da integração dramática das canções, da continuidade da trama, mas sim histórias ilustradas ou interrompidas por números musicais. Tínhamos de inventar alguma coisa que fosse diferente dessas referências. Como estávamos partindo de uma peça teatral, de uma história já contada, nossa missão era traduzir essa história para o cinema, transcodificar a história. Por isso tivemos de reorganizá-la e encontrar o tempo cinematográfico das falas, dos diálogos, mas o trabalho foi principalmente de caráter formal, plástico. Ruy queria ter o filme desenhado minuciosamente, momentos como o plano-seqüência inicial (começa na tela de um cinema ao ar livre e termina em detalhes de um casal na cama, em um quarto), os enquadramentos zenitais da cena entre as duas mulheres (Cláudia Ohana e Elba Ramalho), a cena dos espelhos com o delegado (Nei Latorraca) e o malandro (Edson Celulari) foram trabalhadas no roteiro. Foi a feitura de roteiro mais longa em que estive envolvido, mais de um ano. Em muitos momentos eu ficava como fiel da balança entre estes criadores geniais que são o Chico Buarque e o Ruy Guerra, parceiros em tantas canções maravilhosas e grandes amigos, que muitas vezes discordavam sobre uma música ou uma cena, discutiam, polemizavam, o Chico desaparecia por uma semana. A depender dos humores nos reuníamos na casa do Ruy ou na casa do Chico, no Rio. As discordâncias entre o autor da história e o diretor do filme necessitavam do tal fiel da balança, de aprofundar a reflexão dramatúrgica, de imaginar terceiras soluções e, por extensão, acalmar os ânimos. Na hora de decidir os créditos do filme o Chico disse como deveria ser: o nome do Orlando fica no meio. Ópera do Malandro foi exitoso e continua sendo, é um filme muito considerado também fora do Brasil, uma referência do cinema brasileiro até hoje e me sinto muito recompensado em ter participado de sua criação. Ciência, Ipanema, Ilé Aiyé Dirigi alguns documentários curtos no início da década de 1980. Cultivar é sobre técnicas agrícolas inventadas no Brasil, incluindo um capítulo com a engenheira agrônoma Joana Dobereiner, que adaptou geneticamente o rhizobium, bactéria fixadora de nitrogênio que vive na terra, às condições de solos e leguminosas brasileiros. Essa bactéria fixa o nitrogênio do ar e passa para a planta, tornando desnecessário o adubo nitrogenado, um gravíssimo poluente que contamina o lençol freático. Um dos resultados da operação científica de Joana foi possibilitar a cultura da soja nos cerrados e na faixa tropical, sem qualquer dano ambiental, e transformar o Brasil no segundo maior produtor mundial e grande exportador de soja, um item importante na nossa economia. A comunidade científica brasileira indicou Joana ao prêmio Nobel, ela não ganhou, mas a sua contribuição à agricultura tropical, à diminuição da fome no planeta, é inestimável. Joana me concedeu o privilégio de sua amizade e sua sabedoria, me dando muito ânimo naqueles primeiros anos 1980, emocionalmente difíceis, quando se estava gestando uma mudança em minha vida, mais uma. Me refiro a isso porque me lembrei de Mário Schenberg, lá atrás em São Paulo. Os ensinamentos de meus amigos cientistas (Joana, Schenberg, Eduardo Leser, Mécia Oliveira e outros, umas duas dezenas deles), a troca de idéias, a reflexão conjunta com essas mentes tão diferentes da minha foram sempre um saudável e substancioso alimento para meu espírito. Fiz um documentário para a TVE, Água Ipanema, sobre o bairro onde moro desde o réveillon de 1971. É um retrato da Ipanema do início dos anos 1980, com sua face cosmopolita e chique, de criadora e exportadora de modas, e sua face provinciana, com os velhos jogando baralho na praça, botecos vendendo fiado, sapateiros, ferreiros, consertadores de brinquedos e outras profissões antigas com suas clientelas. A montagem é bastante clipada, o andamento é acelerado mas com suspiros, com momentos de desaceleração que permitem sentir os dois ritmos de Ipanema, o frenético e o tranqüilo. Esse pequeno documentário me surpreendeu muito tempo depois, nos anos 1990, quando alguns cineastas importantes me disseram que Água Ipanema os tinha impressionado e influenciado quando eram jovens, quando sonhavam em fazer cinema, e acho que foi exatamente pela adequação do ritmo ao tema. Fiz também um documentário na Bahia, Ilé Aiyé Angola, mostrando a preparação para o desfile no carnaval de 1984 do grupo afro Ilé Aiyé: o concurso de músicas, as fantasias, os ensaios, a apresentação nas ruas e a religiosidade nagô que perpassa toda essa atividade. Esse filme me levou a vários encontros e seminários antropológicos, principalmente com americanos e caribenhos, por uma curiosidade despertada desde o título, duas palavras iorubás junto com uma palavra congo, um grupo iorubá festejando outra cultura. O que me dava oportunidades de tentar explicar a fusão cultural de Salvador da Bahia em suas várias escalas, envolvendo as diferentes etnias africanas e destas com os índios e os europeus e os muçulmanos. Como se a Bahia pudesse ser explicada! Noite Profunda No início da década de 1980 começou a redemocratização do Brasil, anistia, abertura política, fundação do Partido dos Trabalhadores, campanha das Diretas Já. O tempo sombrio da ditadura chegava lentamente ao fim. Eu convivia com dois sentimentos: celebrava o fato, me orgulhava de ser brasileiro, de pertencer a uma sociedade que tivera a coragem e a inteligência de virar o jogo, de encerrar uma ditadura militar; e me inquietava com a caretice cultural que estava se desenhando diante da minha percepção e da percepção de muita gente. Não via possibilidade, por exemplo, de realizar os filmes que eu gostaria de realizar, alguns inclusive já escritos, projetados, com a Embrafilme daquela época sob a presidência de um homem da ditadura quando a abertura estava sendo feita. Aquela Embrafilme não produziria, como tinha feito antes, uma experiência como Diamante Bruto e o que eu planejava ia além disso. Um dia fui expor um desses projetos a esse presidente e ele me disse —o que você precisa é de um producer, sem um producer você não tem vez aqui. Ele não disse produtor, ele disse producer. Cinema de mercado também foram palavras muito usadas naquela reunião. A maior produção de cinema da época, em ritmo quase industrial, era a pornografia paulista da Boca do Lixo (a pornochachanda dos anos 1970 tinha dado lugar a um sexo explícito vulgar e malfeito, com milhões de espectadores). Não havia no horizonte nenhum sinal de que o fim da ditadura ia gerar uma nova explosão cultural, como as que tinham acontecido antes e durante a dita cuja. E eu estava acostumado, ou mal acostumado, eu e minha geração, a impactos como Jogralescas, Bossa Nova, Cinema Novo, CPC, O Bandido da Luz Vermelha, Tropicália, O Rei da Vela e Roda Vida de Zé Celso. E quando uma nova sacudida cultural deveria acontecer, não acontece, é uma pasmaceira. Eu estava me transformando em um profissional de cinema, em um roteirista e diretor à disposição do mercado, fazendo institucionais, trabalhando na Globotec. E esse caminho não me entusiasmava, me dava o sustento mas não me alimentava espiritualmente. Entre o prazer de haver sobrevivido e superado a ditadura e a insatisfação artística, eu sentia a necessidade de mudar de rumo, de buscar revoluções em outros caminhos, em outros lugares, mudar de vida. Era um época, uma atmosfera, muito yuppie para meu gosto. Esse desconforto foi enormemente agravado com a morte de Glauber em agosto de 1981. Durante a sua permanência no Brasil de 1976 a 1980 ele ficou a maior parte do tempo no Rio e voltamos a ser tão próximos como éramos nos tempos da Bahia, ajudei-o a organizar seu livro O Século do Cinema, ele escreveu Revolução do Cinema Novo em minha casa e também boa parte de Riverão Sussuarana. Foram quatro anos de intensa criatividade de Glauber, os livros, Di Glauber, Jorjamado no Cinema, A Idade da Terra, o impactante programa de TV Abertura, a política, e de intensidade emocional com o nascimento de três filhos e a digestão tormentosa da polêmica que decidira travar com o cinema brasileiro, com a direita e com a esquerda. E também de tragédias pessoais, a morte da irmã Anecy e do pai. Quando ele foi para a Europa levando A Idade da Terra continuamos em comunicação, segui de perto o episódio de seu encontro com o presidente Figueiredo, em Portugal, e nos estressamos juntos, por telefone, com a miopia política dos intelectuais de esquerda, que o criticavam duramente por ter se vendido aos militares e idiotices semelhantes, sem perceberem a grandeza do ato político dele, a sagração do cessar-fogo com o compromisso de não-retaliação futura entre militares e combatentes de esquerda. Esse compromisso diferenciou os processos de democratização no Cone Sul, no Brasil foi muito menos traumático do que na Argentina e no Chile. A força telúrica de Glauber poderia reverter a pasmaceira cinematográfica, sua proposta de um cinema latino-americano sempre novo, em constante mutação, propositivo, disposto a enfrentar a hegemonia comercial de Hollywood com a arte e a imaginação poderia ser acionada pelos países redemocratizados se ele continuasse no rompante em que estava naquele momento. E de repente a doença grave, transportado de Portugal para o Brasil em maca, vou recebê-lo no aeroporto do Galeão com sua mãe Lúcia (minha querida tia Lúcia) e com Norma Bengell com a esperança de que os médicos brasileiros iam cuidar do caso, tudo sairia bem. Ele morre horas depois e acontece aquela noite incrível, transcendental, do velório no Parque Lage, a noite mais profunda da cultura brasileira do século XX, a mais sofrida e reveladora, e em seguida o funeral onde todas as correntes de pensamento e políticas, de todos os matizes, disputam a herança do herói. Ele deixa de ser o louco, o traidor, o desorientado e passa a herói, passa a ser o Profeta. Mas já era tarde, as forças reacionárias às inovações, as forças da acomodação e as leis do mercado haviam assassinado o profeta. Nos sentimos sós no Brasil, a Conceição e eu, apesar dos muitos amigos. A vontade de me movimentar tendia para a América Latina, um território que já conhecia como jornalista e que me atraía, queria conhecer melhor, queria mergulhar mais fundo. Coronel Delmiro Gouveia ganhou o maior prêmio do primeiro Festival Internacional de Cinema Latino-americano de Havava, em 1979, e os cubanos estavam me convidando para fazer parte do júri e participar de seminários. Fui e, sem qualquer plano, sem qualquer intenção, mais uma vez nas mãos do destino, vou me ligando cada vez mais a Cuba, ao povo cubano, e essa atração resultou em longas estadas na ilha, que somadas alcançam dez anos. Capítulo VI Cuba Estivemos morando e trabalhando em Cuba, com intervalos, com algumas temporadas no Brasil, de 1985 a 1995. Isso significa que vivemos lá o melhor período desse quase meio século de Revolução Cubana, que foi a segunda metade da década 1980, e a pior fase, que foi a primeira metade da década 1990. Em 1985, embora a ajuda da União Soviética tivesse sido reduzida por Gorbatchov, como pressão para que o Partido Comunista cubano adotasse a perestroika, ela ainda era grande, com muito petróleo entrando na ilha. Além disso Cuba havia desenvolvido uma forte relação comercial com os países do leste europeu e com alguns países capitalistas e estava exportando muito açúcar. Um período muito festivo, muito entusiasmado. Diante da convulsão política que estava se desenvolvendo na União Soviética e das gigantescas manifestações estudantis antigoverno que estavam ocorrendo na China, Cuba se apresentava como uma terceira via do socialismo real, inclusive dando destaque tropical à definição dessa via, que se apresenta como martiano-marxista. Colados a Marx estão os conceitos de José Martí, o líder da guerra de independência contra a Espanha e formulador da política antiimperialista que Fidel e Che Guevara resgataram cinco décadas depois. O poeta, pensador político e ativista Martí (também herói, morreu em combate) criou o Partido Revolucionário Cubano em fins do século XIX e defendeu o estabelecimento de uma linha de contenção para impedir o avanço do imperialismo dos Estados Unidos sobre a América Latina. Essa linha de contenção seria o Caribe, com países independentes da influência norte-americana e espraiando sua independência em direção ao sul do continente. Uma fase muito adrenalínica, a idéia de um socialismo americano, desvinculado da União Soviética e da China. Nesse período o internacionalismo cultural de Cuba se expandiu, o Festival de Havana se transformou no centro nervoso da idéia de integração do cinema latinoamericano, foram sediadas no país instituições internacionais como a Fundação do Novo Cinema Latino-americano e a Escola de San Antonio de los Baños. Foi nessa fase que participei da criação dessa escola e realizei Brascuba com Santiago Alvarez. A fase ruim vem logo em seguida, com a dissolução da União Soviética em 1991, o fim da Alemanha Oriental e, aproveitando-se do momento, um grande arrocho no bloqueio econômico mantido pelos Estados Unidos desde os anos 1960. Cuba vinha rompendo o bloqueio, negociando com países capitalistas, através do Panamá, mas também já não contava com essa ponte após a invasão do Panamá pelos Estados Unidos em 1989. Cuba não tinha como exportar ou importar, todas as necessidades do país tinham de ser satisfeitas com o que o país produzisse e Cuba produzia basicamente açúcar e tabaco, a pecuária não era desenvolvida, não havia petróleo para tocar a indústria. O turismo, que sempre existiu em Cuba, foi drasticamente prejudicado pelo arrocho do bloqueio econômico. Uma crise terrível, racionamento severo, uma economia de guerra batizada oficialmente como Período Especial em Tempo de Paz. Faltava tudo e a comida era escassa, as pessoas emagreceram, a falta de ingestão de algumas vitaminas ocasionou doenças. Nessa fase eu fui diretor da Escola de San Antonio de los Baños e Conceição produziu e apresentou um programa de televisão de grande audiência. A situação só foi superada a partir de 1995 com mudanças radicais na economia, fortes estímulos a investimentos estrangeiros, abertura para negócios privados, boa parte da produção agrícola comercializada diretamente entre produtor e consumidor, sem a intermediação do Estado, e outras medidas referenciadas à convivência de um regime socialista com aspectos da economia de mercado. Todos os setores foram abertos a investimentos estrangeiros, com exceção de saúde, educação e segurança pública. Vivi um episódio interessante durante a invasão do Panamá. Em dezembro de 1989 estávamos em Havana, Conceição e eu, com passagem comprada para o Rio, via Panamá, exatamente para o dia em que aconteceu a invasão. O vôo foi suspenso, não havia outros vôos e tivemos de esperar uns quatro dias para que o aeroporto do Panamá fosse reaberto. Sabendo que íamos pernoitar no Panamá, uma autoridade cubana da cultura e do Partido Comunista me pediu para fazer contato com o escritor e cineasta panamenho Pedro Rivera, que também era (e continua sendo) meu amigo. Rivera estaria em perigo. A missão era encontrar Rivera e transmitir um recado, que saísse imediatamente do Panamá, cruzasse a fronteira com Costa Rica e lá seria recebido por amigos que o encaminhariam para onde desejasse. Chegamos ao Panamá e, no caminho entre o aeroporto e o hotel, com um desvio pedido por mim ao taxista, passamos por uma região elevada de onde se descortinava o bairro de Chorrillos, destruído pelo bombardeio norte-americano. Uma devastação chocante, não havia nada em pé, não havia nada inteiro naquele grande espaço, era um bairro popular enorme transformado em destroços, com cheiro de putrefação, de morte. No hotel, por telefone e usando meus contatos na cidade, onde havia realizado oficinas de roteiro e assessorias cinematográficas, localizei um amigo de Rivera, que me pediu para ficar onde estava, no te muevas, e esperar. Eu me sentia um espião, um James Bond. No início da noite, logo que escureceu, Rivera e seu amigo apareceram no hotel. Rivera estava com um bigodão, acho que postiço, óculos escuros e uma bengala, me disse que estava disfarçado de cego. Disse também que não ia sair do Panamá, que sua situação não era grave. Grave era a situação de sua mulher, que tinha sido presa e libertada e estava sob suspeita e vigilância porque tinham encontrado armas no departamento que ela dirigia na universidade. Ela é que tinha de ser retirada do Panamá e com urgência. Cheguei ao Brasil, telefonei para Cuba, passei o recado e missão cumprida. Uma das características de Cuba (e para quem vive lá muito tempo isso é marcante) é a contínua atmosfera de que algo grande e grave pode acontecer a qualquer momento nas tensas relações com os Estados Unidos, a atmosfera da Guerra Fria continua entre os dois países. Um dos primeiros trotes de calouros na Escola de San Antonio de los Baños foi a encenação, pelos veteranos, de um ataque norte-americano a Cuba, meia-noite, com efeitos sonoros. Alguns calouros demoraram em entender, ou duvidaram, ou suspeitaram da brincadeira, mas nenhum funcionário cubano teve qualquer dúvida, todos acreditaram que estavam sendo invadidos e agiram segundo os treinamentos, encaminharam os estudantes aos abrigos e quando iam se articular com os Comitês de Defesa Revolucionária foram interrompidos, os alunos explicaram que era só um trote. Naquela época a possibilidade real de uma invasão à ilha (como no Panamá, como em Granada) estava presente na cabeça dos cubanos e isso contagiava os estrangeiros que viviam lá. Durante um tempo em que morei em uma casa na praia me surpreendi algumas vezes pegando o binóculo para observar barcos suspeitos. Por outro lado, a quantidade de piadas e gozações que nasceram desse trote, entre os funcionários cubanos, foi bastante para divertir a escola durante semanas. Essa é outra característica deles, o humor sem trégua, piadas sobre tudo e sobre todos, com ênfase na política (Fidel, Raul, Che, socialismo, socialismo e capitalismo, os Estados Unidos) e no drama da divisão da população entre a ilha (dez milhões de pessoas) e os Estados Unidos (entre um e dois milhões). O vai-e-vem de cubanos entre Havana e Miami é um surrealismo nesse quadro de tanta tensão. Me refiro ao vai-evem legal, de exilados que visitam seus parentes na ilha, de cubanos da ilha que visitam parentes em Miami, e não ao problema dos balseiros, dos que tentam cruzar os 288 quilômetros de mar entre as duas cidades em embarcações improvisadas porque não conseguem o dificílimo visto dos Estados Unidos. Nos anos 1980 e 1990 esse tráfego era feito aos domingos, um vôo MiamiHavana-Miami. Era o Cuban Monday, o Domingo Cubano, porque o aeroporto de Miami ficava cheio de gente, de cubanos exilados, esperando o avião para saudar os que vinham da ilha, com a intenção de influenciá-los para ficar, para não voltar a Cuba. Era uma gritaria, bienvenidos a la tierra de la libertad. Um dia peguei esse vôo em companhia de Santiago Alvarez, o grande documentarista cubano, uma figura muito conhecida. Na verdade Miami era uma escala, estávamos indo para Porto Rico. Desembarcamos, fomos andando pelo corredor, ouvindo aquele alvoroço vindo de algum lugar, e de repente demos de cara, de cima de uma escadaria, com um salão cheio de cubanos exilados, exaltados, uma rumba tocando. Logo alguém gritou é Santiago Alvarez, ele escolheu a liberdade, e a multidão aplaude, grita o nome dele, bem-vindo. Santiago reage imediatamente: dá bananas vigorosas para a multidão e xinga alto, gusanos de mierda. Gusano, que significa verme, era um xingamento aos exilados, ou a La Comunidad, como se chamam, já em desuso, nenhum cubano chamava mais os exilados de vermes, como nos anos 1970, porque os exilados são seus parentes, pode-se dizer que toda família cubana tem pelo menos um parente em Miami ou em algum lugar do mundo. Foi como um acordo tácito da cubania, a comunidade de Miami e a comunidade da ilha são adversárias políticas mas ninguém é verme. E Santiago jogou a palavra junto com as bananas, vermes de merda. A gritaria se esvaiu, a multidão foi quase ao silêncio e começou um zunzum de murmúrios, alguns movimentos de pessoas e Santiago continuando o enfrentamento. Chega a mulher dele, a Lázara, que tinha se atrasado na verificação de passaportes, e puxamos Santiago para trás, voltamos para o corredor, dissemos a um policial que não podíamos sair pelo salão, os ânimos políticos estavam exaltados e coisa e tal, e ele nos tirou dali por outra porta. Mas eu estava falando sobre o humor dos cubanos. Uma situação como essa no aeroporto de Miami deve ter inspirado dezenas de piadas, trocadilhos e outras graças. Entre as tantas seduções de Cuba, sua esfuziante cultura afro-espanhola, suas praias e montanhas paradisíacas, a hospitalidade enorme, a criatividade surpreendente diante dos grandes problemas que enfrenta, a sensualidade explícita e assumidíssima em todas as idades, acho que a que mais me amarrou àquela ilha foi o humor de seus habitantes. Não há regras nem limites, tudo no mundo é para ser gozado, tudo que existe é fonte de riso. Aliás, a cidade do interior à qual sou mais ligado em Cuba, que é San Antonio de los Baños, ao lado da escola de cinema, é apelidada Cidade do Humor porque tradicionalmente promove festivais, mostras, encontros relacionados ao prazer do riso. Família Cubana Em fins de 1984 Santiago Alvarez e eu armamos o projeto de um documentário longo envolvendo Brasil e Cuba. Santiago, um criador de linguagem com seus documentários clipados, seu grafismo exuberante, o uso dramático de palavras na tela e tantas invenções, tantas intervenções formais para explicitar um conteúdo político-militante, passou a ser uma referência e uma influência importantes para os jovens cineastas latino-americanos a partir da segunda metade da década de 1960. A primeira vez que vi Now, o filme mais conhecido de Santiago, quando ainda estava na Bahia, foi um choque elétrico, um estímulo criativo dos mais fortes. Aquele clipe político, o primeiro clipe da história, Lena Horne cantando uma versão política da canção hebraica Hava Naguila e, no ritmo da canção, imagens devastadoras da violência racial nos Estados Unidos, aquilo foi um abalo, me revigorou. O ensaio cinematográfico LBJ também me impressionou muito, com máquinas caça-níqueis alinhavando o jogo com as letras do título, ao mesmo tempo Luther King, Bob Kennedy e John Kennedy, líderes assassinados, e o presidente Lyndon Baynes Johnson, acusado no filme de envolvimento com os três crimes. Ou seja, Santiago é um dos meus mestres e me senti no sétimo céu quando ele me disse que sempre quis fazer um filme no Brasil, que o momento tinha chegado, mas que ele só o faria se eu topasse co-dirigir. A partir de então e durante todo o tempo em que estivemos em Cuba, a família de Santiago passou a ser nossa família cubana. Nosso porto seguro, nosso colo, naquela Havana trepidante dos anos 1980 e naquela Havana angustiada dos anos 1990. Sua mulher Lázara, uma negra bonitona e despachada, suas cunhadas, sua sogra María Regla, gente de candomblé, de santería, me ensinaram o caminho das pedras para que eu me relacionasse adequadamente com as raízes religiosas africanas da ilha, com a baianidade de Cuba. O desejo de Santiago de fazer um filme no Brasil evoluiu rapidamente para um filme sobre os dois países, sobre as semelhanças culturais evidentes, as afro-latinidades quase gêmeas, de Brasil e Cuba emolduradas por marcantes diferenças geográfica, geopolítica, econômica, idiomática e de regime de governo. E sem relações diplomáticas um com o outro. Santiago filmaria no Brasil, eu filmaria em Cuba buscando imagens e situações capazes de esclarecer nosso mote: como dois povos com essas características podem ser tão parecidos, qual a razão disso. Abordagens sem roteiro, a ordenação viria depois. Decidimos por um procedimento vertoviano, pela proposta do documentarista russo Dziga Vertov, nos anos 1920, de filmar tudo que acontecesse diante da câmera, sem planejamento e sem preconceito, só planejar e interferir na montagem. Claro que nosso projeto não era tão radical, não era filmar tudo, mas o conceito era esse, deixar correr. O título seria Brascuba, para brincar um pouco com Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas), como já havia brincado com José de Alencar (Iracema). A idéia agradou a Alfredo Guevara, o histórico criador e na época presidente do Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos, o Icaic, principalmente o fator olhar estrangeiro. O produtor Nei Sroulevich, com quem eu já tinha trabalhado em outros filmes, se encarregou da parte brasileira e a co-produção foi acordada. Cabia a mim a primeira etapa, as filmagens em Cuba. Pé na Estrada Meu plano de filmagem cobria toda a ilha e tive de enfrentar a surpresa dos cubanos ao montar uma equipe reduzida para a tarefa, apenas sete pessoas: produtor, fotógrafo, assistente de câmera, som, a Conceição como assistente de direção, eu e o motorista. O fotógrafo era Ivan Nápoles, histórico parceiro de Santiago em documentários e ensaios em várias partes do mundo. Nos anos 1960 o Icaic havia organizado a produção cinematográfica cubana segundo o molde das produções industriais dos Estados Unidos, com toneladas de equipamentos e equipes enormes, muitos técnicos, muitos especialistas. Além desse modelo, havia o fato de que se tratava de uma empresa estatal com milhares de funcionários que deviam ser utilizados. Mas minhas condições foram aceitas e a viagem ampliada, Alfredo Guevara pediu-me que filmasse além das necessidades de nosso projeto, produzisse conteúdo para estoque e para a televisão. Ele estava interessado, como já disse, no olhar estrangeiro. Nos metemos em um ônibus e, durante mais de um mês, esquadrinhamos Cuba. Filmamos em 35mm mas sem limitações, dispúnhamos de uma grande quantidade de negativo e do laboratório do Icaic. Uma coisa é mergulhar em uma cultura com os olhos, os ouvidos, o paladar e os outros sentidos, o que é uma experiência maravilhosa, mas outra coisa, ainda mais maravilhosa, é mergulhar com todos os sentidos e com uma câmera, com o sétimo sentido do cinema. Viajamos em ziguezague do Cabo de San Antonio à Punta de Maisí, como dizem eles (como no Brasil dizemos do Oiapoque ao Chuí), vagarosamente, ficando dias nas cidades e em lugares do campo e do litoral. Ficamos uma semana em Santiago de Cuba, no oriente do país, uma espécie de capital do Caribe, população com mais de 80% de negros e mulatos e uma cultura poderosa, desorientadora para qualquer estrangeiro e até mesmo para os caribenhos. Tudo é música, movimento, requebro, humor e sensualidade exacerbada, e também mistério com as várias seitas afro-caribenhas que convivem por lá, desde a santería iorubá até os paleros de cemitério, influência vudu dos haitianos, que são numerosos na cidade (enquanto muitos cubanos trocam Cuba pelos Estados Unidos, muitos haitianos trocam o Haiti por Santiago de Cuba). Aqui desembarcou Colombo, daqui partiu Martí para expulsar os espanhóis e Fidel para expulsar os americanos, aqui nasceu a rumba, o bolero, o guaguancó e tudo mais dizem os santiagueiros. Eu já conhecia Santiago de Cuba, estivera antes por alguns dias e tinha me impressionado, de cara, com sua força, com seu mito (os mitos são feitos com história, imaginação e atmosfera), com sua semelhança com a minha Salvador da Bahia. Nessa segunda visita, filmando tudo que me impressionava na cidade, das organizações sociais às rumbas e aos paleros, me identifiquei profundamente com Santiago de Cuba, depois voltei muitas vezes, ficou sendo uma daquelas cidades preferenciais do meu espírito, para o repouso ou a agitação dele, como Salvador da Bahia, Marrakesh e a mater Lençóis. Com exceção de algumas piadas, nunca entrei na disputa Havana-Santiago de Cuba (tipo Rio-São Paulo), mas meus amigos cubanos sabem que sou santiaguero, que sou oriental. E fomos parando nas plantações, nas roças, nos pueblos, nas cidades, conhecendo, conversando, entrando nas casas, nas cozinhas, tomando café e rum, dançando, cantando e filmando. Guantánamo, Sierra Maestra, Holguín, Camaguey, Sancti-Spiritus, Las Villas, Trinidad, Santa Clara, Batabanó, Cienfuegos, Matanzas, Varadero, Pinar del Río. Por terra e por mar, em contato com camponeses, pescadores, estudantes, funcionários do governo, artistas, intelectuais. Falavam sobre suas vidas, sobre a Revolução, sobre o grande problema daquele momento que era a dificuldade de moradia e sobre a questão de La Comunidad, dos exilados, de sair ou não sair de Cuba (ainda estava muito presente nos sentimentos das pessoas o episódio dos marielitos: em 1980 Fidel embarcou no porto de Mariel, em direção a Miami, 125 mil pessoas que queriam sair de Cuba, entre elas todos os criminosos condenados, assassinos, ladrões, doleiros e também ativistas contrarevolucionários e, segundo os americanos, os enfermos mentais incuráveis). Filmava o que interessava especificamente ao projeto Brascuba e muita coisa mais, como estava previsto: personagens interessantes, situações socialistas, artes populares, danças, usinas de açúcar, casamentos e festas de quinze anos. Os casamentos e as festas de debutantes são espetaculares em Cuba, rituais com roupas de gala, desfile em carrões americanos conversíveis dos anos 1950 pelas ruas, fotografias e filmagem em lugares elegantes (hotéis, cabarés, o Capitólio, o Palácio da Revolução) e baile com orquestra. Durante anos eu vi na TV, em documentários e cinejornais do Icaic, o aproveitamento desse material extra. Foi uma viagem entrañable, como se diz em espanhol, uma palavra sem tradução exata e que tem a ver com afeto, carinho, calor humano. Além de entrar na intimidade de um povo, de filmar essa intimidade, havia também, na minha consciência, o fato de ser o país que é, ou seja, diferenciado, o tempo todo sob a atenção do mundo, tema constante e tensionante nas discussões entre as potências, nas decisões dos foros internacionais. Durante todo o século XX essa pequena ilha do 295 Caribe foi manchete na mídia planetária, na mídia de todos os outros países, sem interrupção. Essa ilha pobre, subdesenvolvida, um pedaço do Terceiro Mundo que não deveria ter nenhuma importância e que brilhou durante todo o século como uma estrela política e cultural, interferindo todo o tempo no equilíbrio ou desequilíbrio das forças, dos poderes do mundo. Às vezes na con-versa com a equipe tocava nesse tema, a posição especial de Cuba e dos cubanos na cultura política do século XX, e eles se mostravam modestos, não davam grande importância ao fato, diziam nós somos muito criticados e perseguidos, mas também temos muitos amigos no mundo todo. Brascuba Santiago filmou no Brasil em 1986, Rio, São Paulo, Brasília, Bahia, Nordeste, Amazônia. Ele tinha feito a produção executiva de minhas filmagens em Cuba e eu assumi esse papel nas suas filmagens no Brasil, inclusive acompanhando-o na maioria das locações. Mesmo formato de produção, equipe pequena e de grande mobilidade. Equipe brasileira, Conceição continuou como assistente de direção e o fotógrafo foi o cubano Dervis Baby Espinoza, outro parceiro histórico de Santiago. Voltamos a Havana e montamos o filme nos primeiros meses de 1987. Durante nosso trabalho aconteceu o reatamento de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba, rompidas desde 1964 e o assunto entrou no filme — antes de 1964 Brasil e Cuba tinham relações muito estreitas, o primeiro lugar que Fidel visitou ao tomar Havana foi a embaixada brasileira, que funcionara como um hospital clandestino para guerrilheiros durante o conflito, e logo depois estaria visitando o Brasil com Che Guevara, que recebeu medalha do presidente Jânio Quadros. Muitas amizades e algumas famílias cubanobrasileiras se formaram nessa época e, com a ruptura das relações, foram separadas, causando dramas e busca incessante de contatos. A resposta ao mote-pergunta do filme (como dois países tão diferentes podem ter povos tão parecidos?) é esclarecida a partir da cultura africana, não à presença genérica de escravos africanos na formação básica cultural dos dois países, mas sim ao fato de que os africanos que vieram para Cuba e Brasil eram das mesmas famílias. Os traficantes de escravos destinavam a maioria de suas cargas a três portos de recepção importantes na América: Havana, Salvador da Bahia e Rio de Janeiro. Em obediência a contratos com os grandes compradores, os traficantes separavam as famílias escravizadas no momento da destinação: o pai para Cuba, a mãe para o Brasil, o irmão para Havana, a irmã para Salvador. Tratavam de separar também, até onde era possível, as tribos. Isso era feito para evitar coesões étnicas e familiares e a possibilidade de motins, de fugas organizadas, de quilombos (palenques em Cuba). Ou seja, somos parecidos porque a formidável dose de africanidade de nossas culturas se origina das mesmas famílias. O filme não teve exibição comercial no Brasil, foi visto apenas em festivais. Mas em Cuba foi um sucesso inesperado, muito além das previsões do Icaic. Cinco meses em cartaz, com filas enormes, em Havana e em todo o país. No terceiro mês foi exibido na televisão, no horário nobre de domingo, e pensamos que já não havia mais público disponível para os cinemas. Ledo engano, a audiência nos cinemas foi revigorada, ficou mais dois meses. Lembro-me do espanto de Camilo Vives, responsável pela produção no Icaic, era a primeira vez (e creio que isso não se repetiu) que um documentário fazia uma carreira com essa dimensão, superando de longe a bilheteria de filmes de ficção. Nuevo Cine O movimento Cinema Novo, como se sabe, não aconteceu apenas no Brasil, foi um fenômeno continental envolvendo cineastas da Argentina, Bolívia, Cuba, Chile, batizado em espanhol como Nuevo Cine. No andar da carruagem desse movimento foi organizado o Comitê de Cineastas de América Latina, com representantes de todos os países. O Comitê, sem sede, nômade, reunindo-se nos festivais de cinema ao redor do mundo, atuava politicamente no sentido da permanência de uma identidade audiovisual do continente e da proteção do mercado consumidor frente ao avanço da hegemonia de Hollywood. Eu não fazia parte do Comitê (os representantes do Brasil eram Nelson Pereira dos Santos, Geraldo Sarno, Silvio Tendler e Cosme Alves Neto), mas estava muito próximo a ele, às vezes fazia pontes, estabelecia contatos entre os representantes de distintos países devido à minha intensa circulação pelo continente. Também porque muitos deles eram meus amigos: o boliviano Jorge Sanjinés, o chileno Miguel Littin, o peruano Alberto Chicho Durant, o argentino Fernando Birri, os mexicanos Paul Leduc e Jorge Sanchez, o cubano Alfredo Guevara, o panamenho Pedro Rivera, o venezuelano Edmundo Aray, o uruguaio Walter Achugar, a porto-riquenha Ana Maria García, os brasileiros já mencionados. O ponto de referência e de encontros políticos mais densos do Comitê era Havana, principalmente durante os quinze dias dos festivais de cinema, sempre na primeira quinzena de dezembro. Essas circunstâncias (minha proximidade com o Comitê e o fato de estar morando em Cuba) me levaram a participar da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños desde sua gestação. A idéia de uma escola desenhada pelos cineastas do Nuevo Cine, pela geração dos anos 1960, era um dos sonhos do pessoal do Comitê, alimentado especialmente por Fernando Birri, que assumiu a liderança da construção do projeto, reacendendo a chama da seminal Escola de Santa Fé, que criou e amamentou nos anos 1950 em sua cidade natal na Argentina. Gabriel García Márquez, o Gabo, que também circulava nessa turma, se entusiasmou com a idéia e começou o esforço para materializá-la. O primeiro passo foi anteceder a criação da escola com a montagem de uma instituição internacional que pudesse dar respaldo a ela — e nasceu a Fundação do Novo Cinema Latino-americano, com Gabo na presidência e um conselho forma-do pelos integrantes do Comitê de Cineastas de América Latina. Depois o conselho foi ampliado, entrando outros cineastas, inclusive eu. Isso foi no final de 1985 e resultado de negociações que Gabo e o Comitê fizeram com Fidel Castro. Antes se pensou em sediar a escola na Colômbia ou na Venezuela ou até no Brasil, mas esses países não ofereciam as condições necessárias. Cuba ofereceu: um prédio a 40 quilômetros de Havana, que poderia ser adaptado, com uma grande área verde ao redor, e também um apoio financeiro substancial para a montagem da escola e sua manutenção nos primeiros anos. Seria uma instituição internacional, mantida por vários países e sediada em Cuba. Na verdade duas instituições: a Fundação e a Escola. Estive em algumas dessas reuniões com Fidel e dois acontecimentos desse episódio devem ser mencionados. O primeiro é que, diante de certo desconforto de Fidel por estar aportando sozinho os recursos iniciais de uma instituição internacional, Gabo materializou sua primeira contribuição: mais de um milhão de dólares, todo o dinheiro que havia recebido pelo Prêmio Nobel de Literatura. Essa magnanimidade incentivou a Fidel e a todo mundo que estava envolvido no projeto e todos nós, ou quase todos, fomos caçar dinheiro em nossos países e em todo lugar (tarefa a que me dedico até hoje). O outro acontecimento foi o discurso de Fidel no encerramento do festival de 1985. Ele vinha das reuniões com os cineastas e já com a decisão da escola tomada, com todo gás, e falou durante mais de três horas sobre o veneno em que o cinema se transforma quando se torna hegemônico, quando um povo ou um país impinge sua cultura a todos os outros, utilizando de todos os meios (econômico, diplomático, tecnológico, militar) para isso. Durante todo o ano de 1986 trabalhou-se na reforma do prédio doado, ao lado de San Antonio de los Baños, uma antiga escola primária rural, e na construção de outras dependências, e também na escolha e compra dos equipamentos. À frente disso estava o Julio García-Espinosa, então presidente do Icaic. Paralelamente, uma equipe de dez ou doze pessoas trabalhava intensamente no desenho docente e filosófico dessa escola cujo raio de ação logo ultrapassou a idéia continental, abarcando América Latina e Caribe, África e Ásia. Eu fazia parte dessa equipe de formulação e tinha de me desdobrar, tinha pouco tempo para dormir, virava noites, porque na mesma época estava fazendo Brascuba. Magro e com olheiras mas feliz, na minha praia, gozando o prazer de inventar, de fazer coisas inéditas. Havia encontros plenários, digamos, mas minhas reuniões mais constantes eram com Birri e com o grupo encarregado da cinedramaturgia e do roteiro. Com Birri sempre me encontrava no Hotel Capri, em geral em fins de tarde, para conversar sobre o conceito geral da escola e sua aplicação prática, sobre como materializar uma escola de cinema da qual gostaríamos de ter sido alunos, uma escola pensada a partir do ponto de vista do estudante, do aprendiz, e não do ponto de vista do professor. No grupo da dramaturgia trabalhava com Gabo e com os cubanos Julio García-Espinosa, Ambrosio Fornet e Jorge Fraga, tratando de entender os processos que levam as raízes e os suportes universais da dramaturgia, a dramaturgia natural a todo ser humano, a se ramificar por diferentes caminhos nas distintas culturas, tema fundamental em uma escola que ia juntar latino-americanos, asiáticos, africanos e europeus. E também, praticamente, formular uma programação de aulas teóricas, exercícios práticos e sessões de reflexão. Vento Forte Me lembro de um episódio assustador nesse período. Foi uma reunião de trabalho na casa de Ambrosio Fornet, ele, o mexicano Vicente Leñero e eu. Era um apartamento de cobertura em um edifício muito alto, mais de vinte andares, no Malecón, ou seja, diante do mar. Estávamos apenas os três e fomos ao terraço apreciar a paisagem, só por um instante porque Vicente tinha medo de altura e estava ventando. Nisso a porta do terraço fechou, com o vento, e não podia ser aberta pelo lado do terraço. Só abria pelo lado de dentro da casa e não havia ninguém lá. Era apenas o início do drama, o vento começou a soprar forte, em pouco tempo era uma ventania, a insegurança no topo daquele edifício estreito era absoluta. A impressão era que o edifício estava balançando e que a qualquer momento podíamos ser lançados fora. Tem de se conhecer os ventos de Havana em um vigésimo-quinto andar para imaginar a situação. Estávamos na zona e na época dos ciclones e, embora não houvesse nenhuma notícia disso, nenhum alerta como era comum, considerávamos seriamente a possibilidade de que estava começando um furacão inesperado, pegando a cidade de surpresa — e se isso fosse verdade não tínhamos qualquer chance de escapar vivos. Enquanto o vento permitiu, Ambrosio e eu tentamos chamar a atenção das pessoas que passavam lá embaixo na rua e de um prédio vizinho, mas a boa distância e ninguém nos ouvia nem via, o vento espalhava nossos gritos. O próprio vento fazia muito ruído, assoviava. Agravando a situação, e muito, a acrofobia de Vicente Leñero chegou a um ponto exponencial, como era de se esperar em tal situação. Ele ficou todo o tempo deitado de bruços no chão, aterrorizado, querendo se agarrar no cimento, a caminho do estado de choque. O vento forte durou menos de meia hora, mas pareceu muito mais, e foi diminuindo, fomos nos acalmando, logo a mulher de Ambrosio chegou em casa e nos resgatou. Vicente entrou para o interior do apartamento andando de quatro, não teve forças para se levantar enquanto estava no terraço. Antiescolástica O número mágico da Escola de San Antonio de los Baños é o três. Desde os primeiros momentos de sua concepção Birri se referia a ela como Escola de Três Mundos e não apenas devido ao seu raio de ação em três continentes, América, África e Ásia. Também três formatos: ficção, documentário, ensaio. Três meios: cinema, vídeo, televisão. Três níveis de estudo: prático, teórico, reflexivo. Três intenções docentes: ensinar, provocar, libertar. E seu lastro filosófico, sua pedra filosofal (no sentido da transformação), é a antiescolástica. Esse é seu conceito básico, o fundamento, a grande sacada: pensar e agir sem qualquer compromisso com dogmatismos, com verdades absolutas. O conceito não é a não-escolástica, é a antiescolástica, é com o prefixo anti, que indica ação contrária, oposição, combate. Uma atitude (pensamento e ação) antiescolástica não apenas no sentido mais superficial da nossa percepção da escolástica medieval — tradicionalista, formalista, repetitiva. Também em seu sentido mais profundo, enraizado em Aristóteles e suporte do sistema da filosofia cristã desenhado por Tomás de Aquino e ainda tão presente nas nossas culturas ocidentais. Para Aristóteles, o primado da vida é a experiência, as idéias só se realizam nas coisas. Na Escola de San Antonio de los Baños o primado é a invenção, que vai além da experiência. Com o aval de Gabriel García Márquez e de Albert Einstein. Mas a questão central é o dogma, tanto na forma de ensinar consagrada por Aristóteles (o peripatetismo, o mestre falando e os aprendizes seguindo ele), como na imobilidade dos princípios exigida por Tomás de Aquino. O que formulamos naquele brainstorm de 1986 em Havana, no impulso das idéias generosas e brilhantes de Birri, foi uma escola onde a prática antecede a teoria, onde se aprende fazendo, onde o trato mestre-aprendiz é de troca de experiências materiais e emocionais, onde nada é tido como definitivo e tudo, absolutamente tudo, é passível de novas interpretações, novas leituras. Não uma escola peripatética, um liceu, mas um espaço de confraternização de saberes, sentimentos e revelações. Uma escola-fazenda (inclusive fisicamente, cercada por um grande laranjal), uma escola-laboratório, uma escolaestufa, uma escola-útero. A escola foi inaugurada em dezembro de 1986, Birri como diretor, e logo ficou muito claro que o grande desafio era a aplicação da antiescolástica, realizar no cotidiano daquela comunidade internacional, com pessoas oriundas de trinta países, princípios aos quais não estavam acostumados, procedimentos que não faziam parte de sua cultura educacional. Foi estabelecido o co-governo comunitário, um conselho de gestão docente e administrativa composto por estudantes, trabalhadores, professores e direção da escola. Os estudantes se surpreendiam com esses procedimentos, com a possibilidade de interferirem no plano de estudos, de escolherem professores, de exercerem prerrogativas, ou direitos na nossa acepção, que nunca tinham exercido. Mas logo entenderam as novas regras do jogo e assumiram, pouco a pouco, superando dúvidas e surpresas, a relação antiescolástica. O problema eram os professores e os funcionários, assustados com a liberdade que os estudantes pouco a pouco entendiam e assumiam. Imagine que, no primeiro ano da escola, a administração exigiu farda, um uniforme para os alunos. Todos os alunos e professores recebiam um macacão de mescla azul, roupa para trabalho, e alguns dirigentes interpretaram isso como farda escolar e perpetraram a tolice — estudante tem de ser fardado. Os estudantes acharam graça, gozaram, a idéia era um absurdo dentro da proposta da escola. Menciono isso para que se tenha uma idéia do arco de dificuldades, que ia desde uma tolice como essa a conflitos e desajustes mais profundos de muitos cineastas e professores com a direção da escola e com os alunos. Desajustes inclusive em nível psicológico, como o caso de um grande maquiador europeu que entrou em profunda depressão diante de críticas dos estudantes à sua metodologia, à sua maneira de passar conhecimentos. Achou que seu trabalho artístico estava sendo rejeitado, se trancou no quarto, uma crise profunda, queria morrer, sua mulher ficou desesperada, nunca tinha visto o marido naquele estado. Os estudantes foram ao seu apartamento e conversaram com ele, não era nada daquilo, todos admiravam seu trabalho, eram seus fãs, ele estava ali exatamente por isso, o problema era o relacionamento peripatético, as verdades absolutas. Conversaram muito e o grande artista entendeu, aceitou, gostou, deixou de ser professor e passou a liderar uma equipe e se deu muito bem em San Antonio de los Baños. Consciência e Rebeldia Durante quase todo o ano de 1987 minha presença física na escola não foi muito intensa, eu estava envolvido com a edição e o lançamento de Brascuba, fiz um documentário com o Piero Mancini para a TV Bandeirantes (Cuba Libre), fazia uma coluna semanal para jornais brasileiros, tive de vir ao Brasil. Visitava a escola para conversas com Birri e com os estudantes, participando no esforço de implantação da nova mentalidade educacional. Nesses encontros com os estudantes, cada vez mais entusiasmados com a liberdade de ação e, como era de se esperar, cometendo exageros e já querendo mais (temos de ocupar a direção, temos de tomar o controle total da escola agora, pregavam), encontrei o conselho, a sugestão, que podia dar a eles e que desenvolvi durante os anos seguintes nessa e em outras escolas, o binômio antiescolástico Consciência e Rebeldia. As duas atitudes juntas, uníssonas, retroalimentadoras. Rebelar-se continuamente, viver o dia-a-dia revolucionariamente, mas saber por que está se rebelando, saber a razão e as conseqüências da insubordinação. Foram muitas as conversas, as polêmicas e as iluminações tratando dessa dualidade complementar com os jovens cineastas ou candidatos a cineastas de todo o mundo. Me integrei plenamente a partir de setembro ou outubro, já com a segunda turma de estudantes entrando. Comecei fazendo oficinas internacionais de roteiro, em seguida fui morar na escola como professor full time e no ano seguinte me vi envolvido no primeiro choque coletivo ocasionado pela nova metodologia. Foi o que ficou na história da escola como a Crise de Outubro de 1988: os alunos não estavam de acordo com as ações do Diretor Docente e da Diretora de Produção, um casal de mexicanos, acusados exatamente de procedimentos escolásticos. Os estudantes escolheram uma nova direção docente, composta por três professores, eu inclusive. O triunvirato funcionou durante algum tempo, mas havia discrepâncias, inclusive no entendimento e na aplicação da antiescolástica, na dimensão prática desse conceito que Birri, Gabo, Julio García-Espinosa e eu estávamos tentando implantar. Uma reunião plenária com direção, professores, alunos e trabalhadores (essas reuniões eram e continuam sendo habituais na escola) decidiu desfazer o triunvirato e confiar a mim a Direção Docente. É nesse período que grandes nomes do cinema começam a entender o que está acontecendo em San Antonio de los Baños e adotam a escola, passam a ser professores, abrindo uma lista poderosa: Francis Ford Coppola, George Lucas, Robert Redford, Costa-Gravas, Jean-Claude Carrière, Ettore Scola, Istvan Szabo, Steven Spielberg, Gillo Pontecorvo, Fernando Solanas, Ruy Guerra, Walter Salles, Emir Kusturica, Agnès Varda, Margarette von Trotta, Eduardo Galeano, Alejandro Iñárritu, o indiano Mrinal Sen, o prêmio Nobel nigeriano Wole Soyinka, os cubanos Tomás Titón Gutiérrez Alea e Santiago Alvarez, e também grandes fotógrafos, técnicos de som, dramaturgos, músicos, atores e atrizes de todos os continentes. No seu segundo ano de funcionamento aquela fazenda com tecnologia audiovisual já era, além de um centro de treinamento intelectual e prático, um espaço de debates, de reflexão e de contatos de trabalho para cineastas e teleastas de todo o mundo. Em meados de 1990 Birri decide afastar-se da direção da escola, em busca de um refresco no duro embate intelectual, emocional e prático de implantação dos procedimentos antiaristotélicos. Os estudantes indicam meu nome, com apoio de Birri e de Gabo, e o Conselho Superior da Fundação do Novo Cinema Latino-americano aprova. Assumo a direção em julho de 1990 e cumpro quatro anos nessa função, até 1994. Ou seja, no pior período econômico da Revolução Cubana. A crise afetou a colaboração de Cuba aos custos da escola e tive de aprofundar a relação com outros países, principalmente europeus, em busca de recursos, e também tomar medidas internas — a mais importante delas ampliar significativamente a horta da escola, que passou a ter papel importante como fonte de alimentação para os habitantes da escola (cerca de 200 pessoas), as famílias dos funcionários e trabalhadores e também para alguns cineastas cubanos com dificuldades para conseguir alimentação de qualidade. As duas engenheiras agrônomas que fizeram o trabalho, uma negra cubana extremamente expansiva e colorida e uma chinesa absolutamente discreta, quase invisível, disputavam profissionalmente, as duas se esforçavam para evidenciar suas eficiências e isso também foi um elemento importante, resultou em aumento de produtividade. Hortaliças e Televisão Essa horta foi um presente pessoal de Fidel Castro à escola e ele se interessava muito pelos seus resultados, quando soube da ampliação se interessou mais ainda. Tive alguns encontros com ele para tratar da pauta de sempre, ou seja, as relações do Estado cubano com nossas duas instituições internacionais, a escola e a fundação, naquele período com o agravante da situação econômica do país. O primeiro assunto era sempre a horta. Um dia, em uma reunião social, ele me perguntou pela horta, conversamos sobre o assunto e eu disse que uma das pessoas responsáveis pela nova dimensão da horta era a Conceição, que estava presente. O que era verdade, ela desempenhou um papel importante na complicada Operación Semillas, que era conseguir boas sementes de legumes, hortaliças, verduras naquela situação difícil, ela conseguiu até importar sementes (façanha celebrada ruidosamente pela agrônoma cubana, rompemos el bloqueo). Ele pegou Conceição pelo braço e durante mais de uma hora falou sobre agricultura de subsistência, sobre novas técnicas, logo havia um enorme círculo ao redor deles. Ele já conhecia Conceição, dizia que era seu fã, su admirador, porque ela apresentava e produzia um programa de grande audiência na televisão cubana em um momento em que a televisão estava sufocada pela crise econômica, sem divisas para comprar ou produzir imagens do exterior. O programa, Ventana al Sur, ou seja, Janela para o Sul, apresentava sempre uma entrevista da Conceição com um artista da América Latina e um número musical ou um clipe. Muitos brasileiros participaram, Chico Buarque, Caetano, Gil, Gal Costa, Beth Carvalho, Ney Matogrosso, Alceu Valença, Ruy Guerra, Tizuka Yamasaki. E uma quantidade enorme de atores, cujas entrevistas eram mostradas enquanto estavam no ar em alguma telenovela lá em Cuba, onde a população é fanática pelas telenovelas brasileiras. Todo o programa era muito sedutor, mas seu grande gancho eram as entrevistas com os atores e sua popularidade era realmente impressionante. A mágica de fazer um programa com gravações em vários países quando a televisão não tinha recursos para isso se devia a uma rede de colaboração montada a partir da Escola de San Antonio de los Baños, a essa altura já se conformara a grande família da escola, espalhada por todo o mundo e intercambiando favores, as gravações em Buenos Aires eram feitas por argentinos da escola, no Chile por chilenos da escola e assim por diante, como uma colaboração a Cuba. No Brasil havia uma equipe mais ou menos fixa comandada por nosso amigo Bayard Tonelli, que não cobrava nada, e a edição era feita por alunos da escola, como mais um exercício prático. As passagens aéreas da Conceição ela mesma bancava. O conteúdo do programa encantava os cubanos, mas a admiração de Fidel tinha a ver com a produção internacional sem custos para a televisão de seu país, materializada com doações. Quando ele soube que la benemérita Conceição, além de fazer Ventana al Sur, também tinha responsabilidades com a horta, passou a se informar sobre a horta com ela, de vez em quando o Carlos Laje, presidente do Conselho de Ministros, telefonava para ela ou aparecia na escola em nome del Comandante para saber como iam as coisas, como estava o sistema de irrigação, quantas pessoas eram atendidas pela horta. Conceição ficava constrangida, afinal a horta era da escola, os dirigentes da escola é que tinham de dar essas informações, mas não tinha como escapar e tratou de aprender mais sobre o assunto. Conflito No momento mesmo em que assumi a direção da escola, na mesma semana, eclodiu uma crise forte entre intelectuais e artistas cubanos e o governo e me vi envolvido nela. Desde meados da década de 1980 vinha se desenvolvendo uma tendência muito interessante no cinema cubano, conhecida como comédia crítica: filmes alegóricos sobre o cotidiano do país, engraçados, gozando as deficiências e as trapalhadas do socialismo. Acho que isso começou em 1983 com Hasta Cierto Punto, filme de Tomás Titón Gutiérrez Alea — que, aliás, emplacou o maior sucesso dessa tendência em 1995 com Guantanamera, co-direção de Juan Carlos Tabío, a saga surreal de um defunto, dentro de seu caixão, cruzando Cuba de uma ponta a outra. O cara morre no oriente da ilha e tem de ser enterrado no ocidente e em cada divisa de província ou de qualquer jurisdição aparece um problema diferente, às vezes só pode passar o morto, outras só pode passar o caixão em uma espiral de burocracia. Em Cuba esses filmes faziam (e fazem) muito sucesso, filmes como Plaff de Juan Carlos Tabío, La Inútil Muerte de mi Socio Manolo de García-Espinosa, Adorables Mentiras de Gerardo Chijona. Em 1990 um desses filmes ficou pronto e irritou profundamente o grupo mais conservador do Comitê Central do Partido Comunista, a linha dura. Era Alicia en el Pueblo de Maravillas, de Daniel Díaz Torres. Sátira engenhosa inspirada em Lewis Carroll, uma sucessão de situações ilógicas, de disparates, dentro da realidade cubana, fazendo parte dela, surtos de irrealidade dentro do real, do cotidiano, e essas situações ampliadas, cinema do absurdo. A linha dura achou que o filme ia além da gozação com os hábitos e costumes do povo, com as organizações sociais e o governo, atacando diretamente o Estado Socialista, enfraquecendo o país diante do inimigo, dos Estados Unidos, ou seja, crime grave, traição à pátria, contrarevolução. Para piorar o enredo, uma cópia do filme já tinha sido enviado para o exterior, para o festival de Berlim. O filme tinha de ser proibido. A ala mais progressista do Comitê não se irritara tanto com Alicia e ponderou que a censura seria um desastre para a imagem do país, todo mundo ia criticar, ia cair de pau. Organizou-se uma comissão de dezoito cineastas e escritores, que produziu um documento discrepando totalmente da linha dura do Comitê Central. Na comissão estavam os cineastas mais importantes do país, Tomás Titón Gutiérrez Alea, Santiago Álvarez, Humberto Solás, Juan Carlos Tabío, Fernando Pérez, Pastor Vega, Juan Padrón. Fidel decidiu que a comissão dos cineastas discutiria o assunto diretamente com o Comitê Central, cara a cara, e assim foi feito. E aí o bicho pegou, a crise evoluiu, García-Espinosa foi destituido da presidência do Icaic, o posto foi reassumido pelo histórico Alfredo Guevara. Da linha dura caiu um poderoso dirigente político, Carlos Aldana, apelidado El Jabao (O Sarará), que tentou sufocar o Icaic, rebaixá-lo a um departamento da televisão, do Instituto de Radio y Televisión. Um terremoto político-cinematográfico. Como diretor de uma instituição internacional eu não devia me meter na confusão, mas acontece que o diretor de Alicia, Daniel Díaz Torres, e o porta-voz da comissão dos cineastas e escritores, Ambrosio Fornet, dois focos da polêmica, estavam trabalhando direto na escola, tinham apartamentos lá. Todos os integrantes da comissão tinham fortes relações com a escola mas Daniel e Ambrosio estavam no foco e hospedados lá. Eu não devia me meter oficialmente, mas também não podia deixar de opinar, quando era solicitado, e naturalmente defendia a liberdade de expressão. A Rádio Martí, uma emissora anticastrista de Miami que transmite para a ilha, começou a dizer que havia um levante da intelectualidade cubana e da escola internacional de San Antonio de los Baños contra Fidel e aquela onda. O jornal Juventud Rebelde, de Havana, publicou insinuações de que eu estaria abrigando contra-revolucionários na escola. A tensão foi muito forte, de repente estava em perigo o Icaic, ameaçado de ser diluído na televisão, e a escola, uma instituição internacional que estaria imiscuindo-se em assuntos internos do país. A crise terminou mais ou menos bem para Alicia, que teve sua exibição autorizada mas com restrições, só quatro dias em cada cinema, e terminou bem para o Icaic, que não se transformou em um departamento da televisão e viu seu prestígio político aumentar. E a escola seguiu seu caminho. Não resisto à tentação de contar mais um episódio relacionado a Alicia: a linha dura do Comitê Central, derrotada no embate, organizou um número grande de militantes do partido e ordenou que fossem ver o filme, ocupassem boa parte dos cinemas e, aí estava a estratégia, não rissem. Sendo uma comédia desbragada, louca, feita para arrancar gargalhadas dos cubanos, a tarefa se tornava bem difícil. Faz lembrar a cena de Chaplin em Um Rei em Nova York, ele faz uma operação plástica e não pode rir senão desmancha a cara e vai ver um show muito engraçado — o esforço dele para não rir é um dos grandes momentos cômicos do cinema. Mas essa era a tarefa, não rir em um filme engraçado, uma situação que caberia como uma luva em Alicia, a comédia de absurdos que estavam vendo. San Tranquilino Vencida a primeira etapa de implantação do projeto, na heróica gestão de Birri, minha missão era avançar na qualificação dos procedimentos antiescolásticos, no sentido de tirar dessa relação libertária todo o leite possível, de deixar aflorar toda a criatividade que essa atitude pode provocar. Um tempo carregado de desafios e de grandes compensações intelectuais e afetivas, essas duas categorias se confundindo, quatro anos que deveriam estar em destaque em uma biografia minha, em um boxe. Uma escola de cinema é uma escola de arte, onde o aprendizado da técnica, de como misturar tintas ou trocar lentes, é importante mas não tanto como despertar ou aguçar a consciência ontológica dos aprendizes, seu autoconhecimento como ente humano, ao mesmo tempo individual e coletivo, único e infinito. E nessa operação despertar ou aguçar a sensibilidade e as habilidades artísticas. Mais de uma centena de pessoas dedicando-se o tempo todo ao exercício de criação do aprendizado, discutindo coletivamente cada passo das produções, dos roteiros, dos filmes, exercitando ao mesmo tempo a autocrítica e a experimentação. Aprendi muito, avancei distâncias, avancei horizontes na minha compreensão da vida, da humanidade, da arte, naqueles anos de pensamento e ação caudalosos e incandescentes, um encontro fecundante de gerações. Um mergulho muito interessante nessa época da escola foi sobre o conceito de Verdade, que começou com a questão da isenção e da interferência na realidade nos documentários. O professor não tem a verdade, nem os livros têm a verdade, pode ter parte da verdade, pode ser uma intuição para a verdade, mas não A Verdade. Todos os grandes filósofos dizem que a verdade é uma convenção cultural, quando se trata das verdades coletivas. E quanto às verdades individuais e simples, tipo isso é vermelho, estão sujeitas a ruídos de todo tipo, físicos, emocionais, de ponto de vista, de iluminação, de velocidade e das interferências das verdades coletivas, das tais convenções. Quando você diz isso é vermelho a um daltônico isso não é verdade para ele. Duas testemunhas do mesmo fato não narram o acontecido da mesma forma, as verdades não são exatamente iguais. Ninguém vê ou entende um filme exatamente da mesma maneira que qualquer outra pessoa. Então A Verdade, a única, a que vale porque é a única, é a de cada um, é a minha, é a sua. Cristo pensou muito, quem lê o Novo Testamento nota isso, antes de dizer eu sou a verdade. Aliás sempre associo essa frase de Cristo com o cinema, serve como uma definição do cinema — eu sou a luz, a verdade e a vida. A atmosfera da escola, a humanidade da escola, também é única, não há paralelos nem comparações, como qualquer pessoa que tenha passado por lá sabe e diz. O ritmo interno e externo intenso da criação e do aprendizado, a diversidade cultural e étnica, a igualdade de responsabilidades de mestres e aprendizes formam um pacote irresistível. As ações de aprender, ensinar e inventar não se restringem ao cinema, englobam quase tudo que se faz na escola, quase tudo que as pessoas fazem. O teatro invisível, por exemplo. Já me referi a isso quando falei dos trotes, das brincadeiras com os calouros, onde não havia nenhuma violência física como nas universidades brasileiras, ninguém tocava em ninguém. Todos os trotes, durante os primeiros oito anos, foram exercícios de teatro invisível, essa forma radical de teatro em que uma parte das pessoas envolvidas não sabe que se trata de teatro e reage em outro código, no código da realidade. Contei um desses trotes e agora conto outro, na época em que eu era o diretor. Os novos alunos que chegaram em setembro de 1990 encontraram uma escola que mais parecia uma casa de loucos devido às muitas divisões entre os estudantes — disputas inflamadas entre cristãos e muçulmanos, asiáticos e africanos, cinema-arte e cinema-de-consumo, comunistas e capitalistas, inventaram até uma disputa mortal entre Birri e eu e nossos seguidores fanáticos, os birristas e os sennistas. E outras maluquices, havia o grupo das garotas drogadas caindo pelos cantos, gays exageradamente espalhafatosos, um fino intelectual indiano fazendo pregações eruditas em defesa do cinema pornô, a pornografia é a mais bela forma de arte, a única que retrata a nossa alma verdadeira. Os grupos às vezes se engalfinhavam em algum lugar que ninguém via, dentro do laranjal, e os feridos passavam em macas em direção à enfermaria. Tudo com maquiagem, efeitos sonoros e, só assim podia dar certo, com a cumplicidade do médico, dos trabalhadores, dos professores e do diretor da escola. As reações dos sessenta calouros eram as mais diversas, alguns queriam aderir a algum grupo, outros queriam impor ordem na bagunça, outros se recolheram na defensiva, outros exigiam providências da direção e as discussões à noite, no restaurante, eram altamente reveladoras do caráter de cada um, dos calouros que não sabiam que estavam participando de uma encenação e dos veteranos, a partir de como compunham seus personagens. Durou quase uma semana, só terminou no dia da recepção aos novos alunos em uma reunião plenária da escola, quando informei sobre o teatro invisível. A experiência produziu reflexões profundas entre os alunos, análises, exegeses, debates, confissões, revelações. Um laboratório de criatividade, conhecido na intimidade da grande família que aí se formou e continua crescendo como San Tranquilino, porque antes da escola o que existia aí era uma chácara, a Finca San Tranquilino. A experiência humana da Escola de San Antonio de los Baños é difícil de ser contada, é um sentimento muito individual, de cada um, muito intraduzível, mas todos que viveram essa experiência foram profundamente tocados, influenciados. Uns poucos de maneira negativa, os poucos que não entenderam ou se amedrontaram, e a grande maioria como uma iluminação, como um marco divisor em suas vidas, como fator de transformação pessoal. Essa magia não se perdeu nos anos posteriores, apesar da escola ter passado por etapas diferentes do entusiasmo dos primeiros tempos, apesar da desativação do co-governo, apesar de ter enfrentado um movimento conservador que queria transformá-la em uma escola de cinema como as outras. O que marca essa fase, de 1995 a 2002, é o fato de que as pessoas que dirigiram a escola nesse período eram muito competentes, mas não estavam umbilicalmente ligados a ela, não tinham vivido na escola antes de assumirem a direção, não sabiam que a antiescolástica na teoria é uma coisa e na prática é outra, cada início de gestão era um susto. Em 2002 o Conselho da Fundação do Novo Cinema Latino-americano e as organizações de ex-alunos se juntaram para resgatar aspectos da filosofia fundacional que estavam se perdendo e reorganizar a escola, adequar a escola para o século XXI. É o que estamos chamando de refundação, um processo que em 2007 materializou um passo fundamental, que foi a troca de comando, os ex-alunos assumindo os destinos da escola. Em 2002 foi eleito diretor o cubano Julio García-Espinosa, que participou do projeto desde sua concepção, para concretizar essa passagem de mando e ampliar a escola, com a construção de novos edifícios, modernização tecnológica, ampliação do curso regular, aumento do número de oficinas e da quantidade de alunos. Em dezembro de 2006 foi eleita diretora a ex-aluna Tanya Valette, da República Dominicana, que em seu discurso de apresentação, na festa dos 20 anos da escola, dirigiu-se aos ex-alunos e disse agora é com a gente. Continuo dedicando boa parte de meu tempo ao sonho materializado de San Tranquilino, como membro do Conselho Superior e do Conselho de Direção da Fundação. O projeto da Escola de San Antonio de los Baños é de cem anos, previsão de um século de funcionamento, e festejamos os primeiros 20 anos vendo que a planta vicejou, tem flores e frutos, mas, principalmente, com os olhos nos próximos 20 anos, na fase de mutação da Sétima Arte para a Oitava Arte, do cinema que conhecemos para o cinema que já começamos a imaginar, interativo, portátil e capaz de gerar realidades virtuais. Édipo Colombiano Durante essa época de atividade mais intensa na escola, que me exigia alta dedicação, também participei na criação de alguns filmes, todos eles relacionados com a Fundação do Novo Cinema Latino-americano (nossa fundação desenvolve vários programas além da escola, inclusive estímulo a co-produções ibero-americanas, como a conhecida série Amores Difíceis). Além de Sabor a Mi, participei de uma produção multinacional latino-americana, uma celebração dos cem anos de cinema no continente, Enredando Sombras. São curtas-metragens de cineastas de vários países sobre o cinema e me coube o tema Cinema Novo. Usei um depoimento inédito de Glauber, que ele havia gravado em minha casa em 1979, e imagens emblemáticas de filmes para refletir sobre a Estétika da Fome e a Estétika do Sonho, os manifestos básicos do movimento. E participei em outra produção multinacional ibero-americana, trabalhando no roteiro de Edipo Alcalde (título internacional Oedipus Major, ou seja, Édipo Prefeito), com Gabriel García Márquez e a colombiana Stela Malagón, que tinha sido aluna dele e minha na escola de San Antonio de los Baños. Durante todos esses anos na escola a minha relação com Gabo ampliou-se para uma amizade que faz muito bem ao meu espírito, que está sempre abrindo novas perspectivas de entendimento de nossa identidade, ou de nossas identidades latino-americanas. Nossa área de interesse na escola, a cinedramaturgia, nos levou a compartilhar muitos projetos e a uma convivência constante, com episódios interessantes, como o desaparecimento dele no Rio de Janeiro, acho que em 1991. O Centro Cultural Banco do Brasil o estava pressionando para que aceitasse um convite para uma palestra e ele não queria vir porque estava escrevendo Doze Contos Peregrinos, muito concentrado nisso. Mas acertou que seria só uma visita ao Centro Cultural, um encontro informal com os participantes de uma mostra de cinema latino-americano que estava acontecendo, e veio porque o pagamento era bom e seria destinado à Escola de San Antonio de los Baños (quando tomei posse como diretor da escola ele disse que não ia mais fazer doações pessoais, eu tinha de me virar com os europeus, mas aceitou minha sugestão de cobrar caro por entrevistas e palestras e visitas e repassar esse dinheiro para a escola). Ao chegar, no aeroporto, se assustou com a agenda de muitas atividades e homenagens, seu compromisso era só uma visita e um papo. Ao chegar ao hotel houve um incidente: ele havia telefonado para três amigos, Moacyr Scliar, Eric Nepomuceno e eu, marcando encontro no hotel, queria conversar. Mas os organizadores da visita interferiram quando ele estava nos cumprimentando e meteram ele e a Mercedes, sua mulher, no elevador, como se fossem estrelas do rock sendo protegidas dos fãs. Uma situação meio vexatória, depois nos avisaram que não seríamos recebidos. Estupefatos, fomos embora. Duas horas depois toca o telefone em minha casa, é a Mercedes: eles haviam trocado de hotel, ninguém deveria saber onde estavam, principalmente o pessoal do Centro Cultural, Gabo só apareceria na hora da visita, marcada para dois dias depois. O pessoal do Centro Cultural Banco do Brasil e a mídia quase enlouquecem, García Márquez tinha sumido sem deixar pistas. O Eric Nepumoceno, o Nei Sroulevich e eu fizemos a retaguarda da operação, agüentamos a pressão dos telefonemas, bico calado. Na hora marcada ele apareceu na sede do Centro Cultural, passou quase toda a tarde conversando com o pessoal da mostra de cinema, centenas de autógrafos, se divertiu, todo mundo adorou, e sumiu de novo, dispensou as passagens e o atendimento do Centro Cultural e submergiu no Rio. Estendeu a visita, ficou um tempo escondido em um hotel de Ipanema e todos os dias ia escrever na minha casa, trazia um disquete, metia no computador e trabalhava horas. Estava mesmo concentrado no seu livro de contos e fiquei muito surpreso com o seu, digamos, processo de criação. Ele não escrevia um conto e depois outro, escrevia todos ao mesmo tempo. Tinha doze arquivos separados, os Doce Cuentos Peregrinos, e saltava de um para o outro olimpicamente. Mas eu estava falando de Oedipus Major. Como todos os contadores de história, Gabo é fascinado pelo Édipo Rei de Sófocles, um relato circular, alguém que está investigando um crime descobre que o criminoso é ele mesmo, uma idéia que já serviu a dezenas de histórias depois que Sófocles a inventou. Uns produtores queriam filmar um de seus livros e ele fez uma contraproposta, escreveria um roteiro, uma versão sul-americana e atual do Édipo Rei, que foi aceita com entusiasmo. E ele nos convocou, a Stela e a mim, para compartilhar a criação do roteiro. Na verdade é ele que assina o roteiro, por exigência dos produtores, e nós três assinamos o argumento, mas tudo foi feito a seis mãos, ou a três cabeças, uns quatro meses de trabalho. O nosso Édipo é uma autoridade federal encarregada de pacificar uma região onde se confrontam o exército, a guerrilha e milícias paramilitares, ou seja, o interior da Colômbia, embora não se mencione o nome de países, é algum lugar na América do Sul. O filme estreou em 1996, co-produção espanhol-mexicano-cubana, direção do colombiano Jorge Alí Triana e elenco internacional, o cubano Jorge Perugorría como Édipo, a espanhola Angela Molina como Jocasta, o espanhol Fernando Rabal como Tirésias e outros atores de distintas nacionalidades. Apesar de grande sucesso na Colômbia, o filme causou estranheza e bilheterias escassas nos outros países de língua espanhola onde foi exibido, exatamente devido à variedade de sotaques. Teve uma boa carreira na televisão, principalmente na Europa. Compartilhar a criação de histórias com Gabo é uma experiência fascinante. Sempre que posso vou peruar suas vibrantes oficinas de roteiro na Escola de San Antonio de los Baños e curtir as soluções inventivas que ele apresenta, o encadeamento surpreendente de situações, os giros inesperados, os seus famosos inícios de história. Na composição do roteiro de Oedipus Major esse seu arsenal de narrador se manifestava a cada instante, para proveito prático, para ser incorporado à narrativa, ou apenas para azeitar a criatividade, o raciocínio dramático, incluindo tiradas de humor. Vou dar um exemplo, um só porque senão ficaria falando disso o dia todo. A certa altura da arrumação da história, a fase que os roteiristas chamam de escaleta, estávamos a Stela e eu sem chegar a uma conclusão sobre quem informava a Creonte, irmão de Jocasta e chefe de milícias, o que se passava na casa de Édipo. Creonte tinha de contar com essas informações privilegiadas, de cocheira, para que a história corresse bem. Não queríamos usar um empregado doméstico, solução muito fácil, e a instalação de microfones na casa da autoridade federal não estava ao alcance de Creonte. Quem? Como? O Gabo aparece e explicamos o problema, ele pensa um pouco, o rosto se ilumina em um sorriso matreiro e diz — o cavalo. Em uma cena anterior Creonte tinha presenteado um belo cavalo a Édipo. Eu achei uma maravilha, a Stela se assustou (vamos meter realismo mágico na guerra?) mas logo caiu na gargalhada. O cavalo ganhou um papel além da coadjuvância de ser apenas um presente, criamos um nexo misterioso de Creonte com o animal, de sussurros e afagos, e uma relação tumultuada de Édipo com o cavalo, hospedado no pátio de sua casa, ouvindo tudo e relinchando. A cena mais bonita do filme, para meus olhos, é quando o cavalo sai da casa de Édipo e corre em disparada e em câmera-lenta para a fazenda de Creonte. Apenas um toque de magia, uma pincelada chamuscante, no realismo brutal de disputa de poder, assassinatos políticos, incesto e enfrentamentos bélicos. Educador Educador é uma palavra forte, densa. Não me sinto um educador, me sinto um provocador. Nos anos 1970 fui a uma astróloga, a Marta Pires Ferreira, no Rio, e durante a leitura do meu mapa astral ela perguntou se eu tinha alguma coisa a ver com escolas, eu disse que não. Disse que minha mãe era professora, mas ela disse que não servia: o negócio é com você, você é professor? Não e creio que essa atividade não tem muito a ver comigo, respondi. E ela: me desculpe, mas está na progressão da sua vida, ou você vai ser diretor de escola ou dono de escola ou metido profundamente em educação. Naquela época hippie realmente não havia nenhuma perspectiva com relação a isso e achei que a Marta estava equivocada. Não estava, mas me vejo mesmo, nas escolas com as quais me relacionei, como alguém que estimula os mais jovens, que os provoca, os desafia a romper suas barreiras psicológicas e emocionais, suas falsas fronteiras. Os melhores mestres que tive agiram assim comigo, me desafiavam o tempo todo, criaram uma disputa minha comigo mesmo e foi isso que me empurrou na vida. Refiro-me a meus mestres Agenor Almeida, Hélio Rocha, Martim Gonçalves, Ariovaldo Matos e Arne Sucksdorff. Minha longa temporada de domicílio cubano termina em fins de 1994 e no ano seguinte trabalho em dois projetos de escolas, um no México, que deu certo, e outro no Brasil, que não deu certo. Enquanto fui diretor da Escola de San Antonio de los Baños e durante mais um tempo também respondia pela vice-presidência docente da Federação das Escolas de Imagem e Som da América Latina-Feisal, e minha atividade mais importante nesse cargo era conhecer os programas e a organização das principais escolas de cinema e televisão do mundo, com o propósito de classificar e estimular procedimentos comuns entre elas, facilitando o intercâmbio de estudantes, professores e metodologias. Esse trabalho era apoiado também pela federação mundial Centre de Liaisons des Écoles de Cinéma et Télévision-Cilect, e me permitiu conhecer de perto esse universo, visitar dezenas de escolas. Inclusive o Centro de Capacitação Cinematográfica do México, o CCC, que despertou minha atenção porque funciona em conexão com os Estúdios Churubusco, a grande instalação construída durante a época de ouro do cinema mexicano, anos 1940 e 1950. A escola fica praticamente dentro do complexo de estúdios. Me interessei pelo CCC e o CCC se interessou por minhas propostas docentes e fui contratado para montar um curso permanente de dramaturgia audiovisual e roteiro, com duração de dois anos e turmas de vinte estudantes. Durante quatro anos dediquei os meses de abril e setembro a esse curso, monitorando-o a distância no resto do tempo. A partir de 2000 o curso já estava engrenado, já tinha adquirido personalidade, e me afastei porque estava muito ocupado no Brasil. A área de dramaturgia audiovisual e roteiro do CCC continua e com bons resultados. Antes mesmo de terminar minha gestão em San Antonio de los Baños, Darcy Ribeiro vinha me seduzindo com a idéia de montar uma escola no Brasil com características semelhantes à da escola internacional de Cuba. Ele estava organizando a Universidade Estadual do Norte Fluminense, hoje Universidade Darcy Ribeiro, e pretendia instalar uma escola de cinema e TV de ponta. Me entusiasmei muito com a idéia, não apenas pela possibilidade que se apresentava de fazer uma escola com essa dimensão no Brasil, mas também por estar trabalhando com Darcy, amigo de velha data e uma das pessoas mais brilhantes e inquietas que conheci. Tive com ele uma experiência semelhante à que vivi com Gar-cía Márquez, aquilo de compartilhar a criação de uma história com pessoas que são vulcões de criatividade, criadores acelerados. No final dos anos 1980 Geraldo Sarno pretendeu realizar um filme a partir de O Mulo, o denso romance de Darcy, e partimos para um roteiro a três cabeças, Geraldo, Darcy e eu. Trabalhamos longamente em seu apartamento em Copacabana, mais longamente do que se esperava porque aconteceu um acúmulo enorme de informações dramatúrgicas, porque Darcy não parava de inventar, de sugerir, de nos encantar com suas idéias inéditas. Além de contribuir majoritariamente para essa avalanche, ele nos induzia a também encher cada vez mais o balaio do roteiro, nos levava a paroxismos de invenção. Meses e meses de delicioso exercício de imaginação e chegou a hora de cair na real, quer dizer, a hora da produção, tínhamos de ter o roteiro pronto em tantas semanas, e Geraldo tomou as decisões pertinentes: todas as ramificações da história tinham sido exploradas, dezenas de personagens tinham desaparecido, outras dezenas tinham nascido, a cabeça do protagonista, do Mulo, onde tudo acontece, tinha sido garimpada até as profundezas e agora tínhamos de compor um roteiro com 120 páginas, a base para um filme de hora e meia de duração. Esse aprisionamento foi demais para Darcy, a elaboração do roteiro perdera a graça para ele, não posso me sujeitar a esse sofrimento, vocês terminam. Terminamos, ele aprovou, mas o filme não foi feito (assim é a vida de roteirista de cinema, escreve muitos roteiros e só alguns são filmados, a minha média é três roteiros sem filmar para cada roteiro na tela). Esse trabalho de roteiro com Darcy foi muito divertido, tocado pelo humor exuberante dele e também por situações causadas pela engraçada disparidade entre a seriedade quase sisuda de Geraldo quando em processo de criação e a irreverência destabanada de Darcy. Um dia Darcy defendeu a inclusão da imagem de um ânus chorando, como está no livro, e Geraldo reagiu: isso é muito bonito escrito ou descrito por você, mas na tela periga virar pornografia. E Darcy, exaltado: não existe pornografia, tudo no corpo humano é belo e sagrado, o que existe é porno-olho, é pornocabeça. E não é que é mesmo? Ele deu sugestões precisas e inovadoras para o projeto metodológico da Escola Brasileira de Cinema e Televisão (assim se chamaria), trabalhamos juntos na aplicação dos princípios e das práticas antiescolásticos às condições da escola que estávamos criando, um re-desenho de San Antonio de los Baños que, sem perder a essência do modelo, pudesse funcionar no Brasil e sob o guarda-chuva de uma universidade. Uma tarefa complexa, difícil, mas possível, o projeto ficou redondo e iniciamos a implantação com uma equipe reduzida e valente: Irene Ferraz, Patrícia Martin e Alfredo Calviño, que haviam trabalhado comigo em San Antonio de los Baños, e Geraldo Sarno, encarregado de criar um Seminário Permanente de Dramaturgia e Comunicação, com abrangência internacional e divulgação de conteúdo teórico em livros, re-vistas, internet e cine-ensaios. Em menos de um ano o projeto restaurou o Solar dos Jesuítas, nas proximidades de Campos, interior do Estado do Rio de Janeiro, um monumento arquitetônico e histórico que estava em ruínas, para ser a sede da escola. Um antigo e enorme convento, com vários prédios (adaptados para apartamentos, estúdios, salas de aula e infra-estrutura adequada à prática de cinema, TV, computação e internet que estava começando), cercado por amplo terreno arborizado. No mesmo período, paralelamente, tomamos as providências para a aquisição do equipamento de última geração, incluindo um estúdio digital, e para a concessão e instalação de um canal de TV UHF, com alcance para a região norte do Estado do Rio. Esse canal de TV acoplado à escola, administrado pelos alunos, com conteúdo produzido pelos alunos, seria um avanço considerável no universo das escolas de cinema e TV, em nível mundial, e era o ponto forte do projeto: nunca nenhuma escola tinha tentado algo parecido, o compartilhamento da formação de cineastas e teleastas com a população, com o público, com o consumidor. A idéia era um canal comunitário e interativo, público e experimental — e ainda hoje eu sonho em realizar esse sonho, acoplar uma escola a um canal de televisão. E também realizamos um intenso trabalho de relacionar, de criar laços profundos entre o projeto e a Universidade e entre o projeto e a região, o seu entorno, principalmente a cidade de Campos, a poucos minutos de distância da sede, onde fizemos um programa chamado Escola Virtual, com exibições, seminários e cursos. Participaram dessa agitação regional muitos cineastas, entre eles Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Maurice Capovilla, Zelito Viana, Helvécio Ratton, Mário Carneiro, Antonio Carlos Fontoura, Tetê Moraes, Marcos Altberg e atrizes como Ítala Nandi e Bete Mendes, de José Carlos Avellar historiando o cinema a André Parente introduzindo as novas tecnologias audiovisuais. Foi o ano da Imagem e Som dessa região, 1995, com uma inusitada e nunca repetida movimentação cultural em Campos, o imenso Cine Goitacá sempre lotado, a juventude excitadíssima. Alguns curtas-metragens foram realizados pelos jovens da cidade. Uma intervenção audiovisual. Tudo pronto para a instalação da Escola Brasileira de Cinema e Televisão, com data marcada para inauguração, com muito dinheiro já aplicado (a restauração do Solar dos Jesuítas abrindo a lista), o projeto estancou. Os recursos, acertados e sacramentados por Darcy Ribeiro, vinham da Universidade Estadual do Norte Fluminense, da Petrobras e de uma verba especial do governo do Estado do Rio. A Universidade e a Petrobras cumpriram seus compromissos e se dispunham a continuar cumprindo-os, mas o governador do Rio, Marcelo Alencar, voltou atrás, apesar dos acertos e acordos firmados com Darcy, que se sentiu traído. Os recursos que viriam do governo eram fundamentais para dar o arranque inicial da escola, indispensáveis, e não foi possível recompor o orçamento com a adesão de outras fontes. E também estava acontecendo um movimento surdo e sorrateiro, movido por inveja e cobiça por poder acadêmico, nos intestinos da nascente Universidade contra a liderança de Darcy Ribeiro, o inventor e implantador da dita cuja. Parou tudo, a inauguração foi transferida sine die, a situação foi se agravando e a história se encerrou definitivamente com a morte de Darcy, no início de 1997. Dragão do Mar Ainda quando estava em Cuba fiz viagens ao Brasil para participar de um programa de capacitação em Fortaleza, oficinas promovidas pela Casa Amarela da Universidade Federal do Ceará e pela Secretaria de Cultura do Estado. Chamavase Luz Câmera Imaginação e minha presença no programa devia-se a Wolney Oliveira, diretor da Casa Amarela, meu aluno em San Antonio de los Baños e com quem eu tinha feito Sabor a Mi. E também aos outros ex-alunos cearenses, Jane Malaquias, Marcus Moura, Amaury Cândido. Essa minha atividade em Fortaleza se expandiu para a discussão de um projeto maior, mais consistente, com o secretário de Cultura, o antropólogo e jornalista Paulo Linhares. Ele me estimulou a montar uma base para a instalação de um pólo audiovisual no Ceará. Eu propus uma atividade de formação, reflexão e produção de dramaturgia como primeira providência em um projeto tão ousado, onde também já se delineava uma linha de fomento público à produção de filmes. Desenhei um Centro de Dramaturgia, um con-junto de áreas de formação integradas, articuladas, com muita prática, com muita produção: o Colégio de Dramaturgia, o Colégio de Direção Teatral e o Colégio de Realização Cinema/TV. O Centro de Dramaturgia começou a ser montado, mas Paulo Linhares insistia no pólo e eu resistia em me comprometer com alguma coisa além desse centro, já que estava enfronhado na construção da Escola Brasileira de Cinema e Televisão com Darcy Ribeiro. Quando esse lindo projeto se desfez eu não tinha mais por que não aceitar a proposta cearense, cujos contornos já esboçados me atraiam. E lá vou eu com mala e cuia para os verdes mares bravios do Nordeste. Maurice Capovila, essa grande figura do cinema brasileiro, também ligado ao Luz Câmera Imaginação e a San Antonio de los Baños, juntou-se a mim na direção do projeto e conformamos uma equipe com alto poder de ação e mobilidade com os cearenses Paulo Linhares, Bete Jaguaribe e Wolney Oliveira. Completamos o desenho e instalamos o complexo de formação e produção Dragão do Mar, o nome em homenagem ao jangadeiro herói que impediu o desembarque de escravos no Ceará, no século XIX. Na cabeça do complexo o Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual, com dois níveis de formação: capacitação básica para os ofícios necessários à produção cênica e audiovisual (costureiras, camareiras, maquinistas, eletricistas, carpinteiros, pintores, cenotécnicos, contraregras, foquistas, assistentes de produção, etc.) em todo o Estado, chegando a alcançar oito mil alunos; e treinamento especializado, com cursos de dois anos, nos Colégios de Dramaturgia, Direção Teatral, Realização Cinema/TV, Dança, Design e Produção. Em paralelo um programa de produção, um pólo nacional de realização de filmes e conteúdos para televisão, apoiado por uma film commission, o Birô de Cinema e Vídeo do Ceará. Uma terceira ação focada na visibilidade regional dos conteúdos culturais, com a construção do Centro Cultural Dragão do Mar (espaço para exposições, eventos, concertos, um planetário, dois cinemas, dois teatros, anfiteatros, etc.) e com fomento para a instalação de uma rede de cinemas, em articulação com as prefeituras municipais. Uma quarta ação focada em serviços e infra-estrutura de produção, com a atração de empresas especializadas e construção de estúdios, de um laboratório cinematográfico e centro de tecnologia digital. Por fim, o enganche de toda essa atividade com a televisão, com a inclusão da TV Educativa do Ceará no complexo Dragão do Mar. Esse sistema tão ramificado (e articulado) respondia a necessidades e carências locais, já que Fortaleza não contava com infra-estrutura física e formacional necessárias para a montagem de um pólo de produção audiovisual. Em 1996 a primeira fase do projeto foi implantada e começou a todo vapor: o Instituto e o pólo de produção. Nesse mesmo ano os primeiros resultados práticos do movimento integrado formação-produção bateram nos palcos, nas telas e nas ruas de Fortaleza e de algumas cidades do interior, causando impacto cultural e midiático. Essa velocidade era conseqüência do sistema vasos-comunicantes do Instituto: pessoas escrevendo peças de teatro e roteiros de cinema no borbulhante Colégio de Dramaturgia; essas peças sendo montadas pelos encenadores e atores e bailarinos dos Colégios de Direção Teatral e de Dança; os roteiros sendo filmados pelo pessoal do Colégio de Realização Cinema/TV; cenários, figurinos, adereços, plantasbaixas e toda essa vertente saindo do Colégio de Design e dos cursos básicos; os projetos se materializando nos exercícios práticos do Colégio de Produção. Um choque cultural de alta voltagem na cidade, com um primeiro impacto focado no teatro: os espetáculos se multiplicavam e cada vez com mais qualidade e mais público, com muitos textos novos, do pessoal da Dramaturgia, mas também com experiências sobre textos de outras latitudes, como as marcantes encenações de A Ciranda (Der Reigen) de Arthur Schnitzler, duas versões distintas comandadas por Antonio Mercado e seus aprendizes, e de Os Iks, de Colin Turnbull, Jean-Claude Carrière e Peter Brook, montagem de Celso Nunes e seus alunos. Mercado e Celso Nunes foram mestres importantes nessa empreitada, fazendo parte de um grupo de ponta do teatro brasileiro que se deslocou para Fortaleza: Zé Celso Martinez Correia, Plinio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, José Wilker, Amir Hadad, Bárbara Heliodora, Chico de Assis, os excelentes professores Clóvis Levi, Renato Icarahy, Renato Scripiliti, Eduardo Vendramini, B. de Paiva, Iacov Hillel, Carlos Colabone, e do teatro extrafronteiras como Santiago García, do grupo La Candelaria de Colômbia, e Maria Karadja, a superespecialista russa em emissão vocal. Um timaço. A Escola Internacional Itinerante de Teatro, patrocinada por México, Venezuela, Argentina e Cuba, juntou-se às atividades do Dragão do Mar com encontros de grupos e oficinas internacionais. O Colégio de Dramaturgia era ao mesmo tempo um espaço de formação e de reflexão, com foco especial na cinedramaturgia, e com ritmo intenso. João Ubaldo Ribeiro, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Doc Comparato, Leopoldo Serran, Lauro César Muniz, Ana Maria Moretzsohn, Renata Pallottini, Heloisa Seixas, David Tygel, Luis Carlos Maciel e outros cineastas, dramaturgos e escritores brasileiros davam aulas e promoviam debates. Os alunos também estiveram em contato com roteiristas estrangeiros, como Larry Gross, de Hollywood, e Licchi Diego, de Cuba, com o iluminador belga Jean-Marie Vervish, com o mexicano Gustavo Montiel, renomado professor e desenhista de produção. Na progressão antiescolástica do Instituto, logo os alunos passaram a participar dos planos docentes e a uma atuação propositiva, criativa, cujo exemplo maior foi o cineclube Cineme-se, com uma programação artisticamente estimulante, provocativa. E muitos filmes sendo rodados. Uma agitação que incidia em todo o universo cultural da cidade, influenciando-o, fazendo-o se mexer, causando reações de adesão entusiástica e rejeição nervosa. Os recursos provinham de várias fontes mas basicamente do Estado do Ceará, investindo na produção, do Ministério da Cultura, com fomento dirigido às atividades de teatro, e do Ministério do Trabalho dando sustentação às atividades nas demais áreas, através do Fundo de Amparo ao Trabalhador e do Sistema Nacional de Empregos. A grande novidade, no que se refere a recursos, era esse investimento do Ministério do Trabalho em um projeto cultural, uma resposta ao conceito que movia o Dragão do Mar, que era o de implantação de uma indústria cultural. Muitas atividades eram realizadas em colaboração com a Universidade Federal do Ceará e com a Fundação de Teleducação do Ceará, e também com instituições internacionais como a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, o Centro de Capacitação Cinematográfica do México e o Banff Centre for the Arts do Canadá. Essas relações proporcionaram a realização de laboratórios de dramaturgia e seminários internacionais, um deles muito marcante sobre o trabalho do roteirista em projetos interativos e de realidade virtual. Foi o seminário Novos Paradigmas Narrativos/Dramaturgia e Interatividade, montado pela argentina-venezuelana-cubana-brasileira Patrícia Martin, minha querida colaboradora de muitos e muitos anos (e também comadre). Uma prospecção sobre a construção de histórias a serem consumidas e manipuladas por espectadores ativos, interferentes, participantes. O meu ponto de partida para sugerir essa prospecção foi o conto de Borges El Jardín de Senderos que se Bifurcan, onde se propõe uma estrutura para uma história que vai se irradiando para todos os lados, infinita, que toda a vida de um escritor trabalhando diariamente resultaria apenas no início do relato. Ao se inventar uma história, a cada passo o inventor se defronta com várias possibilidades, muitas portas por onde continuar seu relato, mas só abre uma, e assim por diante. Borges propõe que, a cada passo, o inventor de histórias abra todas as portas. Para refletir e propor equações sobre essa dramaturgia de abismo, que já se esboça nos videogames e logo será uma necessidade da indústria e da alta tecnologia audiovisuais, baixaram em Fortaleza roteiristas, cineastas, animadores, web designers, inventores de jogos eletrônicos, especialistas em inteligência artificial de vários países. Era um coquetel fervente essa soma dos cursos básicos por todo o Estado mais os Colégios de formação em Fortaleza mais o programa de produção audiovisual. A produção de filmes se desenvolvia em duas ações articuladas: facilidades para a realização de projetos de qualquer parte do País e do mundo, condicionados a al-gum tipo de relação com o Ceará e à utilização de produtoras e mão-de-obra local; e fomento à produção cearense. No primeiro caso foram realizados filmes como A Ostra e o Vento de Walter Lima Jr., Bocage, o Triunfo do Amor de Djalma Limongi, produções de Luis Carlos Barreto e Renato Aragão (grandes produtores nacionais de origem cearense), uma telenovela da Globo e até um filme americano de lutas marciais, com a capoeira reinando. No segundo caso alinham-se filmes dos cearenses Rosemberg Cariry (Corisco & Dadá), José Araújo (O Sertão das Memórias), Marcus Moura (Iremos a Beirute), Wolney Oliveira (Milagre em Juazeiro), Florinda Bolkan (Eu não Conhecia Tururu) e outros, quase todos primeiros filmes. Crime Em 1999 o Instituto era uma máquina azeitada, com alunos de várias partes do Brasil, e o programa de produção resultara na realização de quatorze filmes longos, uma média de mais de três filmes por ano. E a produção de curtasmetragens estava acelerada. Também o movimento teatral alcançara uma nova dimensão de qualidade e popularidade, com a apresentação de treze espetáculos de alto nível, média de um espetáculo novo a cada mês. O Centro Cultural Dragão do Mar foi inaugurado e provocou a restauração da área arruinada ao seu redor, no centro da cidade, que se encheu de bares, restaurantes, galerias de arte, ateliers. Estávamos avançando, já em vias de concretização, para a segunda fase do projeto: a instalação de infra-estrutura física e de serviços, o circuito de exibição e o coroamento do complexo que era a inclusão da TV Educativa. A essa altura o Dragão do Mar era uma política cultural de referência nacional e internacional, merecendo a cumplicidade e a bendição dos dramaturgos, atores e cineastas de todo o Brasil. E aí, justamente quando tudo estava dando certo e um novo salto de qualidade e industrialização estava em processo, o Dragão foi implodido. O autor do crime cultural foi o governador Tasso Jereissati. Crime cultural e crime econômico, já que se tratava de um projeto de implantação industrial, para gerar empregos e renda para a população, e que estava dando certo, que era uma referência de acerto. A história que está por trás da implosão do Dragão do Mar é psicopolítica, freudiana, já que esse governador vinha bancando o projeto (obviamente, senão não seria possível) e recebendo bons dividendos políticos por causa dele. A idéia de instalar uma indústria audiovisual no Ceará nascera no governo anterior, um sonho compartilhado pelo governador Ciro Gomes e seu Secretário de Cultura Paulo Linhares. O governo Ciro Gomes não conseguiu andar com a idéia, mas Linhares foi mantido como secretário por Jereissati, que se comprometeu a concretizar o pólo audiovisual. Aí vem a história: Linhares foi eleito deputado estadual (o Dragão do Mar lhe dera muita popularidade) e começou a atuar de maneira independente na Câmara, inclusive presidindo uma investigação de desvio de verbas públicas por alguns prefeitos. A investigação ia em cima de aliados do governador, o governador tentou impedir, Linhares foi em frente e o governador decidiu dar-lhe um golpe fatal: destruir o Dragão do Mar, sustentação política do deputado rebel-de. E destruiu. Choveram centenas de mensagens de artistas e intelectuais do Brasil e de outros países dirigidas ao governador, pedindo que tal crime não fosse cometido, todas as estrelas do pensamento brasileiro participaram da campanha e tudo inútil. Capovila e eu fomos descontratados e mandados embora, com a imprensa aliada ao governador no nosso encalço, na base de forasteiros, não precisamos de vocês, o Ceará para os cearenses. Foi uma comoção brutal, os alunos do Instituto realizaram manifestações durante dias, nas últimas eram centenas de jovens com nariz-depalhaço, aquela bola vermelha no nariz e muito olho vermelho de choro e frustração por se sentirem enganados e traídos. Eu me encarapaço muito, consigo controlar sentimentos de perda e desengano quando se trata de política porque sei que é jogo bruto, é terreno de guerreiros maus e bons, é tema de Maquiavel mas também de Sun Tzu no seu A Arte da Guerra. Mas fui me despedir do pessoal do Colégio de Direção Teatral, que estava preparando um espetáculo de cordel, com grande elenco e estréia marcada, e agora suspenso. Estavam todos com as roupas e as maquiagens de seus personagens e havia tanto sofrimento ali, tal atmosfera de ruptura, de privação, de naufrágio, que chorei com eles, não dissemos nada, ficamos ali chorando juntos, abraçados. A ruptura foi especialmente cruel porque seus efeitos se fizeram sentir no campo político-social-econômico e também no âmbito das emoções pessoais, das almas sensíveis de artistas em formação, das mentes abertas de centenas de jovens que se lançavam em uma aventura do espírito. Depois desse primeiro momento de comoção e estarrecimento, de não entender como um ato tão absurdo pôde ser perpetrado, entendi, e entendemos todos os envolvidos no Dragão do Mar, que o esforço não tinha sido em vão, muita coisa ficou, a conexão da cidade com a cultura mudou, muitos daqueles jovens encontraram seus caminhos na vida a partir daquelas chamas do Dragão. A Grande Família O fracasso do projeto com Darcy Ribeiro, em 1996, e a implosão do Dragão do Mar em 1999 me deixaram com um pé atrás no que se refere a iniciativas desse tipo no Brasil, esvaiu-se a minha esperança de que o Estado brasileiro tivesse sensibilidade e inteligência para tratar adequadamente a questão audiovisual, já que seus representantes não tinham nem uma nem outra. Surgiram alguns convites, algumas propostas para montar escolas ou programas de formação e me esquivei de todas, tipo gato escaldado. Preferi dedicar-me mais a San Antonio de los Baños, que não pode ser alcançada por decisões de políticos obtusos, que depende do amor de milhares de pessoas. O efeito San Antonio de los Baños vai bem além de sua função de escola referencial e de sua ação integradora na América Latina: os que por lá passaram e os que continuam passando conformaram uma comunidade sinergizada, com ramificações em quase todos os países do mundo, uma grande família antenada. Uma família nuclear de umas seiscentas pessoas formada por alunos, ex-alunos, professores e trabalhadores do Curso Regular, por gente que residiu muito tempo em San Tranquilino. Esse núcleo está apoiado em um círculo de umas duas mil pessoas, que tiveram contatos menos duradouros com a escola mas também foram mordidas pelo, sei lá, pelo bichinho afetivo de San Tranquilino, foram infectadas por aquela bactéria amorosa e invisível que vive lá. Esse carrossel de amizades e cumplicidades adoça a vida de todos nós e facilita muita coisa, viagens, pesquisas, encomendas, contratos, co-produções. Quase todos os cem filmes longas-metragens já realizados por ex-alunos da escola têm outros ex-alunos na equipe. Dentro dessa comunidade existem algumas dezenas de ex-alunos meus que mantêm um contato diferenciado comigo, afetos e comportamentos filiais, alguns nos chamam, a Conceição e a mim, de mãe e pai. Alguns estudantes da escola mexicana e do Dragão do Mar entraram para essa turma mais próxima, mas a maioria é de San Antonio de los Baños. Todo santo dia somos contatados por algum ou alguns deles, e-mails, telefonemas, para trocar idéias sobre trabalho e vida pessoal e nos visitam muito, aparecem no Rio, em Lençóis, em Brasília, onde estivermos. Cuidamos deles e eles cuidam da gente. Imagine como foi e é surpreendente e radiosa e divertida essa relação para Conceição e para mim, que não tivemos filhos! Agora também já temos netos, que são os filhos deles, as fotos dos bebês chegam pela internet já com demarcação de parentesco: para os queridos avós ou o primeiro sorriso da netinha de vocês. Claro que não é uma relação de pai para filho e vice-versa, é como se fosse esse tipo de relação mas sem as dificuldades psicológicas e culturais das famílias biológicas, o que torna tudo muito interessante, sincero, desresponsabilizado. Essa filharada deliciosamente bastarda que o destino inventou para nós é uma benção para nossas vidas. Sem falar dos onze sobrinhos e sobrinhas (são doze, mas uma está desaparecida) que são uns amores e a quem dediquei meu romance Um Gosto de Eternidade (A Girafa Editora, 2006). Esses nossos filhos inventados às vezes causam situações engraçadas. Outro dia estava na Cidade do México, em um restaurante pequeno no bairro de Coyoacan, com uns amigos, inclusive um casal de brasileiros que tinha trabalhado comigo em Fortaleza. De repente entra no restaurante um negão rastafari, grandão, as tranças batendo na cintura. Era Basílio, um cubano, ele passou na rua, me viu e entrou. Entra e nos abraçamos e nos beijamos, ele me chamando de pai e reclamando, eu estava no México e não tinha telefonado. Marcamos um encontro e ele foi embora e aí me dei conta do espanto na cara das pessoas que estavam comigo na mesa e de outros fregueses do restaurante. Eu, branco, tamanho médio, pai daquele negro retinto e grande. Alguém perguntou timidamente — é seu filho? — e eu disse que sim e mudei de assunto. Mudei, mas o assunto ficou pairando sobre a mesa, carregado de interrogações, até nos separarmos. Situações como essa, engraçadas para nós e embaraçosas para os outros, também vivi em uma viagem de trabalho por países da Europa com Alba Amoo, uma princesa ashanti de Gana com 1,90 m de altura e esguia, longilínea, que se apresentava como minha filha. E também há indianos, vietnamitas e índios andinos, o que demanda explicações a quem testemunha nossos encontros-de-família, explicações que nunca são dadas senão perde a graça. Capítulo VII TV dos Trabalhadores Depois dos acontecimentos do Dragão do Mar me aquietei no Rio durante um bom tempo, umas férias para arquitetar um plano, que era deixar para trás esses projetos grandes com que tinha me metido e voltar a escrever e filmar, e só. E passar mais tempo em Lençóis. Comecei a reorganizar o ganha-pão, em 2001 retomei minha antiga atividade de workshops de cinedramaturgia e assessorias de roteiro, juntando todos os compromissos em três meses seguidos, e trabalhei em Madri, México, La Paz e Belo Horizonte. A idéia era fazer esse trabalho em giros anuais de três meses e ficar com o resto do ano à minha disposição. Inclusive para voltar a outra atividade, a de roteirista, já que Paul Leduc estava me convocando para trabalhar com ele em um ensaio sobre Tom Zé e no projeto O Cobrador, tinha um sedutor convite de Indranil Chakravarty para co-escrever um filme indiano, e Antonio Pitanga me contratou para roteirizar a história do levante de escravos islâmicos da Bahia, no século XIX, os Malês. No início de 2002 a Conceição pôs em marcha a produção de seu filme Brilhante e estávamos nessa, felizes da vida, com projetos andando, e o destino interfere de novo, muda o rumo. Em fins de março de 2002 a vice-governadora Benedita da Silva assumiu o governo do Estado do Rio de Janeiro para um mandato de nove meses, para completar o tempo do governador que se afastara do cargo para candidatar-se a outra coisa. Éramos amigos de velha data, desde quando ela se casou com meu amigo histórico, de adolescência, Antonio Pitanga, e logo depois da posse os dois me telefonaram, sondando-me sobre a possibilidade de assumir a Subsecretaria do Audiovisual do Estado. O que propunham era o fortalecimento desse órgão, incrustado na Secretaria de Cultura, em um nível que refletisse institucionalmente a condição do Rio de Janeiro como a maior cidade produtora de audiovisual da América Latina. Me surpreendi, achei a proposta interessante porque vinha do Partido dos Trabalhadores e eu tinha uma grande confiança de que Lula ia, enfim, ganhar as eleições presidenciais naquele ano e queria apoiá-lo de maneira mais substantiva — como, por exemplo, ajudar o governo PT de Benedita da Silva dar certo e ter visibilidade. Mas me surpreendi mais do que me entusiasmei e pedi tempo para pensar. Eu não era e não sou do PT, nunca fui de qualquer partido (com exceção de uma filiação honorária com que fui contemplado, sem que me perguntassem, pelo pequeno Partido Ecológico Venezuelano, nos anos 1970). Mas me alegrei muito com a fundação do PT, me entusiasmei com a organização de um partido dos trabalhadores no Brasil da pós-ditadura, sob a liderança de um operário que, desde o início, desde as grandes greves do ABC, mostrou uma inteligência política fora do comum e um carisma de arrasar corações. Conheci Lula no início da década de 1990 em um ambiente audiovisual, em uma ilha de edição da Televisão dos Trabalhadores-TVT, uma produtora da Central Única de Trabalhadores-CUT, em São Paulo, que sonhava e se preparava para ter a concessão de um canal. Fui parar na TVT estimulado pelo petista Leopoldo Nunes, meu aluno nas primeiras oficinas internacionais de San Antonio de los Baños, e trabalhamos com os operários-cineastas no sentido de qualificálos melhor para a realização de reportagens e documentários e também, em outro momento, na utilização da ficção para os propósitos sociais, laborais e corporativos que os norteavam. Lembro-me de um exercício muito interessante que fizemos, uma série de quatro programas dirigida pelo Leopoldo, também estavam nessa a Renata Villas-Boas e o Gilberto Carvalho. O mesmo tema, Poder Popular, com distintos tratamentos dramatúrgicos: um ensaio documental sem a utilização da voz humana, sem a emissão de palavras; um documentário de montagem, com material de arquivo; uma ficção (com Letícia Sabatella e Ângelo Antonio); e uma espécie de making of sobre o processo de criação da série como fio condutor para a abordagem do poder popular naquele momento, naquele início da década de 1990. Lula tinha ajudado pessoalmente a produção de documentários sobre as greves do ABC (de vez em quando ele me lembra isso, eu fui produtor de cinema) e apoiado decisivamente a criação da TVT e um dia me encontro com ele lá, vendo um material, e nossa conversa foi, naturalmente, sobre cinema e televisão. Palácio das Laranjeiras A Benedita, o Pitanga e o ator Antonio Grassi, Secretário de Cultura do novo governo, queriam minha decisão imediatamente. Fiquei na dúvida, ia me meter de novo em um torvelinho, sem tempo para meus projetos pessoais e minhas preguiças. O pessoal da área cultural do PT, o pessoal do PT do Rio e as entidades de classe do Rio insistiram para que aceitasse e prometeram apoio e sustentação política. Também meus amigos cineastas do Rio argumentavam a favor, eu poderia pôr em prática uma política de estímulo à produção e à distribuição, uma coisa que nunca tinha sido feita pelo Estado (uma política pública cinematográfica estava sendo desenvolvida pela Prefeitura da cidade do Rio, com a distribuidora Riofilme, e o Estado totalmente ausente do assunto). Grassi apostava na possibilidade de uma ação audiovisual marcante no pouco tempo de gestão e apostava também na reeleição da governadora Benedita e na eleição de Lula, e argumentou que minha missão era plantar um desenho de política pública audiovisual que frutificasse nos próximos governos do PT. Aceitei. Afinal, seriam só nove meses, o tempo de uma gestação. Aquilo era uma coisa inteiramente nova para mim, nunca tinha participado diretamente de um governo. Tinha realizado alguns projetos de governo, mas como contratado autônomo, para uma ação específica, nunca tinha entrado na máquina do poder institucional. E nunca tinha pensado nisso. Lembro-me exatamente do momento em que decidi aceitar: Conceição e eu fomos visitar a governadora e o primeiro-damo e quando vi Benedita e Pitanga, negros e oriundos da faixa mais carente da população, ocupando o Palácio das Laranjeiras, minha crença de que o País tem jeito foi tonificada, foi eletrificada. Ali me decidi. Assumi, fiz reuniões com as entidades do setor e apresentei um programa de trabalho enxuto e urgente: fomento à produção através de editais, apoio à exibição de filmes fluminenses (fomento a lançamentos, ingresso a um real em convênio com a Riofilme, programa de exibição gratuita nas praças de todo o Estado e exibição de filmes nos canais de televisão estaduais, municipais, universitários e comunitários); instalação de uma film commission; e formulação de uma política audiovisual para o Rio de Janeiro, a ser implantada em cinco anos. Também programei a elevação da Subsecretaria do Audiovisual para uma Secretaria, a primeira que seria montada no Brasil. Logo ficamos sabendo, o Grassi e eu, que o plano não seria executado: o ex-governador tinha deixado as finanças do Estado em ruínas, cofres vazios e muitas dívidas a curto prazo (de propósito, para dificultar a vida de Benedita) e, em conseqüência dessa situação, todas as ações do governo foram suspensas, com exceção da busca de recursos para fazer frente a pagamentos essenciais e ao combate à violência. Nem a Secretaria da Cultura nem outra qualquer podia assumir compromissos e não havia qualquer luz no fim do túnel. Nem um tostão, nada. Me deu um desânimo — como poderia governar sem dinheiro? As fontes extra-orçamentárias que poderiam nos acudir, como leis de incentivo, empresas estatais, governo federal, não estavam interessadas nisso, eram os últimos meses dos governos estaduais e do federal, ano de eleição. O único ponto factível do programa era a elaboração, no papel, de uma política pública audiovisual para o Rio de Janeiro. Comecei a trabalhar nisso, muitas reuniões com os sindicatos e as associações de classe, com os produtores, com distribuidores e exibidores, a maioria deles concentrada no Rio. Fui me dando conta que uma política audiovisual para o Rio, para uma unidade da federação, só teria sucesso se estivesse acoplada a uma política nacional. Uma unidade da federação dificilmente, quase impossivelmente, poderia erguer sozinha um programa de industrialização cinematográfica sem parcerias substantivas com a União e submetida a uma legislação federal sobre o tema defasada e protetora do produto importado. Pedi ao PT que me indicasse um grupo de petistas ligados ao cinema e à televisão para trocarmos idéias, uma assessoria que se fazia necessária naquele momento. Nos reunimos várias vezes, no grupo estavam Paulo Thiago, Marisa Leão, Leopoldo Nunes, Antonio Pitanga, Hugo Carvana e o pessoal da área de cultura do partido, Hamilton Pereira, Sérgio Mamberti, Nilson Rodrigues e o próprio secretário Antonio Grassi. Expus a minha teoria, disse que não valeria a pena trabalhar apenas com o Rio, que tínhamos de pensar em uma política para Lula, que avançava para a vitória, a onda vermelha já varrendo o Brasil. Boa parte das pessoas daquele grupo tinha acabado de redigir o programa de governo para a cultura, o documento A Imaginação a Serviço do Brasil, onde o audiovisual recebia um tratamento muito genérico e tímido, no capítulo Cultura e Comunicação. Ali estavam também os candidatos mais prováveis ao Ministério da Cultura, falava-se abertamente que o ministro seria o poeta Hamilton Pereira ou o ator Mamberti ou o ator Grassi. Propus a feitura de um programa de governo específico e diferenciado para o audiovisual, houve alguma resistência, alguns achavam que não haveria tempo, que era melhor fazer isso com calma, depois do governo empossado. Mas a idéia foi aprovada, o programa deveria estar pronto antes da posse, e me encarregaram de organizar o documento. Minha proposta foi fazer um seminário intensivo com todos os segmentos do setor e, com eles, construir uma arquitetura programática, factível e desenvolvimentista. O PT concordou em patrocinar o seminário. Política Pública O tempo realmente era curto. Estava marcado para o dia 21 de outubro, uma semana antes da votação decisiva do segundo turno, um encontro de Lula com intelectuais, artistas e trabalhadores da cultura no Canecão, no Rio, onde seria anunciado o programa de governo para a cultura, e não podíamos perder a oportunidade de chamar a atenção para a importância diferenciada do audiovisual, para sinalizar que estava a caminho uma proposta de política pública para a atividade. Conversei com Nelson Pereira dos Santos sobre essa urgência e decidimos fazer, nós dois, um texto curto e incisivo, uma síntese articulada, organizada, do pensamento convergente da maioria dos segmentos do setor sobre princípios e práticas que deveriam ser adotados pelo Estado brasileiro. Esse pensamento estava expresso nas conclusões do 3º e do 4º Congresso Brasileiro de Cinema, encabeçados por Gustavo Dahl, realizados em 2000 e 2001, conclusões aprovadas por mais de meia centena de entidades. Nelson leu o texto naquele flamejante encontro do Canecão e aconteceu o que os trabalhadores audiovisuais queriam: o tema ganhou evidência e urgência e os preparativos para o Seminário Nacional do Audiovisual foram acelerados em todo o País. Esse texto, o Documento Nelson Pereira dos Santos/Orlando Senna, teve ampla divulgação no setor, foi referendado pelo Congresso Brasileiro de Cinema e serviu de guia para o seminário que aconteceu logo depois. O documento enfatizava alguns princípios: as indústrias culturais não podem estar sujeitas às mesmas regras comerciais aplicadas aos demais produtos industrializados porque agregam valores que não estão atrelados aos aspectos econômicos, às leis do mercado, mas sim e fundamentalmente ao respeito à liberdade de circulação da cultura; os produtos da indústria audiovisual possuem um valor distinto das demais mercadorias comercializadas no mercado internacional: o valor da riqueza imaterial, da identidade nacional, da cidadania e da soberania; as maiores atividades econômicas do século XXI estarão relacionadas às indústrias culturais e à comunicação e isto significa que o país que não desenvolver e não fomentar sua expressão cultural estará condenado a um papel secundário na economia global; garantia do direito de todo cidadão, brasileiro ou estrangeiro, ter acesso à pluralidade audiovisual que existe no mundo; o conceito e a prática da diversidade cultural é o corolário do princípio da liberdade de expressão, sem a qual não podemos exercer plenamente o exercício da cidadania. E sugeria ações para um programa de governo: elevar a atividade audiovisual à categoria de tema estratégico nacional; instalar plenamente a Agência Nacional de Cinema-Ancine; ampliar significativamente a participação do Ministério da Cultura no fomento à atividade; garantir o acesso da produção audiovisual brasileira independente (cinema e TV) à programação das emissoras de televisão; instituir a produção televisiva regional; reformular a legislação; desenvolver uma política externa sólida, incluindo ações de aproximação com países de processos e princípios similares visando à internacionalização da produção brasileira e reforçando a defesa dos interesses comuns. Lula foi eleito no dia 27 de outubro e o Seminário Nacional do Audiovisual aconteceu nos dias 3 e 4 de dezembro, na Biblioteca Pública Nacional, no Rio de Janeiro, sob os auspícios da Equipe de Transição do PT. Compareceram cerca de 150 pessoas de todo o País, representantes de todas as entidades do setor e convidados de áreas relacionadas com a atividade, como ciência e tecnologia, diplomacia, educação, exportação e importação. Foram dois dias e duas noites de trabalho intenso, a partir da massa crítica construída no Congresso Brasileiro de Cinema, no Grupo Executivo da Indústria Audiovisual-Gedic (do governo anterior, de onde saiu a Ancine) e na precisão da pauta e dos expositores, estabelecida nas muitas reuniões que tive com as lideranças setoriais durante todo o mês de novembro. As exposições, debates e conclusões desenvolveramse em cinco mesas, em cinco blocos temáticos: Televisão, Ancine, Cinema Cultural, Legislação, Política Externa. Tudo o que foi dito foi gravado e digitalizado e nos dias seguintes uma equipe entrou em ação para apurar o material (apurar no sentido garimpeiro, buscar a essência) e organizar o documento final, uma trabalheira, como bem se lembram Cláudio MacDowell, Nelson Hoineff, Vera Zaverucha, Jom Tob Azulay e os outros que participaram dessa equipe. A redação final ficou sob minha responsabilidade, como coordenador do seminário. O documento foi entregue à Coordenação do Programa de Governo e à Equipe de Transição e levado em mãos para Lula, uns dias antes da posse, por Antonio Grassi e Márcio Meira. Esse relatório do seminário apresenta cada um dos cinco temas com dois itens, uma exposição da situação e propostas, e uma lista de providências a serem tomadas nos primeiros cem dias de governo. Os pontos abordados no Documento Nelson Pereira dos Santos/Orlando Senna foram referendados, outros aspectos vieram à tona e o espectro do pensamento convergente ficou claro, bem definido: política pública abrangente (todos os segmentos e aspectos audiovisuais), marco regulatório adequado ao novo cenário nacional e mundial da atividade, ampliação da Ancine para uma Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual-Ancinav, planejamento estratégico industrial, enlace cinema-televisão, criação de uma rede pública de TV de alta qualidade (lastreada em cerca de mil canais culturais, educativos, estatais, legislativos, universitários e comunitários existentes no País), descentralização e democratização dos recursos e ações federais, resgate e acessibilidade do patrimônio audiovisual. Ali estava delineada uma política pública necessariamente avançada para o audiovisual brasileiro, um programa que só poderia ser implementado por um governo corajoso. A Dança do Poder Considerei a minha tarefa cumprida, o governo de Benedita no Rio de Janeiro acabou e relaxei por uns dias. Só por uns dias, pois fui convocado para uma reunião com o pessoal da área cultural do PT e da equipe de transição, Hamilton Pereira, Antonio Grassi, Sérgio Mamberti e outros, onde fui convidado para assumir a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. O argumento é que eu tinha coordenado a elaboração do programa de governo para a área e estava apto para concretizá-lo, tinha o apoio do PT e do setor. Era um convite beirando a oficialidade, já que, era o que se pensava, um desses três citados seria o Ministro da Cultura de Lula. Pedi tempo para conversar com o setor e o apoio era real, recebi manifestações nesse sentido do Congresso Brasileiro de Cinema, de muitas entidades em separado e de meus colegas cineastas. Na verdade não era um apoio, o assunto me foi apresentado pelas entidades como uma exigência, tinha de ser eu, havia um consenso e meu nome era o preferido do PT, era uma confluência que o cinema brasileiro não podia desaproveitar. Aí começou aquela história da demora de Lula em escolher seu Ministro da Cultura, apareceram rumores que o ministro não seria do PT, os candidatos petistas ao cargo começaram a se mexer, o assunto ficou nebuloso e decidi me afastar do âmbito nervoso onde esses acontecimentos estavam reverberando. Fiz uma viagem a Havana para uma reunião importante da Fundação do Novo Cinema Latino-americano e alguns compromissos no festival de cinema e, quando voltei, a situação era outra, Lula tinha escolhido Gilberto Gil. Quando soube que o ministro seria o Gil, achei que aquela história da Secretaria do Audiovisual não ia acontecer, era uma coisa do PT, e sinceramente me senti aliviado, realmente tinha cumprido meu compromisso e estava bom assim, ainda alimentava o plano de ir curtir e escrever em Lençóis. Mas começa a chover telefonema. Os petistas têm uma reunião com Gil e me informam que apresentaram meu nome para o Audiovisual e isso era certo. O Luis Carlos Barreto liga para dizer que o setor continua indicando o meu nome, e agora mais ainda, com Gil é muito melhor. Todo mundo telefona, é uma oportunidade histórica, você não pode se negar a isso e coisa e tal. E eu digo para mim mesmo: está bem, é uma aventura interessante, é fazer uma coisa que ainda não foi feita, é o tipo de empreitada que me seduz, Lençóis pode esperar. Todo mundo telefona menos o meu amigo Gil, o que começa a ficar estranho, e ainda mais quando jornalistas começam a me procurar, eu digo que não recebi convite e eles se surpreendem: mas o Gil disse que é você. O Carlos Diegues telefona, estivera com Gil, ele quer saber se você aceita. Uns dias nessa situação kafkiana, toureando jornalista, e, enfim, o Gil telefona, rindo, meti você em uma situação engraçada, desculpe, é que tinha de resolver umas coisas antes. No outro dia me reuni com ele durante umas duas horas, em Brasília. Apresentei o documento do Seminário Nacional do Audiovisual como plano de ação, ele já tinha lido e aprovado, e a conversa girou em como pôr em prática aquela quantidade de providências, quais as estratégias a serem adotadas, quais as sustentações políticas para ações públicas tão inéditas, que dificuldades encontraríamos no caminho. Ele deixou bem claro que estava ali para mudar radicalmente a qualidade da relação do Estado com a Cultura, nas dimensões do simbólico, do econômico e da cidadania, e para dotar o ministério de capacidade operacional no que se refere às indústrias culturais. E disse que eu devia entrar em ação imediatamente porque o tempo voa. No fim da reunião ele pegou um jornal, mostrou e disse: estou vendo aqui que você é cota do PT, é cota do setor e de não sei mais quem. Se lhe perguntarem diga a pura verdade, que você é cota de Gilberto Gil. Fazendo o Novo Novamente Sou filho de Iemanjá, cuja característica mais notável é cuidar de filho dos outros, seu nome significa isso em iorubá. Mas tenho uma admiração especial por Ogum, orixá abridor de caminhos, descortinador de paisagens virgens, enfrentador de surpresas e armadilhas, o desafiador. O que me move é o desafio, o que me empurrou para a condição de servidor público incidental foi mais uma aposta comigo mesmo de que seria possível implementar uma política inovadora e impelida para o futuro para o audiovisual brasileiro, consciente da enorme importância desse tema, dessa atividade, para a saúde mental e emocional da população e para sua economia, para seu bolso. E o desafio era mesmo grande, com o Ministério da Cultura sem lastro para segurar o projeto (quase um ano de reconstrução do ministério, reconstrução conceitual e operacional), com a defasagem brasileira no que se refere à legislação audiovisual, com um mercado audiovisual altamente concentrado, eivado de distorções. O primeiro movimento, claro, foi conformar uma equipe capaz de enfrentar a pedreira e pensei imediatamente nos jovens que tinha conhecido nas escolas de cinema, em ex-alunos meus, os mais capazes deles para a tarefa. O primeiro a ser captado, na verdade já estava porque vínhamos batalhando juntos desde o governo da Benedita no Rio, foi Leopoldo Nunes, na época presidente da Associação Brasileira de Documentaristas-ABD, um dos organizadores dos Congressos Brasileiros de Cinema com Gustavo Dahl, uma revelação de liderança, oriundo da Escola de Comunicações e Artes-ECA da Universidade de São Paulo e de San Antonio de los Baños. Em seguida aportou Manoel Rangel, também ECA e com uma passagem pelo Dragão do Mar. Os dois me ajudaram a selecionar mais gente da mesma estirpe, que foi chegando pouco a pouco não apenas para a Secretaria do Audiovisual mas também para a assessoria do ministro e da Secretaria Executiva do Ministério. Nesse movimento confluíram para o governo jovens de alto rendimento como Paulo Alcoforado (Dragão do Mar), Alfredo Manevy (ECA e Dragão do Mar), Mário Borgneth (San Antonio de los Baños) e Mário Diamante e Sérgio Sá Leitão e Mauricio Hirata e outros. Uma turma da pesada, vocações políticas e de gestão pública com formação e treinamento audiovisual. Me cerquei de gente altamente capaz e que conhecia, importei do Ceará a Bete Jaguaribe, uma das molas-mestras do Dragão do Mar. Foram esses preciosos recursos humanos que me possibilitaram materializar boa parte do complexo programa de governo que transportei do Seminário Nacional do Audiovisual para a responsabilidade do Estado. Essa gente e a cobertura e cumplicidade a toda prova de Gil e do seu secretário executivo, o combativo Juca Ferreira. E, claro, a atenção especial de Lula para o assunto. Aprendi em muitos anos de observação e de outros tantos militando na política cultural latino-americana a verdade muito simples de que a questão audioviosual de todo e qualquer país, mas principalmente a dos países emergentes, só se encaminhará para soluções favoráveis às sociedades nacionais se essa for a vontade do máximo poder político do país. Vontade, coragem e cacife, já que são grandes e poderosos os interesses econômicos internacionais (econômicos e psicosociais) que envolvem a questão. E tocamos o barco e a partir daí a história é pública: a relação do Estado com o audiovisual mudou radicalmente, a atividade ganhou importância estratégica, o tratamento abrangente foi adotado, projetos de caráter industrializante e de caráter cultural de grande alcance estão sendo desenvolvidos, a confluência dessas duas naturezas da atividade deixou de ser um problema e passou a gerar energia criativa e mercadológica, os primeiros movimentos substantivos de aproximação cinema-TV foram feitos, a produção e a presença no mercado interno de filmes nacionais cresceram mais de 100%, a Ancine foi plenamente instalada, os recursos e as ações federais foram descentralizados e democratizados, uma política de resgate e acessibilidade do patrimônio audiovisual foi posta em prática, a política externa foi substancialmente reformatada no sentido de maior visibilidade artística e comercial dos produtos audiovisuais brasileiros, uma TV pública nacional está sendo instalada. A idéia é criar condições para que, em um prazo não muito longo, 60% de todo o conteúdo audiovisual comercializado no Brasil seja brasileiro e os outros 40% sejam compartilhados por muitos países, em favor da diversidade cultural. Um movimento ascendente que inclui, evidentemente, a mão-dupla da diversidade cultural: uma presença substantiva dos nossos conteúdos nos outros países, não só telenovelas mas também outros filões televisivos, filmes, animações, videogames. Não só por necessidade simbólicocultural-econômica da nossa sociedade, que essa vem de muito tempo, mas pela oportunidade aberta pelas novas tecnologias da comunicação, pela possibilidade que os países emergentes têm de usar essa nova era tecnológica a nosso favor. Essa estratégia é possível e a oportunidade é esse tempo agora de implantação das novas tecnologias, esse rito de passagem que estamos vivendo. Tipo é agora ou nunca, it’s now or never, ou perderemos a batalha midiática por mais um século ou sei lá. É essa batalha, por maiores parcelas de poder planetário e pela qualidade de vida em cada país, que já está sendo travada e se estenderá possivelmente por muitas décadas. É nesse cenário, consciente de suas dimensões históricas, que o governo Lula trabalha a questão audiovisual, ponta-de-lança da Era do Conhecimento em que estamos entrando, a era da informação e da sedução hipermassificada, em que o saber, o simbólico e o entretenimento tornam-se os principais ativos da economia. O ponto crítico e crucial dessa questão, como todos sabem, é o monopólio, é o cinema hegemônico de Hollywood, é o audiovisual da superpotência ocupando entre 80% e 90% de nossas telas, mentes e corações. É o mais penetrante e devastador tipo de colonização porque o conquistado passa a amar o conquistador, quer ser como ele, se despreza. O Brasil, além de estar invadido pelo audiovisual hegemônico dos Estados Unidos, como quase todo mundo (as exceções são Índia, China, Cuba e alguns países islâmicos), tem a particularidade de um monopólio interno, que é a Rede Globo. Na verdade um semimonopólio, já que divide ao meio a audiência nacional com as outras redes, mas com poder político e comportamento de monopólio. Alguns patriotas maniqueístas acham que o monopólio externo é ruim e o interno é bom, porque é brasileiro, mas é açambarcamento do mesmo jeito. Os outros pontos críticos são resultantes dessa situação de duplo açambarcamento, como a questão da legislação sobre a atividade, escandalosamente defasada, do tempo do onça como se diz na minha terra. Sem um marco regulatório adequado aos novos tempos, a política pública que pusemos em marcha e que está em curso jamais alcançará plenamente suas metas. Pode avançar em direção a elas, como se avançou no primeiro governo Lula, mas não colocará o Brasil entre os maiores produtores e exportadores audiovisuais, apesar da nossa potencialidade cultural e técnica para isso. Por isso lançamos a proposta de uma agência reguladora do audiovisual, correspondendo à demanda de ampliação da Ancine, da agência de cinema, para um escopo abrangente. A proposta que ficou conhecida como Ancinav (ou seja, Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual). A intenção era discutir ampla e minuciosamente uma minuta dessa proposta com o governo, com o setor e com a sociedade e chegar a um nível de entendimento, de pacto, para dotar o País de uma legislação adequada, moderna. A discussão aconteceu em parte, foi desvirtuada pela força das duas hegemonias, a idéia foi demonizada pelo poder midiático delas, aquela polêmica nacional que todos nos lembramos muito bem. Os poderes hegemônicos se nutrem da fragilidade das leis e do não exercício dos poderes do Estado (planejar, regulamentar, fiscalizar e administrar), e por isso reagiram com todas suas forças à idéia de um marco regulatório audiovisual no Brasil, esse mercadão. Algumas pessoas, inclusive do governo, acham que a Operação Ancinav foi precipitada, careceu de preparação política e de busca antecipada de consensos no setor e que por isso teria fracassado. Não penso assim, e muita gente também não (contesto, protesto e detesto como dizia o velho garimpeiro Pocino, meu amigo). A escandalosa polêmica da Ancinav revelou a dimensão e a gravidade da questão audiovisual para a sociedade brasileira, que as ignorava porque isso sempre tinha sido assunto de gabinete, de portas fechadas, de decisões dos grupos mais poderosos da atividade impostas a governos ignorantes. A questão foi posta a nu diante da Nação e do governo, que se assustou muito. O resultado prático foi Lula nomear um Grupo de Trabalho Interministerial para elaborar um anteprojeto de uma Lei de Comunicação Eletrônica de Massas, sobre a organização e exploração dos serviços de comunicação social eletrônica, que forçosamente será acionada em algum momento, principalmente por causa da TV digital, que está em processo de implantação. Sem regras claras, estáveis e adequadas às novas tecnologias, a instalação e o desenvolvimento da TV digital no Brasil pode ser um desastre de grandes proporções, uma terra de ninguém, uma disputa feroz e predatória por audiência, por conteúdo e por concessões. Ou seja, o tema está em processo. Sabíamos, o Gil, o Juca, minha turma e eu, que quatro anos não eram bastante para o tamanho do nosso programa de governo para o audiovisual, inclusive porque o objetivo é alçá-lo a um programa de Estado, ou seja, com princípios imunes à troca de governos. E também que a virtude da paciência é parte importante do jogo, tão importante como o raciocínio e a agilidade. A questão regulatória, por exemplo, exige muita paciência. Mas paciência sem nunca deixar de avançar, mesmo fazendo dança de índio, dois passos para trás e três para a frente (Glauber gostava muito dessa dança, um dia fez com que Geraldo Sarno e eu dançássemos dois pra trás-três pra frente, com ele, diante de seu psicanalista Eduardo Mascarenhas; ele queria que dançássemos nus, mas Geraldo não 380 topou e foi com roupa mesmo). Foi para completar ou plantar algumas ações fundamentais do projeto, deixar alicerces, que continuei por mais um tempo à frente da política audiovisual do governo, nesse segundo mandato de Lula — e pela mesma classe de motivo Gilberto Gil continuou por mais um tempo como ministro, para solidificar a inédita, histórica e revolucionária dimensão que ele imprimiu à relação do Estado com a Cultura (lá no Colégio Marista, naquela Bahia que hoje tem mais textura de sonho do que de memória, o professor Agenor de Almeida não cansava de dizer que aquele menino Gil tinha muito futuro, vai fazer História). Também como uma ação complementar, ao me afastar da Secretaria do Audiovisual, trabalhei oito meses como diretorgeral da Empresa Brasil de Comunicação, EBC, operadora da TV Brasil e de uma rede pública de emissoras de TV e rádio, resultado da política audiovisual do MinC. Essa passagem por Brasília está encerrada e estou satisfeito com o trabalho feito e espero que a opinião pública concorde comigo e estarei agradecido a Oxumaré, deus da beleza e da arte. Um dos aspectos importantes do trabalho político dessa passagem, eu acho e muita gente também, é a ascensão de uma nova geração ao centro de decisões da política audiovisual, o que não acontecia há 40 anos. A troca de guarda, como definiu Gustavo Dahl no dia da posse de Leopoldo Nunes como diretor e Manoel Rangel como presidente da Ancine. Já era hora. A rapaziada talentosa que entrou com Gil e comigo no Ministério da Cultura, chamados na intimidade ministerial de os tenentes, estão assumindo as rédeas e, como os conheço bem, digo sem temor que o assunto ficará em boas mãos. Romances na Madrugada Lancei um romance, Um Gosto de Eternidade, enquanto era Secretário do Audiovisual. Meus amigos se surpreenderam. Como você tem tempo e cabeça para escrever um livro de 500 páginas com a trabalheira no governo? O tempo mental, o espaço interior, é muito amplo e pode atuar em várias direções, o problema foi o tempo físico. Escrevi nas madrugadas e nos domingos e feriados, justamente porque precisava diversificar minha atenção, minha concentração. O que se chamava antigamente higiene mental, sem qualquer ofensa ao serviço público. A participação no governo me trouxe vários impedimentos, como Secretário do Audiovisual não podia fazer roteiros ou filmar e ainda bem que podia escrever. Impedimentos que se estendenderam a outras pessoas, como a 382 Conceição, que iniciou a produção de seu filme Brilhante em fins de 2001, em 2002 fui para o governo do Rio e depois para o governo federal e ela não podia fazer o que todo cineasta brasileiro faz, que é usar dinheiro público para produzir seus filmes. Dizem até que podia, mas achamos que não devia. Com o filme já iniciado o jeito foi tocar com recursos próprios, todas as economias dela foram para o espaço, e só terminou porque a Riofilme ficou com a distribuição e fez um adiantamento. Ainda bem que o filme deu certo. O Cineclube Orlando Senna, de Lençóis, ganhou um concurso público federal, foi um dos 100 escolhidos em um edital do programa Pontos de Difusão Digital, e tive de consultar a Comissão de Ética, os documentos do cineclube foram checados. Tudo bem, tudo certo, não faço parte do cineclube, não sou da diretoria, o nome é apenas uma homenagem a um cineasta da terra, e não participei na comissão de seleção do edital. Mas quase que o cineclube é prejudicado porque tem meu nome lá. Mas voltando ao assunto, escrever esse livro foi muito saudável para meu equilíbrio mental e emocional, inclusive me deu tranqüilidade para enfrentar as tensões e a vibração da vida oficial. Recentemente escrevi outro, espero que seja publicado em 2009. Um Gosto de Eternidade é uma história que se apóia no espaço para existir, na geografia da América Latina, nas andanças de um homem e de uma mulher apaixonados, um romance-de-estrada. O que acabo de escrever é um romance que se sustenta no tempo: tudo acontece em um só lugar, com o tempo passando sobre ele. É o século XX cavalgando sobre Lençóis. Vetores Humanos Inteligência e felicidade têm a mesma textura, a mesma consistência temporal. Não são contínuas, ininterruptas, ninguém é feliz ou inteligente o tempo todo. São intermitentes, são momentos, elas vêm e somem, fulguram e apagam durante a vida toda, tanto na vida dos que têm muita felicidade ou muita inteligência como na vida dos que têm pouco de uma ou de outra. Tive a ventura de conviver com algumas das maiores inteligências do século XX e testemunhei um montão de burrices desses luminares. Todo mundo sabe, e muita gente se espanta com isso, dos surtos de extrema alegria de pessoas absolutamente deserdadas de tudo. Minha relação consciente com esses dois vetores humanos fundamentais vem de muito cedo, desde as conversas com os velhos garimpeiros e as leituras vorazes da adolescência. E também a partir da diferença, dos perfis opostos das minhas duas avós. Não dou muita atenção à inteligência, cuido muito pouco dela, nunca fiz exercícios para treinála ou desenvolvê-la, essas coisas. Acho que minha 384 curiosidade persistente e insaciável dá conta desse treinamento, sem que minha vontade se envolva nisso. Com a felicidade é diferente: é um exercício diário no sentido de provocar suas manifestações, seus momentos de esplendor vital, de estar sempre atento para o instante em que ela vai me escolher, não perder a chance, como o garimpeiro sempre preparado para a hora mágica do Achado. Sorte no Amor Fui criado no mato, minha infância foi aquele mundo de grande beleza natural das serras, selvagem, nadando em rio, cavalgando em um pônei pelos vales, e onde os costumes sociais ainda estavam passando do século XIX para o século XX. Como todo menino lá da montanha, desde cedo tive muita proximidade com o erotismo da natureza, principalmente o da natureza animal (digo principalmente porque a vegetal e a mineral também se faziam sentir). Antes de qualquer manifestação consciente de desejo erótico, o sexo dos animais me impressionava, era o acontecimento mais interessante e perturbador. No início da adolescência, espiar mulheres nuas nos rios era programa preferencial, perdendo apenas para espiar gente transando no mato, como era e ainda é costume por lá. Às vezes era combinado, os rapazes levavam prostitutas para o mato e nos avisava. Aos 12 anos eu também já transava, 385 a oferta na fazenda Lagoa e em Lençóis não era pequena. E a coisa andou um tempo nesse tom, a excitação carnal no centro da vida. Quando tinha dez anos de idade aconteceu um elipse, uma interrupção nessa carnalidade, a minha memória desse episódio tem a atmosfera de um conto de fadas. Fui tomado por um sentimento diferente e avassalador, desconhecido: me encantei com uma menina da minha idade, fiquei concentrado nela, obcecado, sonhando com ela toda noite. Não foi um namoro, nunca nos tocamos, apenas nos falamos timidamente uma ou duas vezes, uma beatitude platônica, pura espiritualidade. Sua imagem é indelével na minha lembrança, morena, cabelos negros, levemente estrábica, quieta, misteriosa. Chamava-se Nilza, era de fora, estava passando uns dias na casa de uma das atrizes do grupo de teatro da minha mãe, que a levava para os ensaios. Um dia a menina sumiu, nunca mais soube dela. Vivendo e sentindo, fui aprendendo a relação mágica dessas duas vibrações naturais, que se manifestam independentes, uma ou outra, mas que se divinizam quando se revelam interdependentes, confundidas, atordoantes. Um atordoamento definitivo aconteceu comigo mais de uma década depois dessas descobertas infanto-juvenís: Conceição, outra menina do interior, do sertão. Uma resplandecência, uma 386 revelação das dimensões abismais, galáticas, infinitas do vero amore, a grandeza do amor profundo. Uma explosão no âmago do ser, um big-bang na alma. Nos encontramos, nos grudamos, nos desencontramos, quase enlouquecemos procurando um pelo outro, nos reencontramos e nada mais podia nos impedir de seguir juntos vida afora. A gente soube desde o primeiro olhar que era para sempre, não podia deixar de ser, não tinha jeito. Conceição é nômade desde quando nasceu, seu pai era construtor de açudes e estradas no sertão, trabalhava para o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, e a família se mudou inúmeras vezes, percorrendo todo o agreste da Bahia. Comigo continuou nômade, topou todas as viagens, físicas e espirituais, e vivemos juntos as aventuras mais loucas, de striptease em rodagigante de parque público (fizemos sim, nos tempos doidos) a missões de guerra na África. É a pessoa mais linda da humanidade e a minha sorte grande, meu bambúrrio (lembre-se que na religião da Chapada Diamantina, no jarê, a Sorte é uma entidade e nós, montanheses, a cultuamos). Se eu não tivesse a Conceição ao lado, e dentro de mim, não teria conseguido fazer aquilo que eu fiz e que vou fazer no futuro, não teria sido quem sou. Esse amor é minha plenitude, é o milagre que aconteceu na minha vida. Cronologia Orlando de Salles Senna Orlando de Salles Senna (Afrânio Peixoto, Bahia -25/04/1940) filho de Esmeraldo Coelho Senna e Semírames de Almeida Salles Senna Formação universitária: Escola de Teatro/Universidade Federal da Bahia (1959/62) Faculdade de Direito/Universidade Federal da Bahia (1960/1964 – incompleto) Título: Doutor por Notório Saber outorgado pela Universidade Estadual do Norte Fluminense em 13/10/1994 Formação cinematográfica: Curso Arne Sucksdorff (bolsa Unesco/Itamaraty) – Rio,1962/63 1. Cinema 2.1 Direção e Roteiro 1998 • Cinema Novo (documentário, 10’, episódio do longa-metragem Enredando Sombras) 1987 • Brascuba (doc, 100’, co-direção Santiago Alvarez) 1984 • Ilé Aiyé Angola (doc, 15’) 1982 • Cultivar (doc, 30’) 1977 • Diamante Bruto (ficção, 90’) 1975 • Gitirana (fic, 90’, co-direção Jorge Bodanzky) 1974 • Iracema (fic, 90’, co-direção Jorge Bodanzky) 1967 • Bahia Bienal (doc, 10’) 1966 • Dois de Julho (doc, 10’) 1965 • Lenda Africana (doc, 10’) 1963 • Rebelião em Novo Sol (doc, 20’, co-direção Geraldo Sarno) 1962 • Imagem da Terra e do Povo (doc, 30’) 1961 • Festa (doc, 10’) 1.2. Argumento 1996 • Edipo Alcalde / Oedipus Major (fic, 90’, com Gabriel García Márquez e Stela Malagón, direção Jorge Alí Triana) 1.3. Roteiro 1998 391 • Iremos a Beirute (fic, 90’, com Marcus Moura e Marcos Sá, direção Marcus Moura) 1996 • O Lado Certo da Vida Errada (fic, 90’, com Uberto Molo, direção Octávio Bezerra) 1993 • A Dívida da Vida/Life Debt (doc, versão cine, 80’, com Octávio Bezerra, direção Octávio Bezerra) 1992 • Sabor a Mi (doc, 30’, com Wolney Oliveira, direção Wolney Oliveira) 1986 • Ópera do Malandro (fic, 100’, com Chico Buarque e Ruy Guerra, direção Ruy Guerra) 1981 • Abrigo Nuclear (fic, 90’, com Roberto Pires, direção Roberto Pires) 1979 • Iyá mi Agbá (doc, 40’, com Juana Elbein e Mestre Didi, direção Juana Elbein) 1977 • Coronel Delmiro Gouveia (fic, 90’, com Geraldo 392 Sarno, direção Geraldo Sarno) 1976 •O Rei da Noite (fic, 90’, direção Hector Babenco) 1968 • Caveira my Friend (fic, 90’, com Álvaro Guimarães, direção Álvaro Guimarães) 1.4. Produção 1992 • Sabor a Mi 1977 • Diamante Bruto 1968 • Caveira my Friend 1965 • Festas Populares (doc, 15’, direção Rex Schindler) 1961 • Festa 1.5. Prêmios mais importantes 1993 • A Dívida da Vida Margarida de Prata / Brasil Glauber Rocha (melhor filme), Jornada Cine 393 Bahia • OCIC, Festival Havana 1993 • Coral Documentário, Festival Havana • Golden Panda 92 – Wildscreen Festival – Inglaterra • Gold Apple 92 – National Film and Video Festival – Inglaterra • Bema 92 – British Environment and Media Awards – Inglaterra • Sabor a Mi Menção Especial do Júri, Festival Porto Rico 1992 Prêmio Especial do Júri, Festival Havana • Ópera do Malandro 1986 Prêmio Especial do Júri, Festival Havana • Ilé Ayié Angola Coral Documentário, Festival Havana 1985 Sol de Prata (melhor documentário), Rio Cine • Coronel Delmiro Gouveia 1979 Air France Golfinho de Ouro 1979 (Est.do Rio de Janeiro) Coral (melhor filme), Festival Havana 1978 Melhor Roteiro, Festival Brasília • Diamante Bruto • Iracema Interpretação (atriz), Festival Gramado 1980 Melhor Filme, Edição, Interpretação (atrizes), Festival Brasília Melhor Filme, Festival Figueira da Fox, Portugal Prix Jeune Cinéma, Cannes 1975 Melhor Filme, Festival Pesaro, Itália Encomio Taormina 1975, Italia Grimme Preis 1975, Alemanha Prix Georges Sadoul 1975, França 2. Televisão 2.1. Direção e Roteiro 1982 • Água Ipanema, série Cinema Rio, TV Educativa, Brasil 1980/81 • Programas Educativos para Globotec, Brasil 1978/79 • Reportagens para ARD, Alemanha 1974/75 • Reportagens para ZDF, Alemanha 2.2. Roteiro 1993 • A Dívida da Vida/Life Debt (doc, versão tv, 40’, direção Octávio Bezerra) 1987 • Cuba Libre (doc, 56’, direção Piero Mancini, Rede Bandeirantes) 1986 • Carne de Sol (minissérie, direção Dilma Loes, Rede Bandeirantes) 1975 396 • Programas Culturais para TV Educativa, Brasil 1963 • Educação para o Desenvolvimento (série, TV Tupi, Brasil) 3. Teatro 3.1. Texto e Direção 1981 • Ajaká (co-autoria Juana Elbein, Deóscoredes Maximiliano dos Santos) – Rio/Bahia 1980 • Xana – Rio/Bahia 1972 • Céus Nunca Dantes Navegados – Rio • Onde o Brasil Começa – Rio 1972/73 • Via Crucis, a Humanidade de Cristo – Rio 1970 • Oficio de Cantar / Fernando Lona, Maria Odete (musical) – São Paulo 1966 • Terra de Ninguém / Fernando Lona (musical) – Bahia 1965 • Borandá / Gilberto Gil (musical) – Bahia 3.2. Texto 1973 • Inconfidentes (direção Jofre Soares) – São Paulo 3.3. Direção 1982 • A Voz Humana, de Jean Cocteau – Curitiba 1973 • Natal Outra Vez, de Nelson Mariani – Rio 1972 • Natal na Praça, de Henri Ghéon – Rio • Cordel, vários autores – São Paulo 1971 / Rio 1970 • Os Anjos, de Arruda Castanho – São Paulo 1969 • Sonhadora, de Otto Schipper – Bahia • Companhia das Índias, de Nelson Araújo – Bahia 1968 398 • A Engrenagem, de Ariovaldo Matos – Bahia 1968/70 • O Desembestado, de Ariovaldo Matos – Bahia / São Paulo 1968 • A Mandrágora, de Maquiavel – Bahia • Jovem Poesia, vários autores – Bahia • O Gonzaga, de Castro Alves – Bahia 1967 • O Fardão, de Bráulio Pedroso – Bahia / tournée vários Estados • Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles – Bahia • Terror e Misérias do Terceiro Reich, de Bertolt Brecht – Bahia 1965 • Teatro de Cordel, vários autores (co-direção João Augusto, Othon Bastos, Péricles Luís, Haroldo Cardoso) – Bahia 3.4. Produção 1965 • Nova Bossa Velha & Velha Bossa Nova / Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé (musical, co-produção e direção Roberto Santana) – Bahia • Nós por Exemplo / Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé (musical, coprodução e direção Roberto Santana) – Bahia 1962 • Boca de Ouro, de Nélson Rodrigues (direção Álvaro Guimarães) – Bahia 4. Livros 1962 • Um Gosto de Eternidade – A Girafa Editora 1995 • Así de Simple (co-autoria Robert Redford, George Lucas, Stvan Szabo e outros) – Editorial Voluntad, Colômbia 1991 • Ajaká (co-autoria Juana Elbein, Mestre Didi) – Editora Secneb 1985 • Máquinas Eróticas – Editora Rocco 1984 • Ares Nunca Dantes Navegados – Editora Brasiliense 1979 • Coronel Delmiro Gouveia (co-autoria Geraldo Sarno) – Editora Codecri • Xana – Editora Codecri 1983 • Roteyros do Terceiro Mundo, de Glauber Rocha (editoração) – Editora Alhambra 5. Jornalismo 1986/87 • Correio Braziliense / Tribuna da Bahia – coluna semanal 1982/1983 • Correio Braziliense – artigos e reportagens especiais 1982 • Rádio Jornal do Brasil – editor e comentarista internacional • Folha de S. Paulo – crítico televisão 1982/83 • APIA-Agencia Periodistica de Información Alternativa – correspondente Brasil 1976/77 • Jornal do Brasil – artigos e reportagens espe-401 ciais, 1980/81 – repórter internacional 1972 • Última Hora, Rio – editor cultura, 1975 – repórter internacional, 1973/75 – editor e comentarista internacional • Correio da Manhã – redator e crítico teatro 1965 a 1969 • Jornal da Bahia – crítico cinema 1966/67 • IC Shopping News, semanário, Bahia – editorchefe 1965 • Equipe, semanário, Bahia – editor-chefe 1963/64 • Folha da Bahia, semanário – redator 1962 • Diário de Notícias, Bahia – editor cultura, 1963/64 – chefe de reportagem 1961 • Visão, revista semanal – correspondente sucursal Nordeste 1960/64 • Estado da Bahia – crítico cinema e teatro / sub-editor 1959 • Jornal da Bahia – repórter • Trabalhos publicados nas revistas Ângulos / Revista da Bahia / Porto de Todos os Santos / Pasquim / Crítica / Revista Vozes / Senhor / Transe / Cadernos do Terceiro Mundo / Singular & Plural / Filme e Cultura / Mérien / Revolución y Cultura / Trafic 6. Seminários mais importantes (até 2001) 2001 • La Escritura el en Cine de Ficción – Casa de América, Madri • Memória, Acervo e Produção Audiovisual – Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte • Seminario Distribución y Exhibición en América Latina – Festival Internacional de Cine para la Infancia y la Juventud, Mar del Plata 2000 • Audiovisual y Educación hacia el Siglo XXI – Amerigramas, Mar del Plata • Fórum Internacional do Direitos do Homem e Diversidade Humana – Soc. de Estudos da Cultura Negra do Brasil / Universidade Federal da Bahia, Salvador 1998 • A Estética do Sagrado – Soc. de Estudos da Cultura Negra do Brasil / Universidade Federal da Bahia, Salvador • Produção Cinematográfica na América Latina – Centro de Capacitación Cinematográfica, México / Filmes Amaranta, México 1996 • Audiovisual e Latinidade (curador/mediador) – Mostra Latino-americana do Rio de Janeiro / Centro Cultural Banco do Brasil • O Escritor e o Cinema como Lugar de Criação – VI Cine Ceará – Fortaleza 1995 • Um Olhar, Uma Luz (Cem Anos de Cinema) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Vitória da Conquista • Encuentro Iberoamericano por los 100 Años del Cine – Federación Latinoamericana de Facultades de Comunicación Social/Universidad de Lima • Coloquio de Cine (Cien Años de Cine) – Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Lima 1993 • El Guión en las Escuelas de Cine y Televisión - Federación de Escuelas de la Imagen y el Sonido de América Latina/Centre Calasanç – Barcelona • Conferencia Internacional de Estudos de Cinema – Days of Independent Film – Augsbourg, Alemanha 1992 • La Producción Audiovisual – Federación de Escuelas de la Imagen y el Sonido de América Latina/Escuela Internacional de Cine y Tv – San Antonio de los Baños, Cuba • Simpósio Internacional de Estudos sobre Jorge Amado – Universidade Federal da Bahia – Salvador 1990 • La Dramaturgia Cinematográfica en América Latina – Unesco/Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano – San Antonio de los Baños, Cuba • Cine y Literatura: el Oficio de Narrar – Universidad de Puerto Rico – San Juan de Puerto Rico • Vídeo Escola – Fundação Roberto Marinho – Rio • Dramaturgia de la Televisión – Instituto Cubano de Radio y Televisión – Havana 1989 • Proyectos Cinematográficos – Sundance Insti-405 tute/Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano – San Antonio de los Baños, Cuba 1986 • Importância do Roteiro para Cinema e Tv (EUA, Europa, América Latina) – Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro (FestRio) 1984 • Cinema e Amazônia – Universidade Federal do Pará – Belém do Pará 1982 • Luz & Ação (cinema e televisão) – Universidade Suam – Rio • Educação, Identidade e Pluricultura Nacional – Sociedade de Estudos da Cultura Negra do Brasil – Salvador, Bahia 1977/78 • Cinema Brasileiro – Universidades Federais de Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Paraná e Goiás – Maceió, Salvador, Fortaleza, Vitória, Curitiba e Goiânia 7. Docência Professor de Dramaturgia e Roteiro da Escuela Internacional de Cine y Tv, Cuba 1996/2000 • Professor de Dramaturgia do Centro de Capacitación Cinematográfica, México 1996/99 • Diretor do Centro de Estudos de Dramaturgia do Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria Audiovisual do Ceará 1991/94 • Diretor-Geral da Escuela Internacional de Cine y Tv, Cuba 1988/89 • Diretor Docente da Escuela Internacional de Cine y Tv, Cuba 1987 • Fundador da Escuela Internacional de Cine y Tv, Cuba 2000/2006 • Dramatic-Oficinas Orlando Senna de Dramaturgia Audiovisual – Lençóis, Bahia 2001 • Escuela Andina de Cinematografia/Fundación Ukamau – La Paz 1996 • Laboratório Sundance de Roteiros – Sundance Institute/Interunion/Riofilme – Búzios 1995 • Screenwriters Lab – Sundance Institute / Instituto Mexicano de Cinematografía – Cidade do México 1993/94 • Oficina Técnica de Roteiro/Projeto Luz Câmera Imaginação (Casa Amarela Eusélio Oliveira) – Universidade Federal do Ceará/Sec. de Cultura do Governo do Ceará – Fortaleza 1993 • Curso de Roteiro para Cinema e Televisão – Universidade Federal da Bahia/Jornada Latino-Americana de Cinema da Bahia – Salvador 1992 • Taller de Guión – Instituto para América Latina/ Crocevia – Lima • La Ficción en el Documental – Instituto para América Latina/Crocevia – Lima 1991 • Oficina Técnica de Roteiro – Tempo Glauber – Rio 1990 • Oficina Técnica de Roteiro – Olac – Rio • Oficina de Roteiro para Jornalistas de Tv (organizado pelos participantes) – Rio • Curso Básico de Vídeo – Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo 1989 • I Screenwriters Lab – Sundance Institute/Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano – Escuela Internacional de Cine y TV, San Antonio de los Baños, Cuba • Taller de Guión – Asociación de Cineastas del Peru – Lima • Taller Técnica de Guión – Centro de Estudios Avanzados de Puerto Rico y Caribe – San Juan de Porto Rico 1988 • El Guión en la Ficción y el Documental – Universidad de Panamá/TV Canal Once – Cidade de Panamá • Taller Experimental de Guión – Escuela Internacional de Cine y Tv – San Antonio de los Baños, Cuba 1982 • Oficina de Guião (roteiro) – Instituto Angolano de Cinema – Luanda 1981 • Curso de Linguagem Audiovisual – Olac – Rio 1978 • Curso de Argumento e Roteiro – Fundação Cultural da Bahia – Salvador 1971 • Cursos de Cinema do Conselho de Cultura do Estado de São Paulo 1968 • Cursos de Cinema Idort – Salvador, Bahia 1966 • Curso de Cinema (Extensão) – Faculdade de Sociologia da Bahia 8. Outras atividades • Membro do Conselho Superior e do Conselho Diretor da Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano, com sedes em Havana, Cidade do México e Mérida, Venezuela • Secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura do Brasil • Subsecretário de Audiovisual do Estado do Rio de Janeiro (2002) • Representante da Casa del Caribe (Santiago de Cuba) no Brasil – 1988/94 • Membro da Diretoria da Associação de Roteiristas Profissionais de Cinema do Estado do Rio de Janeiro – 1988/90 • Conselheiro da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD-Rio) – 1988/90 • Presidente da Comissão do Concurso de Projetos Cinematográficos Unicef – Lima, 1988 • Diretor Executivo da Fundação Teatro Castro Alves – Salvador, Bahia, 1967/68 • Assessor do Plano de Alfabetização MEC-Paulo Freire – 1963/64 • Secretário Geral do Festival de Cinema Brasileiro da Bahia – 1962 • Presidente da Associação de Críticos Cinematográficos da Bahia – 1961/62 • • Membro do Júri: Festival Internacional de Cine, Mar del Plata, 2001 • Festival de Brasília, 2001 • Festival de Cinema de Curitiba, 1998 • Festival de Cinema de Gramado, 1997 • Festival Nacional de Cinema e Vídeo do Ceará, Fortaleza, 1995 • Festival Naturama, Segovia, Espanha, 1993 • Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, Havana, 1988/1985/1984 • Festival de Cinema de Brasília, 1986 • Rio Cine Festival, 1986 • Jornada Latino-Americana de Cinema da Bahia, 1985 Filmografia (ordem cronológica) 1961 Festa (Roteiro, Direção, Produção) Documentário, 10 minutos, 16mm, p/b 1962 Imagem da Terra e do Povo (Roteiro, Direção) Documentário, 30 minutos, 16mm, p/b Produção Glauber Rocha/TV Itapoan 1963 Rebelião em Novo Sol (Roteiro, Direção) Co-direção Geraldo Sarno Documentário/Ficção, 30 minutos, 16mm, p/b Produção Centro Popular de Cultura da Bahia 1965 Festas Populares (Produção) Documentário, 15 minutos, 35mm, cor Produção O.S./Departamento de Turismo da Bahia. Direção Rex Schindler Lenda Africana (Roteiro, Direção, Produção) Documentário, 10 minutos, 35mm, cor, 1965 Produção O.S./Departamento de Turismo da Bahia 1966 Dois de Julho (Roteiro, Direção, Produção) Documentário, 10 minutos, 35mm, cor Produção O.S./Departamento de Turismo da Bahia 1967 Bahia Bienal (Roteiro, Direção, Produção) Documentário, 10 minutos, 35mm, cor Produção O.S./Departamento de Turismo da Bahia 1968 Caveira my Friend (Roteiro, Produção) Co-roteirista: Álvaro Guimarães Ficção, 90 minutos, 35mm, p/b Direção Álvaro Guimarães. Elenco: Sonia Dias, Conceição Senna, Nonato Freire, Gessy Gesse, Caveirinha 1974 Iracema (Roteiro, Direção) Co-direção Jorge Bodanzky Ficção, 90 minutos, 16mm ampliado para 35mm, cor Co-produção Brasil / Alemanha. Produção Stop Film / ZDF Elenco: Edna de Cássia, Paulo César Pereio, Conceição Senna, Rose Rodrigues Prêmios: 1980 Melhor Filme, Edição, Interpretação (atrizes), Festival Brasília 1976 Melhor Filme, Festival Figueira da Fox, Portugal Prix Jeune Cinéma, Cannes 1975 Melhor Filme, Festival Pesaro, Itália, Encomio Taormina, Itália Grimme Preis, Alemanha Prix Georges Sadoul, França 1975 Gitirana (Argumento, Roteiro, Direção) Co-direção Jorge Bodanzky Ficção, 90 minutos, 16mm, cor Co-produção Brasil / Alemanha. Produção Stop Film / ZDF Elenco: Conceição Senna e atores populares da Bahia Selecionado p/ Quinzena dos Realizadores, Cannes 1976 1976 O Rei da Noite (Roteiro) Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Produção e Direção Hector Babenco Elenco: Paulo José, Marília Pera, Vic Militello 1977 Coronel Delmiro Gouveia (Argumento, Roteiro) Co-roteirista: Geraldo Sarno Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Produção: Saruê Filmes/Embrafilme. Direção Geraldo Sarno Elenco: Rubens de Falco, Isabel Ribeiro, Sura Berditchevsky, José Dumont, Conceição Senna Prêmios: 1979 Air France Golfinho de Ouro (Estado do Rio de Janeiro) Coral (melhor filme), Festival Havana 1978 Melhor Roteiro, Festival Brasília 1977 Diamante Bruto (Roteiro, Direção, Produção) Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Produção O.S. / Pilar Filmes / Embrafilme Elenco: José Wilker, Gilda, Conceição Senna, Wilson Melo 1978 Prêmio de Interpretação (atriz), Festival Gramado 1979 Iyá mi Agbá (Roteiro) Co-roteiristas: Juana Elbein, Deoscóredes Maximiliano dos Santos Documentário, 40 minutos, 16mm, cor Produção Sociedade de Estudos Negros do Brasil-Secneb. Direção Juana Elbein dos Santos 1981 Abrigo Nuclear (Roteiro) Co-roteirista: Roberto Pires Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Produção Embrafilme. Direção Roberto Pires Elenco: Conceição Senna, Norma Benguell, Sasso Alano 1982 Cultivar (Roteiro, Direção) Documentário, 30 minutos, 35mm, cor Produção Nei Sroulevich/Embrapa 1982 Água Ipanema (Roteiro, Direção) Documentário, 10 minutos, Vídeo Produção TV Educativa Rio 1984 Ilé Aiyé Angola (Roteiro, Direção) Documentário, 15 minutos, 16mm, cor Produção Geraldo Sarno/Saruê Filmes Prêmios: 1986 Coral Documentário, Festival Havana 1985 Sol de Prata (melhor documentário), Rio Cine 1986 Ópera do Malandro (Roteiro) Co-roteiristas: Chico Buarque de Holanda, Ruy Guerra Ficção, 100 minutos, 35mm, cor Co-produção Brasil/França. Produção D. Karmintz. Direção Ruy Guerra Elenco: Edson Celulari, Cláudia Ohana, Elba Ramalho, Nei Latorraca • Prêmio Especial do Júri, Festival Havana Carne de Sol (Roteiro) Minissérie tv, 4 capítulos, Vídeo Produção Rede Bandeirantes. Direção Dilma Loes Elenco: Carlos Vereza, Dira Paes, Angela Leal, Jonas Bloch 1987 Cuba Libre (Roteiro) Documentário, 56 minutos, Vídeo Produção Rede Bandeirantes. Direção Piero Mancini Brascuba (Roteiro, Direção) Co-roteirista e co-direção Santiago Alvarez Documentário, 100 minutos, 35mm, cor Co-produção Brasil/Cuba. Produção Nei Sroulevich/Embrafime /Icaic 1992 Sabor a Mi (Roteiro, Produção) Co-roteirista Wolney Oliveira Documentário, 30 minutos, 16mm, cor Co-produção Brasil/Cuba/México/Argentina Produção O.S./Memorial da América Latina/Centro de Capacitación Cinematográfica. Direção Wolney Oliveira Prêmios: 1993 Menção Especial do Júri, Festival Porto Rico 1992 Prêmio Especial do Júri, Festival Havana 1993 A Dívida da Vida / Life Debt (Roteiro) Co-roteirista: Octávio Bezerra Documentário, versão cine 80 minutos, versão tv 40 minutos, 35mm, cor Produção BBC Londres. Direção Octávio Bezerra Prêmios: 1993 Margarida de Prata / Brasil Glauber Rocha (melhor filme), Jornada Cinema Bahia Ocic, Festival Havana Coral Documentário, Festival Havana Panda de Ouro 92 (“Oscar Verde”)- Wildscreen Festival – Inglaterra Bema 92 – British Environment and Media Awards – Inglaterra 1996 O Lado Certo da Vida Errada (Roteiro) Co-roteiristas: Gugu Olimecha, Uberto Molo Ficção, 90 minutos, 35mm, cor, Produção e Direção Octávio Bezerra. Elenco: Francisco Milani, Xuxa Lopes, Wilson Grey, Kátia d’Angelo Edipo Alcalde / Oedipus Major (Argumento) Co-argumentistas: Gabriel García Márquez, Stela Malagón Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Co-produção México/Colômbia/Espanha. Produção Jorge Sanchez/Amaranta Direção Jorge Ali Triana. Elenco: Jorge Perugorría, Angela Molina, Francisco Rabal 1997 Iremos a Beirute (Roteiro) Co-roteiristas: Marcus Moura, Marcus Sá Ficção, 90 minutos, 35mm, cor Produção Marcus Moura/Luz Produções Cinematográficas Direção Marcus Moura Elenco: Giovana Gold, Ilya São Paulo, Guilherme Karan, Conceição Senna 1998 Cinema Novo (Roteiro, Direção, Produção) Documentário, 10 minutos, 35mm, cor e p/b Integrante do longa-metragem Enredando Sombras (Entanglig Shadows), co-produção BrasilColômbia-Cuba-México-Porto Rico-Peru-Venezuela auspiciada pela Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano. São onze curtas-metragens de distintos países latino-americanos sobre o seu cinema, celebrando os cem anos desde o início desta atividade no continente. Referências Bibliográficas • O Homem com a Câmera, Carlos Alberto Mattos, Coleção Aplauso, Fundação Padre Anchieta, São Paulo, 2006 • Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda Editora Senac, São Paulo, 2000 • Mediating Two Worlds / Cinematic Encounters in the Americas, John King/Ana López/ Manuel Alvarado British Film Institute, London, 1993 • Dicionário de Cineastas Brasileiros, Luiz F.A. Miranda Art Editora Ltda, São Paulo, 1990 • • The Social Documentary in Latin America, Julianne Burton University of Pittsburgh Press, 1989 • Le Cinema Brésilien, Paulo Antonio Paranaguá Centre Georges Pompidou, Paris, 1987 • Cinema Dilacerado, José Carlos Avelar Editora Alhambra, Rio, 1986 • Brazilian Cinema, Randal Johnson e Robert Stam Associated University Presses Inc, New York, 1982 • Revolução do Cinema Novo, Glauber Rocha Editora Alhambra, Rio, 1981 • Les Cinémas d’Amerique Latine, Guy Hunebelle e Alonso Gumucio-Dagron Lherminier, Paris, 1981 • A História do Cinema Vista da Província, Walter da Silveira Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978 Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Hermes Leal 11 Garimpeiro 17 Me Ajude a Ver 55 Pré-Tropicália 131 Um Produtor em Pânico 163 Iracema 209 Cuba 279 TV dos Trabalhadores 357 Cronologia 389 Crédito das Fotografias Paula Gaitán 277 A presente obra conta com diversas fotos, parte de autoria identificada e, desta forma, devidamente creditada. Contudo, a despeito dos enormes esforços de pesquisa empreendidos, outra parte das fotografias ora disponibilizadas não é de autoria conhecida de seus organizadores, fazendo parte do acervo pessoal do biografado. Qualquer informação neste sentido será bem-vinda, por meio de contato com a editora desta obra (livros@imprensaoficial.com.br/ Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 / Demais localidades 0800 0123 401), para que a autoria das fotografias porventura identificadas seja devidamente creditada. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto Batismo de Sangue Roteiro de Helvécio Ratton e Dani Patarra Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe Bragança Chega de Saudade Roteiro de Luiz Bolognesi Cidade dos Homens Roteiro de Paulo Morelli e Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Claudio Yosida e Ricardo Elias Estômago Roteiro de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fim da Linha Roteiro de Gustavo Steinberg e Guilherme Werneck; Storyboard de Fabio Moon e Gabriel Bá Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Quanto Vale ou É por Quilo Roteiro de Eduardo Benaim, Newton Cannito e Sergio Bianchi Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Dança Rodrigo Pederneiras e o Grupo Corpo – Dança Universal Sérgio Rodrigo Reis Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, o Mistério Luiz Carlos Lisboa Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 438 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Leal, Hermes Orlando Senna: o homem da montanha / Hermes Leal – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. 438p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-655-6 1. Cinema – Diretores e produtores – Brasil - Biografia 2. Cinema – Brasil – História 3. Senna, Orlando, 1940 – Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.437 098 1 Índices para catálogo sistemático: 1. Cineastas brasileiros : Apreciação crítica 791.437 098 1 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria