Onde Andará Dulce Veiga? Onde Andará Dulce Veiga? Roteiro de Guilherme de Almeida Prado Da obra de Caio Fernando Abreu São Paulo, 2008 Coleção Aplauso Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação A relação de São Paulo com as artes cênicas é muito antiga. Afinal, Anchieta, um dos fundadores da capital, além de ser sacerdote e de exercer os ofícios de professor, médico e sapateiro, era também dramaturgo. As 12 peças teatrais de sua autoria – que seguiam a forma dos autos medievais – foram escritas em português e também em tupi, pois tinham a finalidade de catequizar os indígenas e convertê-los ao cristianismo. Mesmo assim, a atividade teatral somente se desenvolveu em território paulista muito lentamente, em que pese o marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa no século 18, ter procurado estimular o teatro em todo o império luso, por considerá-lo muito importante para a educação e a formação das pessoas. O grande salto foi dado somente no século 20, com a criação, em 1948, do TBC –Teatro Brasileiro de Comédia, a primeira companhia profissional paulista. Em 1949, por sua vez, era inaugurada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que marcou época no cinema brasileiro, e, no ano seguinte, entrava no ar a primeira emissora de televisão do Brasil e da América Latina: a TV Tupi. Estava criado o ambiente propício para que o teatro, o cinema e a televisão prosperassem entre nós, ampliando o campo de trabalho para atores, dramaturgos, roteiristas, músicos e técnicos; multiplicando a cultura, a informação e o entretenimento para a população. A Coleção Aplauso reúne depoimentos de gente que ajudou a escrever essa história. E que continua a escrevê-la, no presente. Homens e mulheres que, contando a sua vida, narram também a trajetória de atividades da maior relevância para a cultura brasileira. Pessoas que, numa linguagem simples e direta, como que dialogando com os leitores, revelam a sua experiência, o seu talento, a sua criatividade. Daí, certamente, uma das razões do sucesso desta Coleção junto ao público. Daí, também, um dos motivos para o lançamento de uma edição especial, dirigida aos alunos da rede pública de ensino de São Paulo e encaminhada para 4 mil bibliotecas escolares, estimulando o gosto pela leitura para milhares de jovens, enriquecendo sua cultura e visão de mundo. José Serra Governador do Estado de São Paulo Coleção Aplauso O que lembro, tenho. Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa a resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cine ma, teatro e televisão. Foram selecionados escri tores com largo currículo em jornalismo cultural , para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo re constituída de ma nei ra singular. Em entrevistas e encontros suces sivos estreita-se o contato en tre biógrafos e bio gra fados. Arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se recons titui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir sua trajetória. A decisão sobre o depoimento de cada um na primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor . Um aspecto importante da Coleção é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográ ficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Bió grafo e biografado se colocaram em reflexões que se estende ram sobre a formação intelectual e ideo lógica do artista, contextua li zada naquilo que caracteriza e situa também a história brasileira, no tempo e espaço da narrativa de cada biografado. São inúmeros os artistas a apontar o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso país. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro quanto no cinema e na televisão, adquirindo, portanto, linguagens diferenciadas – analisando-as com suas particularidades. Muitos títulos extrapolam os simples relatos biográficos, explorando – quando o artista per mite – seu universo íntimo e psicológico , reve lando sua autodeterminação e quase nunca a casua lidade por ter se tornado artista – como se carregasse desde sempre, seus princípios, sua vocação, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. São livros que, além de atrair o grande público, inte ressarão igualmente a nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrinca do processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Desenvolveram-se te mas como a construção dos personagens inter pretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos perso nagens vividos pelos biografados. Foram exami nados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção e a opção por seu formato de bolso, a facili dade para ler esses livros em qualquer parte, a clareza e o corpo de suas fontes, a icono grafia farta e o registro cronológico completo de cada biografado. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado –, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica e contar com a disposição, o entusiasmo e o empe nho de nossos artistas, diretores, dramaturgos e roteiris tas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sorti légios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de fil ma-gem, cenários, câmeras, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que nesse universo transi tam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Prefácio Meu sonho sempre foi fazer cinema como quem escreve uma poesia. Sei que cinema não é como poesia, em que o poeta só precisa de uma mesa, uma cadeira, uma folha de papel em branco e um lápis. Cinema é uma atividade coletiva, extremamente cara, e é preciso ser responsável e se preocupar com o espectador, com as bilheterias, com o patrocinador, com o mercado, com o distribuidor, com o exibidor e tantas outras coisas que afastam o cineasta da possibilidade de poder experimentar e fazer avançar um pouco mais as fronteiras da arte cinematográfica. Para se escrever poesia não é preciso se preocupar nem mesmo com o leitor. Um poeta escreve pela necessidade e pelo prazer de escrevê-la e nada mais. Faço cinema só pela necessidade que tenho de fazer cinema, por isso procuro fazer como quem escreve uma poesia. Não como um poeta solitário, sozinho em seu quarto, mas como se estivesse num bar, numa festa, cercado de todos os amigos de que preciso e que me ajudam a fazer o filme. Gostaria também que todos assistissem a meus filmes, assim: como se estivessem numa festa, num bar, cercados de todos os amigos. Montando e Remontando a Estória Sou do tempo em que não se era obrigado a sair do cinema quando acabava o filme. O intervalo dava tempo apenas para você ir ao banheiro e voltar para assistir ao mesmo filme novamente, sem pagar outra vez. Vi, assim, um número enorme de filmes e acho que isso influenciou minha visão do cinema e mudou minha maneira de fazer filmes. Faço filmes que possam ser vistos mais de uma vez. Acho até que eles precisam ser vistos mais de uma vez para serem totalmente compreendidos e apreciados. Meu espectador ideal seria aquele que fica pelo menos duas sessões seguidas assistindo ao meu filme. Rever filmes influenciou minha forma de montar a estória, de tal maneira que, numa segunda leitura, já tendo conhecimento do que vai acontecer a seguir, compreendendo de forma diferente a cena que está sendo revista e percebendo um detalhe da imagem ou do som que passou despercebido na primeira leitura. Para mim, cada vez que se assiste a um filme, é possível montar uma nova estória, com diferentes significados, a partir da própria inter-relação dos fatos e detalhes. Tenho uma explicação para essa maneira de fazer cinema: se eu for escolher uma lista dos meus filmes prediletos, de muitos deles não gostei à primeira vista. Foi o caso de Cidadão Kane, que numa primeira leitura, achei confuso e sem emoção, mas todos tinham falado tanto do tal filme que resolvi assistir novamente. Na segunda vez, comecei a achar que havia alguma coisa interessante. Hoje, já o assisti mais de trinta vezes e sempre encontro algo novo e surpreendente. Posso citar vários outros filmes em que a mesma coisa aconteceu. Isso me fez perceber o tipo de filme que gostaria de fazer. Um filme que pudesse ser visto e revisto várias vezes. Compreendo que esses filmes estranhos e diferentes provoquem uma certa insegurança quando os vemos pela primeira vez. Como crianças que preferem rever infinitamente o mesmo filme de Walt Disney, nós adultos buscamos a se gu rança de assistir sempre aos mesmos filmes , só que disfarçados de novos, seja como refilmagens, continuações ou, principalmente, gêneros estabelecidos. Uma regra de Hollywood diz que jamais devemos fazer um filme muito diferente daqueles que já foram feitos. As novidades devem ser introduzidas de maneira sutil e gradativa. Tenho uma compulsão em querer subverter as regras estabelecidas e sinto necessidade de buscar maneiras inteligentes de quebrá-las. Sou apaixonado pelas convenções do cinema clássico, mas, ao mesmo tempo, adoro desconstruir um bom clichê. Busco uma forma responsável, duradoura, sincera e, principalmente, justificada de desenhar bigodes na Mona Lisa. Sinto um certo prazer em provocar inquietação nas platéias dos meus filmes. Em fazê-las olhar para dentro de si mesmas. Sei que muitas vezes isso afasta o grande público, que, só ao rever um filme como Onde Andará Dulce Veiga?, poderia de fato desfrutar suas muitas camadas de prazer e entretenimento. Mas prefiro correr esse risco a fazer filmes populares e descartáveis. O Real e a Percepção do Real Para mim, existem dois tipos de artistas cineastas: aqueles que acreditam que seus filmes podem, mesmo que de forma infinitesimal, mudar o mundo e aqueles que acreditam que seus filmes podem, mesmo que algo próximo do nada, mudar nossa percepção do mundo. Entre os primeiros estão os cineastas realistas e preocupados com uma reprodução e análise fiel da realidade. Procuro estar entre os segundos, porque acredito que, sem mudar nossa percepção do mundo, não se poderá mudar efetivamente o mundo. Mudanças na percepção do mundo são mais dura douras. Nada mudou mais o mundo no século 20 do que o aparecimento do Comunismo e, no entanto, menos de um século depois, muita coisa já parece estar sendo rediscutida e até retrocedendo. No entanto, no mesmo século, acredito que nada mudou mais a percepção do mundo do que o aparecimento do Cinema. Não é mais possível definir ou imaginar o mundo sem usar símbolos e ícones desenvolvidos pelo Cinema. A linguagem cinematográfica nos ajuda a melhor enxergar nossa realidade. Acredito que não se pode mais imaginar o mundo sem a percepção desenvolvida por Kafka ou Einstein e, no mundo do Cinema, quem conhece os filmes de Fellini, goste deles ou não, tem uma percepção do mundo acrescentada de uma perspectiva felliniana. É claro que Onde Andará Dulce Veiga? não mu da rá o mundo. Mas, se conseguir mudar um bilionésimo de uma partícula de um grão de areia na percepção que temos do mundo, par ti cularmente do mundo brasileiro, estarei to tal mente recompensado. Os Anos 80 e o Futuro Sempre tive uma grande preocupação com a linguagem. Truffaut disse que todas as estórias já foram contadas. Cabe às novas gerações apenas contá-las de maneira diferente. É o modo de contar estórias que identifica as gerações. Ao contar uma estória que se passa nos anos 80, me preocupei não apenas em ser fiel à lingua-gem e ao universo de Caio Fernando Abreu, um dos melhores tradutores da linguagem dos anos 80 na literatura brasileira, mas também não quis perder a noção de que estava contando esta estória para um público do século 21, já influenciado pelas novas linguagens da internet, dos videogames e da globalização – para mim, as três maiores influências na criação de uma nova linguagem cinematográfica neste século. Somar o universo pós-moderno dos anos 80 com a linguagem da internet, que relaciona fatos e idéias de forma globalizada e quase aleatória, com a multiplicidade de caminhos e opções dos videogames, foi e continua sendo um dos meus maiores interesses no desenvolvimento de uma nova forma de contar estórias. Muitas pessoas torceram o nariz ao assistir Onde Andará Dulce Veiga?, rotulando o filme de pessoal e na contramão. Pessoal todos os meus filmes o são. Sou incapaz de fazer filmes de outra maneira. Gostaria de não estar na contramão, mas neste momento em que o Cinema Brasileiro me parece tão de olhos no passado, tentando repetir fórmulas dos gloriosos tempos do Cinema Novo, fico orgulhoso de estar na contramão, de olho no futuro do cinema. Guilherme de Almeida Prado Roteiro INT./EXT. – APARTAMENTO DE CAIO – TARDE Macro dos tipos de uma máquina de escrever batendo sobre um papel branco: São Paulo, 198... Um apartamento num andar muito alto no centro da cidade. Uma janela grande mostra a selva de edifícios. A sala tem apenas alguns móveis simples e modernos e, grafitado sobre a parede do fundo, uma cópia pós-moderna do Guernica, de Picasso, com todas as suas partes brancas pintadas, com cores tropicais e algumas figuras substituídas por colagens de ícones, tais como o Cristo Redentor, Carmen Miranda, Iemanjá, Che Guevara, o Abapuru, as colunas do Alvorada, a Mona Lisa, com um sorriso de Smile etc. O sol forte e agressivo da tarde lança a sombra de Caio (38 anos, magro, alto, um pouco tímido, mas simpático, cabelos longos e um ar de jornalista cansado) sobre a pintura. Caio, angustiado e distante, está inclinado no parapeito da janela. Nenhuma música, apenas o indistinto ruído da cidade e um distante tac-tac de máquina de escrever. Uma voz de mulher é ouvida. LÍDIA (F.C.) Que tipo de homem você é, hein? Fica aí parado como se fosse um poste. Um poste que nem luz é capaz de ter. Eu não suporto mais essa sua inércia, essa apatia com ar de superioridade. Dessa vez é definitivo. Chega! Não adianta mais se arrepender. Eu saio da cidade, da sua vida e ninguém, nem o melhor detetive do mundo será capaz de me encontrar. LÍDIA (36 anos, morena alta com cabelos curtos) sai de uma porta, dobrando um vestido. LÍDIA (CONT.) Um dia ainda vamos rir de tudo isso. É o que você está pensando, não é? Lídia vai para o lado de Caio. Caio permanece distante. LÍDIA (CONT.) Está enganado! Sou eu que já estou rindo. Eu sei que nunca fui capaz de tomar uma atitude firme, mas um dia chega a hora. Para onde vou? Se fosse um de seus personagens, diria que vou ao encontro de mim mesma. Mas como não sou, vou só pra bem longe de você! Longe de você, entendeu?! Caio olha fixo para o horizonte. LÍDIA (CONT.) Você sempre gosta de ficar com a última palavra, não é? Uma piadinha, um comen tário espirituoso qualquer. Então é me lhor ir dizendo logo. Não tenho mais tempo. Qualquer que seja, desta vez a última palavra já é minha. Não há nada que você possa dizer, que vá mudar um milímetro o meu caminho. Nada! Caio olha para a câmera. CAIO Eu deveria cantar. LÍDIA Como? CAIO Cantar. Se eu soubesse cantar, saberia explicar o que... Lídia, com raiva, balança Caio na janela. A cabeça de Caio projeta-se no abismo. Caio olha para baixo. LÍDIA Chega! É isso o que eu mais odeio em você. Cantar! Eu não sou um de seus contos, não! Sou um longo e verdadeiro romance. Aquele que você nunca será capaz de escrever. Um sorriso sutil aparece nos lábios de Caio. Lídia fala, enquanto entra e sai da sala, terminando, de fazer sua mala. LÍDIA (CONT.) Talvez eu sofra um pouco no começo. Quem sabe? Mas nada comparado com a solidão que é viver a seu lado. A sensação de vazio, a certeza de não significar nada, um móvel, um objeto. Uma boneca inflável seria tratada com mais consideração e respeito. Até hoje não sei o que você queria comigo. Uma dona-de-casa perfeita?! Um troféu pra desfilar pros seus amigos? Caio abre os braços sobre a janela, como se fosse voar. LÍDIA (CONT.) Certamente eu não era a mulher que você queria! Quando chega em casa você sempre parece que quer me desligar, como se eu fosse um eletrodoméstico. Usa, desliga e guarda no armário. Pois bem, desta vez o eletrodoméstico vai mudar de domicílio. Eu sei o que você está pensando: deve ser a eterna tensão pré-menstrual. Uma palavra sua e tudo se resolve. Foi sempre assim, não é? Isso é o máximo que você consegue compreender a meu respeito. Acontece que essa palavra ainda não foi inventada. Em nenhuma língua! Nenhum dicionário pode traduzir o que eu estou sentindo. O sol queima os olhos de Caio. Lídia aparece trazendo uma valise e duas sacolas de viagem. A sombra de Caio não está mais sobre a pintura. LÍDIA (CONT.) Caio? Caio?! Lídia olha nas outras portas da sala, tentando encontrar Caio, e volta para a sala. LÍDIA (CONT.) É, você sempre faz questão de ficar com a última palavra. Nem que esta seja o seu silêncio! Ahhhhhhh!!! CHICOTE PARA: EXT. CÉU DE SÃO PAULO – TARDE Caio, como um pára-quedista sem pára-quedas, cai lentamente sobre o enorme labirinto de ruas e edifícios de São Paulo. Caio está feliz. Silêncio e vento. Um telefone toca e Caio começa a cair mais rápido. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE CAIO – DIA Macro dos tipos de uma máquina de escrever terminando de bater sobre um papel branco: Voar. Voar. Voar. O mesmo apartamento da seqüência anterior, mas agora cheio de estantes, livros, cartazes e confusão: pó, roupas espalhadas, latas de comida abertas, pilhas de livros, discos sem capa, cinzeiros cheios e jornais espalhados. As cortinas estão fechadas e um biombo japonês separa a sala de um pequeno escritório onde Caio, de óculos e com uma barba de três dias, está escrevendo, sentado em frente a uma máquina de escrever. Caio está sem camisa e tem uma feia cicatriz arredondada no ombro direito, além de um símbolo yin e yang tatuado no braço direito. Caio pára de datilografar e atende ao telefonema. CAIO Alô? CORTA PARA: INT. JORNAL – SALA DO EDITOR – DIA CASTILHOS (50 anos, editor-chefe, um pouco cal vo, óculos redondos, sempre fumando) fala no telefone. CASTILHOS Você começa hoje, cara. CORTA PARA: EXT. CÉU DE SÃO PAULO E LIXÃO – TARDE Caio sorri, pára de cair e começa a flutuar sobre um lixão interminável. CORTA PARA: INT. JORNAL – SALA DO EDITOR – DIA Castilhos fecha o receptor do telefone com uma mão. CASTILHOS E vê se não faz cagada logo no primeiro dia, oquêi? Garanti pro chefão que você é da pesada. CORTA PARA: EXT. CÉU DE SÃO PAULO E LIXÃO – TARDE Caio voa sobre o lixão e vê uma cópia do seu livro de contos A Sombra jogada no meio do lixo. Caio pousa para pegá-la e começa a encontrar outras cópias do livro também jogadas no lixo. Caio, nervoso, tenta recuperar as cópias do livro. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE CAIO – DIA Os olhos de Caio estão preocupados. Caio tem o tique de passar os dedos nos lábios. CAIO Oquêi! Caio desliga o telefone, levanta e a introdução de um samba começa a batucar. Caio abre as cortinas para uma floresta de edifícios cinzentos, num dia ensolarado e poluído. Caio dá alguns passos de samba e chuta três pilhas do livro A Sombra, que estão empilhadas no chão da sala. Caio olha sua cara num espelho oval, velho e arranhado, na porta de um armário e tenta cantar. CAIO (CONT.) Agora vou mudar minha conduta / Eu vou pra luta... (a voz não sai) Pois eu quero me aprumar... (desiste) Eu precisava saber cantar! CORTA PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – DIA Um horizonte de edifícios e poluição do centro da cidade. Um velho edifício com o néon do Diário da Cidade e o logotipo: uma arara parecida com uma águia nazista. CAIO (OFF) Verdade que só um completo idiota ou alguém totalmente inexperiente sentiria, nem digo êxtase, mas qualquer espécie de animação por ter conseguido um trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – DIA Um salão enorme e decadente, com ventiladores de pé e várias escrivaninhas com velhas máquinas de escrever. A arara da fachada joga sua sombra sobre a redação vazia. Apenas um jovem de cabelos espetados com gel, todo de preto, está datilografando furiosamente. CAIO (OFF) Acho que ainda não tinha me transformado num idiota, não completamente, pelo menos. Encher laudas e laudas nas máquinas de escrever daquele pasquim pré-informático certamente não era motivo para dar pulinhos. CORTA PARA: INT. JORNAL – SALA DO EDITOR – DIA Caio, barbeado e com uma camisa moderna, está sentado em frente a Castilhos. A escrivaninha de Castilhos, a única que tem um computador, está cheia de papéis, fotos, clipes, folders, xícaras e envelopes de plástico, adoçante artificial, tubos de cola, chumaços de trocados, volantes de loteria, lápis, sanduíches meio comidos e latas de Diet Coke. CAIO (OFF) Mas eu tinha que ficar contente. E quando você quer, você fica. Castilhos bate, no ar, a cinza de um cigarro. O ventilador atrás de Castilhos sopra as cinzas em Caio. CAIO (CONT.) Olha, Castilhos, eu preciso muito, sinceramente. Mas não sei se sou o sujeito mais indicado pra... CASTILHOS Sabe sim. Sabe perfeitamente. E vai fazer tudo direitinho, oquêi? Só porque o nome da banda é Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas, que que tem demais? Devem ser umas gostosas precisando de uma caceta pra encontrar seu caminho no mundo. Agora todos se chamam Ratos Escrotos, Vermes Imundos, Bichos Nojentos, coisas assim. Mas ninguém é realmente aquilo que parece ser. São os tempos, tudo é pós-moderno, pós-tudo, que se há de fazer? Além disso, toca toda hora no rádio. CAIO Sapatas, sexistas, adolescentes rebeldes sem causa nem conseqüência. CASTILHOS Taí um bom título pruma crítica, meu rapaz. Castilhos põe o cigarro dentro de um cinzeiro e mexe em fotos, puxando a foto de uma mulata de fio-dental e botas brancas. Castilhos mostra a foto para Caio. CASTILHOS (CONT.) Olha só que coxas, hein, meu? Castilhos, sempre fumando três cigarros ao mesmo tempo, pega outro cigarro que está equilibrado na beira da escrivaninha. Castilhos digita em seu computador. CASTILHOS (CONT.) Olha só que coxas! Uma de dezessete toques, descontando a exclamação, cabe certinho. Castilhos junta a foto a uma página cheia de correções à mão. CASTILHOS (CONT.) (berrando) Oxumaré, chega aqui! Caio olha no computador. CASTILHOS (CONT.) Oxu! Onde se meteu essa anta? Castilhos passa seus dedos amarelados sobre as coxas da mulata. CASTILHOS (CONT.) Vômito, outro dia pintaram uns garotos aí com um grupo assim. Grupo não, banda. É assim que eles dizem agora. São os tempos, que se há de fazer? O telefone toca e Castilhos atende. Caio não está se sentindo à vontade. CASTILHOS (CONT.) (berrando) Fecha às oito! Às oito, sem fal ta, porra. Quero isso na minha mesa até as sete, pelo menos pra dar uma lida nes sa bosta, oquêi? Castilhos bate o telefone. CASTILHOS (CONT.) Débeis, todos débeis. Outro dia, um aí escreveu que fulana ganhou o Oscar de melhor atora, é mole? OXUMARÉ (um pretão jovem, mas com o cabelo completamente branco, usando uma camisa cáqui desabotoada mostrando uma guia de contas vermelhas e pretas) está atrás de Caio e, sério, bate continência. Castilhos levanta a foto da mulata e sacode na cara de Caio. CASTILHOS (CONT.) Oxumaré, o jovem aqui é o nosso novo repórter de Variedades. Oxumaré curva sua cabeça e pega a foto e o clipe. OXUMARÉ Laroiê! Caio cumprimenta Oxumaré e olha para Castilhos. CAIO Me chama de Caio, por favor. Não sou mais jovem, nem rapaz. Castilhos empurra seus óculos para a testa e dá uma conferida em Caio. CASTILHOS Então vê se corta esse cabelo! CAIO É uma ordem? CASTILHOS Não, sugestão. Esta é uma redação democrática, infelizmente. CAIO Que se há de fazer, não é? Castilhos sorri para Caio. CASTILHOS Oquêi, garotão, digo... Caio. Mas vai lá ver, depois escreva. Elogiando! CAIO Elogiando?! CASTILHOS É, quase me esqueço de te dizer. Goste ou não goste, o artigo precisa ser elogioso. As gatinhas tiveram um empurrãozinho aí... (apontando o dedo para o teto) De cima! CAIO De cima? Como assim? CASTILHOS Não, não tão de cima. Só do dono, do chefão, do nosso próprio todo-poderoso, oquêi? Sabe como é, os tempos. CAIO Oquêi! Que se hei de fazer? Castilhos dá uma gargalhada. CASTILHOS Rapaz, eu confio em você. É a capa de sexta! CAIO Me dá o número do telefone delas. Castilhos afasta um pilha de laudas e pega uma agenda cheia de papéis soltos. CASTILHOS Fale com Patrícia. Ou Vanessa, ou Mônica, ou Cristiane, um desses nomes modernos. Que coisa, não existem mais Veras, Suzanas, Elviras. E Carmens, então? Castilhos dá um pedaço de papel para Caio. CORTA PARA: INT. ESTÚDIO – SALA DE ENSAIO – DIA PATRÍCIA (20 anos, óculos de gatinho, magra, muito alta, parecendo um pássaro pernalta, séria, cabelos loiros crespos até abaixo da cintura de um jeans esfarrapado e apertado, botas de soldado, um brinco com um crucifixo e sempre levando um livro na mão), está ao telefone. Patrícia usa uma camiseta com, na frente, uma boca aberta na vertical com duas filas de dentes serrilhados, como os dos tubarões, e o nome Márcia Felácio e as Vaginas Dentatas escrito nas costas. Um barulho infernal é ouvido ao fundo. Márcia e as Vaginas Dentatas estão ensaiando um hard rock num estúdio de gravação. Márcia Felácio (22 anos, bonita, mas pálida. Um rosto andrógino e mutante, cabelos descoloridos, gestos agressivos, vestindo roupa de couro preta masculina da cabeça aos pés) é a líder da banda Vaginas Dentatas: três garotas andróginas e agressivas, vestidas com jeans e camisetas iguais à de Patrícia. PATRÍCIA Tudo bem! Imprensa é imprensa, só que também não é assim. Liga e já vai entrevistando. Antes eu preciso da sua data de nascimento (...) Data, local e hora. Patrícia pega uma folha de mapa astral. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – DIA Caio está aborrecido, em sua escrivaninha. CAIO Pra quê isso? CORTA PARA: INT. ESTÚDIO – SALA DE ENSAIO – DIA Patrícia fecha uma porta e o barulho diminui. PATRÍCIA Pra montar o seu mapa astral, evidente. Preciso ver se tudo cruza. (...) (decepcionada) Tudo isso? (...) E a hora? (...) Então nada feito. Sem a hora exata, como é que eu vou calcular o Ascendente? Não tem na certidão? (...) Pergunta pra sua mãe. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – DIA Caio está furioso e mente. CAIO Acontece que minha mãe morreu! CORTA PARA: INT. ESTÚDIO – SALA DE ENSAIO – DIA Patrícia faz linhas no mapa astral. PATRÍCIA Desculpa! Mas pelo menos sabe se foi de manhã, à tarde ou à noite? (...) Segura na linha! CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – DIA A redação começa a encher: homens gordos dos Esportes, meninas desgrenhadas do Variedades e adolescentes espinhentos da Geral. Teresinha (a colunista social, uma loura dos seus cinqüenta anos, usando muita bijuteria e um vestido curto, imitando pele de leopardo) senta-se à mesa ao lado da de Caio. CAIO Alô! CORTA PARA: INT. ESTÚDIO – SALA DE ENSAIO – DIA Patrícia olha no mapa astral. PATRÍCIA Olha, querido, hoje não vai dar, de jeito nenhum. Nós temos uma gravação. Além disso, dias de Lua não são favoráveis. Muito instável, entende? Só na sexta, dia de Vênus. E às seis da tarde, com Leo no Ascendente e o Sol na casa do Outro. CORTA PARA: INT. ESTÚDIO – REDAÇÃO – DIA Caio, realmente furioso, articula cada sílaba. CAIO Patrícia, tenho que entregar essa matéria na quinta. Para sair na sexta. Não posso esperar que os astros estejam favoráveis e Urano na casa do caralho. (...) (sedutor) É a capa... A capa, em cores. FUSÃO PARA: EXT. FÁBRICA ABANDONADA – ENTARDECER Uma velha fábrica abandonada, com as paredes pichadas e grafitadas com desenhos de colorido lisérgico, numa região de pouco movimento. Caio bate num grande portão de ferro e Patrícia abre uma fresta. PATRÍCIA Você é o cara do jornal? CAIO Sou. Patrícia observa Caio por sobre os óculos e termina de abrir o portão. PATRÍCIA Você deve ter o Ascendente em Peixes. Caio entra no armazém. CORTA PARA: INT. FÁBRICA ABANDONADA – ENTARDECER Caio entra e começa a ouvir uma música. Caio e Patrícia caminham através da labiríntica fábrica em ruínas até uma outra porta fechada. CAIO (OFF) Foi então que comecei a ouvir uma música familiar. Não apenas familiar. Havia nela, ou na sensação estranha que me provocava, algo mais perturbador. Mas o que eu lembrava não era exatamente aquilo, embora o quê eu não identificava, mas quase lembrava que estivesse lá, dentro da música ou de mim. Caio segura no ombro de Patrícia. CAIO (CONT.) Conheço essa música. Patrícia sacode os ombros. PATRÍCIA Todo mundo conhece. É o nosso grande sucesso, está em segundo lugar. Caio empurra e passa por Patrícia. CAIO Preciso ouvir melhor. PATRÍCIA Você não pode interromper... Caio abre a porta e uma rajada de fumaça bate em sua cara. O depósito é grande e enevoado. O chão está coberto de gelo seco. Entre nuvens, alguns homens ou parte deles. Troncos, uma cabeça imensa enterrada até os olhos. Ao fundo, um cenário de papelão pintado, reproduzindo edifícios em ruínas cercados por enormes latas de lixo, quase do mesmo tamanho. De dentro delas, brotam objetos inesperados: uma perna de manequim, um relógio de pêndulo, um violoncelo partido ao meio, bonecas decepadas, flores de plástico, lápides, réstias de alho. Uma equipe grava um clip com três câmeras de vídeo. Contra os edifícios de papelão, as Vaginas Dentatas e, à frente delas, de costas, apoiada num poste falso de luz, Márcia, com uma guitarra. O vento chama a atenção de Márcia, que descobre a entrada de Caio e, agressiva, pára de cantar. As três garotas também param. Patrícia fala no ouvido de Caio. PATRÍCIA (CONT.) Eu tentei avisar. Márcia odeia isso. A diretora do clip grita no meio da névoa falsa. DIRETORA (F.C.) Que porra é essa, moçada? Estava tudo bem, assim não dá. Márcia bate com a guitarra no poste de luz. A coluna de papelão treme na base de isopor pintado. Márcia, mãos na cintura, olha para Caio e Patrícia. A baterista bate um dos pratos, como para fazer uma trilha sonora. MÁRCIA (berrando) Patrícia! Já não falei mil vezes que não admito nenhum estranho por perto na hora de gravação? PATRÍCIA É o cara do jornal. Ele pegou e foi entrando, não tive culpa. Márcia olha direto para Caio. MÁRCIA Escreve pra onde? CAIO Pro Diário da Cidade. Tenho que fazer uma matéria de capa com vocês. A culpa não foi de Patrícia, eu é que... Márcia chuta o poste novamente e a luz pisca. DIRETORA (F.C.) (gritando) Êpa, assim você me fode o cenário, gatinha. A japonesa arranca um acorde do baixo, apoiando a baterista. A gorda fuma, com um risinho cínico. A DIRETORA (atraente, mas com jeito e roupas de homem) aparece da névoa, batendo palmas. DIRETORA (CONT.) Como é que é, rapazes. A gente não pode ficar aqui a vida inteira. Vocês querem ou não gravar esta merda? Os olhos de Márcia brilham. MÁRCIA O que você chama de merda, eu chamo de arte. Cada um vê apenas aquilo que é capaz de ver, boneca. DIRETORA Certo. Desculpa, eu não quis... Vamos gravar. Patrícia aperta o braço de Caio. PATRÍCIA (sussurrando) Ela não é bárbara? A três garotas tocam seus instrumentos. Márcia baixa a cabeça, chuta o poste devagar e pega a guitarra. MÁRCIA Tudo bem! Desta vez passa. DIRETORA (F.C.) (gritando) Grá-vando! Márcia vira de costas, ergue o braço direito, o indicador apontando para o teto. No pulso, um bracelete cheio de tachas. Márcia bate o pé no chão. MÁRCIA Um, dois, três! Márcia e as Vaginas Dentatas tocam e cantam um arranjo tecno-pop e distorcido de Meditação. O armazém se torna um labirinto de luzes e fumaça. Caio olha encantado para Márcia. MÁRCIA (CONT.) Só, estou tão só / Sem você só restou o silêncio / E no meu peito um nó. Caio começa a mover os lábios, como se cantasse junto. MÁRCIA (CONT.) Mas ao recordar / O seu corpo no meu abraçado / Fecho os olhos e sonho acordado. Caio começa a caminhar através da névoa e descobre as costas de uma poltrona de veludo verde clássica, de espaldar alto, com duas abas salientes na altura da cabeça de quem se senta. Caio caminha para a cadeira e se perde no meio da névoa. A canção tecno-pop segue Caio. MÁRCIA (F.C.) (CONT.) Neste meu sonhar / A tristeza e a saudade que eu sinto / Vão te procurar. No meio da névoa, um filme é projetado numa tela muito grande. O filme mostra Dulce Veiga (loura, sedutora, provocante e espirituosa, uma idade indefinida entre trinta e sessenta anos) cantando a mesma canção, na verdade, apenas dublando a voz de Márcia. No filme, Dulce está num grande salão de festas, cheio de espelhos, ao lado de um piano verde de cauda, usando um vestido verde de baile decotado. MÁRCIA (F.C.) (CONT.) E ao te encontrar / Solto o grito que está na garganta / Abro a boca / E meu coração canta. FUSÃO PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – NOITE FLASHBACK: Vinte anos antes. De dentro da névoa, Caio entra em um enorme apartamento com um hall de entrada espaçoso, separado de uma sala por um arco. Sentada na poltrona de veludo, Dulce assiste ao filme projetado na grande parede do fundo da sala. A cabeça de Dulce está jogada para trás, afundada entre as asas da cadeira. Caio vê apenas as longas e finas mãos, com unhas pintadas de branco, e o braço de Dulce no braço da cadeira. Uma seringa vazia está na sua mão e um fio de sangue escorre na pele do braço de Dulce. MÁRCIA (F.C.) Eu te amo tanto / Que só cantando / Eu sei dizer o quanto / Não posso esquecer / Seu amor, seu calor e no entanto / O que é que eu vou fazer? A seringa cai no chão e quebra. FUSÃO PARA: INT. FÁBRICA ABANDONADA – NOITE Caio está de volta ao armazém no meio da névoa . MÁRCIA (F.C.) Eu vou te esperar/Meditando que bom que será/Quando você voltar. Raudério (um homem loiro e alto, com olhos claros, usando uma camiseta de mangas cavadas) surge no meio da névoa, apontando uma pistola para Caio. Caio fica assustado, mas Raudério apro xima, encosta a ponta da pistola no seu peito e beija gentilmente os lábios de Caio. DIRETORA (F.C.) (gritando) Corta! Caio, limpando os lábios, está ao lado de Patrícia. CAIO Dulce Veiga! PATRÍCIA O quê? DIRETORA (F.C.) Quinze minutos, vamos fazer uns contraplanos. Márcia sai do meio das latas de lixo e caminha para Caio. Patrícia dá uma lata de guaraná com um canudo para Márcia. MÁRCIA Desculpa o escândalo. Não consigo me concentrar quando tem alguém estranho. Márcia tira sua jaqueta de couro, mostrando seus seios firmes e pequenos com uma borboleta tatuada perto de um dos bicos. CAIO Tudo bem. A japonesa passa a mão nas coxas de Caio. JAPONESA Tudo uma maravilha! Márcia senta-se na frente de um espelho de maquiagem improvisado. Patrícia começa a abanar Márcia com um leque de palha. Caio segue, interessado, todos os movimentos de Márcia. MÁRCIA Podemos começar. Caio abre seu caderno de notas. CAIO Aquela música... Essa música que você cantou. MÁRCIA Chama-se Meditação. CAIO Eu conheço. MÁRCIA Todo mundo conhece. É um sucesso antigo que a gente só – até o Frank Sinatra já gravou. CAIO Você conhece a gravação de Dulce Veiga? Márcia faz o canudinho roncar, no último gole de guaraná, estende a garrafa para Patrícia, e joga a fumaça do cigarro para cima de forma teatral. Um rác-rác de gilete batendo no vidro e a japonesa chama Márcia. JAPONESA Você não quer? Vem logo, antes que essas piranhas cheirem tudo. As Vaginas Dentatas se aglomeram ávidas, ao redor de um pequeno espelho com carreiras de cocaína. Patrícia dá para Márcia uma nota enrolada. Márcia inclina-se e, levantando-se novamente, tem os olhos brilhantes. MÁRCIA Quer uma carreira? Caio, hipnotizado por Márcia, cheira e torna a erguer a cabeça. CAIO Você conhece a gravação de Dulce Veiga? Márcia passa as costas da mão na ponta do nariz. MÁRCIA Claro que conheço. Sou filha de Dulce Veiga. CAIO Filha? De verdade?! MÁRCIA Vocês da imprensa não usam mais fazer lição de casa antes? Caio desajeitadamente procura em seu caderno de notas cheio de laudas. CAIO Desculpa. Nossa! Conheci sua mãe; era fã dela. Onde ela anda? Márcia dá um olhar profundo para Caio e abaixa a cabeça. MÁRCIA Ela desapareceu! Um dia, de repente, faz muitos anos. CAIO Desapareceu? Como, desapareceu? MÁRCIA Desapareceu, porra. Puf! Foi assim, sumiu, bem assim. Eu era quase um bebê. Foi há tantos anos. Caio está perdido com suas notas e vê uma menina de três anos saindo da névoa e cruzando na sua frente. A menina usa maquiagem de adulto, um longo colar de pérolas no pescoço e brinca com uma seringa vazia nas mãos. CAIO Ninguém desaparece assim, sem mais nem menos. MÁRCIA Ela desapareceu! Essa merda é sobre mim ou sobre minha mãe? CAIO O que você chama de merda, eu chamo de meu ganha-pão. Márcia ri para Caio e Caio ri de volta. CAIO (CONT.) Então seu nome é Márcia Veiga? Márcia levanta-se e flerta com Caio. MÁRCIA Márcia Felácio combina melhor com o nome da banda: as Vaginas Dentatas! Márcia tenta agarrar o sexo de Caio. Caio se protege. MÁRCIA (CONT.) Te assusta? Essa é a idéia! Meu nome é Márcia Francisca da Veiga Prado. Márcia F. para os amigos. Caio toma notas. A diretora reaparece de dentro da névoa. DIRETORA Vamos lá, minha gente. Tomem seus lugares. Márcia se aproxima e, suavemente, beija o rosto de Caio. MÁRCIA Terminamos amanhã, sem falta. Liga em casa, a gente combina. E arrume um gravador. Odeio essas notas, que sempre distorcem o que a gente diz. Márcia volta para o cenário, vestindo a jaqueta . No meio do caminho, Márcia vira e puxa o zíper . MÁRCIA (CONT.) Agora, vê se dá o fora daqui. (gritando alto) Não consigo trabalhar com esse cara me olhando! Patrícia empurra Caio para fora. Antes de sair, Caio olha para trás e vê Márcia levantando o braço para o alto, como uma lança. Patrícia fecha a porta na cara de Caio. CORTA PARA: EXT. FÁBRICA ABANDONADA – NOITE CHUVOSA Chove nas ruas desertas. O vento arrasta latas vazias e jornais. Um velho táxi dos anos 60 passa em frente de Caio. Caio faz sinal para o táxi parar, mas o táxi parece ter um destino. Caio segue o táxi até uma esquina do galpão. O táxi pára perto de uma entrada lateral para a fábrica abandonada e Dulce Veiga, toda de vermelho, uma flor branca na lapela, bolsa e luvas brancas, corre para o táxi, usando um jornal como guarda-chuva. O motorista do táxi, com um guarda-chuva, ajuda Dulce com a porta do táxi. Caio corre e só pega um vislumbre dos olhos de Dulce. O táxi sai e vira uma esquina. Caio, molhado de chuva e perdido, olha para a porta fechada de onde Dulce saiu da fábrica. Caio abre a porta e entra. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – SALA – NOITE FLASHBACK: Vinte anos antes. Caio, todo molhado e sem mudar de aparência, entra no apar tamento. O apartamento é o mesmo que apa receu antes, mas tudo parece ter apenas a me ta de do tamanho anterior. A parede do hall de entrada está totalmente coberta com quadros de fotografias de Dulce. DULCE (F.C.) Este é o altar-mor do meu ego! Caio, assustado, olha para a sala onde, no escuro, a poltrona de veludo verde está com as costas viradas para o hall. Caio pode ver apenas os cabelos loiros de Dulce, caídos e desarrumados, uma parte do ombro e o braço nu sobre o braço da poltrona. O braço está com um torniquete e a mão segura uma seringa vazia. A outra mão, do outro lado da poltrona, segura um cigarro aceso. Um filme silencioso está sendo projetado na parede do fundo da sala. No filme, Dulce parece cantar, usando um vestido verde de baile decotado, ao lado de um piano verde-escuro de cauda e de um pianista de longos cabelos pretos. Caio procura o interruptor e acende a luz da sala. Vários refletores de cinema são acesos, projetando a silhueta de uma equipe de filmagem no fundo da sala. DULCE (F.C.) (CONT.) (gritando, assustada) Não! Apague, por favor! Caio volta a desligar a luz. DULCE (F.C.) (CONT.) Está bem assim. Quem é você? CAIO Sou o rapaz do jornal. Estou fazendo um perfil de seu marido. DULCE (F.C.) Sei. Alberto (um pouco mais jovem que Dulce, bigo des, costeletas, aparência masculina. Fuma ca chim bo, usa blazer com cachecol de seda e abo toa duras de ouro) entra sorrindo, e leva Caio pelo braço, empurrando por um corredor. ALBERTO Venha comigo! DULCE (F.C.) How dare you! How dare you! CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – CORREDOR – NOITE FLASHBACK: Alberto puxa Caio por um longuíssimo corredor. ALBERTO Não trouxe o fotógrafo? Não faz mal, eu tenho um monte de fotos minhas, todas ótimas. Alberto pára no meio do corredor e vira para Caio. Caio percebe que Raudério está no lugar de Alberto. RAUDÉRIO Como posso expressar minha gratidão? Raudério segura Caio e dá um beijo em seus lábios. DULCE (F.C.) How dare you! How dare you! Caio se solta de Raudério e volta correndo para a sala. CORTA PARA: INT./EXT. APARTAMENTO DE CAIO – NOITE Caio chega em sua própria sala. A poltrona verde es tá no meio da sala, com as costas viradas para Caio. Caio circula a poltrona e a poltrona está va zia. Caio tira sua camisa molhada. A porta do armário, com o espelho oval, abre e deixa cair para fora um braço de Dulce Veiga. CAIO (OFF) Minha vida é feita de peças soltas como as de um quebra-cabeças sem molde final. Ao acaso, eu disponho as peças. Algumas chegam a formar quase uma história, que se interrompe bruscamente para conti nuar ou não, em mais três ou quatro peças, ligadas a outras, que nada têm a ver com aquelas primeiras. Outras restam solitárias, sem conexão com nada em volta, como as peças de Dulce Veiga. Caio abre o armário para colocar o braço de volta e encontra o armário lotado de bugigangas: ve lhos LPs dos anos 60, uma bóia salva-vidas do L’Ata lante e uma bússola de marinheiro. Caio encontra uma valise e dentro dela, uma capa de chuva, alguns compactos e três LPs de Dulce Vei ga. Um deles, La Dolce Dulce, tem na capa Dul ce debruçada sobre um piano de cauda verde-escu ro, usando um vestido de baile verde. Na contracapa, uma foto preto e branca do pianista Pepito Moraes (longos cabelos pretos) ao lado do piano e um autógrafo de Dulce Veiga. Caio também encontra uma peruca loira dentro da valise. CAIO (OFF) (CONT.) Mas eu estava exausto demais para achar qualquer coisa. Um arrepio desceu da minha nuca para os meus braços, estranho feito uma premonição. Porque – eu suspei tava mais do que sabia – não era só isso. Havia aquela zona de sombra que ainda não conseguia iluminar: alguém, havia mais alguém no apartamento de Dulce, naquele dia, naquela noite, não sei. Caio põe o disco na vitrola. Dulce canta Meditação. Caio veste a capa de chuva e repara que um buraco no ombro da capa combina com sua cicatriz. Caio vai até o espelho e veste a peruca. Ao colocar a mão no bolso da capa, Caio encontra a mesma pistola que viu com Raudério. Caio caminha pela sala com a peruca e a pistola e olha através da janela. A janela dá de frente para outro edifício, com janelas grandes de vidro. Caio observa as janelas de vários apartamentos, um deles vazio, com um telefone tocando e um andar onde funcionam uma academia de ginástica e uma escola de dança, com halterofilistas levantando pesos. Um homem forte ensina outro homem forte a dançar o tango. A mão de Dulce risca um fósforo nos sulcos do disco. Caio olha sobressaltado para a vitrola. Dulce, na penumbra ao lado da vitrola, usando o vestido de baile verde, acende um cigarro e dá uma tragada. Dulce se aproxima de Caio. A peruca que Caio está usando é da mesma cor dos cabelos loiros de Dulce, mas mais curta. Dulce coloca seu cigarro na boca de Caio. O vestido decotado de Dulce deixa ver a mesma borboleta tatuada de Márcia nos seios de Dulce. Caio, assustado, tira a peruca e vira de costas, olhando a pistola. Dulce abraça Caio por trás. A voz de Dulce cantando Meditação se mistura com a voz de Márcia. Dulce morde o pescoço de Caio e enfia sua mão de unhas brancas dentro da calça, pegando o sexo de Caio. Caio fecha os olhos de prazer. O telefone continua tocando no apartamento vazio e os homens fortes terminam de dançar o tango. FADE-OUT. FADE-IN: INT. JORNAL – SALA DO EDITOR – DIA Castilhos rabisca, frenético, uma lauda com tinta vermelha. Caio aparece vindo da quase deserta redação. CAIO Castilhos, você se lembra de Dulce Veiga? CASTILHOS Dulce o quê? CAIO Veiga. Dulce Veiga, a cantora. Castilhos põe a caneta na boca, pega um cigarro, põe na boca com o filtro do lado de fora e tenta acender. CAIO (CONT.) O filtro. CASTILHOS Hein? CAIO O filtro, você está acendendo o cigarro do lado errado. O telefone toca e Castilhos tira do gancho e fica olhando fixo para Caio. Caio olha para a Redação, apenas com Teresinha falando ao telefone. CAIO (CONT.) Você lembra de Dulce Veiga? CASTILHOS Diga de novo. Diga de novo para mim, bem devagar. CAIO Dulce Veiga, Castilhos, você se lembra? A tal Márcia Felácio, das Vaginas Dentatas, é filha de Dulce Veiga. Castilhos esmaga o cigarro. CASTILHOS Filha, é? E onde ela anda? CAIO Fiquei de ligar hoje. Amanhã sem falta entre go a matéria. Castilhos bate o telefone com força e um cigarro aceso cai no chão. Caio apaga com o pé. CASTILHOS Não, idiota. Dulce, onde está Dulce Veiga? CAIO E eu sei lá? Segundo a filha, ela desapareceu faz uns vinte anos. CASTILHOS (desconsolado) Vinte, vinte anos. Desapareceu mesmo, não é? Tô me lembrando do caso. CAIO Caso? CASTILHOS Como é que eu pude me esquecer de Dulce Veiga? Nunca houve nenhuma outra como ela, nem vai haver. Castilhos se levanta. CASTILHOS (CONT.) Dulce Veiga! O que é que Dulce tinha pra me enlouquecer tanto? Eu conto, Dulce tinha acima de tudo, antes de nada, coxas. CAIO Coxas?! Ora, Cas... CASTILHOS Coxas alucinantes onde qualquer um, fácil, poderia perder-se pra sempre. Ah, que coxas! As coxas de Dulce eram tão monumentais que, aos poucos, deixou de ser nome próprio para se tornar substantivo, sinônimo de coxas. Sempre que eu espiava um par especial delas, pensava: Que Dulce, hein? Caio dá uma gargalhada. CASTILHOS (CONT.) Você pode achar que estou exagerando, mas quem teve o privilégio de vê-la um dia, uma hora, quinze minutos que fossem, sabe muito bem que... CAIO (interrompendo) Eu tive. Castilhos olha fixo para Caio e põe os óculos. CASTILHOS Você?! CAIO Estive uma vez no apartamento dela. CASTILHOS Sei. Eu também a entrevistei uma vez. Nunca pude... Mas onde andará? Onde andará Dulce Veiga? CAIO Vai ver casou com um conde austríaco e está morando em Viena. Castilhos acende outro cigarro. CAIO (CONT.) Ou vive numa casinha com quintal, na periferia, entre roseiras. CASTILHOS Dói pensar que pode estar se empapuçando de gim pelas bocas da vida, com um recorte amarelado de jornal na bolsa, entre vidros de sonífero. CAIO Morta, talvez? CASTILHOS Morta não! Dulce é imortal! Eu prefiro imaginá-la feliz: as coxas de Dulce eram a garantia mais que segura de um futuro daqueles tipo felizes-para-sempre. CAIO Quem sabe? CASTILHOS Então Márcia Felácio é filha dela. Castilhos, pensativo, olha pela janela e vê um enor me outdoor de lançamento do disco de Márcia Felácio. CASTILHOS (CONT.) Dá pra ver que essa garota tem costas quentes. CAIO A entrevista foi adiada pra hoje. CASTILHOS Esqueça a entrevista, você faz amanhã. Depois, quando der, não importa. Agora vai, senta a bunda e escreve. CAIO Mas escrever o quê? CASTILHOS Uma crônica. Você vai escrever uma crônica, oquêi? Onde andará Dulce Veiga? Vai se chamar assim. Quero isso, sem falta, aqui na minha mesa, às seis da tarde. Castilhos começa novamente a rabiscar uma página de vermelho. Caio está indeciso. Na redação, Teresinha ri ao telefone. TERESINHA Mas não me diga, logo ela, que perua! Castilhos marca um parágrafo de vermelho no fim de um texto e faz uma flecha para o início da página. CASTILHOS Cretinos. Colocam sempre o lead no fim da matéria, que se há de fazer? (para Caio) São sessenta linhas cheias. Pede ao Oxumaré uma pasta no arquivo. Deve ter fotos dela. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – DIA Oxumaré entrega uma pasta de fotos e recortes dos arquivos. OXUMARÉ Ogum iê! Caio olha os arquivos: poucas fotos e recortes. Castilhos chega na mesa de Caio e entrega o LP Nó de Márcia Felácio para Caio. A capa tem uma foto de Márcia com as Vaginas Dentatas em segundo plano. CASTILHOS Chegou pra você. CAIO Obrigado. Castilhos volta para sua mesa. Teresinha, na mesa ao lado, aponta para o LP de Márcia. TERESINHA No segundo dia, já ganhando presentinhos, hein? Pra me mandarem alguma coisa, preciso prometer mil notas. Caio passa o LP para Teresinha e olha as fotos da pasta de Dulce. CAIO É pruma matéria que estou fazendo. Teresinha tira o disco de Márcia da capa. TERESINHA Já ouvi no rádio. Interessante, mas barulhento demais. Prefiro Charles Trenet, sabe? (cantando) Que reste-t-il de nos amour! Hoje estou tão fraca de notas, um horror. No verão, não acontece nada. A única novidade é a última plástica da Lyla Van. Teresinha dá para Caio uma Revista da TV, com Lyla Van na capa. TERESINHA (CONT.) Imagina, novidade: a perua já deve ter feito mais de trinta. Você não tem nenhuma nota pra mim? CAIO Não, agora tenho que escrever sobre outra coisa. Castilhos, em sua mesa, está olhando curioso para Caio. CAIO (CONT.) Maldita, maldita hora em que fui falar de Dulce Veiga. TERESINHA Dulce Veiga? Caio olha interessado para Teresinha. CAIO Dulce Veiga. Sabe quem é? TERESINHA Claro. Nossa, quanto tempo. Ela era muito chique, que fim levou? CAIO Ninguém sabe. Essa cantora, Márcia, é filha dela. Teresinha bate na testa. TERESINHA Que fantástico! Já tenho até um título sensacional: Filha de peixe e três pontinhos. Conta mais. Caio coloca uma folha em branco na máquina de escrever. CAIO Contar o quê? Tudo o que eu lembro é tão vago, quase incontável. TERESINHA Existem tantas como ela. Um ou dois discos, um sucesso no hit parade, pequenos papéis no cinema, um escândalo, uma novela das sete... Caio fica olhando a folha de papel em branco. CAIO Um brilho forte e fugaz, uma cintilação e então desaparecem. Esquecidas. Teresinha pega a pasta de Dulce e olha as fotos, interessada. TERESINHA Somem das colunas sociais pra sempre. CAIO No entanto, elas continuam, anonimamente, a viver. TERESINHA E nós a cavoucar qualquer sujeira na vida delas, que possa nos render uma notinha. Há, há, há! O telefone de Teresinha toca e ela atende. TERESINHA (CONT.) Vou investigar! Caio começa a escrever, olhando as fotos do arquivo. CAIO (OFF) Jamais esquecerei Dulce Veiga. As fotos: Dulce debruçada nos ombros de Pepito Morais; Dulce com o marido Alberto Veiga, clima canastrão de galã de filme mexicano dos anos 60, paletó de ombreiras, cigarro na piteira entre as unhas esmaltadas; Dulce de mãos dadas com Rafic, um homem forte, de bigodes pesados, numa mesa de boate, enquadrados entre um abajur de centro e uma champanhe no balde suado de gelo; Rafic beijando as mãos de Dulce; Dulce segurando uma faixa na frente de uma passeata; Dulce grávida fazendo um discurso inflamado num teatro; Dulce ao lado de Fidel Castro; Dulce saindo de um táxi, cercada de fotógrafos e jornalistas; Dulce com Lyla Van, sua melhor amiga; Dulce com a pequena Márcia, ao lado de Lyla Van, grávida de oito meses; Dulce cantando, cantando... Um efeito especial faz com que Dulce se mova ligeiramente em algumas das fotos; como se estivesse viva. CAIO (OFF) (CONT.) Mas eu tinha esquecido que jamais esqueceria Dulce Veiga. Vou tentar explicar, mas também confesso que não sei bem por onde puxar o fio. Memória tem dessas coisas, você às vezes puxa um fio que resul ta noutro bordado não planejado. Eu nunca consegui cantar direito. Dulce era a minha voz. Um crítico gongórico a chamou de a voz dos sentimentos dissonantes. Éramos todos muito desafinados naquela época. Caio pára de escrever e começa a ler os recortes do final dos anos 60. O primeiro: Atriz abandona filmagens. Outro recorte mostra Alberto, de óculos escuros, saindo de uma delegacia de polícia e um outro mostra Alberto brigando com Pepito em uma boate. CAIO (OFF) (CONT.) Tudo que pude lembrar foi que Dulce tinha desaparecido durante as filmagens de Meta... qualquer coisa. Ela sumiu no meio de um plano. Entre duas tomadas. Mistério total! Durante mais ou menos um mês, os jornais acompanharam as investigações. A primeira página, depois matérias cada vez menores nas páginas internas, então o caderno policial, três colunas com foto, meia coluna sem foto. Finalmente, uma notinha de rodapé, dois, três meses depois: O mistério continua sem solução. Ainda não foi localizada a atriz Dulce Veiga. O último recorte, do Diário da Cidade, é uma capa de caderno sobre o lançamento do filme Metaphora, estrelado por Lyla Van, com uma pequena notinha em destaque sobre Dulce Veiga. Os colegas de Caio começam a chegar na redação. Caio volta a escrever. Uma montagem rápi da intercala fotos de Dulce com flashes de Márcia, cantando na fábrica, abandonada, e chutando o poste de luz, em sincronismo com Caio datilografando freneticamente. CAIO (OFF) (CONT.) (acelerado) Mas eu a quero de volta. De alguma forma irracional, como se quer o tempo que se foi. Por favor, eu procuro Dul ce Veiga. Procurem, procurem. Até achar. Me escrevam, me telefonem, me dêem notícias de Dulce Veiga. Se por acaso cruzarem com ela na feira, no eleva dor, no bar da esquina, digam a Dulce que mando meu mais carinhoso beijo. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE A redação parece uma colméia zunindo. Todos correm de um lado para o outro. CAIO (OFF) E que jamais a esquecerei. Caio hesita ao datilografar esquecer...ei. Caio, aliviado por ter terminado a crônica, tira a página da máquina para corrigir seu texto. Caio olha para Castilhos, que está tendo dificuldades com seu computador. CASTILHOS Merda! Caio escolhe uma foto que mostra bem as coxas de Dulce, olha a capa do álbum de Márcia e começa a escutar Márcia cantando Meditação. CORTA PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – NOITE Caio, olhando a capa do álbum de Márcia, caminha por ruas do Centro de São Paulo. Carros e gente passam em velocidade acelerada e Caio é o único que caminha em velocidade normal. Márcia continua cantando Meditação. Caio pára em frente à boate Abajur Lilás. Um cartaz com a foto de Pepito Moraes, um pianista de longos cabelos brancos, anuncia o Happy Hour no Piano-Bar. O velho táxi pára atrás de Caio. Dulce Veiga sai do táxi e um grande grupo de fotógrafos e jornalistas surge e cerca Dulce com flashes, microfones e perguntas incompreensíveis. DULCE Desculpem, por favor, eu não vou dar entrevistas! Caio estica o braço, com o álbum de Márcia. CAIO Dulce, Dulce Veiga! Dulce pára, pega o álbum de Márcia e o autografa igual ao autógrafo do álbum que Caio tem de Dulce. Dulce devolve o álbum para Caio e caminha para a porta da boate. DULCE Chega! Basta! Não dou mais autógrafos! Dulce pára na porta da boate e olha para Caio, que agora está parado, sozinho na calçada. Dulce entra na boate e Caio vai atrás. CORTA PARA: INT. BOATE ABAJUR LILÁS – NOITE Caio entra e a boate está vazia. Um garçom esfrega o balcão do bar com um trapo. O som de um piano vem de um canto do bar. Pepito Moraes (cerca de 50 anos, longos cabelos grisalhos, um tipo ressentido e reacionário) toca o piano. Pepito vira para pegar um copo de uísque em cima do piano e Caio pára ao seu lado. CAIO Ela está aqui? Pepito continua a tocar com a mão esquerda, enquanto bebe com a direita. PEPITO Ela quem? CAIO Dulce Veiga. Pepito sorri. PEPITO Dulce Veiga? Aqui? CAIO Eu a vi entrar... PEPITO Você deve estar tendo visões, rapaz. Dul ce Veiga sumiu faz muito tempo. Ninguém sabe onde ela anda. CAIO Você tocava piano pra ela, não é? PEPITO Tocava, e daí? CAIO Não quer falar sobre ela? PEPITO Tantos anos! Faz mal lembrar de coisas que se foram e não voltam, rapaz. CAIO Não sou rapaz. Conheci a Dulce. Pepito olha para Caio, acelera o tempo da música e pára de repente; vira-se para Caio e acende um cigarro. PEPITO Não, você não a conheceu. Eu a conheci! Ela não pensava em mais ninguém. Só nela mesma. Ela queria... Outra coisa, sabia? CAIO Que coisa? PEPITO Nem ela sabia. Repetia isso o dia inteiro: quero outra coisa, eu quero encontrar outra coisa. Durante os ensaios, quando parava de cantar, entre as músicas. Agora já passou. Não sinto raiva, não sinto nada. Sinto saudade, de vez em quando. Quando penso que podia ter sido diferente. CAIO Diferente como? Pepito termina de beber, ergue a mão e acena para o garçom. O garçom vem e enche o copo de Pepito. PEPITO Quer um? CAIO Não, obrigado. PEPITO Diferente, diferente. Será que as coisas podem mesmo ser diferentes do que são? Não sei se não existe um plano traçado, como um destino, um roteiro que dizia, muito simples, que ela tinha que abrir aquela porta, mas... CAIO Porta? Abrir que porta? PEPITO No filme que ela tava fazendo. Esque ce! Não aconteceu, só isso. Não acon teceu desse jeito, ela não quis. E não se importou se os outros queriam. Ela se foi, eu fiquei por aqui, por ali, tocan do piano enquanto as pessoas comem, bebem e namoram. Sem escutar o que eu toco. CAIO Mas pra onde ela foi? PEPITO Ninguém sabe, rapaz. Deixou a câmera rodando e nunca atendeu ao grito de Ação! Nunca mais, até hoje. Caio mostra o álbum de Márcia. CAIO Você sabia que esta moça é filha dela? PEPITO Ouvi falar, dizem que tem muito talento. Veja só, quem diria. Peguei essa menina no colo, mijou muito em mim. Dulce não tinha o menor jeito pra mãe. E depois que pegaram aquele subversivo no apê dela, ficou ainda pior. CAIO Depois do quê? PEPITO Um dos amores de Dulce. Ela teve tantos, nem eu escapei. CAIO Nem você? PEPITO (cantando) Nem eu, nem eu, nem eu! CAIO Dulce foi presa? Alguns casais começam a encher o bar: homens cinqüentões, bem vestidos, acompanhados por garotas mais jovens, muito pintadas. Pepito sorri malicioso. PEPITO Não, Dulce não. Um affair dela, com certeza o cara era comunista, você sabe, a repressão, ele foi detido no apartamento de Dulce. Nunca soube o nome do tipo. Se Dulce não tivesse bons amigos que escamotearam logo o caso, teria sido um escândalo. Dulce morria de medo de escândalos. Pepito toma um gole grande de uísque. O garçom volta, olha enviesado para Caio e sussurra alguma coisa no ouvido de Pepito. PEPITO (CONT.) Tenho de tocar. Afinal, os caras me pagam pra isso. Tenho que levantar o pau desses senhores para foderam suas secretárias. Feelings, Ronda, Nada Além, essas coisas. Volte outra hora, se você quiser, você parece um cara legal. Mas volte antes da meia-noite, porque depois, rapaz, estou sempre completamente bêbado. Pepito começa a tocar Meditação. CAIO (OFF) Se ao menos eu soubesse cantar. FUSÃO PARA: EXT. CASA DE PATRÍCIA – JARDIM – MANHÃ Caio, com um gravador de fita cassete na mão, desce de um táxi na frente de um sobrado com hera nas paredes e azaléas num pequeno jar-dim, com uma motocicleta estacionada sobre o gramado, na periferia de São Paulo. O bairro parece uma cidade do interior: uma figueira no meio da praça em frente à igreja, com crianças jogando bola. CAIO (OFF) Mas, como quem tenta matar memórias indesejáveis a fim de passar, supostamente, a vida a limpo, eu sentia necessidade de apagar Dulce Veiga da minha memória. Só que, quanto mais eu fugia, mais eu corria atrás dela. Patrícia, usando uns óculos comuns, abre a porta . PATRÍCIA Entra! CAIO Cheguei muito cedo? PATRÍCIA Não tem importância. Com o sol na nove, pode até dar certo. De repente vocês realizam alguma coisa juntos. Caio entra na casa. CORTA PARA: INT. CASA DE PATRÍCIA – SALA – MANHÃ A sala também parece ser do interior: modesta e limpa, um sofá de estampado meio puído, poltronas combinando, guardanapos de crochê no espaldar, nos braços, e reproduções de gravuras inglesas nas paredes. Uma gata está deitada numa das poltronas. Caio acende um cigarro. CAIO Quer um? PATRÍCIA Não fumo. MÁRCIA (F.C.) Quem deixou esse cara entrar?! Márcia está parada na escada de madeira, de calcinha e sem sutiã, agitando uma cópia do Diário da Cidade na mão. MÁRCIA (CONT.) Patrícia, você me paga. Quem esse idiota pensa que é, me usando como pretexto para explorar a história de uma pobre mulher desaparecida num pasquim escroto de imprensa marrom?! Márcia joga o jornal no meio da sala. Caio pega e olha curioso o jornal. A capa do caderno de Artes traz o texto à volta da foto de Dulce Veiga. MÁRCIA (CONT.) E aquela perua da Teresinha ainda conta que sou filha de Dulce Veiga. Já disse e repito: não sei nada sobre essa maldita história. Não vou dizer porra nenhuma sobre isso porque nem eu mesma sei! Márcia sobe as escadas e bate a porta. PATRÍCIA É assim mesmo. Ela é Leão, uma estrela. Você é Aquário, o oposto. Sabe aquela coisa, se atraem e repelem? Patrícia começa a subir a escada e de repente pára e se vira. PATRÍCIA (CONT.) Tudo vai dar certo. Afinal, vocês têm as luas em conjunção, em Virgem. Já devem ter tido alguma encarnação juntos. Caio estende a mão para acariciar o gato, mas o gato foge para trás de um biombo no canto da sala. Caio segue o gato. Atrás do biombo, Caio vê uma escrivaninha e uma estante cheia de livros de poesia e Astrologia. O gato sobe na escrivaninha. Lá, entre caixas de incenso indiano, cristais, pedras, inúmeras caixinhas de vários tamanhos e formatos e um capacete de moto, está um mapa astral incompleto com o nome de Caio no alto da folha e uma Bíblia aberta. Patrícia volta. PATRÍCIA (CONT.) Nunca vi um Netuno tão aflito em toda a minha vida. CAIO Só estava dando uma olhada, não entendo nada. PATRÍCIA Você deve ter pés tão frágeis. Hoje à tar-de eu termino o seu mapa. Posso mandar pro jornal? Caio tira um cartão de sua carteira. CAIO Não, não, melhor mandar direto pra mim. Caio dá o cartão para Patrícia, que faz um movimento de cabeça em direção ao andar superior. PATRÍCIA A superstar está mais calma. Pode subir agora. CORTA PARA: INT. CASA DE PATRÍCIA – CORREDOR – MANHÃ Caio sobe a escada. A decoração do andar superior é completamente diferente do térreo: toda no estilo rock and roll. Uma porta com uma grande foto de Márcia está fechada. CORTA PARA: INT. CASA DE PATRÍCIA – QUARTO DE MÁRCIA – MANHÃ Caio abre a porta devagar. As janelas estão fechadas e o quarto está na penumbra. A única luz do quarto vem de uma TV ligada, sem som, exibindo um documentário sobre o pin-tor Vermeer, destacando seu quadro Mulher Pesando Pérolas. MÁRCIA Entra de uma vez, vamos fazer logo esse negócio. Márcia está sentada de pernas cruzadas em uma colcha sobre um colchão colocado direto no assoalho, em frente a um cinzeiro cheio de pontas. Sobre a calcinha, Márcia vestiu uma camiseta das Vaginas Dentatas. Caio senta-se no chão, com o gravador entre ele e Márcia. MÁRCIA (CONT.) Não vou dizer nada sobre minha mãe. CAIO Tudo bem. Márcia acende um baseado e passa para Caio. MÁRCIA Só vou dar essa porra de entrevista porque Patrícia me convenceu. Ela diz que é bom pra banda. Foda-se a mídia, esses caçadores de cabeças. CAIO Hã-hã. Márcia se levanta, liga um projetor giratório de luzes coloridas e eriça os cabelos com a ponta dos dedos. Os olhos de Márcia faíscam. MÁRCIA Vamos lá? Caio olha bem dentro dos olhos de Márcia e aperta o botão do gravador. Márcia sorri e Caio começa a fazer perguntas, olhando para ela com um olhar apaixonado. Não se escutam as perguntas de Caio nem as respostas de Márcia, que caminha pelo quarto como uma gata acuada. CAIO (OFF) Por alguma razão maluca, ou absoluta falta de razão, eu me senti perdido, pois é assim que se define a ação de quem não sabe aonde vai, nem o que faz. Meu coração, sereno como uma bomba-relógio, tomado por profundas sensações, algumas sem nome, como aquele calafrio crispado da montanha-russa, um segundo antes de despencar no abismo. CORTA PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – DIA Edição rápida de várias tomadas aéreas da cidade de São Paulo, mostrando uma teia labiríntica de ruas e edifícios. CAIO (OFF) Tentei prestar atenção em alguma outra coisa. Não havia nada além de desordem ocupando todo o espaço dentro do meu cérebro, me impedindo de pensar. Esta cidade vai explodir um dia... CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE Uma dúzia de rosas vermelhas e brancas com um cartão está em cima da mesa de Caio. CAIO (OFF) E eu não tenho nada com isso. Ou tenho? Caio pega o cartão. O papel de linho sépia tem no canto direito as iniciais A.V. gravadas em relevo dourado. Teresinha observa Caio. Caio lê o cartão para Teresinha. CAIO (CONT.) Obrigado pela emoção. Só mesmo uma sensibilidade especial como a sua poderia lembrar com tanta ternura da inesquecível Dulce Veiga. Venha me ver, talvez eu tenha mais informações. TERESINHA Parabéns, você merece. Eu também fiquei emocionada. Lindo texto, muito espiritual . CAIO Obrigado. Oxumaré passa, vindo do escritório de Castilhos. OXUMARÉ Ora iê iê ô! Caio olha novamente para o cartão. Uma assi natura barroca ao lado de um número de telefone. CAIO A.V.? TERESINHA Alberto Veiga, o marido de Dulce e pai da Márcia. Castilhos faz um sinal de sua sala. CORTA PARA: INT. JORNAL – SALA DO EDITOR – DIA Caio chega e Castilhos entrega meia dúzia de telegramas. Caio começa a abrir os telegramas. CASTILHOS Muito bem. Quer dizer que a sua crônica é um sucesso. Caio lê um dos telegramas e dá para Castilhos. CAIO Não pensei que alguém ainda lembrasse dela. Castilhos começa a furar buracos no telegrama com a ponta do cigarro. CASTILHOS (com inveja) Escrever tem desses mistérios. De repente, sem esperar, um dia você consegue despertar alguma coisa que está viva dentro de muita gente. E a nossa matéria Dentatas? CAIO Entrego hoje no final do dia sem falta, dá tempo? CASTILHOS Tempo dá. Mas tem um outro problema. (apontando para o teto) Ele! CAIO Qual o problema? A matéria vai ser muito elogiosa. CASTILHOS Rafic quer que você suba para vê-lo imediatamente. CAIO Pra quê? CASTILHOS Não sei. Quer que você leve os arquivos da Dulce Veiga pra ele. É melhor ir andando, o chefão odeia esperar, que se há de fazer? Caio, preocupado, sai da sala. CORTA PARA: INT. ESCRITÓRIO DE RAFIC – HALL DE ENTRADA – DIA Caio sai do elevador numa sala totalmente branca e com uma arara de mármore no meio. Caio olha para uma câmera de circuito fechado de TV em cima de uma porta branca. Um zumbido e a porta branca abre. RAFIC (F.C.) Pode entrar! Caio entra no escritório. CORTA PARA: INT. ESCRITÓRIO DE RAFIC – DIA Uma enorme sala toda decorada de branco: os tapetes, as paredes, sofás e poltronas, a mesa com tampo de vidro, cheia de prataria baiana. Apenas os quadros são coloridos, especialmente um com moldura dourada: a mesma mulata da foto que Castilhos publicou, nua no meio de uma floresta tropical, com uma arara ao fundo. Caio caminha até o quadro da mulata. RAFIC (F.C.) Muito bem, muito bem. Caio volta-se e estende a mão para Rafic (um cinqüentão atraente, grande, ar poderoso, com ombros largos e cabelos grisalhos, contrastando com as sobrancelhas cerradas e bigodes pretos). Rafic usa um terno de linho branco, camisa vermelha aberta, exibindo três correntes de ouro entre os pêlos negros abundantes, um anel de ouro com uma arara em relevo, unhas esmaltadas e mocassins com meias vermelhas. RAFIC (CONT.) Beleza, vejo que tem bom gosto. Rafic bate nas costas de Caio. RAFIC (CONT.) Já sei que é um grande apreciador de arte. Castilhos me contou tudo a seu respeito. (apontando para a pintura) Não é uma verdadeira obra-prima? Minha última aquisição, sou um colecionador exigente, você sabe. Rapaz novo, mas muito original. A moça é modelo, atriz, cantora. Puta talento, puta mulher. Até pedi a Castilhos que desse uma força. CAIO Muito expressivo. Rafic puxa Caio pelo braço para um bar também branco, empurrando Caio para um assento branco. Rafic vai para trás do bar, inclina-se para Caio e aponta para uma vitrine de bebidas. RAFIC Vai querer o quê? Tudo estranja, legítimo. CAIO Jack Daniel’s, puro. Rafic sorri, mostrando um dente de ouro atrás do bigode preto. RAFIC Seu sacana. Não falei que tinha bom gos to? Rafic enche o copo de Caio e o seu, com gelo. CAIO Castilhos falou que o senhor queria... RAFIC Pelamordedeus, senhor, não. Você! Ainda tô enxuto. Meus amigos me chamam só de Rafic, mais nada. CAIO Rafic... Castilhos disse que você queria falar comigo. Rafic dá a volta no balcão e senta-se com as pernas abertas na frente de Caio. RAFIC Quem foi que te deu a idéia? CAIO Que idéia? RAFIC Sobre Dulce Veiga? CAIO Castilhos pediu que eu escrevesse sobre ela. RAFIC Ele me disse que você tinha lembrado sobre ela primeiro. Caio olha dentro da pasta e encontra a foto de Dulce de mãos dadas com Rafic em uma mesa de boate. CAIO Claro, Dulce é a mãe de Márcia Felácio. Castilhos me pediu que escrevesse sobre ela também. Eu estou trabalhando nisso. Elogiando. Elogiando muitíssimo! RAFIC Sei... Então, isso é tudo? CAIO Até onde eu saiba... Rafic pega a pasta de fotos e olha. RAFIC Ninguém mais, um ou uma de seus colegas na redação, que tenha, digamos, suge rido a idéia. Você sabe, falou no nome. Lembrou... Ajudou de alguma maneira... CAIO Não, eu nunca poderia pensar que alguém ainda se lembrasse da Dulce Veiga. Rafic respira aliviado e começa a rasgar algumas fotos do arquivo. RAFIC Be-le-za, uma verdadeira beleza o que você escreveu sobre Dulce Veiga. Que talento, que sensibilidade, que – que doce amargura –, meu caro jovem. Caio sorri. RAFIC (CONT.) A manhã inteira, um sucesso. Desde cedo, uma loucura. Todo mundo quer saber onde anda Dulce Veiga. Um editor quer publicar uma biografia dela, tem produtor de TV já armando programa especial, não sei que lá. Gente dando depoimento, até me convidaram. Só falta uma coisa. Rafic dá um gole no uísque e olha fixo nos olhos de Caio. RAFIC (CONT.) Ela: encontrar Dulce Veiga. Só isso que falta. CAIO Certo. Caio pega um cigarro. Rafic acende o cigarro com um isqueiro de ouro com uma arara gravada na tampa e torna a encher os copos. RAFIC Portanto, meu caro e talentosíssimo ra paz, a partir deste momento você tá dis pen sado de cumprir horário no jornal. De agora em diante seu trabalho vai ser exclu sivamente esse, beleza. Um trabalho delicioso, encontrar nossa querida Dulce Veiga. Rafic devolve os arquivos para Caio e levanta-se do banquinho. CAIO Mas ela pode estar morta num terreno baldio, assassinada numa beira de estrada, sem lápide nem flores. RAFIC Estou certo que não. Verdade que ela teve uns envolvimentos estranhos por aí. Coisa de artista, você sabe. Talvez por isso mesmo deve ter fugido. E nós vamos encontrá-la, custe o que custar. CAIO Não sei se... RAFIC O que for preciso. Pesquisa, entrevista, viagem. Basta você telefonar, eu autori zo, carta branca. No balcão do aeroporto, na hora, qualquer coisa. CAIO Mas é que... RAFIC Inclusive me resolve um problema aqui no jornal; que é justamente onde aproveitar alguém do seu cacife. Falta de vagas, recessão, infelizmente você sabe. Assim você fica como repórter especial, me tira até um peso da consciência por não po der aproveitar alguém do seu gabarito, entende? Caio compreende bem a situação. RAFIC (CONT.) A notícia do ano, beleza. O nome do Diá rio da Cidade por cima outra vez. E o seu, meu caro jovem. Pode até escrever um livro, editor não falta, pagando os tubos. Em dólar: Onde Andará Dulce Veiga? Um filme, já pensou? Um sucesso! Como você sabe, sou muito bem relacionado e já andei financiando uns filmes anos atrás. Rafic abraça Caio. RAFIC (CONT.) E, confidencialmente, não conte a nin guém pelamordedeus, ando pensando em me candidatar. Deputado, sena dor, convites não faltam. Você parece esperto, pode até trabalhar comigo, beleza. Que tal uma assessoriazinha de imprensa? Rafic estende a mão. Caio sorri, começando a gostar da idéia. RAFIC (CONT.) Topado? Caio aperta a mão de Rafic. CAIO Não sou detetive nem nada, e nem a pró pria filha de Dulce sabe onde ela está. Rafic empurra Caio para a saída. RAFIC Fala franco, rapaz, você tá muito duro? CAIO Como? RAFIC Duro, liso, quebrado, a pão e água. Pelamordedeus, eu sou um homem que veio do nada e se fez na vida. Ninguém como eu compreende essas coisas. Rafic pega uma carteira de couro com outra arara lavrada, abre, tira um monte de notas e, sem contar, enfia no bolso da calça de Caio. RAFIC (CONT.) Pros primeiros passos da Operação Dulce. O que for preciso. Qualquer, qualquer coisa para encontrar Dulce Veiga. Nosso rouxinol perdido, beleza. Rafic abre a porta branca e sorri para Caio. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE Pilhas de telegramas em cima da mesa de Caio. Caio põe uma folha de papel branca na máquina de escrever e liga o gravador. A voz de Márcia sai desafinada e Caio abre o gravador. A fita cassete está toda amassada. Caio, arrasado, joga a fita no lixo, pega o cartão de visitas de Alberto Veiga e disca o telefone. CORTA PARA: INT. QUARTO DE ALBERTO – TARDE MARCO ANTÔNIO (jovem musculoso) tira uma máscara de dormir e atende ao telefone. MARCO ANTÔNIO Alô! (...) Quem gostaria? CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE Caio começa a datilografar enquanto fala. CAIO Ele não me conhece. (...) Não, não sou ator, sou só jornalista. Diga a ele que é o cara que escreveu sobre Dulce Veiga. CORTA PARA: INT. QUARTO DE ALBERTO – TARDE Alberto (agora com mais de cinqüenta anos, cabelos grisalhos e aparência masculina, apesar de alguns trejeitos) está dormindo ao lado de Marco Antônio na mesma cama de casal e, arrumando os cabelos, pega o telefone de Marco Antônio. ALBERTO Não precisa dizer mais nada. Eu sei perfeitamente quem você é. (...) Quem agradece sou eu. É o mínimo que poderia fazer por alguém com lembranças tão belas da minha inesquecível Dulce Veiga. (...) Quando você quiser. (...) Naturalmente, você manda. Marco Antônio abraça Alberto por trás. Alberto sorri e faz um sinal de cabeça para Marco Antônio. ALBERTO (CONT.) Apareça no ensaio. Assim você aproveita e vê algumas cenas do nosso trabalho. Precisa também conhecer o Marco Antônio, a maior revelação dos últimos anos. Marco Antônio sorri e, nu, começa a levantar . ALBERTO (CONT.) Vai sacudir os palcos brasileiros. Que talento! Quem sabe você se inspira e faz uma entrevista com ele. Marco Antônio levanta-se e mostra rapidamente o seu grande talento. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE Caio continua datilografando. CAIO Acabei de fazer uma entrevista com sua filha. CORTA PARA: INT. QUARTO DE ALBERTO – TARDE Alberto faz uma longa pausa e se encosta ao travesseiro. Marco Antônio entra no banheiro. ALBERTO Ah, claro. A Marcinha herdou o talento da mãe. CORTA PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE Caio corrige algum erro na máquina de escrever. CAIO Do pai também. (...) Sei, sei. Caio bate à máquina e continua segurando o telefone, mas sem prestar atenção às palavras de Alberto. Flashes do rosto de Márcia em seu quarto se intercalam com as batidas da máquina de escrever. FUSÃO PARA: INT. CLIP-POEMA – DIA/NOITE Uma mistura de videoclip com poema de amor erótico. As batidas da máquina de escrever de Caio são montadas com imagens de Márcia cantando Meditação, na fábrica abandonada e com imagens de Márcia andando como uma gata acuada pelo seu quarto. Efeitos visuais estroboscópicos e coloridos editam essas imagens de forma delirante e poética, com imagens como: Márcia com o vestido decotado de Dulce cantando ao lado do piano verde, no salão de baile, com Caio, travestido de Pepito, tocando piano. Detalhe da tatuagem de borboleta de Márcia. Márcia, como a Mulher Pesando Pérolas, de Vermeer. Márcia senta-se no colo de Caio/Pepito. Márcia cantando junto com Dulce, uma na frente da outra, como num espelho. CAIO (OFF) Eu não queria pensar em Dulce, eu não que ria pensar numa porção de coisas, em todas as coisas. Mas era preciso manter aquele emprego, continuar a viver e, mesmo se não fosse pra encontrar Dulce Vei ga, era preciso começar por algum ponto. A menina com maquiagem de adulto e um longo colar de pérolas no pescoço, brincando com a pistola. A gravação de Márcia é mixada com a gravação de Dulce de Meditação. Márcia, como a Mulher Pesando Pérolas, joga tudo para o alto. Márcia nua, sentada na poltrona verde. Márcia sorri e mostra seus dentes serrilhados. FUSÃO PARA: INT. JORNAL – REDAÇÃO – TARDE As últimas batidas da máquina de escrever de Caio são F. Caio tira o papel da máquina, olha e sorri, orgulhoso. CAIO (OFF) Decidi jogar o jogo de jogar o jogo. CORTA PARA: INT. TEATRO – TARDE Só o palco está iluminado. Meia dúzia de silhuetas de cabeças está sentada na primeira fila. Numa plataforma no centro do palco, Alberto e Marco Antônio se encaram. Marco Antônio tem uma cópia do Diário da Cidade com a foto da mulata das coxas na mão e Alberto sacode os cabelos desgrenhados e um revólver. ALBERTO (gritando) Ciúmes de minha filha, não. Ciúmes de você. Tenho! Sempre. Quero que você morra sabendo. Caio senta-se discretamente numa cadeira, no fundo do teatro. ALBERTO (CONT.) O meu ódio é amor! Por que beijaste um homem na boca? Por quê?! Alberto aponta o revólver para Marco Antônio. Nenhum tiro. Alberto pára e grita para uma assistente magra de óculos, saia de batique e bolsa indiana, sentada na primeira fila. ALBERTO (CONT.) Bate no chão. Dá um grito, meu amor. Faz algum tipo de barulho na hora que eu atirar. ASSISTENTE (lamurienta) É que é tão emocionante. Eu até esqueci. ALBERTO Ótimo, mas faz um barulho qualquer. Senão eu perco o clima. Alberto vira para um Marco Antônio imóvel. ALBERTO (CONT.) Vou repetir a deixa. Eu falo, atiro, aí você cai. Atenção: Por que beijaste um homem na boca? Por quê?! Alberto aponta o revólver. A assistente grita! Marco Antônio cai de joelhos, de forma exagerada, cobrindo o tórax com o jornal. Alberto apon ta o revólver novamente e a assistente gri ta novamente. Marco Antônio cai no chão, levantando uma nuvem de pó e rasgando o jornal. ALBERTO (CONT.) (gritando) Por quê?! Alberto deixa cair o revólver, ajoelha e puxa o corpo de Marco Antônio para seu colo. Alberto acaricia os cabelos de Marco Antônio. ALBERTO (CONT.) (chorando) Por quê?! Por quê?! Caio segue tudo com um sorriso de surpresa. Alberto permanece de joelhos, os braços imóveis e estendidos como se abraçassem Marco Antônio. Marco Antônio levanta-se e caminha para outro praticável, um pouco mais alto. ALBERTO (CONT.) Como um fantasma! Caminha como um fantasma! Marco Antônio fica em pé na frente de outro homem ainda mais musculoso, deitado e comple tamente nu. O homem nu estica as mãos dra ma ticamente para Marco Antônio. Caio está espantado. O homem nu é o estudante de tango da escola de ginástica, da janela em frente à sua. ESTUDANTE DE TANGO Me dá um beijo. Por tudo que é mais sagrado, me dá um beijo. Na boca. Marco Antônio faz um striptease completo, lançando suas roupas sobre Alberto. Caio está chocado. Marco Antônio ajoelha e passa os braços ao redor do homem nu. Alberto permanece imóvel. ALBERTO Passa a mão pelas coxas... Pelos peitos... Até o rosto. Marco Antônio obedece e depois segura o ros to do homem nu. ESTUDANTE DE TANGO De língua. Pelo amor de Deus, me beija. Marco Antônio curva-se e beija o homem demoradamente na boca. As pessoas na primeira fila aplaudem. ASSISTENTE Bra-vô! Alberto soluça, com seu rosto enterrado na cueca de Marco Antônio. Caio levanta-se para sair do teatro. A cadeira range e Alberto olha na direção de Caio. ALBERTO Quem está aí? Esta cena é secreta, não quero nenhum espião do Antunes por aqui. CAIO Sou o cara do jornal. Alberto desce do palco e caminha para Caio. ALBERTO Você chegou na hora exata. Este é o grande momento da peça, a cena que Nelson Rodrigues não se atreveu a escrever. Alberto aponta para o palco, onde os dois homens nus ainda estão abraçados. ALBERTO (CONT.) Uma Pietà gay, é isso que eu quero. Uma Pie tà gay desesperadamente erótica, no fun do. Estática, eterna. Falta a luz! A luz final! Uma luz forte é acesa atrás da Pietà. ALBERTO (CONT.) Essa é a mensagem: o amor é uma sombra! CAIO Muito ousado. ALBERTO É neste momento que me remeto a deter minados trechos daquele patético diá rio dos últimos dias de Roland Barthes. Quando ele renuncia ao amor dos rapazes e opta definitivamente pelo amor dos mi chês. (berrando) Só me restarão os michês! Já leu Barthes, claro. CAIO O prazer do texto. Alberto sacode a mão de Caio. ALBERTO O prazer é todo meu. As cabeças da primeira fila olham para Alberto. Alberto bate palmas. ALBERTO (CONT.) Todo mundo dispensado. Vão tomar café na esquina, bater o texto. As pessoas começam a sair. CAIO Não quero tomar seu tempo. ALBERTO Mas meu tempo é todo seu. Você conseguiu decodificar a cena final? Não é real, mas mítica. Como o fantasma que perseguirá eternamente os heterossexuais apa vorados: a possibilidade de um amor entre machos. Marco Antônio procura sua cueca e, não encontrando, começa a se vestir, sem tirar os olhos de Caio e Alberto. CAIO Realmente muito ousado. Alberto fala gesticulando muito as mãos. ALBERTO Tem mais, tem muito mais. Alberto arrasta Caio para a fila da frente. Marco Antônio senta-se na frente do palco. MARCO ANTÔNIO Você que ligou hoje de manhã? Caio olha Marco Antônio de cima a baixo. CAIO Foi. ALBERTO Meu trabalho mais ambicioso, mais revolucionário. CAIO Preciso falar sobre Dulce Veiga. Alberto, incomodado, senta-se em uma cadeira e aponta para Caio sentar-se a seu lado. ALBERTO Sei! Dulce escolheu as sombras. Primeiro achei que ela ia voltar de repente, como tinha desaparecido, mas então... Caio senta-se. CAIO Ela não deixou nenhum bilhete, uma men sagem? Nenhuma pista? ALBERTO Nadinha. Eu mesmo fiz de tudo para en con trá-la, e muita gente mais, ela era muito, muito, muito amada; até a polícia fez o impossível. Tudo inútil. Caio olha em seu caderno de notas. CAIO Seu nome verdadeiro é Alberto Prado, e não Veiga? ALBERTO Sim, eu sou mais jovem que Dulce, você sabe. Conheci Dulce quando eu era apenas um estudante de teatro, e ela uma cantora conhecida. Então, como nome artístico preferi o Veiga ao Prado, mais dramático. Mas qual a finalidade de mencionar algo assim no seu artigo? CAIO Não estou escrevendo nenhum artigo. Só preciso encontrá-la. ALBERTO Desista, meu querido! Caio olha novamente no seu caderno de notas. CAIO Quando ela desapareceu, vocês estavam casados por dez anos. ALBERTO Os anos mais felizes da minha vida. Mas felicidade não era suficiente para Dulce. Ela começou a beber, a tomar drogas. CAIO E sobre um rapaz, um dos amigos de Dulce, metido em política? ALBERTO Posso garantir a você que Dulce nunca se envolveu com política. Ela gostava de ficar em casa decorando letras de música. CAIO Pepito Moraes disse que alguém foi de tido no apartamento de Dulce. ALBERTO Não, de modo algum. Pepito é um bêba do frustrado, decadente, muito ressenti do com tudo, mistura pessoas, tempos, histórias. Não acredite nele. Tempos tris tes aqueles, com certeza! Censura, perse guições, proibições, tortura. Qualquer um podia perder a cabeça. Eu mesmo perdi alguns amigos. Mas Dulce nunca teve a menor idéia do que acontecia além das paredes do apartamento. Alberto levanta-se. ALBERTO (CONT.) Mas agora eu tenho uma surpresa pra você! Alberto faz um sinal para Marco Antônio. ALBERTO (CONT.) A tela! Marco Antônio começa a abaixar uma tela branca de cinema na frente do palco. Caio fica aborrecido. Alberto pega Caio pelo braço e o leva para uma cadeira no centro do teatro. CAIO O que é? ALBERTO A última imagem de Dulce! Está sem som, sabe. É só um copião montado. Eu nunca pude terminar o filme. Um outro diretor terminou. Guardei como lembrança. Luzes! Marco Antônio termina de abaixar a tela, faz um sinal para um projecionista no balcão superior do teatro e senta-se ao lado da tela. A luz apaga e um filme é projetado na tela. O filme, em silencioso preto e branco, é um copião montado com riscos e durex. Um quarto à noite com apenas um candelabro sobre o criado-mudo. Dulce, de camisola de seda, dorme na cama. ALBERTO (CONT.) (imitando lobo) Ouuuuuul! Dulce acorda assustada e vai para uma porta envidraçada dando para um jardim. O vento balança os ramos das árvores. Luzes e sombras expressionistas. Uma estranha névoa começa a surgir no jardim. Dulce olha assustada para fora. ALBERTO (F.C.) (CONT.) Ela tentou falar comigo pouco antes de nós iniciarmos a filmar esta cena. Até hoje me arrependo de não ter feito isso. Dul ce talvez precisasse apenas desabafar com alguém. Mas a filmagem estava atrasada. O produtor havia perdido seu maior investidor. Dulce Veiga volta para uma mesa e toca um sini nho no ar. ALBERTO (CONT.) Triiiim! A porta abre e Lyla Van (alta e magra, mesma idade de Dulce, cabelos negros com uma grande mecha branca na frente) entra, usando um uniforme e trazendo uma pequena bandeja com um copo de leite. CAIO Parece a Lyla Van. ALBERTO E é. Essa puta costumava fazer umas pontas nos filmes da Dulce. Dar a ela uma chance foi o maior erro de toda a minha vida. Lyla põe a bandeja sobre a mesa e Lyla e Dulce movem os lábios silenciosamente. Lyla curva a cabeça com um sorriso malévolo e sai. Dulce olha com medo para o copo de leite. ALBERTO (CONT.) Olha que olhos! Isso é uma estrela de verdade! Dulce toma um gole de leite e volta para a porta. ALBERTO (CONT.) De fato, tava ficando cada vez mais difícil trabalhar com Dulce. Chegava sempre atrasada, não conseguia decorar as falas, sentia-se perseguida. O vento balança freneticamente as árvores do jardim. Uma atmosfera de horror. Os passos das patas de um monstro invisível afundam o terreno, caminhando em direção da casa. ALBERTO (CONT.) Dizia que tava cansada de tudo, que não suportava mais, não queria fazer sofrer as pessoas que a amavam. Dulce volta para a mesa e joga o copo de leite contra a parede. Dulce agita seu cuidadosamente descabelado cabelo e começa a destruir tudo dentro do quarto. ALBERTO (CONT.) Às vezes chorava muito, sem motivo aparente, repetindo que queria outra, outra coisa. Todos eram pacientes e carinhosos com ela. Tinham certeza de que o filme seria um grande sucesso, mesmo porque, apesar de insegura, Dulce tava atuando melhor do que nunca. Nós tínhamos um sucesso! CAIO Mas Metaphora fez mesmo muito sucesso na época. Lyla volta com uma seringa. Dulce luta com Lyla, pega o candelabro, joga em Lyla e Lyla desmaia. Dulce fica na escuridão, iluminada apenas pela luz da porta envidraçada. ALBERTO Só entre os críticos! E não este, não com Dulce. Lyla Van fez o papel. Tremenda sapatona! Nunca aprovei as intimidades de Dulce com Lyla Van. Típica carreirista! Ela persuadiu o produtor a me despedir e contratar outro diretor. Um daqueles do Cinema Novo que não sabem nada de cinema e muito menos o que é uma estrela. Só pensam em si mesmos. Um bando de egocêntricos! Dulce vai para a porta e, ainda assustada e hesitante, pega a maçaneta. ALBERTO (CONT.) Olhe! Este é o último take que temos dela. Um plano do lado de fora da porta mostra um close da maçaneta. A porta abre. Sobe para um close de Dulce saindo do quarto. Dulce está com um cigarro nos lábios. ALBERTO (CONT.) Nos últimos tempos, fumava sem parar. Dulce, muito nervosa, dá mais uma tragada, joga fora o cigarro e pede desculpas. Corta! O assis tente bate uma nova claquete. Close da maçaneta. ALBERTO (CONT.) Ação! Ação! Ação! A porta abre finalmente. Sobe para um assistente fazendo gestos de que Dulce não está atrás da porta. O filme termina e as luzes do teatro são acesas. ALBERTO (CONT.) É tudo. Ela nunca mais abriu aquela porta. Ela queria encontrar... outra coisa. Creio que todos nós gostaríamos de encontrar outra coisa, não é mesmo? CAIO Acho que sim. Alberto fica em pé na frente da tela branca. Alberto está chorando. ALBERTO E este também foi o fim da minha carreira como diretor de cinema. Nunca mais encontrei outro produtor que financiasse os meus projetos. Isto é só um vislumbre do que o cinema perdeu. Alberto tira a cueca de Marco Antônio do bolso de paletó e enxuga suas lágrimas. ALBERTO (CONT.) Desculpe! Só de pensar, tenho vontade de chorar. FUSÃO PARA: EXT. RIO DE JANEIRO – DIA NUBLADO O Cristo Redentor flutua sobre as nuvens contra um sol amarelo. Um avião chega ao Rio de Janeiro. CAIO (OFF) Eu quase não pensava, não sentia nada. Sabia apenas que precisava cumprir, uma a uma, feito provas, todas as etapas. Eu queria o real, um real sem nada por trás além dele mesmo, sem nenhum sentido outro, que não aquele que se pudesse ver, tocar e cheirar. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE LYLA – DIA NUBLADO Caio entra na grande sala de estar de uma cobertura em Ipanema. Tudo muito colorido e tropical. A Empregada é uma mulata com uniforme azul e touca branca, parecidos com os usados por Lyla no filme de Dulce. EMPREGADA Fique à vontade. Dona Lyla já vem. A empregada desaparece no interior do apartamento. Caio vai para as janelas olhar o mar. A empregada volta e começa a fechar as cortinas. LYLA (F.C.) Olá, meu bem. Na penumbra da sala, Lyla Van (após algumas cirurgias plásticas) entra usando enormes óculos escuros, uma écharpe no pescoço e bebendo um grande copo de suco de laranja. A empregada termina de fechar as cortinas e começa a acender os abajures. LYLA (CONT.) Naturalmente você quer saber o final de Abismo de Rosas. O Brasil inteiro só quer saber disso, meu bem. Já está gravado, mas eu não posso contar. Sinto muito, está no contrato. Estou autorizada a con-tar apenas que a Regina Duarte entrega a carta que a absolve, e não admito fotos. Lyla senta-se num sofá, arruma sua canga colorida sobre as pernas, põe o copo sobre uma mesa de centro, pega um cigarro de uma caixa de prata e fica esperando Caio acender. Caio pega um isqueiro na mesa de centro e acende o cigarro de Lyla. LYLA (CONT.) Obrigada! CAIO Não foi sobre a novela que vim falar com a senhora. LYLA (surpresa) Ah, não? Mas me chama de você, por favor. Lyla faz sinal para Caio sentar-se a seu lado. Caio senta-se. CAIO É sobre uma pessoa que você conheceu. Lyla põe a mão no joelho de Caio. LYLA Fala, meu bem. CAIO Dulce Veiga. Eu estou procurando por Dulce Veiga. As narinas de Lyla tremem um pouco. A empregada põe uma jarra com suco de laranja, uma garrafa de vodca e cubos de gelo na mesa de centro. Lyla serve. LYLA Prefere seu suco com vodca ou puro? CAIO Puro está ótimo. LYLA O meu, eu tomo com vodca. Lyla toma um gole grande de bebida. LYLA (CONT.) Não creio que possa te ajudar, meu bem. Lyla dá o copo para Caio. CAIO Quando Dulce desapareceu, vocês duas estavam fazendo um filme juntas. Lyla levanta-se e caminha pela sala como uma estrela procurando pela melhor luz e pelo melhor ângulo. LYLA Dulce tinha talento, era uma verdadeira artista, como eu. Ela foi uma idiota em largar o filme. Ela era muito fechada, nunca se sabia direito o que estava pensando. Mas aquele filme, ah que grande filme. Lyla pára ao lado de um cartaz do filme. LYLA (CONT.) Era um superpapel, o principal. Metaphora, não é um belo título, meu bem? CAIO Dulce sumiu e então você fez o papel. Lyla pega a garrafa de vodca e coloca mais vodca dentro de seu suco de laranja. LYLA O filme tinha que continuar de qualquer maneira. O diretor me ofereceu o papel dela. Eu não queria aceitar, não sei. Mas eu tava apenas começando, era uma grande chance. Uma chance de ouro, meu bem. CAIO O diretor também foi trocado. Lyla, inquieta, senta-se ao lado de Caio. A canga escorrega, mostrando as pernas firmes e bronzeadas de Lyla. LYLA Olha, meu bem. Você é um jornalista. Por que diabo vai publicar algo sobre essas coisas ultrapassadas? Eu não tenho nada a ver com o sumiço da Dulce ou o que quer que seja. Por que não deixa esses cadáveres descansando em paz? O que aconteceu foi tristíssimo, meu bem. CAIO Eu não vou publicar nada. Preciso só descobrir onde a Dulce foi parar. Lyla levanta-se novamente. LYLA Contrata um detetive, meu bem. Caio sorri, cruza as pernas e olha para seu caderno de notas, fazendo ares de detetive. CAIO Já ouviu falar da relação de Dulce com um tipo subversivo... LYLA É claro, meu bem, que já ouvi falar no pai da Márcia! Caio pula do sofá. CAIO Pai?! Da Márcia?! LYLA Se era comunista mesmo, não sei. Dizem que era quem fornecia a droga pra Dulce. Se deu mal, coitado. Também, traficante, metido a revolucionário e com a maior pinta de michê, só podia dar no que deu. CAIO Quer dizer então que Alberto... Lyla sorri, tomando conta da situação. LYLA Todo mundo sabe disso, meu bem. Claro que Alberto e Márcia, aquela mau-caráter, se encarregaram de espalhar outra história. Devem morrer de vergonha. Alberto, de ser um corno. E Márcia, uma bastarda. Gente completamente louca, gente sem classe, gentalha, meu bem. Não me admiro que a pobre Dulce tenha resolvido desaparecer para sempre. Ou se matado. Eu sempre achei que Dulce tinha cometido o suicídio. Um suicídio perfeito! Lyla ri da própria piada. Caio está furioso. Lyla acaba com a garrafa de vodca no seu copo e toca um sininho para chamar a empregada. CAIO Ela deu a você algum sinal de que estava pensando em... LYLA Não, de fato, naqueles últimos dias, ela parecia bem, parecia animada com o filme, com a filha, com a vida até. A empregada entra com uma nova garrafa de vodca. CAIO E sobre esse... pai, qual é o nome dele? LYLA Ele tinha um nome engraçado. Algo estranho. Não me lembro. Só o encontrei uma vez. Um rapagão! Eu não sei onde o Alberto encontra todas essas lasanhas. Tão sempre ao redor dele. CAIO Alberto? Lyla, bêbada e excitada, flerta com Caio, fazendo o tipo femme fatale. LYLA O tipo era amante de Alberto, meu bem! CAIO Amante?! Lyla chega mais perto de Caio. LYLA Sim, amante. Dulce descobriu tudo sobre a homossexualidade de Alberto. Tava na cara! Tremenda Jacira! Acho que ela decidiu ser amante desse – sei lá o nome – pra agradar o Alberto, pra ficar mais perto dele ou tomar de volta, quem sabe? CAIO Ela amava tanto assim o Alberto? Lyla vira de costas para Caio. LYLA (canastrona) Amor? Você diz... amor? Só se for para você. Porque para mim, para mim foi só prisão e amargura. Lyla volta a olhar para Caio. LYLA (CONT.) Desculpa! Uma das minhas falas na no-vela. Estou cheia de decorar esses textos. Ah, meu bem, a vida sexual de Dulce isso sim era um exemplo de comunismo aplicado na prática. CAIO E onde eu posso encontrar esse cara? Lyla pega Caio pela mão e puxa gentilmente para um sofá no fundo da sala. LYLA Não pode! O – seja lá qual for o nome – se me teu em mil complicações. Você sabe, na que le tempo a barra era pesada. Não é como hoje, comunista virou trouxa. Ele foi preso, apanhou muito e, quando saiu da prisão, tava meio louco. Foi parar num hospício. Lyla senta-se em um sofá segurando as mãos de Caio. CAIO Onde? LYLA Não faço a menor idéia. O tipo com certeza já tá morto, meu bem. (sedutora) Mas eu não! A porta da frente se abre e Patrícia, usando um biquíni, entra na sala, vindo da praia. LYLA (CONT.) Putaquepariu! Lyla levanta-se e se afasta de Caio. LYLA (CONT.) Querida, já pedi mil vezes pra você usar o elevador dos fundos quando voltar da praia. Não quero essa areia nojenta cheia de vermes nos meus tapetes persas. PATRÍCIA Não enche. LYLA Esta é minha filha. Patrícia estende a mão para Caio como se nunca o tivesse visto na vida. PATRÍCIA Prazer. CAIO Prazer. Patrícia desaparece dentro do apartamento. Lyla tira seus óculos escuros. Os olhos de Lyla estão vermelhos, injetados de sangue, entre as bolsas arroxeadas. LYLA Ela é muito rebelde. Temos uma relação tão difícil. Às vezes penso que Dulce é que estava certa, quando deu no pé e largou a filha no mundo. Só Deus sabe o que eu tenho sofrido com esta menina. CAIO (OFF) Como detetive, eu era, sem dúvida, um fracasso. CORTA PARA: EXT. PRAIA DE IPANEMA – TARDE NUBLADA Caio caminha, arrancando as páginas do caderno de notas e procurando por um táxi. CAIO (OFF) Minha vontade era dar por encerrada toda esta história. Eu não conhecia aquilo, nunca estivera daquele lado das coisas. Em frente, na calçada da praia, Patrícia, vestida novamente com o uniforme de Vaginas Dentatas, toma água de coco, com uma perna apoiada num banco de cimento. CAIO (OFF) (CONT.) Como Dulce Veiga, o que eu queria era encontrar... Outra coisa. Caio cruza a rua para encontrar Patrícia. O velho táxi quase atropela Caio. Dulce Veiga, no assento traseiro, sorri para Caio, com Márcia sentada ao seu lado. Caio olha o táxi indo embora. PATRÍCIA O que é que você tá fazendo aqui? Caio se aproxima de Patrícia. CAIO Eu é que pergunto: o que é que você tá fazendo aqui? Patrícia ergue o coco apontando para as janelas do apartamento de Lyla. PATRÍCIA Vim pegar energia. Tive uma briga horrível com a Márcia ontem. Patrícia joga fora o coco e imita Lyla, repuxando o rosto com as próprias mãos. PATRÍCIA (CONT.) Márcia?! Aquela bastarda, filha de um lou co e de uma maluca! Ela odeia a Márcia, não sabe que moro com ela. Acha que fico num hotel, que estudo cinema. Não se importa comigo. CAIO Ninguém se importa com ninguém, meu bem. PATRÍCIA Mas ela é minha mãe. Você não contou nada a ela, não é? CAIO Nada, não falei nada. (desafiador) Mas ela me contou tudo. PATRÍCIA Tudo e nada. Li seu livro. Caio e Patrícia caminham pela praia. CAIO A Sombra? PATRÍCIA Belo título. Bastante metafórico, não? CAIO Ah, nunca ninguém leu. Eu mesmo faço o possível pra esquecer aqueles contos. Os críticos apelidaram de à sombra. PATRÍCIA As questões básicas e o desamparo humano continuam e continuarão os mesmos de sempre. Mas o que eu não compreendo é a ausência absoluta de Jesus nas suas histórias e, provavelmente, na sua vida. Caio começa a escutar uma música vindo da praia. CAIO Ausência de quem? PATRÍCIA De Jesus, eu disse o nome de Jesus. O ho mem que morreu por nós na cruz. Para nos salvar, deu sua própria vida, seu próprio sangue. Caio, distraído, vê um piano de cauda verde colocado no meio da areia da praia. CAIO Eu agradeço. PATRÍCIA Você tem a luz. Você tem Jesus dentro de si, sempre teve. Só que Jesus está adormecido dentro da sua alma cativa. Nem você mesmo sabe disso. Caio pára de escutar Patrícia conforme eles se aproximam do piano. Apenas Caio vê o piano: Pepito, com longos cabelos negros, toca o piano e Dulce Veiga, de vestido de baile verde, canta Alguém como Tu. (José Maria de Abreu – Jair Amorim) DULCE Alguém como tu / Assim como tu / Eu preciso encontrar / Alguém sempre meu / De olhar como o teu / Que me faça sonhar. Patrícia continua falando, mas Caio escuta apenas Dulce. DULCE (CONT.) Amores eu sei / Na vida eu achei e perdi / Mas nunca ninguém desejei / Como desejo a ti. Caio pára perto do piano e sorri para Dulce. DULCE (CONT.) Se tudo acabou / Se o amor já passou / Há de o sonho ficar / Sozinho estarei / E alguém eu irei procurar. O vento sopra o longo xale verde de Dulce para o céu. DULCE (CONT.) Eu sei que outro amor posso ter / E um novo romance viver / Mas sei que também / Assim como tu / Mais ninguém. Caio começa a cantar, apenas movendo os seus lábios em sincronismo. DULCE (CONT.) Assim como tu / Mais ninguém. Um avião cruza o céu nublado da praia de Ipanema. CORTA PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – CREPÚSCULO As infinitas luzes de São Paulo no crepúsculo, com um avião chegando no aeroporto. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE CAIO – NOITE Caio, com a capa de chuva, veste a peruca loira e olha no espelho. Caio pega a bússola de marinheiro e, olhando a agulha magnética, caminha até a janela. Caio tira a pistola do bolso da capa e aponta para o prédio em frente. No apartamento vazio, a luz da sala está acesa, mas o telefone toca e ninguém atende. Na academia de ginástica, o estudante de tango imita os trejeitos de Alberto para o professor. ESTUDANTE DE TANGO Por que beijaste um homem na boca? Por quê?! Por quê?! Eles riem. A campainha da porta de Caio toca. Caio tira a peruca e a capa, joga dentro do armário e, sem camisa, procura uma camisa para vestir. A campainha toca novamente. Caio bate sua canela contra uma cadeira. CAIO Buceta! Já vou! Caio abre a porta. Patrícia, pálida e descabelada, está com um capacete de motocicleta na mão. PATRÍCIA Desculpa aparecer assim. Vim trazer seu mapa astral. Patrícia entrega o mapa para Caio. CAIO Pessoalmente?! Não precisava. Patrícia olha nos olhos de Caio. PATRÍCIA Não, mas você precisa me ajudar. CAIO Se for com a matéria, tá pronta, vai sair amanhã, já devem estar rodando, cedinho tá nas bancas. PATRÍCIA Não é isso. É a Márcia, entende? Caio volta para a janela. CAIO É claro que entendo, é sempre a Márcia. Patrícia caminha, olhando o apartamento. PATRÍCIA Ela desapareceu. CAIO Certo. E daí? PATRÍCIA Não foi no ensaio, deixou esperando um pessoal que queria gravar um negócio pra TV. Um monte de coisas, um monte de gente. Eu nem tava aqui pra ajudar. Não ligou, não disse nada. Como a mãe dela, igualzinho à mãe dela. A estréia é hoje à noite. Caio sorri, incrédulo. CAIO Olha aqui, quando eu era mais moço os artistas costumavam fazer esse tipo de coisa, chamava-se golpe publicitário. Os cantores eram assaltados, as atrizes arrebentavam a alça do sutiã nos bailes de carnaval, coisas assim. Hoje acho que se chama jogada de mídia. PATRÍCIA Não fala assim, é verdade. Márcia anda muito louca, cheirando demais, faz uns três dias que não dorme. Só fuma e cheira. De repente toda essa história sobre o desaparecimento da mãe. De repente ela resolveu fazer a mesma coisa, sei lá. Culpa sua! CAIO Eu fiz o meu trabalho, menina, não tenho culpa se... PATRÍCIA Mas foi tudo depois daquela entrevista que você fez com ela. Ela pirou. Ela não queria. Bem, isso foi culpa minha! CAIO Você já avisou a polícia? PATRÍCIA De jeito nenhum. Tem droga na roda, sujeira. CAIO Falou com mais alguém? PATRÍCIA Umas pessoas, uns amigos. Ninguém sabe nada. CAIO E por que você me procurou? PATRÍCIA Não sei. Você parece um cara legal. Márcia gostou de você, ela me disse. Patrícia aproxima-se de Caio. CAIO Ela também mexeu comigo. PATRÍCIA Pensei que ela poderia estar aqui, não sei, com você. Um jornalista deve saber o que a gente faz numa hora dessas. Caio pega o telefone. CAIO Avisa a polícia, eu acho. PATRÍCIA Não! A polícia não. CAIO Não sei o que mais eu poderia fazer. Os astros ou Jesus Cristo não vão ajudar em nada. PATRÍCIA Não brinca com esse tipo de coisa. É sério! CAIO Só me ocorre polícia, hospital, necrotério . Patrícia senta-se no sofá sob a janela, cruza as pernas e põe seu rosto entre as mãos, começando a chorar. Caio ainda está incrédulo. Patrícia olha para seu enorme relógio de mergulhador. PATRÍCIA Quase oito. Ela já devia estar no Ginger. Precisamos conferir a luz, o som, tudo. CAIO Por que não pega o telefone e liga pra lá. Ou então pro Alberto, pra mil lugares. PATRÍCIA Ela não está lá. Eu sei. Ela não vai a lugar nenhum sem mim. (hesitante) Nenhum... lugar. Caio nota a hesitação de Patrícia. CAIO (OFF) Compreendi de repente aquilo que qualquer outro menos idiota teria compreendido desde o primeiro momento. Patrícia estava apaixonada como uma louca por Márcia. No mesmo momento em que percebi isso, tive certeza absoluta de que ela escondia algo. Caio pega Patrícia pelos ombros e olha bem dentro dos olhos dela. CAIO (CONT.) Patrícia, escuta. Patrícia funga. CAIO (CONT.) Se você confia mesmo em mim, é melhor contar logo tudo. Se não nós vamos fi car aqui parados, olhando a cara um do outro até amanhã de manhã. E não vai acontecer nada. O máximo que eu posso fazer é pedir uma pizza, umas cervejas e botar um som. PATRÍCIA Certo. CAIO Certo o quê? PATRÍCIA Eu confio em você. CAIO Então conta tudo. Patrícia se solta de Caio e pega seu capacete. PATRÍCIA Vou indo. CAIO Vai onde? Patrícia veste o capacete. PATRÍCIA Acho que sei onde ela está. Caio agarra o braço de Patrícia. CAIO Onde?! PATRÍCIA Não posso contar, eu prometi. CAIO Conta! Patrícia tenta se soltar das mãos de Caio. PATRÍCIA Se contar, Márcia me manda embora. Caio tira o capacete de Patrícia. CAIO Conta logo tudo o que você sabe. PATRÍCIA Eu não posso viver sem ela, entende? Patrícia soluça alto. Caio solta Patrícia. CAIO Entendo. Patrícia vai para a porta e pára. PATRÍCIA (sussurrando) Uma casa, uma casa muito velha no Bom Retiro. Acho que é uma pen são, um cortiço. Márcia tem ido lá. Uma vez eu a segui. CAIO Quem mora lá? (gritando) Quem mora lá, Patrícia? PATRÍCIA Eu não sei, eu não vi, eu não entrei. Fiquei só na rua, espiando, só uma vez. Márcia descobriu e me fez prometer que não faria isso nunca mais. Que não contaria para ninguém. Que era um segredo, ela disse, um segredo horrível. Caio abre o armário e pega a capa de chuva. PATRÍCIA (CONT.) (gaguejando) Você acha, você acha que... Caio tira a pistola do bolso da capa. CAIO Só pode ser. Só pode ser ela! FUSÃO PARA: EXT. CORTIÇO – NOITE Uma velha e grande mansão transformada em cortiço. A névoa da noite lembra o rosto de Dulce Veiga. Caio chega na garupa da motocicleta de Patrícia, que pára na frente de um portão enferrujado. Caio desce e abre o portão. Ervas daninhas brotam das gretas do caminho de cimento manchado de umidade que leva até os degraus de um terraço com um sofá de plástico laranja e uma pintura de Iemanjá atrás, ao lado de uma porta verde entreaberta. Caio sobe os degraus e pára em frente a Iemanjá. Caio vira-se para Patrícia, ainda sentada na moto. CAIO Você não vem? PATRÍCIA Vai você. Caio tira a bússola do bolso da capa e entra na casa. CORTA PARA: INT. CORTIÇO – CORREDOR – NOITE Um corredor estreito leva para uma escadaria. Não há ninguém à vista. Caio sobe a escada ria olhando a agulha magnética da bússola e encontra outro longo corredor, com números pintados de branco nas portas. Uma lâmpada pendurada num fio pende do teto de madeira. Por trás de uma das portas, uma criança começa a chorar. Quase no fim do corredor, uma porta tem o número oito e é de onde vem o som de uma música: a gravação de Dulce Veiga de Meditação. Caio caminha até a porta, pega também a pistola e leva a mão ao trinco. CORTA PARA: INT. CORTIÇO – QUARTO – NOITE Um trinco antigo, de metal. Caio, hesitante, abaixa o trinco e, sem ruído, abre a porta. A poltrona de veludo verde está no centro do quarto com as costas viradas para a porta. A cabeça de uma mulher loira aparece no topo da poltrona, caída contra uma das asas. Caio não pode ver o rosto, apenas a cabeça, parte dos ombros e um braço. Márcia, ajoelhada aos pés da mulher, massageia o braço e segura uma seringa. A mulher retorcese na cadeira, abrindo e fechando a mão até que a veia salte, estufada. Márcia lentamente se dobra sobre o braço da mulher e espeta a agulha na veia. A mulher pára de debater-se. Márcia pressiona a seringa, injetando o líquido. Caio olha ao redor, parado na porta. Além da poltrona verde, o quarto também tem uma cama de ferro antiga com lençóis encardidos, embolados, e um guarda-roupas de porta aberta , mostrando vestidos fora de moda, écharpes em frangalhos, sapatos e chapéus. Na cabeceira da cama de ferro, um quadro ao estilo de Andy Warhol de Dulce com o vestido de baile verde. Ao lado de uma janela fechada, sobre uma penteadeira, entre algumas maçãs, potes de creme e vidros de perfume, um toca-discos portátil toca o disco de Dulce Veiga. A parede ao lado de Caio é totalmente coberta com os quadros de fotografias de Dulce. DULCE (F.C.) Este é o altar-mor do meu ego! Caio se assusta e olha para a poltrona. Márcia puxa a seringa e uma gota de sangue espirra no ar. Márcia começa a desinfetar o braço da mulher com algodão e o algodão fica vermelho de sangue. Márcia apanha outro chumaço e comprime contra a veia. Os cabelos loiros da mulher balançam sobre o braço nu. Caio deixa cair a bússola, que rola até Márcia, que vê Caio e, apavorada, deixa cair a seringa no chão. Caio entra no quarto e circula a poltrona. CAIO (OFF) Foi tudo tão rápido, tão confuso, que mal consegui organizar as lembranças na memória, sem saber o que veio antes, du rante ou depois. Nem sei como tinha esquecido tudo aquilo, mas também não sei o jeito certo, se existe um, de lembrar. Caio olha para o rosto da mulher, apontando a pistola. CAIO (CONT.) How dare you! CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – SALA – NOITE FLASHBACK: Vinte anos antes. O mesmo apartamento de Dulce de antes, só que agora bem menor, apertado e claustrofóbico. Cortes rápidos e nervosos. Uma agulha repete sem parar a mesma frase de um disco riscado de Meditação. Caio (de cabelos curtos) está no hall de entrada do apartamento olhando a parede de fotografias. Na sala pequena, a poltrona de veludo verde está com as costas viradas para Caio. Caio vê apenas os cabelos loiros de Dulce, caídos e despenteados, parte do ombro e o braço nu segurando um cigarro. Ao lado da poltrona de Dulce, uma mesinha com, entre maços de cigarros e alguns papéis, várias ampolas, gaze, algodão e um frasco de álcool. No fundo da sala, na penumbra, há um piano de cauda verde e, na parede ao lado, iluminado por um foco de luz, o quadro de Dulce com o vestido de baile verde. A pequena Márcia, usando uma maquiagem de adulto e um longo colar de pérolas no pescoço, sai da escuridão, brincando com uma seringa vazia. DULCE (F.C.) Raudério! Raudério! Raudério entra vindo de um corredor. RAUDÉRIO Um segundo, querida. (para Caio) Alberto já vem. DULCE (F.C.) Olhe a menina, por favor. Raudério pega a seringa das mãos de Márcia. Alberto entra sorrindo, pega Caio pelo braço e o empurra para dentro do corredor. ALBERTO Venha comigo! CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – CORREDOR – NOITE FLASHBACK: Alberto puxa Caio por um pequeno corredor. ALBERTO Não trouxe o fotógrafo? Não faz mal, eu tenho um monte de fotos minhas, todas ótimas. Alberto indica uma porta aberta para um quarto. ALBERTO (CONT.) Entre, por favor. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – QUARTO – NOITE FLASHBACK: O quarto tem a mesma cama de ferro antiga, o guarda-roupas e a penteadeira do cortiço. ALBERTO Me perdoe. Toda essa bagunça. Dulce tem tomado alguns remédios. Ela não tem se sentido bem. Alberto aponta para a penteadeira. ALBERTO (CONT.) Sente-se aqui, por favor. Caio senta em frente à penteadeira e abre seu caderno de notas. O telefone ao lado da cama toca. ALBERTO (CONT.) Um segundo! Alberto volta para a porta. ALBERTO (CONT.) (gritando) O telefone, atenda por favor! Alberto fecha a porta. ALBERTO (CONT.) Agora sou todo seu! Alberto senta-se na cama. ALBERTO (CONT.) Mais do que nunca, preciso do apoio da im prensa. A decisão de me tornar um dire tor de cinema é sem dúvida a mais impor tante de minha vida, mas, você sabe, um artista não é ninguém sem os meios de comunicação pra divulgar seu trabalho. A pequena Márcia abre a porta e entra no quarto, como se estivesse brincando. PEQUENA MÁRCIA Os homens estão vindo! Os homens estão vindo! ALBERTO Homens, que homens, queridinha? Raudério entra apressado. RAUDÉRIO Os homens estão vindo me prender. Alberto levanta-se. ALBERTO Aqui?! Oh, meu Deus! Você tem que fugir! Já! Alberto olha para Caio. ALBERTO (CONT.) Me perdoe. Problemas de família. Será que podemos continuar a entrevista mais tar-de? Mil perdões. Volte depois, por favor. Raudério abre o guarda-roupas e pega uma vali se grande. Caio permanece sentado, imóvel com seu caderno de notas na mão. Raudério caminha de um lado para o outro, jogando roupas e livros dentro da valise. RAUDÉRIO Não há tempo, nem um minuto. Preciso fugir, urgente. A pequena Márcia brinca de pular na cama. PEQUENA MÁRCIA Os homens estão vindo! Os homens estão vindo! Alberto vai para a janela e olha para fora por trás das cortinas. ALBERTO Tudo parece absolutamente normal. RAUDÉRIO Eles estão de tocaia. Um companheiro aí da frente acabou de ligar. Tenho que sair disfarçado. Raudério vira-se para Caio. RAUDÉRIO (CONT.) Você precisa ir. Desculpe. Eu preciso ir também, antes que os homens cheguem. Raudério repara em uma das perucas de Dulce sobre uma cabeça de madeira, atrás de Caio. Raudé rio pega a peruca e coloca sobre a cabeça de Caio. DULCE (F.C.) Raudério! Raudério! RAUDÉRIO Você correria o risco? Caio permanece imóvel, olhando para Rau dério , que pega uma tesoura e começa a cortar a peruca. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – SALA – NOITE FLASHBACK: Caio, com a capa de chuva e a peruca loira, vestido como Raudério, volta para a sala, empurrado por Raudério, usando uma camiseta cavada e com a camisa de Caio na mão. Uma vitrola toca Meditação. Dulce está com a cabeça afundada entre as asas da cadeira. Caio vê apenas as longas e finas mãos, com esmalte vermelho, e o braço nu, com um torniquete, esticado sobre o veludo verde. Uma seringa vazia está na mão de Dulce e um fio de sangue escorre pelo braço. A seringa cai no chão e quebra. DULCE (F.C.) Raudério! Dulce tenta levantar-se da cadeira. Raudério abre a porta da frente e puxa Caio para o hall do elevador. CORTA PARA: INT. APARTAMENTO DE DULCE – HALL DO ELEVADOR – NOITE FLASHBACK: Raudério chama o elevador e entrega uma valise vazia e a pistola para Caio. RAUDÉRIO Pra se defender. Raudério põe as mãos nos ombros de Caio. RAUDÉRIO (CONT.) Toma cuidado. DULCE (F.C.) Raudério! Raudério aponta com a cabeça para Dulce. RAUDÉRIO E, por favor, não conte a ninguém o que você viu. Dulce Veiga é a melhor de todas, do mundo inteiro. CAIO Eu sei. Raudério olha fundo dentro dos olhos de Caio. RAUDÉRIO Como posso expressar minha gratidão? Raudério beija gentilmente os lábios de Caio. Um elevador de porta de grades chega. Raudério empurra Caio para dentro do elevador e fecha a porta. Caio aperta o botão do elevador e o elevador desce. Caio passa os dedos nos seus lábios. CORTA PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – NOITE FLASHBACK: Caio, olhando assustado ao redor , sai do edifício e caminha para longe com a valise . CORTA PARA: EXT. RUA ESCURA E PRAÇA – NOITE FLASHBACK: Caio vira numa rua escura e quatro homens de terno surgem caminhando em sua direção. Caio começa a correr. Os homens correm atrás. Caio tenta fugir por uma praça deserta. Um dos homens atira em Caio e acerta seu ombro. Caio tenta tirar a pistola do bolso com o braço ferido. Os homens acertam um tiro de raspão na cabeça de Caio, arrancando a peruca e depois outro na perna, derrubando-o no chão. Os homens chegam e dois deles levantam Caio. HOMEM Não é ele! O homem agarra Caio pelo cabelo e o outro dá um soco na barriga de Caio. Um homem abre a valise vazia. OUTRO HOMEM Cadê o viado? Ainda tá no apartamento daquela puta? CAIO Sou repórter! Não sei de nada! Os homens soltam Caio, que cai ensangüentado no chão. Três homens correm de volta e um deles se aproxima do rosto de Caio. OUTRO HOMEM Não sabe, é? Sua bicha escrota! Vai apanhar até ficar sabendo! Os homens chutam o rosto de Caio, que vai ficando deformado e vermelho de sangue. FUSÃO PARA: INT. CORTIÇO – QUARTO – NOITE O sangue some aos poucos do rosto de Caio, refletido no espelho da penteadeira. Caio vira e aponta a pistola para a poltrona verde. CAIO Raudério? Raudério geme. Caio olha para Raudério (agora um cinqüentão), que é a pessoa sentada na poltrona verde. Raudério usa um vestido de seda amarelo, sapatos de salto alto, unhas pintadas de branco, um colar de pérola e os cabelos loiros exatamente iguais aos de Dulce Veiga. Raudério olha em frente com um olhar fixo e um sorriso crispado, as pernas abertas e os dois braços de veias machucadas, largados sobre o veludo verde. Márcia, perfeitamente calma, caminha até a penteadeira e desliga a vitrola. MÁRCIA Você o conhece? CAIO Eu o vi uma vez. Há muitos anos, no apartamento de sua mãe. MÁRCIA Eles eram muito... Eles eram muito amigos, Raudério e mamãe. Raudério geme toda vez que escuta seu nome. CAIO Raudério? Este é o nome dele!? MÁRCIA Nome engraçado, não é? CAIO Mas é o nome verdadeiro, Raudério? MÁRCIA É. A mãe deve ter escutado em alguma droga de filme americano e pensou que era um nome. Patrícia aparece na porta. Márcia, agressiva, põe a mão na cintura. MÁRCIA (CONT.) Você é mesmo uma idiota, tinha que con-tar coisas da minha vida ao primeiro desconhecido. Eu avisei que se fizesse isso, você podia arrumar as malas e dar o fora. PATRÍCIA O nosso show, a estréia. (lamurienta) Achei que era importante para você, só queria ajudar. MÁRCIA Há anos que você sempre quer me ajudar, e acaba atrapalhando tudo. Me faz um favor: não tente nunca mais me ajudar. Eu quero quebrar a cara sozinha, meu amor. Ultimamente eu tenho feito isso muito bem. Márcia, de repente, começa a chorar e joga-se na cama, com o rosto enfiado nos lençóis encardidos . Iracema (uma linda e morena mulher de cabelos lisos de índia) aparece na porta, embalando nos braços uma criança. IRACEMA O que foi, dona Márcia? Tá tudo bem aí com o seu Raudério? Raudério geme. Iracema ri e se aproxima de Raudério. IRACEMA (CONT.) Ele é gozado, não gosta que a gente chame ele de seu Raudério. Fica uma onça, só falta morder. Gosta que a gente diga Dulce Veiga, não sei por quê. Márcia levanta-se, parando de chorar. MÁRCIA Não foi nada, dona Iracema. IRACEMA Dulce, Dulce Veiga. Tudo bem, Dulce Veiga, tudo azul. A senhora está tão bonita hoje, dona Dulce. MÁRCIA Vamos embora. Eu tenho que cantar. Caio agarra o braço de Márcia. CAIO Você tem que explicar uma porção de coisas. MÁRCIA Não tenho que explicar nada, porra. Não se meta na minha vida. Caio pega Márcia pelo pescoço e olha bem dentro dos olhos dela. CAIO Acontece que é a minha vida também. Tanto quanto a sua! E eu preciso saber. Márcia relaxa de repente. MÁRCIA Está bem. Márcia tira a mão de Caio mansamente e, então, o empurra, sem raiva. MÁRCIA (CONT.) Depois, depois do show. Me procura no Ginger, a gente conversa. Márcia beija a testa de Raudério. Patrícia se apro xima de Caio. PATRÍCIA Quem é esse homem? É um homem, não é? MÁRCIA Se ele passar mal, dona Iracema, a senhora me liga. Qualquer hora, a senhora sabe onde me encontrar. Iracema acaricia a testa de Raudério. IRACEMA Você está linda, Dulce Veiga. Em toda a minha vida nunca vi a senhora tão bonita como hoje. Márcia corre pelo corredor. CORTA PARA: INT. BOATE – BAR – NOITE Uma boate parecendo uma enorme caixa preta com um néon roxo atrás do bar com as palavras: Ginger & Freud. No palco, em um dos cantos da boate, Márcia canta usando uma maquiagem branca com sombra preta nos olhos. Punks, darks, skinheads, góticos, junkies, gays, travestis, replicantes, yuppies e clones fabricados em série, todos de preto ou roxo, correntes, crucifixos, venda nos olhos, tatuagens, cabeças raspadas, descoloridas, arrepiadas como cristas geométricas, assimétricas, tingidas de verde, vermelho e violeta. Telas de vídeo por todos os lados reproduzem a imagem de Márcia terminando de cantar Medi tação. A platéia aplaude e dança. Márcia repara em Caio, todo vestido de branco, sentado no bar. O show termina. As luzes apagam. O público aplau de e bate palmas. PÚBLICO Por-que-parou-parou-por-quê! As luzes do palco acendem novamente. Márcia e as Vaginas voltam e Márcia, entre gritos e aplausos, pega um violão, senta num banquinho e puxa o microfone. MÁRCIA Minha mãe, Dulce Veiga, era uma grande cantora. Há muitos anos ninguém sabe onde ela anda. Ela deixou alguns poemas, entre eles este, que eu musiquei. Onde quer que ela esteja, dedico a ela esta canção. Chama-se Poltrona Verde. Márcia começa a cantar com uma voz macia, bem perto do microfone, em ritmo de bossa nova. MÁRCIA (CONT.) Aqui sentada, abandonada / Contemplo o mundo imundo / O tudo e o nada. As Vaginas olham entre si, desconcertadas, e começam a improvisar um acompanhamento para Márcia. MÁRCIA (CONT.) Assim perdida, alucinada / Sobre o veludo verde / Desta poltrona, apaixonada / Por tudo e nada. Metade do público está perplexa com a traição ao heavy metal. Caio repara em Oxumaré, encos tado perto de uma porta preta, ao lado do palco. MÁRCIA (CONT.) Navego em sedas / Me perco em mares / Eu tão distante do mar da vida / Farta de amores, cheia de bares. / Aqui sentada, incendiada / Contemplo o mundo tão vagabundo / O nada e o tudo. Caio aproxima-se de Oxumaré. OXUMARÉ Aroboboi! A porta abre e Castilhos sai dos bastidores do palco. CAIO Você por aqui? CASTILHOS Vim trazer a matéria. CAIO Pra Márcia? CASTILHOS Em primeiríssima mão. CAIO Ordens do todo-poderoso? Márcia continua a cantar e fica triste ao reparar que Caio está prestando atenção em Castilhos. CASTILHOS Eu pedi que elogiasse a moça, mas nem tanto. Parece até uma declaração de amor! CAIO Tentei ser imparcial. CASTILHOS Deu pra notar. Primeiro elogiou demais a moça, pra depois poder meter o pau na banda, no visual, na postura machona, na atitude agressiva. Tive que cortar. CAIO Você mexeu no meu texto?! CASTILHOS Só no que estava muito ambíguo. Pra isso que sou editor, meu rapaz. CAIO Pára de me chamar de rapaz! CASTILHOS Então cresça, garoto! Castilhos e Oxumaré vão embora e Caio olha para Márcia, que está terminando de cantar. MÁRCIA Veias feridas, aqui parada / Quase afogada na lama verde / Veludo mudo, poltrona vida / Única amiga da longa estrada / Que me aceitou e me deixou / Aqui sentada, iluminada / Contemplo o mundo / O mal, o bem / O tudo, o nada / E o mais além.” Márcia termina de cantar e o público, principalmente Caio, aplaude. Márcia, muito segura, caminha até a beira do palco e, sorrindo, estende a mão para Caio. MÁRCIA (CONT.) Vem cá, vamos conversar. Caio pega a mão de Márcia e sobe no palco. CORTA PARA: INT. BOATE – BASTIDOR – NOITE As três Vaginas Dentatas cercam Márcia gritando e ameaçando, todas falando ao mesmo tempo. A japonesa balança no ar, o baixo elétrico. JAPONESA Traição, traição. NEGRA Que merda é essa de Dulce Veiga? Era hora do bis e não de cantar música inédita! GORDA Só você que quer aparecer, é? Sua naja! Márcia entra no camarim, puxa Caio para dentro e bate a porta. CORTA PARA: INT. BOATE – CAMARIM – NOITE Márcia tranca a porta, tira a blusa e enrola-se numa toalha. As Vaginas batem na porta. Márcia encontra sobre a mesa de maquiagem a edição do Diário da Cidade com sua entrevista: uma página inteira com o título Meditando sobre Márcia F. A foto colorida de Márcia mostra uma das asas da borboleta entre os seios, na blusa desabotoada. Batem forte e gritam atrás da porta. Caio encosta na porta. CAIO Vão derrubar a porta. MÁRCIA Podem derrubar. Sei muito bem como lidar com essa gente. CAIO Você quer que eu abra? MÁRCIA (DESAFIADORA) Se você quiser. Pra abrir uma porta, basta virar a chave. Caio se aproxima de Márcia. Márcia termina de ler o texto, acaricia o rosto de Caio e senta-se. MÁRCIA (CONT.) Muito bom! Márcia sorri e bebe no gargalo de uma garrafa de água. MÁRCIA (CONT.) Mas não precisava ser tão duro com as meninas. Caio senta-se na frente de Márcia. CAIO Gostei da Poltrona Verde, é sua melhor música. MÁRCIA Mamãe deixou alguns poemas. Estou colocando música, talvez um dia faça um disco inteiro só com essas canções. Cantei só pra você, mas você nem escutou, preferiu ficar falando com o idiota do seu chefe. CAIO O que o Castilhos tava fazendo aqui? Márcia mostra o jornal. MÁRCIA Ser ou não ser hoje, é uma questão de mídia. CAIO Por isso não me contou nada sobre o Rau dério? Também sou uma questão de mídia? Márcia vira o resto da água na própria cabeça. MÁRCIA Você o viu, não viu? Naquele estado, é melhor mesmo que ninguém saiba que está vivo. Minha mãe ama... Amava aquele homem. Márcia apanha uma toalha e começa a passá-la pelo rosto, tirando a maquiagem. CAIO Eu sei. E você também o ama. MÁRCIA Eu cuido dele. Pra mamãe. Ele foi torturado. Não era assim. Era como um sol dourado, cheio de vida, de ideais, de utopia. Ela... ele ainda fala disso toda hora. Quem ainda acredita em utopia?! Márcia começa a procurar algo em uma bolsa, tira um pacotinho de papel vegetal e vira o conteúdo em cima da mesa. MÁRCIA (CONT.) Minha mãe não podia continuar cantando, impotente, abandonada, sem poder fazer nada por ele. Sumiu! Quando depois ele foi solto, era um trapo, não tinha ninguém no mundo. Ainda por cima era... Viado. Ah, você não ia entender! CAIO Entendo sim. Eu sei mais do que você pensa, Márcia. Márcia olha nos olhos de Caio. MÁRCIA Sabe como? Você também é? Caio hesita e toca seus lábios. CAIO Eu? MÁRCIA É, você gosta de homem? Os iguais em geral se reconhecem. CAIO Eu gosto de você. Márcia, fingindo não ter escutado, começa a esmigalhar os grãos brancos com uma pequena espátula pontuda. Caio repara numa arara dourada no cabo da espátula. MÁRCIA Acho que ninguém sabe direito, com certeza absoluta. Às vezes eu, Patrícia, você sabe. Deve ser mais confortável fingir que se sabe, não é? Você delimita. Caio acaricia a borboleta no peito de Márcia com os dedos. CAIO É, delimita. Afinal, quem entende o que é isso que, independente da razão, meio compulsivo, ou magnético, sei lá, que atrai ou repele as pessoas? MÁRCIA Do que você tá falando, cara? CAIO Do que eu estou sentindo. Por você, Márcia. Márcia levanta-se, vai até a porta e vira para Caio. MÁRCIA Será que você não enxerga? Eu gosto de mulher! Caio levanta-se. CAIO E daí? Não me importo. Eu gosto de você assim! Caio chega e encosta Márcia contra a porta. CAIO (CONT.) Quer dizer que eu sou do seu tipo... de homem? Caio dá uma gargalhada. CAIO (CONT.) Até isso eu gosto em você. Uma forte batida na porta. PATRÍCIA (F.C.) Márcia! Sou eu, Patrícia! Iracema ligou! Márcia vira e abre a porta. MÁRCIA Já disse a você que não... PATRÍCIA Escuta! Iracema acabou de ligar dizendo que ele tá muito mal. Quebrando tudo, chamando feito louco por você. As três Vaginas Dentatas e uma multidão de pessoas, todas falando ao mesmo tempo, invadem o camarim, empurrando Caio para o fundo. Alguém abre uma garrafa de champanhe. Márcia veste sua jaqueta. JAPONESA Não vai ficar conosco? A festa! MÁRCIA Não posso! NEGRA É nossa festa, sua egoísta de merda! Caio pega o braço de Márcia. CAIO Se você quiser ficar, eu vou por você. MÁRCIA Você não entende. Eu tenho que pegar a herô. A multidão fica excitada. MULTIDÃO Nós também! Patrícia, enciumada, chega perto de Márcia. PATRÍCIA Eu vou com você. MÁRCIA Não! Suma da minha vida! (para Caio) Vocês dois! Você volta pro seu jornal! É melhor assim. (para Patrícia) E você volta pra sua mãezinha querida! Márcia sai correndo do camarim. Patrícia, chorando, cheira a cocaína de Márcia. Caio pega a espátula com a arara, sorri e, discretamente, começa a sair do camarim. FUSÃO PARA: EXT. RUAS DE SÃO PAULO – NOITE O táxi de Caio segue o de Márcia através do labirinto de ruas vazias de São Paulo. CAIO (OFF) O motorista me olhou como se eu estivesse completamente louco quando eu disse Siga aquele táxi!. Precisei repetir três vezes; vezes demais para um clichê. Caio, com a espátula de Márcia na mão, segue a rota do táxi de Márcia. Caio olha para fora e o velho táxi de Dulce está passando ao lado. Dulce olha para Caio e sorri. CAIO (OFF) (CONT.) Siga aquele táxi! Desejei por um momento que aquilo que eu estava pensando não fosse verdade, desejei que o táxi de Márcia de repente virasse à esquerda e seguisse sempre em frente até uma favela, parasse numa transversal suspeita, alguma casa desconhecida; ou então que o táxi continuasse direto para a periferia, onde ela pegaria a droga na própria casa, quem sabe escondida atrás de um pôster da Janis Joplin. Mas, como eu desconfiava, quando ainda podia seguir reto, pegou o caminho da direita, tomando o rumo da cidade, parando em frente à entrada de um lugar que já estava se tornando muito familiar para mim. O táxi de Márcia pára na frente da entrada do edifício do Diário da Cidade com a arara de néon azul brilhando na fachada. Márcia sai do táxi e entra no prédio. CORTA PARA: INT. ESCRITÓRIO DE RAFIC – HALL DO ELEVADOR – NOITE A porta do elevador abre e Caio sai justo quando Teresinha termina de fechar a porta branca. TERESINHA O que você tá fazendo aqui a esta hora? Caio vai direto para a porta branca. Teresinha tenta impedir Caio de abrir a porta. TERESINHA (CONT.) Não! CAIO Eu quero ver o chefão! A maçaneta não abre. Caio olha para a câmera de TV de circuito fechado sobre a porta. TERESINHA Ele não tá aí. CAIO E o que é que a Márcia tá fazendo aqui? TERESINHA Você não entenderia. CAIO Estou certo disso. Mas por que você não tenta? Teresinha vai chamar o elevador. TERESINHA Você nunca se sentiu culpado, Caio? CAIO Culpado do quê? TERESINHA De algo, de tudo. CAIO E de nada? É só uma canção? TERESINHA A canção de Dulce Veiga. Foi você quem começou a cantar. CAIO Acontece que eu não sei cantar... Teresinha olha para a câmera de TV. A porta do elevador abre e Teresinha entra. CORTA PARA: INT. ESCRITÓRIO DE RAFIC – ELEVADOR – NOITE Caio entra atrás de Teresinha e a porta fecha. CAIO E tudo por aqui me parece muito desafinado. O que Márcia tem a ver com o Rafic? TERESINHA Quer mesmo saber? CAIO Quero! TERESINHA A Márcia é filha de Rafic. CAIO O quê?! Filha? Você tá louca? É só mais uma fofoca de colunista social, é? Quantos pais têm essa garota? TERESINHA Alberto sabe. CAIO E quem mais sabe? TERESINHA Pra responder a esta pergunta foi que o Rafic te contratou, querido. Um candidato à eleição não pode ter nenhum rabo pre-so no seu passado. Sabe como é, na hora da campanha a oposição é capaz de le van tar qualquer podre que tenha ficado escondido por aí. Ainda mais se esse podre se chama Dulce Veiga. CAIO E do que o Rafic é culpado? De sumir com a Dulce? TERESINHA Não de sumir com ela, isso não, mas ele comprou este jornal, vinte anos atrás, com o propósito de destruir a carreira da Dulce, de acionar toda a imprensa contra ela, caso ela abrisse a boca sobre Márcia e tantas outras coisas. Não foi preciso; Dulce sumiu no ar e deixou o Rafic curtindo até hoje a sua culpa. Tem seu lado trágico, não tem? Caio tem um sorriso furioso nos lábios. CAIO Não se eu conseguir encontrar a Dulce Veiga! CORTA PARA: INT. CORTIÇO – CORREDOR – NOITE A porta do elevador abre para o corredor do cortiço. Caio sai pelo corredor. A porta de Raudério está fechada. Caio hesita antes de abrir. CORTA PARA: INT. CORTIÇO – QUARTO – NOITE Caio abre a porta. O quarto está destruído. Raudério soluça alto, jogado sobre a cama, com um robe de seda. Iracema está sentada na beira da cama, repetindo consolos inaudíveis, passando a mão na cabeça de Raudério. Iracema se sobressalta quando Caio entra no quarto. IRACEMA Ah, achei que fosse dona Márcia. CAIO Dona Márcia já vem. Caio chega perto da cama. IRACEMA Acho bom ela vir logo. Já faz tempo que liguei pra boate. Eu também não posso ficar aqui o tempo todo. Tenho a minha vida pra cuidar. CAIO Pode ir, dona Iracema, eu cuido dele. IRACEMA Dona Márcia falou que não era pra deixar ele sozinho com ninguém mais, a não ser eu. CAIO Pode ir. Ela vai chegar logo. Iracema sai e fecha a porta. Caio toca o ombro de Raudério. CAIO (CONT.) Raudério. Raudério grita, levanta-se e vai para um canto do quarto. CAIO (CONT.) Dulce, Dulce Veiga. Raudério sorri e mostra seus dentes escuros, man cha dos de cigarro, roídos de cáries. CAIO (CONT.) Onde está Dulce Veiga? Raudério grita de novo e geme. Caio se aproxima. CAIO (CONT.) Dulce, Dulce Veiga, lembra-se dela? Ela gostava tanto de você, você também gostava dela. Eu também gosto de você, eu também gostava dela. Onde ela foi parar? Caio acaricia a cabeça de Raudério. RAUDÉRIO Onde, onde ela foi parar? CAIO Ela morreu? RAUDÉRIO Não, ela não morreu. CAIO Mas onde, então, onde ela foi parar? RAUDÉRIO Onde, onde ela foi parar? CAIO Muito longe daqui. RAUDÉRIO Muito, muito longe daqui. CAIO Me diga onde. Eu vou buscá-la. RAUDÉRIO Você vai buscá-la. CAIO Vou, eu vou buscá-la pra você. RAUDÉRIO Pra mim. CAIO Para você, eu prometo. RAUDÉRIO Promete de novo. CAIO Prometo, eu prometo sim. RAUDÉRIO Então me beija. Raudério fica olhando Caio dentro dos olhos, com a boca aberta. Caio passa a mão em torno dos ombros de Raudério. Raudério fecha seus olhos e Caio também fecha os seus e beija Raudério. Raudério, feliz, sorri para Caio e senta-se na poltrona verde. Raudério enfia a mão dentro da poltrona e tira a bússola de marinheiro. Caio aproxima-se e acaricia a cabeça de Raudério. CAIO Onde andará Dulce Veiga? Raudério toca o assento da poltrona. RAUDÉRIO Aqui. Raudério tira um maço de cartas de dentro da poltrona e, entre elas, um velho cartão-postal com a imagem de uma floresta verde, assinalado com uma estrela de seis pontas. Caio pega o cartão-postal. Raudério olha a agulha magnética da bússola. RAUDÉRIO (CONT.) Ao norte. Bem no centro da estrela. Caio repara no carimbo de correio da Estrela do Norte. Márcia, muito excitada, entra no quarto e olha nervosa para Caio. MÁRCIA O que é que você tá fazendo aqui?! Pos so saber?! Como chegou aqui?! Que direito tem você de entrar neste quarto? De querer foder com a minha vida? Foda-se você! Volta pro seu jornalzinho de merda! CAIO Acabei de chegar de lá! MÁRCIA Você me seguiu?! Caio olha para Márcia, que começa a se preparar para aplicar a droga no braço de Raudério, enquanto desabafa. MÁRCIA (CONT.) Quem você pensa que é, hein, seu bosta?! Jornalista! Da imprensa! Blasé! Sempre com sua superioridade e distanciamento e imparcialidade. No cu! Estou me lixando pros seus elogios e críticas em papeljornal. Amanhã já vão estar embrulhando peixe na feira. Caio, com o maço de cartas na mão, começa a olhar a si mesmo no espelho quebrado da penteadeira, completamente estático. Márcia coloca o torniquete em Raudério e prepara a seringa. MÁRCIA (CONT.) Pensa que sabe tudo, não é? Que é o dono do mundo, que pode fazer e desfazer da vida, da arte dos outros, sem culpa nem ética. Aposto que é capaz de ficar horas discursando sobre as bases da ética – a ética do cacete, é claro! Intelectual! Filho da puta escondido atrás dos óculos. Metido a sério. Brocha, mas muito moderno e bem informado. É isso que você é! Com seu sarcasmo, seu humor ácido e corrosivo! Márcia injeta o ácido na veia de Raudério. MÁRCIA (CONT.) Acredita que isso te dá o direito sobre todos os pobres mortais, fazendo ironias e piadinhas espirituosas, apontando os podres da humanidade pra encher laudas, vender jornal e ganhar a vida. E que vida! Raudério geme e balança a cabeça até voltar a ficar tranqüilo e sorrir. Márcia, ao ver o maço de cartas na mão de Caio, o pega e joga contra a parede. MÁRCIA (CONT.) Conheço bem as palavras que te perseguem: escritor frustrado, incompreendido, ressentido, inseguro, supérfluo, descartável, invejoso de quem é artista, e que tem o que dizer, o que expressar. Caio abre a boca, como se fosse dizer alguma coisa, e pára. MÁRCIA (CONT.) E ainda vem querendo me cantar, o bofe. Não tem vergonha? Por que você não arruma logo um macho de verdade? É isso que você quer, não é? Um macho caralhudo! Aposto que sempre quis, só que não tem coragem de assumir. Que é que vão dizer? Prefere ficar aí, parado, fingindo que é homem, só porque tem culhões. Vai dar logo o cu, viado, e vê se não se mete mais na vida dos... Caio, tomando uma atitude, pega Márcia pelos braços e beija os lábios de Márcia, com ternura e tesão. Caio sai do quarto às pressas e deixa Márcia totalmente sem voz. FUSÃO PARA: EXT. FLORESTA AMAZÔNICA – DIA O cartão-postal da Amazônia se transforma no incrível e gigantesco tapete verde da Floresta Amazônica e um hidroavião voa sobre a floresta . CORTA PARA: INT. HIDROAVIÃO – DIA Caio está com o cabelo cortado bem curto e podemos ver a feia cicatriz do tiro em sua cabeça. Da hélice do hidroavião surgem girando jornais com as manchetes (e fotos): Dulce está de volta! (Dulce de braços abertos), Dulce Veiga apóia Rafic para Governador (Dulce e Rafic num palanque), Márcia e Dulce cantam juntas (Dulce e Márcia, ambas com maquiagem punk) e Esta é a sua Vida, Dulce Veiga. FUSÃO PARA: INT. AUDITÓRIO – NOITE Dulce está no bastidor de um programa de auditório ao vivo, atrás de uma porta fechada. Dulce espera por sua hora de entrar no palco. Dulce está nervosa, hesitante e insegura. APRESENTADOR DE TV (F.C.) Ela não é apenas uma de nossas melhores cantoras e atrizes, mas a mais elegante, a mais dramática, a mais misteriosa e abençoada com uma voz que consegue dar forma a qualquer sentimento. E é linda , tão linda. Vocês já estão adivinhando de quem eu estou falando, não estão? Não? Uma assistente se aproxima de Dulce e a olha de cima a baixo. ASSISTENTE Assim que ouvir... seu nome... (olha uma ficha) Dulce... Veiga, você abre a porta e entra no palco e... Imagino que já sabe o que vai fazer, não é? Dulce concorda com a cabeça e a assistente vai embora. Dulce olha através de fendas no cenário. O apresentador de TV caminha entre a platéia. Uma reprodução falsa e capenga do jardim de Metaphora está montada no palco. Alberto está sentado numa cadeira de diretor, ao lado de uma velha e grande câmera de cinema, e Lyla, vestida com uniforme de empregada, segura uma bandejinha com um copo de leite. APRESENTADOR DE TV Deixe-me dar uma pista. Ela desapareceu muitos anos atrás e deixou um filme inacabado. Ah, agora vocês já sabem que estou falando de Dulce Veiga, nossa amada Dulce Veiga, nosso rouxinol perdido. Mas não mais perdido, Dulce está de volta e para ficar pra sempre em nossos corações! O público aplaude. Alberto abre um estojinho de maquiagem e retoca discretamente uma sombra lilás em seus olhos. APRESENTADOR DE TV (CONT.) E agora, distintos telespectadores, o ansio samente esperado momento culminan te. Após tantos anos, Dulce Veiga vai enfim atender ao grito de Ação. Uma vol ta triunfal! Dulce vai finalmente abrir aquela porta e então tomar de volta seu lugar no mundo dos espetáculos. Lugar que nunca deixou de pertencer a ela! (para Alberto) A batuta é sua, maestro! Alberto levanta-se com gestos dramáticos. ALBERTO Luzes! Câmera! A luz do palco destaca a porta fechada. APRESENTADOR DE TV Dulce Veiga! Tomada um! O apresentador de TV bate uma claquete em frente à câmera e o público aplaude. ALBERTO Ação! No bastidor, Dulce segura a maçaneta. A mão de Dulce está imóvel, crispada. CORTA PARA: INT. HIDROAVIÃO – DIA Caio acorda dentro do hidroavião. CORTA PARA: EXT. RIO AMAZONAS – DIA O hidroavião aterrissa em uma curva do Rio Amazonas, perto de uma cidade ribeirinha. CORTA PARA: EXT. CIDADE RIBEIRINHA – DIA Caio, com uma mochila nas costas, caminha pelas ruas da cidade, perguntando para os transeuntes. CAIO (OFF) O calor era um murro na nuca e me deu a sensação estranha de que eu estava em outro país. Mas no país verdadeiro, como se o falso fosse de onde eu vinha. Senti medo. Eu era um alienígena, vindo de uma minúscula corte de neuróticos. Podia voltar, mas eu queria encontrá-la. Eu estava certo de que sabia onde estava Dulce Veiga e me sentia preparado pra isso. CORTA PARA: EXT. PENSÃO ESTRELA DO NORTE – DIA Caio chega num grande casarão de madeira, caiado de branco, portas e janelas verde-escuros e uma placa desbotada: Pensão Estrela do Norte. Dentro da sala com janelas escancaradas, um papa gaio dá voltas em frente a uma televisão sintonizada no programa do apresentador de TV. Caio bate palmas. CAIO Ô de casa! Uma mulher, arrastando as chinelas havaianas, muito parecida com Iracema, mas com roupas diferentes, aparece na porta. IRACEMA Se é quarto pra alugar, meu senhor, tá tudo lotado. CAIO Estou só procurando uma pessoa que morou aqui. A senhora trabalha aqui há muitos anos? Iracema apóia um braço na porta e descansa o pé direito na altura do joelho. O papagaio voa e pousa em seu ombro. IRACEMA (OFENDIDA) Eu nasci aqui. Sou dona da pensão. Mas quem é mesmo que o senhor tá procurando? CAIO Uma mulher que veio de São Paulo, uma mulher loira. Dulce Veiga, a senhora já ouviu falar? Iracema franze as sobrancelhas e leva a mão à porta para fechá-la. IRACEMA Nunca ouvi falar, não, meu senhor. E ago ra me dá licença que eu tenho que pre pa rar a janta, tratar da minha vida. CAIO A senhora é tão parecida com uma pessoa que eu conheço. Iracema olha desconfiada para Caio. IRACEMA O senhor é de São Paulo? CAIO Sou. IRACEMA Tenho uma irmã que mora lá faz uns dez anos. CAIO Por acaso ela se chama Iracema? IRACEMA Olha, meu senhor, tem muita Iracema neste mundo de Deus. E tem muita gente que não tem o que fazer, muito desocupado metendo o nariz onde não foi chamado. Nós aqui vivemos em paz, eu acho bom o senhor ir embora de uma vez. Eu não sei de nada não. Iracema bate a porta. Alguns meninos descalços param para olhar. Caio, desanimado, começa a caminhar pela rua. CORTA PARA: EXT. PERIFERIA AMAZÔNICA – DIA Caio caminha de cabeça baixa, arrastando a mochila pela terra vermelha batida, olhando as casas cercadas por uma natureza de um gigantismo religioso e opressivamente verde. Caio começa a ouvir a voz de uma mulher, cantando Nada Além. Caio levanta a cabeça para escutar. Caio bota a mochila nos ombros e começa a andar mais depressa à procura da voz. CAIO (OFF) Eu sempre tivera uma certeza: a de que, desde o início, embora tudo pudesse continuar a ser somente loucura, perdição, vontade de voar, eu nada tinha a perder, perseguindo uma canção. A voz fica mais clara em frente a uma churrascaria. DULCE (OFF) Nada além, nada além de uma ilusão / Chega, vem, e é demais para o meu coração. CORTA PARA: INT. CHURRASCARIA – DIA Uma churrascaria familiar e limpa: meia dúzia de pessoas em mesas cobertas por toalhas xadrez, o piso fresco de lajes, as pás de um ventilador girando no teto e o garçom espantando as moscas. DULCE Acreditando em tudo que o amor, mentindo, sempre diz. Caio pára na porta e olha para Dulce Veiga, de costas e com os cabelos totalmente brancos, cantando no fundo da churrascaria, sobre um palco baixo, com um botão de rosa de néon vermelho atrás, acompanhada por um músico com um piano elétrico, vestida apenas com um vestido de algodão amarelo-claro, e sandálias em seus pés pequenos, com unhas sem pintura. DULCE (CONT.) Eu vou vivendo assim feliz, na ilusão de ser feliz. Dulce vira-se, mostrando o rosto deformado por uma enorme cicatriz que corta transversalmente o seu rosto. DULCE (CONT.) Se o amor só nos causa sofrimento e dor / É melhor, bem melhor a ilusão do amor. Caio olha assustado. Dulce vira-se novamente e está sem a cicatriz, muito bonita e sem maquiagem. DULCE (CONT.) Eu não quero e não peço para o meu coração / Nada além de uma linda ilusão. O músico pega uma clarineta e faz um bonito solo para Dulce. O público aplaude. Caio senta-se numa mesa perto do palco e fala com Dulce. CAIO Quero falar com você. Dulce sorri e recomeça a cantar. Os fregueses parecem estar lá realmente para ver Dulce Veiga. Dulce termina de cantar a canção e todos a aplaudem, entusiasmados. Dulce agradece, joga beijos e se senta em frente de Caio. CAIO (CONT.) Dulce Veiga! DULCE O que você esperava? CAIO Lembra-se de mim? DULCE Não, mas a Márcia me contou que você vinha. Caio acende um cigarro. CAIO Por que, Dulce? DULCE Foi pra isso que você veio de tão longe? CAIO Vim atrás de algumas respostas. DULCE Aqui você só vai encontrar mais perguntas. Mas aprendi que as perguntas são mais úteis pra mim do que as respostas, entende? CAIO Não. DULCE (sorrindo) Então nem tente entender. Eu sou assim mesmo. Só faço sentido quando canto. Caio olha em volta. CAIO Aqui?! Dulce sorri novamente. DULCE Por que não? Só quero cantar. Só preciso cantar. Cantando, eu não sinto, vejo ou escuto nada, além da canção que estou cantando. Começa a chover do lado de fora. Dulce levantase e Caio a segue para um terraço aberto para a floresta virgem. Caio começa a falar gesticulando muito. CAIO (OFF) Eu precisava saber por que, afinal, ela desaparecera, e muitas outras coisas, eu precisava saber de tudo. Comecei a fazer perguntas delirantes, acentuando os detalhes escabrosos, talvez feios, sujos, loucos, os mais dramáticos. Ela não respondia. Às vezes sorria, como se achas se engraçado o que eu dizia. Não havia indiferença nisso, nem cinismo ou frieza, mas qualquer outra coisa que me dizia que eram minhas aquelas dúvidas, e não dela. Dulce, serena, em paz, encosta-se no batente da porta. Caio pára de falar e olha com expectativa para Dulce. DULCE São tudo histórias, meu amigo. Escolha, entre todas elas, aquela que seu coração mais gostar. CAIO E o que eu digo a eles? DULCE A eles? Ah, diga o que você quiser, faça o que achar melhor. Não diga nada. Minta, não será pecado. Entenda, meu amigo, eu sempre estive aqui. Pra me encontrar, bastava me procurar. Mas será que interessava de fato a alguém me encontrar? Até você lembrar de mim, e escrever... A Márcia me mandou o recorte. Ninguém parecia realmente se importar... CAIO Isso não é verdade. DULCE Minha felicidade está em ser apenas Dulce Veiga. E não uma outra Dulce Veiga que todos queriam que eu fosse, mas que não sou eu. Cansei de colecionar decepções e ressentimentos. CAIO Mas é assim com todo mundo. Quem não tem um... rótulo é como assim... um livro sem capa. Ninguém compra. DULCE E como é importante que nos comprem a todo momento, não é mesmo? Não, a vida que eu tava vivendo só ia me levar à morte. Por doença, tristeza, tédio, overdose, amor, não importa. Excesso de tudo e de todos. Morte e nada mais. Meu corpo dizia isso e eu não escutava. Quando enfim escutei, eu escolhi viver e estou viva. Dulce tira as sandálias, estica seus pés para fora e os molha na chuva. CAIO E não seria a hora de voltar? Sua volta seria um enorme sucesso. Dulce olha para Caio com desconfiança. DULCE Voltar! Não, a hora é de seguir em frente. Sabe, aqui, sozinha, aprendi uma lição: que viver é como nos filmes de terror, em que se vêem aquelas mulheres lindíssimas, de camisola transparente, despertar ouvindo uivos no jardim. E levantam, abrem a porta do terraço... CORTA PARA: EXT. JARDIM – NOITE FLASHBACK: Vinte anos antes. Em preto e branco, Dulce abre a porta envidraça, da na seqüência nunca filmada de Metaphora. Dulce, descalça, assustada mas curiosa, caminha através da névoa do jardim. Uma atmosfera expressionista de horror. DULCE (OFF) E, descalças, saem de casa e entram naqueles bosques pra ver o que está acontecendo; correndo todos os riscos. O público pensa: Mas, meu Deus, por que ela não fica na cama? E, no entanto, é necessário que ela saia. Porque se ela ficasse em casa, não teria filme... A fita acaba. O vento balança os ramos das árvores. Os passos das patas de um monstro invisível afundam o terreno indo na direção de Dulce. DULCE (OFF) (CONT.) Ela tem de ir para a mata, porque lá tem lobisomem, tem alma penada, tem vampiro. Ela tem de buscar as coisas dela, tem de viver o seu terror, tem de produzir alguma coisa dentro desta emoção maior que é a nossa ansiedade, que é a nossa angústia, a nossa aflição... CORTA PARA: INT. CHURRASCARIA – DIA CHUVOSO Dulce pega uma mão de chuva e passa nos cabelos. DULCE E que é também a nossa esperança. CAIO (DESCONCERTADO) Mas não entendo, você nunca abriu aquela porta! DULCE (TRISTE) Pior! Abandonei minha filha, minha Márcia, precisando tanto de mim. Abandonei os poucos amigos que tinha. Fiquei só, com a natureza, com meu canto, e uma porção de perguntas sem respostas. Hoje percebo que talvez fosse melhor ter aberto e cruzado aquela porta, ter enfrentado todos os meus medos, todos os meus demônios. CAIO Então você não encontrou aqui a tal outra coisa? Dulce dá uma risada. DULCE Ainda quero encontrar a tal outra coisa. Outra coisa que nem sei o nome; maior que eu, maior que o meu canto. Não, meu amigo, essa outra Dulce Veiga cheia de respostas só existe dentro de você. Caio, cheio de raiva e ódio, pega sua mochila, tira dela a pistola e dá três tiros em Dulce Veiga, que cai morta no chão. O sangue de Dulce escorre e mistura com a água da chuva. Caio olha para o chão. Dulce aparece por trás de Caio e faz um carinho nos seus cabelos. DULCE (CONT.) Mas tem uma outra coisa que eu sei o nome: Márcia, minha filha. Tão parecida comigo. E tão necessitada de ajuda. Ajuda que só você pode dar. CAIO Eu?! Não sou capaz de ajudar nem a mim mesmo. Dulce volta a colocar as sandálias. DULCE Caio, se você chegou até aqui, se você conseguiu me encontrar, é porque soube abrir muitas portas. Suas próprias portas! É de uma pessoa assim que minha filha precisa. Alguém que goste dela e de quem ela também goste. CAIO Ela disse isso? DULCE Uma mãe sabe essas coisas. Caio olha nos olhos de Dulce. CAIO Afinal, Dulce, eu te encontrei ou foi você que me encontrou? DULCE Isso importa? Dulce pega uma bolsa de um cabide. DULCE (CONT.) Tenho que ir. Já sabe o caminho, espero que volte um dia. Dulce e Caio caminham para a entrada da churrascaria. CAIO Caminho? Eu ainda não sei o caminho. Dulce dá um beijo suave nos lábios de Caio. DULCE Só falta você aprender a cantar, Caio. Caio olha sobressaltado para a entrada da churrascaria. CORTA PARA: EXT. PERIFERIA AMAZÔNICA – DIA CHUVOSO O mesmo velho táxi está estacionado na frente da entrada da churrascaria, esperando por Dulce. O mesmo motorista do táxi está com um guardachuva aberto, abrindo a porta do táxi. Caio se aproxima e ajuda Dulce a entrar no táxi. CAIO Isto é só um sonho? Eu estou de novo sonhando com você? DULCE Quem sabe? Quando você sonha que está sonhando é porque está prestes a acordar. Dulce entra no táxi e, com um sorriso, deixa Caio na porta da churrascaria. O táxi sobe uma colina e desaparece. Caio, com sua mochila nas costas, caminha sob a chuva. Caio sorri e começa a cantar Meditação. CAIO Quando estou a sós / Ponho um disco na minha vitrola / E toco a sua voz / E só de escutar / Sinto logo que estou a teu lado / Abro os olhos e sonho acordado / Neste meu sonhar / A tristeza e a saudade que eu sinto / Vão te procurar. Numa curva, Caio vê Márcia, com um guardachuva verde, caminhando em sua direção. Caio, tenso, corre para Márcia. CAIO (CONT.) E ao te encontrar / Solto o grito que está na garganta / Abro a boca / E meu coração canta. Márcia vê Caio e corre para ele. MÁRCIA Eu te amo tanto / Que só cantando / Eu sei dizer o quanto. Márcia pára na frente de Caio. CAIO Tem que ser você / Não importa se canto ou não canto / O que é que eu vou fazer ? Márcia coloca o guarda-chuva sobre Caio. MÁRCIA Vou te proteger / Meditando que bom que é assim. CAIO E MÁRCIA Com você junto a mim! Caio sorri, abraça e beija Márcia. FUSÃO PARA: Letreiros finais em FUNDO BRANCO. Dulce Veiga canta Poltrona Verde. Macro dos tipos de uma máquina de escrever batendo sobre um papel branco: Para Caio F. FIM Índice Apresentação – José Serra 5 Coleção Aplauso – Hubert Alquéres 7 Prefácio – Guilherme de Almeida Prado 11 Roteiro 17 Crédito das Fotografias Todas as fotos do filme são de Marcos Camargo Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias Roteiro de Cláudio Galperin, Bráulio Mantovani, Anna Muylaert e Cao Hamburger Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto Batismo de Sangue Roteiro de Helvécio Ratton e Dani Patarra Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach – O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person O Céu de Suely Roteiro de Mauricio Zacharias, Karim Aïnouz e Felipe Bragança Cidade dos Homens Roteiro de Paulo Morelli e Elena Soárez Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de Invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Rubem Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Os 12 Trabalhos Roteiro de Claudio Yosida e Ricardo Elias Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Liberdade de Imprensa – O Cinema de Intervenção Renata Fortes e João Batista de Andrade Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Não por Acaso Roteiro de Philippe Barcinski, Fabiana Werneck Barcinski e Eugênio Puppo Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa O Signo da Cidade Roteiro de Bruna Lombardi Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Denise Del Vecchio – Memórias da Lua Tuna Dwek Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, o Mistério Luiz Carlos Lisboa Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Borghi – Borghi em Revista Élcio Nogueira Seixas Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sonia Maria Dorce – A Queridinha do meu Bairro Sonia Maria Dorce Armonia Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Rede Manchete – Aconteceu, Virou História Elmo Francfort Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia TV Tupi – Uma Linda História de Amor Vida Alves Victor Berbara – O Homem das Mil Faces Tania Carvalho Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 236 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2008 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Prado, Guilherme de Almeida Onde andará Dulce Veiga? / Guilherme de Almeida Prado – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008. 236p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / Coordenador geral Rubens Ewald Filho) Filme baseado na obra de Caio Fernando de Abreu. ISBN 978-85-7060-582-5 1. Cinema – Roteiros 2. Cinema – Brasil - História 1. Onde andará Dulce Veiga? (Filme cinematográfico) 2. Abreu, Caio Fernando de I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.437 098 1 Índices para catálogo sistemático: 1. Filmes cinematográficos brasileiros : Roteiros 791.437 098 1 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria editoração, ctp, impressão e acabamento