Jorge Bodanzky O Homem com a Câmera GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO RESPEITO POR VOCÊ Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira   Chefe do Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA Presidente Marcos Mendonça Diretora de Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Mauro Garcia Coleção Aplauso Cinema Brasil   Coordenação Geral Rubens Ewald Filho Coordenação Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistência Operacional Andressa Veronesi Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Jorge Bodanzky O Homem com a Câmera por Carlos Alberto Mattos CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA IMPRENSA OFICIAL SÃO PAULO – 2005 IMPRENSA OFICIAL 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação elaborados pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Mattos, Carlos Alberto Jorge Bodanzky : o homem com câmera / por Carlos Alberto Mattos.– São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2006. 408 p.: il. – (Coleção aplauso. Série Cinema / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-424-6 (Imprensa Oficial) 1. Cinema – Produtores e diretores 2. Cineastas – Brasil 3. Cinema - Brasil - História 4. Bodansky, Jorge - Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.430 981 Índices para catálogo sistemático: 1. Cineastas brasileiros : Crítica e interpretação : Biografia 791.430 981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõe seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Para meus irmãos André, Melina e Monique, e à memória de Sylvia Carlos Alberto Mattos Introdução Por todos os caminhos Volta e meia, nos filmes de Jorge Bodanzky, vemos a proa de uma embarcação abrindo caminho entre as águas de um rio, oceano ou geleira. Mas pode ser também o pára-brisa de um carro avançando por estrada difícil, ou a janela de um avião recortada contra a imensidão de uma floresta. Esse tipo de imagem recorrente diz bem mais do que mostra à primeira vista. Como nos filmes primitivos – quando as pesadas câmeras ainda não se moviam e os cinegrafistas recorriam a trens, automóveis e rodas gigantes para dar mobilidade contínua às imagens – essas cenas potencializam o movimento. O cenário que passa pelo quadro fixo do visor replica, de certa maneira, o fluxo de fotogramas que passa pela janela do projetor, gerando a ilusão do movimento cinematográfico. Além desse sentido mais teórico, as imagens viajantes adquirem, na obra de Bodanzky, um valor de assinatura pessoal, uma marca de autor. O deslocamento ocupa posição central no processo criativo do cineasta, assim como em sua história pessoal. Por razões que conjugam vocação e circunstância, a obra do paulista Bodanzky vem se estruturando como uma sucessão de viagens, muitas das quais constituem a própria matéria dos filmes. De sua ascendência austríaca pode ter nascido uma disposição especial para a curiosidade expedicionária, numa tradição que ligaria os alemães Alexander von Humboldt (cientista) e Werner Herzog (cineasta). “A satisfação é plena quando consigo juntar viagem e cinema. ...Quanto mais longe, incômodo e precário, melhor”, afirma num trecho deste livro. Mas as inconstâncias da produção de cinema no Brasil também foram responsáveis por transformá-lo num globe-trotter, protótipo do homem com a câmera a se abalar para onde a realidade o chama. Bodanzky já filmou nos quatro cantos do Brasil, com incidência maior na Amazônia e no Centro-Oeste, amplamente esquadrinhados pelas suas lentes. Fez documentários e cine-reportagens em diversos países da América do Sul e na Jamaica. Na Alemanha, onde estudou fotografia de cinema, teve uma base permanente de trabalho ao longo dos anos 1970 e 1980. Aventurou-se com sua câmera por autódromos europeus, pelas águas geladas do Oceano Ártico e pelas placas glaciais da Antártica. Nem todas as suas viagens terminaram em filme. Algumas das mais intensas renderam não mais que a experiência da viagem – o que não chega a abater o ânimo desse cineasta que é também um velejador apaixonado. O prazer do trajeto o alimenta e deixa preciosos registros em caixas e mais caixas de fotografias e fitas de vídeo guardadas em sua casa. À seleção de fotos que ilustram este volume, Bodanzky dedicou o mesmo apreço que às 19 horas de entrevistas resultantes no texto do livro. Nos últimos 30 anos, ele fotografou ou co-dirigiu dezenas de documentários culturais, etnográficos e políticos para televisões européias, especialmente alemãs. Muitos deles adotam uma narrativa de viagem, incorporando e explicitando as dificuldades e impasses do caminho. O acesso custoso a aldeias indígenas remotas, as precárias condições de higiene e conforto, a investigação arriscada em áreas de conflitos de terra, garimpos e segurança nacional, tudo isso dá aos seus filmes um sabor de aventura relativamente raro no cinema brasileiro moderno e contemporâneo. Iracema e Terceiro Milênio, que estão entre seus melhores e mais conhecidos trabalhos, são road movies – ou river movies – que se produzem e se explicam pelo percurso que fazem seus personagens. O primeiro, semificcional, narra a convivência de um caminhoneiro e uma jovem prostituta ao longo da Transamazônica em construção. O segundo, documental, mostra a viagem eleitoral de um senador pelos confins do Alto Solimões. Já As Aventuras de Igor na Antártica transforma o registro de uma expedição familiar em fantasia musical infantil. Em filmes como esses, o vírus da aventura se inocula não apenas no formato e na tonalidade emocional, mas igualmente na incomum relação que estabelecem entre realidade e ficção. Um novo caminho para o cinema brasileiro foi literalmente aberto por Iracema, em 1974. Admirador de Jean Rouch e John Cassavetes, Bodanzky criou uma forma inédita de mestiçagem entre a invenção ficcional e o compromisso documental. Transformou diálogos em entrevistas, gente de verdade em personagens, cenários reais em sets de filmagem não-invasiva, e colocou as convenções do road movie a serviço da denúncia social. A novidade, exibida clandestinamente em tempos de censura, exerceu forte influência em muitos cineastas que viam exauridas as formas de representação eleitas pelo Cinema Novo para dar conta da realidade brasileira. Passou-se a falar no gênero “semidocumentário”, denotando uma interação de linguagens que nunca mais deixaria de inspirar parcela significativa e avançada do nosso melhor cinema. Gitirana, como Iracema co-dirigido por Orlando Senna, testava outras formas de diálogo entre ficção e documentário. Para reconstituir a saga de Os Mucker, Bodanzky e seu parceiro Wolf Gauer misturaram atores conhecidos a pessoas comuns da região de Sapiranga (RS) e experimentaram um tipo radical de docudrama, onde a encenação se amparava em referências históricas autênticas. Mesmo nos seus documentários aparentemente mais diretos e simples, como Igreja dos Oprimidos, a busca do real é sempre atravessada por elementos de criação, que podem estar num personagem, numa situação ritualística ou mesmo no comportamento da câmera, quase sempre empunhada pelo próprio diretor. Ele entrou no cinema vindo da fotografia e manteve sempre uma relação visceral com a câmera. O equipamento tem sido uma extensão do seu corpo longilíneo, de pele curtida pela prolongada exposição ao sol e ao vento. Nas páginas deste livro, o leitor vai encontrar suas reflexões sobre um método que reduz a teoria à pura experiência. Com a câmera na mão e o pé na estrada, Bodanzky é um cultor entusiasmado do plano-seqüência, da liberdade de improvisar e do potencial dramatúrgico da realidade. Seu interesse pelas imagens pauta-se mais pelo teor de informação que pelo coeficiente de beleza. A descoberta lhe atrai bem mais que a mera elaboração de dados conhecidos e confirmados. Tanto é assim que, de 1996 em diante, o cineasta multiplicou-se em criador de obras para as novas mídias eletrônicas. Bem longe de ser um nerd da computação, foi um dos primeiros homens de cinema a se aventurar pelo mundo dos CD-ROMs e dos websites no Brasil. Com o Projeto Navegar, que em 2000 levou uma estação fluvial da internet às entranhas do Amapá, deu provas de pioneirismo e profissão de fé na modernidade. É de muito se lamentar que parte considerável do trabalho de Bodanzky seja completamente desconhecida do público brasileiro. Os documentários que ele fotografou, co-dirigiu e ajudou a produzir para a TV alemã são insights originais de questões brasileiras como a ocupação econômica da Amazônia, a devastação da floresta, a manutenção e desaparição de culturas indígenas, a imigração externa e interna, as ações da sociedade civil em pontos remotos do país, etc. De sua colaboração com colegas europeus resulta um original cruzamento do olhar estrangeiro com a perspectiva autóctone que ele próprio acrescenta. Mas os filmes que correram o Brasil, seja em salas comerciais, seja no circuito alternativo – onde ele brilhou nos anos 1970 e 1980 com obras impactantes como Jari - foram suficientes para fazer de Bodanzky um mestre no seu ofício. Na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Fernão Pessoa Ramos o situou, ao lado de Vladimir Carvalho, Sylvio Back e Eduardo Coutinho, no “quarteto de ferro do documentário brasileiro nessa segunda metade do século (XX)”. Aos 62 anos em 2005, com três filhas, todas em áreas artísticas ou afins, Jorge Bodanzky não tem nas mãos dedos suficientes para contar os projetos que toca no momento e acalenta para o futuro. Trabalha intensamente, mas, sempre que pode, espalha-se pela baía de Angra dos Reis, onde leva existência paralela a bordo de seu veleiro Muiraquitã. Em fins de 2004, aceitou com entusiasmo a proposta de relatar seus muitos caminhos para este livro. Organizado, disciplinado e de discurso muito claro, tornou o meu trabalho jornalístico não só mais fácil, como extremamente agradável. Compartilhou com especial satisfação a idéia de contar sua carreira numa espécie de livro de viagens, onde atividade profissional e aventura pessoal tivessem pesos semelhantes, já que são mesmo indissociáveis. Agradeço a Jorge Bodanzky pela parceria neste trabalho, a Maria do Rosário Caetano pela “cessão do personagem”, assim como a colaboração de Rosane Nicolau, Marcia Neves Bodanzky, Júlio César de Miranda / Polytheama Vídeo, Eduardo Escorel, Carlos Reichenbach, Orlando Senna, Jean-Claude Bernardet, Danielle Almeida Prado e Reynaldo Pires Picozzi. Carlos Alberto Mattos Junho de 2005 “Tive sempre a impressão de viver em alto-mar, no âmago de uma felicidade régia.” Camus, L’Été Capítulo I Viena – São Paulo: Imigrantes Para contar minha trajetória a partir das viagens, devo começar pela travessia dos meus pais da Áustria ao Brasil, em 1937. Judeus e anarquistas, eles logo perceberam as dificuldades que teriam com os nazistas no poder às vésperas da anexação da Áustria ao Reich alemão. O primeiro da família a desembarcar por estas terras tinha sido um meio-irmão do meu pai, Gerhard Orthof, pai da escritora Sylvia Orthof e fundador da agência de propaganda Época, no Rio. Ele incentivou meus pais a emigrarem, o que aconteceu pouco depois do casamento deles em Viena, como uma viagem de lua-de-mel sem retorno. Após poucos meses no Rio, eles se estabeleceram definitivamente em São Paulo. Meu pai, Hans Bodanzky, passou a trabalhar como engenheiro de refrigeração. Um de seus primeiros projetos foi o sistema de ar condicionado da Biblioteca Mário de Andrade. Ele trabalhou com arquitetos bastante conhecidos, como Gregori Warchavchik. Minha mãe, Rosa Bodanzky, empregou-se na livraria Cosmos e mais tarde na Nobel, onde travou contato com muitos artistas e escritores, entre eles Stefan Zweig. O tino de livreira da minha mãe manifestou-se desde muito cedo. Ainda estudante, ela trabalhava como vendedora numa pequena livraria que ficava muito próxima à casa de Sigmund Freud, na Rua Berggasse, e era parte do seu roteiro quase diário. Certa feita, ela sugeriu ao dono da livraria que fizesse uma homenagem ao famoso cliente, expondo seus livros em destaque na vitrine. Freud entrou para agradecer e foi apresentado à responsável pela idéia. A partir de então, sempre que ele encomendava um livro, cabia a ela o privilégio de entregá-lo. Muitas vezes, tomaram chá juntos. Após a entrada dos nazistas em Viena, em 1938, intensificou-se a diáspora dos judeus austríacos. Freud, por exemplo, emigrou para Londres. Minhas avós materna e paterna, assim como outros membros de ambas as famílias, já tinham tomado o rumo do Brasil um ano antes. Por aqui, instalou-se uma nova onda de incerteza quanto ao alinhamento do país na guerra, a par de uma certa simpatia do governo Vargas pelo lado alemão. Por via das dúvidas, era melhor não ter filhos naquela época. Mas, contrariando as conveniências, nasci em 22 de dezembro de 1942, poucos meses depois de o Brasil declarar guerra ao Eixo e um dia antes de os soldados soviéticos derrotarem os nazistas em Stalingrado. Os meus pais se separaram ainda antes do meu nascimento. Meus avós eram judeus de origem, mas não praticantes. Pouco conheço da minha família materna, os Friedman, além do fato de que minha avó era proprietária do bonito Café Korso, numa esquina da Rua Grundlgasse. Minha mãe, quando jovem, era ativa participante de passeatas e movimentos socialistas em Viena, tendo sempre nas mãos um exemplar da polêmica revista Die Fackel (O Archote), editada por Karl Kraus. Casou-se, dizia, para sair de casa. Meu pai, mais afeito aos esportes que à política, foi jogador profissional de handebol. Mas sua família era também de tradição socialista e anarquista, com muitos músicos e escritores, que viveram intensamente o período do entre-guerras. Tinham residências em Berlim e em Viena, sendo esta última uma bela casa em estilo modernista. Meu avô paterno, Robert Bodanzky, era autor de textos anarquistas e revolucionários, além de famoso poeta e libretista de operetas. Ele trabalhou com Franz Lehár, Robert Stolz, Oscar Straus, Emmerich Kálmán e outros compositores. Meu tio-avô, Arthur Bodanzky, foi assistente de Gustav Mahler antes de se tornar um grande regente e migrar para Nova York, onde dirigiu a orquestra da Metropolitan Opera House e levou Wagner para tocar pela primeira vez nos EUA. Minha avó paterna, Malva Goldschmied, era prima-irmã de Arnold Schönberg, criador da música dodecafônica. Com tantos acordes na ascendência, era natural que se criasse uma expectativa em relação à minha veia musical. Cheguei a estudar violino durante seis anos, quando garoto, mas não tinha nem prazer nem vocação. Sempre gostei de ouvir música, mas até hoje sou incapaz de cantar corretamente duas notas consecutivas. Em contrapartida, John Neschling, que é meu primo-irmão, desde bebê mostrou talento nesse setor. Eu brinco dizendo que ele já regia no penico, e o pessoal falava: “Silêncio que o Johnny está regendo!”. Felizmente, me deixaram em paz e o John assumiu magistralmente a herança musical da família. Coube a mim herdar os prenomes dos meus dois avós, Georg e Robert, daí se formando Jorge Roberto Bodanzky. Bem no início do meu breve interlúdio de músico-mirim, apresentei-me com a orquestra infantil da professora Eva Kovach na inauguração da televisão brasileira, transmitida do Museu de Arte Moderna, ainda no prédio dos Diários Associados, na Rua 7 de Abril. Eu ainda nem sabia segurar o violino e fui escalado para tocar triângulo na Sinfonia dos Brinquedos, de Leopold Mozart. Por ser um dos menores, incumbiram-me de entregar um buquê de flores ao presidente Dutra. Lembro que subi, desorientado, ao palco cheio de autoridades, à procura do homem que tivesse o uniforme mais entulhado de medalhas. Assim imaginava o presidente. Por pouco não passei as flores às mãos de um militar qualquer, já que Dutra vestia terno e não se destacava no palco. Minha mãe casou-se pela segunda vez com Ludwig Wilhelm, um austríaco de Viena, igualmente refugiado, união que deu origem ao meu meio-irmão Alexandre. Foi com eles que passei a infância. Tive batismo católico por decisão pragmática do meu pai, visando facilitar as coisas para minha formação. Em família, só falávamos alemão. O português aprendi na rua e na escola. Fiz os cursos primário e ginasial no Instituto Mackenzie, de orientação presbiteriana. Meu padrasto, que eu chamava de Ludi, foi um grande pai para mim. A música jamais silenciou em minha infância. Ludi tinha um quarteto amador que tocava uma vez por semana em nossa casa. Eu era levado a todos os concertos da Cultura Artística e, nos meus aniversários, ganhava de presente uma ida ao teatro. Um dos meus amigos e vizinhos na época era Antonio Sílvio Lefèvre, que por um tempo fizera o papel de Pedrinho no pioneiro seriado Sítio do Pica-Pau-Amarelo, dirigido ao vivo por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky na TV Tupi. De vez em quando eu o acompanhava ao estúdio para fazer uma ponta. Com ele, criei um teatrinho de fantoches que se apresentava para as crianças na calçada da Alameda Franca. A atração começou a fazer sucesso e a receber convites para festas de aniversário, o que nos motivou a organizar o negócio e criar a companhia Sambalelê. Desenhamos e construímos um teatrinho desmontável, que recebia muitas encomendas nos finais de semana e contou com alguns parceiros ilustres, como Vera Coelho, Walmes Galvão, Sônia Novinsky, Irede Cardoso e Vânia Freitas. O futuro arquiteto Lúcio Gomes Machado nos ajudava nas instalações elétricas e na montagem de cenários. O Sambalelê profissionalizou-se e perdurou até a época do nosso vestibular, sempre com peças, cenários e bonecos de papel machê criados por nós mesmos, aos quais se juntavam fantoches argentinos presenteados por alguns pais. Fizemos espetáculos na televisão e em diversas situações, geralmente com referências a acontecimentos da época. Quando lançaram o Sputnik 2, levando a cadelinha Laika para o espaço de onde nunca voltaria, fizemos nossa versão com um final mais feliz: uma girafa de pescoço muito comprido conseguia segurar o satélite e salvar a cadela, para vibração da platéia aliviada. Viena: escola libertária Minha primeira grande viagem aconteceu em 1954, quando meu pai e Anneliese, sua segunda mulher, me levaram num longo périplo marítimo pela Europa, a começar pela Itália. Em Portofino, fiquei extasiado diante de um veleiro com cabine de vidro que atiçou minha fantasia. Fiquei por algum tempo contemplando o barco e pensando que algum dia adoraria ter um daqueles e sair pelo mar. Nosso navio atracou em cidades do litoral da França, Espanha, Portugal e até em Dacar, no Senegal. Em cada um desses lugares desembarcávamos por dois ou três dias. Estivemos mais de uma vez na Alemanha em plena reconstrução. Meu pai, como engenheiro, via com empolgação o dinamismo da Alemanha transformada em canteiro de obras. Mas o que ele queria mesmo era rever Viena. Lá chegando, colocou-me num internato em Rekawinkel, nas cercanias da cidade, onde fiquei por alguns meses. A experiência foi inesquecível. A escola ficava no setor ocupado pela União Soviética e estava longe de ser um colégio qualquer. Era uma instituição libertária, nos moldes da Neue Schule de Dresden, Alemanha, e da Summerhill School inglesa. Ninguém era obrigado a assistir às aulas todos os dias. O que aprendíamos era a própria noção de responsabilidade. Quem não fosse à aula tinha que limpar a piscina, cortar a grama, etc. No primeiro mês, é claro, não dei as caras na classe. Mas, diante da freqüência dos outros meninos, passei a querer também. Vivíamos numa espécie de casa de campo em que nós mesmos fazíamos nossas camas e nossa comida, plantávamos e colhíamos. Meninos e meninas, assim como recreio e afazeres, dividiam os mesmos espaços. Essa vivência de liberdade, inspirada em ideais anarquistas, abriu minha cabeça e me indispôs para sempre com os métodos do ensino tradicional. Somente na Universidade de Brasília, nos anos 1960, fui encontrar uma atmosfera semelhante. Nas escolas brasileiras, eu só gostava mesmo do recreio e da hora da saída. São Paulo: transviados e esquerdistas Cultivei meu espírito de aventura desde a época em que, com outros garotos, caminhava a pé pelos pântanos do Ibirapuera pré-urbanização, pescando lambaris, bagres e traíras. Por muito tempo via uma misteriosa área cercada por tapumes. Um dia me atrevi, com o meu pai, a deslocar uma tábua e lá estava o Victor Brecheret trabalhando no seu célebre Monumento às Bandeiras. No jipe do meu pai, com quem eu costumava passar os fins de semana, fazíamos viagens pelo interior de São Paulo. Ludi e minha mãe compraram uma casa de campo às margens da represa de Guarapiranga, onde iniciei minha vida de velejador. Essa paixão já se manifestava desde muito pequeno, no hábito de brincar com barquinhos na banheira. Mais tarde, nos riachos que levavam a Guarapiranga, lancei meu barco a remo em pequenas expedições com os amigos. Segui em frente, construindo um veleiro segundo as instruções de uma revista americana do tipo “How to Build Twenty Boats”. Comprei a madeira, cortei-a com serrinha tico-tico e montei o primeiro veleiro Optmist do Brasil, classe hoje bastante conceituada entre os velejadores iniciantes. Até mudar-me para Brasília, em 1963, freqüentei Guarapiranga com um fervor de culto. Varria a represa inteira com os diversos barcos que tive. Podia identificar o dono e o rumo de uma vela a grande distância. Guarapiranga, com seus ventos fortíssimos, é reduto de grandes velejadores como Mario Bukup e Jörg Bruder, criados ali. De minha parte, nunca gostei da vela esportiva, nem de competições. Sou um cruzeirista. Não quero correr, mas me aventurar. Foi de avião, literalmente falando, que escapei do serviço militar. Se a vela náutica não dava isenção, restava o título de piloto de reserva. Minha meta era ser piloto de planador, mas, com a mudança do campo para fora de São Paulo na época, acabei tirando o brevê de piloto de monomotor e continuei voando por um bom tempo. Pilotava um “Paulistinha”, que hoje seria chamado de ultraleve. Foi um período muito divertido, com algumas bobagens a mais – como fazer vôos rasantes sobre a represa para assustar os colegas velejadores. Nas peripécias de juventude transviada paulistana, a Rua Augusta, é claro, ocupava lugar de honra. Era ali que tudo acontecia. Eu era sócio do Clube Paulistano, onde fazia natação e jogava bilhar. Vivia na vagabundagem de subir e descer a Augusta em festa, toda engarrafada, parando nos points mais concorridos. Quando passou O Prisioneiro do Rock (Jailhouse Rock, 1957) de Richard Thorpe, com Elvis Presley, levávamos giletes para rasgar o belo estofado preto-e-branco do Cine Paulista. Afinal, tínhamos que arrebentar alguma coisa... Na academia de dança de Madame Poças Leitão, só se podia entrar de paletó e gravata. Rapazes de um lado, moças de outro, ela ensinava danças de salão e etiqueta em idioma francês. Foi quando surgiram o rock, o hully guly e o cha-cha-cha. Pedíamos a ela insistentemente que nos ensinasse o rock, mas a madame, por volta dos seus 80 anos, desconversava: “Não vale a pena, essa moda vai passar logo”. Com isso, acabei nunca aprendendo a dançar o rock n’roll. Lefèvre, Dario Chiaverini, eu e outros amigos nos reuníamos com freqüência para ouvir música, principalmente óperas. Lembro-me bem do dia em que André Gouveia (filho de Tatiana Belinky e Júlio Gouveia) – que depois trabalharia com Glauber Rocha – levou o primeiro disco de Bossa Nova do João Gilberto. A audição de Desafinado foi um marco em nossas consciências na relação com a música brasileira. Apesar dos estímulos de minha mãe livreira, eu não era particularmente ávido por leituras. Gostava de H. G. Wells, do B. Traven (editor de uma revista anarquista alemã e posteriormente autor do romance que deu origem ao filme O Tesouro de Sierra Madre, de John Huston) e mais tarde, por causa da sacanagem, do Jorge Amado. Apreciava sobretudo as revistinhas de caubói Hopalong Cassidy, Roy Rogers, etc. Andávamos vestidos de caubóis, imitando os heróis americanos. Mas nem tudo era alienação. Minha turma da Alameda Franca tinha em comum os pais de esquerda, o que indiretamente nos influenciava no auge da Guerra Fria. No quartinho do quintal da casa do Lefèvre, nossas reuniões musicais passaram a contemplar também discussões da situação política e de textos de Karl Marx. Uma das primeiras manifestações de que participei foi a briga pela tarifa do passe escolar, ajudando a desengatar as hastes dos bondes elétricos para interromper seu curso nas imediações do Mackenzie. À época da crise dos mísseis, Lefèvre e eu resolvemos tomar uma atitude pró-Fidel, hasteando uma bandeira cubana em frente à Igreja de Nossa Senhora do Brasil, freqüentada pela elite mais reacionária de São Paulo, na esquina das avenidas Europa e Brasil. Inventei um sistema com ganchos, corda e uma pedra para atirar a bandeira e pendurá-la no fio elétrico. Mas a geringonça demorou a funcionar e um carro de polícia passou lentamente. Escondemos o pavilhão fidelista numa moita, os policiais desconfiaram e se puseram a rondar nosso núcleo de ação. Só nos restou abandonar o material e sair de fininho, em vergonhosa debandada. Cheguei às agitações da década de 1960 com uma postura de esquerda bem clara, freqüentando as montagens do Teatro de Arena e um ambiente compartilhado por Dario Chiaverini, Jorge Mautner, Sérgio Prado, Cláudio Prado etc. O cinema também evoluiu da farra das matinês para algo mais sério a partir das sessões da Cinemateca Brasileira, ainda no prédio da Rua 7 de Abril. As exibições eram sempre precedidas de palestras do Jean-Claude Bernardet ou do Paulo Emílio Salles Gomes, entre outros. Assisti a ciclos de filmes indianos, europeus e a títulos inaugurais do Cinema Novo, como Porto das Caixas, 62, de Paulo Cesar Saraceni e Cinco Vezes Favela, 62 de Miguel Borges / Carlos Diegues / Marcos Farias / Leon Hirszman / Joaquim Pedro de Andrade. Até então, o único filme que tinha visto com plena consciência de que era brasileiro fora O Saci, de Rodolfo Nanni, no Cine Paulista. Outro impulso para minha consciência cinematográfica nessa época foi o I Seminário do Filme Documentário, na verdade um curso de iniciação ao cinema ministrado por Bernardet, Maurice Capovilla e Roberto Santos no Teatro de Arena. Afora um dia em que Roberto Santos levou uma câmera de filmar e um pedaço de filme velado para nos ensinar como carregar um chassi, não me lembro de maiores avanços técnicos naquele curso. Mas se discutia muito e, quando nada, houve uma reveladora exibição do Aruanda, 60, de Linduarte Noronha, marco zero da minha decisão de fazer cinema. A imagem do Nordeste que brotava da tela era crua, dura, muito diferente da que eu conhecia, por exemplo, de O Cangaceiro, 53, de Lima Barreto. Ali estava um Nordeste de pé-no-chão, que embora tivesse uma cota de invenção, não trazia as marcas de um tratamento ficcional. A experiência causou funda impressão não só em mim, mas em todas as cerca de dez pessoas ali reunidas. De minha parte, senti uma imediata identificação com aquele tipo de cinema. Pensei que gostaria e poderia fazer algo assim. Brasília: Descoberta do Brasil A intensidade com que vivi a juventude em São Paulo me fazia crer que jamais trocaria a cidade por outra. Mas num determinado momento de 1962 decidi visitar minha prima Sylvia Orthof em Brasília. Ela me levou para conhecer as obras da universidade e me surpreendi ao saber dos métodos que ali seriam aplicados: dois anos no Instituto Central de Artes antes de optar por uma especialização; corpo docente formado por cabeças progressistas; um ambiente de liberdade que evocava o da minha breve escola vienense. Voltei para São Paulo embriagado por essa idéia. Fiz o curso madureza para recuperar as bombas tomadas no científico do Colégio Bandeirantes e, em 1963, pousei minha nave na Novacap. Era, de fato, outro planeta – a cidade recém-criada, o encontro de pessoas do país inteiro, todas desenraizadas e niveladas na mesma experiência. Meu pai era um entusiasta de Brasília. Tinha ido trabalhar em projetos durante a fase de construção, inclusive no primeiro hotel da cidade. Através da Sylvia e de seu marido, Sávio Pereira Lima, diretor do hospital distrital, tive uma boa entrada no meio brasiliense. Prestei o vestibular e entrei na segunda turma do ICA, em 1964. Matriculei-me em Arquitetura, mas contando com a possibilidade de outra escolha ao final dos dois primeiros anos. Eu não queria saber de cálculos e fórmulas. O que me interessava da Arquitetura, na verdade, era a História da Arte, eram as palestras do Niemeyer. Já sabia que optaria pela imagem, entre a fotografia e o cinema. Tínhamos liberdade para assistir às aulas que quiséssemos. Na área de artes plásticas, fui aluno de Luís Humberto, Athos Bulcão, Amélia Toledo, Alfredo Ceschiatti, Hugo Mund Jr., Glênio Bianchetti. Tive aulas de mitologia grega com Eudoro de Souza, música com Cláudio Santoro, cinema com Paulo Emílio, Jean-Claude, Capovilla e Heinz Förthmann. Agostinho da Silva, poeta-filósofo-visionário português que morava com sua mulher japonesa numa das cabanas do campus, de vez em quando tinha “iluminações” que se transformavam em aulas concorridíssimas. Requeri e ganhei uma pequena bolsa de estudo, que deveria pagar atuando como assistente da Amélia Toledo. Ajudava-a a preparar aulas, traduzia textos de Paul Klee, saía com ela pelo cerrado para aprender a prestar atenção às imagens, perceber as texturas, etc. Se excluir as fotos que fazia com a velha Voigtlander da minha mãe, foi com a câmera da Amélia que exercitei pela primeira vez o meu olhar de fotógrafo. Com Athos Bulcão fiz uma bela série de fotografias de uma prostituta do Gama, onde já se insinuava meu interesse pelos temas sociais. Com Luís Humberto, então professor de arquitetura, acompanhei a montagem do primeiro laboratório fotográfico da UnB, num banheiro do ICA. Aprendemos praticamente juntos a fotografar e a recriar as fotos no processo de ampliação, orientados por um funcionário que fotografava casamentos nos fins de semana. Houve um momento em que David Drew Zingg passou por Brasília, a serviço da National Geographic Magazine, e eu, por falar inglês, fui escalado para ser seu motorista numa kombi. Fiquei impressionado com a fartura de negativos de slides coloridos que ele trazia na bolsa e a forma como saía disparando sem pensar, mais ou menos como hoje se faz na era digital. Naquele tempo, calculávamos minuciosamente cada foto, mesmo em preto-e-branco, por causa dos altos custos. A presença de Paulo Emílio, com seu humor, inteligência e atenção para o cinema brasileiro, era um requinte absoluto. Ele deu aulas semanais de apreciação cinematográfica durante um semestre inteiro abordando um único filme. A cada aula, tínhamos que rever e analisar Hiroshima Meu Amor, de Alain Resnais, sob um aspecto diferente: o roteiro, a montagem, a posição da câmera, os atores, etc. Se algum problema técnico impedia a projeção, ele não se intimidava: convidava-nos a rever o filme na memória, e pelo ângulo proposto para aquela aula! No primeiro dia, pediu que tomássemos um bloquinho e fizéssemos um traço a cada corte percebido na tela. Quando as luzes se acenderam, as contagens eram as mais díspares: um tinha 450 cortes, outro anotara 50... Resultado: mudei a minha maneira de ver um filme, a partir da atenção a essa unidade fundamental que é o plano. E quando dou aulas, começo sempre pelo exercício dos tracinhos. A Asa Norte, nessa época, ainda tinha quarteirões inteiros de barracões de madeira. Alguns colegas, entre os quais Christian Schiel e Mario Balaban, alugaram um desses barracões e me convidaram a morar com eles. Juntei bicicleta, mochila e saco de dormir e deixei o quartinho de empregada que havia alugado na W3. Paulo Emílio ouviu dizer que havia estudantes morando em “barraco” e quis conhecer o lugar. Levei-o também para provar as boas comidas alemãs de um restaurante próximo. Desde então divulgou-se na universidade a existência de certo “barraco do Bodanzky”. Título inadequado porque, pouco tempo depois de lá chegar, eu já me transferia para o alojamento dos professores. E por uma bela razão. Eu namorava Lena Coelho Santos, professora-assistente de João Evangelista, professor de História da Arte. Costumava então passar pelo pequeno gabinete onde ela trabalhava, deixando-lhe uma flor ou alguma coisa trazida do cerrado. Um dia fomos juntos a uma sessão de cinema na Escola Parque e saímos dali como namorados. Lena viria a ser minha primeira mulher e mãe de minha filha Laís. Ainda passei por diversos alojamentos de estudantes, onde tudo era muito divertido. A efervescência política era constante, em meio a diretórios, representações do Partidão etc. No fundo, fazia-se mais política que se estudava. Os cursos do ICA mal começavam a se estruturar, de maneira que a discussão sobre as aulas era mais importante que as aulas propriamente ditas, que às vezes nem chegavam a acontecer. Debatíamos ao mesmo tempo em que construíamos os bancos para nos sentarmos. O convívio de alunos e professores era permanente, numa dinâmica participativa das mais estimulantes. Lembro-me de noites frias em torno de fogueiras, com músicas, leitura de poesia e muito debate sobre o Brasil. As pessoas estavam ali reunidas por um ideal, que era a proposta da universidade. Nos sábados, quando Darcy Ribeiro chegava ao campus, era literalmente carregado nos braços pela rapaziada. Viajávamos também com freqüência para o interior. Exploramos primeiramente os arredores: Pirenópolis, Goiás Velho. Em Cristalina, onde haviam descoberto um veio de cristal de rocha, o nosso diretório investiu no garimpo, com estudantes se revezando na exploração do tal “buraco do diretório”. Nas férias de julho de 1964, formamos um grupo para fazer o percurso inverso dos personagens de Seara Vermelha, de Jorge Amado, em vapor do tipo “gaiola” pelo Rio São Francisco. Fomos de carona em caminhão até Pirapora (MG), onde embarcamos no Barão de Cotejipe, movido à lenha, seguindo até Juazeiro (BA). Nossa meca era o caldeirão cultural de Salvador, onde chegamos de trem. Ali passei cerca de 15 dias, o suficiente para desconstruir minha visão folclorizada da cidade, nutrida, sobretudo, no consumo apressado de Jorge Amado e Dorival Caymmi. Esse período em Brasília foi a minha descoberta do Brasil e da cultura brasileira. Até então, eu tinha certa pretensão intelectual, mas não um sentimento de grupo. Seguia a onda, era de esquerda porque tinha mesmo de ser. Em Brasília, adquiri a visão de mundo que determinou tudo o que eu faria a seguir. Posso dizer que minha vida se fundou ali, junto com a universidade. Nos dois anos em que lá morei, calculo que passei pelo menos um mês sentado em bancos de ônibus. Voltava das viagens carregando no colo peças de cerâmica para minha iniciante coleção. Luís Humberto tinha a generosidade temerária de me emprestar a preciosa câmera Leica do instituto para fotografar algumas dessas viagens. O clima na universidade, porém, tornava-se cada vez mais pesado. A inquietação começara com as pressões sobre Jango, o comício da Central do Brasil e finalmente o golpe de 31 de março. No dia seguinte, ainda pensávamos que o Exército ficaria do lado “do povo” e pouparia os estudantes de qualquer violência. Fomos a uma passeata meio desorganizada na W3 e nos deparamos com uma barreira militar. Encaminhei-me naquela direção, certo de que haveria uma cooptação para o nosso lado. Mas quando ecoou o primeiro tiro (de festim, creio), busquei refúgio debaixo de uns carros e corri para o edifício onde morava Sylvia Orthof. No elevador, todo sujo embaixo da minha boina de estudante, me vi cara a cara com Tancredo Neves. “Ah, você estava na passeata?”, perguntou. Respondi que sim e arrisquei um prognóstico positivo: “Em alguns dias a gente reverte isso”. Ele me contestou mais ou menos assim: “É, garoto, põe uns dez anos aí”. Eu pensei: “O velho não está sacando nada...” Em nosso fervor de esquerdistas, não passava pela cabeça estar do lado perdedor. Vivíamos uma utopia e estávamos armados de ilusões para isso. Apesar de todas as evidências, continuávamos entrincheirados na universidade, cercados de soldados e baionetas. Mesmo depois da primeira invasão do campus, em 9 de abril, ninguém imaginava que as coisas fossem ficar tão feias. A brutalidade do regime militar começou na UnB. Lá foi o lugar onde pela primeira vez professores foram presos e a polícia entrou para baixar o pau. A intervenção federal e a nomeação do reitor Zeferino Vaz para o lugar de Anísio Teixeira decretaram o início da morte do sonho. A universidade estava destinada a ser escoimada dos “comunistas” e se tornar como outra qualquer. Mas ainda resistiríamos por mais um semestre, tendo que esconder livros, queimar papéis em fogueiras no lago e assistir à prisão ou demissão dos melhores professores. Estávamos muito impregnados de espírito libertário e não queríamos nos desmobilizar. Cheguei a participar de um grupo que escreveu uma carta a Fidel Castro, propondo a continuação da experiência da UnB em Cuba. A carta foi encaminhada através da embaixada da Tchecoslováquia, mas nunca obtivemos resposta. Eu só bateria em retirada em meados de 1965, quando houve outra leva de demissões coletivas e Lena teve que regressar à sua Bahia natal. Voltei para São Paulo, consciente de que agora era um fotógrafo. Paraíba: Nuvens sobre o Engenho Ainda em Brasília, eu havia publicado algumas fotografias no Correio Braziliense e feito trabalhos sobre Fotografia e Linguagem, em conjunto com a Lena. Fizera também experiências com fotos mais formalistas, uma das quais seria selecionada para a 8ª Bienal de São Paulo (1965), a primeira a integrar uma seção de fotografia. A expressão fotográfica nessa época ainda era considerada coisa funcional, sem estatuto de obra de arte. Mesmo em 1968, na Galeria Astréia, quando participei de uma coletiva com Fernando Lemos, George Torok e José Xavier, exposições de fotografia em galerias ainda eram uma novidade. Depois de deixar Brasília, comprei na Fotóptica a minha primeira máquina fotográfica, uma Pentax. Os primeiros trabalhos profissionais foram para a revista Manchete. Tive que raspar a barba crescida para perder o “look de comunista”, sem o que não conseguiria o emprego. Meses depois, a convite do Capovilla, integrei a equipe de fotógrafos do Jornal da Tarde, que começou a circular em janeiro de 1966. Foi quando peguei o traquejo de fotojornalista. O JT chegava com disposição de renovar, entre outras coisas, no uso maciço da imagem. Pela primeira vez no jornalismo brasileiro, o fotógrafo assinava a foto e esta, muitas vezes, constituía a vedete da notícia. O jornal tinha rotativas mais modernas, que permitiam uma qualidade de reprodução bem superior à média da imprensa naquele momento. Uma das minhas primeiras missões no JT foi fotografar burro de fralda. O prefeito de Angra dos Reis havia determinado que se pusessem fraldas nos cavalos para manter a cidade limpa. Quando me mandaram para lá, julguei que fosse um trote. Mas os burros das carroças de Angra estavam de fato equipados com as tais fraldas. Dessas fotos, uma correu o mundo através da UPI. O ano de 1965 tinha começado, porém, com a minha virtual estréia num set de filmagem. No ano anterior, havia passado pela UnB o cenógrafo Álvaro Guimarães, o Alvinho, que era amigo da Lena em Salvador e estava engajado na pré-produção de Menino de Engenho, de Walter Lima Jr. Ele me convidou informalmente a “passar por lá”, ou seja, na Paraíba. Levei a sério o convite e, em janeiro de 65, com a famosa Leica do ICA em punho, tomei o ônibus para Salvador. Dali fui turistando por Maceió, Recife, até João Pessoa. Não sabia onde estava a equipe, mas em João Pessoa todo mundo sabia. Com o músico Pedro Santos cheguei finalmente ao engenho Itapuá. Walter não tinha a menor idéia de quem eu era ou do que poderia fazer. Alvinho, é claro, nada lhe tinha dito sobre a minha vinda, pois provavelmente nem acreditava que eu fosse aparecer. Mas isso não me abalou. Não tinha grandes expectativas, queria apenas ficar por ali, ver como se fazia um filme. Aos poucos, fui me aproximando da câmera, fiz amizade com Reynaldo Barros, diretor de fotografia do filme. Seu assistente, José de Arimatéia, tinha ciúme de mim, temia que eu tomasse seu lugar. Minha função principal, no início, era carregar a bateria de reserva, uma pesadíssima bateria de caminhão, para onde estivesse a câmera, a postos para alguma emergência. Arimatéia me dava pequenos chutes para me afastar da câmera e eu ficava de longe, olhando comprido. Depois Reynaldo me “promoveu”, encarregando-me de observar as nuvens para dizer se dava tempo de rodar um determinado plano com o mesmo diafragma. A responsabilidade era enorme. Tudo pronto e eles olhavam para mim, aguardando meu sinal. Com tão pouco negativo disponível, se eu errasse, seria uma tragédia. Não foram mais de 15 dias, o suficiente para testemunhar as delícias e as agruras de uma filmagem em condições difíceis. Não havia luz elétrica, o equipamento era de uma simplicidade franciscana, a comida era pouca, o engenho estava decadente. O dinheiro da produção acabou e Walter teve de sair para resolver a situação, deixando a equipe sem nada. Mas eram todos muito alegres, solidários na pobreza. Geraldo Del Rey contava histórias incríveis de Glauber e do recém-filmado Deus e o Diabo na Terra do Sol. Maria Lúcia Dahl cantava e tocava violão muito bem. As pessoas tomavam cachaça de alambique. No entanto, admito que saí dali um pouco assustado com a precariedade do cinema brasileiro. Durante a estada no Itapuá, fotografei o local e alguns momentos da filmagem. Quando os trabalhos foram interrompidos por falta de recursos, passou por lá Ipojuca Pontes, que me convidou para seguir com ele de jipe pelo interior e litoral da Paraíba. Assim fiz as fotos para o projeto do seu documentário O Homem do Caranguejo. Retornei de Campina Grande para São Paulo numa estafante viagem de ônibus que durou cinco dias. Ulm: Novo Cinema Alemão O desejo de passar um tempo fora do Brasil já me fazia comprar dólares com as economias dos ganhos de fotógrafo em São Paulo. Em 1966, ganhei uma bolsa para uma escola técnica de fotografia em Colônia, na Alemanha. Viajei no “Vôo da Amizade” para Lisboa e dali segui para Paris, visitando no caminho Amélia Toledo e Antonio Silvio Lefèvre, ambos exilados. O curso em Colônia, porém, era tudo o que eu não queria: cálculos, sensitometria, química... Era bom para quem quisesse abrir um laboratório ou uma loja. Felizmente, não fiquei muito tempo. Num feriado mais longo em que fui a Munique, encontrei na rua o Cláudio Prado, que me hospedou na casa da sua mãe, a pianista Yara Bernet. O marido dela, um alemão, a par da minha insatisfação, sugeriu-me procurar um amigo seu que acabara de abrir uma escola de pós-graduação em cinema na cidade de Ulm. Coisa rara na Alemanha, ele me entregou um bilhete dirigido ao amigo. Nome do destinatário: Alexander Kluge. Ulm era um dos mitos da minha formação. Ali ficava a Hochschule für Gestaltung (Escola Superior da Forma), sucessora da Bauhaus, que meu pai tanto admirava, e fundada por Max Bill, um dos gigantes da arquitetura e do design no pós-guerra. Alexander Kluge acabara de fundar o departamento de cinema, que se chamava Institut für Filmgestaltung. É claro que não pestanejei. Ainda no caminho de volta para Colônia, saltei em Ulm e caminhei pela montanha até a escola, o coração aos saltos. Na mochila, uma caixa com as fotos da prostituta do Gama. Ao entrar no departamento de cinema, dei de cara com uma reunião presidida pelo Kluge. Em volta dele, vários nomes que – eu saberia depois – estavam naquele momento ajudando a fundar o Novo Cinema Alemão, como Edgar Reitz, Jeanine Meerapfel, Ulla Stöckl. Muito sem jeito, entreguei-lhe o bilhete e a caixa de fotografias. As fotos passaram de mão em mão e Kluge me perguntou se eu fazia câmera de cinema. Eu disse que ainda não, mas que gostaria muito de fazer. “Ótimo”, exclamou. “Aqui todo mundo quer ser diretor e ninguém quer fazer a câmera. Então você vai fotografar os filmes deles”. Assim entrei em Ulm praticamente pela janela, num puro golpe de sorte. Em pouco tempo, a bolsa foi transferida e eu estava redirecionando minha carreira para sempre. A escola, moderníssima, tinha uma dinâmica e uma informalidade que lembravam os ideais da UnB. Eu fazia as refeições, tomava banho e passava o dia inteiro em suas dependências. Podíamos freqüentar quaisquer aulas, inclusive as de design. Praticamente reinventávamos o curso a cada trimestre. Participávamos da escolha tanto dos filmes trazidos para exibição quanto dos professores convidados para os ciclos e seminários trimestrais. Éramos apenas 11 alunos e tínhamos poucos professores fixos. Não havia situações de aula expositiva convencional, mas discussões, trabalhos e convivência quase permanente. Com o Kluge, por exemplo, nos relacionávamos na base do desafio e do debate acalorado. Ele tinha acabado de fazer Despedida de Ontem (Abschied von gestern), 66, que ainda iria projetá-lo internacionalmente. Filmávamos um curta atrás do outro, a maior parte de ficção. Fotografei trabalhos de Claudia von Alemann, Jeanine Meerapfel, Reinhard Khan, Edgar Reitz e do próprio Kluge. Alguns deles foram exibidos nos festivais de Pesaro e de Oberhausen. Outro aprendizado interessante se deu com o documentarista e cinegrafista tcheco Jan Spáta, exilado após a Primavera de Praga. Como ninguém se interessava muito por fotografia, ele ficava à minha inteira disposição. Era um luxo ter como professor particular um expoente do cinema tcheco, muito valorizado na época. Juntos, estudamos na moviola, plano a plano, a fotografia de Gianni Di Venanzo em O Bandido Giuliano (Noz Wwodzie), 62, trabalho que me fascinava pela expressividade do preto-e-branco exacerbado. Mais que os clássicos, estudávamos os filmes contemporâneos. Entre os que me marcaram, A Faca na Água, do Polanski, e o documentário Der Lachende Mann (O Homem Sorridente), 66, de Walter Heynowski e Gerhard Scheumann. Esses dois documentaristas da Alemanha Oriental se disfarçaram de repórteres da TV ocidental e conseguiram uma impressionante entrevista com o mercenário fascista Siegfried Müller, conhecido como Kongo Müller por causa de suas atividades na Guerra do Congo. Com freqüência visitávamos Munique, que era o centro do cinema independente na época, muito politizado e criativo. Os ecos em Ulm eram imediatos. Todos integrávamos a SDS, uma organização de estudantes socialistas que se manifestavam contra a guerra do Vietnã, a coalizão dos dois maiores partidos da Alemanha, a política universitária, etc. Era o alvorecer da revolta estudantil que daria no maio de 68. Por conta disso, em junho de 1967, parti com um grupo rumo a Berlim para fazer um documentário sobre o enterro do estudante Benno Ohnesorg, morto pela polícia numa manifestação contra a visita do Xá do Irã. Surgia o primeiro mártir do movimento estudantil alemão. O enterro de verdade foi em Hamburgo, mas eles fizeram uma réplica simbólica em Berlim. Foi um ato conjunto das partes ocidental e oriental, mediante um encontro no muro. Com meu passaporte brasileiro, eu podia fotografar nos dois lados. O documentário, assinado pelo coletivo dos estudantes, é hoje um material clássico, sempre reprisado na TV alemã. Houve uma viagem à Suíça em que filmávamos de dia e pichávamos paredes à noite. Regularmente. Havia um horário certo para pichar, um pouco antes da passagem da polícia. Cada lado respeitava direitinho o seu cronograma, pois ninguém queria conflito. A certa altura da minha estada em Ulm, chamei a Lena para me acompanhar na Alemanha. Ela alegou que sua tradicional família baiana só aceitaria isso mediante um casamento. Eu disse: “Tudo bem, a gente casa!” Peguei um fusca da escola, com licença vencida, uma barraca de acampamento emprestada, ração de soldado americano e fui encontrar-me com ela em Lisboa. Fiz essa viagem na companhia de Gunther Weimer, arquiteto da época da UnB, que fazia sua tese em Ulm. Quando a Lena chegou, toda elegante, foi conduzida do aeroporto diretamente para a barraca de um camping ali perto, onde eu estava alojado. Após várias noites frias em campings no percurso Lisboa-Ulm, Lena teve que curar uma forte gripe no quartinho onde eu morava, em cima de um açougue, na periferia da cidade. Antes mesmo que ela se recuperasse, um pequeno escândalo eclodiu no prédio. Correu que eu estava escondendo uma brasileira no quarto, e ainda por cima não éramos casados! Tivemos que nos mudar às pressas para o anexo da casa de um casal mais jovem e tolerante. Alguns meses depois, em dezembro de 66, nos casávamos no consulado brasileiro em Stuttgart. Incrementamos as economias do casal com a fabricação e venda de colares artesanais, muito usados pelos estudantes de então. No início, armávamos nossa banca sobre um pano preto no chão da praça central de Ulm. Mas os alemães na época não tinham o costume de fazer compras no meio da rua. Quem nos alertou para isso foi a dona de uma butique, convidando-nos a vender dentro da sua loja. Viramos fornecedores regulares, com vendas até para butiques de Munique. Eu também trabalhava como repórter fotográfico do Schwäbische Donauzeitung, um grande jornal regional. Nas pausas do curso, viajávamos de carona pela Europa. Mas o paraíso estava com os dias contados. Similarmente ao que acontecera na UnB, a polícia começou a pressionar a escola devido à atuação política dos estudantes. Teve início uma dispersão, os filmes escassearam. Foi quando Capovilla me convidou para fazer a fotografia de O Profeta da Fome. Ainda que nunca tenha pensado em me estabelecer definitivamente no exterior, saí de Ulm achando que voltaria. Mas a realidade seria bem outra. Eu e Lena regressamos ao Brasil de navio, em outubro de 1967. A bordo recebemos a notícia da morte de Che Guevara na Bolívia. Lembrei-me, então, do dia em que levei uma namorada do Che de Ulm, onde ela estudava, ao aeroporto de Frankfurt. Eu estava muito orgulhoso de acompanhar uma mulher que dali a pouco estaria se encontrando com o Che na Argélia. Quanto a mim, chegava casado ao porto de Santos, onde a família e um grupo de amigos foram nos receber. Três anos mais tarde, Alexander Kluge, ao ver O Profeta da Fome no Festival de Berlim, me enviaria um telefonema de congratulações. Melhor que isso, considerou que meu trabalho valia o certificado de conclusão do curso de Ulm. A escola já estava fechada, mas ele ainda conseguiu imprimir um diploma. Capítulo II São Paulo: entre a USP e a Boca do Lixo Na Alemanha ou no Brasil, em 1968, poucos eram os artistas que não estavam envolvidos em algum grupo, coletivo, movimento ou coisa do gênero. Em São Paulo, jovens cineastas abriam uma janela alternativa ao Cinema Novo dominante com projetos inventados a partir da precariedade de recursos e da imaginação transbordante. Era o início do movimento que mais adiante seria denominado Cinema Marginal. De volta às origens, caí de corpo inteiro nesse caldeirão. As pessoas filmavam quando, onde e do jeito que podiam. Os cronogramas se dilatavam, as equipes se intercambiavam na base do “quebra um galho, faz uma câmera aí”. Resulta muito difícil estabelecer uma cronologia dos meus trabalhos no período de 1968 a 1973. Fiz a fotografia de vários filmes ao mesmo tempo, fui câmera em trechos de filmes que hoje não conseguiria identificar com exatidão. Eu tinha fome de cinema e não recusava trabalho. As filmagens de O Profeta da Fome foram adiadas e, logo que cheguei ao Brasil, recebi um convite do Affonso Beato para fazer a câmera de Copacabana me Engana, de Antonio Carlos da Fontoura. Não era então comum distinguir as funções do diretor de fotografia e do câmera principal. Na verdade, acho que a função do fotógrafo é criar a imagem, o que inclui a luz, as instruções de enquadramento e movimentação da câmera, a escolha das lentes etc. Se ele opera ou não a câmera, isso é secundário. Digamos que o operador de câmera interpreta e executa as orientações do fotógrafo. Aí entram suas habilidades. Uma câmera na mão bem-feita, nos anos 60, era muito importante. Em Copacabana me Engana, Affonso concentrava-se na luz e no estudo – muito consistente – do estilo fotográfico. Ele queria uma fotografia bem formalizada, com enquadramentos rigorosos. A passagem por Ulm me credenciava para essa estética que admitíamos “européia”. A Nouvelle Vague, exibida no Cine Paissandu, era uma referência constante. Usamos algum carrinho e câmera no tripé, itens que pouco freqüentariam meus trabalhos futuros. Mas a maior parte das cenas era filmada na mão, explorando a luz natural. Na era pré-videoassist (onde o diretor pode assistir em vídeo tudo o foi gravado), muito da responsabilidade pelo resultado final ficava mesmo na mão do cinegrafista. A primeira avaliação só podia ser feita depois de revelado o copião. Trabalhar ao lado do Affonso, naquele momento, além de melhor me introduzir na turma de cinema do Rio, foi uma espécie de pós-graduação. Por pouco essa colaboração não se estendeu a O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, 69, de Glauber Rocha. Na última hora, o produtor Zelito Viana cortou o que seria a minha função. De qualquer forma, eu estava apto a fazer minha estréia oficial como diretor de fotografia em O Profeta da Fome. À sua maneira, esse filme do Capovilla também teve uma imagem cuidadosamente planejada. Buscávamos uma fotografia de alto contraste e estranhamento, uma coisa mais fantasiosa, distante do realismo das imagens do Glauber. O filme é dividido em dez “quadros” e cada um tem estilo próprio de luz e trabalho de câmera. Capô queria dar noção de tempo e distância entre os “quadros”, numa história que se passava também no Nordeste, mas foi filmada inteiramente em São Paulo. Assim, o episódio do faquir crucificado e da matança do boi tinha um aspecto fortemente documental, captado durante a Festa do Divino na cidadezinha de São Luís do Paraitinga. Já a peregrinação dos personagens recebia um tratamento mais expressionista, com imagens distorcidas e locações enevoadas. As cenas da prisão eram o momento do tripé. O resto era câmera na mão. Apesar do verdadeiro portfólio de opções técnicas e de certo esteticismo, percebo claramente que nesse filme comecei a formar minha personalidade como fotógrafo de cinema. Lá estão os planos-seqüência em que os deslocamentos da câmera já antecipam uma idéia de montagem; lá está o minimalismo no uso da luz, assim como a busca de expressividade nos recursos naturais. Lembro que em filmagens noturnas usei luz baixa e “puxei” bastante o filme para reforçar o claro-escuro. Para a cena da violação da moça num depósito de palha de milho, usei a luz do sol que se infiltrava pelas frestas, com um resultado que todo mundo achou muito bonito. Todas as cenas de circo foram feitas num pequeno circo de verdade, num bairro pobre de Itaquera. Quando tivemos que filmar o seu incêndio, queimamos uma tenda em miniatura e ninguém criticou o “efeito especial”. O Profeta da Fome foi um filme rodado em total intimidade com a ECA-USP, onde lecionávamos Capovilla, Bernardet (que faz uma ponta), Paulo Emílio, Roberto Santos e eu. A própria câmera, top de linha da Arriflex, era uma aquisição recente da escola e vinha dotada de lente grande angular, que usamos à vontade. Da equipe participaram vários alunos da primeira turma da ECA, entre eles Aloysio Raulino. Os futuros fotógrafos Antonio Meliande e Cláudio Portiolli também estavam no time, onde conviviam em perfeita harmonia as turmas da Boca do Lixo e da USP. Trabalhei em diálogo permanente com o cenógrafo Flávio Império, que vinha do Teatro de Arena e do Oficina. E José Mojica Marins, no papel do faquir Ali Khan, era um caso à parte. Uma das maiores preocupações da equipe era não quebrar as unhas enormes do Zé do Caixão. O assistente de direção era Hermano Penna, com quem eu teria uma parceria estimulante que culminou com a concepção de Iracema. Na época, o Hermano estava coletando materiais para um documentário sobre o mito do Divino, que mais tarde renderia um Globo Repórter. Sempre que possível, corríamos para filmar alguma manifestação ligada a esse tema, como as Cavalhadas de Pirenópolis, com uma Arri 16 emprestada do Thomaz Farkas e a participação do Dario Chiaverini. Alguns momentos da filmagem de O Profeta da Fome foram registrados por Carlos Reichenbach e estão no prólogo do filme Audácia!, que ele considera “um dos primeiros making of do cinema brasileiro”. Por esse trabalho, eu receberia o prêmio Coruja de Ouro do Instituto Nacional de Cinema e um prêmio em Edimburgo, além do diploma de Ulm. Melhor que tudo isso, ganhei autoconfiança e visibilidade. A partir dali, eu estava, digamos, no mercado. Agrippino, guru da contracultura Aulas, filmes e fotografia me ocupavam permanentemente nesses anos finais da década de 1960. Na ECA, sob a direção de Rudá de Andrade, lecionei iluminação e câmera de 1969 a 1971 – mais uma vez, levado por Capovilla. Os alunos não estavam propriamente ávidos por questões técnicas. A maioria se interessava por direção, crítica e teoria. Ismail Xavier, Plácido de Campos Jr. e Aloysio Raulino, por exemplo, são daquela turma fantástica. Minha disciplina era apenas uma obrigação a ser cumprida. Eu ficava um tanto isolado, mas o ambiente era dos mais interessantes. E de vez em quando era possível fazer um curta. O cinema era uma área de resistência contra o regime militar. Entre os filmes que fizemos na ECA, um documentário registrou a experiência de “ensino vocacional” da USP, que tinha uma proposta pedagógica diferenciada e foi pressionado pela ditadura até fechar. O famoso Centro de Cultura Negra do município de Embu (SP) foi objeto de outro curta coletivo. Fora da faculdade, as filmagens se sucediam desordenadamente. Para o longa Em Cada Coração um Punhal, fiz a fotografia dos episódios Clepsusana, de José Rubens Siqueira, e O Filho da Televisão, de João Batista de Andrade. Com João Batista, faria depois Gamal, o Delírio do Sexo. Em todos esses trabalhos, a regra era filmar na marra, sem financiamento nem qualquer apoio. Eram filmes de ficção, mas a fotografia e o procedimento de decupagem eram típicos de documentário. Saíamos à rua, geralmente numa kombi, parávamos em algum lugar e filmávamos rapidamente, antes que alguém denunciasse a presença dos “barbudos” e houvesse intervenção da polícia. Essa tática foi usada sistematicamente, e eu mais tarde a levaria para Iracema. Mobilidade é o que não faltava, já que usávamos um modelo de câmera Arriflex de chassi pequeno, muito leve, criado na Alemanha para reportagens da 2ª Guerra. Nem sei como essas câmeras vieram parar no Brasil. Não tinham lente zoom, mas em compensação possuíam uma baioneta na frente que permitia a rápida troca de lentes. A ergonomia era nenhuma. Todo o peso da câmera tinha que ser sustentado na munheca porque ela não se prestava a apoiar no ombro. Eu a empurrava contra a cabeça para não balançar e seguia em frente. O visor era precário e a imagem chegava muito fraca ao olho, sem precisão suficiente para fazer o foco por ali. A fotografia, enfim, era feita praticamente no tato – a mão esquerda na haste da câmera e a direita suportando o resto do peso e ajustando o foco com o dedo. De todas as experiências dessa fase, a mais radical foi sem dúvida a de Hitler IIIº Mundo. E para falar dela preciso reportar-me à convivência com seu autor, o incomparável José Agrippino de Paula. Ele se diferenciava dos mais engajados politicamente, como João Batista. Sua proposta era de viver o estado da arte, inspirando-se no The Living Theatre. A casa dele, bem perto da minha em Higienópolis, era um ponto de encontro da contracultura paulista de então. Não havia móveis, mas banheiras, pneus, câmaras de ar de trator, coisas assim. As pessoas se sentavam por ali, consumiam suas drogas e “viajavam” assistindo a filmes super-oito ao som de músicas do Pink Floyd. Fosse nas atitudes mais anticonvencionais, fosse no intenso debate cultural que fomentava, o Agrippino fez a cabeça de toda uma geração naquele momento em São Paulo, inclusive a minha. Vale a pena ler o que Caetano Veloso escreveu sobre a sua “inteligência sui generis” em Verdade Tropical. Agrippino tinha acabado de lançar o romance Panamerica, uma moderna epopéia recheada de alusões a celebridades e situações do cinema norte-americano. Resolveu, então, dirigir um filme sem nunca ter pensado seriamente em cinema. Na verdade, para ele, fazer literatura, teatro, cinema ou um happening era a mesma coisa. Em Hitler IIIº Mundo, Agrippino simplesmente criava as coisas diante da câmera e deixava que eu resolvesse o resto: produção, decupagem, fotografia, sonorização posterior, etc. Depois de inventar a cena, eu ficava filmando com inteira liberdade e ele se afastava às gargalhadas. Se o filme tivesse som direto, ouviríamos seu riso na maior parte do tempo. Hitler não é uma adaptação, mas um filme paralelo ao Panamerica. Feito sem roteiro e difícil de reduzir a uma sinopse, tem, contudo, uma coerência subterrânea na sua exótica mistura de política, sexo, violência e referências místicas. Foi rodado durante mais de um ano. Recebemos a notícia do AI-5 pelo rádio, durante uma reunião na casa do diretor para preparar uma filmagem. Em setembro do ano seguinte, ainda filmávamos uma cena com o Jô Soares numa loja de sapatos da Rua Barão de Itapetininga. Eu estava nervoso porque a Lena já poderia estar no hospital. Ainda pude chegar a tempo de ver nascer a Laís. Tudo dependia de conseguirmos algum negativo, pessoal e condições de filmagem. Eu guardava pontas de chassi dos outros filmes que fazia até juntar o bastante para o trabalho de um dia. Pegava uma câmera em dia de folga de outra produção e ligava para o Agrippino. Ele então criava a cena de acordo com os atores que pudéssemos reunir. Batíamos na porta das pessoas e as chamávamos para filmar. Lembro-me da Ruth Escobar sendo literalmente retirada da cama para fazer uma cena. Agrippino me perguntava de quanto tempo de negativo dispúnhamos, o que era geralmente difícil de precisar com o indicador de metragem daquelas Arriflex. Filmava até o chassi acabar, quase sempre sem corte. Esse sentido de aventura era absolutamente instigante. Podíamos inventar desde as tomadas de rua em que a câmera gira sobre o próprio eixo até a inusitada seqüência do Homem de Pedra, um personagem de quadrinhos que Agrippino criou, fantasiando um ator com placas de isopor. A certa altura do filme, o Homem de Pedra ameaça atirar-se do topo de um prédio próximo ao Viaduto do Chá. A equipe ficou no viaduto apontando para o alto, até que uma multidão se formasse, interrompendo o trânsito. Dessa vez, nosso plano de filmagem contou com a chegada da polícia. Pedimos, então, aos policiais, que nos ajudassem na filmagem da prisão do Homem de Pedra. Muito solícitos para fazer o seu próprio papel, eles subiram até o terraço, procederam à captura e eu filmei até a porta do camburão sendo fechada, de dentro do veículo. A distinção entre ficção e documentário era sempre muito tênue. As cenas do samurai vivido por Jô Soares numa favela, atuando entre crianças e enlatando dezenas delas numa kombi, é exemplar desse tipo de performance súbita dentro da realidade. As locações, igualmente improvisadas, incluíam o banheiro de um posto de gasolina na Via Dutra; um bar onde entramos com uma kombi para fazer um travelling e citar Edward Hopper; um necrotério com cadáveres de verdade; a construção do cenário de O Balcão, dirigido pela Ruth Escobar, onde filmamos as cenas dos torturadores com farda militar. A dublagem e a sonorização foram feitas na ECA, fora dos horários de aula. Na montagem do negativo, o laboratório colocou a faixa de som ao contrário em cerca de 10 minutos de filme, o que fazia os diálogos soarem ao revés. Agrippino achou genial e incorporou o acidente à sua estética. Para além da amizade, formei com Agrippino uma parceria durante longo período. Filmei e fotografei sua peça Rito do Amor Selvagem, atravessada pelo mesmo sopro anárquico, com Stenio Garcia fazendo o papel de Marlon Brando e Flávio Porto, o de Mussolini. Mas o registro em 16 mm, que eu saiba, se perdeu. Durante esse período esfuziante, Agrippino encantou-se pela independência do super-oito, estimulado e orientado em grande parte por mim. Nos anos 1970, quando viveu na África com sua mulher, a dançarina Maria Esther Stockler, realizou filmes pioneiros sobre as origens do candomblé. Na Bahia, entre outras coisas, tentou montar um Fausto só com crianças dos terreiros de candomblé. Apesar de todo o culto, passou décadas no ostracismo. Afastou-se de tudo vitimado por uma esquizofrenia e só a partir de 2002 foi redescoberto e revalorizado. Antes tarde do que nunca. Antunes, Juazeiro e Pantanal Como fotógrafo free lance, trabalhei nessa época para as revistas Íris e Realidade. Esta última vivia sua época de ouro e era um privilégio participar disso. Durante mais de um ano, viajei com freqüência e fiz reportagens muito interessantes sobre, por exemplo, o beato Frei Damião ou certa desova de dinheiro falso na estrada Belém-Brasília, tema que indiretamente iria desaguar no Iracema. Cabiam a mim pautas geralmente ligadas a comportamento, viagens e aventura. Um portrait de três negras pescadoras, que fiz num quilombo do Rio Grande do Norte, rendeu-me o primeiro prêmio do concurso internacional Asahi-Pentax, em 1971. Nessa época eu atuava como fotógrafo fixo do estúdio de publicidade Maitiry – cujos sócios Fernando Lemos, George Torok e Audálio Dantas haviam saído da revista O Cruzeiro. Em 1969, Fernando, que também é artista plástico, foi convidado por Antunes Filho para criar o conceito de fotografia de Compasso de Espera, seu primeiro filme – e único até hoje. Fernando, por sua vez, indicou-me para ser o fotógrafo. A partir do tema do racismo (escritor negro namora modelo branca e o casal é espezinhado pela sociedade), a fotografia deveria exacerbar as massas de preto e de branco, separá-las e trabalhar sua dramaticidade. Recebi do Fernando uma idéia bem precisa de como deveria ser a imagem e dei asas à minha admiração pela fotografia de O Bandido Giuliano. As artistas plásticas Maria Bonomi e Amélia Toledo também contribuíram para desenvolver esse conceito bastante formalista, mas que funciona belamente no filme. O acaso e a improvisação não tinham vez no trabalho do Antunes. Tudo era preparado e encenado em detalhes, com vistas ao controle total. Raramente fui autorizado a tirar a câmera do tripé. Na filmagem da festa noturna, claramente influenciada pelo cinema italiano da época, armou-se um circo enorme de luz, mas por alguma razão atmosférica tudo aquilo começou a explodir como fogos de artifício. No fim das contas, reunindo o que sobrou, filmei exatamente do jeito que gosto – com pouca luz. O trabalho com Antunes foi árduo. Não por interferências diretas na minha área, já que suas maiores atenções se dirigiam aos atores. Mas o preciosismo e o rigor teatral dele conflitavam com os métodos mais rápidos e simplistas da equipe técnica. Ele se afligia porque nós não nos afligíamos como ele. Houve um dia em que sua irritação foi tamanha que ele se atracou com um poste, como se quisesse arrancá-lo do chão. Compasso de Espera tem a cara da cultura paulistana no fim dos anos 1960. Tem o MASP, a Livraria Duas Cidades, os pavilhões da Bienal, painéis da Amélia Toledo, outdoors. E tem a estréia de Renée de Vielmond, descoberta por Antunes Filho na flor dos seus 17 anos. Houve muitos documentários entre os vários filmes que fotografei de 1969 a 1972. Visão de Juazeiro foi minha aproximação ao universo das produções de Thomaz Farkas, cuja família tinha relações com a do meu padrasto. Filmamos em três dias de novembro de 1969, durante a famosa romaria do Padre Cícero. Eduardo Escorel, diretor do filme, ficou com a impressão de que eu não me deixava dirigir. Até certo ponto, ele tinha razão. Desde aquela época, e até hoje, no ato de filmar documentários, costumo sair desembestado com a câmera, independente das orientações do diretor. Não houve nenhum conflito, mas o assunto veio à tona nas filmagens em Juazeiro. Algumas imagens filmadas por mim entraram na montagem final de De Raízes e Rezas, de Sérgio Muniz, outro integrante do grupo que mais tarde seria apelidado de “Caravana Farkas”. Em 1971, fotografei para Ana Carolina o documentário Pantanal do Mato Grosso, tendo Hermano Penna como meu assistente e técnico de som. Essa filmagem foi tipicamente aventureira. O Pantanal, em época de cheia, era um imenso alagado. Tínhamos como base uma fazenda perto de Poconé e, como tema, a caça à onça. A região, bastante inóspita, estava totalmente inundada. Ficávamos todo o tempo em cima de cavalos pantaneiros. A maior parte das cenas foi filmada desse ângulo, com a câmera conectada por um fio ao Nagra (gravador de som) que o Hermano levava num cavalo ao lado. Eu não tinha muita escolha, já que me faltava uma terceira mão para segurar as rédeas. Minha montaria simplesmente seguia os cavalos dos guias, numa fila indiana. Era como se tivesse um trilho fixo para seguir. Os jacarés quase comiam nossos pés no lodaçal quando descíamos para trocar o chassi. Ana Carolina, única e corajosa mulher no grupo, não se furtava a dormir acampada em redes no mato, como todos morrendo de medo dos urros das onças, nem às saídas noturnas para fazer caçadas de jacaré. Sua grande decepção veio depois, ao ver que quase todas as minhas imagens eram ladeadas pelas orelhas do cavalo. Mais uma vez, eu não tivera escolha: se fechasse o quadro, a instabilidade ficaria insuportável; preferi abrir e incorporar as orelhas do nosso “veículo”. Era, pelo menos, um ponto-de-vista bem característico da vida no Pantanal. Para culminar os infortúnios da produção, depois de dias no encalço das onças, perdemos o momento fatídico. Ana teve que filmar a onça viva no zoológico e montá-la com as imagens da fera já abatida, que foi tudo o que encontramos. Apesar desses senões, Pantanal do Mato Grosso é um filme bonito que tem resistido ao tempo. Ainda nessa época, em São Paulo, fotografei o média-metragem Eterna Esperança, parte de uma trilogia sobre a história do cinema paulista dirigida por João Batista de Andrade e Jean-Claude Bernardet (o nome deste último, perseguido pelo AI-5, não consta dos letreiros). Para Regina Jeha fiz a câmera de Bexiga Ano Zero, documentário sobre a história do bairro desde a vinda dos imigrantes italianos até sua demolição para a abertura das novas avenidas. Corríamos contra o relógio, fazendo esse resgate em meio às obras que cortavam o Bexiga ao meio. A Regina queria uma fotografia mais ousada, mesmo que eu tivesse que me atirar com a câmera num carrinho de rolimã ladeira abaixo. Filmagem de risco, em outro sentido, foi o registro da célebre montagem de O Balcão, de Jean Genet, no teatro Ruth Escobar. Sem qualquer preparação, entrei com a câmera, a cara e a coragem no meio de uma encenação normal da peça, onde público e atores praticamente se misturavam no cenário, uma espécie de grande funil de metal. Os espectadores julgavam que eu fosse parte do espetáculo. Num dado momento, o cenário se abria e cada ator saía para um lado. Eu não sabia que rumo tomar. Quando tinha que recarregar o chassi, ficava à procura do meu assistente – mais uma vez o Hermano Penna – e aquilo era visto como mais uma loucura das tantas que aconteciam na peça. No campo da ficção, fotografei a primeira etapa de filmagem do policial O Dia Marcado, de Iberê Cavalcanti, e O Pecado de Marta, drama entre excluídos sociais dirigido por José Rubens Siqueira, que nunca vi finalizado. Também com o José Rubens, faria a câmera do curta Semana de 22, marcando o cinqüentenário do evento. Lembro que entrevistamos o Menotti del Picchia, um dos remanescentes da Semana. O esquema era sempre o mesmo: recursos mínimos, câmera leve e única, planos-seqüência envolventes. Assim fui desenvolvendo o meu método, mais por necessidade que por escolha de estilo. Na pista de Fittipaldi Paralelamente a esses trabalhos ocasionais, no início dos anos 70 participei de um grupo que cultuava o super-oito como alternativa de liberdade na produção de imagens, lugar hoje ocupado pelo vídeo. O super-oito não tinha som direto e a sonorização posterior era complicada, mas dava independência e permitia se passar por amador. Eu carregava minha câmera Nizo como um caderno de notas. Rodava não com intenção de construir um filme, mas como pura experiência de registro de imagens. Exceção profissional rara foi um institucional que eu e Hermano fizemos na Maitiry para uma convenção da Gessy-Lever. O padrão da época era a apresentação de “audiovisuais”: carrossel de slides acoplado a gravador de som. Nós resolvemos inovar com um super-oito, valendo-nos da incrível paciência do Hermano para montar e sonorizar. Usamos muito super-oito na época em que lecionei câmera e iluminação na Fundação Álvares Penteado (FAAP), de 1972 a 1976, em curso de cinema dirigido pelo Rodolfo Nanni. O super-oito me acompanharia até o limiar de Iracema, projeto vendido para a TV alemã a partir de um registro feito nessa bitola. A turma do super-oito incluía meus amigos Dario Chiaverini e Hector Babenco. Sair à rua com a super-oito para filmar sem compromisso, apenas pelo prazer de experimentar, foi uma das atividades mais estimulantes nesses primeiros tempos da minha carreira. No mesmo período, costumávamos nos reunir em torno do projetor de 16 mm de Eduardo Leser para encontros de gastronomia e cinema. Eduardo era hábil em garimpar filmes interessantes na Boca do Lixo e alugá-los a preço baixo, num momento em que cessavam as projeções em 16 mm no interior. Vimos e revimos Deus e o Diabo na Terra do Sol, entre muitos outros, nesse tipo de reunião, da qual faziam parte Babenco e Raquel Gerber. A amizade com Babenco surgiu quando fui indicado para fotografar um documentário que ele fez sobre o MASP. Recém-chegado ao Brasil com a cara e a coragem, Babenco vendeu a Pietro Maria Bardi a idéia de produzir esse filme. O destaque ia para o trabalho da Lina Bo Bardi e o conceito de vazamento e transparência que regia seu projeto arquitetônico. Mas para a equipe, a falta de dinheiro era tanta que o aspecto mais importante da produção era, sem dúvida, a hora do almoço. Para me aprofundar nas questões técnicas do super-oito e do 16 mm, fiz cursos na Kodak, em Rochester (EUA), e na Agfa, em Bruxelas. Depois voltaria a Bruxelas com Babenco para fazer um institucional da empresa que organizou a exposição Brasil Expo 73. Houve então uma manifestação de brasileiros exilados contra a ditadura, e nós éramos o alvo à mão, os supostos colaboradores de um regime odioso. Entre os manifestantes estava a montadora brasileira Susana Rossberg, que eu conhecera no curso da Agfa. Ela gritava, enfiada numa japona: “Pô, vocês estão aí compactuando com esse governo, que absurdo!”. Naquele momento, tive a horrorosa sensação de estar no lado errado das barricadas. Hermano e eu passamos um período filmando para institucionais da empresa do Amaral Neto. Eu fazia a câmera, Hermano fazia o som e Aloísio Leite – que mais tarde iria fundar a livraria Timbre, no Rio – cuidava da produção. Viajamos muito, filmamos em diversos locais do país para um documentário sobre os estádios que estavam sendo construídos para a Minicopa de 1972. Em Curitiba, teríamos que entrevistar o meia-esquerda Gerson antes de um jogo. Procuramos o campeão do mundo em ambos os vestiários quando ele já estava se aquecendo no gramado, aos urros da torcida. Saímos pelo túnel no seu encalço, agitando nossas cabeleiras compridas, somente para ouvir o estádio inteiro gritar: “Bicha! Bicha! Bicha!”. Mais que depressa, demos meia-volta e retornamos para os subterrâneos do futebol. O automobilismo renderia uma experiência bem mais conseqüente quando Babenco me chamou para fazer a câmera volante do documentário O Fabuloso Fittipaldi, em 1973. Foi dele a iniciativa da produção, a partir de um conhecimento pessoal com o piloto prestes a se sagrar campeão mundial. Com a entrada de Rogério Farias como produtor e de Roberto Farias como co-diretor, formaram-se na prática duas equipes. José Medeiros fotografava, então, as cenas mais formais, com câmera no tripé, enquanto a mim cabia fazer os boxes e as entrevistas mais espontâneas, com a câmera na mão. Numa seqüência em que Fittipaldi visita uma oficina em Londres, eu sou visto em ação pela imagem de uma segunda câmera. Foi um trabalho excitante, que nos levou à Europa várias vezes no período de um ano. Atravessamos a Inglaterra com o Fittipaldi dentro do carro, convivemos com ele em sua casa na Suíça, filmei na garupa da sua motocicleta no percurso de reconhecimento da pista de Monza, Itália. O filme cobria sua vida privada e profissional na temporada em que venceu o campeonato mundial, o que tornou o registro especialmente atraente. Era, sem dúvida, no frenesi dos boxes que o melhor acontecia. Eu empunhava livremente minha câmera em meio a pilotos, equipes, starlets, etc., enfiava-me junto com eles nos túneis que levavam à pista, era quase atropelado pelos pneus enormes dos carros. As corridas propriamente ditas eram captadas por uma grande quantidade de câmeras espalhadas em toda a extensão da pista. Mas a primeira de todas, no circuito alemão de Nurburg, foi objeto de um fiasco típico do desorganizado cinema brasileiro da época. Retardamos de maneira imprudente a nossa partida para a véspera da prova. Quando desembarcamos na Alemanha, a bagagem com todo o equipamento tinha sido despachada para algum outro lugar. Era um fim de semana e não pudemos alugar sequer uma câmera de emergência. Assistimos à corrida de braços cruzados, achando que, ao contrário de Fittipaldi, tínhamos feito uma péssima arrancada. Capítulo III América do Sul: tempo de generais Em 1971, fotografei na Alemanha um documentário dirigido pela Lena sobre o pintor concretista e op art Almir Mavignier. Ex-aluno da escola de Ulm, o carioca Mavignier vivia então em Hamburgo, era famosíssimo na Alemanha e pouco conhecido no Brasil. Foi nessa época que conheci, num café de Munique, o jornalista Karl Brugger, com quem formaria uma intensa parceria ao longo da década de 1970. Nesse período, levei-lhe uma cópia de Hitler IIIº Mundo, a seu pedido. Ele estava fazendo um trabalho sobre a censura para a Rádio da Baviera e preparava as malas para vir para o Brasil como correspondente na América Latina. Já naquele café, falou-me da intenção de fazer programas de TV e consultou meu interesse em formarmos uma dupla. Pouco depois, Brugger instalava-se no Rio de Janeiro e iniciávamos juntos uma série de trabalhos free lance para a TV alemã. Sobre a censura às artes no Brasil fizemos grande reportagem para uma revista cultural do ZDF, com entrevistas de Agrippino, Oscar Niemeyer, Jorge Amado e outros criadores. A condição de repórteres de uma televisão estrangeira nos dava trânsito normalmente negado a jornalistas brasileiros. Quando o pessoal do The Living Theatre veio ao Brasil, em 1971, e foi detido por porte de drogas em Belo Horizonte, conseguimos uma entrevista com Julian Beck e Judith Malina no interior do presídio, vigiados por um intérprete da polícia que compreendia o inglês e com a condição de não abordarmos assuntos políticos. Mas a Judith, que falava muito bem o alemão, conseguiu infiltrar algumas referências sobre o complô armado contra eles, com maconha plantada na comunidade que dividiam em Ouro Preto. Essa entrevista foi exibida na TV alemã e rodou o mundo, deflagrando um escândalo internacional que levou o governo brasileiro a liberá-los e deportá-los. Karl Brugger era um alemão com jeito de brasileiro: moreno de cabelos pretos, muito improvisador, falava bom português e tinha uma postura engraçada. Depois mudou-se para uma cobertura em Ipanema. Da beira de sua piscina, com os jornais na mão, narrava as notícias para a rádio com a entonação de quem estivesse correndo na rua e apanhando da polícia. Era o tipo do jornalista furão e muito competente, embora seus olhos não enxergassem bem à distância. No dia da inauguração da ponte Rio-Niterói, em março de 1974, não encontramos helicóptero disponível para fazer as tomadas aéreas necessárias. Fomos, então, para o aeródromo de Jacarepaguá e fretamos um aviãozinho de propaganda. Mas o piloto não tinha autorização para sobrevoar a área da ponte. A partir do seu limite, o Pão-de-Açúcar, teríamos que seguir clandestinamente, de olho no tráfego intenso de aeronaves que filmavam a efeméride. Brugger foi encarregado de ver se o espaço estava limpo em um dos lados, mas eu não confiava na sua visão. Assim foi que, um olho no ar e outro no visor, acumulei as funções de co-piloto e cinegrafista naquele vôo ilegal e imprudente, mas felizmente bem-sucedido. Em outra ocasião, viajamos ao interior do Mato Grosso, num pequeno avião fretado, para cobrir a apresentação do protótipo de uma futura Universidade Humboldt no Brasil. O piloto guiava-se pela onda de vapor da formidável Cachoeira de Dardanelos, que se destacava na floresta densa. Ele comentou conosco que por ali havia índios ainda sem contato com brancos. Curiosos, pedimos que sobrevoasse as aldeias. Num vôo rasante sobre uma delas, vimos os índios escalarem o topo das palhoças e dispararem flechas contra o avião. Filmei tudo com a super-oito. A universidade, afinal, não passava de um campus de palafitas e um único prédio, construído talvez para ter onde pendurar a placa do Médici. O cineasta sueco Arne Sucksdorff era um dos ilustres presentes. O lugar era inviável, insalubre e distante de tudo. É claro que o projeto seria abandonado pouco depois. Indagamos às autoridades locais a respeito dos índios que havíamos visto, mas eles negaram qualquer conhecimento, não dando crédito à nossa história. Foram muitas as viagens com Brugger pelo Brasil e América do Sul, num período conturbado em que os militares do continente não paravam quietos nos quartéis. Cobrimos ambientes pré ou pós-golpistas na Argentina, Uruguai, Bolívia e Chile, mas sempre enfocando o pano de fundo cultural, sem compromisso com a pauta de atualidades. Eu fazia as imagens, Brugger fazia o som e o texto, e o material era enviado para edição na Alemanha. Em várias visitas ao Chile de Allende, documentamos o panorama das artes no país, com os famosos murais de apoio ao governo socialista, o Trem da Cultura, que promovia o intercâmbio cultural entre as cidades e o campo, os compositores mais engajados como Victor Jara, etc. Saímos de lá dois dias antes do golpe de Pinochet. Na verdade, não havia muita distinção entre política e cultura. Os artistas e intelectuais tinham uma atitude tão lutadora quanto os que pegavam em armas. Por isso mesmo, eu e Brugger eventualmente confrontávamos a política em sua face mais dura. Na Bolívia, chegamos a Santa Cruz de la Sierra no dia seguinte ao do golpe do Hugo Banzer, em agosto de 1971. A pauta do Brugger não deixava dúvidas: Banzer era de origem germânica e contava com o apoio da colônia alemã. O clima era tenso e mal desembarcamos fomos detidos por alguma suspeição ideológica. A culpa pode ter sido dos meus cabelos compridos, pois a primeira providência dos militares foi mandar cortá-los. Já estavam com a tesoura na mão quando chegou um telefonema da capital autorizando nossa liberação, por interveniência da embaixada alemã. Em um momento, passei de suspeito a jornalista privilegiado. Em La Paz, estávamos presentes à primeira coletiva do presidente golpista. Banzer supunha que, por sermos da Alemanha Ocidental, estávamos ali para louvar o seu feito. Falava diretamente para minha câmera, e a cada três minutos, quando eu tinha que trocar a bobina, ele interrompia o discurso, deixava os cerca de 100 jornalistas esperando até que eu desse o sinal para continuar. Mais tarde, nos deu uma pequena exclusiva em alemão, agradecendo o apoio recebido. De volta a Santa Cruz de la Sierra, ainda entrevistamos alemães que tinham praticamente levado Banzer ao poder. Era gente mancomunada com a CIA e com tudo o que havia de pior naquele momento. Entre eles havia um certo Coronel Senich, que se orgulhava de ter feito parte da tropa que dera cabo de Che Guevara nas selvas bolivianas. O conteúdo chocante desse material deu muito prestígio à dupla Brugger-Bodanzky na Alemanha. Depois disso conseguimos emplacar vários programas na TV e, individualmente, abri uma frente de trabalho e de co-produções que seria fundamental para a continuidade da minha carreira. Rio Negro: em busca de Akakor A maior aventura da vida de Karl Brugger, assim como a sua morte, teria lugar no Brasil. Ela começou na embaixada alemã em Brasília, quando Brugger conheceu o índio Tatunca Nara, que se dizia filho mestiço de uma freira alemã e detentor dos segredos de uma civilização perdida no coração da Amazônia. Os relatos de Tatunca eram de fato prodigiosos. Sua mãe teria feito parte de um grupo de nazistas que vieram implantar uma base na Amazônia. Havia também a história de um submarino alemão que subira o Amazonas e se perdera, ficando sua tripulação para sempre no meio da floresta. No total, cerca de 2 mil soldados alemães desembarcados no Brasil durante a 2a Guerra ainda estariam vivendo numa localidade chamada Akakor. Ali seria a cidade sagrada da tribo dos Ugha Mongulala, um povo “escolhido pelos deuses” quinze mil anos atrás. Tatunca Nara falava de grandes catástrofes que devastaram a terra e do soberano Lhasa, que reinara sobre a América do Sul na época da civilização egípcia. Descrevia gigantescas cidades de pedra e aldeias subterrâneas onde teriam habitado seus ancestrais divinos. Dizia que tudo isso estava registrado num documento intitulado “Crônica de Akakor”. Tatunca Nara falava e Karl Brugger anotava, embevecido. Brugger era fascinado por hipóteses mitológicas como a de Eram os Deuses Astronautas?, de Erich Von Däniken, muito em voga no início da década de 1970. Mas ele não se contentava em ouvir. Resolveu fazer uma expedição a Akakor, em companhia do amigo índio e do cinegrafista de sempre. Alugamos um barco em Manaus e partimos Rio Negro acima. Era ano de muita seca, rio baixo e constantes ameaças de encalhe. Depois de quase uma semana de viagem, o barco finalmente encalhou e não pudemos seguir. Tatunca alegou que seguiria sozinho numa canoa para avisar a tribo da nossa chegada. Trocou sua roupa de branco por uma espécie de fantasia de índio e saiu remando. Levou uma câmera fotográfica e algum dinheiro do Brugger. É claro que não voltou. Seu comportamento durante a viagem era o de quem só queria tirar vantagem da situação de ter um alemão mitômano acreditando piamente em suas histórias. Brugger regressou ao Rio sem colocar em xeque os intentos de seu guia. Meses depois, Tatunca estacionou um caminhão na porta do edifício onde Brugger morava e subiu para devolver a câmera e um filme velado. Contou que a aura dos índios havia queimado o filme e propôs uma segunda expedição. Eu dissuadi Brugger naquele momento, mas sua crença nas maravilhas de Akakor permaneceu incólume. Para ele, a imaginação de uma só pessoa não seria capaz de criar tantos detalhes. Brugger colecionava fotos de satélite, que examinava com lupa e onde identificava formas de pirâmides, confrontava aquilo com mapas, etc. Alguma coisa devia haver por ali, supunha. Entre ele e Tatunca criou-se uma amizade por troca de interesses. Tatunca precisava de dinheiro e Brugger, de histórias. A síndrome de Akakor alcançou o próprio Erich Von Däniken da forma mais estapafúrdia. Durante nossa viagem pelo Rio Negro, Tatunca Nara lia Eram os Deuses Astronautas? e copiava aqueles hieróglifos. A partir dali, criou uma espécie de escrita, que dizia ser da sua tribo. Brugger reproduziu esses escritos no seu livro A Crônica de Akakor, publicado em 1976 na Alemanha e em 1977 nos Estados Unidos. Ao ser convidado para escrever o prefácio desse livro, Däniken ficou impressionado com as “coincidências” grafológicas e interessou-se diretamente pelo assunto, chegando a viajar à Amazônia e contribuir para a caixinha de Tatunca. Um dia, ouvindo o programa de rádio do Brugger, em Munique, quase caí para trás diante do seu relato pormenorizado de como chegara até Akakor, em companhia de Tatunca e de um certo cinegrafista. Por sorte, ele tratou-me por pseudônimo. Não fosse assim, minha reputação de profissional sério estaria para sempre abalada na Alemanha. As filmagens da expedição, em película 16 mm, estão no arquivo do Brugger, em Munique. Restaram-me as fotos e algumas bobinas de super-oito. Brugger aposentou-se em fins de 1983 e pretendia dedicar-se exclusivamente à investigação de Akakor. No dia 2 de janeiro de 1984, ele tomava um chope no Barril 1800, um bar de Ipanema, com seu substituto, Ulrich Encke, e dava-lhe conselhos sobre como viver no Brasil. Um deles foi: “Em caso de assalto, nunca reaja”. Logo ao saírem dali, foram abordados por um rapaz no canteiro central da Avenida Vieira Souto. Mesmo sem ter feito qualquer esboço de reação, Brugger foi atingido no coração por um único tiro fatal. Algumas teorias conspiratórias foram erigidas para “explicar” e apontar culpados pela sua morte. Não acredito em nenhuma delas. Quanto a Tatunca Nara, já foi guia de Jacques Cousteau e prometeu levar muitos estrangeiros para conhecer sua cidade misteriosa no Alto Amazonas. Consta que alguns deles nunca retornaram. Brasília: Valderez e a repressão A saudade de Brasília fez com que eu a escolhesse para cenário do meu primeiro ensaio de direção cinematográfica. O tema de Caminhos de Valderez nasceu de minhas observações, à época da UnB, sobre a tendência de fuga para o misticismo entre a população brasiliense. Já naquela época, Brasília e seus arredores eram um grande celeiro místico e esotérico, apinhado de cartomantes, fanáticos, terreiros de umbanda, o Vale do Amanhecer, a Cidade Eclética, etc. Todos os meus amigos, e até a minha prima Sylvia Orthof, tinham alguma ligação com aquele mundo. Hermano Penna e eu, que juntos roteirizamos e dirigimos o filme em 1971, queríamos retratar essa dualidade de Brasília não com um documentário puro e simples, mas através de uma personagem ficcional que a representasse. Alguém que tivesse uma existência civil comum e uma atividade paralela no campo do misticismo. Sylvia indicou uma aluna de seu grupo de teatro, Valderez Reis, moça bonita e interessante, que tinha laços com a umbanda. Criamos com ela uma personagem-homônima, dona de casa, esposa de funcionário público e mãe de dois filhos, que tinha um lado identificado com o fantástico. Em parte, o filme documenta elementos do cotidiano real de Valderez, inclusive o terreiro que ela freqüentava, com boa dose de improviso no processo. Mas também ficcionalizamos a narrativa, inserindo a personagem em outros contextos místicos e criando sua vida de mãe de família. Em dado momento do filme, ela entra em pleno delírio num ritual de macumba à beira do lago, culminando com um grande grito que tanto pode ser um orgasmo, como um sinal de desespero ou mesmo de salvação. O filme termina com essa indagação. Mas havia também um fundo político. Valderez via-se perseguida por um grupo de policiais e mal conseguia escapar. Parecia atingida por um trauma político que poderia ser real ou fruto de sua imaginação. A idéia era retratar o clima de opressão e mostrar como as pessoas se alienavam por meio da religião. Filmei com a minha Beaulieu 16 mm e usamos apenas atores não profissionais, arregimentados entre amigos que tínhamos em Brasília, além de alunos e familiares de Sylvia. A montagem foi feita na Alemanha, um ano depois, quando eu já começava a trabalhar para um instituto da área de pedagogia em Munique. Para os alemães, eu estava apenas editando um curioso filme sobre macumba na capital brasileira. Para mim, era algo bem mais complexo. Mas nem eu nem Hermano jamais apresentamos esse média-metragem como um trabalho realmente concluído. Foi apenas uma experiência, que nos ajudou a compreender melhor o potencial de interação entre a realidade e a ficção, o planejamento e o imprevisto. A essa altura, eu já estava certo de preferir o cinema à fotografia. A cumplicidade e a criação em equipe me agradavam bem mais que o trabalho solitário do fotógrafo. Mesmo quando sai com um repórter, o fotógrafo nem sempre vai buscar seus motivos nos mesmos lugares. Continua sozinho. Por outro lado, o simples trabalho de retratar a realidade não me satisfazia. Eu queria interferir na realidade. Daí veio o desejo de dirigir meus próprios filmes, em vez de apenas fotografar os dos outros. A idéia de buscar uma interação entre documentário e criação ficcional me apaixonava desde que tomei contato pela primeira vez com os filmes de Jean Rouch e John Cassavetes. Admirava o humor de Rouch e a naturalidade com que ele conduzia não-atores em seus filmes africanos. No Cassavetes de Husbands, 70, por exemplo, impressionavam-me o despojamento com que ele filmava os atores profissionais, a maneira como eles improvisavam e a câmera que os flagrava de maneira quase documental. Outro filme que me marcou nessa época foi The Harder They Come (Mais Duramente Vêm), 72, de Perry Henzell, que lançou a música reggae no mundo e reencenou experiências da vida de Jimmy Cliff. Eram todos filmes de câmera leve, com ênfase nos planos-seqüência e acentos documentais. Revendo esse período da minha carreira, acho que me pautava entre dois parâmetros opostos: não queria ser um Jean Manzon, símbolo do documentarismo de propaganda da direita, com fotografia excelente e quadrada, câmera no tripé e tudo arrumadinho como um cenário da Disney; nem queria ser um guerrilheiro. Já me expunha demais com os trabalhos do Brugger. Tinha que estar constantemente na rua filmando, queria ter liberdade para ir e voltar da Alemanha à hora que quisesse. Preferia não me engajar diretamente numa ação política que cerceasse meus movimentos. Mas a simples condição de simpatizante e a convivência com os amigos mais comprometidos já implicavam riscos. Eu era muito próximo, por exemplo, do Vladimir Herzog. Poucos dias antes de sua trágica prisão, ele revelou fotos do seu pai no laboratório em que converti um dos banheiros do meu apartamento. No auge da ditadura, o perigo estava sempre a um passo. Um toque de campainha ou uma sirene podiam ser motivo de sobressaltos. As pessoas dormiam prontas para serem presas ou terem que fugir no meio da noite. Por algum tempo escondemos um casal em nossa casa. Eles dividiam um quarto com o berço da Laís. Um dia nos deparamos no ônibus com o retrato dos nossos hóspedes num cartaz de “Procurados”. Até que o contato definisse outro lugar para eles, tivemos de conviver com aquela tensão, demitir a empregada e ocultá-los dos meus pais, que moravam no andar de baixo. No dia em que eu, Hermano Penna e um correspondente da TV italiana voltávamos de uma entrevista com o bispo de Volta Redonda, Dom Waldir Calheiros, nosso táxi alugado esbarrou num caminhão na Via Dutra e capotou. Nenhum de nós se machucou seriamente, mas o carro ficou destruído e o equipamento se espalhou pela pista. Enquanto o recolhíamos, parou um carro do Exército e fomos “convidados” ao quartel da Academia Militar das Agulhas Negras. Queriam saber que material era aquele. Temendo que detivessem as fitas, algumas com depoimentos de pessoas que já estavam na clandestinidade, eu fui abrindo as latas, todo solícito, e com isso velando os filmes, um a um. Hermano alegou que precisava rebobinar as fitas do Nagra, quando na verdade as estava apagando. Tudo isso ao som dos berros do italiano, que clamava por seu embaixador. Alemanha, Jamaica e Brasil: interlúdio pedagógico Parte da Europa vivia uma era de medo e turbulências políticas no início da década de 1970. O grupo Baader-Meinhof, na Alemanha, e as Brigadas Vermelhas, na Itália, faziam do terrorismo uma manifestação extrema do pensamento de esquerda europeu. Entre as organizações mais progressistas da Alemanha havia uma simpatia pelas lutas de libertação do Terceiro Mundo, incluindo a questão dos refugiados políticos brasileiros. Estudantes, cineastas e produtores interessavam-se por projetos relacionados a essas causas. Wolf Gauer era um deles. Estudante, germanista, Wolf estava vivendo com uma brasileira, Stefani Wilberg, e era bem relacionado com os brasileiros de Munique. Travamos nosso primeiro contato numa festa e logo surgiu uma grande amizade, nutrida pela identificação política e profissional. Em pouco tempo, passei a me hospedar na sua casa enquanto estava na Alemanha. Wolf tinha a oportunidade de produzir roteiros para o Institut für Film und Bild in Wissenschaft und Unterricht (Instituto do Filme e da Imagem para a Ciência e o Ensino), uma entidade pedagógica federal. Resolvemos somar nossas aptidões e criamos, em 1971, em Munique, a produtora Stop Film. Para mim, era importante dispor de uma estrutura mais sólida na Alemanha, uma vez que as oportunidades de trabalho no Brasil eram cada vez mais difíceis por causa da censura e da repressão policial. A venda do material de Caminhos de Valderez abriu-me as portas do instituto para montar o filme e nos credenciou a outros trabalhos. O FWU tinha um orientação avançada no sentido da reforma do ensino e da abertura para temas ligados a minorias, Terceiro Mundo etc. De alguma maneira, eu me sentia em casa. Nossa primeira encomenda, em 1973, foi plantar uma câmera em salas de aula onde havia crianças superdotadas ou inadaptadas ao regime normal da escola, a fim de observar como eram tratadas por colegas e professores. A idéia era discutir o método habitual de segregar aquelas crianças em turmas especiais, em vez de integrá-las aos demais. Rodávamos com película 16 mm, em colégios de norte a sul do país, com Wolf e Achim Tappen no som direto. O filme, laureado com o prêmio Pradikat (“Muito Recomendável”), chamou-se Der verhaltensgestörte Schüler, que pode ser traduzido literalmente por “O Aluno de Comportamento Problemático”. No mesmo ano de 1973, fizemos três viagens à Jamaica para realizar um documentário sobre colonos alemães que viviam isolados numa cidade das montanhas, muito pobres e em condições primitivas. Filmamos nas cidades jamaicanas de Kingston, Cambridge e principalmente na pequena Seaford-Town, onde nos hospedamos num convento habitado por freiras de 80 anos em média. Dali saíamos para filmar o dia-a-dia miserável daqueles camponeses louros, chamados Müller, Grosskopf, etc., descendentes de uma geração que emigrou para a Jamaica na primeira metade do século 19, mas já completamente desvinculados de sua cultura de origem. Deutsche Auswanderer auf Jamaika (Emigrantes Alemães na Jamaica) queria mostrar aos estudantes que a situação social não guarda qualquer relação com raça ou natureza, mas com questões históricas e políticas próprias do local onde se vive. Em todos esses trabalhos, contávamos com a consultoria especializada de professores ligados ao instituto. Em alguns, como o documentário da Jamaica, eu podia acompanhar todo o processo de realização, ficando com o crédito de co-diretor, junto com Wolf Gauer. Mas como minha base era o Brasil, muitas vezes não podia participar da roteirização e da edição do filme, quando então assinava somente a fotografia. Co-dirigi com Wolf também Industrialerarbeiter in Deutschland – Industrialerarbeiter in Brasilien, que confrontava a situação de dois operários da Volkswagen e suas famílias, um em Wolfsburg (cidade-berço da VW na Alemanha) e outro em São Bernardo do Campo. Ambos desempenhavam a mesma função – montador volante – e eram sindicalizados. No mais, tudo era diferença. Reinhard Ludwig ganhava 1.600 marcos mensais, tinha um apartamento razoável, um bom seguro de vida, as crianças na escola etc., mas era bastante pessimista em relação ao futuro. Já o brasileiro Manuel Silveira, com salário equivalente a apenas 600 marcos e vida muito menos confortável, sustentando família de quase 20 pessoas, parecia mais confiante. A História comprovaria essa impressão: o processo de automação das fábricas ceifou o emprego de Reinhard pouco depois, enquanto Manuel ainda se beneficiaria do movimento sindicalista do ABC no fim da década. Durante as filmagens, fizemos uma entrevista com o Lula, que por alguma razão não entrou na edição final. Afora esse curioso paralelo entre Brasil e Alemanha, o documentário fazia outros: o samba e o futebol de várzea em São Bernardo contra a desolação e o tédio de Wolfsburg; a liberdade de movimentos de Reinhard e a entrada dos operários brasileiros na fábrica como se fosse numa caserna, orientados por guardas armados de cassetetes. Em detalhes como esse, a ditadura militar mostrava sua cara. Realizamos seis filmes para o FWU no período de 1973 a 1976. Um deles, Fortschritt oder Entwicklung? (Progresso ou Desenvolvimento?) questionava os investimentos e os interesses estrangeiros no Terceiro Mundo. O assunto dizia respeito diretamente às relações entre Alemanha e Brasil. Na época, a Volkswagen tinha um projeto polêmico na Amazônia: uma grande fazenda onde se produziam imensas queimadas e que ia se transformar em fazenda de gado, com brutal prejuízo para a qualidade da terra. Houve uma denúncia e os acionistas obrigaram a VW a vender a fazenda. O filme não tratava disso especificamente, mas do seu contexto geral. Esse trabalho foi feito paralelamente a Iracema, como uma forma de ajudar a viabilizá-lo. Algumas imagens estão presentes nos dois filmes. Capítulo IV Transamazônica: a face triste do progresso A primeira semente de Iracema germinou num posto de gasolina à margem da rodovia Belém-Brasília, em 1968. Enquanto esperava que o repórter da revista Realidade apurasse alguma coisa, fiquei dois dias observando a movimentação de caminhoneiros e prostitutas em torno do posto. A estrada ainda era de terra e as “Iracemas” e “Tiões” estavam todos ali: meninas caboclas de 12 ou 13 anos divertindo homenzarrões de todo o Brasil por alguns trocados. Saí do lugar com a decisão de levar aquela história inédita para o cinema. Hermano Penna, com sua vivência do interior do Brasil e a afinidade já construída em tantos trabalhos conjuntos, era meu parceiro natural. Desenvolvemos juntos o argumento do filme, 11 páginas datilografadas que ele redigiu e onde consta, já na primeira frase, o termo “documentário-ficção”. O Babenco também colaborou num primeiro rascunho, feito na casa dele. Tião Brasil Grande seria o chofer que personifica e ao mesmo tempo critica a cartilha desenvolvimentista da época. Iracema seria a jovem cabocla que se prostitui por um misto de ambição e inocência. Não havia entre nós a consciência de que o nome fosse um anagrama de América, nem a intenção de fazer paralelos com a famosa personagem de José de Alencar. Iracema era, assim como Nazaré, um nome muito comum entre as moças da região. Uma vez delineados os dois personagens, todo o resto foi se compondo em torno deles. São dois mundos que se encontram: o da estrada e o do rio. Assim era a história de todas aquelas mulheres – viviam mudando de lugar constantemente, pedindo carona, amasiando-se com os motoristas e avançando cada vez mais estrada adentro. Muitas caíam na vida ainda meninas, fascinadas com a cidade ou necessitadas de sobreviver. A prostituição, muitas vezes, era uma fase, após a qual elas retornavam às origens, casavam-se, tinham filhos, etc. A história de Tião e Iracema era um pretexto para mostrar o que estava acontecendo com a Amazônia. Quando reunimos condições para filmar, a construção da Belém-Brasília tinha terminado e começava a saga da Transamazônica. A propaganda oficial vendia aquilo como a chegada do progresso, a entrada do homem brasileiro através da estrada para ocupar a Amazônia antes que outros a ocupassem. Questão de segurança nacional. Não havia uma reportagem, uma imagem sequer sobre o desastre irreversível que essa ocupação estava provocando. A estrada, o maquinário, a derrubada da floresta, tudo era visto como coisa positiva, e não como uma grande devastação. Camponeses do sul do Brasil estavam trocando suas pequenas terras, ameaçadas por latifúndios como o da soja, por promessas de imensidão disponível na Amazônia. Não percebiam que, sem investimento, nem infra-estrutura, aquilo podia dar em nada. Na primeira ocupação, extraíam a madeira de lei, que dava um bom dinheiro. Depois queimavam a terra, faziam um primeiro e um segundo pasto, que ainda eram excelentes por causa da terra recém-queimada. Mas, passado o segundo ano, a área se desertificava e aos lavradores só restava seguir em frente, deixando para trás a terra arrasada. Esse anti-modelo foi trazido pela estrada e alastrou-se pelas vicinais, prevalecendo até hoje. Além da questão das prostitutas, queríamos falar da morte da floresta secular, do contrabando de madeiras de lei, do conluio entre polícia e grileiros de terra, da utilização de trabalho escravo e da ideologia do “ninguém segura esse país”, mote de propaganda da ditadura. O argumento original terminava com Iracema vagando pela rodoviária de Brasília, entre as pessoas que embarcavam para os mais diversos pontos do país. Wolf Gauer traduziu esse argumento para o alemão e o apresentamos ao Kleinefernsehspiel, programa do ZDF dirigido por Eckart Stein que admitia idéias mais arriscadas no campo da ficção experimental. Eles pediram um roteiro mais detalhado, que nos levou à primeira de nossas três viagens pelo cenário do filme. Wolf pôde, então, pela primeira vez confrontar seus conhecimentos teóricos sobre o Brasil com a realidade do país. A Amazônia já era assunto freqüente em sua casa, em Munique, sobretudo quando eu estava presente com minhas fotos e rolinhos de super-oito. Dessa forma, ele era tudo menos um estranho quando saímos de São Paulo num fusca rumo à Transamazônica. Nessa viagem seguiu também Orlando Senna, que eu tinha convidado para fazer o roteiro. Eu o conhecia através da Lena e houve uma imediata empatia em relação ao projeto de Iracema. Vencida a grande distância até Brasília, dali tomamos a Belém-Brasília e nos enfiamos pela Transamazônica, onde o fusca era quase tragado pelas enormes valas abertas pelos pneus dos caminhões. Marcamos todas as locações onde depois voltaríamos para filmar. Tratamos de delimitar bem a área na estrada PA-70, em torno de Marabá (PA), registrando tudo com fotografias e super-oito. Com essas imagens e o roteiro preparado pelo Orlando, a TV alemã concordou em produzir o filme. O interesse não era propriamente pelo tema da Amazônia, mas pela forma cinematográfica proposta. No início de 1974, já tínhamos a previsão de filmar em outubro e novembro daquele ano, incluindo a data da Festa do Círio de Nazaré. Restava a difícil tarefa de encontrar a atriz. Nunca pensei numa atriz profissional, mas numa menina que se integrasse naturalmente àquele ambiente. Tampouco seria uma prostituta de fato, porque essas não tinham endereço fixo e eu poderia não reencontrá-la na hora da filmagem. Eu e Orlando procuramos em vão no meio teatral de Salvador e de Belém. Víamos muitas “Iracemas” nas ruas, em festas, shows, portas de colégio, etc., mas nos decepcionávamos porque ora faltava espontaneidade, ora faltava fala, ora faltavam dentes... No último dia da procura, um chofer de táxi nos deu uma dica preciosa: “Nesse auditório de programa de rádio, de manhã ou na hora do almoço, vocês vão encontrar todas as meninas matando aula”. De fato, no tal auditório havia centenas de garotos e garotas. Num cantinho estava Edna Cerejo, a imagem perfeita da nossa Iracema. Propusemos fazer umas fotos no Mercado Ver-o-Peso, onde ela encontrou a mãe lavadeira e levou uma bronca por estar gazeteando a escola. Era do que precisávamos: uma menina bonita, fotogênica e espontânea, com estrutura familiar adequada, apta a assinar um contrato de trabalho com toda lisura. Edna nunca tinha entrado numa sala de cinema até então. Para fazer o papel, adotou o pseudônimo de Edna de Cássia. A escolha de Paulo César Pereio impôs-se por todas as razões do mundo. Eu já o conhecia de Gamal e não queria que ele inventasse nada de especial. Bastava ser o Pereio, com sua ironia e carga de contestação. Escalar o Pereio de Roda Viva para fazer um simpatizante brechtiano do governo Médici já era, em si, uma provocação. O resto ficaria por conta do próprio ator. Câmera leve, atores soltos Filmamos no auge da construção da Transamazônica, quando a obra se revestia de toda uma estratégia militar. O percurso da estrada era pontuado por barreiras militares e os ecos da guerrilha do Araguaia chegavam muito frescos à região. Saímos de São Paulo numa kombi emprestada pela Volkswagen, que seria o veículo da produção. O técnico de som Achim Tappen, da equipe da Stop Film na Alemanha, havia se integrado ao grupo, assim como Horst Wiedemann, do instituto alemão, por conta do documentário Progresso ou Desenvolvimento?. No Rio, apanhamos Orlando e Conceição Senna. Orlando queria participar das filmagens e eu o contratei para fazer a preparação dos atores. Mais adiante, dividiríamos a assinatura de co-direção, embora pelo contrato original com o ZDF o filme fosse uma realização minha e de Wolf Gauer. Finalmente, no Pará, juntou-se à equipe o assistente Francisco Carneiro, o Mou, filho de um dono de cinema em Castanhal. Instalamo-nos o mais discretamente possível num hotel modesto entre a rodoviária e a zona do meretrício de Belém, enquanto arregimentávamos atores coadjuvantes em grupos de teatro locais. O médico e crítico de cinema Pedro Veriano e sua mulher, Luzia, foram providenciais na logística e na manutenção do sigilo quanto às nossas intenções. Para todos os efeitos, estávamos filmando uma simples história de amor. Por outro lado, a produção destinava-se oficialmente à TV alemã. Sabíamos que a TV brasileira não passaria um filme como aquele. E a hipótese de uma distribuição em cinemas no Brasil, onde a bitola de 16 mm não tinha qualquer espaço, era tão longínqua quanto os confins da Amazônia. Quando filmávamos a Festa do Círio, cruzamos com uma equipe alemã que fazia um documentário para a TV. Eles eram mais numerosos e bem equipados do que nós, que preparávamos uma ficção. Ficaram tão impressionados que fizeram uma reportagem sobre aquele estranho exército de Brancaleone a serviço da TV alemã na Amazônia. Nosso equipamento se resumia a uma câmera Éclair muito leve – que eu vinha usando nos trabalhos do instituto alemão –, uma boa lente zoom, um tripé, uma caixa de luzes com seis cabeças de lowell, um pouco de fio elétrico, algumas lâmpadas e o Nagra operado pelo Achim. Tentamos obter um caminhão junto à Mercedes Benz, mas eles negaram e ainda riram de nós: “Vocês vão ter que usar Mercedes de qualquer maneira...”. De fato, tivemos que alugar por 15 dias um Mercedes, o único a fazer frente às condições da estrada. Por sorte, o proprietário, o simpático Lúcio, acabou fazendo uma participação como amigo de Tião e criando uma dinâmica muito interessante com o Pereio. Para que Edna melhor compreendesse a evolução de sua personagem, rodamos os três blocos na ordem em que se sucedem no filme: o rio, o Círio e a estrada. A primeira parte, basicamente documental, foi feita no Rio Guamar, um pequeno furo que, embora fique em frente a Belém, assemelha-se à Amazônia profunda. Queríamos passar a idéia de uma vida integrada ao ritmo da natureza, uma certa harmonia em torno daquela família ribeirinha que chega a Belém para negociar sua colheita. Era preciso também sublinhar a importância do rádio para a comunicação naqueles ermos, preparando o papel de agente de propaganda que ele vai ter no decorrer da história. Esse bloco conclui com a chegada de Iracema ao Ver-o-Peso, seu desligamento da família e primeiros contatos com o mundo da estrada. O bloco da Festa do Círio de Nazaré foi filmado igualmente como puro documentário, apenas integrando Edna à multidão. Não era fácil mantê-la no quadro e não perdê-la de vista no empurra-empurra do cordão do Círio. Para essas seqüências contamos com uma segunda câmera, operada pelo Wolf do alto de um prédio. Gravamos com o Nagra as transmissões radiofônicas daquela manhã, de onde vem o fantástico pronunciamento do arcebispo de Belém, que, com sotaque estrangeiro, articula a religião com o ufanismo da proposta de integração nacional. A partir daí, com o bloco da estrada, começavam nossos maiores desafios em matéria de dramaturgia e direção. Tínhamos um roteiro-guia, que não era mostrado aos atores. Explicávamos a situação, dizíamos o que não poderia deixar de ser falado, e os deixávamos à vontade diante da câmera. Edna, por exemplo, tinha uma idéia básica da situação de Iracema na cena, mas não sabia exatamente o que Pereio ia dizer ou perguntar. Tinha que reagir à sua maneira. E ela, muito brincalhona e irônica, geralmente se saía bem das provocações. O momento em que Pereio a expulsa do caminhão é exemplar dessas virtudes da improvisação. O som direto afastava a possibilidade de maiores interferências da direção durante a filmagem dos planos. As coisas não eram feitas “para” a câmera, mas entre os próprios atores, que tampouco sabiam como a cena ia terminar. Eles não se posicionavam para a câmera, mas eu os seguia e criava o quadro em torno deles. A equipe tinha que estar sempre atrás de mim, de maneira a não aparecer. Não que houvesse uma preocupação especial em ocultar o aparato. Eu só não queria quebrar a fantasia a toda hora, mesmo num semidocumentário. Em época de pouca penetração da televisão fora dos grandes centros, a presença da câmera não causava constrangimento nem expectativas à maioria dos figurantes. Eles não pareciam ter plena consciência do registro. Acredito que éramos vistos como turistas – o equipamento era apenas uma contingência a mais. Não havia a preocupação de evitar que as pessoas olhassem para a câmera nas cenas de rua, já que realidade e encenação se equivaliam. Intencionalmente, eu sempre me apresentava já com a câmera no ombro. Assim conversava com as pessoas, preparava a cena e começava a filmar mediante uma simples troca de olhares com o resto da equipe. Não havia claquete nem “Atenção! Cena! Corta!”, etc. Mesmo sem entender o português, Achim estava sempre com o Nagra a postos quando eu acionava a filmadora. Muitas vezes, a cena terminava e os atores ou figurantes nem se davam conta de que já havia começado. “Take 2” era uma expressão sem lugar no nosso vocabulário. Naquela forma de trabalhar, a repetição tornaria a cena “representada” e falsa. Se o ator não rendesse o que esperávamos, não adiantava forçar. Assim, se uma cena não dava certo, era descartada e passava-se à seguinte. O importante era ter um grande número de cenas que me permitisse não só cobrir as etapas do roteiro e os temas fundamentais, como montar devidamente o filme. Filmávamos sempre muito rápido, tanto por limitações de produção, como pela necessidade de não aparecer muito e gerar indagações sobre o que fazíamos. Escondíamos os negativos e o dinheiro da produção em fundo falso da caixa da câmera, sempre preparados para um eventual confisco. Certo dia, fomos abordados por policiais num posto de gasolina, após denúncia de que haveria porte de maconha na equipe. Percebendo que a intenção final era nos achacar, Achim, ex-marinheiro muito forte, por pouco não tentou desarmar um policial franzino. Numa das muitas barreiras militares que cruzávamos, percebemos que um soldado ficou fascinado pelo isqueirinho Bic do Achim, de um tipo que ainda não havia no Brasil. Achim o presenteou com a novidade. Tinha trazido um estoque. Quando chegamos à barreira seguinte, a notícia já viera por rádio e os soldados perguntavam pelos isqueiros. Edna, muito debochada, passou a acenar os isqueirinhos Bic pela janela quando nos aproximávamos de cada barreira, abrindo nosso caminho pela Transamazônica. Éramos todos peões de estrada A forma de produção de Iracema não favorecia uma divisão rígida de funções na equipe. Havia sobretudo a integração em torno de uma aventura e de uma responsabilidade comuns a todos. Mesmo assim, é possível dizer que Orlando Senna criava a ambientação para Pereio e Edna atuarem, orientava os figurantes e os populares que fossem presenciar uma filmagem, além de ajudar muito na produção. Eu me virava sozinho com a luz e a câmera. Wolf Gauer atuava como meu assistente direto, alguém que podia ter um olho crítico e dialogar comigo a partir daí. E também carregava o chassi, entre outras atribuições. Seu crédito de co-produtor referia-se principalmente ao apartamento que ele deixara como aval junto ao ZDF. Conceição Senna foi de grande importância não só como atriz, mas também na escolha de figurinos e nos cuidados tutelares com a Edna. Até hoje, de brincadeira, Pereio reclama da estrita vigilância da Conceição sobre aquele pitéu caboclo. Eu só soube que Pereio não sabia dirigir no momento de rodar a primeira cena com o caminhão. “Mas, Pereio, você aceita o papel de um caminhoneiro, vem até Belém e não sabe guiar?”, espantei-me. A solução foi fazer todas as cenas do veículo em movimento com o chofer de verdade. No único momento em que precisei filmá-lo ao volante, aproveitando uma reta da Transamazônica, o trajeto acabou se estendendo até uma ladeira ascendente, sem que Pereio soubesse trocar de marcha. O caminhão subia moribundo, o motor aos roncos, ameaçando desabar de ré a qualquer momento e chocar-se com a nossa kombi, que seguia atrás. O motorista chegou a saltar da kombi para safar-se do desastre iminente, que só não aconteceu por milagre. Longe do volante, porém, Pereio passava perfeitamente por um caminhoneiro gaúcho como tantos ali: sotaque, postura, deboche. Na seqüência do restaurante, por exemplo, nada foi alterado em relação à rotina normal do lugar, a não ser a reserva de uma mesa no meio do salão. A câmera também se movia livremente para captar o que acontecia ao redor. A ambientação verdadeira reforçaria a verdade dos diálogos. A verdade estava também no uso freqüente dos planos-seqüência. Não que eu os construísse deliberadamente, mas era a forma natural de trabalhar naquelas condições. Ao lidar com não-atores, é complicado cortar para fazer contracampos, closes, etc., pois isso retira toda a naturalidade. Faço, então, com que a câmera costure a ação, de certa forma me antecedendo à montagem. O hábito fez dessa a minha maneira de dirigir. Eu quero contar a história com a câmera, vou empurrando minhas personagens com a minha câmera. É como se estivesse roteirizando, decupando, filmando e montando ao mesmo tempo. Em Iracema, a participação dos coadjuvantes e extras também tinha um grande teor de veracidade. Para fazer a cena da venda de trabalhadores escravos, fomos a uma feira na periferia de Belém e oferecemos uma diária para alguns peões ficarem à nossa disposição em cima do caminhão. Seguimos até a entrada de uma fazenda e filmamos o diálogo entre o traficante e o fazendeiro, além da cena em que Conceição e Edna são atiradas para fora da caminhonete com tal violência que nos chocou a todos. Terminada a filmagem, apesar de todas as nossas explicações sobre a mentira cinematográfica, os peões ficaram muito decepcionados porque, afinal de contas, não ficaram com o “emprego” negociado diante de seus olhos. A violência contra a mulher, um dos subtemas do filme, freqüentemente emergia na realidade das filmagens. Quando os policiais retiram Iracema de uma boate, por ser ela menor de idade, não pedimos que agissem com violência. Eles eram policiais de fato e apenas reproduziram o que costumam fazer. Na briga das duas mulheres junto ao poço de água, o rapaz que chega para apartá-las e afasta Iracema aos sopapos não era um ator, mas um morador que agiu espontaneamente, achando que a representação tinha saído de controle. Numa das cenas finais, Iracema aparece como garçonete de um bar de estrada e, num dado momento, está com cara de choro. Entre os clientes, vêem-se dois índios de óculos escuros. Só um making of explicaria a situação: Edna havia se recusado a ser filmada servindo aos índios, posição que uma cabocla como ela considerava humilhante. Insistimos tanto que ela chorou. Daí a sua expressão nessa seqüência. Esse foi um dos poucos problemas de relação interpessoal que tivemos na filmagem. Recrutamos o proprietário de uma serraria para fazer a cena que introduz Pereio no filme, uma conversa bastante documental sobre natureza e progresso. Um empresário e um jornalista conhecidos se prestaram a representar os investidores em conversas típicas da época, numa mesa de restaurante, antes de embarcarem no Galaxy de um deles, carro de todos os ricos da região. Para a seqüência do vôo com as prostitutas, Orlando assumiu o papel do piloto. E se tivesse pilotado de verdade, talvez fosse menos imprudente que o piloto real na hora de aterrissar. Eu estava à beira da estrada que servia de pista para filmar o pouso, tendo ao lado um assistente com um guarda-chuva para fazer sombra sobre a câmera. O avião passou tão rente a nós que o guarda-chuva foi arrebatado pela asa e quase perdi o pescoço. Ali há um corte seco porque eu, assustado, não consegui girar a câmera para acompanhar o bólido. Usávamos de todos os recursos para suprir nossas carências técnicas. Durante o dia, explorávamos a luz natural mediante os artifícios de abrir telhados, ampliar janelas, etc. à noite, iluminávamos com faróis da kombi e de outros caminhões. Para a cena final, em que Tião reencontra Iracema junto a outras prostitutas na porta de um casebre à beira da estrada, a custo conseguimos convencer um motorista a estacionar seu caminhão de gado durante cerca de meia hora naquele ponto. Tinha que ser rápido, porque o gado perdia peso durante a viagem. Filmamos praticamente em tempo real, descontadas as trocas de chassi a cada cinco minutos. Há o caminhoneiro que aparece gritando “Vamos embora!”, e aquilo era verídico. O resultado ficou interessante pela dinâmica espontânea que se estabeleceu entre as mulheres, prostitutas de verdade, e os atores. A mais corpulenta delas passou a disputar Tião com Iracema, mostrando os seios e puxando o ator para perto de si. Pereio, magistralmente, incorporou o imprevisto ao personagem e foi em frente. No momento em que o caminhão parte no horizonte, ao som dos gritos e palavrões das mulheres, estava indo embora, mesmo. Foi a última cena que rodamos, como sempre com interferência mínima nos seus desdobramentos. Ao cabo de 40 dias de filmagem, não era só a personagem de Iracema que dava sinais evidentes de degradação física. Todos tínhamos nos transformado em peões de estrada. O desconforto era constante. Filmávamos o dia inteiro sob calor e sobre barro. Eu vivia tenso com o risco de algum grão de poeira penetrar na máquina e riscar o negativo. À noite, pernoitávamos em postos de gasolina ou espeluncas de beira de estrada, onde nem sempre havia água para um banho decente ou comida razoável, nem geladeira para conservar o filme exposto. Os negativos eram remetidos o mais rapidamente possível para a Alemanha, onde tínhamos um padrão garantido de qualidade na revelação. Além disso, os laboratórios brasileiros ainda não revelavam a nova película Kodak 7247, que utilizamos. A montagem foi feita em dezembro de 1974, em Munique, pela Eva Grundman, nossa habitual montadora das produções para o instituto. Mesmo sem saber português, ela fez um ótimo trabalho com base na musicalidade e no ritmo da língua. No processo de edição, tínhamos que reduzir 15 horas de material para 90 minutos de programa. Procurei eliminar tudo o que parecesse mais teatralizado, privilegiando o improviso e a adequação à realidade amazônica. Por esse motivo, cortei o trecho em que Wolf interpretava um missionário estrangeiro na região do rio. A crítica brasileira apontaria supostos problemas de dramaturgia aqui e ali. Mas o fato é que eu queria fugir das explicações mais lineares, que sobrecarregassem a parte ficcional. As elipses vão progredindo junto com o filme. As passagens de tempo são mostradas de maneira descontínua porque de alguma forma é assim que as coisas acontecem. Para mim, o importante é que a trajetória da menina ficasse clara no seu conjunto. Uma primeira exibição para estudantes brasileiros em Munique confirmou a preponderância das falas sobre as imagens. Precisávamos ter credibilidade na expressão das personagens e clareza no registro do som. Iracema acabaria sendo o primeiro longa de ficção a ser filmado em som direto no Brasil. Afora a trilha musical, feita com discos que levei do Brasil, não houve qualquer adição à faixa sonora do filme. Sucesso clandestino Contamos com um golpe de sorte na noite em que Iracema estreou no ZDF, em fevereiro de 1975. Outro canal iria transmitir um jogo de futebol importantíssimo, que foi cancelado por causa de uma nevasca. As atenções, então, se voltaram para o filme, que assim obteve uma repercussão fora do comum. As críticas também foram muito boas, destacando tanto a linguagem de semidocumentário, como as questões social e ecológica. O Prêmio Adolf Grimme, para os melhores programas do ano, destacou-o como melhor filme na categoria Prata. Uma agência governamental comprou 100 cópias e as distribuiu por escolas alemãs. Mais tarde eu encontraria muitos alemães que vieram ao Brasil porque um dia viram Iracema no colégio. Os convites se sucederam, inclusive para salas de cinema, onde os direitos eram nossos. Claude Antoine, distribuidor dos filmes de Glauber Rocha na Europa, levou uma cópia para a França, onde Iracema recebeu o prestigioso Prêmio Georges Sadoul. Mas só resolvemos investir na ampliação para 35 mm quando chegou o convite para a Semana da Crítica do Festival de Cannes de 1976. A partir dali, o filme foi vendido para televisões de vários países. Vincent Malle, distribuidor e irmão do cineasta Louis Malle, mandou fazer um certo número de cópias para exibir na França e faliu antes de pagá-las, ficando o débito nas nossas costas. Iracema teve todo tipo de distribuição na Europa, muitas vezes sem que nem soubéssemos quem vendeu para onde. Foi pirateado nos países do leste. Um distribuidor italiano comprou o filme e foi “furado” por outro lançamento irregular. Enfim, as típicas desventuras de produção pequena e gente inexperiente na barra pesada do mercado internacional. No Brasil, as coisas foram ainda piores. Logo após a primeira exibição na Alemanha, o adido da embaixada brasileira em Bonn enviou um telegrama à direção do ZDF comunicando que Iracema não podia ser considerado filme brasileiro porque fora revelado e montado no exterior. Nesses termos o Itamaraty passou a se manifestar sempre que reivindicávamos a nacionalidade brasileira, com vistas à exibição no Brasil. Wolf trouxe a primeira cópia 16 mm, que foi apreendida no aeroporto de São Paulo. Com presença de espírito, ele alegou que estava em trânsito para Buenos Aires, adquiriu uma passagem ali mesmo e pôde seguir para a Argentina com o filme. Na volta, entrou sem problemas. Ainda em fevereiro de 1975, fiz a primeira projeção no quarto onde dormia a Laís, para uma platéia mínima que incluía João Batista de Andrade, Assunção Hernandes e Amélia Toledo. Depois houve uma exibição ligeiramente maior num evento em Petrópolis e começou, então, o périplo semiclandestino e não comercial de Iracema pelo circuito paralelo que então se formava no Brasil: cineclubes, cinematecas, diretórios acadêmicos, clubes de imprensa, etc. Lembro-me de projetá-lo nas casas de Orlando Senna, Norma Bengell, Chico Buarque, José Mindlin, etc. Chegamos a trazer cinco ou seis cópias da Alemanha para atender à demanda. Leon Hirszman foi um dos maiores divulgadores do filme, assim como Décio Pignatari, que o analisava regularmente com seus alunos na PUC. Na Alemanha, no Brasil e em vários países, Iracema adquiriu um caráter exemplar sobre a situação da Amazônia. As imagens das queimadas – entre elas um travelling de quase um minuto filmado da porta da kombi – foram as primeiras do gênero a serem divulgadas e causaram estupor em televisões estrangeiras. Por um bom tempo, o filme foi um hit das reuniões dos comitês do Movimento de Defesa da Amazônia. Nessa época, não se concebia uma exibição de Iracema sem um debate subseqüente. As discussões eram sempre muito interessantes e atraíam as melhores cabeças do país. Comercialmente, porém, o impasse perdurava. Quando tentamos fazer uma primeira exibição oficial numa mostra da Cinemateca do MAM, a censura negou o certificado sob a alegação de que não se tratava de produto brasileiro. Fui pessoalmente a Brasília com as latas debaixo do braço para tentar sensibilizar algum censor, mas em vão. O dossiê de correspondência com o Concine e os órgãos de censura dá provas do meu empenho. A única exceção que consegui abrir foi a exibição especial no Festival de Brasília de 1980, quando Iracema ganhou os Candangos de melhor filme, atriz, atriz coadjuvante (Conceição Sena) e montagem. O osso continuou engasgado até março de 1981, ou seja, depois de sete anos de interdição. Para efeito de lançamento no mercado, a defasagem foi fatal. Se a geração contestadora já tinha visto o filme no circuito paralelo, outra ainda não tinha surgido para compreender Iracema. A liberação ficou sendo seu maior trunfo de divulgação. A novidade da linguagem já tinha se mostrado em filmes feitos posteriormente e lançados antes, como O Homem que Virou Suco, 81, de João Batista de Andrade, Diamante Bruto, 77, de Orlando Senna, e Bye Bye Brasil, 79, de Carlos Diegues. E havia ainda os mal-entendidos. Vez por outra alguém se referia a nosso filme com olhar rutilante e sorriso libidinoso. Nesses casos, eu já sabia que a pessoa estava se referindo à adaptação erótica do romance de José de Alencar, Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel, 79, Carlos Coimbra, lançada dois anos antes. É curioso notar que, desde então, Iracema recobrou muito do seu efeito. Para os jovens de 2005, parece um filme feito hoje, e não há 30 anos. A realidade que ele retrata, infelizmente, só fez piorar e aumentar de dimensão. A Transamazônica provou ser um equívoco monumental e não passa de uma estrada semi-abandonada. Os problemas humanos, econômicos e ecológicos continuam os mesmos, senão bem mais graves. A floresta ainda é devastada, ambientalistas são assassinados, grileiros e fazendeiros inescrupulosos implantam o terror na região. Muita gente me pergunta o que foi feito de Edna/Iracema. Desde a época da produção, ela cuidou bem de apartar sua vida pessoal da personagem e não tinha expectativa de se tornar atriz. Passou curtas temporadas na minha casa, dividindo quarto com a Laís, e na casa dos Senna. Em Belém, formou-se como professora e viveu sempre muito pobre. Durante um tempo, escreveu-me cartas muito carinhosas e divertidas, mostrando-se saudosa da experiência do filme. No final de 2004, Edna veio ao Rio para gravar um depoimento para o DVD de Iracema. Então já era avó, mas ainda se podia notar alguma semelhança com a garota espevitada que, 30 anos antes, dera graça e tragicidade à nossa transa amazônica. Capítulo V Vila Madalena: um estúdio em festa O sucesso instantâneo de Iracema na Europa deu uma grande abertura para o trabalho que Wolf Gauer e eu vínhamos desenvolvendo. De imediato, garantiu o interesse do ZDF em participar do projeto de Gitirana, nosso filme seguinte. Fortaleceu a Stop Film e viabilizou mais tarde a criação, em São Paulo, do estúdio Stop Som. A necessidade de um estúdio de finalização adequado às características do filme 16 mm me parecia crucial em meados da década de 1970. Eu mesmo trabalhava muito com 16 mm, bitola que achava mais apropriada à filmagem com som direto. A finalização para trabalhos em cores, com um tratamento de som ótico mais acabado, era muito precária por aqui. Wolf e eu resolvemos preencher essa lacuna, visando prioritariamente a nossa própria produção. Desde que viera ajudar a produzir Iracema, Wolf estava irremediavelmente seduzido pela idéia de emigrar para o Brasil. Eu sempre lhe dizia: “Do jeito que você é ‘brasileiro’, se for ao Brasil não vai querer mais voltar”. Dito e feito. Em 1976, ele trouxe, além das malas pessoais, todo o equipamento de um estúdio: uma moviola Steenbeck com seis pratos, um Nagra e três máquinas de transcrição de som da marca Killy, fabricadas artesanalmente por um técnico de Munique. Eram as máquinas mais modernas do mercado, que permitiam entrar com o Nagra sem perder o sincronismo e transcrever o som ótico para o magnético perfurado. Alugamos uma casa na Rua Cristiano Viana e ali reunimos a Stop Film e a Stop Som, formando, em parceria com Raquel Gerber, uma das primeiras produtoras da Vila Madalena. Instalamos o equipamento trazido da Alemanha e mais uma série de periféricos, inclusive um projetor acoplado ao sistema. David Pennington, arquiteto especializado em acústica, nascido na Inglaterra e criado em Manaus, foi o responsável pelo design acústico do estúdio. David viria a fazer o som em vários trabalhos meus. Walter Rogério era o nosso mixador-chefe. Nos primeiros tempos, sofríamos uma teimosa interferência da Rádio Tupi em tudo o que gravávamos. Chegamos a convocar um técnico israelense especializado em mísseis para orientar um caríssimo aterramento do estúdio, sem resultados. Quem encontrou a solução foi Jorge Guerrero, um técnico refugiado do Chile de Pinochet, que simplesmente mudou as máquinas de posição e a interferência cessou como por milagre. É claro que foi contratado e trabalhou vários anos conosco. Como não havia mercado suficiente para manter o estúdio somente com 16 mm, adaptamos o equipamento também para 35 mm. O lugar vivia em festa, freqüentado por gente como Zé Celso Martinez Corrêa, o produtor da Boca do Lixo Antonio Pólo Galante, Sylvio Back, Sérgio Bianchi, Babenco, Mazzaroppi e muitos outros. Lá se fazia de tudo: montagem, mixagem, dublagem, gravação de trilhas sonoras, exibições-teste para público, etc. Uma noite encontrei uma ambulância na porta do estúdio. Um dos dubladores do Galante tinha desmaiado de fome. A nossa administradora era a Sylvia Bahiense. Tínhamos um acordo com a Embrafilme pelo qual os realizadores paulistas utilizavam a Stop Som. A censura também utilizava o estúdio para fazer cortes nas pornochanchadas, dando margem à criação do famoso “rolo da censura”. Vez por outra, esse material era projetado para deleite dos freqüentadores, como numa antecipação da cena final de Cinema Paradiso. Mesmo com clientela tão diversificada, não tínhamos escala rentável e acabamos vendendo o estúdio para a Álamo, nossa concorrente bem mais aquinhoada, em fins de 1979. Wolf adaptou-se rapidamente ao Brasil e mais tarde viria a casar-se com outra brasileira, Carlota, com quem teve um filho, Clemente. Em 1979, meu casamento com a Lena chegou ao letreiro final. Bahia: cinema de cordel Gitirana foi uma produção relativamente simples. O ZDF nos deu condições ainda melhores que as de Iracema para fazer um filme da maneira mais rápida possível. Propus a Orlando Senna transpor para o cinema a sua peça Teatro de Cordel, adaptação de diversas histórias populares nordestinas, apresentada em São Paulo em 1970 e no Rio em 1971. Ambientamos as diversas narrativas na região de Sobradinho (BA), onde se construía a polêmica barragem que custou a expulsão dramática de mais de 70 mil camponeses sem direito a quase nada. Todos os signos da opressão e da megalomania da ditadura estavam presentes naquele empreendimento. No roteiro do Orlando, as várias histórias eram unificadas pelo cenário comum da barragem. Se habitualmente os nordestinos eram retirados de suas terras pela seca, desta vez eram expulsos pelas águas em nome do progresso. A estrutura era bem mais teatralizada que a de Iracema. Conceição Senna foi o fio condutor, fazendo diversas personagens nas diferentes histórias, ora como operária, ora como uma espécie de profeta, ora como justiceira. Na relação com os muitos atores não-profissionais – arregimentados num grupo teatral de Juazeiro (BA) –, Conceição mantinha função semelhante à de Pereio no filme anterior: improvisava, provocava, arrematava. Mas o roteiro era bem mais amarrado que o de Iracema. Os alemães pressionavam para que tivesse princípio, meio e fim, mas nós queríamos a coisa fracionada, com episódios razoavelmente independentes. A forma de narrá-los, como cordel, é que dava a idéia de conjunto. A mescla de encenação e documentário continuava a ser nosso princípio de criação. Integramos às histórias, entre outras coisas, uma entrevista com uma testemunha da passagem de Lampião por Juazeiro e trechos de um seminário sobre a barragem de Sobradinho. A realidade dialogava com lendas nordestinas e referências à terra mitológica de Miramar, nome que até cogitamos dar ao filme. Orlando Senna esclarece o título do filme: “O conceito de gitirana, ou jitirana, é profundamente nordestino e significa a relação, ou a junção, da beleza e da morte. Refere-se à belíssima borboleta gitirana, que tem um corpo longo e negro e asas coloridas e brilhantes. Versa a lenda que a gitirana vive pouco tempo após se tornar adulta, faz um só vôo até encontrar o seu alimento, que é carne (ou sangue) de mamíferos, especialmente gado. Pica o gado e o mata com seu veneno e também morre, auto-envenenada. Existiu um cangaceiro que era um violeiro de primeira e ao mesmo tempo um matador eficiente, com rifle ou punhal, e Lampião o apelidou Jitirana.” Rodamos Gitirana em Juazeiro e Petrolina, além do próprio local da construção da barragem. A equipe era basicamente a mesma de Iracema, com Wolf, Achim Tappen no som e o alemão Otto Engel na produção executiva. Eu e Orlando dividimos a direção. A montagem foi feita pela mesma Eva Grundmann, em Munique. Para facilitar a circulação do filme no exterior, acrescentamos o subtítulo “O Brasil é Meu Lar”. Mas não creio que tenha adiantado muito. Após a exibição na TV alemã, a repercussão ficou muito aquém da obtida por Iracema, em que pese um convite para a Quinzena dos Realizadores de Cannes. No Brasil, escaldados pelas dificuldades do outro filme, nunca regularizamos a situação de Gitirana. Não houve lançamento comercial. Só tivemos uma única cópia 16 mm, que mais tarde ficaria com a distribuidora alternativa Dina Filmes. As opiniões se dividiram. Paulo Emílio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet gostaram, mas outros críticos julgaram o filme hermético, sem dar chances ao espectador que não conhecesse a tradição do cordel. De minha parte, devo admitir que o resultado não me agradou plenamente. Faltou entrosamento entre mim, Wolf e Orlando, o que me fez perder o entusiasmo pelo filme. Preferia investir o pouco dinheiro que tinha em mais cópias de Iracema. Sapiranga: pesquisando os mucker Lena nos trouxe uma série de reportagens assinadas por Sérgio Coelho em O Estado de S. Paulo, em 1973, que despertou meu interesse para a história dos Mucker. Os colonos de origem alemã, descendentes dos fiéis da seita fundada pela mística Jacobina Mentz Maurer, na região de Sapiranga (RS), ainda dissimulavam suas raízes por causa de um estigma poderoso. A expressão “mucker” (santarrões, fanáticos) equivalia a um xingamento. Muitos não viviam mais na relativa miséria dos seus ascendentes, acuados e massacrados pela polícia em agosto de 1874, após uma guerra fratricida com outros colonos. Ao contrário, enriqueceram e tratavam o episódio como algo que desabonava sua imagem. Pesquisando sobre o tema na Biblioteca de Munique, Wolf Gauer consultou jornais alemães da época e chegou ao que viria a ser a peça-chave do nosso filme: o livro Die Mucker, do jesuíta Ambrósio Schupp. Uma versão antagônica da história constava do livro O Episódio do Ferrabrás, de Leopoldo Petry. Com base nessas fontes, Wolf fez um roteiro, que apresentamos ao ZDF, dessa vez para um programa dedicado a longas de ficção não propriamente experimentais. Já em 1977, em companhia de Wolf e Otto Engel, visitei Novo Hamburgo, Sapiranga e Campo Bom, onde viviam os descendentes dos mucker. Fizemos uma convocação ostensiva através de rádios e jornais. A princípio, eles se negavam a revolver essa parte do passado, que se assemelhava mais ao episódio de Canudos que às boas tradições de cepa germânica. Os avós do Wolf são da região original dos antecedentes dos Mucker (Nordpfalz e Hunsrück), na região do Mainz. Ele falava o dialeto hunsrück, então quase desaparecido na própria Alemanha. Essa identificação ajudou a quebrar as resistências iniciais. Contamos também com a ajuda de pessoas que já haviam pesquisado o assunto no Museu de Novo Hamburgo, bem como de um pastor protestante que tinha uma visão distanciada do assunto. Aos poucos, fomos localizando os descendentes diretos pelos sobrenomes e obtendo sua adesão à nossa proposta. Desde cedo abandonamos a hipótese de uma reconstituição convencional com atores conhecidos. Queríamos que os próprios camponeses fizessem os papéis de seus antepassados, sem alterar o seu estilo de vida rural, ainda muito semelhante ao do século 19. E, naturalmente, que se expressassem no dialeto deles. Essa viagem de cunho etnográfico forneceu novos e importantes elementos para o nosso roteiro. A versão corrente pintava os membros da seita como fanáticos sanguinários, protocomunistas e adeptos da promiscuidade sexual. Havia, de fato, um sentido religioso exacerbado em torno de Jacobina, assim como há evidências de que ela encarava o sexo com uma liberdade incomum para a época e a região. É certo também que eles reagiram com violência brutal à intolerância com que eram tratados, o que os levou a serem caçados como animais pelos outros colonos alemães e, finalmente, pelas forças policiais. Mas todos aqueles colonos, no fundo, eram iguais e igualmente isolados. Viviam dos mesmos meios econômicos. Foi a crença religiosa que motivou a separação dentro da colônia. Episódios semelhantes já haviam ocorrido na Alemanha e nos Estados Unidos, para onde emigraram camponeses da mesma fé. Todo o roteiro foi discutido e afinado com pessoas do lugar. Jacobina era uma lenda muito viva na memória delas, assim como a perseguição sofrida por sua filha e por todos os que tinham mucker na família. O papel de Jacobina era um dos poucos a requerer uma atriz profissional. Mas tinha que ser alguém ligado à região e que pudesse falar o dialeto. Por sorte, vimos Marlise Saueressig numa peça do Teatro de Arena de Porto Alegre. Gostamos de sua atuação e do seu porte físico. Para nossa surpresa, ela também era uma descendente de mucker e nos ajudou muito na concepção do filme, na adequação das falas, no contato com os camponeses, etc. Bem antes de definirmos essa proposta documental para Os Mucker, Wolf consultou a atriz Liv Ullmann, já que ela havia atuado no filme sueco Os Emigrantes. Ela pediu o roteiro e gostou, mas já tinha compromissos com o teatro nova-iorquino. Wolf achava que era apenas uma desculpa gentil, mas o fato é que ela mencionou o convite em sua biografia. Segundo Wolf, também Ingrid Bergman teria considerado a possibilidade de interpretar a mística de Sapiranga, mas sob a direção de seu marido Roberto Rossellini, em 1955. Como esse, consta que mais de dez projetos já teriam tentado levar a saga dos Mucker para o cinema. Época sem épica Sapiranga, situada ao pé do morro do Ferrabrás, é hoje um dos pontos prediletos dos saltadores de asa-delta. Mas naquele início de 1978 era apenas uma pequena vila meio misteriosa, cercada por floresta selvagem, evitada pelas pessoas por ser “a terra dos mucker”. Não havia hotel, daí que nos hospedamos em São Leopoldo. O prefeito de Sapiranga, Remi Jorge Zimmer, facilitou o que pôde e chegou a atuar como intérprete em algumas ocasiões. Filmamos em diversas casas da época de Jacobina. A cidade inteira participou da produção, cedendo roupas, móveis, utensílios e carroças para a cenografia, afinando as falas e detalhes das cenas. Os camponeses escolhidos para o elenco estavam representando a si mesmos ou algo muito próximo do que eram. Eles é que davam as palavras finais aos seus diálogos. Em grande parte, escolheram os próprios papéis. Foi o caso de Helena Hill-Mentz, bisneta de uma irmã de Jacobina, que já se apresentou dizendo, decidida: “Eu sou a mãe de Jacobina”. A jovem Carla Saueressig, prima da Marlise, fazia o papel de Maria. Numa cena, o namorado abre sua blusa, deixando os seios à mostra. A mãe da moça procurou-me depois, não para exigir o corte da cena, como eu temia, mas para pedir que não deixasse sua filha engravidar. Prometi-lhe solenemente. O problema é que Carla e Ricardo Hoepper estavam começando de fato a namorar e tiveram que redobrar os cuidados para que meu compromisso fosse honrado. Não havia exatamente uma preparação de atores. Deliberadamente, preferíamos que os colonos não “atuassem”. Wolf, encarregado dessa parte da direção, passava-lhes as orientações básicas sobre espaço e relação com a câmera – muitas vezes em hünsruck, com os que mal falavam português. Àquela altura, uma curiosa inversão já ocorrera: em lugar de resistirem à idéia do filme, como no início, eram eles que nos procuravam, orgulhosos de serem mucker. Era época de férias escolares e a Laís passou uma temporada comigo no sul. Na cena do baile, há um rápido close dela dançando entre outras meninas. Paulo César Pereio e José Lewgoy representavam a oficialidade brasileira no episódio. Ao papel do cafajeste Capitão Dantas, Pereio aportava sua proverbial ironia e ajudava a distanciar um pouco as coisas do século 19 e evocar fatos que se repetem no Brasil constantemente. E não só no Brasil: naquele ano, o mundo tinha sido abalado pelo suicídio em massa dos seguidores de Jim Jones na Guiana. Nossa proposta nada tinha a ver com os épicos históricos então em voga no cinema brasileiro. Era uma produção simples, filmada em 16 mm com o mesmo equipamento que tínhamos usados nos dois longas anteriores. A história de Jacobina continuava muito imprecisa e nós não pretendíamos esclarecê-la de vez. Queríamos ser imparciais sem nos omitir. Mais que um relato fiel dos acontecimentos, estávamos interessados na interpretação deles. Em vez de mostrar a violência, queríamos examinar os seus mecanismos pela ótica da psicologia social. A simplicidade estendia-se à banda sonora, formada unicamente de ruídos do ambiente e sons da floresta, captados em som direto por Ismael Cordeiro, sem trilha musical. Som direto de época é sempre um grande desafio técnico. Tínhamos que fechar a estrada e as ruas próximas para não deixar passar ronco de carro. Era preciso estar atento a qualquer ruído de motosserra, mesmo o mais distante, que ecoava por todo o vale. Acho que fiz ali um dos meus melhores trabalhos de iluminação, justamente porque trabalhei com muitas cenas noturnas e pouquíssima luz, procurando ser fiel às condições primitivas em que eles viviam no século 19. Ao contrário de Iracema e Gitirana, Os Mucker foi revelado, montado, finalizado e teve seu negativo ampliado para 35 mm no Brasil. Para mim, a normalidade era uma bela novidade. Iracema e Gitirana permaneciam no limbo dos cineclubes enquanto Os Mucker chegava ao seu destino sem percalços. O filme estreou no Festival de Gramado, em janeiro de 1979, com muitos “muckers” envaidecidos na platéia e os prêmios de melhor direção, melhor atriz e melhor cenografia. Passou em mostras internacionais de cinema no Rio e em São Paulo antes de ser lançado nos cinemas, a partir de abril de 1979. As críticas foram excelentes e, com apenas quatro ou cinco cópias, apesar da distribuição precária da Embrafilme, fizemos cerca de 140 mil espectadores. Curiosamente, pensamos em dar ao filme o título de “Jacobina” no Brasil, enquanto esperávamos que os alemães optassem por Die Mucker. Foi justamente o contrário. Na Alemanha, passou como Jakobine. E para ser bem compreendido, precisou de legendas em alemão corrente. Jari: documentário como arma política Todo um novo capítulo do meu trabalho na Amazônia começou no dia em que conheci o senador Evandro Carreira, do PMDB. Ele me procurou solicitando algumas imagens de Iracema para apresentar numa entrevista à TV Bandeirantes. Embora achasse o pedido um tanto insólito, cedi porque vi nele uma figura interessante. Seu discurso sobre a Amazônia tinha uma qualidade utópica, mas era coerente, corajoso e bastante diferenciado do que se propunha para a região naquele momento. Ele pregava uma Amazônia auto-sustentável, defendia um extrativismo que não danificasse a floresta e se opunha aos empreendimentos da grande indústria multinacional. O Senador “Pororoca” – como o chamavam devido à prolixidade – era contraditório, espalhafatoso, fazia uma política antiquada, mas conhecia profundamente seu território e demonstrava preocupações legítimas. Tanto que estava prestes a visitar o Projeto Jari, como integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito da devastação da Amazônia. Eu e Wolf logo acertamos com ele a realização de um filme sobre essa viagem. Conhecer in loco o controvertido Projeto Jari era sonho de quase todo jornalista brasileiro na época. Tudo era muito controlado, o acesso era complicado. Um gigantesco complexo de extração de madeira e fabricação de celulose estava implantado às margens do Rio Jari, na divisa entre o Pará e o Amapá. O proprietário, o bilionário americano Daniel Keith Ludwig era uma espécie de Fitzcarraldo da indústria: tinha mandado construir nos estaleiros Ishikawagima, do Japão, uma fábrica completa, que foi rebocada sobre plataformas flutuantes, através de oceanos e rios, até o local. Era o próprio “Brasil grande”, só que com capital estrangeiro. Havia denúncias de megadevastação florestal, inadequação das árvores cultivadas como matéria-prima, uso de trabalho escravo, entre outras coisas. A pauta, enfim, era excelente. E ninguém tinha divulgado imagens do Jari até então. Viajamos no avião DC-3 dos parlamentares, na qualidade de cinegrafistas a serviço de Evandro, muito embora as despesas de equipamento e material ficassem a nosso encargo. Da cabine do piloto, fiz os planos aéreos que aparecem no filme. Durante quatro dias, cobrimos todo o ritual protocolar da CPI, que na verdade não passava de um oba-oba, troca de elogios etc, com baixíssimo teor de discussão crítica. Fomos apresentados a um Jari maravilhoso, perfeito. É claro que não estávamos satisfeitos. Ao fim da visita oficial, decidimos ficar por nossa conta e risco, apesar da insistência dos administradores da usina para que partíssemos junto com os políticos. Percebemos certo mal-estar. Disseram que não se responsabilizariam por nós a partir dali. Mesmo assim, resolvemos arriscar. Um dos engenheiros, corajosamente, nos ofereceu hospedagem e nos levou no seu carro para documentarmos o outro lado do Jari. Passamos três dias percorrendo as áreas onde ficavam os alojamentos dos operários e o comércio do chamado Beiradão (hoje município de Laranjal do Jari). Bastava afastar-se 300 metros daquela fábrica com tecnologia de ponta para se dar de cara com o Brasil real: uma imensa favela de palafitas, coalhada de gente miserável e de prostitutas, onde a lei parecia não chegar. Desvinculados dos políticos e da diretoria do projeto, não tivemos dificuldade em colher bons depoimentos sobre a situação dos operários, em grande parte imigrantes nordestinos, suas queixas das condições de trabalho e de alimentação, o xadrez privado para aqueles que reclamavam, malária, assassinatos, exploração pelo comércio do Beiradão. Nas entrevistas, eu e Wolf captamos também o medo de falar, as especulações sobre um patrão cujo rosto quase ninguém via. Quando ia ao Jari, Ludwig chegava disfarçado de operário e nunca deu uma entrevista sequer. De volta a São Paulo, mostramos o material na moviola para o ambientalista gaúcho José Lutzenberger, que ainda não era uma figura nacional. Ele comentou o saqueio da Amazônia representado pelo Projeto Jari e comparou a situação dos operários a campos de concentração. Seus depoimentos acabaram funcionando como narração do filme. No Rio, entrevistamos o deputado Modesto da Silveira, que analisou politicamente a questão da Amazônia. Já na montagem, antecipamos a destinação que o filme deveria ter: a de ser um instrumento de debate sobre a industrialização da Amazônia. Confrontamos depoimentos contraditórios, expusemos a falácia de quem defendia a exploração irresponsável da floresta e da mão-de-obra. Em 1982, depois que o governo conduziu a compra do Jari por um grupo de empresas brasileiras, acrescentamos essa informação num epílogo. Mas já a partir de maio de 1980, tínhamos entre 15 e 20 cópias circulando constantemente através da distribuidora Dinafilme. Jari foi um dos poucos filmes concebidos e realizados especificamente para o circuito alternativo. A televisão da época não absorveria um filme com tal conteúdo crítico. Nos cinemas, não havia espaço para um média-metragem documental em 16 mm. O filme foi exibido no Senado e na Escola Superior de Guerra. Nesta última, para minha surpresa, os militares não se incomodaram, mas antes se regalaram com a primeira exposição qualificada do Jari. Na cabine de projeção da ESG, o projecionista me encheu de perguntas sobre meu trabalho, onde eu revelava, onde tirava cópias, etc. Intrigado, nervoso, desconversei o quanto pude. Mas só até perceber que ele era apenas um produtor de filmes pornográficos interessado em fazer crescer o seu negócio. Evandro Carreira e Modesto da Silveira usaram Jari em suas campanhas com nosso pleno consentimento. O filme se propunha a ser uma arma política e, portanto, quanto mais fosse exibido e usado, melhor. As projeções se sucediam em cineclubes, universidades, sindicatos, associações de classe e assembléias legislativas de vários estados, além dos comitês do Movimento de Defesa da Amazônia. Era muito estimulante ver como o trabalho chegava ao público e gerava debates amplos, muito além do conteúdo do filme. Cerca de 200 mil pessoas viram Jari naquele momento, quando a televisão, de maneira geral, ignorava solenemente a realidade brasileira. A distribuição de filmes independentes estava muito bem estruturada. Os filmes de João Batista de Andrade, Leon Hirszman e muitos outros freqüentavam esse “cineclubismo de massa”, termo corrente na época. O catálogo da Dinafilme era consistente e tinha sempre novidades interessantes para quem quisesse discutir aquele Brasil que a imprensa e a TV não queriam ou não podiam discutir. As pessoas iam ao cinema como uma forma de mobilização. Desde 2003 temos visto um movimento no sentido de se reavivar essa tradição cineclubística para canalizar toda uma produção que não chega às telas. É preciso determinação para quebrar o circuito tradicional, criar espaços alternativos e organizar a distribuição. A Dinafilme não enriquecia ninguém, mas ressarcia razoavelmente os produtores. O custo de Jari foi praticamente coberto pela renda das exibições. Junto com Terceiro Milênio, meu filme seguinte com Wolf Gauer, Jari foi um dos maiores, senão o maior hit do circuito da Dinafilme. Já com a Embrafilme e o circuito comercial, minha relação era quase nula. A empresa distribuiu Iracema e Os Mucker, mas nunca botou um centavo na produção de um filme meu. Quando fechou, em 1990, eu não tinha nenhuma dívida em carteira. Em fins dos anos 1970, costumava dizer que me sentia “marginal” demais para a Embrafilme. Era um produtor em luta contra a censura, adepto de um cinema não-comercial, ausente por contingência dos festivais e muito cioso da minha independência. Projetos sonhados Diversos projetos que tentei desenvolver em parceria com televisões européias acabaram sendo objetos de – ou resultando diretamente em – futuros filmes de outros diretores. Um deles foi Chico Rei, argumento para minissérie desenvolvido por Wolf Gauer e aprovado para produção pela TV ARD e a empresa alemã Provobis, cuja moviola alugávamos para montar nossos filmes. Inscrevemos o projeto também numa iniciativa da Embrafilme de fazer seriados para a televisão. O Mário Prata passou um mês em Munique, contratado para escrever o roteiro. Mas os alemães insistiam em que tivéssemos um co-produtor brasileiro arcando com 50% dos custos. A empresa ART 4, que veio ocupar esse lugar, passou a fazer ingerências indevidas no roteiro, ao mesmo tempo em que começaram a surgir desentendimentos financeiros entre os co-produtores. Foi quando resolvemos tirar a Stop Film da operação e impedir qualquer uso do nosso roteiro. A história do soberano africano tornado escravo, que comprou sua liberdade com o ouro de Minas, seria depois filmada por Walter Lima Jr., em minissérie e longa para cinema. Também em fins da década de 1970, José Louzeiro escreveu para a Stop Film a primeira versão de um roteiro sobre o rumoroso Caso Camanducaia – meninos de rua que a polícia paulista levava para a cidade de Camanducaia, na fronteira com Minas Gerais, sob maus-tratos e com alguns desaparecimentos. Também aqui não chegamos a um acordo com os co-produtores alemães. Esses elementos acabariam entrando na gênese de Pixote, de Hector Babenco, rodado em 1980. Haveria mais tarde outros exemplos. Já nos anos 80, tentei filmar uma adaptação de Quarup, de Antonio Callado. Ruy Guerra tinha feito uma primeira tentativa, frustrada, de levantar a produção. O Callado então me cedeu os direitos do livro por dois anos. Minha intenção era fazer um longa para cinema e uma minissérie de TV em cinco capítulos. Convidei Manoel Carlos para escrever o roteiro e Sônia Braga para o elenco. Através de Affonso Beato, consultei Geraldine Chaplin para o papel da inglesa Winifred. Ela, porém, recusava-se a aparecer nua, ainda que discretamente. No júri de um festival na França, conheci Gian-Maria Volonté, que gostou do roteiro e concordou em integrar o elenco. Gastei um bocado de tempo e energia tentando envolver produtores estrangeiros, mas tudo em vão. A Embrafilme, por sua vez, já não ia muito bem das pernas para bancar a produção. Desisti, mas fiquei contente que o Ruy Guerra tenha depois retomado e concretizado o seu projeto – por sinal, bem diferente do meu. Com a França, tentei montar co-produção para um longa sobre Santos Dumont, que nunca decolou. O mesmo aconteceu com uma série sobre crianças e bichos na Amazônia, idéia que levei em 1989 ao produtor Pedro Rovai, então diretor da TVE. Chamava-se Amazônia – Uma Aventura Mágica e era protagonizada por Nara, uma menina mestiça de sete ou oito anos de idade que se entendia muito bem com os animais da floresta. Ela e sua família emigravam para Manaus, viviam a inadaptação à cidade e retornavam à selva no final. Cada um dos cinco capítulos veiculava uma mensagem de fundo ecológico. O primeiro argumento foi escrito por Marisa Mocarzel. Estive com Rovai em Manaus fazendo um levantamento fotográfico, ao mesmo tempo em que articulávamos uma co-produção com a empresa francesa Eural. Versões diferentes do roteiro foram feitas por um roteirista francês e por Alfredo Oroz, argentino radicado no Brasil. Mas a Eural faliu e, ao longo de quatro anos, não conseguimos sensibilizar outros produtores. O bem-sucedido projeto Tainá – Uma Aventura na Amazônia, produzido por Rovai, inspira-se obviamente nessa minha idéia, mas nunca pensei em cobrar algum tipo de satisfação e torço pelo êxito dos filmes. Solimões: uma campanha delirante Com ou sem produtor, a Amazônia era destino certo para minha câmera. Tudo parecia conspirar para isso. Em 1980, Evandro Carreira lançou sua candidatura ao governo do Amazonas e anunciou que faria uma viagem eleitoral pelo Rio Solimões em companhia de José Lutzenberger. Wolf e eu vimos logo que ali havia um filme esperando por nós. Já tínhamos presenciado, por conta da divulgação de Jari, uma conversa entre Carreira e Lutzenberger em Brasília. Eram mundos opostos e complementares: o empírico, alucinado e visionário do político; e o cartesiano do cientista. Com base na expectativa desse diálogo singular, conseguimos vender o projeto ao canal alemão ZDF. Deram-nos a verba mais baixa, de risco total, para o programa Kamera-Film, rubrica do experimentalismo. David Pennington assumiu o Nagra para fazer o som. Tomamos nosso próprio equipamento e rumamos para Manaus. Ciceroneados pelo Evandro, fomos apresentados aos bordéis e à verdadeira comida manauaras. Dali partimos de avião até Tabatinga, ponto de partida da viagem e do documentário Terceiro Milênio. Tabatinga fica na fronteira com o Peru e a Colômbia, exatamente onde o Rio Amazonas (aí chamado de Solimões) entra no Brasil. Nosso trajeto rio acima até Manaus estava previsto para levar 15 dias, mas a viagem acabou durando mais de um mês. Em Benjamim Constant, tivemos que esperar dez dias até que o barco fosse reparado. O filme, porém, começava já aí, com a cena em que Evandro, vaidoso, orienta a pintura do seu nome no casco da embarcação. O defeito do barco é objeto de uma loquaz peroração do senador “Pororoca” sobre o ritmo próprio da vida amazônica. Aquilo era um “recado” para o Lutzenberger, que estava detrás da câmera e andava nervoso com os prazos de seus trabalhos e conferências. Cedo percebemos que íamos perder um dos personagens da nossa história. Era flagrante a incompreensão de Lutzenberger para com a dinâmica da Amazônia, que visitava pela primeira vez. Ele não tinha paciência com os caboclos, comunicava-se com dificuldade. Uma manhã, o pessoal do barco procurou suas tartarugas para comer e ele admitiu, com o orgulho de um colegial que houvesse praticado uma boa ação: “Eu salvei as tartarugas, joguei-as no rio”. Foi execrado pela turma. Depois que finalmente partimos, a situação com Lutzenberger foi ficando cada vez pior. Ele acabou se desentendendo com o Evandro e abandonando o barco numa das primeiras paradas. Concentramos, então, nossas atenções no senador, que se superava a cada etapa da viagem. Nossa estratégia era de observação e surpresa. Estávamos sempre prontos para acionar o equipamento. Ao contrário de Iracema, onde tínhamos um roteiro e sabíamos onde queríamos chegar, em Terceiro Milênio nos deixamos conscientemente levar por essa nave, sem qualquer idéia preconcebida. Eu queria conhecer a Amazônia de dentro para fora, a partir do que ela nos apresentasse. Evandro era nosso guia e leit motiv. Seria impossível domá-lo às conveniências de um filme. A idéia era deixá-lo delirar livremente e registrar sua performance. Ele costumava dormir boa parte do dia. Muitas vezes, acordava de supetão e inventava alguma coisa. Nós corríamos atrás porque tanto poderia ser algo genial como coisa que não prestasse para nada. Quando o barco ancorava em algum lugar, ele saltava, fazia pronunciamentos, cortejava mulheres, distribuía cartões de visita com seu endereço parlamentar e jornaizinhos contra o analfabetismo político a índios, lavradores, crianças, fosse quem fosse. Levava no barco uma tiragem de seu livro, cuja capa plastificada ele arrancava e entregava aos pobres para remendar telhados em dias de chuva. Afirmava ter filhos espalhados por todo aquele barranco do Amazonas. Os discursos apontavam sempre para a idéia de uma Amazônia voltada para quem nela vive: estímulo à criação de caça e ao extrativismo adequado àquele ecossistema; oposição ao pasto extensivo e à industrialização desenfreada; defesa do uso inteligente dos mananciais de água que são a essência da região. Não havia como não concordar com ele na afirmação de que a Amazônia é um universo próprio, cujos problemas não podem ser resolvidos com soluções bonitinhas no papel, mas distanciadas da realidade e do homem locais. Mas Evandro fazia as coisas no estilo típico do político folclórico do Norte do Brasil. Diante de madeireiros, em aparente contraste com seus princípios, incitava-os a se unirem para jamais serem vencidos. Às vezes, podia atingir as fraldas do fantástico, como na incursão pelo Rio Içana até a longínqua aldeia onde o Irmão José da Cruz liderava a comunidade da Cruzada Apostólica Evangélica, uma seita hiperconservadora com mais de 30 mil índios. Evandro achava que, ganhando a simpatia do missioneiro, garantiria os votos de toda a nação ticuna. Era puro non sense, já que os índios, tidos como analfabetos, não votavam. Mas chegamos até aquele fim de mundo, onde o senador fez questão de entregar um cartão ao provecto e barbudo pregador, sendo presenteado com um par de galinhas vivas. As imagens dos índios vestidos de túnicas brancas são impressionantes e creio não existirem outras de José da Cruz. A galinha do missioneiro foi muito bem-vinda à cozinha do barco. Nossa comida, à base de peixe, dependia do que encontrássemos no caminho, como aliás em todos os barcos da Amazônia. A tripulação era comandada por um agente da SUCAM (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) em licença, homem profundamente conhecedor da região e que funcionava também como cabo eleitoral do Evandro. Boa parte do tempo era consumida em retirar água do barco. Havia muitos vazamentos, por problemas de calafetagem. Evandro achava aquilo muito bom para manter os tripulantes ocupados – como nas caravelas portuguesas, onde não se calafetava totalmente o barco para a tripulação não perder o pique do trabalho. Quando acabava a gasolina ou faltavam mantimentos, todos fazíamos uma “vaquinha” para continuar. Estávamos sempre ameaçados de parar e atrasar ainda mais a viagem. Um dos momentos mais dramáticos foi quando, ao passar por um lago, fomos surpreendidos por uma enorme tempestade. Por sorte, o lago era raso e pudemos descer para segurar a embarcação, que balançava seriamente com a ventania. Nosso equipamento e os negativos estavam protegidos numa caixa de metal. Por pouco não perdemos barco e filme num só naufrágio. A intrepidez e as improvisações do nosso guia-candidato traziam outros tipos de risco. Embora Evandro fosse beneficiado pela imunidade parlamentar, éramos constantemente vigiados e cerceados pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio). A caminho da aldeia dos maiurunas, fomos interceptados por um barquinho da FUNAI. A discussão com o Evandro está registrada no filme. Ele insistiu em seguir adiante e o barquinho disparou na frente, em direção à aldeia. Evandro previu que eles iriam forjar uma recepção negativa dos índios a nossa visita. Foi exatamente o que aconteceu. Quando chegamos, um índio arremessou a lança contra minha câmera, danificando a lente zoom. Outros assumiam postura de guerra, lanças em punho. De qualquer forma, o clima entre os maiurunas já estava mesmo muito pesado. Havia poucos dias, eles tinham matado alguns madeireiros, um dos quais teve sua cabeça enterrada em separado, num caixãozinho de criança, como aparece no filme. O fato é que saímos rapidamente dali, antes que o pau comesse. Em matéria de relacionamento com os brancos, não existe a categoria genérica “os índios”. Cada etnia, cada grupo é muito diferente do outro. Com os ticunas, por exemplo, a recepção foi amistosa e tranqüila. Ainda próximo da fronteira com o Peru, na localidade chamada Cavalo Coxo, tivemos um belo encontro com Manuel del Aguila, caboclo meio brasileiro, meio peruano, que fala umas coisas muito poéticas sobre o lugar e sobre a morte. Um homem tão humilde e culturalmente tão rico, perdido naqueles confins, cuja paisagem lembrava a de um planeta desabitado. É um dos momentos de que mais gosto em Terceiro Milênio. A viagem com Evandro nos dava a oportunidade de colher impressões sobre a vida das populações ribeirinhas e as relações dos indígenas com a educação oficial, o trabalho, os religiosos, etc. Mais uma vez, usávamos um expediente “ficcional” para alcançar um nível documental mais profundo. Mesmo no trato com Evandro, tínhamos plena consciência de estar construindo um personagem. Pedíamos que ele fizesse para a câmera alguns pronunciamentos mais objetivos sobre idéias que apareciam dispersas nas suas falas. É o caso da comparação da floresta a uma virgem, que não deve ser estuprada, mas deflorada com carinho. Ou a preleção diante das vitórias-régias. Depois da chegada a Manaus, o acompanhamos a Brasília, cidade que ele apresentava como “um deserto de almas”. No Senado, implorou que o deixassem falar por cinco minutinhos, já que estava sendo filmado. Assim, seu discurso na tribuna era uma farsa, devidamente sublinhada pelo deboche dos colegas. Ao mesmo tempo, é um grito de desespero diante de uma classe política totalmente alienada com relação à Amazônia. Ele sabia que falava para as paredes. No último terço da viagem, Wolf Gauer teve que deixar o barco e voltar para São Paulo, cheio de inflamações provocadas por picadas de mosquitos. Até então, Wolf era meu grande interlocutor nesse trabalho, atuando como co-diretor, co-produtor e técnico de plantão. Nosso pacto de trabalho na Stop Film era bem afinado: cada um desempenhava sua função e, na hora da montagem, prevaleciam ora as minhas decisões (Iracema, Terceiro Milênio), ora as dele (Os Mucker). Rodamos cerca de 15 horas de película, sabendo que a avalanche do senador era farta e precisávamos economizar. Imagino como teria sido hoje, com o vídeo. Em 2004, filmamos 100 horas para Evaldo Mocarzel fazer um longa de duração semelhante, À Margem do Concreto. Terceiro Milênio inaugurou as projeções de cinema no Pequeno Auditório do MASP, em 1º de agosto de 1981, e ali ficou em cartaz durante pelo menos oito semanas. No Rio, foi lançado pela Sala Cândido Mendes, sempre em cópias 16 mm, e entrou para o catálogo da Dinafilme. No cartaz, um desenho mostrava Evandro Carreira trajando apenas uma sunga, ao lado de suas vitórias-régias, exatamente como era visto em boa parte do filme. Circulou a notícia, na época, de que ele cogitou mandar recolher os cartazes, mas na verdade o senador se orgulhava daquela forma “amazônica” de aparecer. Muitas vezes comparecia aos debates que espontaneamente se formavam após as exibições e dava continuidade à “pororoca”, como se o filme não houvesse terminado. Sua figura causava estupor e polêmica. Alguns o achavam louco e não compreendiam a natureza do filme. Com o avançar da discussão, porém, essas posições eram freqüentemente reconsideradas. Houve pelo menos um crítico que acusou o filme de ser mera peça promocional da candidatura do Evandro. Não posso imaginar como um filme daquele poderia ser usado como material de campanha no Amazonas. Aliás, ele só passou na Universidade de Manaus vários anos depois. Se dependeu dessa propaganda, Carreira se deu mal: então recém-integrado ao PT, perdeu a eleição de 82. Acho que Iracema e Terceiro Milênio são os filmes em que mais me realizei. É onde o resultado da tela espelha mais completamente o que eu havia imaginado. São experiências complexas do ponto de vista cinematográfico e geram alguma coisa forte entre personagem e espectador: dúvida, simpatia, raiva, seja o que for. A exibição no ZDF, em agosto de 1981, seguida de várias reprises, valeu-lhe o Prêmio Adolf Grimme em 1983, repetindo a façanha de Iracema. Também em 1983, o documentário foi exibido no Festival de Cannes – onde ganhou o prêmio Jeune Cinéma – e no festival Cinéma du Réel, em Paris, onde ficou com um dos prêmios principais. Em 1992, foi selecionado para a mostra Documentaire sur Grand Écran, em Paris. Mas talvez a exibição mais curiosa de Terceiro Milênio tenha sido ainda na fase de montagem, no meu apartamento em São Paulo. Eu precisava que o Evandro assinasse a cessão dos direitos de imagem com vistas à exibição na TV alemã e convidei-o para ver uma versão ainda de três horas. Ele chegou com três amigas bem gordas, o tipo de mulher de sua predileção. “Eu trouxe aqui três ‘jangadas’ para avaliar meu desempenho”, apresentou. Assim ele chamava as mulheres avantajadas. Com 15 minutos de projeção, caiu no sono. Às vezes despertava e se aplaudia, feliz, para dormir novamente de quase cair da cadeira. As “jangadas” assistiram a tudo, atentamente. Quando terminou a sessão, ele acordou entusiasmado e assinou o papel sem pestanejar. Saímos para jantar e, no corredor do edifício, ao cruzar com uma vizinha também corpulenta, ele puxou um dos seus cartões: “A senhora acaba de conhecer um senador da República”, proclamou. No cartão, como sempre, estava escrito em letras verdes: “Amazônia: Usina Protéica do Terceiro Milênio”. Capítulo VI Amazônia versão global Com a separação da Lena e a desmobilização da Stop Som, em 1979, gradativamente transferi-me para o Rio de Janeiro, onde passei a viver com a professora de Letras Christina Motta Maia. Por um tempo, ainda mantive o apartamento de São Paulo, onde ficavam a moviola, o Nagra e o arquivo de negativos da Stop Film. Mantinha, então, bons contatos com Paulo Gil Soares, no Rio, e com Guga de Oliveira, da Blimp Film, em São Paulo, ambos responsáveis pela direção do programa Globo Repórter. Paulo Gil foi quem me convidou, em 1981, para fazer um especial em duas partes sobre a Amazônia. Deu-me carta branca para usar minha experiência e trechos dos meus filmes. Contratado como free lancer, parti numa primeira viagem em companhia do jornalista investigativo Carlos Alberto Luppi, que havia lançado dois anos antes o livro-reportagem Araceli: Corrupção em Sociedade. A partir do Mato Grosso, fizemos um grande círculo em torno da Amazônia, embrenhamo-nos em áreas de queimadas e de ocupação irregular de terras, colhemos diversos depoimentos de denúncia. Outras viagens se sucederam, cobrindo enormes distâncias em aviõezinhos fretados e pousando nas pistas mais rudimentares. Certo dia, ao sobrevoarmos um longo trecho de mata virgem no Mato Grosso, avistamos uma clareira com uma pequena pista clandestina e um sinal de SOS feito com pedras e pedaços de madeira. Ao lado, alguém acenava uma espécie de lenço. O piloto achava a pista muito curta, mas ainda assim arriscamos pousar. De fato, ali perto havia outro avião tombado horas antes, com a tripulação ferida e o rádio avariado. Pelo nosso transmissor, chamamos socorro e esperamos até que outros aviões acorressem para ajudar a transportar os feridos. De carro, percorremos boa parte da Transamazônica a partir de seu extremo oeste, em Humaitá (AM), entre chuvas e lamaçais. Demos carona a três índios e ficamos impressionados com seu sistema de comunicação na selva: a cada posto que chegávamos, já éramos esperados por outros índios interessados em carona. Um deles intuiu minhas origens e me cumprimentou em alemão. Tinha aprendido com colonos gaúchos. Saímos atrás desses colonos e gravei entrevista com um deles, descendente de mucker, que xingava os índios no idioma de Goethe. Nos novos assentamentos erguidos em Juruena, Sinop e Alta Floresta, no Mato Grosso, já havia grande quantidade de colonos louros do sul, gente atraída pela promessa de um pedaço de terra. Mas eram assentamentos privados, autoritários, onde o dono da terra tratava os colonos como empregados. Filmamos nas favelas de Rio Branco (AC), habitadas por seringueiros violentamente expulsos de suas áreas de origem, e no famoso Projeto Carajás, de extração de minério no Pará. Conversamos com índios miseráveis vagando pela Transamazônica e com um garimpeiro que carregava 11 mortes nas costas. Era um painel bastante amplo, com o título de Amazônia: O Último Eldorado. A orientação inicial da direção do Globo Repórter era no sentido de uma reportagem de denúncia. Mesmo assim, a cada vez que mostrávamos o material à Globo, mais nossas escolhas eram restringidas. A versão que foi ao ar, em 1982, embora ainda forte, era bastante desfigurada. Eles cortaram uma cena em que um índio confirmava ser canibal, fingindo que mordia o próprio braço. De uma entrevista fantástica feita com o escritor Márcio Souza em Manaus, que serviria de eixo para um dos episódios, ficou apenas um trecho insignificante. Ele explicava que a floresta sempre engoliu projetos ciclópicos como a estrada Madeira-Mamoré, a Fordlândia, a Transamazônica e o Jari, que não levavam em conta as peculiaridades da região. Horas antes da transmissão do primeiro programa, o material ainda “subia” repetidas vezes para os figurões avaliarem. Sempre que os programas “subiam”, era para descerem ainda mais tesourados. Na última hora, foi ao ar uma mera colagem de informações sobre a Amazônia. Naqueles tempos, trabalhar para a Globo era talvez mais frustrante que trabalhar diretamente para a censura. Entre dois mundos A boa circulação européia dos meus filmes sobre a Amazônia abriu a possibilidade de uma retrospectiva na Cinemateca de Paris, em 1983, com o apoio da Embrafilme. Eu tinha uma boa relação com a cinemateca. Eles conheciam os meus trabalhos, sobretudo Iracema. Sempre que ia a Paris, assistia às projeções do curso livre de cinema, nas manhãs de sábado, apresentadas por Jean Rouch e outros. Foi bom ver os meus filmes debatidos dentro desse mesmo contexto. A partir daí, a mostra foi convidada para as Filmotecas de Madri, Valencia e Barcelona. Pela primeira vez, os filmes eram apresentados na Espanha. Na mesma época, o programador Fabiano Canosa exibiu Iracema, Jari e Terceiro Milênio no Public Theatre de Nova York. No Brasil, houve retrospectivas em Brasília e Manaus. De todas as mostras do meu trabalho até hoje, a mais completa seria organizada pelo Instituto Goethe de Salvador, em 1997, intitulada “Retrato de um Cineasta de dois Mundos”. Não se tratou apenas de exibir os principais filmes, mas de uma ampla amostragem de trabalhos diversos, incluindo a nova fronteira da multimídia. O Instituto Goethe de Salvador, sob a direção de Roland Schaffner, foi um ponto de resistência durante a ditadura. Lá acontecera uma das primeiras exibições de Iracema no Brasil. No início da década de 1980, eu ainda vivia realmente entre dois mundos – o Brasil e a Europa. Dirigi e fotografei institucionais para a Companhia Vale do Rio Doce e a Pentafarm, da Suíça. Das brumas do passado da Escola de Ulm ressurgiu, em 1984, o diretor Reinhard Kahn. Dono de um trabalho bem marginal para o contexto alemão, ele queria que eu fizesse a câmera do seu segundo longa, Nur fliegen ist schwerer (algo como “Mais Difícil, Só Voar”). Queria o estilo de fotografia preto-e-branco 16 mm que me vira fazer em Ulm. Foi interessante rever vários ex-colegas que integravam a equipe. Havia também a participação da companhia Laokoon Dance Group num filme que, afinal, era de dança. Contava a história absurda de um marinheiro que tinha de aprender a dançar para fazer jus a uma herança. Filmamos num pequeno vilarejo nas montanhas da Baviera, sob inverno rigoroso. Fazia tanto frio que, para entrar no carro de manhã, tinha-se que descongelar a fechadura com um isqueiro. Nas muitas externas, rodadas à beira do Danúbio ou em grutas e locações desafiadoras, eu devia prover uma luz onde céu e neve se confundissem na mesma tonalidade de cinza. Para conseguir isso, usei até luz de serviço (provisória, enquanto se prepara o ambiente da cena), entrando em conflito com os técnicos alemães. Mas, respaldado pela confiança de Reinhard, fiz o tipo de imagem que ele queria, com muito plano-seqüência e muita câmera na mão. Brasil de norte a sul com Gernot Schley Nessa época, ainda fazia matérias com Karl Brugger para os programas Titel, Thesen, Temperamente e Monitor do canal ARD alemão. Em 1984, passei a trabalhar com um novo parceiro, com quem ainda colaboro eventualmente. Gernot Schley é doutor em Filosofia e História e roteirista bem situado em Munique, onde mantém a produtora independente Projekt Film. Já nos conhecíamos desde os anos 70. Ele fazia documentários de fundo etnográfico na África e na Ásia, mas dizia ter muitos projetos para o Brasil. De fato, desde meados da década de 1980, Gernot tem feito um ou dois programas por ano, sempre em parceria comigo. Partindo de idéias dele ou minhas, preparamos juntos cada projeto. A produção brasileira, assim como todas as questões técnicas, ficam por minha conta. Em geral, eu mesmo faço as entrevistas em português. Por trás da narração do Gernot, é possível ouvir minha voz conduzindo entrevistas e praticamente co-dirigindo a filmagem. Houve casos em que ele nem veio ao Brasil. Eu produzia o material sozinho e lhe enviava. Todos os programas são rodados em película 16 mm e editados por Gernot na Alemanha, já que se destinam a diferentes canais, cada qual com seu estilo, duração, etc. Passam geralmente em horário nobre, daí que precisam ter uma narrativa clássica, linguagem acessível e algum apelo à emoção. Esses documentários nunca circularam no Brasil, embora digam respeito diretamente a nossos problemas e soluções. Para viabilizá-los, era preciso ter pelo menos um interlocutor alemão. O primeiro de que participei foi sobre a história do operário metalúrgico Santo Dias, morto pela polícia em 1979. Enfocávamos as duas pessoas que mais lutaram pelo esclarecimento do caso, a viúva Ana Dias e Dom Paulo Evaristo Arns, filho de imigrantes alemães. Esse filme foi dirigido por Georg Stingel, com Gernot atuando como produtor. A luta dos sem-terra é o tema de Der Traum von Einem Eigenen Stück Land (O Sonho de um Pedaço de Terra Próprio), realizado no Rio Grande do Sul, em 1987, para a Süddeutschen Rundfunk. No alvorecer do MST, visitamos acampamentos, conversamos com colonos e com o Padre Arnildo Fritzen, de origem alemã, que era o pároco de Roda Alta e participou do movimento desde o seu nascedouro. Nosso eixo principal eram os membros de duas famílias de ascendência alemã que, embora nascidos no Brasil, sentiam-se como alemães e se expressavam nos dois idiomas. Mas na batalha por um quinhão de terra, eram brasileiros como outros quaisquer. No filme, articulávamos esses personagens com o contexto maior da ocupação da Fazenda Anoni, a marcha a Porto Alegre em 1985, etc. Parte do material foi adquirido de Tetê Moraes, que então lançava o seu documentário Terra para Rose. Gernot tinha boas relações com a igreja católica progressista, cujo aval era muito útil na realização dos filmes. De resto, saíamos trabalhando sem envolver nem dar satisfação a qualquer órgão de governo. Filmamos em assentamentos, favelas, nas brenhas da Amazônia, em tribos indígenas remotas. Nesse período fazia parte da equipe David Pennington, como técnico de som. O Grupo Nós do Morro mal despontava e já mandávamos para a TV alemã uma reportagem sobre o trabalho de Guti Fraga com as crianças do Vidigal. Em 1989, nos abalamos para São Paulo de Olivença, cidade às margens do Solimões, para fazer o retrato de um madeireiro que derrubava árvores para vender os troncos em Manaus. Era a vanguarda individual do desmatamento. Percorríamos o rio num barquinho pequeno, em condições muito difíceis de higiene e conforto. Passei 15 dias a bordo sem saber que havia uma privada num cantinho da popa. Mesmo assim, para os caboclos dali, éramos um Titanic. Como de praxe, eles amarravam suas canoas para serem rebocadas pelo barco, numa flotilha de caronas. Observamos em detalhes o trabalho do madeireiro no interior da mata. Ele levou dias preparando a derrubada de uma sumaúma gigantesca, até que chegou o momento de retirar o último calço da base, o mais perigoso para uma filmagem. Nunca se sabe exatamente para que lado a árvore vai cair. O cinegrafista acompanha através da lente o volteio do tronco no ar, sem ter para onde correr se ele tombar na sua direção. Mas comigo aconteceu algo talvez pior: na hora H, a câmera travou porque a umidade tinha feito o filme inchar. A sumaúma caiu perfeita sobre a água do rio, sem que eu tivesse filmado. O derrubador me consolou à sua maneira: “Não tem problema, não. Espera mais uns dias que a gente arruma outra igualzinha”. Gernot e eu fizemos três filmes sobre índios brasileiros para uma série da Bayerischer Rundfunk (TV da Baviera) chamada Indianer (Índios). A idéia dessa série era mostrar ao público alemão que, sob o denominativo genérico de “índios”, existe uma grande diversidade de culturas, línguas, vestimentas, hábitos, etc. Os katukina são um povo que andou perdido e foi reencontrado. Em busca de suas aldeias, nos enfiamos pelo Rio Bia, um afluente do Amazonas no Acre, em 1999. Ali vivenciamos coisas típicas da filmagem em nações indígenas. A começar pela rivalidade entre as tribos, uma espécie de bairrismo em que se fala muito mal uns dos outros. Para facilitar o acesso, levamos conosco uma antropóloga conhecida dos katukina. A desconfiança deles é enorme e justificada, pois com freqüência são assediados por garimpeiros, bandidos e todo tipo de exploradores. Daí estarem sempre temerosos de ser enganados. Os katukina custaram muito a identificar para nós quem era o seu pajé – o que Gernot utilizou na edição para criar um interessante clima de expectativa. Quando se chega a uma aldeia que mantém pouco contato com os brancos, a atividade normal costuma dar lugar a um misto de suspeita e observação. Em Die Katukina, Volker der Panther (Os Katukina, Povo do Tigre), vemos as mulheres pararem de trabalhar e ficarem contemplando a equipe, entre cochichos. Nós somos alvo da curiosidade deles, tanto quanto o contrário. Às vezes é necessário permanecer vários dias antes de começar a flagrar o seu cotidiano real. Em certas ocasiões, a tendência à imitação surge rapidamente. No nosso grupo havia uma moça da FUNAI com uma franja no cabelo. No segundo dia, muitas índias já tinham franjas também. A coisa virou moda imediata. Lévi-Strauss descreveu muito bem esse dilema antropológico: a partir do primeiro contato, é quase impossível distinguir a cultura original dos índios. Com os waiãpi, no Amapá, tivemos uma experiência mais interativa. A tribo havia se dispersado e quase se extinguido quando da implantação da Calha Norte (projeto do Exército para estimular a povoação em regiões limítrofes e controlar fronteiras). Posteriormente, com a ajuda de várias ONGs – uma delas alemã –, eles foram reagrupados e tiveram suas terras demarcadas. Aconteceu, então, um belo fenômeno de recuperação cultural. Vincent Carelli já os havia integrado ao Projeto Vídeo nas Aldeias, de modo que os encontramos dotados de meios de produção da sua própria imagem. Uma das condições para que pudéssemos filmá-los foi contratar um deles como assistente para aprender a trabalhar com película. Além disso, uma equipe waiãpi fez reportagem em vídeo sobre a nossa presença na aldeia. Eu fui filmado enquanto eles pintavam o meu rosto, mas essa cena era auto-reflexiva demais para o gosto do Gernot. Os waiãpi tinham sua própria videoteca. O grande hit na época era Anaconda, 77, co-produção entre EUA, Brasil e Peru sobre a maior e mais mortífera cobra do mundo. Muru, nosso assistente local, atuava também como guia através das várias aldeias, a que chegávamos em canoas frágeis sobre rios não navegáveis. Vez por outra, tínhamos que retirar o equipamento para empurrar a canoa sobre troncos e pedras. Como em muitos trabalhos do Gernot, a viagem orienta a narrativa de Die Waiãpi, Volk des Dschungels (Os Waiãpi, Povo da Floresta). Filmar nas aldeias significa dormir em barcos ou, quando não há rio por perto, no alojamento da FUNAI ou numa rede esticada dentro de alguma maloca. Na alimentação, não podemos depender em nada dos índios, já que eles não estocam e só dispõem da provisão do dia. Chegar numa aldeia pedindo comida é uma péssima maneira de chegar. Eles partem da expectativa de que você é que vai lhes dar alguma coisa. Muitas vezes, a negociação prévia do acesso já inclui uma lista de encomendas que a produção deverá levar. Outros documentários interessantes foram feitos no Mato Grosso sobre o trabalho da Zilda Arns na Pastoral da Criança, e de Betty Länger, freira de origem alemã que pesquisa, sistematiza e dissemina todo um patrimônio cultural caboclo sobre cultivo, medicina e alimentação. A irmã Betty prepara agentes pastorais que recolhem conhecimentos, fazem intercâmbios, distinguem o que é relevante e saem pela mata tentando melhorar a qualidade de vida de uma população extremamente desassistida. Mas ela também questiona fazendeiros sobre queimadas e derrubadas. Era a personagem principal de Überleben in der Grünen Hölle (Sobrevivência no Inferno Verde). Gernot realizou cinco programas sobre a América Latina por ocasião dos 500 anos da descoberta da América. Em alguns, constam segmentos brasileiros de minha lavra, sendo meu assistente o expedicionário e cineasta Sylvestre Campe, um jovem que tinha escalado e filmado o famoso pico K-2, nos Himalaias. Num desses programas, abordando a vinda dos escravos africanos, tive o raríssimo privilégio de filmar o etnólogo Pierre Verger num terreiro de candomblé da Bahia. Em maio de 2005 fiz a incursão mais profunda de todas em companhia de Gernot Schley. Fomos ao encontro da tribo dos zuruahá, uma das mais remotas do país, geográfica e culturalmente. Foram 20 dias sem nenhuma comunicação com o mundo exterior. Nosso personagem-guia dessa vez era o padre e antropólogo alemão Gunther Kroemer, que vive no Brasil desde 1978, quando fez o primeiro contato com a tribo, que hoje ele conhece profundamente. Os zuruahá tiveram no passado um contato traumático com uma frente branca e quase foram dizimados. Os sobreviventes refugiaram-se na floresta e passaram a evitar outros contatos. Gunther participou de um trabalho do CIMI - Conselho Indigenista Missionário, órgão da CNBB, no sentido de demarcar suas terras e protegê-los da aproximação de madeireiros e garimpeiros nos anos 1980. A proposta não era de civilizá-los nem evangelizá-los, mas de fortalecer sua cultura e favorecer sua resistência. Objetivos bem diferentes tem hoje a rica organização Juma, pertencente a uma igreja pentecostal americana, que está tentando introduzir a bíblia na tribo. Por enquanto, os zuruahá continuam isolados da civilização branca, a não ser por um avião da FAB que uma vez por ano leva-lhes vacinas. Eles são extremamente sensíveis à gripe. Se alguém tossir por perto, vão logo expulsando. De resto, são uma gente amável, de compleição física muito saudável e peles intactas. Nenhum deles fala português. Vivem em pequenos grupos dentro de ocas imensas, imponentes, as maiores da América do Sul. Com até 15 metros de altura e aproximadamente 25 metros de diâmetro, elas se assemelham a pirâmides ou, quando a luz penetra pelas frestas e orifícios, a catedrais. Cada uma é construída durante anos por um único guerreiro, sem ajuda de ninguém, e isso é fonte de prestígio. Casam-se muito jovens, preferencialmente entre primos, fazem cerâmica para subsistência e seus únicos instrumentos são facas, terçados e machados. Não trocam nem comercializam absolutamente nada, uma vez que desconhecem valores materiais. Trata-se de uma situação inusitada em pleno século 21. São cerca de 150 pessoas e quase todas vão se suicidar. À exceção dos acidentes, a forma natural e boa de morrer entre os zuruahá é ingerindo o mesmo veneno de cipó que diariamente colocam na ponta das flechas e das zarabatanas para matar peixes. Os mais velhos não parecem ter mais de 50 anos, pois a hora de morrer chega em algum ponto entre a juventude e a velhice, seja individualmente ou em suicídios coletivos. Para chegar até aquele extremo do Amazonas, foi preciso atingir a cidade de Lábrea, com suas palafitas e seu famoso leprosário do outro lado do rio, lembrando muito um dos cenários do filme Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Dali seguimos em barco por seis dias ao longo de um afluente do Rio Purus e mais um dia a pé até os limites da reserva. Talvez mais do que nunca, enquanto subia o rio, tive a sensação de lentamente passar de um universo a outro: as últimas casas de caboclos ficando para trás, seguindo-se um longo hiato humano de um ou dois dias, para enfim, na longa caminhada pelo varadouro dentro da mata, começarem a surgir os primeiros indícios de uma vida puramente indígena: árvores cortadas, uma roça precária, um cesto abandonado. Era como trocar o mundo conhecido por uma espécie de lugar-nenhum – algo comparável, por exemplo, à travessia para a Antártica, que fiz em 1997. Sabemos que a chegada está próxima quando as crianças da aldeia vêm ao nosso encontro, nos apalpam, festejam. Esse é sempre um momento muito emocionante. A aceitação da câmera hoje é mais fácil, com os pequenos monitores retráteis, onde os índios se vêem e se tranqüilizam. Ver o resultado parece reduzir a impressão de que têm suas almas roubadas por nós. A curiosidade pelos visores é imensa. Levamos fotos de família para que eles nos percebessem como semelhantes, já que os zuruahá só compreendem a pessoa a partir da célula familiar. Zuruahá, por sinal, significa “sou gente”. A cada dia tínhamos que fazer a tal sessão de fotos, passadas de mão em mão. Nossos objetos e roupas também eram freqüentemente inspecionados, vestidos e sempre devolvidos. Por várias vezes, abaixaram meu calção para se divertir com as duas cores da minha pele. Através do perfil de Gunther Kroemer, documentamos a vida na tribo durante cinco dias. Em seguida, visitamos algumas cidadezinhas da região às quais ele também presta assistência. Ainda estivemos numa aldeia de índios paumari, já aculturados, onde fizemos o primeiro registro de um rito de passagem de meninas por ocasião da primeira menstruação. As belíssimas imagens dessa viagem, muitas vezes sugerindo um paraíso, não deixam entrever o inferno verde onde estávamos metidos. Os mosquitos pium nos assediavam o dia inteiro e a instabilidade do solo deixou marcas no meu corpo. Sofri uma queda, destronquei o pé, que inchou muito, feri a perna e fui picado por um inseto cujo veneno me causou tonturas, apesar da casca de árvore que um índio prontamente me deu para mastigar. Voltei para casa exausto, machucado e extraordinariamente feliz. A sensação era de ter atingido uma culminância no meu trabalho. Choques culturais Minha parceria com Gernot Schley dá margem a alguns choques culturais interessantes. Ele, como todo bom alemão, traz tudo planejado em detalhes. Cumprir o plano às vezes se torna mais importante do que o resultado da captação. O problema é que, ao trabalharmos na selva ou à mercê dos índios, todo planejamento de filmagem tem que ser flexível. Certa feita, começávamos a fazer o retrato de um seringueiro do Acre e sua família. Gernot queria que eu apresentasse ao seringueiro todo o seu plano de intenções, desenvolvido numa lista enorme de tarefas a cumprir diante da câmera. Eu me limitei a falar das tarefas de cada dia. Se mostrasse tudo, o pobre homem fugiria para o mato e não daria mais as caras. Nas muitas viagens malucas que fizemos juntos, nem sempre é possível obter reservas com antecedência ou manter planos de vôo feitos previamente. Quando algo dá errado num aeroporto, eu sempre digo: “Vamos ficar até a última hora porque se dá um jeito”. Na Alemanha, se lhe dizem que não há lugar num avião, você pode desistir e ir embora. Gernot não entende como sempre acabamos embarcando. Numa viagem urgente que precisávamos fazer do interior de Mato Grosso a Cuiabá, num pequenino avião de carreira, só restava um lugar disponível. Mas uma senhora com o filho pequeno havia comprado dois lugares. Eu propus pagar a passagem do garoto para que ela o levasse no colo, liberando o assento de que precisávamos. Gernot acompanhou a negociação, completamente atônito. Para o germanista aplicado, o jeitinho brasileiro é um território insondável. Diante dele, sou até um pouco baiano... Faço questão de esquecer o plano de trabalho para me envolver com aquilo que está acontecendo na minha frente. O improviso está no cerne do meu método. É bem verdade que, com o tempo, Gernot acostumou-se um pouco a confiar na minha intuição. Nunca sabe o que vai acontecer, mas confia. Apesar das diferenças, compartilhamos o mais importante: a intenção de aproveitar a curiosidade romântica das platéias alemãs – e européias em geral – para informar sobre os múltiplos aspectos da realidade do Terceiro Mundo. Mostramos o lado bonito e discutimos a face verdadeira ao mesmo tempo. A Amazônia e seus povos fazem parte de um arquétipo do imaginário em todo o mundo. Os redatores das televisões européias sabem que o seu público está sempre interessado em ver aqueles índios que ainda moram de maneira isolada e primitiva, e são felizes, preservam a floresta, se auto-sustentam, etc. Acontece que a realidade dos povos da floresta é outra: quem tem um pedaço de terra precisa protegê-la contra as invasões; quem não tem, quer ocupar. O madeireiro e o garimpeiro só pensam em fazer dinheiro; todos querem extrair da terra a riqueza mais rápida possível. O europeu gosta de preservar o quintal dos outros porque o seu continente já viveu uma história de horror ecológico. A Europa foi devastada na Idade Média, queimaram-se todas as florestas, usou-se toda a madeira para fazer navios. Portugal e Espanha praticamente se desertificaram na época das conquistas. Depois se reflorestaram e a Europa de hoje parece verde, exuberante. Na Amazônia, vivemos o processo inverso. Ela está sendo devastada por um abraço da morte, como já disse Beto Ricardo, técnico do Instituto Socioambiental. A invasão não se dá tanto pelos rios, mas pelas estradas que contornam toda a Amazônia úmida e vão fechando o círculo, estrangulando o ecossistema. Quando comecei a viajar pela região, nos anos 1960 e 1970, havia trechos em que raramente víamos uma pessoa ou uma casinha. Hoje quase todos os quadrantes estão ocupados, há movimento em cada braço de rio. O mundo que conheci está extinto. Não tenho nada contra a povoação daqueles confins, mas essa ocupação tem que ser racional e auto-sustentável, a fim de que homem e floresta possam conviver harmoniosamente. A legislação brasileira é muito adiantada, mas ainda não resolve tudo. A criação de áreas de proteção ambiental é apenas o primeiro passo de um longo processo, pois é preciso fiscalizar, fazer cumprir a lei. Do contrário, a legislação fica muito bonita no papel enquanto, na prática, a devastação segue seu curso. Araguaia: a missa da terra A atuação da igreja progressista na Amazônia ainda era muito forte em 1985, quando dirigi com Helena Salem o documentário Igreja dos Oprimidos. Antes mesmo de adotar o livro homônimo da Helena como base de trabalho, eu já havia pensado num filme que partisse de uma “nova missa” da Teologia da Libertação para enfocar as particularidades e o destino de cada pessoa que ali estivesse. A idéia me surgira ao fazer um trabalho no Ceará, quando assisti à missa celebrada por um padre austríaco à sombra de uma grande árvore. Tinha ficado comovido com o despojamento da cena, aqueles camponeses e Deus lá em cima, sem templo, sem imagens de santos, como no início da Igreja Católica. Uma convergência de propósitos reuniu a mim, Helena, a produtora Lucíola Villela e o Padre Ricardo Rezende, de Conceição do Araguaia (sul do Pará). Tínhamos, então, tudo de que precisávamos: uma boa pesquisa já pronta, viabilização financeira e um personagem que incorporava exatamente aquilo que queríamos retratar. Padre Ricardo tinha sobrevivido a cinco atentados e exercia um papel de liderança nas comunidades eclesiais de base do Norte brasileiro. A Teologia da Libertação começava a ser perseguida e duramente combatida pela ala conservadora da Igreja. Centralizamos a produção na cidade de Redenção. Toda aquela área era abalada pelos conflitos de terra, exacerbados após o governo anunciar um projeto de reforma agrária. Ali tinham atuado os padres franceses Aristides Camio e François Gouriou, que ficaram presos por mais de dois anos e, já então deportados, nos deram uma entrevista em Paris. Frei Leonardo Boff, condenado pelo Vaticano a um ano de silêncio político, encontrou uma forma de aludir à reforma agrária enquanto falava de sua horta particular. Padre Ricardo, presente como uma espécie de explicador, celebrou a missa que ocupa o núcleo central do filme. Afora seus depoimentos, evitamos fazer um desfile de padres e bispos, preferindo dar voz ao povo e a personagens da luta pela terra. Não faltaram questões polêmicas, como a defesa, por um agente pastoral, das queimadas feitas pelos camponeses. Mostrando isso, não estávamos tentando justificar a “queimada do bem”, mas expondo as razões de sobrevivência daquela gente. Entrevistamos, em sua própria casa, o pistoleiro Sebastião da Teresona, um assassino confesso, livre e orgulhoso, cercado de quadros religiosos nas paredes. Filmamos o corpo de um soldado morto num conflito em Redenção. Apesar das nossas convicções políticas, pretendíamos abrir espaço para os dois lados da guerra. Mas, à exceção de um sindicalista patronal que insinuou o recurso à violência, não foi fácil ouvir o outro lado. Assim como contratam jagunços para cometer seus crimes, os maus fazendeiros e donos de terra tampouco se mostram para argumentar a seu favor. As famílias viviam acuadas por não terem ninguém do seu lado. A polícia, em conluio com os atiradores de aluguel, sempre que intervinha era representando os interesses dos fazendeiros, em lugar da Justiça. Em Igreja dos Oprimidos eu não fiz a câmera, o que é muito sofrido para mim. A L.C. Barreto assinou um contrato de co-produção com a Société Française de Production, visando principalmente a pós-produção do filme. Mas eles conseguiram impor o fotógrafo Serge Guitton, que tinha um estilo mais rígido e lento, com câmera no tripé. É claro que o orientei na medida do possível, mas não é a fotografia que eu faria. De qualquer forma, isso não foi conflitante e a equipe era bem coesa. Helena Salem, muito doce mas também muito ativa e politizada, usava suas relações para criar um ambiente favorável à nossa entrada com a câmera. Lucíola Villela, já em idade avançada, esbanjava energia, animação e espírito guerreiro. Fiquei encantado com o seu envolvimento apaixonado com o filme, inclusive como grande divulgadora. Rodamos durante três semanas com uma equipe de cinco pessoas. O produtor delegado era Louis Mollion, que já tinha vindo ao Brasil e até velejado no meu barco. Acompanhei a montagem e finalização em Paris, onde o filme estreou na TF1 em horário nobre, excepcionalmente na versão integral (75 minutos), em setembro de 1986. Um mês antes fora exibido ao Papa João Paulo II e integrado ao acervo da cinemateca do Vaticano. Não tenho dúvida de que o filme surgiu num momento oportuno para a discussão da Igreja da Libertação. No Brasil, ganhou a Margarida de Prata da CNBB e rodou o circuito dos cineclubes, com temporadas no Estação Botafogo, no Rio, e no Oscarito, em São Paulo. Foi exibido nos festivais de Cannes, Havana e Montreal, entre outros. Infelizmente, a temática continua tão atual que o filme foi exibido no Canal Brasil em 2005, pouco depois do assassinato da freira americana Dorothy Stang no Pará. Minha relação com o tema era basicamente política. Tal como Helena, eu não me identificava com aquelas pessoas pelo lado místico, mas julgava-as plenamente convincentes do ponto de vista político. Elas eram atacadas por todos os flancos – pela direita e pela esquerda conservadoras, que por razões diferentes rechaçavam a interferência da Igreja na ação política. Mas, no fundo, religiosos ali eram somente Padre Ricardo e poucos outros. Os demais buscavam a proteção da Igreja para resolver os problemas sociais. Capítulo VII Ao sabor do vento O muiraquitã é um amuleto indígena de pedra ou âmbar, geralmente em forma de rã, a que se atribui trazer sorte e saúde para quem o carrega. Muiraquitã é o nome do meu barco, um veleiro francês de 27 pés, já meio antigo, que fica estacionado em Angra dos Reis. Não sei se me traz sorte ou saúde, mas certamente proporciona muito prazer. A ponto de causar uma certa dependência: quando me separo por muito tempo do meu barco, fico angustiado. Depois das peripécias de adolescente na represa de Guarapiranga, só fui reatar com a vela em 1979, ao me instalar no Rio. Logo comprei um pequeno laser na Marina da Glória. Depois, um veleiro de oceano de 22 pés. Era fantástico ter um barco praticamente na porta de casa e sair para uma volta na baía antes de iniciar os trabalhos do dia. A sensação de liberdade é muito grande porque o mar não é de lugar nenhum, mas de todos os lugares ao mesmo tempo. Com um barco capacitado e aptidão de navegador, pode-se sair pela Baía da Guanabara rumo à Europa, à África do Sul, à América Central, à China via Estreito de Magalhães. Desde pequeno, sempre gostei de fazer a locomoção a partir do vento, tirando proveito das correntes de ar, brincando com os sopros da natureza. Excetuando-se as fatalidades de maremoto ou tsunami, o mar é o lugar mais seguro de que tenho notícia. Quem o conhece sabe lidar com ele sem desafiá-lo ou enfrentá-lo. Ele é sempre mais forte do que nós. Mas pode-se passar uma vida inteira no mar sem sofrer nenhum acidente, desde que se conheçam os limites pessoais e do equipamento. Costumamos chamar de “lancheiros” aqueles que estão sempre correndo em barcos a motor, como se o mar fosse uma estrada mais curta para chegar a algum lugar. O velejador cruzeirista, ao contrário, quando entra no barco já está no mar. Não há outro objetivo além de passear e seguir o ritmo que a natureza impõe, sem saber bem a que horas o mar soberano vai permitir retornar. É um ótimo exercício mental. O silêncio do oceano me atrai, embora eu não seja o típico navegador solitário. Gosto de ter gente no barco. Como velejador costeiro, estou sempre marcando encontros e confraternizando com amigos. Durante um período, velejei muito com Affonso Beato na região de Angra. Mas isso não quer dizer que haja maiores relações entre a minha vida de velejador e a profissão de cineasta. Na comunidade náutica, as pessoas são conhecidas não tanto pelos seus nomes, mas pelo nome do barco. Tenho amigos de vela que nem sabem que faço cinema. Para quase todos, aquela é uma vida realmente alternativa. A única referência a cinema que tenho no Muiraquitã é um quadrinho com aquele velho anúncio dos cigarros Gauloises em que uma platéia de barcos está diante de uma enorme tela no mar – um cinema sail-in. Se em algum momento esses dois mundos se misturaram foi em 1986, quando dirigi um programa Globo Repórter sobre pessoas que moravam em barcos. Minha volta à Globo tinha se dado no ano anterior, com um convite do Daniel Filho para dirigir um especial sobre os bastidores da minissérie O Tempo e o Vento, baseada no romance de Érico Veríssimo. Essa foi uma experiência interessante no processo, mas frustrante no resultado. Num momento em que ainda não se falava muito em making of, documentamos toda a realização da série, da confecção dos efeitos especiais à composição da trilha sonora por Tom Jobim. Na edição, porém, impuseram-me uma roteirista, deram muitos palpites e o trabalho acabou perdendo a identidade que eu imaginava. E por uma extrema falta de sorte, no dia da exibição, véspera da estréia da série, a morte de Tancredo Neves determinou o adiamento do programa e a perda de seu principal efeito. Também em 1986, realizei outro making of, esse de teatro. A convite do Instituto Goethe do Rio, registrei os ensaios da montagem de A Verdadeira Vida de Jonas Wenka, de Bertolt Brecht, com os atores do Grupo Tapa sob a direção de Peter Palitzsch, o famoso encenador brechtiano alemão. Trabalhei sozinho com minha câmera Vídeo-8, em regime de pura observação. O vídeo, que se chamou Ensaiando Brecht, tem a virtude de captar a construção do entendimento entre profissionais tão diferentes, com línguas e tradições culturais bem distintas. A reaproximação com a Globo, em O Tempo e o Vento, serviu-me para voltar ao Globo Repórter, então dirigido por Jorge Pontual, onde faria mais alguns trabalhos estimulantes com pauta própria. O primeiro deles foi o programa sobre os velejadores que chegavam de todas as partes do mundo à Marina da Glória. Havia famílias, lobos solitários, gente com animais, etc. Uma empatia especial surgiu entre mim e a família Belli. Eles viviam num Damian, veleiro de aço de 48 pés, de fabricação francesa, preparado para climas extremos. Oleg Belli contou-me que viajava todo ano com sua família à Antártica. No barco havia uma grande biblioteca sobre expedições ao continente gelado. Ele é um físico nuclear nascido na Rússia e criado na França. Dez anos antes, havia trocado toda sua atividade em terra por uma vida integralmente marítima. A costa brasileira era um de seus ancoradouros temporários prediletos. Poucos, como os Belli, se desvencilhavam de casa e carro em opção tão radical. Não esperei que ele me convidasse uma segunda vez para acompanhá-lo em sua viagem seguinte à Antártica. Antártica: paraíso on the rocks Corria o ano de 1986 e eu tinha uma base de trabalho na produtora Intervídeo, de Walter Salles, Roberto D’Ávila e Fernando Barbosa Lima. Pensava em fazer uma série combinando ficção e documentário sobre a história de uma família gaúcha que percorreu toda a costa brasileira no barco Plâncton. A viagem estava narrada no livro Velejando o Brasil, de Geraldo Tollens Linck. Chamei João Moreira Salles e Mauricio Zacarias para fazerem um pré-roteiro comigo. Esse foi mais um projeto que não se concretizou, já que não conseguimos efetivar uma pré-venda para a TV alemã. O programa da Antártica, contudo, foi aprovado para co-produção pela TV Manchete e ganhou uma promessa de compra da rede francesa Antenne 2. Praticamente alugamos o barco de Oleg Belli para fazer o filme. Cheguei a convidar o João para juntar-se a nós, mas ele não se considerou apto a embarcar por tanto tempo ou para tão longe. Antes da viagem principal, passei uma semana me familiarizando com os Belli e seu barco, ancorado na Baía de Valdez, um santuário ecológico e local de reprodução de baleias no início da Patagônia Argentina. Desde o começo, sabia que não faria exatamente um documentário, mas um filme de viagem centrado no garoto Igor, filho do casal então com três anos, duas viagens à Antártica e uma precoce intimidade com focas, pingüins e o cenário de gelo. As gravações seriam feitas em vídeo, razão pela qual chamei o cinegrafista Serge Guitton, de Igreja dos Oprimidos, que tinha experiência com o suporte e uma boa câmera Thompson U-Matic. Eu levei minha Vídeo-8 para gravações complementares. Da equipe fazia parte também Andreas Wiedemann, um grande amigo aventureiro. A Laís, na época com 17 anos, aproveitou as férias escolares para fazer sua primeira excursão à neve. Enfim, em janeiro de 1987, chegamos em avião da Aeroposta Argentina (correio aéreo) a Ushuaia, onde Oleg nos aguardava. O curto verão antártico, em janeiro e fevereiro, é o único período em que um veleiro pode entrar na Antártica antes que o mar se cubra completamente de gelo. Em Ushuaia, embarcamos no Kotick para a etapa mais arriscada do percurso, que é a Passagem de Drake, considerada “o pior mar do mundo”. Ali, onde a Península Antártica se defronta com a Terra do Fogo e o Atlântico encontra o Pacífico, fica o Cabo Horn, para os velejadores um mito equivalente ao Everest para os alpinistas. O mar está quase sempre fechado, há muitas correntes e ondas gigantescas. O barco é preparado para o pior. Tudo é amarrado ao chão, como se uma capotagem fosse iminente. É claro que estávamos muito excitados. Mas, para nossa surpresa e até alguma decepção, a passagem do Horn foi calma. Oleg, experiente e sempre muito tranqüilo, era um esteio de segurança. É emocionante quando se está do lado de fora, segurando o leme do barco, entre um céu estrelado e aquele mar extremamente profundo, sentindo-se como o único habitante desse mundo. Não passa um navio, nem um avião. Ninguém poderia vir em seu socorro porque você está realmente solto na natureza. E está indo para lugar nenhum, porque na Antártica não há nada. Ninguém está esperando por você. As noites vão ficando cada vez mais curtas até que não existem mais. Então vem o deslumbramento com a visão do primeiro iceberg. E também o perigo. Não com os grandes, que todo mundo vê, mas com os fragmentos de gelo que os radares não detectam, mas podem estourar o barco. O Kotick tinha uma quilha retrátil que permitia encostar em lugares bem rasos. Mas atracá-lo era sempre uma operação complicada, porque não se pode ancorar o barco. É preciso amarrá-lo com cabos nas pedras perto da margem, onde o gelo nessa época já derreteu. Dali segue-se para terra firme em pequenos botes. Nossa primeira parada foi na Ilha da Decepção, ao sul da base brasileira. Entramos com o veleiro na cratera de um vulcão em atividade, coberta de uma água sulfurosa e borbulhante de vapor onde se pode tomar banho como numa imensa piscina. Poucos metros separam aquele lago quase fervente da água gelada do oceano. A estupefação com a paisagem e as atrações antárticas são, literalmente, de tirar o sono. Como a noite nunca vem, fica-se acordado até o corpo dar o ultimatum do repouso. Na verdade, é um tremendo estresse. Por outro lado, a sensação de se estar num continente que não tem dono, nem moeda, nem governo, nem leis, nem fronteiras, é a de se alcançar uma utopia. Estávamos nos primeiros tempos do Tratado da Antártica, quando ainda havia escaramuças entre Argentina e Chile por causa do Canal de Beagle. Em nossa última parada no Chile, em Porto Williams, os oficiais não queriam carimbar nosso passaporte, sob a alegação de que na Antártica continuaríamos em “solo chileno”. Numa base chilena que visitamos em plena Antártica, havia uma placa bem ao estilo Pinochet: “Este es territorio chileno, por la razón o por la fuerza”. Nosso roteiro era guiado pelas visitas a bases dos diversos países, algumas parcialmente abandonadas. Oleg conhecia muito bem a regra segundo a qual, na Antártica, o que está abandonado é de todo mundo. Então nos abastecíamos de óleo diesel e víveres nas despensas dessas bases. Encontramos macarrão e chá deixados havia mais de 50 anos, mas ainda perfeitamente conservados devido à temperatura inferior a zero grau. Em cada lugar onde chegávamos, Igor era uma atração excepcional, sobretudo para as mulheres. A presença de uma criança na Antártica ainda era muito rara. Num dado momento, encontramo-nos com a família de Jerôme e Sally Poncet, velejador que bateu vários recordes com um barco semelhante ao Kotick. O congraçamento das crianças de Jerôme com o Igor foi um desses momentos muito caros à vida do navegador. Uma vida feita de encontrar e despedir, encontrar e despedir. Outra semelhança da Antártica com o paraíso é que os bichos estão lá e não têm medo dos homens. Ora apareciam baleias, ora elefantes marinhos. Igor brincava com os pingüins e os cormorões. E vinham as focas, os golfinhos. A ação era intensa e, na maioria das vezes, imprevista. Por vezes, escalei o mastro do barco para filmar baleias com minha V-8. A liberdade do vídeo nos possibilitou coletar um grande material da fauna antártica, que depois vendemos para diversas televisões. Aprendi inúmeros macetes para filmar animais. As focas, por exemplo, ficam nervosas se as abordamos interpondo-nos entre elas e o mar. Devemos nos abaixar o máximo possível para que elas não se sintam ameaçadas por nossa altura. A atividade entre os animais era incessante. O verão curtíssimo é todo o tempo de que dispõem para acasalar e cumprir o ciclo da reprodução. As pingüineiras estavam agitadas. Os pingüins passavam rapidamente da infância para a adolescência, perdendo a penugem e adquirindo aquele pêlo oleoso que lhes permite entrar na água. O primeiro mergulho de um pingüim, entre o medo e a felicidade, é uma cena e tanto. Filmávamos tudo o que acontecia, às vezes no estilo de observação, às vezes dirigindo o Igor em algumas ações. Dirigindo, até certo ponto. O que contava era a espontaneidade do menino, sua total falta de inibição diante da câmera. Filmei-o tomando um guaraná Antárctica, na vã esperança de fechar uma negociação de merchandising. A Lego também tem uma referência no filme, mas somente em troca de um monte de brinquedos para o Igor e outras crianças. Com a loja “O Veleiro”, permutamos uma aparição da marca por casacos e outros apetrechos. Em matéria de merchandising, éramos realmente muito amadores. Lidar com a baixa temperatura exigia muita paciência. Os contatos do equipamento oxidavam-se com facilidade A câmera tinha que ser mantida dentro do barco para evitar o congelamento da graxa e a danificação das fitas. Quando a retirávamos para uma situação inesperada, tínhamos que esperar as lentes se desembaçarem. Em compensação, a luz da Antártica é lindíssima. Para onde quer que se aponte a câmera, a imagem é maravilhosa. Existe lá um vale tão bonito que foi apelidado de “Kodak Valley”. A Laís fazia um diário de bordo pessoal. Certamente suas páginas mais triunfantes diziam respeito à noite que ela, pioneiramente, passou na base britânica entre jovens lá invernados havia meses. Quando terminávamos nossa visita à base, os garotos pediram que ela ficasse no pub um pouco mais. No meio da noite, voltei de bote para buscá-la, mas um grande iceberg bloqueava a entrada da base. Ela também não podia sair e só foi trazida pela manhã pelo comandante inglês. Pela primeira vez, uma moça havia pernoitado no lugar. A viagem de volta foi particularmente tumultuada. Uma tempestade fez o barco comportar-se como num tobogã sobre ondas enormes. Todos passamos muito mal, exceto Oleg e Igor, que continuavam a comer seus macarrões, felizes da vida. Passei vários dias sem conseguir empunhar a câmera para filmar. Já estávamos triturados quando alcançamos o Canal de Beagle e tivemos que sofrer um desvio de rota por causa dos ventos. Quase fomos parar na Geórgia do Sul. Por pouco não perdemos o vôo de Ushuaia para Buenos Aires, num momento em que os argentinos em peso se deslocavam para o Brasil por causa do carnaval. Para culminar, no momento em que Andreas finalmente conseguiu uma ligação para a minha mulher, eu tinha disparado para o banheiro da base chilena de Puerto Wiliams. Ele disse à Christina: “Espera aí que ele está com um problema”. E antes de entrar em detalhes, involuntariamente fez um movimento brusco que arrebentou o fio do telefone. Era a última chamada para o embarque e o pânico da Christina perdurou até chegarmos a Buenos Aires. O material gravado na Antártica precisava agora de um tratamento que o tornasse interessante para o público infantil. Pedi a Sylvia Orthof que o assistisse e criasse uma história. Adotamos, então, um processo pouco usual: o texto foi criado a partir das imagens e a montagem foi feita em conformidade com o texto. Assim eu avançava na proposta de fantasiar a realidade, em vez de meramente documentá-la ou explicá-la didaticamente. Sylvia aproveitou todas as sugestões do material bruto. Ela tinha, por exemplo, cenas de Igor dando pontapé nas focas, uma skua em vôo rasante batendo a asa na cabeça do garoto e imagens de uma avalanche. Combinando tudo isso, criou uma lição ecológica sobre a necessidade de se respeitar os animais. Com base nas cenas de Igor mascando cones de gelo, inventou uma ficção sobre montanhas de sorvete, que enfatizamos com efeitos de cor sobre a neve. A passagem de Sally Poncet pelo filme se transformou na visita de uma fada no meio da Antártica. A paisagem, por si, já induzia ao pensamento mágico. De posse do texto em versos, convidamos o músico Aécio Flávio para transformar alguns trechos em canções. As filhas dele fizeram os vocais e as vozes dos bichos. O ator Othon Bastos gravou a narração. Todo o trabalho de montagem foi feito na TV Manchete por Ronaldo Ferreira, um dos editores da série Armação Ilimitada, com produção de Cláudio Pereira, da Intervídeo. As Aventuras de Igor na Antártica foi ao ar pela primeira vez em julho de 1987. Bem pode ter sido o primeiro musical infantil feito em vídeo no Brasil. E certamente foi o primeiro tratamento ficcional da Antártica para crianças. Eu tinha em casa a espectadora ideal, minha filha Alice, então com quatro anos. Se a Intervídeo e nossos parceiros franceses tivessem continuado no barco, teríamos feito uma série de aventuras de Igor, em cenários como a Amazônia, o Pantanal e as Malvinas. Só não levaríamos o garoto para a cidade. Em terra firme sua desenvoltura e perícia eram nulas. Num shopping center, por exemplo, Igor com freqüência perdia o equilíbrio e se esborrachava no chão. Morria de inveja da Alice, que vivia num prédio com elevador. Platô da Neblina: na trilha de Conan Doyle A aventura impossível é uma idéia que me fascina. Depois daquela expedição com Karl Brugger em busca da mítica Akakor, envolvi-me na década de 1980 com duas aventuras de teor parecido. Nenhuma deu filme, mas ambas me mobilizaram profundamente. A primeira delas, puramente ficcional, foi logo em seguida à realização de Igreja dos Oprimidos. Tentei repetir a parceria com Helena Salem e Louis Mollion para levar ao cinema o romance Mont Analogue, de René Daumal. O livro é uma grande fantasia sobre a procura dessa montanha cuja localização é incerta, porque irreal. O Monte Analogue se esconderia atrás de um denso nevoeiro, em algum lugar da Terra não detectado por radares ou instrumentos de navegação. Sua base seria visível, mas não o pico. A busca seria não apenas geográfica, mas metafísica – uma indagação sobre o sentido da vida. O mais curioso é que Daumal suicidou-se antes de terminar a história, deixando uma série de cálculos complicados para se chegar até o monte. Com Helena, desenvolvi um argumento que tampouco se concluía. Mal comparando, era como em certos filmes de Werner Herzog, onde o mais importante não é chegar, mas o esforço empreendido. Na verdade, eu gosto de chegar e concluir alguma coisa. Mas aqui o ponto de chegada era transmitir a sensação que o livro passa. Há nisso alguma semelhança com o fato de navegar dias e dias num barco na Amazônia, ou voar num avião pequeno sem a certeza de se atingir o lugar pretendido. Trata-se de perder-se e encontrar, no próprio trajeto, o sentido da viagem. Mas o projeto Mont Analogue nunca saiu do papel. Através da editora Gallimard, soubemos que os direitos pertenciam ao filho de Daumal, que trabalhava na embaixada francesa no Cairo. Sua resposta a minha consulta foi falsamente animadora. Ele me sugeria visitá-lo no Egito e dava a entender que almejava o papel de roteirista. Com isso, o Analogue voltou para trás de sua névoa. Um dia desses ainda tento ir ao seu encontro. A outra aventura, apesar de concretizada fisicamente, tinha um fundo igualmente mitológico. Lady Jane Doyle, filha do escritor Arthur Conan Doyle, contava que o pai escrevera alguns livros a partir da psicografia, ou seja, recebendo espíritos de personagens que lhe contavam suas histórias. Um desses livros teria sido O Mundo Perdido, transmitido ao autor pelo espírito do Professor Challenger. Quem ouviu esse relato de Lady Jane foi o jornalista alemão Ortwin Bruckner, que prontamente decidiu montar uma expedição jornalística ao platô do Pico da Neblina, no Brasil, próximo à fronteira com a Venezuela. Pelos cálculos de Ortwin, era ali que Challenger teria vivido e encontrado plantas e animais conservados do período mezozóico. Inclusive dinossauros e pterodáctilos. A própria filha de Conan Doyle não descartava a hipótese de uma base real para a aventura descrita pelo pai, ele que nunca botara os pés na Amazônia. Poucos já haviam explorado os diversos platôs que compõem o chamado Platô da Neblina. Havia certo mistério em torno desse local, em que de fato existiam resquícios de fauna e flora antiqüíssimas. Ortwin dispunha de financiamento para a expedição e queria fazer um livro. Eu me juntei ao grupo para fazer um documentário que investigasse in loco as teorias de Challenger/Doyle. Formamos a equipe com David Pennington, os técnicos Sil Sá e Gustavo Martinelli, do Jardim Botânico do Rio, o cinegrafista Serge Guitton e um expedicionário alemão que morava na África do Sul, amigo de Ortwin e do velejador Amyr Klink. Levamos uma câmera U-Matic, duas Vídeo-8, máquinas fotográficas e equipamento de som, basicamente o mesmo que tinha usado na Antártica. Os alemães se excederam nos preparativos, desconsiderando que, na Amazônia, quanto mais leve, mais longe você vai. Trouxeram todo um kit-selva comprado numa loja especializada de Munique: roupas de safári, óculos especiais, redes de nylon com mosquiteiro para cobrir o rosto, um pequeno barco inflável com motor de popa... Enfim, chegaram fantasiados de expedicionários. Os brasileiros morriam de rir. Em Manaus, antes da partida, ainda os filmei comprando farinha e consultando uma loja de amuletos de candomblé. De minha parte, seguia para mais uma aventura sem saber onde ia chegar, nem o que encontraria pelo caminho. Era como em Terceiro Milênio, sendo que no lugar de Evandro Carreira havia o livro do Conan Doyle. Alugamos o barco Noé V em Manaus e, sobrecarregados, navegamos cerca de 15 dias pelo Rio Negro até as proximidades de São Gabriel da Cachoeira, nosso ponto de partida rumo ao platô. Uma viagem dessas pode parecer monótona, mas na verdade é riquíssima em pequenos acontecimentos. Pára-se muito, visitam-se aldeias e ruínas, explora-se a paisagem, dá-se carona a alguém, cuida-se do motor do barco, etc. Não existe tédio numa viagem pela Amazônia. Mas foi a partir de São Gabriel da Cachoeira que a aventura começou de verdade. Tivemos que começar a nos desfazer de parte da nossa carga, com vistas aos novos trechos em barcos pequenos e longas caminhadas. O barco dos alemães não chegou a ser inflado – furaria na primeira pedra que encontrasse. Mas adaptamos o motor à balsa que nos levou, em percurso de dois dias, até Maturacá, último reduto de civilização antes do maciço da Neblina. A região era conflituada. Por ali rondavam guerrilheiros do M-19 colombiano; os garimpeiros estavam chegando; havia mineração e contrabando de cocaína. Maturacá era uma base militar de fronteira. Estávamos em área de segurança nacional e numa reserva ianomâmi, ou seja, tudo de mais proibido num cenário só. Para dar dois passos, era preciso um salvo-conduto do Exército ou da Igreja. Levávamos uma recomendação da missão salesiana para o Padre Carlos, figura lendária entre os índios. Ele simpatizou conosco e nos indicou três guias ianomâmis, que se mostrariam imprescindíveis dali para a frente. Abandonamos outras provisões em Maturacá e seguimos de canoa com os índios pelo Rio Cauaburi. A sensação de estar numa região completamente plana e, de repente, ver surgir, em brechas da densa floresta, o paredão imponente que é o maciço da Neblina – que, como o nome diz, está quase sempre envolto em névoa – é muito especial e permite entender as lendas que se criaram em torno dele. Num certo ponto do Cauaburi, tivemos que deixar o barco e tomar a trilha que leva ao platô. Ali enterramos o motor para usar na volta. E iniciamos a etapa mais desgastante da expedição. Aquilo parece uma planície, mas na realidade é um sobe-e-desce constante em meio a charcos e mata fechada. Chovia invariavelmente três vezes por dia. Os índios iam na frente abrindo caminho, mas, muito baixinhos, apenas formavam uma espécie de túnel aquém da altura média dos expedicionários. Isso nos obrigava a caminhar curvados, sob o peso das mochilas. A umidade era terrível e permanente, porque as árvores gotejavam o tempo todo, mesmo quando havia sol acima delas. A roupa suada virava uma segunda pele. Os índios usavam de todas as suas habilidades. Caçavam e preparavam nossas refeições, escondiam víveres para a viagem de volta, identificavam em voz alta cada ruído da selva. Eles sabem ler a floresta como nós compreendemos os sinais de trânsito. Pareciam enxergar todo tipo de animal, enquanto nós não víamos nada. Não fossem eles, Serge Guitton talvez desaparecesse para sempre no dia em que ficou para trás e perdeu o contato conosco. Quando a tarde escurecia, já a partir das quatro horas, eles rapidamente montavam as barracas para a refeição principal e o descanso noturno. À falta de lenha seca, faziam fogueiras com pedaços de casas de cupim, que incandescem mesmo molhadas. Antes de dormir, geralmente tínhamos que responder a inúmeras perguntas sobre o modo de vida dos brancos. Como estávamos em plena Torre de Babel, usávamos um idioma misto muito engraçado, mas afinal eficiente. À medida que avançávamos, íamos nos desfazendo de tudo o que julgávamos supérfluo. Mas, estranhamente, as coisas reapareciam à noite, no acampamento. Não era nenhuma magia: o índio que seguia na retaguarda do grupo recolhia cada objeto, para ele precioso. Num dado momento, o último conforto de civilização que me restava era a escova de dentes, que um dos índios me pediu insistentemente. Expliquei-lhe que escovas eram de uso pessoal, ou seja, cada um tinha a sua. “Mas eu não tenho a minha”, argumentou ele, com lógica implacável. Foram seis dias de penosa caminhada. O cansaço, os calos no corpo, a umidade e a comida selvagem abateram a todos, mas principalmente a Ortwin, o chefe do grupo. Num certo ponto, ele não agüentou prosseguir. Foi deixado numa barraca em companhia de um índio, à espera do nosso retorno. A subida do platô tornava-se cada vez mais íngreme. No chão de uma clareira encontramos botas e restos de roupas militares. Segundo nossos guias, uma expedição militar havia desistido naquele lugar. Eles só sabiam de certa fotógrafa estrangeira que havia passado dali a pé. Os demais, somente de helicóptero. Sentimo-nos muito fortes ao transpor aquela clareira. Durante mais de 24 horas, nosso único caminho possível foi pelo leito de um estreito rio encachoeirado, os pés encharcados na água gelada e cheios de bolhas. Os aparelhos foram pifando um a um. Por último, só conseguíamos usar as Vídeo-8, que colocávamos para secar em cada réstia de sol que encontrávamos. Mas chegou o momento em que também elas emperraram com a umidade. Para mim, já não fazia sentido continuar sem a possibilidade do registro. Acabaríamos como Challenger, que, de volta do seu mundo perdido, deixou escapar o pterodáctilo, única prova de sua ida ao platô do mezozóico. Ortwin, por sua vez, já tinha ficado para trás. Os índios haviam nos alertado de que não escalariam todo o platô, pois penetrariam em área proibida por suas divindades. No meu entender, o que eles mais temiam era o frio, que se intensificava à medida que subíamos. Os índios brasileiros detestam passar frio. Quando isso acontece, eles largam tudo e se plantam em torno de uma fogueira. Uma das últimas coisas que consegui gravar foi uma conversa com eles, em que eu perguntava: “O que é que tem daqui pra lá?”. E eles respondiam: “Nada, só o frio. O frio...” Foi então que demos meia-volta e começamos a descer. O caminho de regresso foi quase tão penoso quanto o de ida. Reencontramos Ortwin refestelado numa rede enquanto o índio pescava para o próximo almoço. Durante quase uma semana, não pudera trocar uma palavra com o seu “Sexta-feira”, mas parecia feliz, em plena harmonia com a natureza. Era muita pretensão nossa achar que chegaríamos à parte superior do platô, numa altitude de quase 3 mil metros. Daí que não me senti frustrado. Vivemos nosso desafio até onde foi possível, já que todos estávamos suficientemente encaminhados na vida para não precisar bancar os loucos. A viagem foi muito enriquecedora como conhecimento da floresta. Nunca vou esquecer o índio que, numa aldeia do caminho, contou-me que assistira ao filme do “menino do gelo” na TV. De alguma maneira, tínhamos criado um elo entre a Amazônia e a Antártica. Nunca houve um filme dessa aventura. Mas o material que gravamos viria a ser utilizado em alguns trabalhos que fiz com Gernot Schley e enriqueceu um arquivo de imagens da Amazônia que ajudei a montar na produtora Skylight. Capítulo VIII Mato Grosso: memórias de Lévi-Strauss Minha relação com o livro Tristes Trópicos, de Claude Lévi-Strauss, levou cinco anos para se transformar em filme. Em 1985, enquanto montava Igreja dos Oprimidos em Paris, cometi a imprudência de fazer a proposta diretamente a Lévi-Strauss por telefone, e ainda por cima no meu péssimo francês. Eu queria voltar às aldeias indígenas do Mato Grosso que ele visitou em 1935 e 1938 para verificar o seu estado atual, assim como a memória que ainda houvesse dos encontros, a partir das suas fotografias e dos filmes que sua mulher, Dina, rodou na ocasião. Lévi-Strauss não foi especialmente gentil, mas pediu que lhe mandasse uma proposta por escrito. Foi o que fiz. Poucos dias depois, recebi uma resposta amável, autorizando a referência ao seu livro e o uso dos filmes. Mais que isso, ele se dizia “vivamente interessado em rever, filmadas por você no seu estado atual, as regiões que percorri há meio século”. Com essa carta, iniciei as tentativas de levantar uma produção. Em 1988, quis envolver no projeto o CPCE (Centro de Produção Cultural e Educativa) da Universidade de Brasília, onde trabalhava como professor convidado. Nessa época, Cristovam Buarque, como reitor, estava reintegrando os demitidos de 1965. Geraldo Moraes dirigia o CPCE e David Pennington também estava lá. Juntos, fizemos um vídeo para o Cristovam, colocando em imagens o seu conceito de “Universidade Quadrangular”, que ficou sendo o título do vídeo. Antes disso, eu lecionava na Unicamp, tendo muita dificuldade em conciliar as aulas e as muitas viagens de trabalho. A produção de À Propos de Tristes Tropiques só se viabilizaria em 1989, através da empresa Les Films du Village, com participação do canal La Sept e do Instituto Nacional do Audiovisual francês. O antropólogo Patrick Menget, da Universidade de Nanterre, um velho amigo e ex-doutorando de Lévi-Strauss, entrou como uma espécie de roteirista, embora nosso roteiro de verdade fosse o texto de Tristes Trópicos. Com o livro e as fotos na mão, fizemos uma primeira viagem em 1989 para localizar as aldeias e eventuais resquícios de memória. Encontramos, de fato, três pessoas que se reconheceram ou reconheceram parentes nas fotos de Lévi-Strauss. Dessa vez, já fiz imagens com minha inseparável V-8, que seriam mostradas aos índios no ano seguinte. Em julho de 1990, depois de extrairmos a fórceps uma autorização da FUNAI, partimos para a filmagem principal. O cinegrafista francês Alain Salomon filmou em 16 mm, eu gravei com a V-8 e David Pennington fez o som. Levamos os filmes da Dina Lévi-Strauss telecinados para mostrar aos índios. Lévi-Strauss era reticente ao se referir a esse material, ressaltando seu caráter de registro amador e falta de intenção científica. Para ele, o próprio Tristes Trópicos seria um interlúdio de férias dentro do seu trabalho científico. Mas os índios tinham notícia daquela visita. Desde então, só Darcy Ribeiro, dez anos mais tarde, empreendera outra expedição científica de igual porte. Equipes de filmagem, no entanto, estavam longe de ser novidade. Quando estávamos numa aldeia Bororo, David teve alguma dificuldade com o DAT (gravador digital de áudio), que usávamos pela primeira vez, à falta do manual de instruções. Vendo aquilo, um índio entrou na sua maloca e voltou com um aparelho idêntico, na caixa, com manual e tudo. Estávamos salvos. Uma equipe européia tinha passado por ali, semanas antes, e deixado o DAT de presente para os bororo. Estivemos em aldeias Bororo e Kadiwéu, mas não conseguimos chegar aos nhambiquaras. A exibição dos vídeos e do equipamento era sempre uma festa. As cenas de reconhecimento se repetiram diante das nossas câmeras. Filmamos um longo e fascinante ritual funerário bororo; pedimos aos kadiwéus – como tinha feito Lévi-Strauss – que pintassem no papel as insígnias de clã que antigamente pintavam no rosto. Para obtermos essa colaboração sem que os índios se sentissem explorados, foi fundamental a participação do Patrick Menget, com sua vasta experiência no Xingu. Além disso, através da FUNAI, negociamos previamente uma lista de presentes, como cobertores, que sempre levávamos no carro. E ainda tínhamos que pagar 100 dólares por qualquer tipo de concessão extraordinária. Tudo custava 100 dólares, como num refrão. Uma noite saímos para filmar o que seria uma festa dos bororo. Acompanhamos os índios numa picada, ao fim da qual eles simplesmente ligaram o rádio de um aparelho de som portátil. Aquilo era a festa. Por sorte, as pilhas deles logo acabaram e cedemos as do nosso gravador – ao custo simbólico de 100 dólares. Ficou acertado que filmaríamos de graça no dia seguinte... A locomoção entre as aldeias era às vezes muito difícil. Enfiávamos nossa Rural Willis em riachos e atoleiros, verificando que as dificuldades de acesso a certas tribos ainda eram as mesmas que Lévi-Strauss descreveu nos anos 1930. O carro servia também para iluminar as filmagens no interior das malocas, a exemplo do que eu havia feito com o caminhão em Iracema. A aldeia Kejara, dos bororo, evidenciava claramente as transformações que estávamos querendo mostrar. A descrição, em Tristes Trópicos, de sua complexa estrutura social, baseada na complementaridade de duas metades, está na base do estruturalismo de Lévi-Strauss. Desde então, as missões religiosas haviam desmontado a organização circular das ocas e introduzido uma aldeia quadrada, a fim de obrigá-los a aceitarem o rito católico. Isso quebrou também a estrutura familiar original. Hoje a Igreja reconhece esse erro, mas a aldeia ficou assim: quadrada, com casas de alvenaria e até um cemitério cristão, onde filmamos um ritual eclético pelo espírito de um padre alemão que morreu lutando pela demarcação de terras. Quando lá estivemos, os bororo já tinham refeito uma réplica da antiga aldeia redonda, a Aldeia das Garças, com o objetivo de reviver sua cultura. Ao fim das filmagens, fiz uma seleção do material bruto e mostrei a Lévi-Strauss no Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, em Paris. Alguns dias depois, fizemos uma entrevista com ele, conduzida pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Havia uma reverência muito grande ao mestre por parte dos franceses. Para mim, Lévi-Strauss era uma pessoa simpaticíssima, de trato fácil e muito organizada, que ficava inteiramente ao nosso dispor pelo tempo pré-determinado. Seu interesse pelo Brasil transparecia a cada palavra. A própria Manuela o entrevistara em 1985, quando ele integrou a comitiva de François Mitterrand ao Brasil. Naquela breve estada, Lévi-Strauss tentara em vão revisitar as tribos, mas o avião não teve autonomia para chegar até lá. A entrevista foi feita numa fazenda de Rondonópolis (MT), em VHS muito precário. Mesmo assim, decidimos incluir alguns trechos na edição do nosso filme. Teríamos, então, três camadas de tempo superpostas: 1935-38, 1985 e 1990. Filmei uma série de peças do arquivo pessoal de Lévi-Strauss, como fotos e cadernos de desenhos dos índios. Outros materiais, como os grafismos dos nhambiquaras, foram reproduzidos do arquivo de Darcy Ribeiro. Fui muito cerceado no processo de edição, feito na França. O produtor não me permitiu usar uma trilha musical do africano Manu Dibango a partir dos sons indígenas que tínhamos gravado. Ele queria o filme mais seco, estritamente antropológico, enquanto eu pretendia enfatizar o teor de aventura. Tampouco contei com a prometida colaboração de Patrick Menget no roteiro de edição. Por fim, o trabalho se estendeu além do tempo que eu poderia permanecer em Paris e foi finalizado, à minha revelia, por Jean-Pierre Beaurenaut, redator da produtora, que assina o filme junto comigo e Menget. À Propos de Tristes Tropiques cumpriu bem o seu papel no meio etnográfico. Frisou a importância do Brasil na carreira de Lévi-Strauss e chamou atenção para a importância do material filmado pela Dina. Mas o seu tom austero impediu o salto para uma categoria mais ampla de documentário. Uma pena, pois Lévi-Strauss, que além de antropólogo é escritor, merecia um tratamento mais emotivo. Amazonas: a mãe das preguiças Muitos são os caminhos que podem levar a um filme. Se À Propos de Tristes Tropiques foi resultado de uma velha admiração e de um trabalhoso planejamento, um simples acaso me levou a fazer uma de minhas reportagens mais queridas, Heidi e as Preguiças. Estava com Gernot Schley no Amazonas documentando o caso de uma grande árvore que tombou e matou uma família de madeireiros. Ao entrevistar o cônsul honorário da Alemanha no seu escritório, em Manaus, vi entrar uma mulher muito magra e esbaforida, perguntando em alemão por sua correspondência. Disseram-me que era “uma maluca que mora com as preguiças na floresta”. Saí correndo atrás dela em direção ao porto e mal tive tempo de vê-la tomar uma barca regional que levava cerca de 20 preguiças num compartimento de tela. “Não tenho tempo agora”, dizia. “Tenho que voltar correndo para pegar folhas frescas de imbaúba porque minhas bichinhas estão com fome”. Partiu rapidamente e me deixou fisgado. Heidi Mosbacher vivia por 17 anos isolada na margem do Rio Cueiras, dedicada à pesquisa de suas preguiças. Não recebia ninguém, tinha fobia de gente. De quando em quando, ia a Manaus apanhar sua correspondência. Gernot não se interessou pelo tema, mas eu aproveitei outra viagem ao Amazonas para procurá-la, levado por um barqueiro que a conhecia. Como um carteiro intruso, levei sua correspondência de Manaus. Parei o barco a uns 100 metros de sua casa e chamei-a. Ela demorou várias horas para dar as caras. Aproximou-se lentamente, como um animal assustado. Falando em alemão, aos poucos consegui que me contasse sua história. Ela era uma pesquisadora de solos do Instituto Max-Planck, da Alemanha, quando esteve em Manaus, em 1973, e viu alguém vendendo um bebê-preguiça. Penalizada, comprou o bicho e nunca mais saiu de lá. Instalou-se numa casa de caboclos abandonada, de propriedade do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), e devotou seus dias a proteger as preguiças dos “canibais”, como chamava os humanos comedores de preguiças. Com o tempo, perdeu a bolsa e o contato com o instituto, e parecia ter só o pai como parente distante. Quase sem nenhum recurso, não duvido que passasse fome. Visitei-a seis ou sete vezes num período de quase dez anos, sempre levando as cartas e uma câmera. Filmei-a para o Globo Repórter e para a TV francesa. Ela tinha dois sonhos. Um deles era sair num barco pelas escolas ribeirinhas, mostrando as preguiças para as crianças e instruindo-as a não comê-las. Mas quando, após a exibição da minha reportagem no Globo Repórter, uma TV japonesa ofereceu-lhe um barco para fazer o trabalho, ela fugiu apavorada para o mato. O outro sonho era voltar para a Alemanha com suas preguiças para dar continuidade à pesquisa. Acostumava os filhotes a se alimentar de batata, cenoura, maçã e leite na mamadeira, itens que estariam disponíveis na Alemanha. Mas o IBAMA lhe negara sucessivos pedidos de autorização para tirar os animais do país, por falta do aval de alguma instituição. Ela, então, se tornara prisioneira das preguiças numa casa toda guarnecida com telas. Se as deixasse, temia que morressem. Sempre pedia que a fotografasse com sua mascote predileta, Monalisa. Perguntada se as preguiças a reconheciam em seu desvelo maternal, ela simplesmente baixava os olhos e não respondia. Heidi conhecia profundamente os hábitos das preguiças, mas não fazia qualquer registro de suas observações. Costumava dizer que estava escrevendo um grande trabalho – e apontava para uma mala guardada no alpendre. Quando pedi que me mostrasse, alegou que no momento não havia nada para mostrar, pois as formigas invadiam sua casa uma vez por ano e comiam todos os papéis, obrigando-a a começar tudo de novo. Em 2000, voltei mais uma vez ao refúgio de Heidi para preparar um trabalho com Helena Solberg para a National Geographic. Foi quando soube que ela não morava mais ali. Tinha sido embarcada para a Alemanha muito doente, onde morrera de câncer no estômago. Ao partir, ela sabia que não mais voltaria, pois havia libertado todas as suas preguiças. Ártico: sushi agreste O Globo Repórter começava a se deter sobre temas ecológicos em 1991, quando Heidi e as Preguiças foi ao ar. A matéria foi um dos segmentos de um programa inteiro sobre pessoas que desenvolviam relações especiais com animais na Amazônia. Uma delas foi a suíça Ilze Walker, zoóloga que tinha um jibóia como bicho de estimação em sua casa, na periferia de Manaus. Outro foi o holandês Marc Van Roosmalen e sua mulher, que administravam um santuário de macacos numa reserva do IBAMA chamada Parque de Noé. A eles recorri muitas vezes para fazer imagens de animais em seu habitat natural. Marc descobriu uma espécie desconhecida de macacos no Acre. Mais tarde, seria expulso do Brasil por suposto envio ilegal de animais para o exterior. O programa foi editado nos estúdios da Globo por Raquel Couto, com quem eu começava a fazer uma série de trabalhos. Alguns deles seriam produzidos em parceria com Bruno Stroppiana, da Skylight. Também para o Globo Repórter, filmei a caça à baleia branca na Baía de Hudson, norte do Canadá. A oportunidade surgiu através da bióloga italiana Livia Monami, que conheci em Manaus quando ela fazia uma pesquisa sobre o boto cor-de-rosa. Livia se preparava para pesquisar a rara baleia branca do Ártico e acenava com o interesse de uma TV italiana por um documentário. Com a concordância de Jorge Pontual na Globo, organizei a viagem juntamente com Sylvestre Campe. Sylvestre, eu e o repórter Francisco José seguimos de Nova York para a remota localidade de Ivujivik, trocando várias vezes de avião, de aldeia em aldeia. Ivujivik é um lugar-nenhum no meio da neve, onde cerca de 300 inuits vivem em construções que mais parecem contêineres. Uma delas era o hotel, caríssimo por sinal. Enquanto esperávamos que Livia retornasse de uma caçada, Sylvestre fritava e comia qualquer pata de urso que encontrasse, mas eu e Francisco José nos contentávamos com os macarrões que levamos. Quando Livia chegou, saímos num barco horroroso, sem radar nem aquecimento, à procura das belugas ou baleias brancas. Ficamos por um longo tempo perdidos no nevoeiro. Os esquimós tinham autorização para caçar um certo número de baleias sem causar ameaça à espécie. Nessa saída, nenhum exemplar apareceu no horizonte. Eles aproveitavam, então, para caçar morsas, um tipo de foca com dentes de sabre. O que presenciamos foi um morticínio selvagem. Eles dão tiros e lançam arpões em tudo o que vêem, provocando um banho de sangue. As informações sobre as baleias eram as mais desencontradas. Finalmente, correu a notícia de que estavam ao largo de outra aldeia, a 800 km de distância. Pegamos um avião para o tal lugar, habitado por esquimós mais primitivos. Ali então nos deparamos com as famosas belugas, caçadas da mesma maneira bárbara, sem nenhum critério ou controle. Os nativos cortavam e comiam pedaços da baleia ainda sangrando, assim que conseguiam atá-la ao barco. Ao chegarem à aldeia, faziam a distribuição festiva dos pedaços entre as famílias. Para filmar uma refeição numa tenda de caça, por cortesia tivemos que partilhar a comida crua e sanguinolenta, uma espécie de sushi agreste. Era de revoltar o estômago. Em matéria de dieta selvagem, só não foi pior do que o cauim, a bebida ritual dos índios brasileiros, feita de mandioca e fermentada com saliva. Numa roda de cauinagem, a cuia passa por todos, que mascam e cospem de volta. Você simplesmente não pode recusar. Histórias de selva e cidade Não fosse a insistência de Hector Babenco em filmar no Brasil, a ação de Brincando nos Campos do Senhor teria sido rodada no Panamá, que o produtor americano Saul Zaentz considerava bem mais conveniente. Babenco me chamou para fazer uma prospecção de locações na Amazônia. A fim de convencer Zaentz, ele queria que descobríssemos lugares espetaculares que tivessem a ver com a história de Peter Matthiessen. Uma das locações teria que ser uma pista de pouso no meio de floresta alta, dessas que dão margem à formação de uma pequena aldeia, como se fosse a rua principal. Saí em campo com David Pennington. Fizemos vôos de arrepiar, por horas e horas acima de florestas alagadas, até localizarmos diversas opções interessantes. A melhor delas ficava próxima à fronteira da Venezuela. Antes de pousar em Nhamundá, o avião devia sobrevoar a pista várias vezes até que as mulheres recolhessem crianças e cachorros, os homens retirassem os cavalos, etc. Quando aterrissamos com Babenco, Zaentz e o roteirista Jean-Claude Carrière, pedimos ao piloto que parasse justamente à porta de um determinado bar. Zaentz desembarcou com sua barba e bigodes brancos, densos, sendo logo cercado pela criançada, que o chamava de Papai Noel. A estada de Zaentz foi muito divertida. Sua mala não chegou a Manaus junto com o vôo. Com alguma dificuldade, conseguimos comprar uma bermuda e uma camisa para o seu talhe corpulento. Dali o levamos para o Hotel Ariaú, às margens do Rio Negro, onde a recepção dos hóspedes é feita por macacos, antas, quatis, araras, etc. Ao ligar para sua secretária nos EUA, ele teve que disputar o fone com um macaco brincalhão. As locações eram ótimas, sem dúvida, mas a excitação daquela visita deve ter ajudado a definir o Brasil como cenário do filme. Experiências bem distintas foram os documentários Surfista de Trem e Flor do Amanhã, que realizei simultaneamente em 1991, no Rio de Janeiro, em co-produção com o ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião). Ambos foram produzidos e editados por Raquel Couto. Flor do Amanhã retratava a escola de samba infantil então recém-criada pelo carnavalesco Joãosinho Trinta. Infelizmente, não conseguimos comercializar esse vídeo. Já Surfista de Trem foi feito especificamente para o programa Les Allumés, do Canal Plus, e teve boa repercussão na França. Centrei o documentário num camelô que consertava relógios na Praça Mauá e fazia o seu trajeto diário equilibrando-se no teto do trem. Trabalhamos de maneira semi-clandestina, já que a prática era ilegal, e em permanente crise de consciência, dado o perigo do esporte. Não fui radical a ponto de subir no vagão para filmar o personagem. Preferi entregar uma câmera para que ele e um colega filmassem os respectivos malabarismos em alta velocidade. Por ocasião da Rio ECO 92, tentei em vão realizar uma série de vídeos de educação ambiental para crianças. Preparei um projeto com a socióloga paulista Kazue Matsushima, dona de uma visão holística do assunto. Enviei-o ao Fundo Nacional do Meio Ambiente e fiquei à espera de uma resposta. Mais de um ano depois, um funcionário da base de reciclagem de lixo do ISER, em Niterói, encontrou uma correspondência fechada e endereçada a mim. Era a resposta positiva do Fundo, que fora parar no lixo por descuido de uma secretária. A ecologia tinha trabalhado a seu próprio favor. Consegui ressuscitar a concessão da verba e finalmente pude realizar o projeto em 1995. A série Ecovídeo, muito difundida pelo TV-Escola, é composta de dez miniprogramas feitos com e para as crianças da Amazônia, em colaboração com professores do campus avançado da Universidade Federal do Pará, em Abaetetuba. Cada programa parte de uma situação de aula na selva, ministrada por uma professora de escola primária local. A cultura do açaí foi um dos motes que aproveitamos para tratar didaticamente de toda a questão ambiental. As gravações foram feitas em Vídeo-8, em sua maioria por Sylvestre Campe, com edição de Raquel Couto e sob minha supervisão geral. Capítulo XIX O real é a minha ficção Entrei no cinema pela câmera e através dela desenvolvo todo o meu processo de criação. Há diretores que trabalham a partir de textos, pesquisas, etc. Não é o meu caso. A câmera é minha caneta e meu instrumento de investigação. Passei da fotografia fixa para a cinegrafia, sempre operando a câmera, descobrindo e construindo as coisas através das lentes. Mesmo quando trabalho para outros diretores, sou um cinegrafista autoral, que não se prende a tripés e orientações rígidas, mas vai em frente guiado por uma espécie de instinto. A passagem para a direção, em Caminhos de Valderez e Iracema, foi uma decorrência natural dessa postura independente, e não uma decisão estudada e planejada. O plano-seqüência é uma forma de dirigir com a câmera. Em vez de interromper e mudar de lugar para fazer um corte, eu deixo a cena correr – ou melhor, vou empurrando a cena, acuando os personagens com a minha câmera. Daí a preferência pela câmera na mão. Tripés me angustiam. Eliminam o prazer de criar e interferir diretamente na ação. Com a câmera num tripé, qual é a graça de se ficar atrás dela? Pelos mesmos motivos, nunca trabalhei com foquista. Isso prejudicaria minha liberdade de movimentos. Penso sempre na montagem quando estou filmando. Não que esteja considerando o conjunto do filme, o que é geralmente impossível em documentários. Mas fico atento à continuidade e às possibilidades de edição do material. Da mesma forma, sempre participo da montagem dos meus filmes, quando tudo é recriado. É como uma vaca que rumina: tudo será mastigado de novo, recomeçando do zero. Aprendi com Affonso Beato que onde há luz, há sombra. Não tenho a paranóia das sombras indesejáveis do nariz, do olho, do chapéu. Assumo as sombras naturalmente como a contraparte da luz. Evito jogar refletores no rosto dos entrevistados para anular as sombras, já que isso causa desconforto e retira a espontaneidade. Prefiro usar a luz ambiente, e quando essa é insuficiente para dar leitura, procuro ampliá-la em vez de acrescentar outros pontos. Troco lâmpadas por outras mais fortes, reforço entradas de luz natural de janelas etc. Dou mais valor à imagem interessante que à imagem bonita. Já em Iracema, vi como é difícil resistir à tentação da beleza quando se está filmando num lugar bonito ou exótico como a Amazônia. Mas eu simplesmente esqueço a estética do ambiente e procuro focar na clareza da idéia que quero passar. O foco na estética engessa a imagem e pode distrair a atenção do espectador daquilo que se quer priorizar. Ademais, se há beleza, ela vai passar mesmo que não haja a intenção estetizante. Quando o jornal francês Libération me consultou numa célebre enquete entre cineastas, respondi: “Faço cinema porque adoro ver. O real é a minha ficção”. Acho que isso está traduzido nos filmes que dirigi e fotografei, onde sempre tratei de ficcionalizar o real. Eles partem de coisas plausíveis, que se passaram de fato diante dos meus olhos, mas que eu retrabalhei nos limites da ficção. Por sua vez, a ficção recebe um tratamento documental. Em Gitirana e Os Mucker, filmes construídos e inteiramente encenados, minha função foi documentar o que estava sendo representado. A encenação não se fez “para” a câmera, segundo um código de construção de espetáculo, mas diante e ao redor de uma câmera interessada em registrar aquilo em tempo real. Não tenho paciência para passar duas horas preparando o close do sorriso de uma personagem. Essa atitude documentária na ficção se estende, naturalmente, ao domínio do som e impõe que os atores se expressem da maneira mais autêntica possível. O som direto é indissociável desse processo. Porque não se pode ligar uma imagem de documentário a um som construído, ou dublado. Se não houver essa coerência entre som e imagem, a veracidade sai de cena. Como estou sempre atrás da câmera, não tenho controle da situação geral à minha volta. Por isso, com freqüência recorro a parceiros que organizem as coisas para a minha câmera. Hermano Penna, Wolf Gauer, Orlando Senna, David Pennington, Helena Salem e tantos outros acabaram sendo tão responsáveis quanto eu pelos filmes em que trabalhamos juntos. A formação de parcerias é fruto também de um certo instinto gregário que me levou a trocar a solidão da fotografia fixa pelas equipes de cinema. Equipes sempre muito pequenas, de três a cinco pessoas, mas atuando em perfeito entendimento. Nunca me filiei a grupos nem me identifiquei com linhas ou escolas. No cinema brasileiro, sinto-me herdeiro de Aruanda, 60, de Linduarte Noronha, Deus e o Diabo na Terra do Sol, 64, de Glauber Rocha, e Vidas Secas, 63, de Nelson Pereira dos Santos, alguns dos filmes que me marcaram profundamente. No registro genérico do documentário, reconheço semelhanças com o trabalho de João Batista de Andrade, Eduardo Coutinho e as produções de Thomaz Farkas, por exemplo, mas sempre em chaves muito distintas. Embora trabalhe muito para televisões estrangeiras, sinto-me um cineasta brasileiro, mas não me vejo como parte de uma “estética” ou “proposta”. A construção dos meus filmes é estritamente individual. Não virei as costas para o Cinema Novo, como disse a crítica americana Anne Head a propósito de Iracema. Nem tampouco o olhei de frente. Naquela época, eu admirava profundamente o Cinema Novo, apenas queria tomar outra vereda, sem contudo fazer do Cinema Novo página virada. Muitos críticos estrangeiros têm essa maneira de ver o Brasil sempre em função do Cinema Novo. Há quem aponte similitudes entre o meu cinema e o do alemão Werner Herzog. Eu conheço seus filmes e gosto da sua maneira simples e despojada de filmar. Mas a abordagem que ele faz do cinema, no fundo, é muito diferente da minha. Herzog sempre escolhe uma coisa impossível, seja uma montanha a ultrapassar ou uma floresta a transpor. Eu, ao contrário, não faço cinema para vencer um desafio nem para provar nada a ninguém. Meus personagens não são heróis nem semideuses. São pessoas comuns, em última análise. Tião Brasil Grande nada tem a ver com Fitzcarraldo. Mesmo a Jacobina, com seu perfil messiânico, é retratada em tom menor, enfatizando seu lado comum. Amo o movimento. Por isso a satisfação é plena quando consigo juntar viagem e cinema. Diante da oportunidade de um trabalho remoto, vou correndo com o maior prazer. De preferência, na Amazônia. Quanto mais longe, incômodo e precário, melhor. Não temo o desconforto, pois sempre se pode tornar o seu cantinho confortável. O calor, as condições insalubres e mesmo eventuais perigos não servem para me inibir. Todas as minhas relações amorosas e familiares levaram em consideração, desde o início, o fator viagem. Mesmo quando se está filmando na sua própria cidade, o trabalho é sempre na rua e a ausência é a mesma. Em compensação, dada a irregularidade da profissão, quando não se está filmando a presença é muito constante. Apesar das separações, sempre estive próximo das minhas três filhas: Laís, filha de Lena, e Alice e Anna, filhas da Christina. Não nego que o meu ofício possa ter exercido alguma influência sobre a opção da Laís pelo cinema e da Alice, que faz cenografia e desenho industrial. Anna, por sua vez, optou pelo ramo da moda. Laís esteve comigo no set de Os Mucker e na viagem à Antártica, brincava no meu estúdio paulista, mas, ao contrário do que se possa pensar, nunca foi minha aprendiz. Aliás, conversamos pouco sobre assuntos profissionais. Não freqüento muito o trabalho dela, embora acompanhe e fique feliz a cada etapa de sua evolução e me sinta orgulhoso quando se referem a mim como “o pai da Laís Bodanzky”. Desde garota, por conta própria, ela começou a fazer vídeos de acampamentos, batizados e casamentos. Foi câmera antes de se tornar diretora. Hoje está estruturadíssima em São Paulo, com o marido e parceiro Luiz Bolognesi e suas duas filhinhas. Primeiras aventuras virtuais Não tenho uma relação fetichista com a tecnologia. Se já possuí estúdio e equipamento profissional próprios, fui limpando tudo através do tempo e contento-me agora (2005) com uma pequena câmera digital, que é meu caderno de apontamentos. Prefiro, para cada trabalho, alugar os recursos mais modernos do momento e mais adequados ao que vou fazer. Da mesma forma, não quero depender de cada novo software para editar pessoalmente os meus filmes. Não opero edição eletrônica, mas sei o que quero. Quem vem da escola da moviola, sabe muito bem o que quer de um Avid. Ao lado de um editor bem informado, que vai me sugerir coisas a partir dos novos programas, o horizonte é infinito. Dirigir um filme é também a arte de montar equipes e parcerias, cada qual na sua especialidade. Na esfera pessoal, faço uso apenas básico dos computadores e recorro à internet somente para me comunicar e fazer pesquisas. Mas isso não significa que compreenda menos as potencialidades das redes virtuais e das mídias digitais. Já as compreendia em 1995, quando me arrisquei pela primeira vez a dar o salto para as chamadas novas mídias. A primeira imagem na internet a gente nunca esquece. Comigo aconteceu no escritório da Unesco em Brasília. Até então, a rede veiculava basicamente textos. Eu fiquei fascinado com a nova possibilidade e propus fazer um site com fotos e textos sobre os sítios históricos brasileiros tombados pela Unesco. De certa forma, fomos pioneiros nessa área. No mesmo período, surgiu a oportunidade de criar o CD-ROM Cinema Brasileiro Anos 60 para a Riofilme, a partir de um longo texto do então presidente da empresa, o crítico José Carlos Avellar. Curiosamente, eu ainda não tinha visto um CD-ROM funcionar, mas vinha lendo muito sobre o assunto e sentia-me apto a experimentar. Este seria um CD relativamente convencional, com um hipertexto que se abria para uma série de “fichas” de diretores, filmes etc, que incluíam fotos e trechos de filmes. Antes mesmo de concluirmos o disco da Riofilme, recebi a encomenda, pelo Ministério do Meio Ambiente, de um vídeo sobre a Amazônia para presentear os participantes de uma conferência do G-7 na Alemanha. Minha contraproposta foi fazer um CD-ROM, que me parecia mais apropriado ao caráter enciclopédico da obra, abrangendo textos, imagens fixas, sons e imagens em movimento. Nascia o CD-ROM Amazônia – Um Fantástico Universo. Aspásia Camargo, então no Ministério da Cultura, e Aldenir Chaves Paraguassú, da Secretaria da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente, ajudaram a tornar esse projeto realidade. Para viabilizá-lo financeiramente, contei com a participação do Projeto POEMA – Pobreza e Meio Ambiente – da Universidade Federal do Pará, sobre o qual já tinha realizado um documentário com Gernot Schley. Tive um bom apoio do Museu Paraense Emilio Goeldi e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Diversos pesquisadores e cientistas colaboraram na reunião e seleção de conteúdos para o disco. Ciclópica, a atividade de produzir um site e dois CD-ROMs simultaneamente ocupou a equipe durante um ano e meio. Todos nos aventurávamos, inclusive as produtoras Raquel Couto e Juliana de Carvalho, com quem eu dividia escritório e produzia meus vídeos. Usamos muito material de meus arquivos e do fotógrafo Luiz Cláudio Marigo. O músico João Paulo Mendonça compôs uma trilha sonora original que incorporava sonoridades da floresta e particularizava cada setor do CD. A jornalista Regina Mamede, minha terceira mulher, fez uma série de entrevistas e, a partir do material coletado junto aos cientistas, produziu o texto final – que deveria ser claro também para o leitor leigo e as crianças. Nossa intenção era que o disco viesse a ser reaproveitado pelas escolas. Concebi um conceito de navegação que explorava a magia e o envolvimento da floresta. O usuário devia “passear” com o mouse por uma floresta virtual, que ia chamando a atenção para seus segredos – um bicho que se move, um som que se manifesta, etc. Ao clicar, ele descobria ora uma planta, ora um pescador, ora um projeto. Dali era conduzido para outros setores, sempre de maneira lúdica. Conhecia os ecossistemas da Amazônia, deslocava-se através de mapas, encontrava uma espécie de caderno de viajante, acessava fotos, vídeos e textos. Tudo estava interconectado de modo inteligente, numa época em que a maioria dos CD-ROMs ainda não passava de meros arquivos com entradas múltiplas. Paralelamente, todo o conteúdo podia ser esmiuçado através de índices mais convencionais. Acho muito interessante construir uma obra cuja forma final será determinada pelo usuário. A narrativa, antes em poder absoluto dos realizadores, passava a contar com o fator interatividade. Era muito diferente de fazer um filme, mas estou certo de que a nossa experiência com o cinema levou a um resultado mais dinâmico e eficiente na relação com as novas mídias. Com o interesse da Unesco e das várias instituições envolvidas, a tiragem do CD-ROM Amazônia acabou sendo superior a 25 mil exemplares. Antes mesmo de iniciarmos a distribuição comercial, já havia camelô oferecendo a versão pirata na Cinelândia. Na época, fiz um julgamento ambivalente: “É ruim porque estamos sendo roubados, mas é bom porque denota interesse”. De fato, as crianças adoraram e o disco nunca deixou de circular. O lançamento se deu, como previsto, no âmbito da Conferência do G-7 e, logo depois, numa feira no saguão do World Trade Center, em Nova York. Um grupo de índios brasileiros esteve lá e protagonizou cenas impagáveis: disputavam os computadores, palmo a palmo, com as crianças americanas para “ver” a Amazônia. Navegar é preciso O CD-ROM Amazônia foi um produto seminal nessa minha fase, digamos, multimídia. A partir dele, sucederam-se diversos trabalhos na área. A colaboração com o governo do Amapá levou ao projeto de um site e um CD-ROM para o Estado, feitos em 1997. Naquele mesmo ano, fomos contratados para fazer o primeiro site unificado do IBAMA, concebido como um instrumento de utilidade pública e de divulgação científica. Houve ainda o site e CD-ROM do Parque Nacional de Itatiaia, o CD-ROM do parque gráfico de O Globo (peça mais técnica e institucional, coordenada por Geraldo Sarno) e o CD-ROM Rio de Janeiro 500 Anos, patrocinado pela prefeitura, que abordou a iconografia carioca do século 16 com imagens nunca antes divulgadas. Infelizmente, a idéia de fazer uma série de discos com os séculos subseqüentes perdeu-se na poeira da História. O portal Amazon Life, uma espécie de enciclopédia on line, foi um desdobramento natural do CD-ROM Amazônia. O conteúdo do disco foi retrabalhado, ampliado e colocado no ar em 1998. Houve um sem-número de consultas, principalmente de estudantes. As perguntas eram respondidas por um pool de pesquisadores, passando esse material a enriquecer progressivamente o site. Tínhamos grandes planos: abrir espaço para a contribuição de viajantes, fazer videoconferências, um canal de televisão em banda larga e sites similares sobre outros ecossistemas brasileiros. Mas o boom dos investimentos na internet estava com seus dias contados. Por volta de 2001, o patrocínio do portal passou para uma indústria de couro vegetal do Acre. O conteúdo parou de crescer e o marketing do couro vegetal assumiu o primeiro plano. Com isso, desliguei-me do projeto. Parte das minhas intenções com o Amazon Life foi transposta para o Projeto Navegar Amazônia, que continua em pauta em 2005. Era um fim de tarde na beira do Lago Curiaú, nos arredores de Macapá, quando Regina Mamede, José Roberto Lacerda Ramos, presidente do Centro de Processamento de Dados do Amapá, e eu vimos um barquinho regional e cogitamos equipar um daqueles para levar a internet às escolas ribeirinhas do Estado. Até então, não havia nenhum provedor no Amapá. A idéia foi prontamente aceita pelo governador e um barco regional foi adaptado para navegar nos dois sentidos da palavra. O segundo andar ganhou um compartimento fechado e refrigerado com webcams, uma câmera digital, diversos periféricos e oito computadores em rede, ligados à internet pelo sistema Nera de telefonia via satélite. O parecer inicial da Embratel, de que o sistema não funcionaria com o barco em movimento, foi contrariado pela realidade e, em fins de 2000, fizemos a viagem inaugural do Navegar. Imagens do percurso foram transmitidas em tempo real para diversas partes do mundo. O governo do Amapá tinha uma ação muito interessante nas pequenas vilas de pescadores do Arquipélago do Bailique, situado a 12 horas de barco de Macapá, perto da fronteira com a Guiana Francesa. Ali fora criada uma escola-modelo chamada Escola Bosque, diante da qual montamos a base das atividades do Navegar. A tecnologia mais avançada era posta à disposição de uma comunidade antiga e tradicional, dona de um folclore e um saber locais muito ricos. A criançada fazia a festa, entrando no barco e acessando a internet. Cinco minutos de aprendizado eram suficientes para familiarizar um garoto do Bailique com os recursos da grande rede. Naquele momento, o Navegar também dava suporte a atividades como justiça itinerante, assistência de saúde, turismo ecológico e até o mero transporte de pessoas entre o arquipélago e a capital do Estado. No entanto, precisávamos nos preparar para a mudança de governo e assim transformamos o projeto numa OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). Com a suspensão do financiamento do governo estadual, tivemos que reduzir os procedimentos no barco à espera de novos recursos. Em 2005, o MINC aprovou o projeto, financiando-o por três anos e transformando-o num pontão de cultura, encarregado de levar e transmitir conteúdos às populações ribeirinhas, com equipamento de tecnologia de ponta, como computadores de última geração. Mediante novas parcerias, queremos fazer do Navegar um canal de televisão móvel na Amazônia, habilitando-o a serviços de pesquisa, difusão da cultura local e acesso à informação planetária. A Amazônia é a segunda marca mundial depois da Coca-Cola – e o Brasil não tem sabido utilizá-la. Queremos com a TV Navegar Amazônia criar um novo conceito de desenvolvimento de conteúdos para a intercessão de mídias. Não é preciso ser um visionário para imaginar o barco como um ponto de produção documental à distância, gerando e transmitindo conteúdos amazônicos através da internet. Alunos de uma escola em Estocolmo, por exemplo, poderão acessar o portal, manusear um timão virtual e guiar o barco através desse ou daquele rio, entrevistar pessoas, etc. Não se trata de projeto megalômano a la Fitzcarraldo, mas de dar uso inteligente a uma tecnologia que já é banal. A atualização tecnológica é uma imposição do nosso tempo. Junto com ela, vem a necessidade de se adaptar às novas mídias. Meus velhos arquivos em película super-oito já não são mais acessíveis, a menos que os transfira para a mídia digital. O mesmo vai se dar em breve com o material feito em Vídeo-8. Tudo o que coloquei no CD-ROM Amazônia hoje está na internet. Na realidade, não me preocupo muito com isso porque os conteúdos também vão ficando até certo ponto superados. Mas, para os nostálgicos e os pesquisadores, há sempre uma forma de transferi-los para a mídia em voga. O que muda, na verdade, é a maneira de ver. O DVD me interessa muito, já que aceita todo tipo de material, possibilita uma fruição descontínua, não-linear e, além do consumo individual, tem qualidade para projeções coletivas. Assisto com satisfação à maneira como o audiovisual se democratiza na era digital. Com talento, é possível criar e viabilizar em escala doméstica coisas impensáveis dez anos atrás. A intercessão das mídias é o caminho natural das coisas. Um telefone já grava, fotografa, filma, edita, capta sinais de TV. Na medida em que a imagem é tratada digitalmente, daqui a pouco até uma geladeira vai poder virar ilha de edição. Aí surge um paradoxo interessante: a tecnologia, tão disponível e volátil, torna-se secundária. O que prevalece, então, é a necessidade de um bom conteúdo. O suporte acelera o trabalho e reduz os custos de produção, mas não melhora os conteúdos. Nesse aspecto, para passar um recado, contar uma história e emocionar as pessoas, a dificuldade permanece a mesma de sempre. Capítulo X Brasília: a independência como utopia No ano de 2000, usei um equipamento de TV de alta definição, vindo da Alemanha, para fazer o documentário Brasília, a Utopia Inacabada. A produção reunia empresas e canais de TV de quatro países, numa série intitulada Cidades Utópicas. Preparei um argumento centrado no sonho de Brasília – não somente o sonho do Niemeyer e do Lúcio Costa, mas uma linha que partia da profecia de Dom Bosco, que sonhou uma cidade naquele lugar, e vinha até os artistas atraídos por Brasília e o projeto original de ensino da UnB. Assim filmamos, usando como eixo a fala do professor Santiago Naud, que analisava Brasília pelo viés do mito sebastianista. Documentamos as diversas entidades místicas locais. Entrevistamos Yoko Ono, que estava inaugurando uma exposição na cidade e dizia-se inspirada pelo caráter utópico de Brasília. Montamos uma versão bastante poética, que enfatizava os temas do ecumenismo e da esperança. Isso foi exibido em videoconferência aos cinco co-produtores, e então começaram a chover palpites. Alegavam que o trabalho não despertava o desejo de conhecer a cidade. Argumentei que não me haviam pedido um vídeo de turismo. Queriam que o grafismo da “nave” do Lúcio Costa ficasse visível ao espectador. Cobraram informações um tanto maniqueístas sobre a realidade social de Brasília. Parti, então, para a filmagem de cenas adicionais: planos aéreos que sugerissem a “nave”, já então diluída com o crescimento urbano, e cenas de contraste social explícito. Na edição final, cortaram até a Yoko, na certa temendo misturar Beatles com Brasília. O fato é que minha proposta inicial foi desvirtuada. O documentário poético foi transformado em filme explicativo. Chamaram-me para dar a minha visão da capital, mas na verdade queriam a mera confirmação do que já achavam de Brasília. Fiquei pensando que, na estrutura televisiva atual, principalmente em co-produções complexas como essa, o realizador que esperar total autonomia estará sendo, ele sim, utópico. São Paulo: a realidade das ocupações Assim como aprecio viajar para extremos, gosto também de voltar a filmar nos lugares onde já vivi e trabalhei. Desde que saí de São Paulo, em 1979, já filmei diversas vezes na cidade com Gernot Schley. Mas a experiência vivida com Evaldo Mocarzel em fins de 2004 teve um sabor especial. Ao me propor a fotografia de À Margem do Concreto, Evaldo queria uma câmera solta e envolvente, bem ao meu estilo. Feliz da vida, aboli o uso do tripé, cuja simples presença no set já me causa irritação. Não imaginava que tivesse à minha frente um trabalho tão árduo. Para documentar as ocupações de prédios pelos sem-teto de São Paulo, muitas vezes enfrentamos condições de filmagem piores que as da Amazônia. Tivemos que subir e descer escadas escuras, em prédios de até 18 andares, sem energia nem água, no encalço dos acontecimentos. Ao contrário de mim, que sou mais contido e seletivo no filmar, Evaldo gosta de registrar tudo. Não existe corte para ele. Seus planos podem durar uma fita inteira e os trabalhos só terminam quando cessa toda a ação – e a equipe está extenuada. Era quando eu me arrependia de não ter um tripé... Apesar do cansaço e do peso da câmera de vídeo, foi uma experiência estimulante e enriquecedora. Por mais que se conheçam os problemas dessa faixa da população, vivenciar aquilo por dentro é sempre uma surpresa. Para o documentarista, não adianta chegar com uma idéia pronta à procura de objetos para retratar. Eles é que vão envolvê-lo. É preciso ser capaz de absorver isso, deixar-se guiar por eles. A mídia só cobre os conflitos, mas estes são apenas a conseqüência de uma questão anterior e mais ampla. Evaldo Mocarzel se interessa pelas fronteiras entre documentário, ficção e metalinguagem. Num dado momento, ele quis reconstituir a ocupação do prédio do antigo Hotel São Paulo, no Centro, com os próprios ocupantes. Montamos uma espécie de procissão noturna com velas e uns tapumes de madeira que seriam quebrados pelo pessoal. Quando estava tudo pronto, chegou uma turma de policiais, chamados por algum vizinho preocupado com o espectro de uma nova invasão. Sem querer, ficamos com a cena completa e filmamos tudo. Três câmeras rodavam simultaneamente – a minha e mais duas pequenas digitais, uma das quais registrando sempre o trabalho da equipe. Evaldo às vezes montava a cena e depois se retirava, lembrando o método de José Agrippino de Paula. Demo-nos muito bem. Mais tarde vim a saber que ele já tinha pensado em me chamar para fazer a câmera de seu documentário anterior, Mensageiras da Luz. Hoje, graças à aproximação feita pela jornalista Maria do Rosário Caetano, somos grandes companheiros e estamos juntos no projeto do meu próximo longa, Chiquinha Gonzaga. A música, enfim Ainda na década de 1970, John Neschling havia chamado minha atenção para a história pessoal e a obra de Chiquinha Gonzaga. Na época, comprei os discos de Clara Sverner tocando Chiquinha, mas, embora gostasse de samba, chorinho e MPB, não via como absorver um tema desses no meu cinema. O tempo passou e, mais recentemente, voltei a ser mordido pela mesma mosca. Ouvi interpretações mais contemporâneas da sua música, vi uma matéria na TV sobre a releitura de Ernesto Nazaré pelo grupo de balé O Corpo e assisti a um concerto da OSESP com a Banda Mantiqueira. De repente, o círculo se fechou e resolvi partir para o ataque. Um ataque, diga-se logo, nada convencional. Em um dos níveis, haverá um documentário sobre a preparação de um espetáculo do Grupo Corpo e da Banda Mantiqueira com a música de Chiquinha Gonzaga. Os integrantes da banda, todos solistas, tocam samba de uma forma jazzística. Eu quero que o filme tenha esse caráter de improvisação jazzística, com músicos e bailarinos atuando também como atores. A discussão do próprio filme será tematizada. Parte se passará no palco deste grande ensaio, outro tanto terá lugar nas ruas do Rio de hoje, e alguma coisa será filmada em estúdio, com sutis indicações de época. Eu pensava em dispensar a figura da Chiquinha em si, por ser complexa e intangível demais. Como retratá-la nas facetas de compositora pioneira, ativista política em grandes questões nacionais, lutadora pelos direitos autorais, afrontadora das convenções sociais, etc.? O risco de representar aquela semideusa me assustava. Mas minha mulher, Marcia Neves Bodanzky, fez-me ver que isso seria um desperdício. O resultado é que temos agora três Chiquinhas, em diferentes períodos de sua vida. Com um primeiro argumento, ganhei uma Bolsa Vitae para aprofundar a pesquisa. Um segundo tratamento foi feito por Evaldo Mocarzel, que é apaixonado por balé a ponto de se confessar um “coreógrafo frustrado”. Para o roteiro mais detalhado, chamei Lauro César Muniz, autor de uma adaptação para a TV e que se dizia “engasgado” com uma Chiquinha que ainda não tinha sido mostrada. A primeira versão do roteiro, longa e calcada nos diálogos, será devidamente desconstruída junto com Neschling, o coreógrafo Rodrigo Pederneiras e o pessoal da banda. A música, a dança e a história deverão ter pesos iguais. Estranhamente, sempre excluí a música do meu trabalho, embora seja um ouvinte contumaz, sobretudo de música clássica e contemporânea. Minhas lembranças familiares estão sempre envoltas na sonoridade dos concertos a que meu pai me levava e dos saraus de cordas na casa do meu padrasto. Sou incapaz de reproduzir corretamente qualquer som, mas consumo música com paixão. Explorá-la num filme está sendo como reatar com minhas origens e suprir uma estranha nostalgia. Hoje é dia de cinema Em 2005, vejo-me cheio de projetos à espera de uma chance de viabilização. Além de Chiquinha Gonzaga e do Projeto Navegar, pretendo realizar duas séries de TV: Fazendo Cinema, de programas didáticos sobre a produção cinematográfica, e De Olho no Brasil – Uma História do Documentário Brasileiro, a partir de pesquisa e roteiro de Carlos Alberto Mattos. Como tantos realizadores independentes, aspiro a um espaço na televisão – o que é absolutamente natural em muitos países, mas no Brasil continua a ser exceção. As TVs deveriam ser exibidoras e co-produtoras, mas nunca produtoras monopolistas do próprio conteúdo. Isso não favorece a criação de um mercado livre. O que fazem a TV-E e a TV Cultura, a exemplo do programa DOC-TV, é bom, mas muito pouco em relação ao universo que representam. As co-produções, por sua vez, são tão insípidas que não viabilizam nada. O subsídio através de incentivos fiscais não pode ser a matéria-base da produção porque perpetua a dependência. Por uma deformação, os diretores de marketing das empresas, estatais inclusive, tornaram-se os grandes curadores da cultura audiovisual. A produção precisa mesmo ser regionalizada para atender às demandas de todo o país. No entanto, a pós-produção, que é mais cara e complexa, pode ser centralizada em alguns pontos, ainda que não seja exclusivamente o eixo Rio-São Paulo. O importante é garantir a qualidade exigida pelo mercado em matéria de acabamento de som e imagem. Se os criadores regionais responderem pela pesquisa e desenvolvimento dos seus projetos, dominarem a produção dos materiais e exercerem controle sobre a finalização, seja ela feita no Rio ou em Nova York, não há risco de se pasteurizar o resultado. Descentralizar o audiovisual, na minha opinião, significa envolver as empresas locais no financiamento da produção e as TVs locais em sua veiculação. Fazem-se muitos filmes e vídeos pelo Brasil inteiro, como vemos nos festivais, mas ninguém os exibe. Não há diretor que não se frustre com esse bloqueio. Por outro lado, o audiovisual brasileiro tem sido muito tímido em matéria de internacionalização. Basta ver o cinema argentino atual, farto em co-produções internacionais e, por isso mesmo, apto a entrar no México, na Espanha, no Canadá. Enquanto isso, nós continuamos fechados em nós mesmos, restritos a esse modelo de incentivos. Ademais, nossa produção encareceu de maneira irreal para o mercado brasileiro, levando-nos a um beco sem saída. A pré-venda para televisões estrangeiras é uma solução interessante, num momento em que o cinema brasileiro volta a atrair as atenções de certas faixas do mercado internacional, também ele crescente. A temática dos nossos filmes nunca esteve tão diversificada e rica como hoje. Se somos beneficiados por algum modismo passageiro, convém aproveitar a oportunidade para nos estabelecer. É imprescindível criar mecanismos que auxiliem o pequeno produtor independente a se internacionalizar. Da mesma forma, cumpre dar maior apoio ao desenvolvimento de projetos, essa fase crítica onde tantas e boas idéias morrem por falta de oxigênio. Um projeto não pode chegar ao mercado globalizado resumido a meras páginas de roteiro. Tem que vir estruturado profissionalmente, apresentado com credibilidade e boas parcerias. Esse é um longo investimento que o produtor independente não tem como tirar do próprio bolso. Para se ter cinco bons filmes, precisa-se investir em 50. Discordo de quem afirma que no Brasil há cineastas em demasia. Pelo contrário, tem que haver um número ainda maior de profissionais nessa área para dinamizar o setor, aumentar a concorrência e a possibilidade de melhores filmes. Bem-vindas as escolas de cinema, as produções universitárias, as novas gerações. Como no futebol, é natural que muita gente jogue bola e os expoentes surjam da depuração contínua. Afinal, também podemos ser um país de cinema. Ao escrever sobre Paris, Hemingway se refere à cidade como “uma festa móvel”, que, uma vez visitada, nos acompanha para sempre. Tenho a sensação de que o cinema é também essa “festa móvel”, engrenagem dinâmica e flexível que eu, cineasta, com um olhar crítico, vou armando e desarmando, ao sabor da fantasia e do meu espírito de aventura. Cronologia Direção / Co-direção 1971 • Caminhos de Valderez Brasil, média 16 mm, P&B Direção e roteiro: Jorge Bodanzky, Hermano Penna Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Montagem: Eva Grundmann, Jorge Bodanzky Música: José Luiz, Jereba, Djalma, Rosa Elenco: Valderez Reis, Christian, Gildo, Iracema, Justo, Lyonel Lucini, Memélia, Regina. 1974 • Iracema – Uma Transa Amazônica Brasil/Alemanha, 16 mm/35 mm, Cor, 90 minutos Direção: Jorge Bodanzky, Orlando Senna Produção executiva: Malu Alencar, Wolf Gauer, Jorge Bodanzky Argumento: Jorge Bodanzky, Hermano Penna Roteiro: Orlando Senna Fotografia, câmera e direção musical: Jorge Bodanzky Som direto: Achim Tappen Montagem: Eva Grundmann, Jorge Bodanzky Elenco: Edna de Cássia, Paulo César Pereio, Conceição Senna, Rose Rodrigues, Lúcio dos Santos, Elma Martins, Fernando Neves, Wilmar Nunes, Sidney Piñon 1975 • Gitirana Brasil/Alemanha, 16 mm/35 mm, Cor, 90 minutos Direção: Jorge Bodanzky, Orlando Senna Produção: Wolf Gauer, Otto Engel Roteiro: Orlando Senna Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Som direto: Achim Tappen Montagem: Eva Grundmann Elenco: Conceição Senna e os habitantes de Juazeiro e Petrolina (BA) 1978 • Os Mucker Brasil/Alemanha, 16 mm/35 mm, Cor, 105 minutos Direção e produção: Jorge Bodanzky, Wolf Gauer Roteiro: Wolf Gauer Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Som direto: Ismael Cordeiro Produção executiva: Otto Engel Cenografia: Dorlai Schumacher Montagem: Reinaldo Volpato Elenco: Marlise Saueressig, Paulo César Pereio, José Lewgoy, Ricardo Hoepper, Thelmo Lauro Muller, Carla Saueressig, Sigurd Schinke, Vitali Bachtin, Helena Hill-Menz, Slavia Haag 1979 • Jari Brasil, 16 mm, Cor, 60 minutos Direção e produção: Jorge Bodanzky, Wolf Gauer Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Som: Wolf Gauer, Walter Rogério Música: Marluí Miranda, Silvano Michelini Montagem: Maria Inês Villares Participações especiais: Evandro Carreira, José Lutzenberger, Modesto da Silveira 1980 • Terceiro Milênio Brasil/Alemanha, 16 mm, Cor, 95 minutos Direção, produção e câmera: Jorge Bodanzky, Wolf Gauer Som direto: David Pennington Montagem: Maria Inês Villares Participações especiais: Evandro Carreira, José Lutzenberger 1985 • Igreja dos Oprimidos Brasil/França, 16 mm, Cor, 75 minutos Direção e roteiro: Jorge Bodanzky, Helena Salem Produção: Lucíola Villela, Louis Mollion Fotografia e câmera: Serge Guitton, Lucien Msika Som direto: William Fogtman, Michel Olany Montagem: Yves Charoy Participações especiais: Padres Ricardo Rezende, François Gouriou e Aristides Camio, Bispo Alano Pena, Frei Leonardo Boff • especial O Tempo e o Vento Brasil, Vídeo, Cor, 40 minutos Direção geral: Jorge Bodanzky Produção: TV Globo Texto e roteiro: Eloí Calage Edição: João Paulo de Carvalho, João Rodrigues Apresentação: Lima Duarte 1986 • Ensaiando Brecht Brasil, Vídeo-8, Cor, 50 minutos Direção, câmera e som: Jorge Bodanzky Colaboração: Wolfgang Bader Edição: Donizete F. Araújo Participação: Peter Palitzsch, Grupo Tapa 1987 • As Aventuras de Igor na Antártica Brasil/França, U-Matic e Vídeo-8, Cor, 46 minutos Direção: Jorge Bodanzky Produção: Intervídeo Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky, Serge Guitton Texto: Sylvia Orthoff Edição: Ronaldo Ferreira da Silva Música: Aécio Flávio Narração: Othon Bastos Assistentes: Andreas Wiedemann, Laís Bodanzky Elenco: Igor, Oleg e Sophie Belli, Jerôme e Sally Poncet 1988 • Universidade Quadrangular Brasil, 1988, Vídeo, Cor, 20 minutos Direção: Jorge Bodanzky Assistente de direção: David Pennington Equipe: CPCE/UnB 1990 • À Propos de Tristes Tropiques (A Propósito de Tristes Trópicos) França, Vídeo, Cor/P&B, 46 minutos Direção: Jorge Bodanzky, Patrick Menget, Jean-Pierre Beaurenaut Fotografia: Jorge Bodanzky, Alain Salomon Som: David Pennington Montagem: Martine Bouquin Leitura de textos: Maurice Garrel Participações especiais: Claude Lévi-Strauss, Manuela Carneiro da Cunha 1991 • Surfista de Trem Brasil/França Vídeo, Cor, 18 minutos Direção e câmera: Jorge Bodanzky Câmera adicional: Marcelo, Luiz Cardoso Produção: Jorge Bodanzky, ISER Vídeo Som: Osvaldo Oliveira Texto, roteiro e edição: Raquel Couto, Márcia Leite Narração: Tessy Callado Participação especial: Luiz Cardoso (“Lobão”) • Flor do Amanhã Brasil, Vídeo, Cor, 15 minutos Direção: Jorge Bodanzky Produção: Jorge Bodanzky, ISER Vídeo Câmera: Ricardo Canário Som: Osvaldo Oliveira Edição: Raquel Couto Texto: Márcia Leite Narração: Tessy Callado Participação especial: Joãosinho Trinta e Escola de Samba Flor do Amanhã 1995 • Série Ecovídeo Brasil, 10 curtas, Vídeo 8, Cor Supervisão geral: Jorge Bodanzky Produção: ISER Vídeo Direção e câmera: Sylvestre Campe, Jorge Bodanzky Edição: Raquel Couto Consultoria técnica: Kazue Matsuchima Narração: Othon Bastos Duração total: aproximadamente 50 minutos 2002 • Brasília, Die Unvollendete Utopie (Brasília, a Utopia Inacabada) Alemanha/França/Inglaterra/Brasil, HDTV, Cor, 25 minutos Direção e câmera: Jorge Bodanzky Som e assistência de direção: David Pennington Participações especiais: Oscar Niemeyer, Santiago Naud, Yoko Ono 2005 • Chiquinha Gonzaga (título de trabalho) Brasil, 35mm, Cor, em preparação Direção: Jorge Bodanzky Argumento: Jorge Bodanzky, Evaldo Mocarzel Roteiro: Lauro César Muniz Programas Globo Repórter 1982 • Amazônia: O Último Eldorado Brasil, Vídeo, Cor, 2x37 minutos Direção e câmera: Jorge Bodanzky Reportagem: Carlos Alberto Luppi Som: Francisco Coca Participação especial: Márcio Souza 1991 • Noés da Amazônia Brasil, Vídeo, Cor, 17 minutos Direção: Jorge Bodanzky Câmera: Jorge Bodanzky, Jair Alberto Reportagem: Francisco José Edição: Mauro Tertuliano, Raquel Couto Participações especiais: Heidi Mosbacher, Ilze Walker, Marc Van Roosmalen • Caça à Baleia Branca Brasil, Vídeo, Cor, 20 minutos Direção e câmera: Jorge Bodanzky Reportagem: Francisco José Som: Sylvestre Campe Edição: Mauro Tertuliano, Raquel Couto Mídias eletrônicas 1996 • Amazônia – Um Fantástico Universo Brasil, CD-ROM Projeto, direção e produção: Jorge Bodanzky Roteiro, edição e direção de produção: Juliana de Carvalho e Raquel Couto Redação: Regina Mamede Direção de arte: Sérgio Magalhães Trilha sonora original: João Paulo Mendonça Revisão de texto: Christina Motta Maia Pesquisa: Maria Marta Morais Leitman 1997 • Cinema Brasileiro Anos 60 Brasil, CD-ROM Coordenação geral: José Carlos Avellar Direção: Jorge Bodanzky Produção, roteiro de conteúdo e edição de imagens: Raquel Couto, Juliana de Carvalho Gerência de projeto e roteiro de navegação: Juliana de Carvalho, Luís Vidal, Raquel Couto Revisão de texto: Christina Motta Maia Arte: Patrícia Chueke Textos: José Carlos Avellar, Ronald F. Monteiro • IBAMA Brasil, website (extinto) Projeto e direção: Jorge Bodanzky Roteiro, edição e direção de produção: Juliana de Carvalho e Raquel Couto Redação: Regina Mamede • Parque Nacional de Itatiaia Brasil, CD-ROM e website (extinto) Projeto e direção: Jorge Bodanzky Roteiro, edição e direção de produção: Juliana de Carvalho e Raquel Couto Redação: Regina Mamede 1998 • Amapá Brasil, CD-ROM e website (extinto) Projeto e direção: Jorge Bodanzky Roteiro, edição e direção de produção: Juliana de Carvalho e Raquel Couto Redação: Regina Mamede • Amazonlife Brasil, website (extinto) Gerente de conteúdo: Jorge Bodanzky Web design: Vinte Zero Um Coordenação: Daniele Castro Direção fase de implementação: Jorge Bodanzky, Raquel Couto Pesquisa: Ana Cecília Mamede, Anna Bodanzky Textos: Regina Mamede, Angélica Coutinho, Lúcia Burmeister, Raquel Couto, Rosângela Alanís • Parque Gráfico O Globo Brasil, CD-ROM Coordenação: Jorge Bodanzky, Geraldo Sarno 1999 • Poema (Pobreza e Meio-ambiente) Brasil, CD-ROM Projeto e direção: Jorge Bodanzky Roteiro, edição e direção de produção: Juliana de Carvalho , Raquel Couto, Angélica Coutinho • Rio de Janeiro 500 Anos Brasil, CD-ROM Produção audiovisual: Jorge Bodanzky, Raquel Couto 2000/05 • Navegar Amazônia Brasil, 2000/05, projeto de internet via satélite Concepção e coordenação geral: Jorge Bodanzky, José Roberto Lacerda Ramos Como diretor de fotografia e câmera 1968 • Copacabana Me Engana Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: Antonio Carlos da Fontoura Fotografia: Affonso Beato Câmera: Jorge Bodanzky • Ensino Vocacional Brasil, Curta 35 mm Realização coletiva ECA/USP • Embu Brasil, Curta 35 mm Realização coletiva ECA/USP 1969 • O Profeta da Fome Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: Maurice Capovilla Fotografia: Jorge Bodanzky Câmera: Jorge Bodanzky e Antonio Meliande • Em Cada Coração um Punhal Brasil, Longa 35 mm, P&B Episódios Clepsusana, de José Rubens Siqueira, e O Filho da Televisão, de João Batista de Andrade - Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • Gamal, O Delírio do Sexo Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: João Batista de Andrade Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Assistente de câmera: Hermano Penna • Compasso de Espera Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: Antunes Filho Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • Visão de Juazeiro Brasil, Curta 16 mm, Cor Direção: Eduardo Escorel Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky 1970 • Hitler IIIº Mundo Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: José Agrippino de Paula Fotografia, câmera e som: Jorge Bodanzky • Eterna Esperança Brasil, Média 35 mm, Cor Direção: João Batista de Andrade e Jean-Claude Bernardet Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • O Balcão (registro da peça) Brasil, Média 16 mm, P&B Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky 1971 • Pantanal do Mato Grosso Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Ana Carolina Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • Bexiga Ano Zero Brasil, Curta 35 mm, Cor Direção: Regina Jeha Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • O Dia Marcado Brasil, Longa 35 mm, P&B Direção: Iberê Cavalcanti Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • O Pecado de Marta Brasil, Longa 35 mm, Cor Direção: José Rubens Siqueira Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • Almir Mavignier Alemanha, Curta 16 mm, Cor Direção: Lena Coelho Santos Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky 1972 • Semana de 22 Brasil, Curta 35 mm, P&B Direção: José Rubens Siqueira Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • Museu de Arte de São Paulo Brasil, Curta 35 mm, Cor Direção: Hector Babenco Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky • De Raízes & Rezas Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Sérgio Muniz Fotografia: Thomaz Farkas, Affonso Beato, Jorge Bodanzky 1973 • O Fabuloso Fittipaldi Brasil, Longa 35 mm, Cor Direção: Roberto Farias e Hector Babenco Fotografia e câmera: José Medeiros, Jorge Bodanzky • O Pica-pau-amarelo Brasil, Longa 35 mm, Cor Direção: Geraldo Sarno Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky, João Carlos Horta 1985 • Nur Fliegen Ist Schwerer (Mais Difícil, Só Voar) Alemanha, Longa 16 mm, P&B Direção: Reinhard Kahn Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky 2004 • À Margem do Concreto Brasil, Longa Dvcam, Cor Direção: Evaldo Mocarzel Fotografia e câmera: Jorge Bodanzky Documentários Pedagógicos Alemães – Produções do Institut für Film und Bild in Wissenschaft und Unterricht (Instituto do Filme e da Imagem para a Ciência e o Ensino) 1974 • Der Verhaltensgestörte Schüler (O Aluno de Comportamento Problemático) Alemanha, 16 mm, Cor, 29 minutos Direção: Wolf R. Gauer Câmera: Jorge Bodanzky • Industrialerarbeiter In Deutschland – In Brasilien (Operários na Alemanha e no Brasil) Alemanha, 16 mm, Cor, 22 minutos Direção: Jorge Bodanzky, P.Braune, Wolf Gauer Câmera: Jorge Bodanzky • Deutsche Auswanderer Auf Jamaika (Emigrantes Alemães na Jamaica) Alemanha, 16 mm, Cor, 18 minutos Direção e câmera: Jorge Bodanzky, Wolf R. Gauer 1975 • Schule (Escola) Alemanha, 16 mm, Cor, 26 minutos Direção: Wolf Gauer Câmera: Jorge Bodanzky • Fortschritt Oder Entwicklung? (Progresso ou Desenvolvimento?) Alemanha, 16 mm, Cor, 20 minutos Direção: Wolf Gauer, Jorge Bodanzky Câmera: Jorge Bodanzky 1976 • Lernen Und Lernen Lassen (Aprender e Deixar Aprender) Alemanha, 16 mm, Cor, 28 minutos Direção: Wolf Gauer, Reinhold Schnatmann Câmera: Jorge Bodanzky Documentários para a TV Alemã 1984 • Schüsse Auf Santo Dias (Tiros sobre Santos Dias) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Georg Stingel Câmera: Jorge Bodanzky 1986 • Der Traum Vom Glück Im Urwald (Sonhando com a Sorte na Selva) Alemanha/Brasil, 1986, Média 16mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1987 • Der Traum Von Einem Eigenen Stück Land (Sonhando com um Pedaço de Terra Próprio) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1989 • Die Männer Aus Den Wäldern (Os Povos da Floresta) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1991 • Tödliche Kontakte – Überlebenskampf Am Amazonas (Contatos Mortais – A Luta pela Sobrevivência no Amazonas) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1992 • Sie Nennen Uns Weiße Sklaven (Chamam-nos de Escravos Brancos) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1992/93 • Lateinamerika, Der Entwurzelte Kontinent (América Latina, o Continente Desenraizado) Alemanha/Brasil/etc, 5 programas 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky e outros 1994 • Das Wunder Von Ronda Alta (O Milagre de Ronda Alta) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1994/95 • Das Andere Brasilien (O Outro Brasil) Alemanha/Brasil, 1994/95, 5 programas 16mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 1999 • Die Katukina, Volk Der Panther (Os Katukina, Povo do Tigre) da série Indianer (Índios) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 2000 • Die Waiãpi, Volk Des Dschungels (Os Waiãpi, Povo da Floresta) da série Indianer (Índios) Alemanha/Brasil, Média 16 mm, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 2002 • Überleben In Der Grünen Hölle (Sobrevivência no Inferno Verde) Alemanha/Brasil, Média Vídeo Beta-Sp, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky 2005 • Os Zuruahá (título de trabalho) Alemanha/Brasil, Média, Vídeo, Cor Direção: Gernot Schley Câmera: Jorge Bodanzky Índice Apresentação - Hubert Alquéres 05 Introdução - Por todos os caminhos 15 Viena – São Paulo: Imigrantes 29 São Paulo: entre a USP e a Boca do Lixo 85 América do Sul: tempo de generais 131 Transamazônica: a face triste do progresso 159 Vila Madalena: um estúdio em festa 195 Amazônia versão global 243 Ao sabor do vento 283 Mato Grosso: memórias de Lévi-Strauss 317 O real é a minha ficção 339 Brasília: a independência como utopia 361 Cronologia 375 Créditos das Fotografias Hitler IIIº Mundo / Compasso de Espera: Ruth Toledo Iracema / Gitirana: Wolf Gauer À Margem do Concreto: Vidal Cavalcante Com Jean Rouch e Flávio Shiró: Satoru Nakaesu Gal Costa / Prostituta do Gama: Jorge Bodanzky Fotógrafo iniciante no cerrado: Amélia Toledo Homem com a câmera (no campo) / Com papagaios: Vânia Jucá Demais fotos: acervo pessoal de Jorge Bodanzky Coleção Aplauso Perfil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Helvécio Ratton - O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça Ilka Soares - A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont - Do Cordel às Telas Klecius Henrique Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti - Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? 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