Renato Borghi Borghi em Revista Renato Borghi Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas São Paulo, 2008 Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação A relação de São Paulo com as artes cênicas é muito antiga. Afinal, Anchieta, um dos fundadores da capital, além de ser sacerdote e de exercer os ofícios de professor, médico e sapateiro, era também dramaturgo. As 12 peças teatrais de sua autoria – que seguiam a forma dos autos medievais – foram escritas em português e também em tupi, pois tinham a finalidade de catequizar os indígenas e convertê-los ao cristianismo. Mesmo assim, a atividade teatral somente se desenvolveu em território paulista muito lentamente, em que pese o marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa no século 18, ter procurado estimular o teatro em todo o império luso, por considerá-lo muito importante para a educação e a formação das pessoas. O grande salto foi dado somente no século 20, com a criação, em 1948, do TBC – Teatro Brasileiro de Comédia, a primeira companhia profissional paulista. Em 1949, por sua vez, era inaugurada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que marcou época no cinema brasileiro, e, no ano seguinte, entrava no ar a primeira emissora de televisão do Brasil e da América Latina: a TV Tupi. Estava criado o ambiente propício para que o teatro, o cinema e a televisão prosperassem entre nós, ampliando o campo de trabalho para atores, dramaturgos, roteiristas, músicos e técnicos; multiplicando a cultura, a informação e o entretenimento para a população. A Coleção Aplauso reúne depoimentos de gente que ajudou a escrever essa história. E que continua a escrevê-la, no presente. Homens e mulheres que, contando a sua vida, narram também a trajetória de atividades da maior relevância para a cultura brasileira. Pessoas que, numa linguagem simples e direta, como que dialogando com os leitores, revelam a sua experiência, o seu talento, a sua criatividade. Daí, certamente, uma das razões do sucesso desta Coleção junto ao público. Daí, também, um dos motivos para o lançamento de uma edição especial, dirigida aos alunos da rede pública de ensino de São Paulo e encaminhada para 4 mil bibliotecas escolares, estimulando o gosto pela leitura para milhares de jovens, enriquecendo sua cultura e visão de mundo. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa a resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cine ma, teatro e televisão. Foram selecionados escri tores com largo currículo em jornalismo cultural , para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo re constituída de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros suces sivos estreita-se o contato en tre biógrafos e bio gra fados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se recons titui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor . Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e biografado se colocaram em reflexões que se estende ram sobre a formação intelectual e ideo lógica do artista, contextua li zada naquilo que caracteriza e situa também a história brasileira, no tempo e espaço da narrativa de cada biografado. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, portanto, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos extrapolam os simples relatos bio gráficos, explorando – quando o artista per-mite – seu universo íntimo e psicológico , revelando sua autodeterminação e quase nunca a casua lidade por ter se tornado artista – como se carregasse desde sempre, seus princípios, sua vocação, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. São livros que, além de atrair o grande público, inte ressarão igualmente a nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrinca do processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Desenvolveram-se te mas como a construção dos personagens inter pretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos perso nagens vividos pelos biografados. Foram exami nados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção e a opção por seu formato de bolso, a facili dade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza e o corpo de suas fontes, a icono grafia farta e o registro cronológico completo de cada biografado. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição, o entusiasmo e o empe nho de nossos artistas, diretores, dramaturgos e roteiris tas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sorti légios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de fil ma-gem, cenários, câmeras, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que nesse universo transi tam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Desde o início dos anos 90, divido e multiplico a cena do mundo com Renato Borghi. O ator é uma legião, uma praça pública, uma procissão, um cabaré. Cacilda Becker, Madame Morineau, Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes manifestaram sua presença a mim através de Borghi; presença concreta e indelével como tatuagem. Uma peça escrita pode se perpetuar por séculos; também podemos ler a respeito do trabalho de atores, diretores, grupos e seus métodos. Além disso, há muitos arquivos fotográficos e vídeos sobre teatro espalhados pela Internet. Mas há um tipo de memória que só se propaga pelo espan to da presença. Enquanto público, absorvemos nossos ícones; como atores, somos antenas que amplificam os sinais remotos desses mitos. Os sinais são olhares, gestos, malandragens, filosofias e uma sabedoria cotidiana dos bastidores. Este processo de transmissão é arcaico, exige um ser perante outro e o contato direto entre diferentes gerações. Quando concebi o roteiro de Borghi em Revista para o teatro em 2004 (com a inestimável colaboração de minha amiga Luah Guimarãez), tive o cuidado de manter a fala natural e improvisada do ator. Tratava-se de um espetáculo baseado na tradição oral dos camarins. Entrevistamos o Renato até extrairmos dele aproximadamente 6 horas de narrativa sobre suas experiências no palco, nas coxias, na platéia, nas estradas. Editamos o roteiro até que a montagem ficasse com 2 horas e 45 minutos. Alguns semanários culturais me pediram uma classificação de gênero para o que havíamos criado; a única expressão que me ocorreu foi documentário cênico. E, realmente, como eu havia imaginado, a presença de Borghi dando passagem às grandes presenças de sua vida teve enorme poder de imantação sobre o público. A improvável peça obteve êxito por todo o Brasil e desfrutou uma carreira longa diante das audiências mais variadas. Um dia, Renato me pediu: Vamos dar um tempo, não suporto mais me ouvir contando essa estória toda noite. Compreendi. Enquanto ainda estávamos em cartaz com Borghi em Revista, recebi o convite da Coleção Aplauso para transformar o roteiro teatral em livro. O es petáculo acontecia como um improviso pontuado por estações; temi que a transposição da linguagem falada para a escrita pudesse apagar a espontaneidade do relato. Foi, então, que percebi em mim o espanto da presença de Renato Borghi: as palavras dele eram minhas também; e, assim, como seus ancestrais se mantiveram vivos nele, a experiência dele passou a ser viva em mim. Portanto, o ritmo da fala, o timbre da voz, as esfregadas de olho tão características de Borghi devem estar impressas de alguma forma nestas páginas. Aproveito esta apresentação para fazer uma breve atualização do livro: em 2006, produzimos duas peças de Shakespeare (Timão de Atenas e Macbeth). Como em trabalhos anteriores, nos cercamos de uma horda de promíscuos desgarrados e adoráveis que deixaram suas presenças carimbadas em nossa carne. Em 2008, Renato Borghi completa 50 anos de teatro. Decidimos comemorar montando uma peça inédita de sua autoria: Cadela de Vison. Nela, um artista de teatro vaga com sua musa da Rádio Nacional (vivida por sua sobrinha, Luciana Borghi) pelas coxias de um palco abandonado. Não poderia haver contraponto mais irônico para uma solenidade cinqüentenária. É aí que se manifestam o humor e a presença singular de Renato Borghi. Gostaria também de agradecer ao Francisco Márcio de Araújo e ao próprio Renato Borghi que tanto colaboraram comigo na organização, elaboração e revisão deste livro. Por fim, revelo o apelido de infância do Renato: PRESENÇA. Elcio Nogueira Seixas O de Duas Portas – Dionisios – Re-Nato Aplausos crepitantes a Renato Borghi, ator que hospeda em seu corpo-alma uma espécie de liquor, de substâncias de viradas coletivas revolucionárias do teatro brazyleiro, vivas em formas carnais de suas personagens. Óbvio que exemplifico com o que de mais forte num período revolucionário da Multidão conseguimos fazer vir à tona e que está vivo no eterno presente em seu cavalo, bastando ser agenciado para retornar. O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, é o ponto de ruptura com o colonialismo do Teatro Brasileiro que orgulhosamente se dizia nato da catequese de Anchieta e esse enjeitado, o teatro brasileiro desligado do seu cordão umbilical metropolitano se religou ao momento da devoração do Bispo Sardinha pelos Caetês, a devoração da catequese. Esta cena é a da Origem da Tragédia Mítica Brazyleira. Renato faz toda esta viagem de ruptura sincrônica, a sua re-ligação com a antropofagia dos tupys, ao soul do candomblé e da umbanda, à eletricidade do espiritismo, à Radio Nacional, à Chanchada, ao teatro brasileiro pré-TBC, ao TBC de C de Cacilda, ao cinema russo de Eiseinstein e CherKassov, ao Group Theatre de Francis Farmer, ao Stanlislavsky mais animista e possuído possível, ao Brecht vivo das montagens do Berliner Ensamble, à Opera Italiana paterna, ao Carnaval e, sobretudo, à maior das Divas: Dalva de Oliveira; para criar estes Monstros Sagrados que são as personagenes gigantes que aloja em seu corpo pequenino como de uma criança. Abelardo I é a Primeira Grande interpretação Antropofágica de Teatro Mundial. Ainda este ano em Berlim, revendo o Rei da Vela exibido no Cine Babilon, numa projeção excepcional da versão com legenda em alemão, extremamente bem cuidada na Cinemateca de Berlim, vi o público perplexo: Quem é este extraordinário e monstruoso ator? O que é isto? Uma das atrizes do Oficina Uzina Uzona que estava comigo, Ana Gui, foi cumprimentada, confundida com Esther Góes, pois o publico via o filme como se estivesse sendo lançado, acontecendo hoje em 2005, tamanho o arrebatamento vital trazido pela encarnação presente desta entidade viva do Banqueiro Abelardo I, puxando o filme como puxava a peça. É um ator protagonista que contagia todo um elenco a cada sessão de atuação. Um puxa vida. O filme conseguiu captar exatamente o que está no corpo do ator vivo sempre, eterno. Se ele diz uma frase da peça, mantricamente se tem o eterno retorno epifânico não somente da vida intensa da personagem, mas a do espírito materializado de toda uma época, de um tempo que se faz hoje novamente. Tanto no filme como no corpo, ecologicamente, este ator traz intacta e viva sua cultura de gueza gravada nos seus nervos e sua libido, espalhando-se eletricamente pelo cosmos. Nascemos no mesmo dia, do mesmo ano. Nos entendemos num plano passional elétrico que traz muito conhecimento e percepção. Renato é meu duplo, ou sou eu o duplo dele, quer dizer não somos nada, mas as projeções que, como atores, nos fazemos entre nós. Como Procópio Ferreira que foi benditamente condenado a fazer toda sua vida Deus lhe Pague. Renato somente não está todos os anos nos nossos palcos, transformando-os em terreiro porque o Teatro brasileiro ainda está doente e saindo da convalescença difícil, mas grandiosa em torno dessa própria atuação de Teatro de Estádio do próprio Renato, renascido, aberto como uma Avenida Carnavalesca em direção a uma Apoteose que só se viu parecida na antiguidade na Tragédia Grega viva. Assim como foi tombado o Samba de Roda, o Abelardo I deveria ser tombado para trazer a nós todos sempre o eterno retorno do corpo revolucionário Oswaldiano, desta vitamina que contamina e como a Banana, yes, faz crescer a Multidão. É obvio que ele faz milhões de novas maravilhas. Renato não se resume à magnitude do Rei da Vela, mas o ator de Teatro, como o músico, pode cantar sempre como Caetano Veloso canta Sampa, Leãozinho, etc. para nossa Alegria Alegria ou como Isaurinha Garcia cantou eternamente sua Mensagem das mais diferentes maneiras, de acordo com o vinho que foi sua vida, como a de Re-nato que tem o mesmo nome que Dionisios, o de duas portas, o de dois (muitos mais… infinitos) nascimentos. São obras eternas enquanto vivem seus cantores e que no caso de Renato vai permanecer na influência passada de seu corpo-a-corpo com as gerações que vêm por este caminho e também pela imortalização conseguida nas telas e nos DVDs que vão sair este ano para o gozo do público mundial. Monique Gardenberg, através da Dueto Filmes, faz este importante trabalho de remasterização de O Rei da Vela e lançamento da peça montada nos seus três atos contínuos. Que outro ator revolucionou mais a arte de atuação do que este Cantor Incorporado, Ditirâmbico Renato Borghi? Sua vocação de cantor que pegou um santo fazendo uma cena do Papa em Galileu Galileu e a partir daí trouxe para o Teatro brasileiro o BRAZ(YL)EIRO, esta energia desconhecida que é a dos deuses do inconsciente pagão da Multidão arcaica, bárbara e futurista do mundo. Que ator é este que guarda o tempo vivo em seu corpo e que somente cresce e nunca vira múmia? São os segredos da própria vitalidade desta cultura que dá no Brasil, de escravos rebelados contra a própria escravidão e apaixonados por não amaldiçoar a vida, não se deixar submeter jamais pelo Teatro do Oprimido, ou por qualquer teatro, ou qualquer pose. Vamos vê-lo no Timão de Atenas todo Poesia & Ritmos como Shakespeare concebeu, cantando os versos desta grande tragicomédyorgya, saindo do padrão careta dos chamados maiores atores brasileiros. Renato é uma divindade, um Rei, um Orixá-Exu do Teat(r)o Brazyleiro, um nobre gêmeo em grandeza do grande Raul Cortez e no nosso Olympo ele está ao lado de João Gilberto e Carmem Miranda. Há uma guerra no mundo e há no Teatro também, como as que se referia Shakespeare no seu tempo. Uma guerra movida pelas castas da especulação, inclusive teatral, que não querem perder seus privilégios e se alinham hoje à extrema-direita com a Igreja, Bush e o moralismo burro; por isso nunca vão poder se dar ao luxo de aceitar a originalidade, a grandeza, a genialidade de Oswald de Andrade ou de Renato Borghi. Torço pelo Timão e sei que vem aí mais um Gol! M e r d a ! José Celso Martinez Corrêa Capítulo I Rádio Nacional, Samba e Ópera Nasci na Tijuca, Rio de Janeiro, em 1937. Fui embalado ao som das rádios cariocas da época. A primeira música que aprendi a cantar foi a Jardineira. A casa de meus avós maternos era extremamente musical. Minha mãe tocava piano muito bem e eu cantava uma infinidade de marchinhas e sambinhas sempre acompanhado por ela. Lembro-me claramente das vozes daquele tempo: Orlando Silva, Chico Alves, Silvio Caldas, Dircinha Batista, Linda Batista, Carmem Miranda, Ciro Monteiro, Carlos Galhardo e muitos outros que não me ocorrem agora. O Galhardo cantava uma valsa que tinha uma letra que eu achava engraçada: E uma cortina de veludo, encobre a porta oval, por onde um dia hás de passar. A criança Renato ficava matutando sobre como seria essa tal porta, por que oval? Por que uma cortina de veludo encobrindo uma porta por onde alguém deveria passar? Chico Alves era uma febre nacional, e as irmãs Batista eram as rainhas dos números musicais das chanchadas cinematográficas. Dircinha cantava: Meu piriquitinho verde, tira a sorte por favor, eu quero resolver esse caso de amor, se eu não caso, nesse caso, eu vou morrer. Linda Batista cantava Vingança a plenos pulmões: Mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada, só vingança, vingança, vingança, aos santos clamar. Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar. O samba exaltação estava em grande moda com o incentivo de Getúlio Vargas. As favelas eram cantadas como recantos poéticos e o malandro era mais um cara cheio de bossa do que um marginal perigoso. Uma espécie de herói popular. Já na casa de meus avós paternos só se ouviam óperas. Eram todos italianos e não entendiam nada de samba. Aprendi rapidamente a cantar em italiano, mesmo sem saber muito bem o significado das palavras. Gosto de óperas até hoje e costumo ouvi-las de vez em quando. A comida lá também era outra e maravilhosamente deliciosa. Macarronadas com mil espécies de molhos e as carnes as mais diversas: cabrito, coelho, rã, galinha-d’angola, codorna e outras variedades de que não me lembro agora. Ah! O pão era feito em casa no forno do quintal. Uma delícia. Jamais vou esquecer aquele cheiro de pão italiano saindo do forno. Capítulo II O Chamamento de Dalva Eu devia ter 7 anos, quando ganhei dois bolachões 78 rotações com a estória da Branca de Neve. Achei linda a voz da princesinha, perguntei à minha mãe: Mãe, de quem é essa voz? É Dalva de Oliveira, meu filho. Aquela voz não saiu mais da minha cabeça. Foi o meu primeiro chamamento para a arte. Comecei a procurar aquela voz. Em 1948, ela voltou pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que estava no auge. O peixe é pro fundo das redes, segredo pra quatro paredes, era o refrão de Segredo, um grande sucesso de Dalva. Diziam tanta coisa daquela mulher: que ela tinha amantes, era ninfomaníaca; na época, eu nem imaginava o que era isso. O marido de Dalva, o compositor Herivelton Martins, atacava a mulher publicamente através de suas letras: Atiraste-te uma pedra no teto de quem só te fez tanto bem. E ela se defendia: Errei sim, manchei o teu nome, mas foste tu mesmo o culpado. Que emoção tinha aquela voz! Acho que a minha vida inteira, mesmo no teatro, eu andei perseguindo aquela emoção dálvica. Quando fiquei mais taludinho, com uns 11 anos mais ou menos, passei a fugir de casa à noite, dizendo que ia estudar com um colega vizinho, para ir com a empregada lá de casa, Maria, ao auditório da Rádio Nacional ver Dalva cantar. Era um verdadeiro Indiana Jones semanal de mil perigos até chegarmos à mal falada Praça Mauá, local de malandros e prostitutas. Era lá que ficava o auditório da Rádio Nacional. Inesquecível! Dalva cantava aos prantos com uma voz linda e penetrante que me deixava todo arrepiado. A cada número, as macacas de auditório atiravam blusas e Revistas do Rádio para o alto gritando: É a maior! Tinha gente que se rasgava. Eu também tinha vontade de gritar, mas o menininho de família falou mais alto me obrigando a manter uma atitude recatada. Já Maria gritava que só vendo. Só meus olhos arregalados revelavam espanto e admiração. Um dia, minha mãe descobriu tudo e acabou-se a aventura. Graças a Deus, nada aconteceu à Maria. Minha mãe perdoou a travessura e ela continuou conosco até se casar aqui em São Paulo. Fomos, minha mãe e eu, seus padrinhos de casamento. Capítulo III Teatro de Revista Eu era muito criança, quando os meus avós maternos me levaram pela primeira vez ao teatro. Era o Teatro de Revista, na Praça Tiradentes. Walter Pinto era o grande produtor da época. Escadarias enormes com gelo-seco caindo (não foi o Gerald Thomas quem inventou o gelo-seco). Polacas e francesas fazendo topless, segurando cachorros galgos pela coleira. E as vedetes: Mara Rúbia, loira, estilo violão; Renata Fronzi, morena, estilo violoncelo. E a mais graciosa de todas era Virginia Lane: pequenininha, corpinho perfeito, dentinho de coelho. Foi ela quem inventou a interação no teatro, não foi o Zé Celso. Ela descia pra platéia cantando: Sa-ssa-ssaricando, todo mundo leva a vida no arame, e fazia improvisos, sentando no colo dos cavalheiros da platéia. Diziam que ela era amante de Getúlio Vargas. Corria também que o presidente era fã das revistas e ajudava os produtores com subvenções, contanto que criassem quadros ufanistas, com favelas douradas, o bom malandro, enfim, a miséria brasileira cantada com charme e muito brilho. Mas, o que eu gostava mesmo, era quando fechava a cortina e vinham os cômicos: Grande Otelo cantando: Boneca de piche, da cor do azeviche, boneca de piche é tu que me acaba. Oscarito e Dercy Gonçalves faziam números no doublé sens (sentido duplo), porque não se podia falar palavrão. Mas a Dercy já entrava cuspindo no palco e dizia pro Oscarito: Escuta aqui, malandro, se você fizer o que eu tô te pedindo, eu te dou a minha baratinha preta com um risquinho rosado no meio. Eu ficava perguntando aos meus avós: Que barata é essa, vovô? Que barata é essa, vovó? Ninguém me explicava. Eu só fui descobrir a barata muito tempo depois. Tinha também o Mesquitinha. Quase não se fala nele hoje em dia, mas era um grande ator. Cara de brasileiro, bigodinho, peito de tuberculoso. Ele fazia monólogos cômicos e trágicos. De repente, aquele bando de homem que ia ver as vedetes acabava fungando com os olhos cheios d’água ao acompanhar a emoção que o Mesquitinha transmitia. Capítulo IV Cinelândia Minha avó também me levava para ver um outro teatro: o teatro da Cinelândia, a Broadway carioca. Eram vários teatros enfileirados, várias companhias, e todas elas pertenciam às estrelas da época. Era mais ou menos assim: tinha o ponto na sua casinhola soprando o texto, as peças mudavam de 15 em 15 dias e ficava muito difícil pros atores decorarem as suas falas; os cenários eram telões pintados, jardins com chorões e hortênsias ou salões de castelos pintados em perspectiva; a luz principal era a da ribalta, que vinha de baixo e ajudava a disfarçar os papinhos das estrelas maduronas. O repertório, em sua grande parte, vinha de uma tradição luso-brasileira: melodramas e comedinhas ligeiras. Alguns títulos: Maria Caxuxa, Iaiá Boneca, As Solteironas do Chapéu Verde, As Árvores Morrem de Pé, As Mãos de Eurídice, Esta Noite Choveu Prata, etc. Eu me lembro de uma peça em que a atriz Lourdes Mayer vivia um triân gulo amoroso: seu marido, interpretado por Rodolfo Mayer (seu verdadeiro marido), e o melhor amigo do casal eram ambos apaixonados por ela. Mas o amigo sublima este amor pecaminoso e continua íntimo do casal. No final, ela vem à boca de cena, estende as mãos para os dois e diz: Obrigado, pelo amor de vocês (era esse o nome da peça). E fechava o pano! Pode?! Nunca mais me esqueci desta cena. Não havia diretores, somente ensaiadores, que preparavam o elenco coadjuvante marcando os atores nos arredores do palco. A área central era ocupada por uma cadeira. Tratava-se do lugar reservado às estrelas, que só compareciam aos ensaios dois dias antes da estréia. Devia ser muito difícil ser um coadjuvante naquele tempo: os atores carregavam uma maleta pessoal com bigodes, cavanhaques, smokings, sapatos e outras quinquilharias; as atrizes podiam ser contratadas segundo o figurino que possuíssem, como vestidos de baile. Um coadjuvante valia o quanto pudesse oferecer à produção. Além disso, acho que eles deviam ganhar muito mal, as estrelas-empresárias é que levavam tudo. Havia muitas companhias importantes na Cinelândia, uma delas era a Cia. Dulcina e Odilon, que tinha sede no Teatro Regina, hoje, em homenagem, Teatro Dulcina. As estrelas da companhia eram Dulcina de Moraes e sua mãe, Conchita de Moraes. Dona Conchita parecia uma velhinha adorável, estilo Vovó Benta, gordinha com um coque no topo da cabeça. Mas, de repente, ela ficava diabólica, dizia pros companheiros de cena: Cala a boca! E fazia monólogos de cacos de 20 minutos, deixando o elenco atônito, sem saber como retomar a peça. Já a filha, era uma atriz completamente diferente da mãe: tinha um jeito afetaaado de falar, soava como uma música estranha; também era uma mulher muito sofisticada, que lançava modelos ousados em cena, vestidos fechados na frente e com decotes imensos nas costas que chegavam até o início do reguinho. A mulherada corria pra ver as novidades. Dulcina, além de tudo, foi uma das atrizes mais importantes do seu tempo, levava legiões de fãs ao seu teatro. Foi ela quem criou o repouso semanal da segunda-feira, porque antes, atores e técnicos tinham de trabalhar a semana inteira, com sessões duplas e matinês, além dos ensaios. O Paulo Autran que me contou isso. A estrela também se dava de presente peças sofisticadas de autores como Bernard Shaw, Lorca, entre outros. Me lembro muito dela em Chuva, de Somerset Maugham. Chovia, chovia, chovia numa ilha calorenta. Ela fazia uma prostituta com saia preta e blusa branca com bolinhas vermelhas, às vezes segurando uma sombrinha. A prostituta queria comer o Reverendo David, que estava isolado na ilha com ela, mas o reverendo estava duro-na-queda. Me lembro da Dulcina andando inquieta pela sala, olhando pelas janelas e dizendo: E esta chuuuva que não paaassa! Até hoje, quando me levanto à noite pra ir ao banheiro, ouço aquela voz ao longe: E esta chuuuva que não paaassa! Outra companhia de sucesso era a de Eva Todor, a eterna ingênua do nosso teatro. Pra mim, é inesquecível A Amiga da Onça, com Eva vestida de tenista e uma raquete na mão. O Teatro Rival, que hoje recebe shows da MPB, era a sede de Alda Garrido, a mais maluca de todas, piradex total. Pouca gente se lembra dela, mas Alda foi uma comediante excepcional e muito popular. Seu carro-chefe era Dona Xepa, de Pedro Bloch, onde ela fazia uma feirante desdentada, descuidada, que ganhava muito dinheiro na feira, mas entregava tudo pros filhos, pra eles estudarem nos melhores colégios, com roupas caras. Até que ela descobre que os filhos morrem de vergonha dela. No terceiro ato, acontece uma reviravolta: Dona Xepa aparece com robe de seda pura, cabelo de cabeleireiro, uma biblioteca atrás e ainda se dá ao luxo de declamar: J`ai, tu as, il a, nous avons, vous avez, ils ont! Do Jaime Costa, eu digo: Cessa tudo, que a antiga musa canta, enquanto valor mais alto se alevanta. Jayme Costa foi um gigante ator, que habitava o Teatro Glória. Ele trouxe Arthur Miller pela primeira vez ao Brasil com A Morte do Caixeiro-viajante. Eu vi esta peça depois com outros grandes atores, mas nenhum deles me impressionou tanto quanto o Jayme Costa. Suas caracterizações eram famosas. D. João VI foi uma de suas criações insuperáveis, maquiagem e composição gestual perfeitas. Chegava a comer, em cena, um frango inteiro com as mãos, ficando todo engordurado. Uma maravilha! Quando eu vi Procópio pela primeira vez, a criança ficou chocada com sua aparência: era um homem pequenino, mais baixinho que eu, o pescoço enterrado no ombro, um narigão de Cyrano de Bergerac. Me lembro de ter dito: Que homem feio, vovó! Minha avó me repreendeu: Psiu! É Procópio Ferreira! A peça começou com ele sentado numa escadaria de igreja, vestido como mendigo, pedindo esmolas. A cada moeda que recebia, o mendigo agradecia: Deus lhe pague! Deus lhe pague! Este era o título da peça de Joracy Camargo. Não lembro como era o cenário, os outros atores, nada, só Procópio ficou na minha cabeça. Ele tinha um carisma do tamanho do universo. Compreendi, então, a reverência de minha avó e dos milhares de fãs espalhados por todo o país que o consideravam o maior ator de sua época. Acho que o Procópio foi o homem que mais inaugurou bustos no Brasil, tem busto dele espalhado do Oiapoque ao Chuí. Procópio queria que a filha, Bibi Ferreira, estudasse no Colégio Sion, mas freiras não permitiram: Filha de artista, gente de má vida. Nós éramos muito malvistos naquele tempo; eu mesmo, quando estreei no teatro, cheguei a portar o cartão rosa do DDP, que era o mesmo usado pra fichar as putas. Procópio, então, resolveu esnobar, ele estava muito rico, mandou a filha pra Europa. Bibi estudou nos centros teatrais mais avançados, voltou poliglota, lindinha, cantando, dançando e representando, uma garota-prodígio. Ela trouxe pro Brasil um repertório moderno, sofisticado e era (e ainda é!) dona de uma técnica extraordinária. Quando eu vi Senhora, de José de Alencar, fiquei estupefato. Bibi caía nos braços do amante de costas pra platéia e sussurrava ao ouvido dele: Eu te amo, e todo mundo lá na torrinha do teatro ouvia claramente: Eu te amo. Ficou todo mundo dizendo: Como é que pode?, Como é que ela consegue?, Que técnica! Até hoje, Bibi é um assombro! Capítulo V Teatro Amador: a Vanguarda A vanguarda daquela época era representada pelo teatro amador. Havia duas companhias muito importantes no Rio de Janeiro: o Teatro dos Estudantes e o Teatro dos Comediantes. No caso dos Estudantes, é preciso abrir um parêntese para falar de Paschoal Carlos Magno. Ele amava e incentivava o teatro amador e o pro-fissional. Fez vários festivais de amadores com grupos de todo o país. Plínio Marcos foi lançado num destes festivais com Barrela. O próprio Teatro Oficina, em seu início, recebeu muito apoio do Paschoal. Ele também criou um teatro experimental na ladeira de Santa Tereza, o Teatro Duse; deu bolsa de estudos para estudantes pobres e elevou ao máximo o nível do repertório. Ele montou Hécuba, peças de Shakespeare. Foi em Hamlet que apareceu um jovem de 22 anos, considerado o maior ator brasileiro de todos os tempos: Sérgio Cardoso. Era Sérgio no Brasil e Laurence Olivier na Europa. Procópio e Jayme Costa devem ter ficado ralados, pois, até então, eles eram os maiores. Sérgio Britto e Maria Fernanda (como Ofélia) também apareceram aí. O Teatro dos Comediantes era feito por profissionais liberais: engenheiros, médicos, dentistas, advogados, professores de literatura, etc. Eles queriam um repertório avançado para o Brasil, de um nível londrino, parisiense. Queriam evolução para o teatro brasileiro. Foi quando chegou ao Brasil um polonês fugido da Segunda Guerra: Zbigniew Ziembinski. O polonês se encantou com o Rio de Janeiro, Copacabana e com tudo que ele viu na praia de Copacabana. Zimba, como foi carinhosamente apelidado pelos brasileiros, já tinha 60 peças como diretor e 40 como ator protagonista na Polônia. Os comediantes sacaram a riqueza do homem e convidaram Zimba para dirigir uma das primeiras peças de um jovem autor brasileiro: Nelson Rodrigues. A peça era Vestido de Noiva. Um texto revolucionário em sua escrita, frases curtas, telegráficas: Eu odeio o seu pai (ponto) Que sua mãe vá pro inferno (ponto). Era tudo ponto. Ponto. Ponto. Nada a ver com a Maria Caxuxa. A carpintaria também era inovadora, abolia a linearidade dos melodramas. A peça acontecia em vários planos: Morte, Realidade, Delírio. Zimba encantou-se com a peça e chamou Santa Rosa, consagrado artista plástico, para fazer os cenários. Inspirado pela estrutura do texto, Santa Rosa também criou vários planos na cenografia, objetos com volume. Zimba fez uma verdadeira revolução na luz, deitou e rolou: aboliu a ribalta, criou refletores com latas de banha, novos efeitos, usou o contraluz. A estréia foi um susto. Quando a peça acabou, silêncio. Ninguém disse nada. Brasileiro tem medo de ser burro, não emite opinião quando não sabe classificar, fica quieto, não diz o que pensa. O silêncio prolongado criou um constrangimento no teatro. Dizem que o Nelson Rodrigues saiu desesperado pela rua gritando com a boca mole que lhe era peculiar: Minha peça foi um fracasso! De repente, no teatro, um aplaudiu, outro aplaudiu, outro aplaudiu, o teatro inteiro aplaudiu. O aplauso durou uns quinze minutos pra compensar o silêncio. Foi aquela consagração. Da noite para o dia, Nelson Rodrigues foi proclamado o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos. Esse episódio aconteceu no ano de 1943, eu tinha 6 anos, e, é claro, não pude ver. Minha avó dizia que ele era um tarado, maníaco sexual, Febrônio. Não entendia direito essa estória de Febrônio, só sabia que era um nome feio. Minha família dizia que tudo que o Nelson escrevia tinha sabor de pecado. Capítulo VI São Paulo e o TBC Em 1955, minha família mudou-se para São Paulo, e eu vim com eles, onde vai a corda, vai a caçamba. Logo nos primeiros tempos, meus colegas do Colégio São Bento me levaram para ver o TBC – Teatro Brasileiro de Comédia. Que susto! O TBC era sólido, como sólida era a cidade de São Paulo: Viaduto do Chá, Santa Ifigênia, Anhangabaú, o meu Colégio São Bento. Os cenários do TBC eram concretos: tinham portas, janelas, cicloramas, chovia quando tinha que chover. Parecia cenário de filme de Hollywood dos anos 40, 50. Havia uma concepção para cada espetáculo. Cenários, figurinos, interpretações, trilha sonora, luz, tudo convergia para formar a cara de obra como dizia Ziembinsky. O repertório era adulto, pecaminoso. Uma das primeiras peças que vi foi Gata em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams. Cacilda Becker ficava rodeando uma cama, chamando o marido pra transar. Walmor Chagas, que fazia o marido, se recusava e andava pela casa com a perna engessada e uma muleta. Quando a insistência dela se tornava irritante, ele ameaçava dar uma muletada na cabeça dela. Ele dizia estar de luto pelo amigo que havia se suicidado. Cacilda, qua-se gemendo, dizia algo como: Ele se matou por sua causa, ele te amava. Eu disse a ele: Skipper, Skipper, pare de amar o meu marido! Eu nunca tinha ouvido isso na Maria Caxuxa nem na Iaiá, Boneca. O primeiro beijo de homem com homem que eu vi na minha vida também foi no TBC, anos mais tarde, em Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller, onde o Leonardo Villar tascava um beijo na boca do Egydio Eccio. Foi um escândalo! O teatro lotou. Aqui no Brasil, quando tem escândalo, lota! O repertório do TBC era muito sofisticado. Eles montavam Sófocles, Schiller, Anouilh, Pirandello, Maxim Gorky, Tennessee Williams, Arthur Miller e outros grandes. Entre as peças mais fortes, a companhia montava também comédias sofisticadas, o boulevard, que o elenco representava com um estilo muito elegante. Cacilda dizia que conhecia uma atriz vendo se ela sabia virar no calcanhar. Esse aplomb europeu, os atores receberam dos diretores estrangeiros que o TBC importou: Adolfo Celi, Flaminio Bollini Cerri, Ruggero Jacobi, Lucia-no Salce, Alberto D`Aversa, Maurice Vaneau e Ziembinsky, que foi imediatamente incorporado a este grande time. Tudo isso foi obra de um napolitano malucão chamado Franco Zampari, que queria dar a São Paulo um teatro à altura dos teatros de Londres, Paris e Nova Iorque. O TBC era equipado com o que havia de mais moderno do ponto de vista técnico, duas salas de ensaio, salas de figurinos, salas de maquiagem, carpintaria própria, artistas e técnicos profissionais contratados a ótimos salários, enfim, um luxo para a época. Zampari estava atendendo à demanda da burguesia progressista paulistana. São Paulo era a cidade que mais crescia no mundo; rolava uma grana preta por aqui. Toda essa gente rica não queria nada com a Iaiá, Boneca, eles ansiavam por um repertório internacional e sofisticado. Para vocês terem uma idéia do luxo, o TBC estreou em 1948 com Madame Henriette Morineau interpretando A Voz Humana, de Cocteau, em francês. Em seguida, no mesmo programa, estreava um jovem autor brasileiro: Abílio Pereira de Almeida, com Paiol Velho. Acho que o Abílio foi sempre um pouco injustiçado. Em Moeda Corrente do País, a meu ver, era uma peça brilhante. Que elenco tinha o TBC, que unidade! Das estrelas aos coadjuvantes, todos perfeitos. Era um verdadeiro trabalho de equipe. O elenco do TBC pode ser descrito como a realeza do teatro moderno no Brasil. Por ali passaram: Cleyde Yaconis, Cacilda Becker, Walmor Chagas, Ziembinsky, Sérgio Cardoso, Nydia Licia, Maria Della Costa, Sandro Polônio, Paulo Autran, Tonia Carrero, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Jardel Filho, Luiz Linhares, Raul Cortez, Ítalo Rossi, Nathalia Timberg, Marina Freire, Célia Biar, Dina Lisboa, Elizabeth Henreid (linda fazendo a Pombinha de Volpone!), Ruy Affonso, Carlos Vergueiro, Fredi Kleeman, Waldemar Wey (que fazia caracterizações fantásticas), o galã Maurício Barroso, Rubens de Falco, isso pra só falar de alguns, pois o TBC não era tea tro de uma estrela e sim de uma constelação. Também irrigava o TBC uma fábrica de bons e jovens atores, a EAD – Escola de Arte Dramática, criada pelo Dr. Alfredo Mesquita, que tinha grande amor pelos estudantes em São Paulo, assim como o Paschoal Carlos Magno, no Rio. Capítulo VII Paixão por Cacilda Dentre todas essas estrelas que amei, houve uma que se entranhou em mim patologicamente e me influenciou demais, assim como a Dalva na infância. Era Cacilda Becker. Via de 10 a 15 vezes cada peça interpretada por ela. Quando iniciei minha carreira, costumava perguntar a meu pai: Gostou? Ele respondia sem muita convicção: Gostei, meu filho... Mas por que você não diz mamãe como todo mundo? Claro que eu digo mamãe! repliquei. Ele disse: Não, você diz (com ar sôfrego): mámáe, mámáe! Percebi que estava, inconscientemente, imitando Cacilda. Ela tinha um jeito só dela de falar, uma respiração curta. Meu pai dizia que ela falava sem ponto, sem vírgula, parecia uma japonesa. Pra mim, era uma experiência espiritual, nunca mais me esqueci de algumas de suas criações. Em Pega Fogo, ela fazia um menino. Puxava os seios para os lados com esparadrapos. Dizem que, às vezes, os seios ficavam em carne viva. Mas Cacilda era meio masoca, mesmo ferida, ela continuava a apertar os seios. A gente podia ver, através da camisa ligeiramente aberta, os ossinhos de um peito magro de garoto. Maria Stuart era um duelo de gigantes. Ela e a irmã Cleyde Yaconis incendiavam o palco, não se sabia quem era melhor. Fiquei chocado quando a Cleyde tirou sua peruca de Rainha Elizabeth e mostrou uma cabeça completamente careca! Na Dama das Camélias, Cacilda se fazia linda e frágil. Seus figurinos pareciam mais pesados do que ela poderia suportar. Diziam que as roupas de Marguerite custaram uma fortuna. E verdade seja dita: ela sabia se maquiar! Os críticos diziam que Cacilda era como um graveto incendiado, que ainda se dava ao luxo de deixar as cinzas flutuando no ar! Que inveja! Ninguém nunca escreveu uma coisa tão linda sobre mim. Saudade, Cacilda! Capítulo VIII Teatro de Arena Em 1958, levei outro grande susto em São Paulo: o Teatro de Arena. Vocês podem imaginar o que é para um menino que veio lá da Iaiá, Boneca, deu de cara com o TBC e que, de repente, é levado pra assistir Eles Não Usam Black-Tie, do Gianfrancesco Guarnieri? Em primeiro lugar, o teatrinho da Rua Teodoro Baima tinha gente por todos os lados, uma novidade na época. A peça, com direção do Zé Renato, retratava a vida de uma família da periferia ou da favela mesmo. Mas uma favela de verdade, sem o antigo glamour das revistas. Nem parecia cenário, os móveis eram de uma pobreza franciscana: mesa remendada, cadeira de pé quebrado. A Lélia Abramo catava feijão em cena, o cheiro do café que ela fazia dava vontade de pedir uma xicrinha! A temática era social: furar ou não furar a greve, eis a questão. O Arena já se posicionava bem mais à esquerda de Deuspai. Outra inovação: os atores também eram dramaturgos. Guarnieri escrevia, Chico de Assis escrevia. Vianinha, em 1960, escreveu Chapetuba Futebol Clube, sobre um time de várzea. Esta peça já foi dirigida pelo Augusto Boal, que tinha chegado dos Estados Unidos trazendo as novidades do Método, ou seja, as técnicas de Stanislavsky reinterpretadas pelos americanos. Acho que o Boal absorveu muito do Actor`s Stu dio, de mestres como Lee Strasberg, Elia Kazan. Tudo isso deu ao Arena um estilo muito peculiar de atuação, uma coisa híbrida. De um lado, a pesquisa do comportamento do homem popular brasileiro. De outro, as influências do Actor´s Studio. O resultado foi um jeitão meio quebrado no corpo. Tinha sempre alguém um pouco torto, apoiando a perna numa cadeira e falando de um jeito swingado: Nega, tu não gosta de eu... Uma espécie de James Dean da Mooca, Marlon Brando do Bexiga. Abaixo a elegância européia do TBC! Eu achava aquilo um charme. Imitei muito o gestual do Arena no começo do Oficina. A equipe do Arena era excepcional: Guarnieri, Lélia Abramo, Miriam Muniz, Miriam Mehler, Dina Sfat, Paulo José, Milton Gonçalves, Lima Duarte, Flávio Migliaccio, Juca de Oliveira, Xandó Batista, Celeste Lima, Henrique César, Riva Nimitz, Vera Guertel... Ufa, quanta gente boa! Completamente outra coisa, nada a ver com o TBC. Eu até ficava imaginando uma maldade: obrigar o Paulo Autran, o Sérgio Britto, o Ruy Affonso, o Sérgio Cardoso, o Carlos Vergueiro, o Walmor Chagas, o Fredi Kleeman, o Raul Cortez, o Ítalo Rossi, o Maurício Barroso e o Rubens de Falco a representar Chapetuba Futebol Clube, reproduzindo aquele timinho de várzea! Com o Zimba de juiz e Celi e o Waldemar Wey de bandeirinhas. Acho que não ia dar muito certo. Capítulo IX Cantor ou Ator? Esse ano de 1958 foi muito mágico pra mim. Acabei entrando pro Teatro meio que por acaso. Eu estava no terceiro ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Eu não tinha nada a ver com Direito. Sabe aquelas mocinhas que vão estudar enquanto esperam marido. Eu estava exatamente assim, só que esperando por alguma coisa artística, embora não soubesse bem o quê. Meus colegas chamavam meus óculos escuros de travesseiro: eu me sentava no fundo da sala, colocava os óculos e dormia durante todas as aulas, de ponta a ponta. Se me perguntarem hoje como se faz uma petição, não tenho a menor idéia. Eu cantava muito nesse tempo e me acompanhava ao violão. Descobri uma brincadeira sado-masoca que me encheu as tardes de satisfação: eu tocava no apartamento de meus pais, que era térreo, e a nossa vizinha chorava no primeiro andar. Eu tocava embaixo e ela chorava em cima. Uma tarde, ela me convidou pra lanchar. Queria que eu cantasse pra uns convidados. Peguei meu violão e fui na maior cara-de-pau. Vergonha de me mostrar era algo que eu não conhecia. Quando criança, meu apelido era Presença. Meu avô me chamava: Presença, vem almoçar!, Presença, vem jantar! Subi e cantei. Cantei todos os números que ela pediu. Um dos convidados era Jordão de Magalhães, empresário do Agnaldo Rayol e do Almir Ribeiro. Quando terminei de cantar, ele me disse: O senhor está contratado. Esteja amanhã, às duas horas em ponto na Boite Cave. Você vai ensaiar quatro meses com a minha orquestra, das 14 às 17 horas e, a seguir, vamos gravar um disco na Gravadora Philips. Fiquei zonzo! A Boite Cave era o máximo naquela época. No dia seguinte, o Presença estava lá, ensaiando com a orquestrinha do Cave. Que delícia cantar acompanhado de um conjunto como aquele. E no microfone! Parecia outra voz. Ele me proibiu de tocar violão, disse que eu tocava muito mal. Dali por diante, só cantaria com a orquestra. E me proibiu também de cantar em casa. Queria corrigir meus vícios de amador. Era o tempo de Elizete Cardoso, a Divina. Ela era uma das estrelas que costumavam se apresentar no Cave. O Jordão me fez cantar quase todo o repertório da Elizete. Era o lançamento da Bossa Nova: As suas mãos, onde estão? Onde está o seu carinho, onde está você?... Eu preparava minha voz com D. Alice Pincherle, mãe da Nydia Licia, casada com o Sérgio Cardoso, donos da Companhia Nydia Licia – Sérgio Cardoso, com sede no Teatro Bela Vista. Um dia, entre um vocalize e outro, D. Alice me sugeriu: Renato (com forte sotaque italiano), por que você não vai fazer um teste com Sérgio Cardoso para fazer o protagonista de Chá e Simpatia no Rio de Janeiro? O ator que está fazendo aqui em São Paulo, quando terminar a temporada, vai deixar o teatro para abrir um escritório de contabilidade. Eu falei: Que louco, D. Alice, deixar um papel desses pra virar contador! Ao que ela me respondeu: Pois é, ele disse que quer ficar rico. É claro que o Presença foi. A entrada do Teatro Bela Vista era pela Rua Conselheiro Ramalho e não pela Rua Rui Barbosa, como é hoje o Teatro Sérgio Cardoso. Abro aqui um parêntese: não sei por que construíram esse elefante branco do Teatro Sérgio Cardoso, colocando abaixo o Teatro Bela Vista. Sérgio tinha transformado um antigo cinema num teatro magnífico, com 600 lugares, uma acústica perfeita e infinitos recursos técnicos. Por que colocar abaixo talvez o melhor teatro de São Paulo para construir uma lingüiça comprida sem acústica, sepulcro de grandes interpretações. Só pode ter sido por aquelas mutretas de licitação, superfaturamento... Enfim, deixemos para lá, pois este não é um relato político. Ah!!! Pelo que eu me lembro, houve um erro na construção e tiveram que fazer tudo de novo! Mas, voltando à vaca fria, como dizia minha tia, o Presença chegou na hora marcada. Na porta do teatro, estava um homem de cabelos negros puxados para trás, um carisma solar. Ele me olhou de forma inquisitorial e perguntou: Você é o Renato? Sou. Veio fazer teste para o Chá? Sim. Você quer abraçar a carreira profissional? Claro, eu adoro teatro! (Sem nenhuma convicção, eu estava ali de alegre, mais um número do Presença) Venha, vou te mostrar o Bela Vista. Ele passou a mão no meu ombro e me introduziu naquela maravilha de teatro, me levou até o palco, onde fui apresentado à Nydia Licia, linda, loira, de olhos azuis. Ela estava com uma xícara na mão, esperando o próximo candidato do teste para o Chá. Sérgio me entregou um texto enorme e disse: Vou lhe dar este calhamaço para decorar, assim já testo a sua memória. Esteja aqui depois de amanhã, às 14 horas em ponto. Nada mais temos a dizer. Corri para casa. Decorei, decorei, decorei. Dormindo, acordado, na sala de aula. Nunca decorei tanto na minha vida. Cheguei para o teste decoradíssimo. Sabia as minhas falas e as da Nydia. Tinha até medo de trocar e acabar dizendo algumas falas dela. Sérgio me perguntou: Está prontoôôô? (Ele tinha um ô tão grave que parecia acabar lá no fundo do peito) Estou. Vou lhe dar as marcações, somente as marcações. Não represente! Na hora, eu quero ver como você faz. Claro. Até a fala tal, você está ajoelhadinho no chão, com uma xícara de chá na mão, conversando com Nydia. Depois, você vai ficar de pé nesta cadeira e ela vai experimentar em você um vestidinho que o personagem vai usar na peça de fim de ano da universidade (não é à toa que diziam que o meu personagem era gay). Depois, você vai até aquela porta e termina a cena segurando na maçaneta (até hoje, não entendi por que eu tinha que ficar segurando aquela maçaneta). Sérgio desceu para a platéia e perguntou: Podemos começar? Sim. (Olhei pra Nydia. Ela sorria para mim, como quem quer transmitir confiança.) Entãoô, açãoôôô!!! Bendita juventude, bendita inocência, bendita irresponsabilidade! Por incrível que pareça, eu não estava nem um pouquinho nervoso. Eu não tinha a menor noção do que poderia acontecer comigo, das responsabilidades de um profis sional. Ela falou e eu respondi. Ela falou e eu respondi. Ela falou e eu respondi. No final, aquele homem subiu correndo no palco, me deu um abraço apertado e disse: – O papel é seuuuu! (O u do Sérgio também era muito grave e sonoro) Nunca deixe o Teatro, você é um ator. Você tem tudo contra você. Você é baixinho, magrinho, franzino. Você é o anti-Physique du Rôle de um primeiro ator. Mas você é um ator, haverá sempre um espaço pra você! Fiquei alucinado! Meu ídolo dizendo aquelas coisas! Subi a Brigadeiro gritando: Ganhei! Ganhei! De repente, me lembrei da Boite Cave, do Jordão, do disco! Já estava quase na hora de gravar. Havia até uma foto-prova pra capa do LP. Corri até o Cave. Encontrei o Jordão examinando a tal foto pra capa do disco. Aí sim, eu fiquei nervoso. Eu tinha um pouco de medo daquele homem. Ele era um tipo bem machão que se vangloriava da sua superpotência sexual . Dizia que, quando ficava de pau duro, seu pau ficava tão duro que podia sustentar um piano de cauda! Tomei coragem: Jordão, não vou mais cantar! Como, não vai mais cantar? Eu vou fazer Chá e Simpatia no Rio de Janeiro, com a Nydia Licia e o Carlos Zara, direção do Sérgio Cardoso, e o protagonista sou eu! Vou estrear no Teatro Copacabana, no Hotel Copacabana Palace! (eu achava o máximo aquela estória de Copacabana Palace) (Já irado) O quê, seu irresponsável?! Você acha que eu gastei todo esse dinheiro com a minha orquestra, ensaiando você todas as tardes... Já assinei até contrato com a Philips... Pra agora você me deixar na mão?! Olha aqui a foto que vai ser a capa do disco! (Já me encaminhando furtivamente para a porta de saída) Infelizmente, não vai ser possível Jordão. Estou embarcando esta noite pro Rio, com toda a companhia do Sérgio. Quem sabe na volta... (Mais irado ainda) Rua!!! Irresponsável!!! Nunca mais pise o solo desta boate! Vai ser pobre na vida, filho-da-puta! Trocar uma carreira milionária pra fazer teatro! Teatro não dá camisa a ninguém! Vai morrer na sarjeta, que é o que você merece! Rua!! Antes que eu te quebre essa cara, seu moleque!! Subi correndo a Consolação e aquele homem na porta da boate gritando maldições: Vai ser pobre na vida, filho-da-puta! Vai morrer na sarjeta!! Foi assim que troquei minha carreira de cantor pelo teatro. Deixei um futuro popular pra ser um ator de vanguarda. Estranho, eu era cria da Rádio Nacional e acabei trocando Emilinha Borba por Brecht. Por outro lado, às vezes penso que, como cantor, eu já poderia estar superado há muito tempo, cantando Ave-Maria em festa de casamento. O fato é que até hoje ando fugindo das pragas do Jordão! Capítulo X Estréia no Copacabana Palace Sérgio me ensaiou com muito carinho. Lembrome bastante de como ele cobrava a musicalidade das falas. Não foi muito difícil pra mim, já que eu era cantor. Em novembro de 1958, estreei como profissional no Teatro Copacabana, no Hotel Copacabana Palace! Chá e Simpatia, uma peça que, hoje, pode parecer ingênua, tinha um grande apelo na época. Meu persona-gem, Tom Lee, era um rapaz sensível, leitor de poesia, adorava música clássica, teatro e odiava beisebol, além do mais, era virgem. Ah, e ainda por cima, foi visto tomando um banho de mar à noite, na companhia de um professor e ambos estavam nus. É claro que a universidade inteira e vocês que estão lendo poderiam jurar que Tom Lee era gay, mas acreditem, ele não era! O tema provocava um enorme frisson entre o público (o que ajuda a comprovar minha teoria do escândalo). Também é preciso dizer que Sergio, Nydia e Carlos Zara já eram nomes consagrados. Tudo isso me deu a sorte de estrear com um belo sucesso no Rio de Janeiro, ainda a capital da República. Acho que fui salvo, novamente, pela inocência e irresponsabilidade da juventude. Estreei calmo como no teste. Porém, o mais curioso disso tudo é que, ao final das apresentações, formava-se uma fila de rapazes sensíveis e perfumados na porta do meu camarim para pedir autógrafo. Eles me diziam: Me sinto como você!, Ninguém me compreende na minha casa. Eu sorria inquieto e pensava comigo mesmo: Será que estou dando muita pinta?! Quem adorava a peça era a grande cantora do momento, Elizete Cardoso. Ela fazia um show dirigido por Zilco Ribeiro no Golden Room do Copacabana Palace. Elizete passava pelo teatro e assistia todos os dias ao terceiro ato. Tinha uma fala que ela adorava. Quando Nydia Licia se entregava ao rapaz interpretado por mim para provar que ele não era gay, ela dizia, quase sussurrando: Quando você se lembrar disso, e eu sei que você vai se lembrar, por favor, que seja com ternura. A cantora me pediu para escrever trechos do Chá em folhas de caderno. Ficamos muito amigos. Uma noite, Elizete me convidou para assistir ao show lá no Golden Room. Não era exatamente um show e sim uma revista de luxo, muito bem dirigida por Zilco Ribeiro: uma sucessão de quadros lindamente cenografados. Num desses quadros, quase perdi a compostura de tanto rir com Carmem Verônica, uma extraordinária comediante-vedete. Elizete cantava uns cinco números. Num deles, ela aparecia vestida num longo preto, justíssimo. Cantou uma música do Ary Barroso que eu ainda não conhecia: Jogada Pelo Mundo. Terminava assim: Pois tendo tudo, não tenho nada, ando jogada por esse mundo, não tenho um bem, nem o amor de ninguém. Aplaudi de pé. Capítulo XI O Encontro com Zé Celso Vocês podem imaginar o que é pra cabeça de um menino de 21 anos, que acabou uma temporada de sucesso no Teatro Copacabana, voltar pra São Paulo pra terminar a faculdade de direito? Mas eu tinha prometido à minha família. Naquele tempo a programação era: formar, ter um escritório, casar, ter filhinhos, guardar dinheiro, filhinho ter filhinho, ficar vovozinho... Ah! Nada disso cabia na minha cabeça, estava cheio de sonhos artísticos. Fiquei por ali, nas arcadas. Havia um movimento cultural, discussões filosóficas que se estendiam até o Pari Bar, na praça da Biblioteca Mário de Andrade. Carlos Henrique Escobar e Celso Luiz Paulini eram os papas da época. Foi numa dessas reuniões do Pari Bar que eu conheci um jovem muito tímido, de terno, gravata e sobretudo. Era José Celso Martinez Corrêa, ele fazia parte da jeunesse doreé de Araraquara, a nata intelectual da cidade, junto com Ignácio de Loyola Brandão e Luiz Roberto Salinas Fortes. Apesar disso, o nos-so primeiro papo não teve nada de intelectual, foi sobre MPB. Zé Celso me perguntou: ZC: De quem você gosta como cantora? Dalva de Oliveira. ZC: A prima-dona do samba-canção! Você conhece Isaurinha Garcia? Ainda não. ZC: Então você tem de conhecer, é importante. Por quê? ZC: Ela é uma cantora do Método. Como? (eu ainda era muito desinformado) ZC: É uma cantora do Actor`s Studio. Sei... (com cara de não estar entendendo nada) ZC: É uma espécie de James Dean do samba. Aí, eu entendi um pouco melhor. Numa noite de inverno, ele me levou pra ver Isaurinha cantar no Captain‘s Bar. Foi uma revelação. Na minha frente estava uma mulher pequenininha, de cabelo louro cortado bem curtinho, parecia uma personagem de Felinni, uma Giulietta Masina. Ela era diferente de tudo, tinha uma eletricidade no corpo, as mãos muito marcantes. Suas mãos participavam da estória do samba. Algo nada convencional. Ela era, de fato, Personalíssima. Quando ela cantou Velho Enferrujado, fiquei tonto com o estilo e a divisão de Isaura. Acho que ainda me lembro um pedacinho da letra: Chega pra lá seu velho sem vergonha / com essa cara de cegonha / querendo só me beliscar / chega pra lá / senão eu faço a bulha / chamo a Rádio Patrulha para te pegar / chega pra lá / velho saliente / saia correndo vá lamber sabão / se você ficar me beliscando / careca de uma figa eu te meto a mão... Saí de lá fã da Isaurinha, comprei todos os discos que encontrei à venda. Comecei uma amizade com o Zé. Nós tínhamos muitas afinidades. Tanto ele quanto eu queríamos romper com os padrões vigentes da classe média. Odiávamos direito, estávamos à espera de que alguma coisa acontecesse. Foi quando o Zé escreveu uma peça: Vento Forte para um Papagaio Subir. A peça representava tudo que a nossa geração queria: libertação dos valores da família, conflito de gerações. Ele compôs uma música para o espetáculo que era uma bandeira: Eu hoje vou fugir com o vento Vou até o firmamento Vou ver a Terra brilhar Vou abrir bem os meus braços Me lançar por este espaço A ventar, a ventar... Esta peça, junto com A Ponte, de Carlos Queiroz Telles, formou o primeiro espetáculo do Grupo Oficina Amador, composto, em sua maioria, pelos estudantes da Faculdade de Direito. A seguir, Zé Celso escreveu outra peça, A Incubadeira, também sobre o tema libertação dos valores da família. Ele me entregou o texto e dis-se: Quero que você faça o Tarcísio (personagem da peça). Ele já era meio impositivo. Eu li a peça e adorei o personagem. Tarcísio era um rapaz asmático, passava a peça inteira quase sem conseguir respirar, tomando remédios de 15 em 15 minutos, que ficavam numa farmacinha de vidro. O menino era filho de uma mãe castradora que não permitia que ele tivesse amigos, namorada, vida social. Para fazer esta mãe, chamamos uma professora da Cultura Inglesa, que era nada menos do que Etty Fraser, minha companheira querida se tornaria minha mãezinha oficial no Teatro Oficina. A relação sufocante entre mãe e filho vai até o ponto em que Tarcísio toma consciência de sua condição submissa e, numa explosão emocional, quebra a farmacinha de vidro e sai pra vida gritando: Ora, perdeu a graça! Vocês não acham ridículo um homem barbado brincando de Gulliver? Quem dirigiu a peça foi Amir Had dad, meu colega de turma. Ele estava com a perna quebrada e dirigia a gente batendo a sua bengalinha no chão para marcar o ritmo. Quando a gente saía fora do ritmo, ele dava uma ligeira bengalada no tornozelo da gente. A Etty, coitada, levou muita bengalada até entrar no ritmo. Capítulo XII Brasília, Cuba e Sartre Estávamos vivendo o Brasil de Juscelino Kubitschek: desenvolvimentismo, nacionalismo, a indústria pesada brasileira, o Fusca, o Dauphine, a Romiseta, todos de fabricação nacional. Havia também o milagre da construção de Brasília: cal, cimento, tijolos, ferro, tudo transportado de avião pra construir a capital, no coração de Goiás. O que mais nos mobilizou nesse tempo foi a Revolução Cubana. Fidel Castro quebrou a incubadeira e instaurou um regime socialista ali, na cara de Miami. Começamos a perceber que a incubadeira não era só familiar, mas também imperialista. Nossa economia não era traçada por nós e sim, pelo governo norte-americano (e, ao que parece, continuamos assim até hoje). Fomos nos conscientizando da nossa ignorância pequeno-burguesa e passamos a freqüentar o Iseb – Instituto Brasileiro de Estudos Superiores. Lá, ouvimos conferências de sociólogos como Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, e historiadores como Caio Prado Jr. À medida que amadurecíamos politicamente, íamos nos posicionando cada vez mais à esquerda de Deus-pai, a exemplo do Arena que, em 1960, já era um grupo totalmente engajado. Outro personagem fundamental em nossa formação foi Jean-Paul Sartre, o filósofo do existencialismo. Liberdade individual com responsabilidade era uma espécie de lema para a nossa geração e Sartre, um deus. Devoramos todos aqueles livros de 600, 700 páginas em francês, procurando as palavras desconhecidas no dicionário. Era um verdadeiro trabalho de devoção. A Bíblia pra nós foi Furacão sobre Cuba, um livro que, pra nossa sorte, era bem sucinto e tinha tradução portuguesa. Tratava-se de uma defesa da revolução de Fidel. De repente, o acontecimento: Sartre e Simone de Beauvoir vieram ao Brasil para uma série de conferências. Minha primeira impressão quando vi Sartre pessoalmente foi um tanto curiosa: diziam que, durante a Segunda Guerra Mundial, ele havia ficado um pouco paranóico e via caranguejos e lagostas subindo pela parede. Enfim, achei que o Sartre tinha cara de caranguejo. Já a Simone era uma bela senhora, de olhos muito azuis. A jeunesse doreé conseguiu levar o casal para fazer conferências em Araraquara, segundo me confirmou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso durante uma das apresentações da versão teatral de Borghi em Revista. Aproveitamos a oportunidade e, com a maior cara-de-pau, pedimos que Sartre nos cedesse gratuitamente os direitos de um roteiro de cinema que ele havia recém-terminado: A Engrenagem. O roteiro era inspirado na recente Revolução Cubana. Ele, gentilmente, nos concedeu os direitos para uma montagem teatral. A peça estreou em 1960, no Teatro Bela Vista, com a direção do Augusto Boal. O espetáculo provocou, por parte da imprensa, muitos elogios e muita discussão. Porém, o episódio mais significativo de A Engrenagem aconteceu fora do teatro. Queríamos representar o espetáculo em praça pública. O local escolhido foi o Monumento da Independência, em frente ao Museu do Ipiranga. Quando começamos a representar a primeira cena, fomos imediatamente impedidos por um grande aparato policial. Em protesto, nos amordaçamos e ficamos postados em silêncio em frente ao monumento. Em seguida, saímos em pequena passeata, ainda amordaçados, pelas ruas do Ipiranga. Coincidentemente, cruzamos com uma enorme passeata dos grevistas da Fábrica Aimoré (aquela da Bolacha Maria). Nos juntamos a eles. Quando passamos pela porta da Clube Atlético Ipiranga, nos separamos do grupo, pois tínhamos uma apresentação agendada no clube. Entretanto, fizemos um convite aos operários para que assistissem ao espetáculo e eles toparam. Nova surpresa: a direção do clube proibiu a entrada dos operários em suas dependências. Este fato foi bastante revelador do abismo entre as classes sociais no Brasil. Os operários, ainda mais grevistas, não poderiam pisar o mesmo solo do publiqueto de classe média do Clube Atlético Ipiranga (aposto que isso também não mudou muito até hoje). Com A Engrenagem, surgiu em nosso grupo um claro desejo de participação nas lutas políticas e sociais do nosso tempo. Capítulo XIII Um Caminho Sem Volta Bom, a faculdade estava terminando, não dava mais pra enrolar a família. Zé e eu queríamos radicalizar. Em frente ao índio da Praça Oswaldo Cruz, numa noite de inverno, vestindo sobretudos pretos, como dois bruxos, fizemos um juramento: teatro irreversível, um caminho sem volta. Mas não um teatro de arte pela arte e sim um teatro pela transformação da sociedade brasileira. Foi assim que o grupo Oficina passou de amador a profissional. O primeiro passo para a profissionalização era ter uma sede. O TBC tinha uma sede, o Arena tinha uma sede. Meu pai, Adriano Borghi, foi um personagem importante nesse capítulo. Confiou em nós e avalizou um contrato de aluguel de um imóvel situado à Rua Jaceguai 520, onde o Oficina mora até hoje. Quando alugamos o imóvel, ele era um teatro ocupado por um grupo espírita. Chamava-se Teatro Novos Comediantes. O tal grupo foi despejado por falta de pagamento (teatro espírita não tinha muito ibope naquele tempo, ao contrário de hoje). Quando entramos no espaço para tomar posse do que havíamos alugado, encontramos só um grande espaço vazio: paredes, teto e chão de cimento batido. Os espíritas levaram cadeiras, arquibancadas, palco, cortinas, enfim, tudo que lhes pertencia. Leva-ram a alma e deixaram o esqueleto. Era preciso começar do zero, construir um novo teatro dentro de um garajão. Aí, é que eu tento explicar aos jovens de hoje e não consigo: era difícil construir um teatro, mas, ao mesmo tempo, era fácil. Era um tempo de mobilização, as pessoas se mobilizavam facilmente. O que é que tinham que vir o Vinícius de Moraes e a Nara Leão, lá do Rio de Janeiro, pra fazer shows de Bossa Nova no auditório do Mackenzie, pra ajudar um grupo de jovens, que eles mal conheciam, a levantar fundos para a construção de um hipotético teatro? Mas eles vieram e não só uma vez, algumas vezes. As poltronas do teatro foram conseguidas através da influência do saudoso Paschoal Carlos Magno. Inventamos vários outros expedientes: livro de ouro, donativos, cadeiras cativas. Meu Deus, como a Etty vendeu cadeira cativa! A gente saía no fusquinha dela vendendo pelo Pacaembu inteiro. Parecia o Sílvio Santos com o Baú da Felicidade. O que eu me lembro é que, em pouco tempo, levantamos os recursos e construímos o nosso teatrinho sanduíche, com duas platéias, uma em frente à outra e cenografia nas laterais do palco. A planta foi de Joaquim Guedes. Essa geografia seria, um pouco depois, magnificamente usada pelo cenógrafo Flávio Império. Também é preciso não esquecer que os críticos deram uma grande força para a formação do Oficina profissional. Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi nos acompanhavam desde os primórdios, do Vento Forte..., da Incubadeira, sempre afirmando que nós éramos um grupo sério, do qual muito se poderia esperar. É claro que isso dava moral para enfrentarmos problemas que ainda não conhecíamos: contabilidade, alvarás, todo tipo de burocracia e responsabilidade jurídica. Capítulo XIV A Vida Impressa em Dólar Enquanto o teatro surgia no garajão, ensaiávamos nossa primeira peça profissional: uma peça escrita por Clifford Odetts, autor americano ligado ao Group Theatre, notoriamente um grupo de esquerda nos Estados Unidos. A peça, originalmente, chama-se Awake and Sing, mas nós, em nosso ímpeto revolucionário, já traduzimos o título como A Vida Impressa em Dólar. Era a nossa vida aprisionada na incubadeira do dólar. O convite do espetáculo era uma nota de dólar. Continuando na trilha da mobilização, nós chamamos alguns profissionais importantes para trabalhar conosco. E eles vieram. Convidamos o Eugênio Kusnet, que já era um ator consagrado, havia trabalhado no TBC, com a Maria Della Costa, no Arena. E ele aceitou: Claro que eu aceito, Renato. Contanto que eu também possa ser professor de interpretação do grupo. Olha que luxo! O herdeiro de Stanislavsky, nos-so professor! Em seguida, o Zé convidou a Célia Helena, que já era bastante conhecida, tinha feito filmes, trabalhado com Cacilda Becker. A Célia ficou ali, de nossa irmãzinha, ensaiando durante toda a construção. A emoção de Celinha me deixava espantado. Um dia, num laboratório com o Jairo Arco e Flexa, ele deu um soco numa mesa e gritou: Que caia o teto!!! A mesa rachou no meio, como num filme de Kung-Fu. Parecia técnica de caratê. Trouxemos também o Fauzi Arap, que tinha acabado de se formar em engenharia, mas, assim como nós com o direito, ele não queria nada com engenharia. Só que ele foi menos esperto que nós, pois em engenharia ele teve que estudar muito mais. Não consigo imaginar um prédio construído pelo Fauzi! Ele era mais fã da Isaurinha Garcia do que o Zé e eu. Ele tinha aquelas mãos de Isaurinha, cortando o ar o tempo todo, às vezes, ocultando um pouco o rosto, enfim, personalíssimo. Na Vida Impressa em Dólar, ele fazia um judeu pobre desprezado pela mulher (Célia Helena) que ficava se queixando com a sogra (Etty Fraser): A Reny não me ama! Não quer mais fazer amor comigo. (tudo isso com forte sotaque) Me faz trocar fralda de bebê... Logo na sua primeira entrada em cena, ele deveria dizer: Este interruptor não acende?! Mas, na estréia, ele foi logo mandando: Este CORRUPTOR não acende?! Isso provocou uma grande gargalhada no público e ele já entrou em cena debaixo de aplauso. Danado, o Fauzi! Ele me causava inveja pela liberdade cênica. Ele e o Guarnieri. Eu ainda era muito presinho nesse tempo. Ainda não tinha conseguido achar um jeito meu de atuar. Estava muito amarrado às influências de Cacilda, Cleyde, Walmor. Imitava um pouco o James Dean da Mooca, do Arena. Minha personalidade cênica ainda estava indefinida, embora eu já tivesse um temperamento bastante pródigo. Por temperamento, eu entendo aquela ligação permanente, aquele fogo aceso. O único profissional que não conseguimos foi um diretor experiente e renomado para nos dirigir. Ziembinsky não podia. Flávio Rangel foi simpático ao projeto, mas consultou sua agenda e me disse com aquela saudosa voz de Pato Donald: Não posso, Renatinho. Estou comprometido até dezembro do ano que vêm. Então, eu disse ao Zé Celso: Vai você! Ele resistiu: Mas eu sou autor! Eu insisti: Não tem nada disso, não. Vai ser você. Pode começar. Ele assumiu a direção com a assessoria do Kusnet para a interpretação dos atores. Logo no começo dos ensaios, Zé Celso já mostrou quem era: radical. Hoje em dia, o choro com lágrimas na TV é uma coisa corriqueira, pois a proximidade do vídeo exige. Embora, muitas vezes, aconteça como uma técnica mecânica, sem nenhuma emoção. Mas, naquele tempo, chorar lágrimas de verdade, num momento exato e com a emoção específica, era uma lenha. A Etty, coitadinha, tinha um desses momentos dificílimos, e o Zé queria emoção de verdade com lágrimas brotando aos borbotões (é importante lembrar que estávamos muito influenciados pelo Método). Quando chegava o momento crucial, a Etty empacava. Parece que o organismo inteiro conspira para não liberar uma gotinha sequer da almejada lágrima. A Etty se desculpava: Hoje não vai dar. Acho que não vou conseguir. O Zé então descobriu que ela tinha trazido de casa pro ensaio uns pratos de porcelana muito delicados, com bordas douradas e florzinhas pintadas em esmalte. Um dia, ele passou a mão num desses pratos e ficou segurando, enquanto observava a Etty fazer a cena-problema. No tal momento crucial, ele largou o prato no chão. O pratinho fez plaft e se quebrou. Ao ver os cacos, a Etty explodiu num choro desesperado, exatamente como a cena pedia: Trabalhei demais a minha vida inteira pra ser tratada feito lixooo, oh, oh, oh... Ela nunca mais deixou de chorar naquele momento, nunca mais errou o canal. Danado, o Zé Celso! Estava muito bem iniciada sua carreira de diretor. Bem, chegou o tempo de estrear a Vida e inaugurar o novo teatro: o Teatro Oficina. Acho que Zé Celso e eu, embora ainda muito ingênuos naquele tempo, já intuíamos que seria bom ter uma madrinha poderosa que nos ajudasse a resolver entraves burocráticos, tais como vistoria da casa de espetáculos, alvará de funcionamento da Prefeitura e outras exigências legais para que o teatro pudesse funcionar. Surgiu um enxame de fiscais querendo ganhar propina, criando falsos problemas, usando de intimidação e ameaçando impedir a abertura do teatro, além de nos enviar multas descabidas e mil exigências que sabíamos desnecessárias. Quem melhor para nos amadrinhar do que a esposa do próprio Prefeito Prestes Maia? Convidamos Dona Maria Prestes Maia para cortar a fita de inauguração no dia da estréia. Ela aceitou. Dona Maria era uma ex-atriz portuguesa, muito despachada, falante. Gabava-se muito de sua franqueza rude e, pra falar a verdade, era muito franca mesmo, muito além dos limites da boa educação. Depois de assistir ao nosso ensaio geral, aquela senhora gorduchinha largou o pau português no nosso trabalho. Ela disse horrores com aquele sotaque carregado: Os atores brasileiros não sabem o que fazer com as mãos; ou fumam o tempo inteiro ou enfiam as mãos nos bolsos para esconder a sua falta de repertório; e as atrizes não têm elegância, não sabem sentar-se numa cadeira nem abrir um leque e abanar-se com estilo; e as inflexões são duras, sem aqueles volteios sonoros tão necessários ao trabalho de palco. Kusnet ficou furioso. Ficamos arrasados, mas nosso mestre nos tranqüilizou dizendo que estávamos representando personagens muito pobres e desprovidos de qualquer toque de elegância. Procurar volteios vocais seria um erro fatal na encenação. O mestre disse ainda que aquela senhora era uma representante do velho teatro e seus critérios estavam completamente superados. Claro que o mestre só disse isso depois que Dona Maria já havia ido embora. No dia da estréia, a esposa do Prefeito compareceu com chapéu enterrado na cabeça e, depois de pronunciar algumas palavras portuguesas, cortou a fita verde e amarela debaixo de uma salva de palmas. Estreamos a Vida Impressa em Dólar num dia e, no outro, a peça foi retirada de cartaz e o teatro lacrado. Como dizia minha Vó Dinda, aqui acresce uma circunstância: a censura no Brasil, mesmo antes da ditadura, já era bastante influente e reacionária. Eles nunca admitiram, mas acho que o nome da peça soou provocativo aos ouvidos da feroz direita brasileira. Mas hoje eu devo dar graças a Deus por essa proibição! Foi um escândalo imenso. Como eu já disse, era um tempo de mobilização. Décio e Sábato protestaram contra a censura da peça, assim como vários outros intelectuais de São Paulo, Rio e outros estados, além de órgãos públicos, como o Serviço Nacional de Teatro. O movimento foi de tal monta, que o então Governador Carvalho Pinto pediu vistas ao processo. A censura quis botar a culpa na casa de espetáculo, afirmando que ela não preenchia condições mínimas de segurança, mas o Prefeito ouviu os apelos de sua esposa e manteve o nosso HABITE-SE. Em poucos dias, a peça nos foi devolvida e o teatro, reaberto. Como onde há escândalo, há público, o espetáculo voltou com uma enorme visibilidade e tornou-se um grande sucesso para os padrões de um grupo iniciante. O público queria saber que peça era aquela, que causou tanto alvoroço. Na verdade e, felizmente, tratava-se apenas de uma peça muito bem realizada do ponto de vista realista que agradava bastante a platéia. A peça permaneceu vários meses em cartaz, nos permitindo pagar o restante de dívidas da construção, o salário dos profissionais e garantir nossa própria sobrevivência. Foi aí que descobrimos a importância da bilheteria. Naquele tempo não tinha Petrobras, Eletrobrás, Brasil Telecom, Centro Cultural Banco do Brasil, Sesc, Sesi, etc. Era fichas na caixa, do you understand?! Quer dizer: pagou, ficou; não pagou, faliu! Capítulo XV Namoro Com as Estrelas A revelação da bilheteria nos aproximou de algumas grandes estrelas da época. Nosso primeiro namoro foi com Maria Fernanda, filha da poetisa Cecília Meirelles. Maria Fernanda era uma mulher muito bela, de cabelos e olhos negros, pele morena e um sorriso lindo que revelava dentes muito brancos e provocava duas covinhas atrevidas em seu rosto. Além de talentosa, ela era muito culta, conhecia profundamente os poetas e declamava Lorca em espanhol com sua voz de contralto: Verde que te quiero Verde. Também cantava em russo. Ela tinha feito na Bahia, com a direção de Martim Gonçalves, Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams. Convidamos Maria para fazer o Bonde no Oficina com a direção de Augusto Boal. Ela olhou a pequena marquise do nosso teatrinho e me disse: Meu bem, o meu nome é tão grande que sozinho encheria a marquise do seu teatro. Acho que ela queria o nome dela com exclusividade na fachada do teatro. E assim foi feito. E foi ótimo, porque ela encheu a nossa marquise de público. Maria foi uma companheira estimulante e muito bem-humorada, engraçadíssima quando se punha a contar casos e aventuras vividas na Europa. Um dia, ela quase me mata de rir no final do ensaio. Boal, como sempre muito meticuloso, explicava detalhadamente nossas motivações. Maria tirou da bolsa um perfume tipo spray e começou a perfumar-se dos pés à cabeça. Boal parou de falar e, em seguida, reclamou: Pom-bas, Maria, você não está nem aí para o que eu estou dizendo? Ela respondeu fazendo um charme irresistível: Meu bem, você fala e eu me perfumo, o que é que tem? Estou ouvindo e registrando tudo, isso não impede que minhas mãos acionem o spray do meu perfume francês. Boal ficou em silêncio algum tempo, depois retomou seu discurso. Quase explodi numa gargalhada sonora, mas me contive a duras penas. Alguns anos depois, encontrei com ela na Cinelândia, durante uma manifestação política, no auge da ditadura. Era uma manhã de verão e o sol do Rio brilhava numa intensidade estonteante. Avistei Maria Fernanda sentadinha na grama passando creme no rosto, nos braços e nas pernas. Beijei-a e perguntei como ela estava. Maria radiante respondeu: Estou ótima, meu bem. Enquanto me politizo ouvindo o Wladimir Palmeira, aproveito esse sol maravilhoso pra me bronzear um pouco. Maria Fernanda era o que eu chamo de fora de série. Uma vez, durante a temporada do Bonde Chamado Desejo, Vivien Leigh veio a São Paulo fazer uma temporada no Teatro Municipal. Ela havia sido a criadora máxima de Blanche Du-Bois, personagem que Maria estava fazendo no Oficina. Fomos vê-la e voltamos encantados com a beleza da atriz inglesa. Ela já estava bem madura, mas seu rosto, em cena, parecia com a Scarlett O’Hara de E o Vento Levou. Resolvemos homenageá-la. Maria era fã de carteirinha de Vivien e ficou encantada com a idéia. Convidaríamos a atriz para vir ao Oficina durante a tarde, e então Maria Fernanda e Maurício Nabuco representariam a famosa cena de Mitch e Blanche. Ronaldo Daniel, que era filho de ingleses (tinha dupla cidadania), fa-ria uma speech em inglês, entregaria uma placa de prata a Vivien, testemunhando nossa admiração. Fomos ao Municipal convidá-la e, para surpresa nossa, ela aceitou, com a condição de que não houvesse ninguém da imprensa, especialmente fotógrafos. Concordamos, é claro. No dia marcado, um táxi parou na porta de teatro e Vivien desceu acompanhada de seu protegé, um namorado muito mais moço do que ela. A deusa usava um capuz que lhe cobria os cabelos pintados e o rosto estava um pouco intumescido, como quem tivesse acabado de acordar depois de dormir horas demais ou, quem sabe, um leve tom de ressaca... Seus imensos olhos azuis, porém, eram ainda mais belos do que no cinema. Eu estava imerso em seus olhos, quando apareceu, não sei de onde, um fotógrafo pipocando flashes. Vivien fez uma cara de horror e entrou correndo no teatro sem conhecer nada do espaço e desapareceu. Procuramos por toda a parte, banheiros, camarins e não encontrávamos nada. Maria Fernanda começou a ficar nervosa. Foi quando me deu a idéia de descer ao porão. Tudo escuro. Ouvi um leve suspiro. Acendi as luzes e lá estava a diva agachada, com a cabeça enfiada num caixote. Fui me aproximando e falei carinhosamente com ela: Miss Leigh, they are gone. No press anymore. Let’s go upstairs. Maria Fernanda is waiting for you. Ela tirou a cabeça do caixote e perguntou: Are you sure? Yes, of course, respondi. Vivien levantou-se e, elegante, sorriu para mim, murmurando: Thank you. Em seguida, me deu o braço e subimos, em silêncio, as escadas do porão para o teatro. Era a própria Blanche DuBois, na cena final do Bon-de. A cerimônia começou: Maria representou duas cenas e Ronaldo discursou entregando a placa de prata. Depois, um alegre bate-papo. Vivien ficou encantada ao saber que Fernanda era filha de uma poetisa. Fernanda contou que a mãe estava com câncer, internada num hospital no Rio de Janeiro. Quando Vivien fez a temporada carioca, ficou quase todo o tempo como acompanhante de Cecília Meirelles. Ficaram grandes amigas. Outra grande estrela que nós namoramos foi Madame Henriette Morineau. Pra quem não sabe, Madame foi uma grande atriz na França. Ela veio ao Brasil com a Companhia de Louis Jouvet. Chegou de casamento marcado com um tal de Morineau, um francês muito chato com quem ela teve uma filha, Antoinette. O casal se deu pessimamente. Madame queria retomar a excursão pelo mundo com Jouvet, levando a filha, mas o marido a impediu judicialmente. Madame foi ficando no Brasil, lutando pela filha. Durante esse tempo, Madame entrou em contato com o teatro profissional brasileiro: dirigiu peças para Bibi Ferreira, aprendeu a falar português (embora com um sotaque carregado) e, logo, já estava representando pra nós. Madame se tornou uma das grandes estrelas do nosso teatro, na Companhia Artistas Unidos, que ocupava, permanentemente, o Teatro Copacabana. Ela fazia um repertório moderno pra época: Chérie, Gigi, Medéia. Madame não se dizia adepta de laboratórios de cena, mas, sem saber, ela fazia exercícios que lembravam métodos de Lee Strasberg. Ela me contou que, enquanto ensaiava Medéia, não se sentia no direito de exclamar: Ai de mim! Ai de mim! Então Madame pediu ao elenco que colocasse uma cama em cima dela e que todos ficassem pulando sobre a cama até que ela quebrasse e que, ainda assim, todos permanecessem sobre o estrado quebrado exercendo sobre ela uma opressão física. Só então, esmagada por todos os lados, ela conseguiu um gemido verdadeiro: Aiii de mím!! Aiiii de mim!!! Marília Pêra fazia uma das filhinhas assassinadas pela Medéia/Morineau. Convidamos Madame para fazer Todo Anjo é Terrível, de Katty Frings, peça inspirada no romance Look Homeward, Angel, de Thomas Wolfe. Eu fiz o convite por telefone e ela prontamente disse: Quando começam os ensaios? Eu respondi: Quinta-Feira. Estarrrei aí, disse Madame, encerrando o telefonema. Nem perguntou quanto ia ganhar. No dia marcado, ela chegou de fato. Mas que chegada foi aquela, meu Deus! Zé e eu não estávamos ainda formados na Universidade das Estrelas. Não entendíamos nada das etiquetas e formalidades exigidas para receber alguém como Henriette Morineau. Madame veio de trem e, quando desembarcou na estação Roosevelt, não havia nenhum de nós esperando por ela. Um secretário meloso de um metro e meio acompanhava a grande atriz. Em meu pequeno apartamento na Rua Humaitá, dormíamos todos tranqüilamente: Zé, eu e mais um monte de gente. Meu apartamento era, naquele tempo, uma espécie de albergue para os colegas sem-teto. Lá pelas oito da manhã, mais ou menos, tocou a campainha. Acordei meio tonto e fui ver quem era. Quase desmaiei de susto. Na minha frente, estava uma imponente senhora de quase dois metros de altura, ladeada por seu minúsculo secretário. Fiquei paralisado. Eu estava ali, de cuecas, e Madame na minha frente. Quando dei pela coisa, cobri a região genital com as duas mãos, como se adiantasse alguma coisa. Depois de um silêncio que me pareceu eterno, consegui exclamar: MADAME!!!! Ela invadiu o apartamento, batendo palmas e falando muito alto: Que verrrrgonha! Todos esses meninos dorrrmindo até essa horrra. Isso é maneirra de receberrr uma atriz que vocês convidaram para trabalharrr? Ninguém na estaçon, nem uma florr! Ela correu para a janela da sala arreganhando-a impiedosamente. Continuava a bater palmas: Vamos, vamos levantando que Morineau chegou. Os colegas de sono estavam aparvalhados, todos cobrindo o pinto, correndo pro banheiro, pra cozinha, um deus-nos-acuda. Ela continuava batendo palmas: Vamos, vamos vestindo essas rroupas que eu querro conhecerrr o teatrro. Vamos trabalharrr, seus prreguiçosos, eu vim aqui para trabalharrr. Vestimo-nos rapidamente (um no quarto, outro no banheiro, outro na cozinha), e saímos pela manhã paulista com Madame e seu secretário, caminhando em grupo em direção ao Oficina. Com Madame, aprendi muitas coisas que Stanislavsky, através do Kusnet, não deixava muito claras pra mim. Quando se deve andar, quando se deve parar para expressar mais claramente uma idéia. Quando a gesticulação é livre e quando é melhor manter as mãos quietas. Madame dominava muito bem a ciência corporal. Aprendi também algumas outras malícias de bastidores. Não se deve chegar na estréia de alguém e ir ao camarim depois para dizer franquezas como: Achei uma droga o seu espetáculo! A pessoa ainda está com o coração quente, suada da estréia, fez o melhor que podia, não merece esse choque. Fui ver com Madame A Visita da Velha Senhora, de Dürrematt. Era a primeira direção de Walmor Chagas. Quem fazia a protagonista era a minha deusa Cacilda Becker. Uma grande produção. Antes da entrada triunfal da Velha Senhora, desfilavam pelo palco jaulas com panteras, onças, macacos, cotias; parecia um jardim zoológico. Num determinado momento, Cacilda dizia: O mundo fez de mim prostituta, eu faço do mundo um bordel! Eu achei lindo! Aliás, tudo que Cacilda fazia eu achava lindo. Quando terminou o espetáculo, olhei pra Madame e ela me disse com aquele sotaque carregado: Eu non gostei! Então eu propus a Madame que fôssemos embora logo. Ela rechaçou a idéia: Non, eu preciso ir lá dentrrro falarrr com eles. Eu tentei impedir: Madame, mas a senhora não gostou. Ela me olhou muito séria e respondeu: Deixe comigo. Entrou para os camarins. Quando Cacilda viu Madame ficou comovidíssima, estendeu pra ela os bracinhos magros e suspirou: Madame, que alegria! A senhora veio. Então, o que achou do nosso espetáculo? Madame agarrou Cacilda num abraço tão forte que quase quebrou aqueles ossinhos frágeis e exclamou: Ooooooohhhhhhh!!! Sssssshhhhhhh!!! Então saiu sem dizer mais nada. Lá fora, eu quis satisfazer minha curiosidade ingênua: Madame, mas a senhora odiou!. Ela me respondeu sorrindo: Non seja bobo, eu posso ter dito: Oooohhhh, que drrroga! Ou Sssshhhhh, que merrrda! Ah! Ainda me lembro que, alguns anos depois, ela me comunicou: Vou levantar as persianas. Na hora não entendi. Ela queria dizer que ia fazer uma plástica com o Pitanguy. Essa era minha querida Madame Henriette Morineau. Fomos amigos durante toda a sua vida. Um dia, muitos anos depois, fui vê-la representar em Ensina-me a Viver. Estava, como sempre, genial. Acho que foi Madame quem lançou no teatro o jovem ator Diogo Villela. Fui dar um beijo nela depois do espetáculo. Madame estava radiante: Oh, meu filho, que saudade. Como estás? Viste que sucesso! Foi então que me segredou no ouvi do: Sabes, ontem tive uma isquemia no corraçon em cena aberrta, mas levei o espetáculo até o fim. Eles querriam me prenderr no hospital, mas eu não concorrdei. Não querro pararr o espetáculo. Fiquei inquieto e adverti: Madame a senhora está correndo um perigo enorme. Ela sorriu e me disse com todas as letras: Querro morrerr no palco, meu filho, aqui é meu lugarr. C’est la gloire! Meses depois, ela teve o enfarte anunciado. Veio internar-se no Hospital do Coração para ser operada pelo Dr. Zerbini. Quando as visitas foram liberadas, fui visitá-la. Ela estava feliz, com muitos planos, mas precisaria ficar em São Paulo por mais de dois meses para consultas semanais. Convidei-a a ficar morando comigo durante esse tempo de recuperação. Madame aceitou o convite e veio com sua filha única, Antoinette. Conversamos demais nesse período. Madame contava seu passado na França, seus estudos de teatro no Conservatoire de Paris, seu amor por um pai misterioso que ela nunca via, enfim, seus primeiros amores e o casamento infeliz com um tal de Morineau, pai de Antoinette. Ficávamos sentados na sala: Elias Andreato, Madame e eu. Às vezes, parecia que o século 19 tinha invadido meu apartamento. Nessa altura, eu já havia deixado o Oficina há muitos anos e morava num grande apartamento na Al. Santos, onde resido até hoje. Madame voltou para o Rio e ainda fez uma peça. Voltava a cada mês para consultas de rotina. Foi então que comecei a notar mudanças acentuadas em seu comportamento: lapsos freqüentes, perda de memória; às vezes, no meio de uma conversa banal, ela se punha a falar numa língua incompreensível. A seguir, pedia desculpas e continuava a conversa normalmente de onde havia interrompido. Foi o princípio de uma longa agonia. Não era possível continuar trabalhando. Antoinette tentou levá-la para Miguel Pereira, onde Madame tinha uma casa de campo. Não foi possível permanecer lá por muito tempo. Minha amiga desaparecia durante a noite e vagava pelas ruas da cidade de camisola. Um dia, sumiu por longas horas, vagando pelos campos. Foi preciso interná-la. Quando melhorou um pouco, ficou uns tempos na Casa do Artista. Depois a situação agravou-se. Não conhecia mais ninguém e, logo a seguir, voltava a conhecer. Era uma esclerose galopante. Maria Fernanda liderou um movimento de artistas solicitando das autoridades a internação permanente de Morineau. E assim foi feito. Ela permaneceu internada por uns tempos e faleceu num leito de hospital. O velório foi no saguão do Teatro Villa-Lobos. Minha comadre Regina Malheiros me telefonou do Rio me avisando. Tomei o primeiro avião. Quando cheguei, uma enorme decepção. Havia pouquíssima gente no velório. Marília Pêra e Beatriz Segall estavam lá, mas a classe teatral esteve quase ausente. A noite foi muito triste. A filha, Antoinette, eu e mais algumas pessoas ficamos por lá. Pela manhã, apareceram mais algumas pessoas. Na hora de fechar o caixão, ouviu-se uma voz de homem que perguntava aos gritos com uma voz chorosa: Onde está ela? Onde está ela? Era Guilherme Figueiredo que chegava. Ele adentrou o recinto, aproximou-se do caixão e pronunciou um discurso de cortar o coração: Madame, hoje a casa não está lotada como a senhora gostaria. Em compensação, estão aqui presentes aqueles que a amaram de verdade, todos eles representantes do que se faz de melhor no Teatro Brasileiro. Descanse em paz, minha grande amiga, e leve consigo a nossa eterna saudade. Como reconhecimento de todo seu maravilhoso trabalho e tudo que a senhora fez pelo teatro de nosso país, eu a condecoro com a medalha da Legião de Honra que me foi concedida pelo governo francês. A mais alta condecoração da França para a francesa mais brasileira do que qualquer um de nós. Receba nossa homenagem e nossa infinita gratidão. Dizendo essas breves palavras, soluçando alto, Guilherme condecorou o peito de Madame com a medalha que ele dizia ser o seu bem mais precioso. Todos nós soluçamos com ele. Fecharam o caixão. Certamente, esse não é o fim de uma grande estrela. Ela continua a empunhar a tocha com o fogo-sagrado do Teatro. Esta foi uma das últimas imagens que tive de Madame em uma leitura de O Rei da Vela, feita pelo Zé Celso nos anos 80: ela estava paramentada como uma espécie de Estátua da Liberdade, empunhando a famosa tocha e tendo, a seus pés, as atrizes-sacerdotisas Norma Bengell e Odete Lara. Que saudades, Madame! Capítulo XVI Os Pequenos Burgueses Meses depois de eleito, o Jânio Quadros renunciou. Nunca disse por quê. Até na hora da extrema-unção, o Padre deve ter perguntado com a hóstia na mão: Por que você renunciou? Por quê?!!! Mas o Jânio não disse, levou o segredo pro túmulo. Quem devia tomar posse no lugar dele era o vice-presidente eleito pelo voto popular, João Goulart, o Jango. Ele tinha ideais socialistas. A extrema-direita do exército e a classe média reacionária não queriam a posse de Jango de forma alguma. Começou uma luta pela legalidade. O Brizola ameaçava vir do Rio Grande do Sul com suas tropas para garantir a posse de Jango. Os eternos políticos de centro tentaram passar uma vaselina na situação com uma emenda parlamentarista para diluir os poderes do Presidente Jango. Foi uma palhaçada, ninguém tinha a menor experiência com parlamentarismo. É claro que não funcionou. O Jango tomou posse e parecia que o país mudaria efetivamente de rumo. Falava-se em Reforma Agrária, Ligas Camponesas, Revolta dos Marinheiros e a adesão dos estudantes ao movimento socialista era evidente. O Brasil estava caminhando para a esquerda. Foi quando o Kusnet colocou em nossas mãos uma peça russa do começo do século que era o retrato do Brasil de 1963. Tratava-se de Pequenos Burgueses, de Maxim Gorky. A peça mostrava uma Rússia em mutação, as primeiras manifestações de revolta popular contra a injustiça e o absolutismo do poder czarista. Além disso, o texto também abordava o nosso tema fundamental da época, o conflito de gerações: pais que não entendem os filhos críticos e apáticos, e filhos que não entendem os pais ignorantes e conservadores. Pensionistas da casa dos Burgueses também traziam ecos da revolução para o ambiente familiar. A peça terminava com a Internacional Comunista não como propaganda, mas como um prenúncio do que aconteceria em 1917. A peça era perfeita para o momento e para nós. Ela abrigava todo o elenco do Oficina, tinha ótimos papéis pra todos os atores. Ítala Nandi, Fernando Peixoto e Moema Brum, recém-chegados do Sul, também foram incorporados à montagem. Os ensaios foram muito rigorosos; seis meses aproximadamente. Nós íamos da análise científica do texto à total liberdade emocional dos laboratórios para depois voltarmos a um novo exame racional da partitura de Górky. Até então, confesso que ainda não tinha compreendido de forma orgânica a aplicação do Sistema Stanislavsky, que já estudava com o Kusnet havia dois anos. Acho que fingia que entendia. Ficava me espremendo por uma memória emotiva e nada. Mas nos Burgueses, a ficha caiu. Não só pra mim, acho que a ficha caiu pra todo mundo. A tal ponto, que causávamos no público a impressão de que éramos aquelas pessoas. A publicidade da peça foi inspirada nesse processo de identificação: Você pode ser um personagem, Com quem você se identifica? O trabalho do Kusnet para criar o pai Bessemenov era assombroso. O texto dele, com as anotações de seus subtextos, devia estar exposto em um museu. O curioso é que o trabalho dele partia de um exame meticuloso, frio e calculado das falas e situações da personagem, mas o que aparecia no palco era de um forte impacto emocional. Tanto que, anos mais tarde, Abraão Farc e eu fizemos este mesmo papel e não conseguimos nos libertar da forma Kusnetiana. Eu me surpreendia falando com sotaque russo! É impossível esquecer do Kusnet tentando trazer com os braços as calças largas até a cintura e bradando: Outra vez compraram açúcar em tabletes! Quantas vezes já falei! E a Etty, que fazia a mamãezona apaziguadora, sempre tentando acalmá-lo e colocar panos quentes nas brigas intermináveis do pai com os filhos: Deixa, paizinho! Que importância tem isso? Sobraram uns pasteizinhos doces do almoço, quer? A Célia Helena fazia a minha irmã, era o tédio em pessoa, uma jovem que não tinha fé em absolutamente nada. Ela caminhava lânguida pela casa e murmurava em tom profundo: Nada mais me parece que é verdade. Apenas que isso sou eu e aquilo é uma cadeira. Quando eu digo sim ou não, eu não digo com convicção. Eu digo sim e logo em seguida penso: será? Talvez seja não. Lembro-me muito bem de um diálogo engraçado que abria a peça entre a Célia e a Miriam Mehler, que era a Polia, a criadinha ingênua, cheia de esperanças: Miriam / Polia (ajoelhada ao lado de Tatiana que lê um livro) Eu queria tanto conhecer esse autor. Como será ele? Moço, velho, moreno? Célia / Tatiana Quem? Miriam / Polia O escritor! Célia / Tatiana (com desprezo) Morreu! E o meu personagem, o Piotr, um estudante de direito pusilânime, reacionário, fazendo discursos para encobrir sua fraqueza: Eu não quero, não sou obrigado, não me submeto à lei de sociedade nenhuma. Eu sou um indivíduo e o indivíduo é livre! O Bêbado Teteriev era um dos personagens que mais impressionavam. Ele era o arauto da destruição da classe média. Todos que fizeram esse papel se saíram muito bem na carreira: Raul Cortez, Fauzi Arap, Ítalo Rossi, Luiz Linhares, Francarlos Reis. Teteriev Veneráveis bípedes, pagai o bem estritamente com o bem. Quanto ao mal, pagai cem vezes mais. Sede pródigos em retribuir ao próximo pelo mal que ele vos ocasionou. Se, quando pedirdes um pão, vos derem uma pedra, descarregai sobre a sua cabeça uma montanha!!! Capítulo XVII Andorra e o Golpe de 64 Era uma vez uma cidade branca como a neve: Andorra. Todos os cidadãos eram bons, puros, honestos. A Segunda Guerra Mundial estava em curso, mas Andorra ainda permanecia um local seguro. Um professor da cidade tinha negócios pra além da fronteira, no lado nazista. No retorno de uma de suas viagens, ele surge com uma novidade: um garotinho. O professor disse que trouxe o menino para Andorra para salvá-lo dos nazistas, pois o garotinho era judeu. Mentira. O menino era filho dele com uma mulher do lado nazista. Mas ele cria Andri como filho adotivo para não ter que dar explicações à sua mulher em Andorra. Andri cresce num ambiente feliz. Todos na cidade gostam muito dele. Ele se torna um exímio marceneiro. Até que um dia começa a pairar sobre Andorra a ameaça da invasão nazista. Os andorranos se apavoram com a idéia de perder seus negócios e propriedades. Era preciso entregar alguma coisa aos nazistas. A cidade, inconscientemente, começa a buscar por um bode expiatório. Quem melhor do que Andri, o judeu. A partir daí, o olhar dos andorranos muda para com Andri. Tiram o rapaz da marcenaria porque judeu não sabe trabalhar com madeira. Colocam o menino no caixa do bar, porque judeu gosta mesmo é de tratar com dinheiro. Depois, tiram ele do caixa porque judeu gosta demais de dinheiro. E começam a dizer que judeu torce as mãos como usurário e que judeu não tem sentimentos, judeu não ama. As atribuições vão a tal ponto que Andri se assume como judeu, mesmo depois de saber pela mãe verdadeira que não o era. Andri é fuzilado pelos nazistas em praça pública com a população de Andorra assistindo quieta e de braços cruzados. Andorra foi a resposta que o Grupo Oficina encontrou para discutir com sua platéia a nova rea lidade criada pelo golpe militar de 1964. Foi a época da caça às bruxas, do dedo-duro, da criação do bode expiatório e da omissão. Onde estava escrito judeu, a platéia, cúmplice de nossa metáfora, lia esquerdista, socialista, comunista. Muita gente foi presa e a classe média reacionária fazia que não via: Quem mandou ser comunista?! Problema deles, eu tenho de cuidar é da minha família: eu, meu marido e meus filhos. Quando eu disse pra minha empregada que era comunista, ela se benzeu três vezes e me olhou como se eu fosse um bichopapão. Nora Ney foi expulsa da Rádio Nacional por ter visitado a União Soviética. Eu, Zé Celso e Fernando Peixoto tivemos de fugir no auge do sucesso de Pequenos Burgueses. Um telefonema nos salvou. Seríamos presos no dia seguinte ao golpe porque a peça acabava com a Internacional. Ficamos refugiados num sítio do pai da Célia Helena lá pelo interior, na região de Taubaté. Sem luz elétrica. A única coisa que se ouvia de noite era o mugido dos bois. Um confinamento de dois meses. Até que resolvemos descer ao Rio de Janeiro pelo litoral, que era mais ermo. No Rio, constituímos advogados e voltamos a São Paulo para depoimento no Dops. Quem nos ajudou muito foi Cacilda Becker. Ela foi uma espécie de advogada da classe teatral, levava os generais no bico. Cacilda nos orientava: Não se preocupem, eu vou dar a idéia de que vocês são burrinhos e muito ingênuos. Aí, ela argumentava com os generais: General, eles são apenas rapazes idealistas. Não me diga que o senhor também não foi idealista na juventude. Duvido que não. Eles são rapazes honestos, amam o Brasil, só querem trabalhar em paz. Fomos liberados junto com Pequenos Burgueses, mas tivemos de trocar a Internacional pela Marselhesa no final da peça. Enquanto estávamos fugidos, Etty Fraser e Ítala Nandi produziram, às pressas, uma comédia bem ingênua para desviar a atenção dos milicos do Oficina e ainda garantir a sobrevivência econômica do grupo. A comédia era Toda Donzela Tem Um Pai Que é Uma Fera, do Gláucio Gil. Chamaram também alguns atores que já faziam sucesso na época como galãs de televisão: Tarcísio Meira e Fúlvio Stefanini. No elenco feminino tínhamos Miriam Mehler e Ítala Nandi, que foi reconhecida pela crítica como uma grande revelação de atriz no papel de uma loira burra, a Loló. Kusnet permaneceu solidário conosco e fez o general, pai da donzela. Na volta dos Burgueses para o Oficina, transferimos aDonzelapara o Teatro Natal e tivemos, pela primeira vez, a feliz experiência de contar com a bilheteria de dois sucessos ao mesmo tempo. A peça que estávamos trabalhando antes do golpe era Pena Que Ela Seja Uma Puta, um clássico renascentista de John Ford, que havia sido encenada pelo Visconti com a Romy Schneider e o Alain Delon. Em nossa versão, os papéis dos irmãos incestuosos seriam feitos por mim e pela Miriam Mehler. Eu estava com ela em Campos do Jordão estudando a peça. Quando descíamos para São Paulo, escutamos pelo rádio do carro o anúncio do golpe. Antes de fugirmos pro sítio do pai da Célia, percebemos que a montagem colorida de Pena Que Ela Seja Uma Puta não fazia mais sentido diante da urgência da situação. Foi quando decidimos pela aridez de Andorra. Definitivamente, era a peça certa na hora certa.Andorratambém representou para o Oficina uma transição de lingua-gem. Já estávamos namorando Brecht e a tensão criada pelo golpe de 64 nos aproximou ainda mais das estratégias de encenação do alemão. O texto de Max Frisch (Andorra) se prestava inteiramente às nossas experiências brechtianas. O autor rompia com a quarta parede, aquela parede imaginária insuportável que foi criada para fingir que o público não está ali. Em Andorra, os atores-personagens tinham de prestar depoimentos à platéia. Precisavam explicar por que deixaram Andri ser assassinado. No campo da cenografia, deixamos de lado a incubadeira das salas familiares. Flávio Império criou uma praça pública toda branca. Carrinhos entravam e saíam trazendo as sugestões dos ambientes. Luminosos estilizados davam um toque original à cidade. Os figurinos variavam entre o branco e o preto. Na interpretação, acho que dei um grande salto como ator. Descobri que na estrutura desta peça, a histeria emocional não me levaria a lugar algum. A clareza das idéias importava mais que tudo. Quanto mais lúcido e consciente eu fosse na comunicação, mais eu tocaria a cabeça e o coração da platéia. Lembro de um monólogo de quase 20 minutos em que eu, lentamente, ia escorregando por uma parede. O público ficava em estado de suspensão. Acho que começava assim: Atirei meu nome pro ar como se fosse um boné e o que vem de volta é uma pedra que me mata. Morineau trabalhou conosco pela segunda vez no papel misterioso da mulher de negro, que, na verdade, era a mãe nazista do pseudojudeuzinho Andri. Ela era habitante do lado nazista e cruzava as fronteiras para contar a Andri que ele era seu filho com o professor andorrano que o adotara, mas que, na verdade, era seu verdadeiro pai. A participação de Madame durava cerca de vinte minutos e ninguém conseguia ver mais nada além da presença daquela maravilhosa atriz. Após um silêncio, ouvia-se o som de passos firmes produzidos por um sapato de salto alto. Aquela mulher enorme preenchia toda a cena, as pernas como duas colunas do Parthenon. De repente, Madame exclamava: Non exixtem mulherres em Andorrra?! Inesquecível! Capítulo XVIII Tônia Carrero: a Fada Madrinha da Fama Todo mundo tem uma fada madrinha. A nossa foi a fada mais bela que se pode conceber: Tônia Carrero. Ela passou por São Paulo na época de Pequenos Burgueses e disse: Gente, vocês têm de levar esta peça para o Rio de qualquer jeito! Naquele tempo, era o Rio de Janeiro que lançava moda para o Brasil. Mas como? Nós éramos um grupo iniciante, sem condições de bancar uma temporada por nossa conta no Rio: hospedagem, alimentação, transporte, mídia, aluguel de teatro. Ela sorriu: Eu emprego vocês no Rio. Pago todas as despesas de produção e ainda divido o lucro com vocês. Só mesmo uma Fada Madrinha! A estréia dos Burgueses no Rio de Janeiro foi uma explosão. O Maison de France lotado com antecedência, meses a fio. A imprensa nos dedicou o maior espaço que já vi ser dado a uma manifestação teatral até os dias de hoje. A crítica nos exaltava. Nos tornamos um mito de qualidade e seriedade, uma reunião de grandes talentos. A versão para o palco italiano do Maison foi dirigida por Fernando Peixoto, pois Zé Celso estava em bolsa de estudos na Europa desde meados de 64. Ele foi pra lá como um diretor sério e promissor. Ao voltar, no auge do sucesso carioca de Pequenos Burgueses, Zé Celso havia se tornado uma celebridade, uma Malu Mader. No primeiro dia que viu o espetáculo no Rio, ele odiou tudo, deu a maior bronca em todo mundo, nos chamou de mecânicos, vendidos por uma risada. Mas, logo em seguida, ele compreendeu que a peça tinha um humor provocante, que os problemas daquela família eram risíveis e começou a nos conduzir para um realismo mais crítico e menos psicológico. A identificação das famílias de classe média cariocas com as personagens foi um fenômeno. Aquela publicidade usada em São Paulo: Você pode ser um personagem! Com quem você se identifica? pegou como uma praga. Às vezes, você estava deitado na praia, se bronzeando ao sol de Ipanema e, de repente, alguém passava e gritava apontando o dedo na sua cara: Eu sou você! Levei cada susto! O sucesso foi de tal monta que até o ditador Castelo Branco também foi assistir ao espetáculo. Comprou dez cadeiras, cercou-se de seguranças e ficou sentado do meio do círculo. No final, dirigiu-se ao camarim comovido. Queria cumprimentar o elenco. Ele foi recebido por Tônia Carrero, nervosíssima, sabendo do pepino que tinha nas mãos. Tônia entrou nos camarins com seus olhos azuis bastante arregalados e nos comunicou suplicante: Gente! O presidente está aí, ele quer cumprimentar o elenco. Claro que ela já sabia a resposta, tratava-se de um elenco radical. Todos respondemos em uníssono: Não damos a mão a ditador. Tônia estava prestes a chorar, andando de lá pra cá e falando conosco baixinho: E agora, o que é que eu faço? O homem está aí fora, meu Deus. Claro que a múmia diplomática (eu) compadeceu-se com a aflição de nossa fada madrinha. Fui até lá: Boa-noite presidente. Eu queria cumprimentar o elenco e dizer que me identifiquei especialmente com o senhor. Fiquei mudo. O ditador se identificava comigo. Capítulo XIX Teatro Opinião O Teatro de Arena desse período pós-golpe tinha mudado completamente sua postura. Ninguém brincava mais de casinha ou de James Dean da Mooca. Os atores (e autores) adotaram uma atitude guerreira, marcial. Erguiam os braços de punho cerrado e cantavam: É Zumbi no açoite – ti – ti – É Zumbi. Era um tempo de guerra, era um tempo sem sol. O Vianinha já tinha saído do Arena e formado um grupo no Rio com Ferreira Gullar e João das Neves: o Grupo Opinião, que ficava sediado na mesma galeria do Teatro Tereza Rachel, em Copacabana. Foi lá que eu assisti a um show dirigido pelo Boal com Nara Leão, João do Valle e Zé Ketti. Nara, depois, foi substituída pela jovem Maria Bethânia, que foi lançada no showOpinião para todo o Brasil. Nunca mais vou me esquecer: Podem me prender, podem me bater e podem até deixar-me sem comer, que eu não mudo de opinião, aqui do morro eu não saio não. Ah, é dessa época também o espetáculo Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes, com direção de Flávio Rangel. Paulo Autran contracenava com Vianinha nesse histórico espetáculo do Teatro Opinião. Começava com o Paulo dizendo assim: Eu sou um homem de Teatro... e todo mundo aplaudia. Atualmente, estou fazendo essa peça depois de passados 40 anos. É impressionante a atualidade que o texto revela junto aos jovens universitários, provocando discussões e debates altamente esclarecedores sobre o momento que estamos vivendo em nosso país. O projeto Teatro nas Universidades foi criado por Paulo Goulart e Nicette Bruno. O objetivo do projeto é reconquistar o público universitário que vem sistematicamente abandonando nossas salas de espetáculos nos últimos vinte anos. O sucesso do projeto configurou-se de forma absoluta. Fizemos 40 espetáculos em mais de 30 Universidades na Grande São Paulo, sempre com casas lotadas e reações calorosas. A nova montagem da peça não foi um caso de nostalgia explícita. Mais que nunca é preciso pensar! Capítulo XX O Incêndio do Oficina Em 1966, já consagrado nacionalmente, o Oficina retornou a São Paulo para a criação de seu novo espetáculo: Os Inimigos, de Maxim Gorky. A peça radicalizava em uma questão que aparecia apenas timidamente em Pequenos Burgueses: a luta de classes, a luta entre patrões e empregados. Zé Celso tinha visitado o Berliner Ensemble durante seus estudos na Europa. Voltou com uma mala cheia de preciosidades: discos com Lotte Lenia cantando Kurt Weill, Gisella May cantando Eisler e Dessau, além de gravações com as vozes de Ernst Bush, Ekhart Shaw e Helene Weigel interpretando textos de Brecht. A Antígone de Weigel era especialmente surpreendente, por expressar os fatídicos Ai de mim! Ai de mim! não com gritos grotescos e sim com claros sussurros. A influência de Brecht foi evidente no resultado de Os Inimigos. A trilha sonora foi encomendada a um menino-prodígio chamado Chico Buarque. Os cenários de Flávio Império eram épicos e grandiosos, a tal ponto que não era possível encenar o espetáculo em nosso pequeno teatro sanduíche. Arrendamos então o TBC e alugamos o Oficina para Ary Toledo, que teve ali seu primeiro grande sucesso: A Criação do Mundo Segundo Ary Toledo. Não havia papel pra mim em Os Inimigos. Durante o longo período de ensaios fui à Europa para ver o teatro por trás da antiga cortina de ferro. Passei quase um mês convivendo com os atores do Berliner Ensemble e assistindo a seus magníficos espetáculos. Era inverno, muitos graus abaixo de zero. Na frente da sede do Berliner havia um lago de águas negras cercado de neve e com um único pato nadando em meio à bruma invernal. Enfim, sobre essa viagem e algumas outras, precisarei de outro livro para contar. Voltei ao Brasil após a estréia de Os Inimigos. Adorei o espetáculo. Era uma transição, uma passagem do Oficina para outra fase que eu não sabia muito bem como seria. Lembro demais de Célia Helena no papel da atriz Tatiana Lugova, vestindo figurinos suntuosos de Flávio Império. Celinha mudava de personalidade fumando uma longa e elegante piteira. Outra bela interpretação esteve a cargo de Beatriz Segall no papel da tempestuosa proprietária Cleópatra. A cena de Beatriz sobre o cadáver do marido assassinado era de uma originalidade rara em nossos palcos. Aliás, anos antes, Beatriz havia substituído Madame Morineau em Andorra, trazendo um clima todo seu à personagem, sem qualquer preocupação com o que Madame tinha apresentado. A atriz fez sua própria criação. O mesmo fenômeno aconteceu quando Bia substituiu Célia Helena em Pequenos Burgueses. Uma manhã, nossa empregada subiu correndo a Rua Humaitá gritando: Seu Renato, Seu Zé, acorda! O Teatro tá pegando fogo!!! Abri a janela que tinha vista para o Oficina e deparei com o nosso teatrinho em chamas. Corremos pra lá, Zé e eu. Não havia mais nada que fazer. Os bombeiros tentaram de tudo, mas, em poucos minutos, o teto caiu e do nosso Oficina só restavam paredes queimadas. Até hoje, não se sabe ao certo se o incêndio foi acidental ou criminoso. Eu e Zé Celso sentamos no meio-fio perplexos, sem saber o que fazer. De repente, parou um táxi preto na frente do teatro e desceu o Antunes Filho. Bem, essa estória é muito boa, mas deixarei aqui um gancho para uma nova publicação. Passado o atordoamento inicial com a tragédia, decidimos que era preciso agir: construir outro teatro no mesmo local. Cacilda Becker foi nossa madrinha nessa fase difícil. Numa tarde memorável, com quase toda a classe teatral presente, ela quebrou uma garrafa de cachaça sobre os escombros, dando início à reconstrução. Ela e Walmor nos cederam seu teatro para que fizéssemos lá um festival retrospectivo dos maiores sucessos do Oficina até então. O repertório escolhido foi A Vida Impressa em Dólar, Pequenos Burgueses e Andorra. O Jornal da Tarde, através do Sábato Magaldi, lançou a campanha Dois por um – Compre dois ingressos pelo preço de um. O Teatro Cacilda Becker lotava todas as noites. Com o sucesso da renda, começamos a organizar a reconstrução do Oficina. Flávio Império foi incumbido da planta do novo teatro. Seguimos para o Teatro Maison de France, no Rio, com outro repertório: Andorra e Quatro Num Quarto, inéditas no Rio, e o incansável sucesso Pequenos Burgueses. Andorra, para minha surpresa, me deu o primeiro prêmio Moliére de minha carreira, aos 28 anos. Além disso, a renda da bilheteria no Rio foi tão generosa que permitiu ao grupo todo se instalar na cidade por nove meses. Os lucros eram enviados a São Paulo para as obras do novo Oficina, que já estavam em pleno vapor. Durante a temporada de sucesso no Rio, não conseguíamos nos aquietar e chegar ao teatro somente à noite para representar os espetáculos. Criamos seminários: um de filosofia e marxismo com Leandro Konder e outro sobre o gesto social com o Luiz Carlos Maciel. O grupo foi tomado de uma febre, pesquisamos o comportamento físico de várias classes sociais e profissionais: o operário, o bancário, o empresário, o político, a dona-de-casa, a feminista, a empregada doméstica, etc. Nosso alvo favorito continuou sendo a classe média, ou melhor, a cafonice da classe média: o pingüim de geladeira e todos os valores reacionários e equivocados. Estes laboratórios se expandiram para além do nosso grupo, começaram a ser freqüentados também por toda a classe teatral carioca. Lembro-me muito dos exercícios com a Odete Lara brincando de Ferreira Gullar com o guarda-chuva debaixo do braço, a Betty Faria fazendo a Nara Leão com o pescoço caído pro lado. Impulsionado por essas experiências, passei a sentir a necessidade de trabalhar um texto genuinamente nacional. Capítulo XXI O Rei da Vela Um dia, por acaso, encontrei na estante de minha casa um livrinho com as páginas amareladas e comidas de traça. Era O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Li e me espantei que aquele texto fosse praticamente desconhecido até então. Oswald cometia nessa peça o exercício da antropofagia, ou seja, devorava o Brasil capitalista-colonial. Miseráveis na jaula, exploradores comprando ilhas na Baía de Guanabara. O escritor modernista tinha uma lucidez cáustica, impiedosa; fazia uma autopenetração através da peça como se nos enfiasse uma faca no peito e nos deixasse escorrer a dor de ser brasileiros. O verbo era de fogo, incandescente. Li a peça para o grupo. Fernando Peixoto e Ítala Nandi aprovaram minha idéia imediatamente; Zé Celso ficou um pouco receoso. Era uma dramaturgia caótica, diferente de tudo que o Oficina tinha realizado até então. Passei a ler o texto em vários apartamentos de amigos, em universidades, clubes, etc. Eu lia todos os papéis. A reação dos ouvintes era de espanto, perplexidade e diversão. O Rei da Vela divertia, apesar de machucar. Zé Celso também acabou se apaixonando pela peça e faria de O Rei da Vela uma direção-marco do teatro brasileiro. As obras do novo Teatro Oficina em São Paulo estavam chegando ao fim. Retornamos do Rio para iniciar os ensaios da peça antropofágica. De todos os processos de ensaio do Oficina, acho que este foi o mais rápido e vertiginoso. Se não me engano, em 45 dias aprontamos tudo. A genialidade do cenógrafo Hélio Eichbauer colaborou muito para uma revolução formal na linguagem do espetáculo. Primeiro ato: Circo; segundo ato: Revista; terceiro ato: Ópera. O elenco engolia o Brasil e vomitava em cena, mas um vômito organizado, poético, estético. Eu pude me reconciliar com meus ídolos do passado que eu havia renegado por força da sofisticação intelectual. Voltaram para mim o Oscarito, a Dercy, o Grande Otelo, o Mesquitinha e todo aquele pessoal da Revista. Era a minha antropofagia. Todo o espetáculo foi inspirado no manifesto antropofágico do Oswald de Andrade. Queríamos dar porrada na elite intelectual com um deboche irado, irreverência e postura anárquica; tocar o âmago das consciências tanto da direita quanto da esquerda; questionar o próprio Teatro e seu público. Era um grito, um berro do Oficina. Nossa musa foi Chacrinha, símbolo máximo da breguice brasileira. O espetáculo encerrava ao mesmo tempo ritualismo e pornografia. Chegou a estréia. O novo Teatro com planta do Flávio Império estava de pé, com palco giratório e tudo (clara influência do Berliner Ensemble). O palco giratório foi feito por um mecânico lá do Bexiga, e quase nunca o motor tinha força pra impulsionar o primeiro giro com todo o elenco em cima dele. Bolei um jeito de fazer a coisa funcionar: com um pé no palco giratório e o outro no chão fixo do palco restante, eu dava vários impulsos, em estilo patinete, até que ele se movesse, quase sempre aos solavancos, provocando reações inquietantes no público. A estréia do Rei da Vela deve ter sido muito parecida com a estréia do Vestido de Noiva do Nelson Rodrigues em 1943. Quando o espetáculo terminou, ninguém disse nada, não houve aplausos, ninguém manifestou qualquer sinal de reação por menor que fosse. Silêncio! Ninguém levantava, ninguém saía, ninguém dizia nada. As pessoas se cumprimentavam com ace-nos, faziam expressões de Como vai, tudo bem? É como eu sempre digo: brasileiro tem medo de ser burro, de ser apanhado em flagrante. Quando viemos para a platéia cumprimentar os amigos, as pessoas sorriam para nós com um ar enigmático e o máximo que diziam era Que coisa, hein! Confesso que fiquei decepcionado com o clima da estréia e dos primeiros dias de temporada. Um sujeito subiu no palco, no fim do espetáculo, procurando o autor. Queria matá-lo. Foi preciso que Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, os irmãos Campos, Décio Pignatari, Yan Michalski e muitos intelectuais de peso viessem em nosso socorro, enchendo páginas e páginas de jornais com críticas e crônicas maravilhosas, para que o público paulista perdesse o medo de testemunhar aquela coisa nova escrita entre 1932/33. O Rei da Vela foi considerado um marco, uma linha divisória na história do moderno teatro brasileiro. Nosso espetáculo foi dedicado a Glauber Rocha por causa de Terra em Transe. A antropofagia oswaldiana ressurgia com força total no filme de Glauber e atingia seu ápice com a montagem do Rei da Vela numa genial direção de Zé Celso. O Cinema Novo veio todo ao nosso encontro e começou aí um movimento que só vai ser batizado, meses depois, com a estréia do Rei da Vela no Rio de Janeiro em plena Praça Tiradentes, no Teatro João Caetano, berço das antigas Revistas Cariocas. Tivemos, em São Paulo, dois espectadores cativos: Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os dois estavam iniciando suas carreiras fora da Bahia e seu sucesso nacional já se evidenciava em1967. Caetano era o que se pode chamar de uma figura: cabelo estilo black, ponche roxo e, se não me falha a memória, um dia apareceu no teatro trazendo um jaboti com o casco pintado de esmalte verde e amarelo como se fosse um cachorrinho na coleira. Gil era bem mais gordinho do que hoje. Os dois inteligentíssimos, cultos, brilhantes mesmo. Zé Celso e eu nos aproximamos muito deles. O apartamento imenso em que moravam na Av. São Luiz passou a ser freqüentado por nós. Eu adorava ouvi-los falar sobre poesia. Foi quando Caetano me propôs compor uma música para acompanhar um dos monólogos da peça: A História do Jujuba. Passamos uma tarde trabalhando sobre o texto de Oswald e em poucos dias a canção do Jujuba estava incluída no espetáculo. O meu persona-gem, Abelardo I, em agonia, cantava: Era um simples cachorro, um cachorro de rua, mas um cachorro idealista. Os soldados de um quartel adotaram-no, Jujuba ficou sendo o mascote do batalhão. Mas o Jujuba era amigo dos seus companheiros de rua. Na hora da bóia aparecia trazendo dois, três, quatro, em pouco tempo a cachorrada magra, suja, miserável enchia o pátio do quartel. Um dia o major deu o estrilo. Os soldados se opuseram à saída do mascote, tomaram Jujuba nos braços e espingardearam os outros cachorros. A cachorrada vadia voltou para a rua, mas quando o Jujuba se viu solto recusou-se a gozar do privilégio que queriam lhe dar. Foi com os outros, foi com os outros (Abelardo II gritava: DEMAGOGIA! E Abelardo I continuava a canção) Não, ele provou que não, nunca mais voltou pro quartel. Morreu batido, esfomeado, como os outros, solidário com a sua classe, solidário com a sua fome. Os soldados ergueram um monumento ao Jujuba no pátio do quartel. Compreenderam? O que não trai, que não trai, que não trai. Eram seus irmãos. Os soldados também são da mesma classe do Jujuba, um dia também deixarão atropeladamente os quartéis. Será a revolução social! Os que dormem nas soleiras das portas se levantarão e virão até aqui procurar o usurário Abelardo e hão de encontrar vocês. A canção se tornou um sucesso e os milicos morriam de ódio. Como censurar um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 22? E além do mais, o texto tendo sido escrito em 1932? Claro que nos aproveitamos muito disso para falar do Brasil de 1967/68. O Rei da Vela era de uma atualidade chocante. Abelardo I falava do imperialismo americano como ninguém antes ousara falar: Você acha que Nova Iorque teria aquelas babéis vivas de arranha-céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse pra Wall Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um simples feitor do capital estrangeiro, mas eu não me queixo. É por isso que eu possuo uma ilha, uma lancha e você, meu amor! Seguiam-se outras falas igualmente contundentes: Era o país mais lindo do mundo, não tem agora uma nuvem desonerada. Devemos tudo. O que temos, o que não temos. Hipotecamos palmeiras, quedas-d’água, cardeais! Abelardo I era um capitalista usurário que emprestava dinheiro a juros altíssimos aos excluídos do sistema capitalista, mas tinha plena consciência crítica e existencial do papel que desempenhava nesse regime. Ele vendia velas de sebo para os agonizantes e uma de suas falas eu jamais esquecerei: Num país medieval como o nosso quem se atreve a ultrapassar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão. Herdo um tostão em cada morto nacional. Essa fala era invariavelmente aplaudida todas as noites. Em dezembro de 1967, terminamos a primeira temporada do Rei da Vela em São Paulo. Tínhamos estréia marcada no Rio para os primeiros dias de janeiro de 1968. Dessa estréia em diante a peça virou um mito nacional. O verão de 1968 foi particularmente brilhante. Caetano e Gil lançaram o disco Tropicália inspirados na peça. Artistas plásticos como Vergara, Hélio Oiticica com seus parangolés vieram juntar-se a nós. Compositores como Jards Macalé, Capinam, Torquato Neto entraram na geléia geral do movimento que foi batizado de Tropicalismo. Isso virou a epidemia do verão carioca. Nós éramos celebridades. O João Caetano lotado até o teto com um público ávido pelas descobertas, discussões e as revoluções de linguagem cênica propostas pelo espetáculo. O Brasil estava ali, ensangüentado no meio do palco. Comecei a ser convidado para comparecer em festas da alta sociedade carioca. Lembro-me de ter mandado fazer um terno de linho branco que eu usava com um chapéu de panamá, sapato bico-fino duas cores e um charutão na boca. As crônicas sociais registravam minha presença como uma das atrações daquelas noitadas. Nós atacávamos o sistema, mas o sistema, sem que percebêssemos, começava a nos devorar pelos pés. Fomos convidados a posar vestidos com os figurinos da peça para a revista Manchete junto com os modelos da Rhodia. Ofereceram um cachê altíssimo e claro que todos aceitaram. Só percebemos a doce cilada quando começamos a encontrar nas butiques de Ipanema modelitos tropicalistas a preços exorbitantes. Tínhamos virado objeto de consumo pra granfino. Tudo bem. A peça não perdia a sua força. Antropofagia é isso: eles nos comem e a gente continua devorando o imenso cadáver gangrenado do Brasil por dentro. Autópsia canibal. Capítulo XXII Roda-Viva Zé Celso foi convidado para dirigir Roda-Viva, de Chico Buarque fora do Oficina. Achamos que o texto era bom, de dramaturgia talentosa , mas um tanto frágil. Entretanto, Zé Celso viu na peça a possibilidade de um espetáculo radi cal. Roda-Viva era a estória de um ídolo da MPB devorado pelo Ibope ávido de sucessos. No final da peça, restava só o fígado do ídolo Ben Silver. Zé impôs à produção a contratação de um coro antropofágico. Zezé Motta, Pedro Paulo Rangel, André Valli, Samuca, Érico Vidal e mais outros atores igualmente talentosos fizeram parte do coro antropofágico. O comportamento desse coro provocou um escândalo nacional; Zé Celso trouxera do Rei da Vela a poética da agressão e levou os corifeus a conduzirem o espetáculo em ritmo de uma grande trepada. O corpo dos integrantes do coro passou a ser um elemento muito importante no desenvolvimento da peça. Em certo momento, as luzes da platéia se acendiam e o coro invadia ameaçadoramente o espaço do público que se apavorava diante da investida (é importante lembrar que esse tipo de interação com a platéia era algo absolutamente novo no Brasil daquela época). Imaginava-se que as pessoas estavam adormecidas e conformadas com a ditadura; o coro avançava sobre elas e as sacudia violentamente em suas poltronas provocando gritos, desmaios, protestos etc. No final do espetáculo, Zé Celso representou o fígado de Ben Silver com um fígado de boi. O coro antropofágico foi convencido pela concepção de Zé Celso de que era necessário comer pedaços desse fígado cru e depois descer à platéia oferecendo nacos sangrentos deste mesmo fígado ao público espectador. Algumas pessoas saíam da sala, vomitavam e outras desmaiavam. Paulo César Pereio tinha um personagem que provocava escândalo na parcela mais conservadora do público. O ator ficava num canto do palco, sentado numa mesa de boteco, bebendo cachaça e gritando palavrões apocalípticos: Filha da puta, vai tomar no seu cu, caralho seco, boceta murcha, pentelho branco e outros insultos que deixavam a platéia em estado de choque. Eram improvisos diários feitos ao sabor da inspiração do ator. Zé Celso foi muito atacado pela crítica conservadora que acusava o diretor de ter adulterado o texto do até então anjo de olhos azuis Chico Buarque. Entretanto, Chico tomou uma atitude corajosa, que revelava a firmeza de seu caráter, assumindo a violência antropofágica do espetáculo como sua: Assisti a todos os ensaios, tudo que está no palco foi feito e bolado junto comigo. Isso encerrou por uns tempos o debate. Afinal, Chico era o nosso Golden Boy. Não é preciso dizer que Roda-Viva foi um sucesso de bilheteria sem precedentes. Assistir à peça era como entrar num trem fantasma. E os milicos morrendo de ódio. Ninguém queria mexer com o Chico. Confesso que morri de inveja, queria ter feito aquele Ben Silver, mas eu já era o Rei da Vela, não se pode ter tudo, Mr. Smith. O que mais me doía é que as músicas eram lindas e eu cantava bastante naquele tempo. Gostava especialmente da última música que elenco e coro cantavam juntos. Uma provocação maravilhosa: Quem não gostou dessa peça, saia daqui diga horrores. Nos divertimos à beça, e tomem flores, flores, flores, flores para los muertos! Ao final da canção, os atores atiravam flores sobre a platéia defunta. Imaginávamos, naquela época, que o Brasil era um imenso cadáver gangrenado sobre o qual nos lançávamos alegremente à autópsia. Capítulo XXIII Os Cortes da Censura Voltamos para São Paulo. O ano de 1968 transcorria dentro de um clima de repressão irrespirável. Tudo era proibido. O teatro era o alvo principal. Nossos dramaturgos eram proibidos e engavetados em série. Os militares pousaram seus olhos sobre nós. No entanto, a perseguição só aguçava ainda mais a nossa criatividade. No Teatro Ruth Escobar um argentino chamado Victor Garcia dirigiu o Balcão, de Jean Genet, uma montagem inesquecível. Só uma produ tora como Ruth permitiria que o diretor destruís se o seu teatro do porão até o teto. Ele construiu um engradado que vinha subindo desde os alicerces do teatro, passava pela platéia destruindo o piso, assim como o balcão e chegava até o limite máximo do teto. Havia elevadores internos com o elenco subindo e descendo conforme a ação da peça. Atores seminus escalavam o engradado. Nós, do público, assistíamos ao espetáculo em pequenas plataformas sobre o abismo. Não é preciso dizer que Genet é um autor radicalmente contra os bons princípios e a moral da pequeno-burguesia. A censura mais uma vez não sabia como agir. Victor Garcia era um diretor internacional, o Balcão era montado no mundo inteiro. Como proibir? A censura estava perplexa com a criatividade da classe tea tral. O Rei da Vela voltou do Rio de Janeiro e ocupou novamente o Oficina. O sucesso era enorme. Aconteceu então um fato que até parece anedota. Na boca de cena do teatro, Hélio Eichbauer criou um bonecão, réplica do meu personagem, Abelardo I, com coroa da Shell e tudo na cabeça. O fantoche era enorme, chegava quase ao urdimento do palco e trazia entre as pernas um canhão-cacete que fuzilava os devedores inadimplentes que suplicavam para renovar seus papagaios. Acho que já mencionei a dificuldade que era para a censura proibir em 1967/68 um texto escrito em 1932/33 por um ícone da Semana de Arte Moderna; seria como passar um atestado público de imbecilidade. Já que eles não podiam cortar os textos, decidiram cortar outras coisas. Um dia, uma Kombi parou na porta do teatro, desceram uns homens mal-encarados carregando uma escada, entraram no teatro sem cumprimentar ninguém, pararam diante do bonecão, ergueram a escada e, calmamente, cortaram o pau do boneco. Depois, saíram a passos lentos, abriram a porta da Kombi, atiraram lá dentro o cacete decepado, fecharam a porta, entraram na Kombi e partiram sem dizer uma palavra levando com eles o pau de Abelardo I. Claro que fui atrás, afinal de contas era o meu pau! Fernando Peixoto, Zé Celso e eu comparecemos à censura paulista pedindo o pau de volta. Eles nos disseram que devolveriam o membro se assinássemos um termo em que nos comprometeríamos a manter Abelardo impotente, ou seja, o pau não levantaria mais até o final da temporada. Concordamos e assinamos. Que remédio? Eles nos devolveram o cacete-canhão e voltamos, Zé, Fernando e eu, carregando aquele mastro de compensado pesadíssimo. Caminhamos tristemente pela Av. Ipiranga, São Luís até chegarmos ao Oficina com o cacete na mão. O membro de Abelardo ficou depositado no porão do teatro até o fim da temporada paulista, só voltando a levantar no Festival Internacional de Florença, na Itália. Capítulo XXIV Maio de 68 na França Chegamos a Florença certos de repetir o sucesso brasileiro. Era um festival internacional de teatro realizado no Teatro Della Pergola, que, só fomos saber depois, era um local freqüentado unicamente pela alta burguesia florentina. Muito luxo, todos os recursos técnicos, um palco giratório que funcionava às mil maravilhas nos deram a certeza de um sucesso sem precedentes. As maravilhosas poltronas de veludo vermelho eram aparelhadas com fones de ouvido para que o público acompanhasse a peça por tradução simultânea. Uma tradutora portuguesa acompanhava os ensaios e técnicos supercompetentes atendiam a todas as necessidades do grupo. A imprensa anunciava o Rei da Vela como a principal atração do festival. Até achei que tinha valido à pena termos pagado as passagens aéreas e o transporte dos cenários dos nossos bolsos. Claro que tentamos de tudo no Brasil para que o Itamarati bancasse nosso trans-porte. Tudo inútil. A última conversa que tive com o embaixador Donatello Grieco no Rio de Janeiro foi desanimadora. O homem afirmou com todas as letras que Oswald de Andrade era um autor anarquista de pequena estatura e que o nosso Rei da Vela era um amontoado de insultos e obscenidades e, no final das contas, não merecia representar o nosso país no estrangeiro. Resolvemos enfrentar os custos da viagem. Ensaiamos bastante e nos sentíamos preparados para enfrentar a crítica italiana. Confesso que, antes da estréia, dei umas olhadas pela fresta da cortina, observando a entrada do público. Estranhei bastante o vestuário da platéia: mulheres vestidas com longos chiquérrimos, muitas peles valiosas, jóias, perfumes, cavalheiros de smoking... Enfim, parecia a estréia de gala de alguma ópera no Scalla de Milão. Quando o espetáculo de estréia começou, percebi uma certa inquietação na platéia. As pessoas pareciam estar reagindo contra o texto de Oswald e, principalmente, contra o espetáculo. Do palco, começamos a ouvir murmúrios vindos da escuridão da sala. Minha querida amiga Liana Duval tinha feito um laboratório nas ruas da cidade para o momento em que seu personagem, João dos Divãs, fazia um improviso de palavrões com o público. No Brasil, esse era um momento aplaudido em cena aberta. Os populares florentinos ensinaram à Liana as expressões e gestos considerados mais obscenos e imorais naquela região da Itália. Quando Liana engatou no improviso em italiano, foi um momento de total escândalo. As pessoas começaram a se levantar e abandonar o teatro batendo as cadeiras. Uma revolta aristocrata tomou conta do recinto. Foi difícil levar o espetáculo até o fim. No dia seguinte, os jornais estampavam ofensas pesadas sobre o nosso trabalho: Brasileiros selvagens, Índios antropófagos se apresentaram ontem à noite no Teatro Della Pergola. O único crítico a nos defender foi Ruggero Jacobi (que havia sido um dos grandes diretores do TBC). Ele afirmou que nosso espetáculo estava muito além do que o conservadorismo italiano poderia compreender e que o Rei da Vela estava muito além de todas as vanguardas européias, daí a rejeição. Fomos para Nancy, na França, nos sentindo um tanto deprimidos com os insultos italianos. Mas o clima foi completamente diferente por lá. Encontramos uma enorme quantidade de amigos exilados: políticos, professores, combatentes e opositores à Ditadura Militar que aumentava a repressão a cada dia. Vieram todos nos assistir no Festival de Nancy. O sucesso foi tão grande que os críticos franceses promoveram uma temporada nossa em Paris no Teatro Aubervillier. A França estava em plena Revolução de Maio de 68. Para nós, que estávamos vivendo sob uma ditadura com mãos de ferro, a vivência dessa revolução comandada por jovens intelectuais parecia uma libertação, uma espécie de licença-prêmio da ditadura brasileira. A atmosfera era excitante. Jovens intelectuais comandavam as mais diversas correntes do pensamento moderno. A Sorbonne estava transformada numa espécie de comitê de vários partidos políticos universais. Havia barraquinhas com panfletos e livretos do pensamento trotskista, comunista, maoísta e outras propostas de jovens filósofos para o mundo contemporâneo. O amor era livre. As pessoas transavam nas salas de aula, nos telhados. Havia um clima de liberdade ainda que muito tardia. O Teatro Odeon, de Jean Louis Barrault, transformou-se numa tribuna popular. Subiam ao palco operários, estudantes, donas-de-casa e todos discursavam sobre o que bem entendessem. Às vezes, chegavam a contar suas vidas. Paris era uma praça de guerra, Estudantes x Polícia, numa longa batalha. As ruas mudavam de feição, à noite eram uma coisa, no dia seguinte estavam irreconhecíveis. É que os estudantes arrancavam os paralelepípedos pra fazer barricadas. Cortavam árvores, amontoavam coisas preparando o campo de batalha. Assistimos a vários conflitos. Num deles também fomos vítimas da violência. Estávamos, Zé Celso, Ítala e eu, na sacada do Hotel Saint Séverin quando começou um confronto entre a polícia e os estudantes. Pedradas, gás lacrimogêneo, cassetetes, valia tudo. Um cineasta com a câmera na mão filmava tudo quando foi violentamente atacado por um policial. Ítala o reconheceu, era Godard. Minha companheira enlouqueceu na sacada e começou a gritar para os policiais: N’arretez pas, c’est Godard!. Um policial olhou para cima, viu os três pombinhos na sacada, rodopiou uma granada de efeito moral e atirou-a em nossa direção. Burros! Devíamos ter permanecido na sacada, mas apavorados corremos pra dentro do quarto. Claro que a granada quebrou o vidro da janela e explodiu na cabeça de Zé Celso que desmaiou em meio àquela fumaceira venenosa produzida pela bomba. A granada era de cera la ranja. O pobre Zé ficou parecendo uma múmia la ranja com aquela cera derretida sobre a cabeça . Minutos depois, ele começou a murmurar: Aaaasssppprrrooooo. Ítala e eu não conseguíamos entender o que ele queria e, com os olhos em brasa, conseguimos arrastá-lo para fora do quarto. Ele continuava murmurando: Aaaasssppprrroooo. Finalmente, Ítala decifrou o enigma: Ah!, ele quer ‘Aspro’, aspirina em francês. Corri dentro do quarto fumacento e apanhei na gaveta logo quatro aspirinas de uma vez. Fizemos com que o Zé as engolisse quase sem água. Uma hora depois, melhoramos. Nos banhamos, fomos jantar e, mesmo com os olhos vermelhos, fomos ao cinema ver um filme com Jeanne Moreau. Em seguida, voltamos para o hotel, dormimos e acordamos bem tar-de no dia seguinte. Abri os olhos e estranhei, não estava vendo nada, só uma neblina branca; assustado, acordei Zé Celso. Ele despertou e ao abrir os olhos começou a dizer: Estou cego, estou cego! Chamei o gerente do hotel e pedi que ele ligasse para o quarto de Ítala. Ela acordou já aos gritos: Não estou vendo nada, não estou vendo nada! Fomos levados ao oculista, ou melhor, eu fui a um oculista particular, pois papai era rico. Zé Celso e Ítala foram tratados pela medicina pública. Uma enfermeira direitista, partidária de De Gaulle, segurava uma seringa de injeção com uma agulha bem pontuda e aplicava o conteúdo no branco do olho do apavorado Zé. Durante a sessão de tortura, a enfermeira aproveitava para passar um pito no Zé Celso: Bem feito, vocês merecem muito mais, seus anarquistas desordeiros. Estreamos em Paris tateando o cenário, quase cegos, mas assim mesmo foi delicioso representar o Rei da Vela na Cidade luz. Capítulo XXV Comando de Caça aos Comunistas Ainda em 1968, durante a temporada paulista de Roda-Viva, aconteceu um ato de violência extrema que nos deixou muito assustados. A peça estava em cartaz num dos teatros de Ruth Escobar, o Teatro Galpão, onde hoje é o Teatro Dina Sfat. Ao final de uma das sessões, parou um carro diante do teatro e vários homens armados saíram do veículo. Era o CCC – Comando de Caça aos Comunistas. Eles invadiram o teatro, destruíram as instalações e passaram a espancar violentamente o elenco; quebraram pernas de atores e queimaram o bico do seio das atrizes com brasa de cigarro. Em Porto Alegre, o CCC seqüestrou um ator do elenco ameaçando matá-lo caso os produtores tivessem a ousadia de estrear o espetáculo naquela cidade. Nossos dramaturgos continuavam pagando o pato. Plínio Marcos proibido, Vianinha proibido, Dias Gomes proibido, Guarnieri proibido. Mas o teatro sempre reagiu à violência da censura. Outros autores escreveram a Feira Paulista de Opinião, retratando a violência militar sobre o trabalho intelectual e a manifestação livre do pensamento. Não esquecerei nunca do meu colega Renato Consorte vestido de gorila com uma farda militar, lápis vermelho numa mão e um texto teatral na outra, sentado num penico, cortando trechos enormes do referido texto. Claro que a peça estreou num dia e foi proibida no outro. Quando Cacilda Becker soube, ficou indignada: Outra proibição é demais. Estão nos tratando como delinqüentes. Não podemos mais aceitar passivamente esse estado de coisas. Eu vou até lá! A atriz comunicou o ocorrido ao seu elenco, interrompeu os ensaios e dirigiu-se rapidamente ao Teatro Ruth Escobar, onde estava a Feira Paulista de Opinião. O público já se aglomerava na pracinha em frente ao teatro, todo mundo indignado por não poder assistir à peça proibida. Cacilda entrou no prédio, confabulou com o elenco por uns quinze minutos e depois abriu ela mesma as portas do teatro e convocou o público a entrar com um pequeno discurso: Esta peça está proibida em todo o território nacional. Entretanto, esta noite, nós vamos representá-la assim mesmo. Quem tiver coragem de me acompanhar que entre nesse recinto, pois este é um ato de desobediência civil! Certa vez ouvi de Zé Celso uma frase lapidar: No tempo de Cacilda tínhamos classe teatral, agora temos castas. Dói, mas é a pura verdade. Capítulo XXVI Galileu e a Tortura O ano de 1968 transcorria cada vez mais difícil. Uma noite, num camarim dos fundos do Teatro Oficina, nosso elenco ouviu, em clima de total perplexidade, a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5): repressão pesada, prisões, proibições, suspensão de todos os direitos e garantias constitucionais dos cidadãos. Acho, se não me falha a memória, que o crítico Yan Michalski ouviu junto conosco o terrível comunicado. A tortura foi institucionalizada. Colegas nossos foram presos, torturados e desapareceram para sempre nas masmorras da ditadura. Uma diretora teatral de Santo André, após ser torturada, foi atirada ainda viva de um helicóptero na Baía de Guanabara com um paralelepípedo amarrado nos pés para desaparecer mais depressa. Uma outra grande amiga foi torturada com choque elétrico na vagina. Ficou com os cabelos brancos da noite para o dia. Nós artistas estávamos cada vez mais visados pelos militares. Era preciso que o Oficina continuasse o diálogo crítico e necessário com sua platéia formada principalmente por universitários e pela classe média progressista. Dentre várias peças propostas para o repertório, escolhemos Galileu Galilei, de Bertolt Brecht. Lembro-me de ter sido um defensor ardoroso dessa montagem. Era ideal para aquele momento. Galileu comprovou que a Terra não é o centro do universo e que ela gira feito uma maluquinha em torno do sol, colocando em xeque os alicerces sobre os quais se fundamentavam a Igreja Católica e seu braço policial, a Santa Inquisição. O cientista ainda tentou convencer o clero da importância de suas descobertas. Chegou a fazer lobby com o futuro Papa, que era um matemático muito culto e grande admirador das idéias de Galileu. Mas como seria possível negar a Bíblia diante de um povo faminto e miserável? Só as Escrituras explicavam e conformavam aquela massa eternamente mendicante. É evidente que o sábio Galileu foi ameaçado de tortura e até mesmo de ser queimado vivo em praça pública se não abjurasse de suas convicções. Galileu adorava comer bem, beber bem: Quando eu como bem, é que me vêm as melhores idéias! Definitivamente, a idéia de ser espremido naqueles terríveis instrumentos medievais de tortura para depois virar um presunto assado não lhe agradava. Ele abjurou. Foi condenado a permanecer em cárcere privado num belo castelo, porque o Papa, apesar de tudo, era seu amigo. Frades o mantinham sob constante vigilância, mas Galileu dava um porre de vinho nos padres durante a noite e à luz da lua escrevia sua obra definitiva: os Discorsi. O esforço foi tão grande que Galileu foi ficando cego de tanto forçar a vista para escrever no escuro. Um dia, um antigo discípulo foi visitálo cheio de recriminações: O senhor traiu a sua causa. Infeliz o país que não tem heróis. E Galileu respondia: Não, infeliz o país que precisa de heróis. Após o diálogo, Galileu então entrega ao rapaz o manuscrito de sua obra clandestina dizendo: Vai, atravessa a fronteira da Holanda e dá conhecimento do que está escrito aqui. Quando os Discorsi chegaram à Holanda foram a causa de um grande avanço na astronomia e na física modernas. A peça era genial sob todos os aspectos: denunciava a tortura, a violência sobre o trabalho intelectual e ainda questio nava o heroísmo e a vocação de mártir provando que, em alguns casos, é preferível viver e revolucionar por meio de um trabalho paciente, rea lizado na clandestinidade. O espetáculo mais uma vez desafiava a censura. Proibir Brecht , montado no mundo inteiro, como?! Falar bem de José Celso Martinez Corrêa é chover no molhado. A concepção de Galileu Galilei era genial. Os cenários e figurinos de Joel de Carvalho eram de ousadia sem precedentes para os tempos de repressão. O clero do Vaticano usava batinas verde-oliva com corte evidentemente militarizado assim como os chapéus que lembravam os quepes de nosso exército. O Papa, obrigado a exigir que Galileu abjurasse de suas convicções pela violenta argumentação reacionária do Cardeal Inquisidor, era, durante a cena da paramentação, ornamentado com instrumentos de tortura: uma mitra de cobre com bordas cercadas por uma coroa de espinhos metálica e um manto forrado de arame farpado. Conforme a repressão aumentava, desciam placas de cobre que iam fechando o palco dentro de um clima opressivo, mas esteticamente primoroso. No final do espetáculo, subia uma grade negra na boca de cena nos separando do público. Uma grade de cadeia. Durante o agradecimento, elenco dançava um twist na voz de Cely Campello, uma música muito conhecida até hoje: Tomo um banho de lua, fico branca como a neve. Se o luar é meu amigo, censurar ninguém se atreve, é tão bom sonhar contigo, oh, luar tão cândido. O twist era um deboche trágico. Lembro ainda que a grade tinha dupla utilidade: servia ao mesmo tempo para nos separar do público e, quem sabe, para nos defender num caso de ataque do CCC. Na peça de Brecht havia uma cena em que o povo toma conhecimento das novas descobertas do cientista. As novidades chegam à praça do mercado. E tudo isso era cantado pelos populares como um enredo de escola de samba. Era a chamada cena do Car-naval do Galileu. Para representar essa cena, Zé importou o coro de Roda-Viva, aquele coro destemido e antropofágico. Criamos o espetáculo em grande harmonia. Devo confessar que era grande fã da cena do carnaval. Jamais vou esquecer a figura de Samuca, que pulava numa corda balançando-se sobre a platéia. A música séria e um pouco dura de Eisler foi adaptada para um ritmo mais brasileiro pelo maestro Júlio Medaglia. A cena assumia um ritmo quase de candomblé e possessão. O momento mais aplaudido era o da criação da pirâmide social. Os atores subiam um no ombro do outro formando pirâmides humanas. Cada uma delas era formada por três ou quatro atores. A letra de Brecht era genialmente subversiva. Se ainda me lembro, o elenco cantava assim: Embaixo do Papa, o Cardeal Embaixo do Cardeal, o industrial Embaixo do industrial, o vigário Embaixo do vigário, o funcionário Embaixo do funcionário, o operário Embaixo do operário, o serventuário Embaixo do serventuário, as galinhas, os mendigos e o rebotalho. Essa, minha gente, é a ordo ordinorum Ordem instituída que a todo custo precisa ser mantida, Amém. O convívio das cenas racionais com o transe carnavalesco tinha um equilíbrio delicado, o que tornava o espetáculo irresistível. Durante a carreira do espetáculo, entretanto, esse equilíbrio foi rompido pelo crescimento e excessos cometidos pelo coro antropofágico. Percebi então que estavam se formando dois partidos antagônicos dentro do Oficina: o partido do coro, ou se quisermos, o partido do corpo e os atores da palavra, que falavam o texto e representavam bem. O convívio cordial muitas vezes foi quebrado por agressões verbais e atitudes hostis. Zé Celso estava naturalmente excitado com suas descobertas no Roda-Viva, havia nele um interesse nitidamente maior pelas atividades do coro antropofágico. Hoje, acho que o Zé começou a intuir aí novos caminhos para o seu futuro teatro. A hostilidade crescia. A turma do coro apelidou-se de regimália, e nós, os atores experientes do texto, fomos apelidados de representativos. Não havia nenhum elogio no termo, ao contrário, tratava-se de uma ironia pejorativa. Capítulo XXVII Na Selva das Cidades À medida que a repressão apertava o cerco sobre nós, Galileu ganhava ainda mais força e sentido. O sucesso do espetáculo foi tamanho que tivemos aproximadamente nove meses para ensaiar o nosso próximo espetáculo. A violência externa, as perseguições constantes contra artistas e intelectuais, aquele olho verde -oliva em cima de nós, tudo isso foi provocando um enorme cansaço. A luta entre os partidos internos do Oficina (regimália e representativos) aparecia intermitentemente. Nas ruas, já se travava a guerrilha urbana. Acho que foi surgindo em nós um desejo de representar o que se passava internamente conosco: uma guerra de morte por uma opinião arrastando tudo à destruição e ao caos. A peça era Na Selva das Cidades, do jovem Brecht, do Brecht expressionista, que cantava com sua guitarra nos cabarés de Berlim e dizia versos de conteúdo surpreendente. Sempre tive paixão por esse texto, aliás ele morou na minha cabeceira por vários anos. Confesso que o li várias vezes sem decifrá-lo completamente. Zé Celso também era um fã ardoroso do jovem Brecht. Nós nos lançamos aos ensaios, nos embrenhamos na Selva. Nessa época, estávamos estudando Grotowski e essas leituras eram discutidas e aplicadas por nós em laboratórios que pretendíamos que fossem grotowskianos, mas ainda não havíamos testemunhado o que seria um laboratório proposto pelo próprio Grotowski. E não tínhamos a menor idéia dos exercícios de preparação física dos atores daquela corrente. Lembro-me que nos preparamos muito fisicamente, mas da maneira que supúnhamos útil e aplicável ao espetáculo. A luta foi a preparação fundamental, com aulas diárias de caratê, ministradas pelo nosso amigo Jacques. Trouxemos uma professora de Curitiba para fazer conosco exercícios físicos que eu diria de vanguarda naquele tempo. Esses exercícios visavam um autoconhecimento de nosso corpo. Se não me falha a memória, ela chamava-se Eloá. E ainda praticávamos alongamentos com a atriz e professora Jura Otero. Isso na parte da manhã; à tarde, ensaios de mesa e laboratórios práticos, o que nos ocupava até as 19 horas. Depois, uma pausa, com um tempinho que só dava pra fazer uma refeição ligeira e tomar um banho porque às 21 horas Galileu começava a descobrir a verdade que teve de ser abjurada. Pra vocês terem idéia de como trabalhávamos nesse tempo: terças, quartas, quintas, sextas, duas sessões no sábado e duas no domingo. Repouso só as segundas, graças à Dulcina. Quanto aos laboratórios, se eram grotowskianos ou não, penso que isso não teve muita importância. Fomos criando uma nova linguagem, muito nossa, que brotava durante os improvisos sobre os temas da peça. Às vezes, havia um clima mágico. Certa vez, durante um improviso em que Othon Bastos e eu ficávamos frente a frente num combate final, convivendo vinte e um dias às margens do lago de Michigan, lutando, resistindo, tendo fome, frio, comendo peixe podre pra não morrer e nos abrigando de um temporal em uma cabana feita de galhos, recordo-me de ter ficado assustado e ao mesmo tempo convicto da minha fé nos deuses do teatro: fora do Oficina caiu uma enorme tempestade com trovões, raios, muita água e inundações. Othon e eu, escondidos debaixo das folhagens, tivemos a certeza de que tudo aquilo existia, não só de uma forma realista mas através de uma poética cênica que raras vezes tive a oportunidade de experimentar novamente. O coro antropofágico vivia seus dias de glória representando gângsteres empregados de Schlink, o papel do Othon. Os personagens dos antropófagos finalmente tinham falas e eles os representaram magistralmente. Os gângsteres tinham nomes de animais: Gorilão, Verme, Lombriga, etc. Os atores do coro fizeram uma profunda pesquisa corporal assumindo posturas que lembravam esses animais. Descobrimos que nossas vozes podiam sair de outras cavidades. Também criamos uma técnica que apelidamos de artificialismo, que consistia em escolher certas palavras de algumas frases e depois de tê-las representado de uma forma natural passávamos a repeti-las sem a lógica de uma psicologia imediata, uma espécie de mantra desesperado. Outras vezes, depois de falas suaves, começávamos a gritar e grunhir como animais selvagens. Isso causava uma certa estranheza, mas, ao mesmo tempo, um clima tão envolvente, que na primeira semana de apresentação do espetáculo, quando ele durava seis horas, as pessoas permaneciam tão tomadas quanto nós até o final. Quem assumiu a responsabilidade visual pelo espetáculo ou ambientação, como ela preferia, foi a extraordinária arquiteta e cenógrafa Lina Bo Bardi. Naquele tempo, o quarteirão em frente ao teatro tinha sido demolido para a construção do Minhocão. O porta do teatro parecia ter sofrido um bombardeio. Tijolos, cimento, cal, areia, tudo meio desordenado ali na frente. Às vezes, num dia de ventania, uma poeira branca ficava pairando no ar. Quando Lina chegou ao teatro e viu aquela demolição exclamou: Que lindo, a peça é exatamente isso, vamos fazer com a estética do lixo. O lixo pode ser lindo. Pode ficar bonito. E ela radicalizou. Arrancou a platéia da frente e ali construiu um ringue de boxe com madeira de construção, aquela madeira bruta, cheia de farpas, um ringue hostil cercado por cordas grosseiras que machucavam as mãos quando nos agarrávamos a ela. No início, estranhei muito, cheguei mesmo a abandonar o ensaio, mas com o correr do tempo compreendi que aquele ringue era a expressão visual da guerra sangrenta que se travava entre o personagem de Othon e o meu. Tudo era feito pra ser destruído: cadeiras, móveis eram quebrados pelos gângsteres a mando de Schlink, vivido por Othon Bastos. Não só os móveis viravam um entulho atirados para fora do ringue, como também as demais personagens: o pai, a mãe, a irmã e a noiva de meu George Garga, todos destruídos. Há uma frase que sempre me volta à cabeça: Dessa cidade, nada vai restar, só o vento que passa por ela. O teatro quase voltou a ter a sua forma primitiva (o teatro sanduíche), a segunda platéia permanecia com as suas poltronas. No local onde estaria a primeira platéia ficava o ringue e no palco ela fez uma arquibancada daquela mesma madeira brutalista e grafitou as paredes com frases que se viam sobre os muros de São Paulo. Há coisas que a gente não esquece. No meio da peça, numa cena em que a guerra já ia adiantada com o chinês Schlink, George Garga, ajoelhado no chão e segurando aquelas cordas que me feriam as mãos, dizia: Ah, toda essa gente boa, toda essa gente boa e honesta que fica em volta dos tornos mecânicos, construindo montes de mesas boas para os bons comedores de pão, com suas boas famílias, que são tantas que já viraram multidão e não aparece ninguém, meu Deus, para cuspir na sopa deles, nem pra mandá-los pro outro mundo com um bom pontapé no rabo ao som de mar tormentoso, furiosa tempestade! Aaaaaaaaaahhhhhhhh!!! Esse era um grito absolutamente surpreendente que contrariava qualquer interpretação naturalista. Era o nosso Grotowski. Pode não ter sido Grotowski ao pé da letra, mas o resultado foi belíssimo. Lina atingiu as raias da genialidade. Lá pelo meio do espetáculo, ela fazia descer sobre o ringue dois cabos de vassoura pendurados em cordinhas como se fossem dois trapézios. Os gângsteres traziam quilômetros de filó tingido de vermelho, passando-o sobre os trapézios improvisados. Então, quando os maquinistas elevavam esses trapézios, formava-se uma enorme lanterna vermelha, o Bordel Chinês, belo, misterioso, místico, onde a minha amiga e companheira de tantas peças Ítala Nandi fazia o primeiro nu do Teatro Brasileiro. Para mim, a Selva foi a mais bela encenação do Teatro Oficina enquanto eu lá permaneci. O sucesso de crítica foi imenso e o público lotou o Oficina e depois o Teatro João Caetano no Rio de Janeiro, mas em curtíssimas temporadas. Nós sabíamos que o sucesso da Selva não teria a longevidade de Galileu. Foi um processo rico, artisticamente gratificante, mas nós nos machucamos muito, nos ferimos uns aos outros no decorrer deste processo. Quando a temporada do Rio de Janeiro terminou, resolvemos dar um tempo. Ítala foi fazer um filme com Ruy Guerra (Os Deuses e os Mortos), Fernando Peixoto foi fazer Arena Conta Tiradentes com seus amigos do Teatro de Arena e Zé Celso e eu fomos a Paris, passar o réveillon. Capítulo XXVIII Dropout na Europa A chegada na Europa teve uma atmosfera de inesperada loucura. Em Londres, em plena Pica-dilly Circus, havia um grande número de jovens vestidos de um modo estranho: calças de flanela meio sujas, ensebadas, usadas bem abaixo da cintura, com fitas coloridas amarradas nas cabeças emolduradas por longos cabelos também ensebados, oferecendo uma variedade colorida de drogas alucinógenas. Eram os primeiros hippies estendendo as mãos como bandejas, exibindo os mais diversos tipos de LSD (sunshine, pérola negra), haxixe, mescalina, marijuana. Estava tudo à venda, ali, em pleno coração de Londres! Era um tempo novo, a era das comunidades, o famoso dropout: salte fora do sistema. A juventude européia se rebelava contra o capitalismo selvagem vigente no mundo. Além do mais, fatos científicos sensacionais sinalizavam a aproximação desse Novo Tempo. O homem já havia chegado à Lua! Um importante teatro londrino apresentava um musical que esgotava as lotações com a antecedência de meses. Tratava-se de Hair, um espetáculo com uma belíssima partitura musical. Alguns números fizeram um estrondoso sucesso mundial. O famoso nu frontal masculino também foi causa da explosão das bilheterias. Os rapazes que possuíam uma benga avantajada ficavam na fila de trás e os possuidores de bengas normais formavam a fila da frente. Diziam que isso era pra não ofender a platéia. Caetano Veloso e Gilberto Gil estavam exilados em Londres. Fomos visitá-los várias vezes. Estavam saudosos do Brasil, mas aproveitavam o tempo para aprender inglês. Estavam naquela fase do this is a book, this is a table, mas caminharam rápido no aprendizado. Pouco tempo depois, Caetano já estava compondo letras de músicas em inglês. Foi na casa deles que vi a primeira TV em cores. Uma tarde, encontrei-os dando muita risada. Eles tinham assistido ao show da esposa do John Lennon, a japonesa Yoko Ono. Era um show-solo de Yoko. Caetano dizia que ela parecia uma gata no cio miando pelos telhados da cidade: Iaaaôôiôiiiiii takodomoiáaaaaaaaa. Conversamos muito sobre aquele mundo novo das comunidades, sobre os hippies, drogas e política internacional. Capítulo XXIX Living Theatre Depois de um tempo, voltamos a Paris. Estávamos muito curiosos, Zé e eu, para conhecer o Living Theatre, um grupo americano que tinha sido expulso dos Estados Unidos por sua radicalidade. Eles tinham abolido o texto dramático, as personagens psicologicamente construídas. Construíam roteiros e levavam o público a participar do evento através da animação. Orgulhavam-se de ser mais animadores do que atores. O Living era um tremendo sucesso em toda a Euro pa. Muito se escreveu sobre o trabalho deles. Jornais e revistas publicavam artigos imensos sobre os trabalhos apresentados pelo grupo. Creio que os mais comentados eram Frankenstein e Paradise Now. A filosofia do grupo era absolutamente contrária aos sistemas vigentes na velha Europa. Eles demoliam o capitalismo selvagem, o imperialismo americano, as ditaduras sob qualquer ideologia, enfim, onde houvesse opressão, o Living estaria se manifestando contra. O grupo também era pela liberação dos costumes, contestava os hábitos conservadores e pregava a liberdade individual e coletiva através do prazer corporal e do orgasmo. Livros e ensaios foram escritos sobre o grupo. O próprio Living escreveu livros sobre suas experiências. Quando Zé e eu chegamos na França, eles eram a epidemia do momento cultural, queríamos conhecê-los. Soubemos que estavam hospedados na casa do famoso ator francês, Pierre Clementi. Um dia, no metrô parisiense, me deu na cabeça de irmos visitá-los a pretexto de fazer um convite ao grupo para vir ao Brasil fazer um espetáculo em parceria com o Oficina. Descobrimos o endereço e rumamos para lá. Fomos recebidos por uma moça muito bonita que se apresentou como Cleópatra, maquiada como a rainha egípcia, com os olhos pintados de negro e a boca muito rubra. Fomos introduzidos na Mansão Clementi e convidados a sentar em roda. Eu não sabia que estaria condenado a sentar em roda por anos a fio. Fomos apresentados ao casal líder do grupo: Julien Beck e Judith Malina. Tive a melhor impressão dos dois. Eram informadíssimos, liam todos os jornais do dia, ouviam noticiários nas rádios e TVs a cada meia hora e depois selecionavam o que lhes interessava para discutir e esmiuçar em intermináveis reuniões. Eles estudavam muito. Além de serem marxistas-anarquistas e pela liberação sexual, eram completamente bruxos, praticando uma espécie de telepatia avançada e uma série de outras práticas que envolviam rituais, mentalizações, mandalas e mais um sem-número de outras técnicas místicas. Du rante aquelas horas em que estivemos sentados em roda, foram passando um cachimbinho que exalava um odor muito agradável em sua fumaça branca e delicada. Com o passar do tempo, comecei a me sentir muito alegre. Está vamos todos felizes, animados e, sobretudo, gargalhando por qualquer motivo. Era haxixe. Acho que foi meu primeiro contato com as proibidíssimas drogas. Confesso que gostei bastante. Bem, depois de uma tarde agradável, despedimo-nos do Living, deixando no ar um vago convite ao grupo para um possível trabalho conjunto com o Oficina. Capítulo XXX Medo de Virar Comédie-Française Voltamos para o Brasil, ou melhor, fomos para Nova York. De lá, voltei para o Rio e Zé Celso ainda visitou alguns países da América Latina antes de retomar os trabalhos no Oficina. Ele esteve em Cuba também. Na volta, disse que tinha um segredo para me contar e numa voz comovida me disse que foi visitar um campo de treinamento de guerrilha e quase desmaiou quando encontrou a nossa Ítala Nandi de fuzil na mão. Emocionado, quase lacrimejando, ele me disse: Renato, Ítala é uma santa guerreira, a nossa Joana D’Arc. Exultei com a coragem e o desprendimento de minha amiga. Era o ano de 1970, em plena ditadura do temido Garrastazu Médici. Não achávamos a peça. Nem sabíamos se era uma peça mesmo o que que ría mos fazer. Governo Médici, Copa do Mundo. Médici capitalizando a vitória do Brasil e ti-ran do fotos segurando a bola do Pelé. A bola de futebol, é claro. Vivíamos um tempo de guerrilha urbana, de violência, pessoas assassinadas, desaparecidas, seqüestros... Era uma barra pesada no Brasil. A gente não encontrava um texto, não tinha... E tudo que a gente falava soava velho, esquisito. Íamos comemorar 10 anos de existência. E isso deu medo! Olha que gente louca: estávamos com medo de fazer dez anos! Dez anos só! E a gente estava com medo de virar uma instituição, de virar uma Comédie-Française. Lutávamos pra ser insubordinados, mas não dava, todo mundo avalizava, diziam que era ótimo, genial. A gente queria fazer alguma coisa que rompesse, abalasse as estruturas, que transformasse aquela ideologia comodista de classe média. E não dava pé, tudo que fazíamos era sempre nota 10! Ficamos naquela crise, naquela coisa, e as dívidas aumentando. Esse negócio de dívida é um terror: aluguel, comida, empregada, arroz integral (é, muito arroz integral!) e aquela necessidade de fazer alguma coisa nova. Capítulo XXXI Prata Palomares Ítala Nandi estava recém-casada com o cineasta André Faria. O casal nos trouxe a proposta do que viria a ser a coisa verdadeiramente nova para nós. Tratava-se da proposta do primeiro filme, de um primeiro longa do Oficina. O roteiro era do André. Era a estória de dois guerrilheiros urbanos em fuga pelo país que acabam se refugiando numa ilha quase desconhecida. O primeiro esconderijo que encontram é uma igreja abandonada. Inspecionando o local, os dois percebem que o antigo padre foi assassinado. Há manchas de sangue por todo lado. O roteiro era relativamente simples. Um deles permanece calmo, aguardando um comunicado da base para seguir o seu percurso em caso de vitória do movimento ou permanecer escondido até Deus sabe quando. O outro elemento resolve se fazer passar pelo novo padre da ilha e se apresenta como tal ao prefeito e a outras pequenas autoridades daquela ilha. Aos poucos, o falso padre assume a personalidade do seu antecessor e passa a rezar missas e fazer longos sermões delirantes. Em suma, ele é toma do por uma loucura gradativa que vai aumen tado ao longo do filme. O louco era eu e o racional, o jovem Carlos Gregório. Zé Celso achou maravilhoso o projeto do primeiro filme do Oficina, entretanto, pensava que o roteiro ainda era meio primário e propôs reescrevê-lo. André Faria consentiu e Zé lançou-se ao trabalho numa espécie de fúria santa. A cabeça do meu amigo estava totalmente tomada pelo Glauber e o resultado foi um roteiro belíssimo, mas completamente distante da proposta inicial trazida pelo André, que não demonstrou qualquer afinidade com a nova versão. Mas ele aceitou fazer o filme com o novo roteiro. Fiquei perplexo com a facilidade com que levantamos a grana para realizar o projeto. Todos nós sabemos que cinema é outro lance. É indústria e só se move com muito capital. O prestígio do Oficina, na época, era enorme. O diretor do Banco da Bahia comprou a idéia. Entrou com capital próprio e permitiu que o Banco nos emprestasse um capital enorme através de papagaios em meu nome avalizados pelo Zé; em nome do Zé avalizados por mim; em nome de Ítala avalizados por André e em nome do André avalizado por Ítala, ou seja, ninguém avalizava realmente nada no fim das contas. Enfim, tudo feito em confiança na qualidade e no prestígio do Oficina, uma vez que nenhum de nós possuía qualquer propriedade que garantisse o ressarcimento do Banco no caso de alguma falha no projeto e cronogramas apresentados. Tivemos também outros associados de cujos nomes já não me lembro. As locações escolhidas foram em Florianópolis. Conseguimos também grandes facilidades locais com o Governo do Estado de Santa Catarina e com a Prefeitura da capital: hospedagem, alimentação, mais verbas adicionais, etc. Tudo no papo. Afinal, embarcamos atores, técnicos e toda a parafernália que o cinema exige. Tudo parecia um céu aberto. As filmagens começaram. Nossa cenógrafa era nada mais, nada me-nos do que a genial Lina Bo Bardi. Parecia que tudo correria muito bem até que, na segunda semana, começaram as divergências entre Zé Celso e André Faria. Divergências sérias. Na verdade, André não se identificava com as idéias propostas pelo novo roteiro. Tudo era motivo de discussões: tomadas de câmera, angulações, tom das interpretações dos atores. André queria um tom mais intimista, conforme sua escola e seus princípios básicos sobre a interpretação cinematográfica. Zé Celso que-ria um tom aberto, épico, conforme sua total admiração pela linguagem glauberiana, algo como observamos em Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe. Os dois diretores tinham suas razões, mas eram pontos de vista irreconciliáveis. Brigas se sucediam. Finalmente, André exigiu o afastamento do Zé. Ele concordou, contanto que eu ficasse responsável, junto com Lina, pela qualidade que o selo Oficina exigia. Triste função, infeliz incumbência! Fernando Peixoto, que havia terminado sua direção de Don Juan no Teatro Oficina, com Gianfrancesco Guarnieri e Martha Overbeck, foi chamado às pressas para nos ajudar a terminar o filme. Fernando é um sujeito calmo, ponderado. Sua presença nos ajudou muito a manter um ambiente mais suave e criativo. Chegamos ao fim, mas as relações de Ítala com o Oficina estavam rompidas para sempre. Ela se foi sem dirigir a palavra a Zé Celso e a mim. Dublei meu papel no Rio de Janeiro pisando em ovos. Eu amava minha amiga de tantos anos, mas tanto ela como André só falavam comigo para indicações profissionais. Foi duro de agüentar. Ítala deixou o Oficina. Logo em seguida, Fernando Peixoto também começava um gradual desligamento do grupo. Capítulo XXXII Los Lobos e Living no Brasil Nessa altura, chegou um grupo – acho que foi o Fernando Peixoto quem convidou, o culpado foi ele – chamado Los Lobos, de Buenos Aires, que chegou em crise. Nós em crise e eles em crise. Chegaram em crise e aí diziam: La dramaturgia esta muerta, el personaje esta muerto, la palabra esta muerta, el teatro esta muerto, todo esta muerto. Nossa, eu ficava perplexo com aquilo! Eles tinham umas barrinhas esportivas que punham lá no palco e ficavam pulando de uma barra para outra; aí, se tocavam igual à Capela Sistina, sabe, faziam aquela comunicação de Deus tocando o dedo de Adão. Eu pensava: Gente, eu não sou trapezista, eu não tenho nada a ver com isso. Achava muito esquisito aquilo tudo. De repente, chega o Living Theatre sem avisar. Eles também estavam em crise. Quer dizer, ao invés de uma comunhão internacional de grupos de teatro, tínhamos uma soma de crises. Estávamos sem um tostão para segurar aquela gente. Como é que faz?! Bota na casa do Renato. Pronto! Foram todos para a minha casa, um apar tamento de quarto e sala; ficou todo mundo entupido lá e eu e o Zé Celso, de malinha na mão, fomos embora pro Hotel Coliseu, uma maloca que tinha na esquina, lá na Rua Jaceguai . Ficava perto do teatro. Nessa altura, a filha de Julian e Judith, de uns quatro ou cinco anos, começou uma destruição sistemática da minha nova forração do apartamento. A garotinha urinava sobre os tapetes a todo momento. Eu ficava revoltado, mas Zé Celso me explicava que aquilo era um procedimento natural do grupo, ou seja, ninguém poderia ser reprimido em qualquer impulso, principalmente a menininha mijona. O único reprimido era eu. O Zé me dizia: Reprima seus instintos pequeno-burgueses. Que sacanagem! Era minha casa, meu Tabacow comprado a tanto custo. A gente esperava, de alguma maneira, que houvesse uma união do Living e sua técnica inovadora, mais o Oficina com a sua experiência e Los Lobos com... Enfim, que, de repente, a gente pudesse fazer um trabalho novo. E começou aquele convívio, aquela coisa. Los Lobos sempre muito simpáticos. Mas, no Living, eu percebia um olhar estrangeiro sobre nós. Percebi neles uma coisa de Anchieta e os índios, sabe? Imperialismo intelectual! Era uma coisa assim: todo mundo em roda, tinha um julgamento pra ver quem era apto a entrar para o grupo americano ou não. Os brasileiros, que queriam parecer avançados, tiravam logo a roupa, dizendo: Eu não tenho preconceitos. Eu nunca tirei a minha roupinha, de jeito nenhum. Não, não, não! E, aí, eu notei também que as pessoas mais pensantes e inteligentes não eram bem aceitas no Living. Nossa, como o Flávio Império, uma ilustre cabeça, não foi considerado apto para trabalhar no Living! Nem o Zé Celso! Claro, quem pensava com autonomia não era muito bem visto pela versão americana de coletivismo inventada pelo Living. Para o Oficina pagar as dívidas, eu tive que remontar Galileu Galilei. Comecei a representar o Galileu em São Paulo de novo. Aquela peça era um sucesso que não parava nunca! Mas o Living saía lá da sala de julgamentos, passava pela platéia e olhava pra mim em cena e Há, há, há!!!, como se eles estivessem vendo uma palhaçada, um dinossauro falante, sei lá o que eles achavam. Eu fiquei puto e decidi: Não vou trabalhar com eles, não quero trabalhar com eles! Fechei posição. Eu acho que isso fez com que o Oficina não fosse trabalhar com o Living porque, de uma certa maneira, eu ainda tinha uma força muito grande dentro do grupo. Não vou, não quero e encerrei o papo. E foi aí que começou uma transação do Living de pegar uns brasileiros – aqueles que tiravam a roupinha na roda – e fazer um grupo. Depois, eles foram para Belo Horizonte, para Ouro Preto, onde foram presos por porte de drogas. O Paulinho, sonoplasta do espetáculo Borghi em Revista, diz que fui eu que dedei, mas não é verdade. Eu nunca dedei ninguém. Mas não posso negar que eu adorei quando eles foram embora. Capítulo XXXIII As Comunidades Eles foram expatriados. Mas, antes, eles haviam montado uma peça com aqueles brasileiros que toparam a catequese, chamava-se A Herança de Caim. Parece que essa Herança de Caim caiu sobre mim. A herança do Living foi a idéia do extermínio da empresa Oficina. Acabou a empresa. Viramos uma comunidade. Todo mundo morando junto, todo mundo dormindo junto no mesmo apartamento. A minha casa ficou pequena porque já tínhamos, nessa ocasião, umas trinta pessoas morando juntas. Alugamos um outro apartamento na Av. Rio Branco; tudo mundo amontoado. Era um momento de muito arroz integral, tonéis de arroz integral. Tinha uma mocinha de quem eu gostava muito, a Silvinha, que salpicava uma ervinha em cima do arroz integral; ficava tudo verdinho, feito orégano. Era maconha. A gente comia aquilo e ficava doidaço! Eu saía por aí fazendo negócios com bancos, assinando papagaios, tudo sob efeito daquele arroz mágico. E a empregada, com quem a empregada vinha se queixar? Comigo, é claro: Olha, Seu Renato, meu filhinho vai comer dessa comida, minha criança vai enlouquecer! Anos mais tarde, depois de dissolvida a comunidade, soube que Silvinha havia morrido na África, picada pela mosca do sono, a famosa mosca tsé-tsé. Há uma outra versão em que ela teria sido devorada por uma tribo canibal. Pra falar a verdade, não sei o que realmente aconteceu. Muito louca aquela fase toda! Todo mundo estava completamente pirado. Quanto ao episódio do filho da empregada, a nossa querida Zuria foi queixar-se com minha mãe, D. Mariazinha. Mamãe, atendendo aos pedidos de nossa desesperada cozinheira, invadiu o apartamento da comunidade, naquele momento sediada em Copacabana, e atirou toda a maconha no vaso sanitário para salvar o filhinho de Zuria. Pra quê?! Quando a turma voltou, quase fui crucificado numa daquelas rodas inquisitoriais. Minha mãe, se isso fosse possível, seria queimada viva em praça pública. Quantas coisas hilárias aconteceram naquele tempo. Vocês acreditam que teve um julgamento porque um indivíduo reclamou – coitadinho! – que usaram a escova de dentes dele. Fizeram um julgamento dizendo que ele era um pequeno proprietário de uma escova de dentes, que aquilo não era propriedade privada, que aquele objeto não era pessoal, mas pertencia a toda a comunidade. E o sexo coletivo? Olha, vou te falar! A gente botava a língua de fora, punha uma mescalina, engolia a mescalina, começava o efeito. Aí, vinha... Você pensa que dava tesão? Não dava. Ficava uma coisa mecânica, não era espontâneo. Pra mim, pelo menos, não funcionava. Não sei, acho que eu sou careta mesmo, comigo não dava certo. Era uma coisa que não funcionava. Não era uma suruba, uma sacanagem autêntica, um tesão que brota espontaneamente num grupo de pessoas. Não, era uma proposta intelectual, uma coisa conceitual. E depois, eu estava casado com uma mulher lindíssima e os machos do grupo ficavam rondando em volta de nós fingindo querer fazer sexo com o casal, mas, no fundo, queriam comer a minha mulher e eu ali, brigando com todos os gaviões, bancando o guardião da gruta. O Zé Celso teve uma experiência completamente diferente da minha. Ele me disse, recentemente, acho que por ocasião do Borghi em Revista, no teatro, que o sexo coletivo lhe fez muito bem, foi muito gostoso, uma liberação total. O Teatro Oficina também sofreu uma transformação naquela época. Não tinha mais peça de teatro, então virou uma Casa de Transas. Mas não transa de sexo, era uma transação, muitos acontecimentos ao mesmo tempo. O grupo inventou uma banda de Rock chamada Urubu Roxo, com Henricão na liderança, o nosso Mick Jagger. Também tocaram no Oficina o Made in Brazil, o Brazilian Antropofagic Sound, as Coristas do Inferno. Até a Rita Lee e os Mutantes, no seu começo, andaram se apresentando por lá. Havia também um bar macrobiótico, um bar alternativo que funcionava ao lado do nosso antigo bar careta que vendia Coca-Cola, sanduíches de presunto, chocolate e outros venenos. Os alternativos macrobióticos vendiam bolinhos de arroz integral, chicória cozida e, por mais incrível que pareça, quentão! Nunca entendi essa combinação de macrobiótica com quentão. Capítulo XXXIV A Revolição As transações podiam ser um barato, como se dizia na época, mas isso não dava dinheiro. O buraco das dívidas do grupo, ou melhor, da comunidade, não tinha mais fundo. Imagina a quantidade de grana que era necessária para manter aquela gente toda. Tínhamos que to-mar uma decisão: ou a gente assumia um suicídio coletivo; desaparecia, igual àqueles animais do Discovery, aquelas espécies suicidas, aqueles bichinhos que saltam do abismo e desaparecem todos de uma vez sem ninguém saber por que; ou então, a gente resolvia voltar a querer: revolere, revolição, querer de novo. E foi o que nós fizemos: remontamos todo o repertório de sucesso do Teatro Oficina. Foi maravilhoso! Fizemos Pequenos Burgueses, fizemos Galileu Galilei, fizemos O Rei da Vela, que foi até filmado. Acho que foi o último grande luxo do Oficina daquele tempo. Um luxo, porque grandes profissionais vieram todos trabalhar com a gente. Por exemplo, eu tive a honra de ser coadjuvado, no papel de Galileu, pelo meu amigo Raul Cortez que topou fazer o Cardeal Inquisidor. Obrigado! Eugênio Kusnet, meu querido mestre, voltou ao seu papel de Bessemenov em Pequenos Burgueses. Foi a última vez que contracenamos com o Mestre. Poucos anos depois, Kusnet se foi para sempre. Nessa mesma temporada, tive o imenso e inenarrável prazer de contracenar com Henriqueta Brieba em Rei da Vela e também com o Primo Pobre, Brandão Filho. Dois gênios. Foi uma festa! Estér Góes entrou no Oficina fazendo todos os grandes papéis femininos, todas as musas do Teatro Oficina. Ela encarnou todas. E nós fomos por aí afora, um sucesso total. O Oficina era uma espécie de Rolling Stones do Teatro. Havia multidões para ver nossos espetáculos. As pessoas brigavam por um ingresso. O povo que ficou de fora na primeira apresentação de Burgueses chegou a quebrar a porta do Teatro João Caetano. A gente pagou a porta, é claro. Já estávamos endividados e ainda tivemos que pagar aquela porta caríssima. Mas não teve problema, o dinheiro estava correndo como um Amazonas. Aquela temporada popular transcorreu numa felicidade de lua-de-mel. Me dá seis ingressos, me dá sete, me dá dez!; mil e quinhentas pessoas por noite! E a gente foi podendo pagar aquele buracão das dívidas de São Paulo. Também foi possível produzir o filme do Rei da Vela. E, além de tudo, nos capitalizamos para subvencionar as experiências de um trabalho novo. Este Trabalho Novo consistia num roteiro muito interessante muito inspirado por nossa convivência com o Living. Eu achava que aquilo poderia ser um caminho de uma coisa nova para o grupo. Capítulo XXXV A Coluna Oficina-Brasília O capital gerado pelo estupendo sucesso no Rio de Janeiro nos permitiu traçar um plano de via-gem pelo país para experimentarmos o nosso Trabalho Novo. Partimos pelo Brasil numa Coluna Oficina, que foi parar em Manaus. Uma de nossas primeiras paradas foi Brasília. A jovem capital foi o lugar onde esse Trabalho Novo foi melhor recebido e compreendido. Fizemos a experiência no prédio das Ciências Biológicas, ainda em construção. Tinha o apelido de Minhocão. O Trabalho Novo propunha várias etapas. Uma delas era dizer que a gente estava dentro de um processo esquizofrênico: um lado oficial, jurídico e careta em contraposição a um lado libertário e criativo. Diante do problema, colocávamos duas possíveis saídas. Em uma delas, os atores em fila, com formão e martelo nas mãos, propunham a lobotomia dos nossos cérebros e os da platéia que eram representados por repolhos, ou seja, assumindo a lobotomia, a gente poderia se acalmar e esquecer os horrores da ditadura e da sociedade de consumo. Com as ferramentas cirúrgicas em punho para a lobotomia entoávamos uma conhecida canção: Hoje, a festa é minha, de um novo dia... De um novo tempo que começou... Todos nossos sonhos serão verdades... Ninguém acreditava que era verdade, mas o elenco cantava pra valer aquela musiquinha símbolo, numa alegre radicalidade quase infantil. A saída alternativa à lobotomia seria descer aos infernos, como em A Divina Comédia. No inferno, assumiríamos a ditadura, a sociedade de consumo, a violência; assumiríamos todo o sofrimento de nossa época. E não é que o pessoal de Brasília topou descer aos infernos?! A descida aos infernos acontecia em várias estações. O Brasil tinha ganhado a Copa do Mundo de 70 e o Médici capitalizou vergonhosamente aquela vitória. Então, numa das estações, a gente pegava várias bolas de futebol, colocava dentro de saquinhos de supermercado – que, naquele tempo, eram umas redinhas – e nos espancávamos com violência. Passávamos a bola para o público e o público se espancava e nos espancava também. Era uma cena violentíssima acontecendo dentro da Universidade de Brasília! E também tinha outra coisa linda que era a estátua do consumo: pegávamos o Henricão – que era um ator muito alto e magro – e jogávamos sobre o seu corpo seminu uma série de itens de consumo veiculados nas propagandas de TV: Danone, sabão em pó, farinha de trigo... E o Henricão virava uma estátua de Bienal. Ah! Havia um momento de que eu gostava particularmente. Nosso elenco pedia ao público que escrevesse pensamentos secretos em pequenos pedaços de papel. Esses pensamentos eram recolhidos numa urna e, depois, num certo ponto do espetáculo, os papéis eram lidos em voz alta e, em seguida, queimados numa grande pira, cujas chamas representavam a energia presente naquela sala, naquele dia, naquela noite. A leitura desses pensamentos anônimos era, quase sempre, muito emocionante. Ao final da descida aos infernos, a gente morria. Ficávamos todos deitados, imóveis, por um bom tempo. Então, de repente, renascíamos para a vivência de uma utopia no navio de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Embaixo do Equador, onde não existe pecado! Em Brasília, isso foi lindo. Foi lindo porque os estudantes dançaram, cantaram, fizeram uma festa. Foi um lugar onde isso realmente aconteceu. Eu tive até esperança de que a gente tivesse achado algum caminho, algo novo para o que seria um Segundo Oficina. Ao encerramento de nossa experiência no Planalto Central, plantamos nosso bastão no campus da Universidade de Brasília. O bastão ficou iluminado pelos faróis dos carros dos professores e estudantes, porque já era noite. Com nossas caras pintadas com o barro de Brasília (pois Max Factor foi considerado o máximo da caretice), fomos para Goiânia cantando de felicidade no ônibus. Acreditei, realmente, que havíamos descoberto uma trilha promissora para o futuro do grupo. Capítulo XXXVI Goiânia Em Goiânia, aconteceu um episódio que me deixou profundamente contrariado e acirrou as divergências adormecidas, colocando por terra todas as expectativas boas que eu tinha vislumbrado em Brasília. Ao entrarmos no Centro Acadêmico da Universidade de Goiânia para fazermos uma segunda experiência com a estrutura do Trabalho Novo, nos deparamos com uma salinha de baile decorada com umas baianinhas estilizadas confeccionadas de ferro batido, com saias e turbantes de palha e mais uns representantes do frevo construídos com o mesmo material; enfim, bonequinhas de bailarinas clássicas e outros representantes da dança. O grupo Oficina, munido de canivetes, partiu pra cima das figurinhas decorativas com um furor messiânico. Destruímos tudo, alegando, aos gritos, que era preciso acabar com aquele gosto cafona representante da classe média. Manifestei, em nossas reuniões seguintes, a minha desaprovação ao vandalismo praticado por nós. Cheguei mesmo a classificá-lo como uma prática nazi-fascista. Claro que fui criticado por qua-se todos os membros daquela célula migrante. Só Estér Góes, sempre muito lúcida, Eugênia Álvaro Moreira e alguns outros poucos elementos do grupo me deram razão. Tivemos, no entanto, um dos momentos mais memoráveis de nossa peregrinação naquela mesma cidade. Fizemos um espetáculo de Pequenos Burgueses na concha acústica de Goiania para, aproximadamente, seis mil pessoas. Pouco antes do início do espetáculo, a concha já estava tomada pelo povão goiano e mais uma infinidade de galinhas e cabritos circundando o palco. Quando o espetáculo começou, milagrosamente, todos fizeram silêncio, inclusive as galinhas. Tudo foi mágico naquela noite quente e estrelada no cerrado de Goiás. Capítulo XXXVII Salvador Quando chegamos a Salvador, decidimos fazer uma entrevista coletiva numa casa que alugamos no bairro do Rio Vermelho. Durante a entrevista, já aplicaríamos a estrutura do Trabalho Novo aos jornalistas. Bem, aí começou um outro capítulo que me deixou em crise. Fazíamos os jornalistas presentes apresentarem suas carteiras de identidade ou carteiras de trabalho, e então pedíamos que eles declarassem em voz alta os seus nomes e os respectivos números de suas carteiras. Depois de um longo processo de convencimento, pedíamos aos repórteres que queimassem seus documentos numa bacia colocada no centro da sala, alegando que aqueles papéis eram sua camisa-de-força, representavam sua esquizofrenia, sua submissão ao mundo careta. Foi uma coisa inacreditável. Tinha gente que queimava tudo! Fiquei muito puto com aquela nossa proposta. Sabia que eles teriam que entrar em filas enormes para tirar novos documentos no dia seguinte. Ainda em Salvador, novas aventuras estavam por vir. Estreamos o Rei da Vela no Teatro Castro Alves com um sucesso retumbante. A Bahia aguardava o Oficina ansiosamente. Galileu Galilei era uma das grandes expectativas. Entretanto, uma cisão interna dentro do grupo nos deixou desfalcados. Alguns atores profissionais, que ainda estavam nos seguindo desde o Sudeste, voltaram para São Paulo e Rio de Janeiro. E aí?! Era preciso fazer muitas substituições em papéis dificílimos. Os elementos que continuavam conosco eram muito jovens e despreparados para enfrentar as imensas dificuldades dos persona-gens. Zé Celso não se deu por vencido e passou a ensaiar Galileu durante as 24 horas do dia. Eu, que detinha o papel de Galileu, tive que repetir aquela peça imensa milhares de vezes, cena por cena, fala por fala, até que os novos atores conseguissem decorar o texto e dar alguma forma a seus personagens. A estréia de Galileu Galilei no Castro Alves foi uma das maiores vergonhas cênicas que já passei na vida. Meus únicos esteios no palco foram a presença de Estér Góes, Cecília Rabelo, Cláudio Macdowell e a do próprio Zé Celso, que encarnou o Cardeal Inquisidor. Pequenos Burgueses nem vou comentar. Mas, graças aos deuses, coisas espantosamente surpreendentes também aconteceram. Nossa administradora, não suportando mais conviver com o grupo, fugiu sem deixar qualquer explicação. No meio daquela dificuldade, que parecia insuperável, Zé e eu tivemos uma iluminação. Eu tinha uma camareira, uma negona gorda e inteligentíssima que era, além de tudo, de total confiança nossa e uma de minhas maiores amigas para todo o sempre. Era Regina de Souza Malheiros, a Reginona, como era chamada por todos nós. Claro! Era ela a pessoa certa. Fizemos a proposta, Regina não se fez de rogada e aceitou. Naquela mesma noite, já estava lá na bilheteria do teatro fiscalizando tudo. Em uma única noite, Regina descobriu um esquema de filas fantasmas, que não constavam do mapa da platéia do teatro e mais uma entrada lateral por onde passavam os que pagavam por fora aos funcionários do teatro. Reginona descobriu um enorme desvio de dinheiro no esquema de venda de ingressos em prejuízo nosso ou de qualquer companhia que se apresentasse naquele teatro. Além do mais, Reginona impunha muito respeito sem despertar antipatias. Minha amiga descobriu sua verdadeira vocação. Em poucas semanas, já dominava livro-caixa, toda nossa contabilidade e fazia remessas de dinheiro para São Paulo com o objetivo de tapar o buracão de dívidas do grupo de uma vez por todas. Ela fez um planejamento econômico superrigoroso e não fazia concessões nem para mim, que era amigo do peito. De vez em quando, ela me pagava um peixinho agulha frito que vendiam na beira da praia. Outro anjo que viajava conosco era a segunda camareira, Helena, uma mulher divertidíssima, que passou a assumir as funções de Regina juntamente com as suas próprias, e olha que não era coisa de pouca monta. Essas duas mulheres me deram muita força pra continuar com aquela Olimpía da Teatral. Capítulo XXXVIII Recife e Mandassaia Próxima parada: Recife. Gente, em Recife, eu comecei a ficar meio emputecido porque aquelas peças do Rei da Vela, do Galileu, etc. começaram a ser chamadas de tralha. Para os radicais a tralha era um mal necessário para a construção do Trabalho Novo. E a estrela da tralha era eu! O Renatinho aqui é que tinha de fazer aqueles papéis enormes, com substituições infinitas. Era uma loucura! Então, comecei a ficar muito irritado, pois era o dinheiro faturado pela tralha que subvencionava aquela pesquisa toda. Depois de terminada a temporada do Recife, a gente foi para Fazenda Nova, em Nova Jerusalém, aquele local maravilhoso onde todos os anos a Paixão de Cristo é encenada. De lá, partíamos para fazer algumas experiências nas comunidades rurais. Essas experiências não podiam ser aquelas da lobotomia, não podia ser aquilo de esquizofrenia, o pessoal daquelas comunidades não sabia nada disso. Então, nós resolvemos fazer trabalhos adaptados para aquela região. Tinha uma cidade que diziam ser cercada de rios por todos os lados e que as pessoas, quando chovia, tinham que atravessar o rio com água pela cintura. Pensamos: Vamos deixar uma sugestão de ponte pra que eles reivindiquem do governo a construção de uma ponte. Então, fizemos um plano estratégico; só que planejamos tudo errado, porque fizemos um plano mágico, cabalístico, sei lá! Entramos cegos na cidade em homenagem ao glaucoma. Com o bastão na mão, marcamos um ponto no cemitério, fizemos uma mandala no centro da praça (essa mandala me perseguiu a vida inteira). E aí, partimos para a construção da ponte! O rio era largo pra burro, era profuuundo! E ninguém mediu nada. Ninguém sacou que cidade era aquela, como é que aquelas pessoas viviam. Eles eram meeiros, ou melhor, não tinham salário. Plantavam feijão, levavam um pouco de feijão para casa; plantavam couve, levavam um tico de couve pra comer com feijão e assim por diante. Ninguém viu isso! Estávamos muito místicos. Eu era o dissidente, o tempo todo chamando atenção para isso. Logo surgiu o problema crucial. De que vamos fazer a ponte? Ah, já sei! Vamos cortar dois coqueiros, a gente emenda um no outro e, pronto, a ponte está feita! Na hora que a gente levantou o facão, chegou um cara meio cangaceiro e disse: Se cortar, vai morrer. Porque a gente precisa desses coco pro mó de beber a água quando tem seca. Uma coisa violenta! Paramos imediatamente. Vamos fazer de quê? De pedra! Onde é que estão as pedras? No chão! Aí, todo mundo começou a arrancar com as unhas as pedras do chão. Inventamos um hino parecido com aqueles da Igreja Universal: Uma ponte, uma ponte de peeedra; uma ponte entre nós e vocês... O grupo entrou numa espécie de possessão. Os que queriam agradar ao Zé carregavam pedras enormes com as mãos sangrando. Eu, que sempre odiei carregar peso, pegava duas pedrinhas bem pequenininhas, cantava bem João Gilberto: Uma ponte de pedra, pedra, pedrinha... Aí, jogava as pedrinhas no rio: Plim... Plim. No caminho, pensava comigo mesmo: Renato, você quer isso? Não. Você quer continuar com isso? Não. Renato, do que é que você gosta? Da tralha. Eu gostava da tralha. Vou assumir, eu gostava mesmo era da TRALHA!!! Gostava de fazer aqueles grandes papéis daquelas peças incríveis; gostava dos grandes teatros, das coxias, dos camarins com espelhos iluminados, da maquiagem, da ilusão e da verdade do palco. De volta a Mandassaia (esse era o nome da cidadezinha ilhada), já estava anoitecendo. No sertão, quando anoitece, faz um frio dos diabos. É o contrário do dia em que o calor deixa a gente com a língua de fora. Aquelas pessoas carregando pedras já com a água pelo pescoço, congelando; jogando as pedras no leito do rio e nada de aparecer uma pedrinha na superfície, uma coisa inacreditável! Aí, eu me cansei daquilo; fui até um barzinho e perguntei: Escuta aqui, onde é que tem pedra? Cara do bar: Na pedreira. Mas como é que eu faço pra levar as pedras pra beira do rio? Cara do bar: Ah, o senhor vai até a casa do Seu Romualdo, aquela terceira casa ali. O senhor co nhece o Seu Romualdo? Ele tem um caminhão, aí ele leva as pedras lá no rio. R: Mas como um caminhão, moço? A cidade não é cercada de rio por todos os lados? Cara do bar: Não, senhor. O senhor está enganado, tem uma ponte lá do outro lado da cidade. Nossa, eu fiquei pirado! Corri até a beira do rio, falei: Gente, está furado o trabalho. Gente, pelo amor de Deus, vamos parar com isso. Ninguém me ouviu, estavam todos em transe com aquele hino messiânico: Uma ponte, uma ponte de peeedra... Mesmo gemendo nas águas frias do rio, as pessoas não despertavam para a lucidez. Aí, me enchi o saco, fui na casa do Seu Romualdo, peguei o caminhão. Eu, a Estér Góes e a Eugênia Álvaro Moreira, ambas muito críticas também daquele processo, enchemos o caminhão de pedras, trouxemos o caminhão para a beira do rio. Eles disseram: Graças a Deus! Porque, afinal de contas, arrancar pedra do chão com as unhas estava uma barra, era noite e todo mundo gelado. O pessoal avançou no caminhão, pegaram as pedras e clá, clá, clá, clá, clá, clá... Num minuto, apareceram as pontas de umas pedrinhas na superfície. Então, todo mundo disse: Ah, o trabalho está completo. Uma ponte, uma ponte de peeedra, uma ponte entre nós e vocês. Foi quando apareceu uma mulher bebum, dessas que ficam no bar a noite inteira; no que apa receu, disse: Tá tudo muito bem, tá tudo muito bom, mas como é que nós vai fazê quando chovê? Vocês fizeram uma barragem, um dique, vai inundar a cidade toda. Foi muito louco aquilo! Eu queria discutir aquele trabalho, ninguém me ouvia. Eu não era mais ouvido, que coisa estranha isso! Eu comecei a ser um elemento dissidente, que coisa difícil isso. Houve sempre uma sintonia tão grande, uma parceria tão bonita entre Zé Celso e eu e, de repente, aquilo estava ficando esquisito, estava ficando complicado. Zé Celso não dava o braço a torcer. Depois de todas as críticas que fiz ao trabalho da construção da ponte, ele pediu que me olhasse no espelho e afirmou que o trabalho tinha me abençoado, pois eu estava especialmente bonito aquela manhã. Claro que fui olhar. E não é que estava bonito mesmo? Concluí que, quanto mais emputecido você fica, mais bonito do que o normal você se apresenta. A raiva nos torna mais coloridos. Capítulo XXXIX Natal e Fortaleza A viagem prosseguiu sempre em clima muito conturbado. Os atores que já dominavam papéis importantes, apesar de sua inexperiência, cindiam, rompiam, voltavam. Os poucos profissionais então, nem se diga. Ao mesmo tempo, uma legião de jovens apaixonados pelas propostas de uma nova forma de vida acenadas pelo Oficina iam se juntando ao grupo numa grande caravana. Cada peça tinha que ser novamente ensaiada do começo com os novos elementos que chegavam. Porém, não eram ensaios gostosos de novas descobertas, e sim uma repetição interminável de cena por cena, fala por fala, marca por marca, até que os recém-chegados fossem pegando seus personagens, embora, pelo pouco tempo e pela quase nenhuma experiência, de forma tosca e mal-acabada. Parecia que estavam me punindo por amar representar meus personagens naqueles espetáculos. Virou tortura o que antes era só prazer. Em Natal, antes de começar um daqueles ensaios massacrantes, fui tomado de uma sensação estranha. Entrei em estado de semi-consciência por 48 horas. Minha língua travou e não consegui pronunciar uma só palavra por quase dois dias. Era, sem dúvida, uma defesa orgânica contra aquela violência que se repetia a cada nova capital. Em Fortaleza, fizemos um espetáculo de Galileu numa quadra de basquete. Não é preciso revelar que tínhamos descoberto a maconha e fazíamos uso dela para pesquisar o que, na época, chamávamos de liberdade cênica a favor da inspiração. Bem, antes de ter início o espetáculo, ainda com o elenco todo reunido no vestiário da quadra, percebemos que não havia maconha naquela noite. Houve uma revolta nos vestiários. Estér, que ajudava Reginona no controle das finanças, explicou a todos que, pagas todas as despesas, não havia sobrado dinheiro para a compra da erva. Foi um deus-nos-acuda! O pessoal do grupo berrava, quase agrediram a tapas a pobre colega. Gritavam: Careta! Você fez de propósito porque você é uma caretona! Não vamos entrar sem maconha! Sem maconha ninguém faz o espetáculo. Foi quando alguém entrou nos vestiários com cara de pavor e disse: Gente, pelo amor de Deus, os microfones estão abertos! Há microfones ligados aqui bem em cima da cabeça de vocês! Foi quando ouvimos o público, que lotava a quadra, gargalhando sonoramente, mas era um riso sem preconceitos. Entramos e fizemos o espetáculo na maior moral. Tenho lembranças empolgantes dessa noite. Por exemplo, o público aplaudia em cena aberta de um jeito completamente novo para nós. Tocavam castanholas com os dedos para não atrapalhar a representação. Aplaudiam as falas inteligentes e como, em Galileu, elas são muitas, representamos Brecht ao som de castanholas. Foi empolgante! Capítulo XL São Luiz do Maranhão Em São Luiz do Maranhão, durante uma sessão de Galileu, faltou luz. Foi quando tivemos a idéia de propor ao público continuarmos à luz de vela com a nova experiência do Trabalho Novo. Todo mundo topou. Iniciamos, então, aquela estrutura de Brasília: descemos aos infernos; morremos; renascemos; embarcamos no navio de Serafim Ponte Grande; fizemos a comunhão dos corpos; nos abraçamos; saímos pelas calçadas em torno do teatro, em procissão; enfim foi mais um teste muito bem-sucedido do nosso futuro espetáculo que não seria mais um espetáculo de teatrão e sim, um roteiro com a participação dos espectadores. O público adorou. Voltamos para o hotel e adormecemos profundamente. Na manhã seguinte, logo cedo, fomos acordados por batidas violentas na porta do quarto. Levantei num salto e fui correndo abrir a porta. Foi quando me deparei com soldados do exército armados de carabinas nos dando ordem de prisão. Pensei que a coisa fosse só comigo e com Zé Celso, mas não, o grupo inteiro estava sendo preso. Corri até a janela e vi a praça cercada com tanques de guerra, brucutus, caminhões cheios de soldados armados com fuzis. Fiquei perplexo. Pra que todo aquele aparato pra prender um grupo de artistas?! Fomos obrigados a subir nos caminhões e nos levaram, às pressas, para o quartel-general. Fomos conduzidos até uma sala onde nos obrigaram a sentar em carteiras escolares, do tipo usado nas escolas primárias. Logo entrou um general aos berros: Os senhores estão sendo pagos por Cuba ou pela União Soviética para destruir os alicerces da família brasileira! Retruquei: Mas general... E ele: Cale a sua boca, elemento subversivo, cobra cubana de veneno incurável! Vocês estão aplicando o reflexo de Pavlov para condicionar nosso povo à dissolução dos nossos sagrados costumes. Depois, ele lançou um olhar cheio de falsa piedade sobre as moças do grupo e atacou: E vocês, pobres meninas, onde estão os seus pais? Vocês têm aspecto de serem mocinhas de família. O que é que estão fazendo andando soltas pelo país? Vocês podiam ser noivas, esposas, mães de família... O que é que estão fazendo, galinhando por esse mundo de Deus? Os senhores têm 24 horas para deixar o Maranhão e nem um minuto a mais. Eu me arrisquei: General, nós temos um contrato para fazer o Galileu Galilei na quadra de basquete depois de amanhã. Ele me interrompeu aos gritos: Já sei, o senhor vá hoje mesmo à Secretaria de Cultura que seu cheque já está pronto. Pegue o dinheiro e caia fora com seus companheiros agitadores. E agora: Rua!!! Já temos seus lugares reservados no vôo de 6:30 hs. Nossos soldados vão conduzilos até a porta da avião. Cuidado com o que vão fazer em Belém, estarão sendo observados o tempo todo pela Polícia Federal. Saímos de lá com o rabo entre as pernas. Depois de fazer as malas, tomei um banho, sequei meus longos cabelos com um secador francês, vesti uma roupa novinha que ainda não tinha estreado durante toda a viagem. Era um traje completo todo branco composto de uma jaqueta, calça e camiseta. Vesti e saí andando pela rua de cabeça erguida e queixo levantado para expressar o meu desprezo pelo que tinha ouvido daquele general do exército maranhense. Foi quando passou por mim um carro cheio de menininhas estilo Jovem Guarda. Elas me viram e gritaram: E aí, pãozinho. Me senti orgulhoso com a aprovação feminina e segui meu caminho pisando firme. Mas logo depois que o carro passou, ouvi novos gritos e gargalhadas: CARECA!!! Aquilo foi uma punhalada nas costas. De fato, não estava mais conseguindo esconder uma ainda pequena coroa peladinha bem no topo de cabeça. Merda. Capítulo XLI Belém do Pará, Manaus e o Retorno Em Belém do Pará fomos recebidos por policiais do Dops, que nos conduziram à delegacia, onde fomos todos fichados com fotos de frente e de perfil, impressões digitais e outras formalidades. Quase morri de susto atrasado quando soube que um colega nosso que estava registrando a viagem em película cinematográfica simplesmente tinha feito o vôo de São Luiz a Belém com latas de filmes plenas de maconha. Isso com todas as forças armadas no nosso pé! A seguir nos enviaram ao hotel onde pretendiam nos encerrar durante nossa temporada no Teatro da Paz. Nós não demos a mínima. Tinha sempre um ou dois agentes que nos seguiam de longe. Levei vida normal. Fui onde quis. A cidade de Belém era linda com suas mangueiras. A temporada, naquele teatro belíssimo, esteve sempre com muito público. Os policiais não nos incomodaram mais. Seguimos para a última cidade programada: Manaus. Ficamos hospedados na Maromba, um lugar do governo um pouco afastado do centro. Naquele tempo, achei a cidade feia e o calor me levou a sentar na calçada várias vezes. Lembro que o asfalto ficava meio derretido sob o sol de meio-dia e prendia nossos sapatos. O Teatro Amazonas era inacreditavelmente belo. Fizemos Rei da Vela e o repertório completo da tralha. Também em Manaus, me senti seguido por agentes policiais. Chegou, depois de nove meses de viagem, o momento de voltar. Meus pais estavam preocupados e cheios de saudades. Compraram uma passagem de avião Manaus-Rio de Janeiro e me trouxeram direto para sua nova residência em Ipanema. Os pais de Estér fizeram o mesmo. Zé e mais alguns companheiros ainda se embrenharam por outras pequenas cidades amazônicas. Os demais componentes do grupo voltaram de navio de Manaus até Belém e, depois, de ônibus até Brasília e novamente de ônibus até Rio ou São Paulo. Só Flávio São Thiago ficou sem dinheiro em Brasília sem poder voltar. Fiz uma vaquinha no Rio e até Marília Pêra colaborou. O pessoal que fez aquele percurso de navio contou que vie-ram encenando o Carnaval do Galileu para os demais passageiros. Contaram que a pirâmide humana, ilustrando as diferenças sociais, foi o maior sucesso. Capítulo XLII Gracias, Señor Em janeiro de 1972, aproveitando a experiência de todos os laboratórios realizados pelo Brasil, decidimos apresentar nosso roteiro revisado do já citado Trabalho Novo. A estréia foi no Rio, Teatro Tereza Rachel, ainda em construção. O trabalho foi batizado com o nome de Gracias, Señor, em homenagem ao comportamento subserviente do latino-americano subdesenvolvido diante do poder imperialista. O lançamento foi uma loucura! Para inovar, não queríamos dar entrevistas de óculos escuros, blazer, falando coisas inteligentes. Eu não podia imaginar que, nos dias de hoje, a coisa ia piorar muito, porque agora a maioria das entrevistas é feita por telefone. De qualquer forma, o que aconteceu foi que combinamos entrar em frangalhos na redação do JB, o Jornal do Brasil, que era o máximo da comunicação cultural na época, e morrer em cima das mesas dos jornalistas. Vinte pessoas mortas nas mesas dos jornalistas! Eles se revoltaram: Sai daí, está me atrapalhando, eu tenho que entregar minha matéria até às cinco da tarde, pelo amor de Deus! Que história é essa? Pára com isso! E o cara, na mesa do quem eu morri, falou assim no meu ouvido indefeso de morto: Renato, francamente! Você é o Rei da Vela, você é o Gali leu, você é o fundador do Oficina. Por que está fazendo esse papel de moleque deitado aqui na minha mesa? Fiquei um defunto rubro de vergonha, completamente rubro, com vontade de sair correndo. O clima místico aumentava a cada dia. Nossa caminhada até o teatro era ritualística. Saíamos em fila, em absoluto silêncio, entrávamos no teatro depois do público, nos colocávamos contra a parede e começávamos a proclamar nossos nomes e os números de nossas identidades. Ah! Antes de nos reunirmos em nosso apartamento-comunidade para a caminhada até o teatro, tomávamos um longo banho de mar que começava às 18 horas. Para mim, o momento mais difícil do espetáculo, ou melhor, do happening, era a declaração de morte da palavra. Esse foi um capítulo difícil. Eu vinha montado nos ombros do Henricão com um bastão na mão (era uma cena até bonita, imponente); eu vinha dizendo Calderon de La Barca. Aí, desmontava tudo, todo mundo ficava de frente ao público e dizíamos: A Palavra está morta. O Teatro está morto. Entendo que, para alguns colegas, isso soasse como verdade, mas, para mim, era uma mentira deslavada. Nunca acreditei nisso. Nunca acreditei que a dramaturgia, nem a interpretação, nem a fábula estavam mortas. Então, começou um momento violento, um momento muito difícil para mim. Depois, passávamos por aquelas fases da lobotomia, esquizofrenia, a descida aos infernos com o espancamento coletivo, a estátua do con-sumo e outros momentos importantes. Chegava então a hora da morte. Deitávamos no chão e permanecíamos mortos por mais de quinze minutos. Isso deixava o público muito inquieto. Uma saudosa psicóloga, Regina Sneiderman, se aproximou do meu cadáver e começou a pisar, de verdade no meu frágil pescocinho, dizendo entre-dentes: Agora eu quero ver se você tem fé no que está fazendo. Mostre que você não é um impostor e agüente firme enquanto eu te estrangulo, seu filho da puta!. Claro que eu me levantei num pulo. Outra vez, também durante a morte, minha amigona e administradora, a famosa Reginona, chegou no meu ouvido indefeso de morto e cochichou: Meu compadre, está na hora do meu ônibus pro Rio. Eu sei que você está morto, mas presta atenção: o dinheiro da renda de hoje está na gaveta da bilheteria, fechadinho a chave. A chave tá aqui, tá sentindo? Tô enfiando no seu bolso. Tchau, até segunda. Depois vinha o renascimento. Convidávamos o público a embarcar conosco no navio de Serafim Ponte Grande. Brincadeiras eram propostas. O público amava esse pedaço. As pessoas dançavam, cantavam. Houve um moço que comparecia ao espetáculo todas as noites. Uma vez, ele veio vestido de bailarina clássica, de sapatilha e tudo. Tinha uma corda que era estendida nesse momento para que as pessoas atravessassem o palco se segurando na corda com as mãos. Claro que a bailarina bêbada quis descer feito uma equilibrista profissional pisando em ponta naquela corda frouxa. Evidentemente, esborrachou-se no chão e pareceu ter se machucado muito. Pensei que ela tinha quebrado o pescoço . Eu sabia que estávamos sendo permanentemente vigiados e, cruelmente, arrastei-a pra dentro de um camarim e tranquei a porta por fora. A loucura era tal que não pensei em socorrê-la, só fazê-la desaparecer sem chamar atenção. Bem, o pescoço era exagero, ela sairia dali andando, roxa, manca, mas andando. A seguir, começava a comunhão dos corpos. Embaixo do Equador não existe pecado! O público era convidado a vir comer abacate conosco. Todo mundo sentado em roda, comendo abacate. Era uma cena bonita. Depois, formávamos uma fila de atores de frente para uma fila de público. Caminhávamos uns para os outros; a gente se abraçava e dava um beijo no rosto. Só que, você sabe como é que é... Tem gente que ficava a fim do elenco. Naquela época, eu era gatinho e a Estér era linda, nossa! (Ela é linda até hoje) Ela era o máximo! Então, o público vinha vindo, nos abraçavam e alguns nos beijavam na boca. Bem, nós estávamos propondo uma comunhão de corpos, éramos radicais, como poderíamos negar uma coisa dessas? Aí, o Dops começou a mandar oficiais disfarçados de estudantes e mocinhas disfarçadas de estudantes. Eles vinham e beijavam direto na boca. E a gente beijava, claro. Não guardo nenhuma lembrança desagradável ou constrangedora daqueles momentos. Um beijo é um beijo, quer dizer, é sempre uma coisa emocionante. E a peça foi proibida em todo o território nacional!! O que é que aconteceu, gente? O que é que houve? O que é que houve? Precisa saber o que foi que aconteceu. Tem que ir a Brasília! Quem teve que ir a Brasília? Eu! Fui para Brasília. Botei o blazer, gravata e fui para o aeroporto. Só que fiquei muito nervoso e tasquei um LSD na língua. Era a época das drogas, não vamos enganar ninguém, estava todo mundo muito louco – e aquilo fez um efeito! O avião parecia se expandir e encolher feito sanfona. As nuvens formavam figuras inacreditáveis. Desci em Brasília, os prédios balançavam, o Banco Central parecia querer me estrangular. Uma coisa! Entrei no prédio da censura federal. Topei com o Gal. Bandeira, o Carrasco da Ditadura. Parecia o Dragão da Maldade soltando fogo pelas ventas. Eu falei: General, por que proibiram a nossa peça, Gracias, Señor? – Mas o senhor ainda pergunta? Olha esse dossiê de denúncias, olha aqui: dia tal do tal, oficial fulano de tal beijado de língua pelo ator Renato Borghi; dia tal do tal, a oficial tal beijada de língua por Maria Alice Vergueiro. Era uma bíblia interminável de denúncias. Fa-lei: Mas o senhor não compreendeu, general, foi uma coisa inocente, essa é a cena da comunhão dos corpos. – O quê? O senhor tem a coragem de chamar suruba de comunhão dos corpos? Ponha-se daqui para fora! Os senhores estão subvencionados pela União Soviética, ou então por Cuba, pra dissolver os alicerces da família brasileira! (Igualzinho ao general de São Luiz, parecia discurso ensaiado) Ponha-se daqui para fora! Saia daqui! Eu peguei o avião desesperadamente louco, saí do avião andando de costas e cheguei no teatro. Sentei na roda, falei com o meu pessoal de um jeito sorridente e despreocupado de quem está muito louco: Acabou, viu gente. Vamos encerrar tudo. O General não quer. CRISE! Capítulo XLIII Três Irmãs e a Despedida do Oficina Era preciso fazer alguma coisa, era preciso desviar a atenção daquela ditadura, daquele Dops maldito. Então, resolvemos montar uma peça que eu amava muito e que Zé Celso amava muito também. Era As Três Irmãs, de Tchekhov. Uma peça que, de certa forma, tratava da gente, porque as três irmãs estão sendo expulsas de casa; as românticas estão sendo expulsas de casa pelo princípio da realidade burguesa encarnado pela cunhada Natasha, que vai, pouco a pouco, botando as coitadas pra fora. Assim como nós. Também estavam querendo nos expulsar do teatro. Então, tinha muito a ver com a gente. Para esse espetáculo, trouxemos de volta antigos profissionais que já tinham brilhado muito em outros momentos do Oficina: Maria Fernanda, Othon Bastos, Kate Hansen integraram o elenco e Analú Prestes fez uma de suas primeiras aparições. A encenação tinha um lado visual inspirado em alguns símbolos do Gracias, Señor; era muito forte em sua linguagem poética. O cenário era uma mandala imensa. Tinha um relógio que era uma mandala. Tinha uma piorra (a gente tinha uma cena linda olhando aquela piorra rodando), tinha coisas de uma poesia extrema. Eu me lembro também de uma cena que é o balanço do Rei da Vela. Zé Celso ficava balançando sobre a platéia. Eu fazia o Andrei, com um filhinho pequeno dentro de um carrinho de bebê preto, girando como um louco em torno da mandala, pensando alto: O que é que eu vou fazer da minha vida, meu Deus. Ariel tinha acabado de nascer. Tudo em cena parecia muito verdadeiro. A crise, a loucura do LSD, a alegria da paternidade; tudo isso dissolvia a frágil fronteira entre ficção e realidade. Foi aí que meu querido Ariel entrou em cena nas vidas de Ester e do Renato. Pensava na Tempestade, de Shakespeare. Eu ficava com o carrinho, girando e murmurando baixinho: O que é que eu vou fazer da minha vida, meu Deus? Era quase um mantra. Nossa, quem viu esse espetáculo disse que ele foi arrebatador. Eu fiquei só uma semana. Porque no dia 31 de dezembro, de 1972 para 73, fizemos um espetáculo de comemoração de passagem de ano e, durante esse espetáculo, quando terminei o primeiro ato, fui até o camarim trocar de roupa quando, de repente, ouvi uma coisa estranha na platéia, uma batucada de Candomblé. Todo mundo louco! Maria Fernanda louca correndo pelos camarins: O que é que está acontecendo, meu Deus? O que é isso? Os atores convidados completamente transtornados e a platéia em transe. Zé Celso incentivava a formação de uma corrente: Corrente, firma! Corrente, firma! Eu tive um insight, não sei. De repente, voltei pro meu camarim, abri a porta, olhei no espelho e perguntei para mim mesmo com toda sinceridade: Renato, você acredita nisso? Não. Você acha que você pode continuar com isso? Não. Você acha que isso vai mudar? Não. Então, o que é que você quer? Tirei minha roupa de cena, vesti minha roupinha de rua e fui pro meio do palco. Cheguei lá no meio do palco e falei: Olha Zé Celso, por aquela porta que eu entrei há treze anos, estou indo embora. Estou indo embora porque a nossa parceria acabou. Eu não acredito nesse tipo de pesquisa que vocês estão fazendo, eu acho que você vai voltar à dramaturgia mas, nesse momento, você não pode admitir isso. Pra mim é impossível continuar. Então, eu vou procurar o meu caminho, vou te dizer adeus e desejar boa sorte. Fui embora pra sempre e hoje sei que pra sempre é uma bolha de goma de mascar. Capítulo XLIV Teatro Vivo Foi um momento muito difícil pra mim, Estér e Ariel, mas a sorte estava a nosso favor. O casal foi convidado pelo Maurício Segall e pela Beatriz Segall para fazer o Frank V, do Dürrenmatt, com a direção de Fernando Peixoto. Fica aqui o meu abraço carinhoso para os três, por terem colaborado com o reinício de minha carreira e com o leitinho da criança, por que não? Realmente, foi um momento muito difícil. Eu tinha medo. Estava apavorado. Tinha medo de não ser aceito no mercado de trabalho. Estava com fama de drogado, de anarquista. Parecia que a gente não gostava das coisas que os outros faziam. Tinha uma suspeição em cima de nós. Estava com muito medo de ser recusado. Mas, ao contrário, eu fui abraçado, acarinhado pelos colegas que me receberam de braços abertos. A Bea triz Segall, o Maurício e o Fernando Peixoto foram o meu melhor abraço. Foi importantíssimo, naquele momento, ter aquela peça para fazer. Estávamos de volta à fábula, de volta ao perso nagem, de volta à dramaturgia, de volta a um momento lindo de teatro. Serginho Mamberti fazia o Frank V, um diretor-gângsteres de banco; eu era o braço direito dele, gângsteres também. Estér era outra gângsteres. Fazíamos duetos musi cais amorosos entre gângsteres, o que pra nós era sopa no mel. Momentos belíssimos! E tem uma música que não me sai da cabeça. Nossa, como é que era mesmo? Antigamente era fácil encontrar em qualquer parte um bom auxiliar, para roubar, para ma-tar. Os bons rapazes, ladrões capazes, já não existem mais: Trapaceiros profissionais! Era o momento de mostrarmos nossa cara, era o momento de retomar o diálogo com a platéia, o diálogo político interrompido. Resolvemos fazer um teatro que fosse a cara do Renato e da Estér. Então, fizemos uma incursão na obra de Bertold Brecht. Lemos peças, poemas, canções, escritos, enfim, percorremos toda a obra do dramaturgo. Chamamos o genial maestro Paulo Herculano pra fazer os arranjos, José Antônio de Souza para dirigir. Que pesquisa fantástica! Fomos fundo naquele universo. A gente tratava da falência das utopias dentro de regimes autoritários: falência da bondade, da justiça, da ciência e da solidariedade. A peça veio a se chamar O Que Mantém um Homem Vivo? e começava com a música-tema: O que é que nos mantém, mantém o homem? O que, por dia, agarra, esgana e consegue roubar. O homem vive só, se esquecendo, que, no final, um homem ele é. Os fatos enfrentemos com coragem, o homem vive só de sacanagem! Foi uma prova de fogo para mim. Parecia um exame vestibular. Estava rolando aquele papo: O que o Renatinho vai fazer sem o Oficina? Agora eu quero ver. Acho que passamos na prova com nota 10, porque a peça foi um sucesso não só de crítica como também de público e, realmente, nos manteve vivos por muito tempo nas várias remontagens. Nosso maior fã era nosso filho Ariel. Acho que ele assistiu a quase todas as apresentações. Ele sempre me diz que, assim como Dalva de Oliveira foi meu primeiro chamamento para as artes, Estér e eu, sem saber, o chamamos também para o teatro. Capítulo XLV Mahagonny e o Teatro de Resistência Pouco tempo depois, fizemos um outro Brecht: Mahagonny. Para mim, a coisa mais fundamental que aconteceu nesse espetáculo foi a presença de Lili Canhão. Sabem quem era Lili Canhão? O rapaz que fazia o canhão de luz era, nada mais, nada menos, que o grande ator Elias Andreato. Maravilhoso ator, grande amigo! A direção foi do saudoso Ademar Guerra, os arranjos musicais do maestro Paulo Herculano e a coreografia de Marika Gidali. Durante a preparação corporal, Marika pedia de nós o máximo rendimento. Os alongamentos eram especialmente martirizantes para mim. Um dia, ela me alongou tanto, que travei numa posição de forma irremovível. Fui parar no hospital como uma estátua de gesso. Custei muito a voltar ao normal. Em Mahagonny tudo era pago a peso de ouro. Meu personagem era eletrocutado porque não teve dinheiro para pagar uma Coca-Cola. Aí, começou uma nova fase: o Teatro de Resistência. Minha grande e imensa amiga, Marta Over-beck, uma de nossas mais valorosas e talentosas atrizes, e seu marido e grande parceiro de cena, Othon Bastos, me convidaram para uma grande aventura: correr o Brasil com a peça do Guarnieri Um Grito Parado no Ar. Teatro de Resistência pelo Brasil, numa excursão até Manaus. Eu já estava viciado nessas colunas teatrais. Um ano antes, já tinha viajado o país com O Que Mantém um Homem Vivo?, dando sessões extras em Salvador e Recife. Vamos lá! Uma nova aventura que enlouqueceu as platéias do Nordeste. A peça era belíssima. Uma trombada poética na ditadura. Ela falava de atores ensaiando e cada cena ensaiada era uma cena de opressão. Foi o momento em que abrimos mão de muitos de nossos sonhos para fazer um teatro de enfrentamento, de resistência àquela ditadura que já durava mais de 11 anos. Lembro que o espetáculo tinha um refrão, uma música. Só um pedacinho diz o que era a peça: Quem souber de alguma coisa, venha logo me avisar. Sei que há um sol sobre essas nuvens e um grito parado no ar. Isso dizia tudo. Logo depois de terminada a excursão, Miriam Mehler me convidou a co-produzir com ela e Lenine Tavares uma comédia inglesa muito inteligente chamada Absurda Pessoa do Singular. O autor era Alan Aickbourn que fazia um enorme sucesso em Londres e Nova York. A peça se passava em três noites de Natal em três cozinhas de casas diferentes. Miriam Mehler fazia uma suicida que enfiava a cabeça no forno e se atirava sobre facas. Era sempre impedida de consumar o intento macabro por seu marido, feito pelo jovem, talentoso e carismático Tony Ramos. Aqui cabe abrir um parêntese para comentar o profissionalismo desse ator que ainda era um contratado da saudosa TV Tupi. Tony gravava novelas e ensaiava a peça ao mesmo tempo. Às vezes, comia barras de chocolate pra conseguir energia para ensaiar depois de um dia de gravações exaustivas na TV. Agora, recentemente, encontrei com ele nas gravações de Mad Maria na TV Globo. Tony só confirmou a impressão que eu guardara do passado. Um colega extraordinariamente pródigo, sempre disposto a me dar dicas de posicionamento de luzes, marcas que me favoreciam nas cenas, além de procurar me fazer sentir à vontade diante das câmeras. Era minha estréia na Globo. Claro que, apesar de tantos anos de teatro, eu estava tenso. Tony percebeu isso e começou a me contar anedotas engraçadíssimas e conseguiu me deixar num ótimo astral na hora do famoso Gravando! Isso, sem falar no apoio cênico, que só um ator de muito talento e espiritualmente desenvolvido é capaz de oferecer a seu companheiro de cena. Aliás, apoio emocional e carinho foi o que não me faltou nesse debut global. Ricardo Waddington, Zé Luís Villamarin e Amora Mautner foram sempre cuidadosos e extremamente estimulantes durante as gravações. Edwin Luisi foi bem mais que um colega, foi um amigão divertidíssimo. Bem, acho que me afastei dos fatos históricos. Estamos em 1975 nos ensaios de Absurda Pessoa. Estér Góes fez um trabalho excelente nesse espetáculo, uma espécie de Doris Day suburbana . Gostei da experiência na direção. Era mais uma possibilidade em minha carreira . Lembro com tristeza a reprovação da crítica pelo fato de eu ter aceitado dirigir um sucesso da Broadway, que infelizmente estreou no dia em que Wladimir Herzog tinha sido assassinado na prisão . Com Martha e Othon ainda produzi e atuei em vários espetáculos. Fizemos mais uma grande excursão pelo Brasil com outra peça de Guarnieri, Castro Alves Pede Passagem. Tive o prazer de criar uma espécie de Silvio Santos que ia fazendo sensacionalismo enquanto a vida do nosso poeta seguia para um desfecho trágico. Logo depois, a dupla Overbeck-Bastos me convidou para fazer Murro em Ponta de Faca. Uma peça pela volta do exilado ao Brasil. Gente, estava todo mundo exilado; todo mundo que prestava estava fora do Brasil. É verdade! Estavam fora os professores da USP, nossos amigos, políticos, todo mundo exilado, todo mundo fora. Uma coisa difícil! Eles estavam mortos de saudade do Brasil, a gente estava com saudade deles. A peça foi o Boal que escreveu e mandou do exílio. A gente recebeu aquela peça, chamou o Paulo José pra dirigir e teve uma equipe de ouro defendendo o espetáculo: Dina Sfat, Otávio Augusto; os meus saudosos amigos Yara Amaral e Francisco Milani; um monte de gente legal fez aquela peça e ela teve um resultado objetivo pela volta do exilado. A peça virou campanha pela volta do exilado. Marthinha estava num grande momento como uma exilada pouco convicta, sentindo falta de seus confortos. Othon era nosso líder. Meu persona-gem era um compositor da MPB. Como o Chico Buarque já tinha estado exilado, eu pedi a ele para compor uma música-tema para o meu personagem. O Renatinho aqui cantaria se acompanhando ao violão. E não é que o Chico fez! A letra era assim: Eu até que não gostava De sair da minha casa Mas quando eu menos esperava Parece que criei asa Errando de porto em porto Sou ave de migração, Mala de mão, peso morto, Ou quilombola ou balão. Não sei se sou inimigo, Ou do inimigo me escondo, Não sei se fujo ou persigo Por esse enredo, enredo Em redondo. Essa peça deu frutos, os exilados começaram a voltar. Foi por aí, que se começou a falar no fim de censura. Othon e eu estávamos andando pelas ruas de Belo Horizonte, no final da excursão do Murro, quando vimos Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, colocado numa vitrine de livraria. Eu falei: Nossa, essa é a peça! Essa peça foi proibida em 1973, dando grave prejuízo para Fernanda Montenegro e Fernando Torres, porque eles proibiram no ato do ensaio geral, quando todas as despesas já estavam feitas. Eles proibiam ali, no ensaio geral, para levar as companhias à falência. Então, eu falei: Vamos fazer essa peça, porque essa peça será um grande sucesso. Vamos festejar o fim dessa censura filha da puta! Elis Regina já cantava uma série de músicas que pertenciam a Calabar: Quero ficar no teu corpo feito tatuagem, que é pra te dar coragem de seguir viagem quando a noite vem. E aquela outra: Bárbara, Bárbara, nunca é tarde, nunca é demais... E tinha uma outra que era uma festa com todo o pessoal, bailarinos, coral, todo mundo junto cantando o fim da censura e a abertura que estava chegando: Não existe pecado do lado debaixo do Equador. Vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor. Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho, riacho de amor... Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo que eu sou professor! Capítulo XLVI Édipo, o Fim da Ditadura e a Geração Yuppie Finalmente, demos os primeiros passos a caminho da abertura. O Brasil ia abrir, que maravilha! Eu queria me dar de presente algumas coisas que não tinha feito. Eu passei anos dando muito de mim na luta contra a ditadura, não podendo fazer exatamente o que eu queria. Tinha uns sonhos malucos: Ricardo III inspirado no físico do Castelo Branco; tinha vontade de fazer essas coisas, mas abri mão. Fui fazer Teatro de Resistência. E eu tinha sonhos. Mas aí apareceu na minha vida um dire-tor que hoje é famosíssimo, chamado Marcio Aurelio, acompanhado do meu amigo e imenso ator Elias Andreato. Edith Siqueira (que saudosa memória!), Márcio Aurélio e Elias me convidaram para fazer Édipo, de Sófocles. Eu fiquei encantado. Nossa! Entrei naquela pesquisa, trabalhei, fiz aula de caratê, aula de corpo, de yoga, fiz de tudo. E a felicidade suprema foi voltar a trabalhar com minha companheira de Oficina, Ítala Nandi. Ela veio fazer o papel de Jocasta. Imaginem, ela é 10 anos mais moça do que eu! Teatro tem dessas coisas. Minha mãe Jocasta era linda e jovem. No dia da estréia, me vestiram de Apolo, com uma tanguinha, um couro de porco com pedras rudes na cabeça, braçadeiras de metal que me escorriam pelo braço o tempo todo e um man-to vermelho que sempre ficava preso em algum prego do cenário. Eu olhei no espelho antes do terceiro sinal, falei: Renato, você parece um frango assado! Todos os Édipos que eu tinha visto eram atléticos. Paulo Autran, quando fez o papel, era um deus grego e eu... Era um galeto, uma coisa! Comecei a falar alto comigo mesmo: Não posso fazer isso, meu Deus, como é que eu vou entrar? Segundo sinal. Foi quando, de repente, eu olhei pro meu pé e vi que ele estava enfaixado, porque o Édipo foi pendurado por uns ganchos quando queriam que ele morresse lá no Citerão, e ele não entende por que tem aquelas feridas nos pés. Isso provoca uma dúvida quanto à sua própria identidade por causa daquelas feridas mal explicadas. E eu, com meu manto... Uma coisa difícil, entrei em cena, me empurraram. Olhei, o coro já estava fazendo aquela música: Édipuuuuu, Édipuuuuu, uma música moderna meio operística que o Lívio Tratenberg compôs. Eu entrei em cena: Meu filhos, filhos da terra de Tebas. Por que vindes aqui perante mim suplicantes, enquanto uma nuvem de incenso veste toda a cidade? Sabem que me enganei?! Ou melhor, enganei o público. Ganhei um prêmio! Quer dizer, enganei o público e a crítica. Acontece muito raramente, mas às vezes acontece. Porque eu não fiz, eu enganei. Porque eu não era Édipo. Mas aquela dúvida me alimentou. Eu fiquei preenchido com aquilo, consegui fazer a peça, fazer uma temporada com essa motivação da dúvida sobre mim mesmo. Isso foi uma coisa surpreendente! O teatro tem coisas mágicas que acontecem. E depois... Novos desafios. A peste de Édipo Rei foi bem simples de conceituar. Era a Aids. O ano corrente era o de 1983. As pessoas morriam aos montes sem qualquer esperança de cura. Não se sabia quase nada sobre essa peste. Ha-via, no início dos anos 80, uma maldição sobre ela. Era a peste gay. Os gays eram os únicos culpados por aquele flagelo social. Os gays, segundo opiniões de leigos e populares, eram amaldiçoados por Deus. Perdi muitos amigos. Estava completamente sensibilizado por aquela catástrofe mundial. Como processo de ator, acho que encontrei o caminho que leva um homem a arrancar os próprios olhos quando se descobre o culpado da punição divina que recai sobre seus entes amados. Era como se, no decorrer da peça, eu incorporasse a culpa por todos, me assumindo como o bode, e tentasse salvá-los pela mutilação de meus olhos. Um processo que só atores sabem fazer. É claro que, intelectualmente, eu achava de uma burrice total aquela tendência de culpar a comunidade gay pela existência da Aids. Mas a motivação emocional, naquele início dos anos 80, era nevrálgica e mobilizante. Vocês lembram do princípio dos 80? Nossa! Era uma coisa difícil pra burro. Todo mundo estava muito reservado, as pessoas estavam meio afastadas, todo mundo meio enclausurado, meio fechado. Eu me lembro, assim como se as pessoas se escondessem por trás de uma membrana protetora, estava todo mundo protegido, esquisito, meio individualista. Uma coisa estranha! Eu entrava no teatro e via pesquisa de mercado nas poltronas: O que você prefere: tragédia ou comédia? Você gosta de peça curta ou peça longa? As pessoas respondiam comédia, é o óbvio: A vida já é tão triste, eu quero comédia. Ou então: Quero uma peça só de uma hora e meia pra depois comer uma pizza com a família. Era mais ou menos isso. Então, eu ficava um pouco deslocado, porque a minha geração era muito orgulhosa. A gente lançava moda. Eu achava meio esquisito aquela coisa de pedir licença para entrar na moda. Mas, naquele momento, tudo apontava para a comédia. Capítulo XLVII Com a Pulga Atrás da Orelha e a Comédia do Brasil Foi uma era muito importante para a dramaturgia pós-ditadura. Surgiram grandes comediógrafos como o Marcos Caruso, Juca de Oliveira, Jandira Martini... Isso só lembrando de alguns. Surgiram verdadeiras obras-primas no gênero da comédia. Sempre tivemos ótimos autores: Consuelo de Castro e Leilah Assumpção já vinham de muito antes. No Rio de Janeiro, também prenunciando o gênero de comédias insubordinadas e irreverentes, já havia surgido, ainda no começo dos anos 70, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, uma equipe de gênios – Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Patrícia Travassos, Evandro Mesquita – dirigida por Hamilton Vaz Pereira. O besteirol pintou com toda a força nos primórdios dos anos 80. Um movimento criticamente impiedoso com a babaquice da classe média carioca, ou melhor, brasileira. Como me diver-ti com Falabella e Karan! Autores importantes surgiram naquele tempo: Vicente Pereira e Mauro Rasi. Houve muito mais gente, mas a memória não registra tudo como eu gostaria. Resolvi entrar de cabeça na onda da comédia. Fiz um personagem duplo na genial comédia de Feydeau Com a Pulga Atrás da Orelha. Gente, é muito bom fazer comédia! Foi minha comadre Regina Malheiros quem me jogou essa peça nas mãos. Ela dizia assim, fingindo preocupação: Já lotou para sábado! E era um prazer enorme a gente ter aquela casa cheia de gente gargalhando! Comédia – é bobagem dessa gente que afirma que a comédia é um subgênero – é o gênero talvez mais nobre e difícil de ser bem executado no teatro. Entendi isso nessa temporada. Capítulo XLVIII Transição, Televisão e o Retorno de Dalva Estávamos vivendo a era da transição. Ah, foi tudo oposto do que se imaginava. A gente que-ria Diretas Já. No Brasil, quase nada acontece de baixo para cima. A Independência, de cima pra baixo; Abolição da Escravatura, de cima pra baixo; Proclamação da República, de cima pra baixo. A gente gritando Diretas Já e eles entregaram um governo de transição. Aí, ficou o Tancredo, morre, não morre. Coitado daquele homem! Parecia que o lado escuro da força tinha jogado uma praga sobre ele. A temporada caía, oscilava. Que coisa difícil! Depois veio o Sarney e a ciranda financeira: você aplicava 100,00 num dia; no dia seguinte, você tinha 200,00. Em compensação, o aluguel aumentava para 300,00. Ninguém conseguia entender nada do que se passava no Brasil. Eram planos: Cruzeiro Velho, Cruzeiro Novo, Cruzado Novo, Cruzado Velho, eu não entendia mais nada. Foi quando resolvi me abrigar na televisão. Cheguei lá na TV Manchete e fiz um gênero, porque o diretor da Manchete era um grande amigo, fã do Oficina, o Zevi Givelder. Eu cheguei pra ele e falei: Eu queria fazer televisão. Ele se espantou: Mas como? Você só faz teatro. Eu falei: Não. Eu quero vestir a camisa da Manchete. Ele me abraçou e disse: Seja bem-vindo! Me deu um contrato maravilhoso, dinheiro bom mesmo, passagem de avião toda semana para vir ver o meu filho adolescente que andava botando banca de metaleiro. Toda semana, eu vinha ver meu guri com camisa de caveira aqui em São Paulo. Como a grana estava boa, comíamos sempre em restaurante japonês. Fiquei três anos na televisão. Foi ótimo, uma espécie de bolsa de estudos. Tive tempo para escrever. Nunca tinha escrito teatro na minha vida. Então, o jovem sociólogo João Elíseo Fonseca me convidou para uma aventura: escrever a vida de Dalva de Oliveira em parceria com ele. Nossa! Era a minha musa, minha inspiração, foi a pessoa que me levou pra arte. Escrevemos a Estrela Dalva. Dalva, essa figura me acompanhou até a morte. Eu fiquei com ela no hospital, uma paixão... Quando minha amiga foi internada pela última vez, fui com ela para a internação. Ela pedia, num sussurro: Liguem o rádio, liguem a televisão, abram as janelas e fiquem aqui comigo de mãos dadas. Ela está querendo me levar, mas eu ainda não quero ir. Ainda quero gravar um último disco. De fato, nossa corrente deu certo. Dalva só veio a falecer três meses depois. Essa presença foi muito forte! Ainda continua sendo muito forte na minha vida. Que alegria poder resgatar essa mulher que foi banida pela Bossa Nova. Num certo momento, chegaram a dizer que ela era cafona, que era isso, que era aquilo... Então, de repente, com a Estrela Dalva, interpretada por Marília Pêra, que fez divinamente o papel, aconteceu um espetáculo grandioso! Conseguimos resgatar a figura de Dalva de Oliveira. As pessoas começaram a chamá-la de Edith Piaf, de Billie Holiday; os discos começaram a ser gravados aos milhares. A pessoas continuam comprando discos de Dalva de Oliveira até hoje. CDs remasterizados estão continuando esse movimento de resgate da Estrela Dalva. Tenho um orgulho enorme de poder ter ajudado nisso. Até acho que ela me abençoou, porque o Roberto Talma, que tem o sucesso como sina, dirigiu e produziu o espetáculo. Foi o primeiro patrocínio grande que vi na minha vida: C&A apresenta. E tem outra coisa, criei coragem e escrevi outra peça: Lobo de Rayban. Acho que a bênção de Dalva pairava sobre mim, porque cheguei pro Raul Cortez e falei: Quero ler uma peça para você. Ele escapou: Deixa que eu leio. Eu disse: Não, eu quero ler para você. E ele: Não, eu leio. Eu disse: Não, eu quero ler pra você. Aí, não teve jeito. Fui na casa dele, fiz meu amigo sentar-se à minha frente e li o texto. Acho que ele estava com medo de achar uma merda, ele era meu amigo... Eu li sem levantar os olhos do papel. Quando acabou, o Raul pegou a peça e falou: É minha. Levamos para o Talma, ele leu e declarou: Eu produzo. O José Possi Neto: Eu dirijo. A Christiane Torloni: Eu faço. Pronto, explodiu um sucesso imenso! Ganhamos todos os prêmios de 1987. Eu estava com duas peças em cartaz e as duas iam muito bem. Comecei a ganhar dinheiro! Muito dinheiro não faz mal a ninguém. Dinheirinho gostoso. Comecei a ter meus primeiros delírios burgueses: Ah, vou construir minha mansão na praia, onde vou escrever minhas obras completas, como se fosse um Ernest Hemingway. Capítulo XLIX Collor e a Derrocada Geral Foi quando Fernando Collor e a queixuda Zélia Cardoso de Mello grampearam toda a minha grana. Fiquei desesperado, sem um puto no bolso. Gritava pela casa: Não, não é possível... Zélia, sua bruxa, vai pro inferno. Vai pro inferno, bruxa! Some daqui! Vocês não sabem o que foi isso! Virei um personagem shakespeariano, dizendo maldições na Av. Paulista: Você não vai terminar seu mandato, seu presidente miserável! Zélia, você vai ser queimada na Praça da Sé! Eu queria que fosse na Praça da Sé! Acho que o ódio dominou a nação brasileira, todo mundo estava puto com aquilo. Uma coisa terrível! Eu fiquei pobre, pobre; com 50,00 no bolso; numa situação difícil demais! A novela que eu estava fazendo, Cortina de Vidro, uma produção independente gravada no edifício Dacon, foi a uma semifalência, porque os produtores tiveram também o dinheiro grampeado. A solução encontrada foi assassinar a metade do elenco. Fizeram um incêndio lá no edifício Dacon e as pessoas tinham que passar pelo fogo pra que eles decidissem depois quem vivia e quem morria. Só que ninguém queria passar pelas chamas com medo de perder o emprego. As atrizes tinham ataques: Eu não vou entrar, não vou perder meu emprego, não vou entrar no incêndio! Os diretores chegavam pra elas e diziam: Não, boba, entra, eu já vi no roteiro da próxima semana, você está lá vivinha, você vai continuar. Aí, as bobas faziam uma cena linda no meio do fogo e estavam mortas na semana seguinte. Uma coisa terrível! A situação era de uma tal maneira difícil... Fiquei numa crise tão séria que meu amigo Elias Andreato teve dó de mim. Elias, você me salvou! Ele foi convidado para fazer Tâmara; Elias me viu num desespero tal que declinou do convite para atuar na peça. Ele disse aos produtores: Não posso, estou ocupado, mas o Renato pode. Será que ele topa mesmo?, disseram os produtores. Claro, o Renato adorou o espetáculo! Mentira, acho que eu nem tinha visto ainda. Dei uma chegadinha lá. Fui muito bem recebido pelo Roberto Lage que me dirigiu com muito carinho. Era uma peça-franquia. Quer dizer, seguia a mesma linha de montagem no mundo todo. Era uma coisa assim: se você seguisse um personagem ou outro, acabava sempre se inteirando da história inteira. Era o ingresso mais caro de São Paulo. A alta sociedade toda exibindo colares, vestidos, modelos e perfumes fortíssimos. O espetáculo tinha que acontecer num palacete de verdade. Todos os móveis que compunham o espaço cenográfico estavam à venda. A coisa também funcionava como um antiquário. Você fazia cenas dramáticas, aí tinha uma mulher, de repente, falando assim: Ah, que encantador esse tapete! É persa! Ai, amor, pergunta o preço que eu vou comprar. Ou então: Olha esse baú, ai, que lindo! Uma loucura! Em uma outra cena, tinha um ator que fazia o chofer. O moço ficava anunciando para todo mundo: Ó, no segundo ato, eu vou tomar banho nu. Quando chegava o intervalo, ele ficava bombando, que era pra ficar assim mais imponente... Aí, quando chegava a hora... É incrível, homens e mulheres; héteros, homos e afins; é impressionante, o público todo descia pra ver o banho do chofer. E nós ficávamos sozinhos em nossos aposentos. Um dia, eu fiquei sozinho no meu aposento. Agora, eu vou contar até cinqüenta, pensei comigo. Quando chegasse a cinqüenta, era hora de entrar em outro aposento. Eu estava no: um, dois, três... quando apareceu a Estér Góes na minha frente... E ficou assim... Sorrindo. E eu com vontade de dizer: Dá um tempo, Estér, me deixa... Vai ver o chofer! Mas ela... Ali, firme, sorrindo pra mim! E eu tive que fazer um telefonema dramático só para ela! Era um momento muito difícil, eu não estava muito adaptado. Havia um jantar no intervalo que durava mais de uma hora. Quando o espetáculo recomeçava, o público se locomovia pesadamente com o estômago cheio de macarrão e vinho branco. Era um tal de arrotar pelo nariz, de reprimir gases insubordinados. Teve também um episódio absur do e engraçado com a minha amiga Tereza Rachel, no dia que ela foi assistir à peça. Bem, essa vou deixar para a curiosidade de vocês. Capítulo L A Fênix Renasce; Torta, Mas Renasce Confesso que estava arquitetando um plano para deixar o teatro. Ficava pensando comigo mesmo: Vou largar isso. Vou largar isso... Estou ficando meio decadente, não estou mais encontrando espaço, grampearam meu dinheiro todo, não posso produzir, estou sem inspiração, enfim, numa merda federal. Vou parar. Lembrei da Maria Della Costa, que abriu um hotel lá em Parati. Tinha estado recentemente em Parati e fui visitar Maria. Ela estava tão feliz dentro de um viveiro de araras, alimentando os bichinhos com sementes de girassol! E as araras pareciam adorar aquela bela mulher. Elas soltavam guinchos alegres e pousavam em seus ombros, seus braços, se equilibravam sobre sua cabeça... Um completo barato. Pensei que, quando me devolvessem o dinheiro grampeado, eu abriria um boteco lá em Parati para degustações de cachaças raras com bolinhos de bacalhau e outras especialidades. Cheguei a sonhar comigo mesmo servindo cachaça e coçando o saco porque, realmente, estava difícil de imaginar como é que eu poderia continuar com aquela coisa toda de teatro. Repentinamente, fui salvo pelo gongo, a Fênix renasceu, a mulherada me salvou. Gente, essa mulherada é um babado muito firme! Era Beth Coelho, Daniela Thomas, Giulia Gam, mulherada fantástica! Elas estavam na proa da vanguarda, herdeiras do Gerald Thomas. Elas faziam aquele teatro avançado com muita fumaça e foco de luz olho. E, de repente, eu fui convidado para fazer Rancor, do Otávio Frias Filho. Chique! Chegou uma Kombi da Folha na minha casa trazendo o texto. Li, o personagem era adorável, o demoníaco Dadá. Aliás, me chamam muito de demoníaco por causa desse personagem. Não tenho nada de demoníaco, mas, enfim... Ficou essa coisa durante um tempo. Aí, teve a primeira leitura, chiquíssima, na casa da Cosette Alves. A sociedade toda presente. A gente em volta de uma mesa com nossos textos, quando a Beth Coelho, repentinamente, pegou o texto, levantou-se e começou a representar de pé. Entrei em pânico: Meu Deus, ela está fazendo de pé, como é que eu vou fazer? Me deu um nervoso! Tinha um whisky estrangeiro – na casa da Cosette é tudo muito fino. Peguei o copo que estava à minha frente, enchi de whisky até a boca, entornei de uma vez só, levantei e comecei a dar o meu texto de uma forma tão livre que cheguei a ficar assustado comigo mesmo. Aí, foi uma delícia de leitura. Depois, tive ensaios fantásticos! Olha, tem uma coisa que é séria, que eu preciso falar para vocês: essa mulherada é responsável por muita coisa na minha vida. Porque eu fui rebobinado, eu fui retrabalhado; porque eu tinha dado tudo de mim, estava cansado, meio gasto. E, de repente, elas fizeram um trabalho lindo em cima de mim. A Beth foi de um carinho surpreendente. E a Ana Kfouri fez comigo foi uma coisa que... Eu quero trabalhar com essa mulher outra vez... Uma coisa fantástica! Depois, me chamaram para fazer Pentesiléias, de Daniela Thomas (uma adaptação livre do clássico alemão). Representei um eunuco que virava rainha. Comecei a suspeitar que estava ficando meio velhinho... Porque elas estavam fazendo todas as minhas vontades. Gosta de Dalva de Oliveira? Canta Dalva de Oliveira. A Daniela fez uma cena linda pra mim todo vestido de rainha, cantando um dos grandes sucessos de Dalva: Que será da minha vida sem o teu amor... Era aplauso em cena aberta todas as noites. Numa outra cena, ela me vestiu todo de branco e me colocou debaixo de um foco lindo dizendo palavrões que deixariam a Dercy coradinha. Tudo isso era muito bonito! Tinha um resultado cênico maravilhoso! Essas mulheres são uma coisa muito séria. Elas têm aquela bruxaria do teatro, uma coisa muito forte. Capítulo LI Teatro Promíscuo, Beijos e Depois do Final Acontece que tudo isso era bonito, mas, como todas as manifestações de vanguarda, não dava grana suficiente. Então, eu tive que dar aulas. Esse negócio de dar aulas parecia difícil, mas descobri que adorava. Descobri uma vocação nova: dar aulas. Que coisa boa! Parece que Eugênio Kusnet incorporou em mim. Comecei a dar aulas no Célia Helena, na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Comecei a dar aulas e mais aulas, a fazer cursos, seminários. De repente, estava cercado de jovens interessantes e cheios de energia. Foi aí que conheci o Elcio Nogueira Seixas. Descobrimos uma grande afinidade na arte. Da parceria criativa entre o velho e o moço surgiu o Teatro Promíscuo: um teatro sem camisinha, exposto ao contágio, contagiante, transando com as mais distintas influências da criação e que não estivesse sob o comando exclusivo de um guru. Babel, nosso primeiro espetáculo de ares promíscuos, foi um belo projeto de dramaturgia sobre a colonização do Bom Retiro. Foi aí que pude conhecer melhor a dimensão do talento de Elcio Nogueira Seixas. Tive um problema de doença na família e fui obrigado a fazer somente a supervisão do trabalho. Elcio me disse: Eu faço. Fez um trabalho de gigante. Realizamos também uma Oficina Beckett, outra Oficina Tchekhov. Conheci jovens, muitos jovens. Acho que esse é o momento de renascimento do Renato, quando comecei a transacionar com o jovem, porque era uma gente curiosa, ávida; eles queriam saber das coisas, dos segredos da interpretação. Era estimulante! Além do Elcio, outros jovens talentosos de sua geração participaram também da formação do grupo: Cristiane Esteves, Amazilis de Almeida, Leonardo Alckmin, Ulisses Ferraz e, mais tarde, Gustavo Machado, Klaus Novaes, Débora Lobo, a minha queridíssima Isabel Teixeira, o Cacá Machado, a Simone Mina, o Vadim Nikitin, ih... é só gente boa. Em Édipo de Tabas, encontrei a filhinha de minha grande amiga Dina Sfat: a Ana Kutner; e também o Milhem Cortaz, a Karyne Carvalho, a Cida Moreno, o Ricardo Rizzo. E o Ary França, que maravilha! O Marquinhos Pedroso, que hoje está arrasando na direção de arte de cinema, criou um visual de índios aculturados que deve ter inspirado uns criadores de moda que utilizaram a linguagem pouco tempo depois nas passarelas. E a gente foi se reunindo e coisas importantes foram acontecendo. Para nós, a estréia do Ham-Let, de Zé Celso reabrindo o meu Oficina para os 90, foi um marco e nosso maior estímulo. Tudo aquilo com que eu havia brigado no passado estava lá organicamente colocado em cena. Era uma poesia cênica fantástica! Era um grito de liberdade. Um Hamlet de seis horas. Zé estava pouco se lixando para o mercado. Era o que ele queria fazer. Lindo isso! E era um Hamlet brasileiro que vinha ao som de João Gilberto, de Villa-Lobos, de Carlos Gomes, de Dalva de Oliveira. Surpreendente! Eu olhei pro Ariel que estava comigo, e o Élcio também, os dois saíram enlouquecidos com o que tinham visto. Para mim, não era tão novo, mas para eles era um grito de independência. Elcio acabou se atirando dentro desse Ham-Let e, anos depois, Ariel participaria de outro espetáculo memorável desta fase recente do Zé: Cacilda! E a minha casa foi ficando aquele centro de gente boa fazendo ciclos de leituras de peças. A minha baixinha gigante Cibele Forjaz e e seu grupo me convidaram junto com o Elcio e nossa promiscuidade para fazer Galileu Galilei. Não pude recusar. Fui representar o meu amado Galileu junto com eles lá numa salinha da Funarte. Não esqueço do Celso Sim fazendo a Dona Sarti. De supetão, Elcio me deu uma peça e disse: Faz, é a tua cara! Era Tio Vânia, de Tchekhov. Gente, eu li de novo, era a estória de um fracassado! Mas pensei: Não tem importância, porque tem muito das minhas decepções dentro desse texto. E essa peça me lavou a alma com as águas de março ao final, que os puristas odiaram (Onde já se viu Bossa Nova em Tchekhov?! Oh!!!) e eu adorava. Belas musas estiveram conosco: Mariana Lima e Leona Cavalli. E um de meus melhores parceiros em cena, o Luciano Chirolli. Encontrei o Abraão Farc novamente nessa peça; ele acabou arrebatando um prêmio merecidíssimo de melhor ator coadjuvante. Beijos pra você, Geisa Gama, nossa carinhosa e fecunda Bá! E pra Jolanda Gentilezza e o Wolney de Assis. Algum tempo depois, nós chegamos à promiscuidade máxima, que consistia em pegar toda a turma jovem e unir aos ramos mais tradicionais do teatro brasileiro: Tônia Carrero fazendo o Jardim das Cerejeiras. Gente, vocês não sabem o que foi o ensaio com a Tônia Carrero. Eu entendi o que é uma pessoa que precisa saber o por que de tudo. Por quê? Por quê? Por quê? Ela realmente tem um fundamento no trabalho dela, porque ela vai atrás dos sentidos mais objetivos do trabalho. E a Beth Goulart, que era de outro ramo. E mais a Dirce Migliaccio, que era de outra família e eu, que era do Oficina e mais aqueles jovens todos reunidos: Ana Kutner, Milhem Cortaz, Nilton Bicudo, Roberto Alvim, a Bel Teixeira. Era um renascimento. Acho que esse convívio fez de mim uma outra pessoa. Eu estava muito triste lá pelo começo dos noventa e agora me sinto feliz, contente, caminhando. Eu vejo o teatro como uma coisa auspiciosa. Eu vejo o teatro assim: Eu sou filho do grupo, fa-lei para vocês. Então, esse movimento que está acontecendo agora onde você começa a testemunhar os trabalhos de grupos talentosos como o Teatro da Vertigem, a Cia Livre, Cia. do Latão, Cia do Feijão, Os Fofos Encenam, os super-Satyros; onde você começa a ver um Marco Antonio Rodrigues fazendo um Othelo maravilhoso, cheio de público; esse movimento é muito positivo. Mesmo grupos estabelecidos há mais tempo também ganharam mais força, como o Tapa do Tolentino. Isso é muito bom! É uma reto mada. É o momento em que a gente encontra a força dos grupos e percebe que o tea tro não depende tanto assim só de ícones televisivos, que você pode fazer um teatro pesquisado, com temáticas mais aprofundadas. Porque a linguagem da pesquisa, essas coisas novas, elas acontecem mais no seio dos grupos. Acho que isso está começando a acontecer de novo. Agora, estamos apenas começando a retomada. É uma pena que nosso país nunca tenha elaborado um plano cultural para o crescimento do povo. Sempre que se tem que cortar qualquer coisa nos orçamentos municipais, estaduais e federais, os cortes recaem, em primeiro lugar, sobre a Cultura. Será que nenhum político brasi leiro jamais se preocupou com a Cultura? Prover a Cultura do povo brasileiro é uma obrigação constitucional. Não há possibilidade de crescimento e desenvolvimento de uma nação sem um programa cultural atuante. Que povo as elites desejam ter sob seu controle? A impressão que se tem é de que os poderosos não desejam o crescimento de uma sólida consciência nacional. Um povo menos lúcido e pouco informado é massa de manobra. As artes cênicas, então, coitadas, são as mais prejudicadas; a enjeitada, talvez porque já conheçam seu poder de fogo na transformação de consciências enganadas, de homens conformados com a situação injusta em que nasceram e vão morrer. Por que nunca aceitaram os projetos de um teatro popular? Já levei inúmeros projetos a representantes de vários governos. Eles me chamam de maluco. Por que separar a Educação da Cultura? Qualquer inteligência mediana compreende que se educa fazendo Cultura e se faz Cultura educando. Enquanto as artes cênicas, a dança, o circo, o incentivo à leitura em bibliotecas populares são deixados de lado ou, o que é mais nocivo, enquanto se cria uma imagem negativa dessas atividades como supérfluas, nosso povo se vê atolado numa perpétua ignorância involuntária. É tempo de devolvermos ao teatro sua legitimidade cultural e, mais ainda, fazê-lo caminhar em direção ao desenvolvimento futuro de nosso povo. Não estou falando de teatro político-partidário ou qualquer outra bullshit ufanista eleitoreira. Falo da imensidão inexplorada de nossa existência, da aventura que temos pela frente, do afastamento da banalidade. Ah, eu queria viver mais! Quero fazer mais teatro. Quem me conhece sabe que eu vivo reclamando teatro, mas a verdade é que o tea tro é meu elixir da juventude. Eu me sinto vivo, eu me sinto capaz de transmitir coisas, de alterar valores falsos da ordem vigente... Eu tenho um prazer enorme, lúdico, de virar personagens, de fazer novas propostas, de colaborar com a diminuição da burrice que ameaça nos destruir como civilização. O teatro é um encantamento na minha vida. Já está tudo acertado para eu fazer o Timão de Atenas, de Shakespeare: eu nunca fiz um Shakespeare. Ou, então, fazer um Molière. Ou um contem porâneo genial. Abrimos o novo milênio com a Mostra de Dramaturgia Contemporânea. Foi uma experiência profícua que tem dado frutos inestimáveis. Entre os participantes das duas edições da Mostra estão os autores Fernando Bonassi, Vítor Navas, Bosco Brasil, Mário Bortolotto, Marcelo Rubens Paiva, Otávio Frias Filho, Dionísio Neto, Pedro Vicente, Aimar Labaki, Samir Yazbek, Newton Moreno, Marcos Barbosa, Luiz Felipe Botelho, Sérgio Sálvia Coelho, Alberto Guzik, José Mora Ramos, Leonardo Alckmin, Marici Salomão, Hugo Possolo, Pedro Vicente, Cássio Pires, Elísio Lopes, entre outros. Ainda nas duas Mostras, os diretores: Fauzi Arap, Ariela Goldman, Elias Andreatto, Márcia Abujamra, Ary França, William Pereira, Sérgio Ferrara, Marcio Aurelio, Johana Albuquerque, Ivan Feijó, Maurício Paroni, Marcelo Lazzarato, Regina Galdino, Fernando Kinas, Débora Dubois, Francisco Medeiros, Nilton Bicudo, Alvise Camozzi e outros. Eu precisaria viver vinte anos mais para poder trabalhar com tantos autores contemporâneos e tantos diretores como a gente fez nessa Mostra de Dramaturgia. Além disso, tive o imenso prazer de conhecer e trabalhar com duas grandes atrizes e extraordinárias companheiras de trabalho que são Débora Duboc e Luah Guimarães. Isso sem esquecer o prazer que foi conviver e representar com Regina França, Renato Modesto, Valéria Pontes e Germano Melo. Termino falando o nome dessa gente toda porque serão eles o material da biografia futura do teatro de hoje. Aplauso pra eles! É claro que eu devo ter esquecido de muita gente que contracenou a vida comigo. Aplauso pra vocês também! Mais Luzes!!! Não tem final. E viva a Revista de amanhã!!! O depoimento deste livro foi gerado durante a pesquisa para o espetáculo teatral Borghi em Revista, que estreou em abril de 2004. Cronologia Artística Teatro 2006 • Timão de Atenas 2005 • Liberdade, Liberdade 2000 • O Jardim das Cerejeiras 1999 • Nostradamus (direção) • Clone (autoria) 1998 • Galilei – A Vida de Galileu por Bertolt Brecht • Tio Vânia 1996 • Édipo de Tabas (direção, ator) 1995 • Senhora do Camarim (autoria, ator) 1994 • Pentesiléias 1992 • Solo Mio (autoria) 1990 • Pequenos Burgueses 1989 • Decifra-me ou Devoro-te (autoria, ator) 1988 • O Lobo de Ray-Ban (autoria) • O Amante de Mme. Vidal (produção, ator) 1987 • A Estrela Dalva (autoria, ator) 1984 • Com a Pulga Atrás da Orelha (produção, ator) • Senhorita Júlia (direção) 1983 • Édipo Rei 1982 • O Que Mantém um Homem Vivo? (direção, adaptação) 1980 • Calabar, o Elogio da Traição (produção, ator) • Pegue e Não Pague 1978 • Murro em Ponta de Faca 1977 • Pequenos Burgueses (direção, ator) 1976 • Mahagony: A Cidade dos Prazeres (produção, ator) 1975 • Absurda Pessoa (direção) 1973 • Um Grito Parado no Ar • O Que Mantém um Homem Vivo? (direção, ator) 1972 • Gracias, Señor • O Casamento do Pequeno Burguês • As Três Irmãs 1971 • Castro Alves Pede Passagem 1969 • Na Selva das Cidades (tradução, ator) 1968 • Galileu Galilei 1967 • O Rei da Vela • Quatro num Quarto 1964 • Andorra • Pequenos Burgueses (Uruguai) • Andorra (Uruguai) 1963 • Pequenos Burgueses 1962 • Todo Anjo é Terrível • Quatro num Quarto 1961 • A Vida Impressa em Dólar 1960 • A Engrenagem 1959 • A Incubadeira 1958 • Chá e Simpatia Cinema 2006 • Os Desafinados (Cônsul Carlos José) 2004 • Cabra-cega 2003 • O Vestido (Seu Pequeno) 2002 • Lost Zweig (Getúlio Vargas) 1997 • A Grande Noitada (Bêbado) 1994 • A Causa Secreta 1992 • Sua Excelência, o Candidato (Orlando) 1990 • Corpo em Delito Televisão 2007 • Sítio do Pica-pau Amarelo – Elias (TV Globo) 2005 • Bang Bang – Ernest (TV Globo) • Mad Maria – Rui Barbosa (TV Globo) 2001 • O Direito de Nascer – Ramiro (SBT) 2000 • Marcas da Paixão – Zé Biriba (Rede Record) 1998 • A História de Ester – Memucã (Rede Record) • A Turma do Pererê – Seu Neném 1995 • As Pupilas do Senhor Reitor João da Esquina (SBT) 1989 • Cortina de Vidro – Ricardo (SBT) 1986 • Mania de Querer – Getúlio (Rede Manchete) • Dona Beija – Fortunato (Rede Manchete) 1985 • Antônio Maria – Fernando Nobre (Rede Manchete) 1984 • Joana – Caetano (Rede Manchete/SBT) 1983 • Vida Roubada (SBT) • Fernando da Gata 1982 • Música ao Longe (TV Cultura) • As Cinco Panelas de Ouro Dadau Prates (TV Cultura) 1979 • O Todo-Poderoso – Dudu (Rede Bandeirantes) 1978 • Roda de Fogo – Bogo (TV Tupi) 1973 • A Volta de Beto Rockfeller (TV Tupi) 1966 • Ninguém Crê em Mim – Tonga (TV Excelsior) Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Introdução – Elcio Nogueira Seixas 11 O de Duas Portas – Dionisios – Re-Nato – José Celso Martinez Corrêa 15 Rádio Nacional, Samba e Ópera 21 O Chamamento de Dalva 23 Teatro de Revista 25 Cinelândia 27 Teatro Amador: a Vanguarda 33 São Paulo e o TBC 37 Paixão por Cacilda 41 Teatro de Arena 43 Cantor ou Ator? 45 Estréia no Copacabana Palace 55 O Encontro com Zé Celso 61 Brasília, Cuba e Sartre 67 Um Caminho Sem Volta 71 A Vida Impressa em Dólar 75 Namoro Com as Estrelas 83 Os Pequenos Burgueses 97 Andorra e o Golpe de 64 105 Tônia Carrero: a Fada Madrinha da Fama 115 Teatro Opinião 119 O Incêndio do Oficina 121 O Rei da Vela 127 Roda-Viva 141 Os Cortes da Censura 145 Maio de 68 na França 149 Comando de Caça aos Comunistas 155 Galileu e a Tortura 157 Na Selva das Cidades 167 Dropout na Europa 175 Living Theatre 177 Medo de Virar Comédie-Française 181 Prata Palomares 183 Los Lobos e Living no Brasil 187 As Comunidades 191 A Revolição 195 A Coluna Oficina-Brasília 197 Goiânia 203 Salvador 205 Recife e Mandassaia 209 Natal e Fortaleza 215 São Luiz do Maranhão 217 Belém do Pará, Manaus e o Retorno 221 Gracias, Señor 223 Três Irmãs e a Despedida do Oficina 233 Teatro Vivo 237 Mahagonny e o Teatro de Resistência 247 Édipo, o Fim da Ditadura e a Geração Yuppie 261 Com a Pulga Atrás da Orelha e a Comédia do Brasil 267 Transição, Televisão e o Retorno de Dalva 271 Collor e a Derrocada Geral 279 A Fênix Renasce; Torta, Mas Renasce 285 Teatro Promíscuo, Beijos e Depois do Final 293 Cronologia Artística 313 Crédito das Fotografias Acervo Beatriz Segall 239 Acervo Etty Fraser 130 Acervo Miriam Mehler 106, 133 Agência Estado 64, 69, 74, 126, 162, 248, 264, 295, 318 Alexandre de Oliveira 317 Ana L. Amaral 230 Carlos – Rio 56, 57, 59, 99 Cláudia Ribeiro 274 Ed. Abril/Fernando Abrunhosa 244 Edson Cláudio 170 Fredi Kleeman 114 João Maria 297 Joaquim 90, 100 Lenise Pinheiro 288, 290, 291, 298, 299 Luiz Sérgio 163 Oficina 5º Tempo 65 Ronaldo 315 Sérgio Bernardo 225, 226 Silvinha 229 Takayama 82 Valdir Silva 250, 259 Vania Toledo 245, 246 Demais fotografias acervo Renato Borghi Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto Batismo de Sangue Roteiro de Helvécio Ratton e Dani Patarra Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe Bragança Cidade dos Homens Roteiro de Paulo Morelli e Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Claudio Yosida e Ricardo Elias Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Onde Andará Dulce Veiga Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, o Mistério Luiz Carlos Lisboa Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 340 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Coleção Aplauso Série Perfil Coordenador Geral Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Projeto Gráfico Editor Assistente Assistente Editoração Tratamento de Imagens Revisão Rubens Ewald Filho Marcelo Pestana Carlos Cirne Felipe GoulartEdson Silvério Lemos Aline Navarro dos Santos Selma Brisolla José Carlos da Silva Wilson Ryoji Imoto © 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Seixas, Élcio Nogueira Renato Borghi : Borghi em revista / Élcio Nogueira Seixas – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. 340p. : il. – (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 978-85-7060-603-7 1. Atores e atrizes de teatro – Brasil – Biografia 2. Atores e atrizes de cinema – Brasil – Biografia 3. Atores e atrizes de televisão – Brasil – Biografia 4. Borghi, Renato, 1937 I. Ewald Filho, Rubens. II.Título. III. Série. CDD 791.092 Índices para catálogo sistemático: 1. Atores brasileiros : Biografia : Representações públicas : Artes 791.437 098 1 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria editoração,ctp, impressão e acabamento