Samir Yazbek O Fingidor A Terra Prometida A Entrevista Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira Chefe do Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Diretora de Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Mauro Garcia Coleção Aplauso Teatro Brasil Coordenação Geral Rubens Ewald Filho Coordenação Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico Carlos Cirne Editoração Aline Navarro Assistência Operacional Andressa Veronesi Revisão Ortográfica Dante Pascoal Corradini Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Samir Yazbek O Fingidor A Terra Prometida A Entrevista por Samir Yazbek imprensa Oficial São Paulo – 2006 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Yazbek, Samir Samir Yazbek : O fingidor ; A terra prometida ; A entrevista. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura -Fundação Padre Anchieta, 2006. 264p.: il. – (Coleção aplauso teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa oficial) ISBN 85-7060-433-5(Imprensa oficial) 1. Crítica teatral 2. Teatro -História e crítica I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Título: A terra prometida. IV. Título: A entrevista. V. Série. 06-0975 CDD-809.2 Índices para catálogo sistemático: 1. Teatro : Literatura : História e crítica 809.2 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 – Mooca 03103-902 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõe seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do país, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries: Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luis Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Introdução Foi com um misto de alegria e apreensão que eu recebi o convite para realizar esta coletânea. Alegria porque as três peças aqui reunidas decorreram de um longo e árduo processo de amadurecimento artístico e pessoal. Também se trata de uma importante fase do meu trabalho em que, com a ajuda de muitas pessoas, lutei pelas montagens dos espetáculos. Apreensão porque a existência de um volume como este, ao menos como pretexto, me obriga a querer parar de modificar os textos, o que é uma verdadeira obsessão para mim. Mas essa apreensão certamente é combatida com uma vontade enorme de me dedicar cada vez mais à dramaturgia, acreditando, com isso, que o meu melhor ainda está por vir. Ao invés de prefácios escritos por alguns convidados, achei mais significativo acrescentar, no início de cada trabalho, trechos das críticas que saíram na grande imprensa do Rio e SP ao longo das temporadas, destacando especificamente comentários referentes ao texto. Espero que a leitura dessas obras seja não apenas fonte de prazer, mas inspiradora de futuras montagens, já que foram escritas exatamente para viverem sobre os palcos. Além dos artistas que participaram das encenações originais, a quem agradeço mais adiante, gostaria de partilhar esse projeto com cada amigo, crítico ou pesquisador que tem me incentivado nessa trajetória, com os dramaturgos que têm acreditado no poder da palavra no teatro, a Germano Pereira, sempre solícito na condução técnica desta edição, e especialmente a Rubens Ewald Filho, responsável primeiro pela idéia deste livro. Samir Yazbek novembro de 2005 O FINGIDOR (peça teatral em vinte e três cenas) Ficha Técnica O Fingidor estreou em 20 de agosto de 1999 na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso (SP), com a seguinte ficha técnica: Autor e Diretor – Samir Yazbek Elenco – Helio Cicero (Pessoa/Jorge); Genézio de Barros (Américo); Mariana Muniz (Amália); Rejane Arruda (Henriqueta); Sérgio Carrera (Caeiro); Ál varo Augusto (Campos); Eduardo Semerjian (Reis); André Corrêa (Afonso); Marcelo Dias (Miguel) Dramaturgista – Maucir Campanholi Diretor de Movimento – Dani Hu Assistente de Direção – Odara Carvalho Cenógrafo – Marisa Rebolo Figurinista – Elena Toscano Costureira – Néia Sarhan Iluminador – Wagner Pinto Operador de Luz – Celso Marques Sonoplasta – Raul Teixeira Operador de Som – Jean Borges Projetista Gráfico – Marise De Chirico Coordenador de Marketing – José Luiz Muniz Filho Programador de Site na Internet – Célia Pedroso e Sérgio Krawtschenko Fotógrafo – Tuca Vieira Assessora de Imprensa – Bia Gonçalves Produtores Executivos e Administradores – Cristina Sato, Kalid Sarhan e Lenine Tavares Apoiadores Culturais – Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, Teatro Faap, Escola da Vila, Centro Ótico Miguel Giannini, Colégio Marista Nossa Senhora da Glória, Colégio São Francisco Xavier, Editora Record, Gazeta Mercantil, O Antiquário, Prada Chapéus, Sidon Tur, TUCA, FACOM / FAAP, Néia Alta Costura. Patrocinadores – WRJ Artes Gráficas, Fazenda Monjolinho e Trovari Jóias A versão final do texto, agora apresentada, beneficiou-se de preciosas sugestões de todo o elenco, sobretudo Helio Cicero e Maucir Campanholi, respectivamente protagonista e dramaturgista da montagem original. Em 1999, com esta obra, o autor foi contemplado com o Prêmio Shell. Em 2003, a peça foi selecionada, através da Ed. Ática, para participar do Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Governo Federal, que a distribuiu para 475 mil alunos da rede pública de ensino no início de 2004. Helio Cicero e Mariana Muniz, em O Fingidor Fortuna Crítica O FINGIDOR em SP “O autor desvenda o íntimo de Fernando Pessoa nessas cenas divertidas, bem-humoradas, e que conseguem atingir, plenamente, o objetivo de revelar as outras facetas de sua personalidade. (...) E é esse Fernando Pessoa humanizado pelas suas próprias ações, e não apenas pela sua poesia ou pelos seus textos, que emerge em O Fingidor e encanta o público”. Aguinaldo Ribeiro da Cunha Diário de S. Paulo “Escolha que promete dar dor de cabeça ao júri é a da categoria autor com Samir Yazbek pelo ótimo texto de O Fingidor, cuja montagem mereceria voltar ao cartaz. (...) O autor constrói sua peça sobre a relação fictícia entre o poeta Fernando Pessoa, um renomado crítico teatral e sua empregada, num espetáculo que nada tem de recital, mas provoca uma interessante discussão sobre o sentido da criação artística”. Beth Néspoli O Estado de S. Paulo “Um momento de poesia e raro refinamento no teatro”. Carmelinda Guimarães A Tribuna de Santos “Texto e direção são originais, ao apresentar um poeta realmente fingidor, o que é narrado de modo intenso pelo elenco”. Jefferson Del Rios Revista Bravo “Samir Yazbek faz um espetáculo encantador pela simplicidade com que trama o imaginário e o ‘real’”. Mariângela Alves de Lima O Estado de S. Paulo “O Fingidor contempla o exemplo de ética que pautou a existência e a carreira de Fernando Pessoa, perseguidor incondicional das mais recônditas essências do ser humano. E o espetáculo procura fazer o mesmo, reservando fortes emoções sem jamais desbotar o lirismo”. Valmir Santos Diário de Mogi O FINGIDOR no RJ “O resultado é cuidadoso e transbordante de admiração e carinho”. Bárbara Heliodora O Globo “O achado permite o estabelecimento de uma curiosa relação, assim como o texto faculta à platéia uma visão abrangente da personalidade do poeta”. Lionel Fischer Tribuna da Imprensa “O texto poderia incorrer no reducionismo do recital poético, caso Samir Yazbek não o ampliasse até o plano de um texto teatral que o transforma em biógrafo de sua poética”. Macksen Luiz Jornal do Brasil Helio Cicero em O Fingidor O Fingidor Cenário Algumas localidades da cidade de Lisboa, Portugal, conforme a ação determinar. Ação Novembro de 1935, uma semana antes da morte do poeta Fernando Pessoa. Personagens José Américo, 42 anos, professor e crítico literário. Amália Conceição, 43 anos, governanta de José Américo. Fernando Pessoa, 47 anos, poeta. Henriqueta Madalena, 37 anos, irmã de Fernando Pessoa. Jorge Madeira (representado por Fernando Pessoa), 47 anos, desempregado. Alberto Caeiro (heterônimo), 44 anos, camponês. Álvaro de Campos (heterônimo), 43 anos, engenheiro. Ricardo Reis (heterônimo), 45 anos, médico. Afonso Camargo, 34 anos, diretor da revista literária Presença Miguel Escudero, 21 anos, estudante universitário de Letras CENA 1 Clareia no escritório de Américo. Manhã. Ele está diante de sua mesa de trabalho, tomada de livros e papéis, datilografando um texto. Amália entra. AMÁLIA – Seu Américo, o senhor ainda não dormiu? AMÉRICO – Não, ainda não. AMÁLIA – Não quer tomar café? AMÉRICO – Não, agora não, obrigado. Amália começa a sair. AMÉRICO – Que horas são, dona Amália? AMÁLIA – Sete. AMÉRICO – Já? AMÁLIA – O senhor está aí desde as seis horas de ontem. Assim não há Cristo que agüente. Não quer parar só um pouquinho para descansar? AMÉRICO – Até que não seria má idéia. AMÁLIA – O senhor anda trabalhando demais, seu Américo. AMÉRICO – Trabalho nunca é demais, dona Amália. Este serviço é que é chato. Preciso arrumar um datilógrafo o mais rápido possível. AMÁLIA – Hoje sai o anúncio de novo? AMÉRICO – Sai, eu só não sei se foi uma boa idéia. AMÁLIA – Não quer que eu chame o meu sobrinho? AMÉRICO – Miguel? AMÁLIA – É, o senhor já o conhece. AMÉRICO – Deixa eu pensar. A senhora bem que poderia me ajudar, não? AMÁLIA – Eu falei que ajudava. Se precisar, eu datilografo. Eu era muito boa nisso. AMÉRICO – Estou brincando, dona Amália. A senhora tem o serviço da casa que já é demais. E disso eu não posso abrir mão, caso contrário, como dizia minha mãe… “As baratas vão acabar me comendo”. (um silêncio; referindo-se ao texto que escreve) A senhora não sabe como este trabalho é importante para mim. AMÁLIA – Eu imagino. AMÉRICO – Já ouviu falar em Fernando Pessoa? AMÁLIA – Não. AMÉRICO – Um dos maiores poetas de Portugal. AMÁLIA – É mesmo? AMÉRICO – Camões, a senhora já ouviu falar… AMÁLIA – Ah! Esse sim, claro. AMÉRICO – Pois saiba que Pessoa é poeta tão gran de quanto Camões. AMÁLIA – Jura? AMÉRICO – E o homem só tem quarenta e sete anos, dona Amália. Está na flor da idade. AMÁLIA – Flor da idade? AMÉRICO – A senhora tem de convir que, para um poeta, quarenta e sete anos é flor da idade. AMÁLIA – É, pode ser. Um silêncio. AMÉRICO – A senhora sabe quantos livros ele pu blicou? AMÁLIA – Não. AMÉRICO – Um. AMÁLIA – Só? E como o senhor ficou conhecendo o que ele escreveu? AMÉRICO – Ele tem vários poemas publicados em diversas revistas. Eu fui atrás de todos, dona Amália, eu tenho tudo! (um silêncio) Na semana que vem eu vou fazer uma conferência sobre Fernando Pessoa. AMÁLIA – Ah! Então é por isso que o senhor anda tão agitado. AMÉRICO – E não é para estar? AMÁLIA – O senhor conhece esse Fernando pessoalmente? AMÉRICO – Eu tive oportunidade um dia, mas não quis. Eu não acho importante conhecer o homem. A obra, sim. Mas o homem? Eu não me importaria nem mesmo se soubesse que ele pensa mal de mim. AMÁLIA – E porque pensaria mal do senhor? AMÉRICO – Artistas. Poetas… São seres estranhos. Mesmo assim, eu não me deixaria abalar. E sabe por quê? Porque tenho a consciência de que estou fazendo o melhor que posso, dando o melhor de mim. Um silêncio. AMÁLIA – O senhor quer café com torrada? AMÉRICO – E queijo. Amália sai. Américo volta a datilografar. Escurece. CENA 2 Clareia na sala de Pessoa. Manhã do mesmo dia. Ele, vestido com um terno, gravata, chapéu e óculos, está sentado sobre um baú, contemplando o mo vimento da rua. Traz uma folha de jornal enrolada na mão. Depois de um tempo, Henriqueta entra. HENRIQUETA – Já estou indo. PESSOA – Vá com Deus. HENRIQUETA – Como passou a noite? PESSOA – Bem. HENRIQUETA – Não sentiu mais nada? PESSOA – Não. HENRIQUETA – E as pontadas na barriga? PESSOA – Passaram. HENRIQUETA – Tem certeza? PESSOA – Depois desse banho, sinto-me um meni no. Vê como o dia está lindo? Vá, Henriqueta. Não quero que se atrase novamente. HENRIQUETA – Eu acho que não vou embora. PESSOA – Você vai se quiser. HENRIQUETA – Você sabe que eu preciso. PESSOA – Pois então vá. HENRIQUETA – Tem certeza? PESSOA – As crises passaram. HENRIQUETA – Mas ontem… Eu passei pela porta do teu quarto… E parecia que você falava sozinho. PESSOA – Ainda não se acostumou? Você queria que um poeta falasse com quem? HENRIQUETA – Com sua irmã. PESSOA – Mas eu falo com a minha irmã. HENRIQUETA – Eu tenho medo, Fernando. PESSOA – Olha para mim. Eu não vou ficar louco. Ainda sei quem sou e o que quero. Confie em mim. HENRIQUETA – Confio. PESSOA – Pois então levanta. Não demora que eu conheço muito bem o seu patrão. HENRIQUETA – Hoje eu tenho autorização para entrar mais tarde. PESSOA – Teca... HENRIQUETA – É sério. Além do que, eu quero ficar com você. Está tão gostoso aqui. Continuam sentados, contemplando a rua. Estão nitidamente felizes um com a presença do outro. Aos poucos Henriqueta se aflige. Fala como quem está com medo. HENRIQUETA – Você só não pode beber. PESSOA – É, eu sei. HENRIQUETA – É daí que vêm as pontadas. PESSOA – Quem te disse isso, Teca? HENRIQUETA – O médico! PESSOA – E desde quando médico sabe alguma coi sa? (um silêncio) Estou pensando em trabalhar. HENRIQUETA – Você está falando sério? PESSOA – Que mal há nisso? Pessoa entrega o jornal para Henriqueta. PESSOA – Olha. HENRIQUETA – O que significa isso? PESSOA – Leia. Henriqueta lê o jornal e fica indignada. Pessoa tenta disfarçar o incômodo. HENRIQUETA – Datilógrafo de um crítico literário?! Você precisa disso, Fernando? PESSOA – Do dinheiro, preciso. HENRIQUETA – Juro que não estou te entendendo. (um silêncio) Fernando, você é um poeta. Seus poemas foram publicados em inúmeras revistas. Será que você não arrumaria emprego em nenhuma delas? PESSOA – Ainda não procurei. HENRIQUETA – Orgulho? PESSOA – Se você pensa assim. HENRIQUETA – Você traduziu Shakespeare. Será que não existe mais nenhuma peça dele para você traduzir? PESSOA – Ainda não pensei nisso. HENRIQUETA – E o prêmio que você ganhou com o seu livro? É pouca coisa, por acaso? PESSOA – Um reles segundo lugar. HENRIQUETA – Aliás, o dinheiro do prêmio não é o suficiente para você passar o ano? PESSOA – Já acabou. HENRIQUETA – (saindo) Muito bem. PESSOA – Espere. Se quer me ajudar, fique. Henriqueta volta. PESSOA – (procurando disfarçar as dores que sente na barriga) Sabe que dia é hoje? HENRIQUETA – Não. PESSOA – Vinte e três de novembro de 1935. Faz quarenta anos que morreu meu irmão Jorge. HENRIQUETA – Por que isso agora? PESSOA – Nada. Falei por falar. HENRIQUETA – Fernando… Por que você não volta ao médico? Isso que você tem parece sério. PESSOA – Eu estou bem, Teca. Henriqueta sai. Pessoa começa a fazer alguns experimentos com o corpo, procurando criar, ao que tudo indica, uma figura humana. Uma nítida mudança física começa a se operar nele. Trabalha sobretudo braços, ombros e expressão facial. De repente, estamos no território da imaginação do poeta. Entram seus três principais heterônimos, ou seja, personalidades literárias criadas por ele: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Ninguém mais, a não ser o próprio Pessoa, pode enxergá-los. CAEIRO – Que vai fazer? PESSOA – Vocês por aqui? Já disse que não queria mais vê-los. Você não estava morto, Caeiro? CAEIRO – Estava? Estou. Isso faz alguma diferença? PESSOA – E você, Campos? Não ordenei que sumisse? REIS – O que significa isso? PESSOA – Tenho mesmo de responder, Reis? CAEIRO – Vai se disfarçar? CAMPOS – Um heterônimo vivo? PESSOA – Exatamente. CAMPOS – Que coisa mais ridícula. CAEIRO – Controle-se, Campos. CAMPOS – Ele vai nos copiar! REIS – Para que isso? PESSOA – Não sei. Senti necessidade. CAEIRO – Poeta. PESSOA – Diga, mestre. CAEIRO – Compreendemos sua necessidade. CAMPOS – Eu não compreendo nada. CAEIRO – Mas é bom que se diga: pode ser peri goso. CAMPOS – Isso não se faz conosco! CAEIRO – Isso não se faz consigo. CAMPOS – Existem outros heterônimos que você criou e ficaram pelo caminho. PESSOA – Não entendo. CAEIRO – Não é a simplicidade em mim que tanto admira? Pois então. Agora que chegou o momen to do teu repouso, vai complicar ainda mais a tua vida? PESSOA – Que repouso? (referindo-se a Campos) Enquanto esse aí existir… CAMPOS – Também tenho a minha opinião. PESSOA – Eu quero ação. CAMPOS – Essa ação não te levará a nada. PESSOA – Cansei de contemplar o abstrato e o perdido. Agora quero ver se conheço alguma realidade de fato. Mas para isso me sirvo… não mais de heterônimos, mas de um personagem. Essa é a única diferença. O resto eu sei que virá. REIS – Quem é? PESSOA – Seu nome é Jorge Madeira. Jorge em homenagem a meu irmão. E Madeira é a ilha em que aportei quando saí de Lisboa pela primeira vez. REIS – E como ele é? PESSOA – Prefiro não dizer. Talvez nem eu saiba ao certo. Mas vou descobri-lo. Na verdade, quero descobri-lo. Eu não conheci esse meu irmão. Ele viveu apenas um ano. (para Caeiro) Agora estou vendo. Jorge tem algo de ti. CAEIRO – De mim? PESSOA – O caráter. Um silêncio. REIS – Estou triste, Fernando. PESSOA – Por quê? REIS – Talvez eu seja assim sempre, triste por tudo. PESSOA – Você que é a parte minha mais difícil de compreender. REIS – Mas ao mesmo tempo admiro a sua coragem. Desejo-lhe sorte nessa empreitada. Reis sai. CAEIRO – Então você vai mesmo? PESSOA – Tenho de ir. CAEIRO – Pois estarei aqui. Se precisar de mim… CAMPOS – Ainda vou rir disso tudo. PESSOA – Você devia me ajudar, Campos. CAMPOS – Você é que devia me ajudar, poeta. Não sabe o estado lastimável em que me encontro. Campos sai. PESSOA – (para Caeiro) Adeus, mestre. Caeiro sai. Pessoa fica um tempo aturdido, sem saber o que fazer. De repente anima-se. Desse ânimo tira energia para livrar-se da parte superior do terno, do chapéu e dos óculos. Permanece com a calça do terno e a camisa branca, sobre a qual lança um novo paletó, listrado, exótico, que retira do baú. Pega também uma boina. Enfim, trata-se da principal parte do figurino de Jorge Madeira, personagem que passará a representar, um heterônimo vivo, como bem adivinhou Campos. Sai. Escurece. CENA 3 Clareia na sala de Américo. Tarde do mesmo dia. Ele e Miguel conversam já há algum tempo. MIGUEL – Não tem problema, eu quero. AMÉRICO – Tem certeza de que este trabalho é para você, Miguel? Você me parece tão inteligente. Desde o tempo em que era meu aluno eu já achava isso. MIGUEL – E para esse tipo de trabalho não se pode ser inteligente, seu Américo? AMÉRICO – Desperdício, rapaz. De tempo, de energia. Você devia procurar outras coisas para fazer. Você me disse uma vez que gostava de escrever, não é? MIGUEL – Pois então, seu Américo, eu já estou escrevendo um trabalho sobre Fernando Pessoa. AMÉRICO – Ah! É? E que tipo de trabalho, posso saber? MIGUEL – Um ensaio. AMÉRICO – Não, Miguel. Quem quer ser escritor não pode perder tempo com esse tipo de coisa. MIGUEL – Quer dizer que… AMÉRICO – (cortando-o) Infelizmente. Aqui você iria sofrer muito. Eu estou precisando de gente mais simples, mais “braçal”, está me entendendo? Não é nada pessoal. MIGUEL – Claro, seu Américo. Américo toca um sino que estava sobre a mesa. Amália entra. AMÉRICO – Dona Amália, acompanhe Miguel até a porta. Tem mais alguém aí? AMÁLIA – Só mais um. AMÉRICO – Volte antes de trazê-lo. (cumprimen tando-o) Até logo, Miguel. MIGUEL – (também cumprimentando-o, contrariado) Até logo, seu Américo. Miguel e Amália saem. Américo fica entretido com uns papéis. Amália volta. AMÉRICO – Miguel é muito inteligente, dona Amália. Ele vai arrumar alguma coisa mais interessante para fazer. AMÁLIA – Eu entendo. AMÉRICO – E esse que está aí? Vale a pena? AMÁLIA – É só um pouco estranho. AMÉRICO – Ah! Não! Então manda embora. AMÁLIA – Mas parece boa Pessoa. AMÉRICO – É? Bom… Então traz logo, antes que eu mude de idéia. Amália sai. Américo lê um dos papéis. Amália traz Pessoa disfarçado de Jorge Madeira, um ser corcunda, de rosto ligeiramente deformado, vestido com o paletó anteriormente descrito sobreposto a uma calça marrom. Usa botinas de camurça, também de cor marrom. Pessoa criou um outro tom de voz para Jorge, mais agudo. AMÉRICO – Boa tarde. JORGE – (estendendo-lhe a mão) Muito prazer. AMÉRICO – (sem cumprimentá-lo) O prazer é todo meu. Pode ir, dona Amália. AMÁLIA – Com licença. Amália dá uma olhada para Pessoa, achando-o curioso. Sai. Américo torna-se sério. O tipo que Pessoa criou para Jorge, principalmente por conta da corcunda, do posicionamento dos braços e de uma maneira enviesada de olhar, torna-o uma figura meio disforme, bastante estranha de se observar. Mas sobretudo carismática. AMÉRICO – Sente-se. JORGE – Obrigado. AMÉRICO – Como se chama? JORGE – Jorge Madeira. AMÉRICO – É de Lisboa, Jorge? JORGE – Nasci em Madri, senhor. AMÉRICO – Já não tem quase sotaque. Deve estar há muito tempo aqui, não? JORGE – Desde menino. AMÉRICO – E o que faz, Jorge? Profissionalmente, eu quero dizer. JORGE – Trabalhei um período na biblioteca do Chiado. Mas isso há muito tempo atrás. AMÉRICO – E o que fazia? JORGE – Tirava pó dos livros. (Américo ri) É engraçado? AMÉRICO – Não, desculpe. O senhor é que tem uma maneira engraçada de falar. (um silêncio) E datilografia, Jorge? Aprendeu onde? JORGE – Cartas de amor. Eu só tinha o trabalho de convencer as pessoas de que não era correto mandar uma carta de amor escrita à mão, correndo o risco de a pessoa amada não entender a nossa letra. Então eu sugeria que se enviasse, junto com a carta, não no lugar, mas junto, a mesma carta, só que datilografada. Foi assim que eu consegui os meus primeiros trocados. AMÉRICO – É uma maneira original de aprender. Ainda lembra como se faz? JORGE – A máquina? AMÉRICO – É, não perdeu a prática? JORGE – De jeito nenhum. AMÉRICO – O senhor se incomodaria em fazer um teste? JORGE – Imagine. AMÉRICO – Então, por favor, me acompanhe. Clareia no escritório. Américo vai até lá. Pessoa segue-o. AMÉRICO – O senhor já me conhecia? JORGE – Como assim? AMÉRICO – Quero dizer… o meu trabalho, a minha pessoa… JORGE – Não. AMÉRICO – Ótimo. Bem... se o senhor passar no teste, depois eu explico como é o trabalho e o que eu vou querer que o senhor faça. Só vou adiantando que o serviço é um pouco pesado. JORGE – Não se preocupe, senhor José Américo. AMÉRICO – (entregando-lhe uma folha) Tome este poema. Passe a limpo. Pessoa senta-se e tira a boina. Américo leva-a para a mesa da sala. Pessoa primeiro analisa o texto, depois valoriza cada momento, como se seguisse um ritual. Américo evita olhá-lo nos olhos, mas não consegue esconder um certo encantamento pela figura de Jorge. Pessoa acomoda-se na cadeira, dobra as mangas do paletó, aquece as mãos, ajeita com cuidado o original e começa a datilografar. É espantosa a velocidade com que o faz. Chega ao final em menos de um minuto. Américo está simplesmente boquiaberto. Em seguida, Pessoa, num gesto largo, tira a folha e deixa-a suspensa. JORGE – Mais alguma coisa? AMÉRICO – (surpreso) Não... Ao pegar a folha, Américo nota um anel na mão direita de Pessoa. AMÉRICO – Bonito esse anel. JORGE – Obrigado. AMÉRICO – Essa pedra vermelha… Diferente. Eu nunca vi igual. JORGE – Ganhei de minha mãe. AMÉRICO – (referindo-se ao texto datilografado) Bem, vejamos… JORGE – Espero que não tenha muitos erros. AMÉRICO – (comparando o texto com o original) Nenhum erro! JORGE – Fico feliz. AMÉRICO – Eu também! Fernando Pessoa. Conhece? JORGE – Não. AMÉRICO – Ótimo. (estendendo-lhe a mão) Contratado. JORGE – (também cumprimentando-o, levantandose) Quando começo? AMÉRICO – Amanhã às oito está bom? JORGE – Às oito em ponto estarei aqui. AMÉRICO – Ótimo. Voltam para a sala. Américo toca o sino. Amália entra. AMÉRICO – Dona Amália, acompanhe o seu Jorge até a porta. Ah! Seu Jorge... (entregando-lhe a boina que ele havia esquecido, cumprimentando-o novamente) Foi um prazer conhecê-lo. JORGE – (também cumprimentando-o) O prazer foi todo meu. Amália sai na frente, incomodada. Pessoa segue-a. No caminho, faz um gesto curioso com os dedos, meio pitoresco, para Américo, que retribui igualmente pitoresco. Sai. Américo vai até o escritório, feliz da vida. Amália retorna. Escurece na sala. Estanca à entrada do escritório. Américo estranha-a. AMÉRICO – Que foi, dona Amália? AMÁLIA – Nada. AMÉRICO – Então por que essa cara? AMÁLIA – O senhor não achou esse homem meio esquisito, seu Américo? AMÉRICO – Engraçado, talvez. Por quê? AMÁLIA – É que, quando ele entrou, eu senti uma coisa estranha. AMÉRICO – Boa ou ruim? AMÁLIA – Não sei. Boa. Mas estranha. Esquece, seu Américo, é bobagem minha. AMÉRICO – Vou esquecer mesmo, que ultimamente a senhora anda muito enigmática! AMÁLIA – O senhor ficou feliz? AMÉRICO – E não é para estar? Finalmente sou um homem livre! Bem, agora vou tomar um banho. Ah! Se a senhora quiser, pode ler o poema que ele datilografou. Está aí. Assim a senhora vai conhecendo Fernando Pessoa. Américo sai. Amália aproxima-se da mesa. Pega a folha em que Jorge há pouco datilografara o poema para o teste. Lê. Parece que não gosta muito. Sai. Escurece. CENA 4 Clareia na sala de Pessoa. Noite do mesmo dia. Henriqueta está sentada, apreensiva, com uma revista à mão. Pessoa entra, animado. Está novamente vestido como ele mesmo, sem nenhum detalhe que denuncie seu disfarce anterior. PESSOA – Boa noite. (Henriqueta não responde) Eu disse boa noite, Teca. HENRIQUETA – Péssima noite. PESSOA – Por quê? HENRIQUETA – (mostrando a revista) O que significa isto? Pessoa, sem tirar a revista de Henriqueta, a lê por cima. HENRIQUETA – Este José Américo é aquele do anúncio? PESSOA – Ele mesmo. HENRIQUETA – Você foi lá? PESSOA – Acabei de chegar. Queria te contar como foi, mas pelo que estou vendo… HENRIQUETA – Você vai trabalhar para esse homem? PESSOA – Vou, Teca. HENRIQUETA – E ele deixou? Aqui está dizendo que ele está preparando uma conferência sobre a sua obra, que ele te considera um mestre. Esse homem deixou que você trabalhasse para ele como datilógrafo? (Pessoa não sabe o que dizer) Fala alguma coisa, Fernando! Será que o mundo virou de pernas para o ar e ninguém me avisou?! PESSOA – Não, Teca. Se alguém virou de pernas para o ar, esse alguém fui eu. HENRIQUETA – Por quê? PESSOA – José Américo não sabe que eu sou eu. HENRIQUETA – Como? PESSOA – Fui disfarçado. HENRIQUETA – Disfarçado de quê?! PESSOA – De Jorge Madeira. Jorge, em homenagem a meu irmão. E Madeira… Ah! Você sabe. HENRIQUETA – Você está brincando? PESSOA – Não. Ou melhor: estou. HENRIQUETA – Você fez isso, Fernando? Mas para quê? PESSOA – Exatamente, Teca: para brincar. De repente me deu um impulso enorme de brincar, correr riscos novos… HENRIQUETA – Tem certeza de que você está bem? (um silêncio) A não ser que você esteja querendo se vingar de alguma coisa. PESSOA – Você acha que eu seria capaz? HENRIQUETA – Sim, agora tudo é possível. Esse crítico te fez alguma coisa? Falou mal de algum texto seu? PESSOA – Que bobagem. Ele só fala bem de mim, não leu? É a primeira conferência sobre a minha obra. HENRIQUETA – E você não está agradecido? PESSOA – Claro que estou. HENRIQUETA – Não parece. Brincar com uma coisa dessas… Afinal, o que você está querendo, Fernando? PESSOA – Não sei. HENRIQUETA – Além de tudo, você está doente. Onde está querendo chegar desse jeito? PESSOA – Quem falou que estou doente? HENRIQUETA – Você sabe! PESSOA – Eu não sei de nada, Teca. Você é quem sabe de tudo. Um silêncio. HENRIQUETA – Quando é que você vai tomar jeito, hein, Fernando? Por que você não arruma um emprego normal, como qualquer um? Por que não se casa, como todo mundo? Por que não tem filhos? Eu estou louca para ter sobrinhos. É assim que você vai acabar os seus dias? Bebendo? Escrevendo? Sozinho, Fernando? Um silêncio. PESSOA – (referindo-se à revista) Posso ler? Henriqueta entrega-a, contrariada. Pessoa agora lê com mais atenção. PESSOA – Não é possível. A revista Presença vai apoiar a conferência e publicar o texto do José Américo. HENRIQUETA – Qual o problema? PESSOA – O problema é que o Afonso é o diretor da Presença. HENRIQUETA – Afonso não é teu conhecido? PESSOA – Justamente, Teca. Escurece. CENA 5 Barulho de gráfica. Manhã do dia seguinte. Clareia na redação da revista literária Presença, onde Pessoa – o poeta de fato – publicou seus últimos poemas. Miguel está sentado, datilografando. Afonso entra. O barulho da gráfica vai diminuindo. AFONSO – Como está indo, Miguel? MIGUEL – Bem, seu Afonso. AFONSO – Posso dar uma lida? MIGUEL – Eu ainda não terminei. AFONSO – Não tem problema, é só para ter uma idéia. Miguel entrega-lhe algumas folhas. Afonso as lê. O jovem está apreensivo. AFONSO – Acho que você podia encurtar um pouco. Mas no geral está bom. MIGUEL – Eu vou fazer outra versão. O senhor nem imagina o que eu rasguei de papel. AFONSO – É assim mesmo. Em jornalismo, quem quer chegar a algum lugar tem de rasgar muito papel. Um silêncio. MIGUEL – Seu Afonso, o senhor acha que não vai ter problema? AFONSO – Do que você está falando? MIGUEL – Do seu José Américo. AFONSO – Meu filho, trabalho é trabalho. Se você quiser, eu posso dar a sua vaga para outro. Está cheio de colega seu querendo entrar. MIGUEL – É que foi uma coincidência muito grande, seu Afonso. AFONSO – Não é coincidência, Miguel. O meio literário português é que é uma província. Cedo ou tarde, todo mundo acaba se conhecendo. MIGUEL – É que comigo ainda não tinha acontecido. AFONSO – Porque você só está começando. Mas fique tranqüilo. Se o Américo não te aceitou, é porque sentiu que seria melhor para você. MIGUEL – É, mas acho que ele não gosta de mim. Bom, mas eu nem sei por que estou pensando nisso. AFONSO – Porque você é teimoso, como todo jovem. MIGUEL – Na verdade, eu devia agradecer ao senhor por ter me dado esta oportunidade. AFONSO – Quanto a isso, não precisa se preocupar. Um silêncio. MIGUEL – E Fernando Pessoa, o senhor conheceu? AFONSO – Claro. MIGUEL – Como ele é? AFONSO – Ótimo. Por quê? MIGUEL – Ele é sério? AFONSO – Não. MIGUEL – Eu imagino ele assim. AFONSO – Pelo contrário. Você acha sério um homem que adora rolar no chão com as crianças? MIGUEL – Morro de vontade de conhecer ele. AFONSO – Não vai faltar oportunidade, Miguel. Afonso sai. Miguel volta a datilografar. Escurece. CENA 6 Clareia no escritório de Américo. Manhã do mesmo dia. Ele está trabalhando em sua mesa. Pessoa novamente entra disfarçado de Jorge. Está vestido com o mesmo terno do dia anterior. No entanto, agora parece mais disposto, juvenil. AMÉRICO – Mas é de uma pontualidade britânica! Parabéns! JORGE – Acordo cedo. AMÉRICO – Por favor, entre. Aproximam-se da mesa. Os papéis agora estão mais organizados do que antes, pelo menos em dois blocos bastante distintos. Enquanto fala, Américo refere-se a eles. AMÉRICO – Bem, seu Jorge. Aqui está uma parte significativa da minha vida. Talvez a mais importante. Sou crítico literário. Professor também, mas acima de tudo crítico. Por isso, peço-lhe que tome o máximo de cuidado com todo este material. JORGE – Não se preocupe, senhor José Américo. AMÉRICO – Tudo isto diz respeito à vida e à obra do poeta Fernando Pessoa, de quem, conforme o senhor me disse ontem, nunca ouviu falar, não é mesmo? JORGE – Não, realmente. Aliás, eu não gosto muito de poesia. Um silêncio. AMÉRICO – Nunca leu os grandes poetas portugue ses? Camões, Cesário, Pessanha? JORGE – Não. AMÉRICO – Nem teu conterrâneo Federico García Lorca? JORGE – Quem? AMÉRICO – Não gosta de ler em geral, é isso? JORGE – Jornais, um pouco. AMÉRICO – E como consegue viver assim? Não lhe faz falta a literatura? JORGE – Creio que não. AMÉRICO – Bem, de qualquer maneira o senhor me parece uma pessoa bastante vivida. JORGE – Isso lá é verdade. A vida tem me ensinado muitas coisas. AMÉRICO – Alberto Caeiro é quem iria gostar de ouvir o senhor dizer isso. JORGE – Quem? AMÉRICO – Ah! Desculpe, seu Jorge. Caeiro é um heterônimo de Pessoa. JORGE – (separando as sílabas) He-te-rô-ni-mo? É latim? AMÉRICO – Não. É uma personalidade literária. É quando o autor se divide em outros “eus” para realizar sua obra. JORGE – Ah! Entendo. E esse Caeiro, como é? Enquanto Américo explica as principais características de Caeiro, surge a imagem do heterônimo na imaginação de Pessoa, mas concretamente no escritório, que só o poeta vê. Rapidamente, no tempo da fala seguinte, ele o faz desaparecer com um aceno. AMÉRICO – É o meu preferido. O contemplativo, solitário... O mais sábio de todos. JORGE – Tem outros? AMÉRICO – Ah! Muitos. Álvaro de Campos e Ricardo Reis são os mais importantes. JORGE – Curioso, esse poeta. AMÉRICO – Eu vou lhe apresentar Fernando Pessoa. Não é porque não gosta de ler que não vai gostar dele. Pessoa escreve de um jeito simples, o senhor vai ver. (um silêncio) Bem, seu Jorge, daqui a cinco dias eu vou fazer uma conferência sobre Fernando Pessoa. Aqui, nestes dois blocos, está o resultado de seis anos de pesquisas. (referindo-se a um bloco) Aqui está o texto da conferência. (referindo-se ao outro) E aqui, todos os poemas que eu consegui reunir até hoje. Quero que datilografe, além do texto da conferência, cada poema numa folha. Por favor, isso é muito importante. JORGE – Perfeitamente, seu Américo. AMÉRICO – O senhor prestou atenção naquele poema que datilografou ontem? JORGE – Mais ou menos. AMÉRICO – Lembra do que falava? JORGE – Creio que não. AMÉRICO – (achando o poema) Ouça. (lendo um poema de Fernando Pessoa). “Quando eu me sento à janela Pelos vidros que a neve embaça Vejo a doce imagem dela Quando passa… passa… passa… Lançou-me a mágoa seu véu: Menos um ser neste mundo E mais um anjo no céu. Quando eu me sento à janela, Pelos vidros que a neve embaça Julgo ver a imagem dela Que já não passa… não passa…” AMÉRICO – Lindo, não? JORGE – (emocionado) É verdade. AMÉRICO – Este é Fernando Pessoa Ele-Mesmo. JORGE – Como assim Ele-Mesmo? AMÉRICO – É quando o poeta escreve sem o heterônimo. JORGE – Ah! Entendo. AMÉRICO – Gostou? (Pessoa constrange-se) Não, não precisa dizer. Não gostou. Mas no final o senhor vai ter uma surpresa. Eu tenho certeza de que algum poema de Pessoa vai acabar tocando-o. Preste atenção enquanto copia. Claro, desde que não atrapalhe o serviço. O senhor não vai se arrepender, seu Jorge. Para a poesia nunca é tarde. Américo sai. Pessoa fica um tempo imóvel, sem saber o que fazer. Depois, como quem estivesse cometendo algum pecado, como uma criança com medo de ser pega em flagrante, dá uma olhada, por cima, nos maços de papel. Detém-se naquele em que se encontra o texto da conferência. Fica um tempo a ler, absorto, até que diz em voz baixa: “seis anos de pesquisa…”. Nesse momento, voltam a aparecer os heterônimos. REIS – Está se sentindo bem? PESSOA – Otimamente. REIS – E o que veio fazer? PESSOA – Não foi assim quando criei vocês? Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que ainda assim se passa. O que foi agora? Estão com inveja, é? CAMPOS – De quê? PESSOA – Do meu novo personagem. CAMPOS – Desse corcundinha? Que mau gosto, poeta. (para Caeiro) Vamos embora. PESSOA – Mas o que está acontecendo? (para Caeiro) O que acontece, mestre? CAEIRO – Nem eu sei. Sinto, apenas. PESSOA – Sente o quê? CAEIRO – Não penso. Por isso, não tenho como falar. Mas tudo isso pode não passar de um sonho. Ou quem sabe agora, no final da vida, eu não passei a delirar. PESSOA – Final da vida? Mas você está morto. CAMPOS – Ou você, Pessoa? Um silêncio. CAEIRO – Gosto desse seu personagem. Ainda mais porque não escreve. PESSOA – Quando o criei, pensei em você. Mas eu quis ir mais longe, fazer um não-escritor. Eu gosto desse tipo de gente, simples. E eles também gostam muito de mim. CAEIRO – E José Américo? PESSOA – Por incrível que pareça, está me adoran do. Aliás, ele gosta muito de você, Caeiro. CAMPOS – Eu nem sei do que gosto. REIS – Só sei que nada sei. CAMPOS – Seja mais original, Reis. PESSOA – Eu estou aqui e vocês deviam me respei tar. Fui eu que criei vocês e vocês não existiriam se eu não existisse. Portanto, pensem que tenho o direito de criar quantos personagens eu quiser, da forma que eu quiser, quando eu quiser. CAEIRO – Se isso fosse apenas um personagem. PESSOA – Falando por enigmas, mestre? Logo você, sempre tão direto? CAMPOS – Será mesmo que outro poeta não nos criaria? Quanto a mim, eu não tenho essa certeza. Sinto que é bem capaz que eu povoasse a imaginação de qualquer um. Contanto que ele quisesse me receber. E tivesse talento para tanto, claro. PESSOA – Nunca como eu. Inclusive permitindo que você polemizasse contra mim em inúmeros artigos. Quem, Campos? Quem chegaria a esse ponto com você? Tem certeza de que haveria tantos outros assim? CAMPOS – Eu não disse tantos outros. PESSOA – Pense antes de falar. Vê se aprende alguma coisa com o Reis. REIS – Não exagera, poeta. CAMPOS – Eu vou lhe dizer uma coisa: eu não sei o que estou fazendo aqui. Na verdade, eu não queria. Por mim, estaria de viagem para algum lugar, num navio, ou então metido em casa, com alguém que pudesse me suportar. Chega disso tudo, Caeiro. Você enfiou na nossa cabeça uma porção de bobagens. (ironizando o estado lastimável em que ele julga que Pessoa se encontra) E olha só. Não tem motivo para tanto. REIS – Concordo. Caeiro, nosso mestre, está se transformando num covarde. CAEIRO – Está bem. Eu concordo com todos. Esquece isso, poeta. Esquece tudo. Você bem sabe o que faz. Caeiro sai. Em seguida, atônito, Campos sai. Reis parece não saber o que fazer. REIS – Adeus. PESSOA – Adeus. REIS – Não se preocupe. O importante é você. PESSOA – É, eu sei. REIS – Agora eu vou embora. (sentindo dores na barriga) Não estou me agüentando. PESSOA – Eu entendo. REIS – Mas é sempre bom ver você. Reis sai. Pessoa está perplexo, verdadeiramente atingido com o que acabara de ouvir. De repente, assim como Reis no momento anterior, também começa a sentir fortes dores na barriga. Américo volta. Surpreende-se ao ver “Pessoa-Jorge” perdido no meio do escritório, longe da mesa de trabalho. Digo “Pessoa-Jorge” porque, quando Américo entrara, Pessoa estava com a corcunda atenuada, como, aliás, ficou durante todo o tempo da conversa com os heterônimos. Porém, ao ouvir Américo, recompõe-se e volta à postura inicial de Jorge. Consegue até evitar que o patrão perceba suas dores. AMÉRICO – Seu Jorge, o que está fazendo? E o trabalho? JORGE – (dirigindo-se à mesa apressadamente) Claro, o trabalho. AMÉRICO – Olha, seu Jorge, acho que esqueci de lhe dizer, mas eu tenho muita pressa. Em uma semana, todo esse material tem de estar pronto. JORGE – Desculpe, seu Américo. Isso não vai acontecer outra vez. Américo sai. Pessoa transpira muito. Começa a datilografar. Escurece. CENA 7 Barulho de gráfica. Tarde do mesmo dia. Clareia na redação da revista Presença. Afonso e Américo conversam já há algum tempo. O barulho da gráfica vai diminuindo. AMÉRICO – Eu não sei o que teria feito sem a sua ajuda, Afonso. AFONSO – Teria feito do mesmo jeito. Quando um grande crítico encontra um grande poeta, não há o que fazer senão aplaudir. AMÉRICO – Não exagera, Afonso. Um grande poeta, sim. Pessoa realmente é o maior. AFONSO – Teu trabalho também está ótimo. A tese central me parece perfeita. AMÉRICO – Mas vai causar polêmica. AFONSO – Você tem medo? AMÉRICO – Claro que não. AFONSO – Melhor para nós, homem! Quanto mais polêmica, mais dinheiro! Miguel entra. MIGUEL – Seu Afonso, eu… (surpreso) Seu Américo? AMÉRICO – Como vai, Miguel? MIGUEL – Bem. E o senhor? Seu Afonso, eu vou dar uma saidinha para buscar aquele texto que o senhor pediu. AFONSO – Pode ir. MIGUEL – Com licença. Miguel sai. AFONSO – Ele estava morrendo de medo de te encontrar. Mas é um bom garoto. Muito inteligente. Está escrevendo um texto para a edição especial sobre Pessoa. (pegando uma folha entre os papéis da mesa) Descreve os heterônimos como a máxima aspiração do poeta. (Américo toma a folha das mãos de Afonso para ler) Diz que foi a forma que Pessoa encontrou de, não cabendo em si de tanto ser, ser ele mesmo. Não é brilhante? AMÉRICO – (devolvendo-lhe a folha, incomodado) Interessante, Afonso, mas muito abstrato. Ninguém me tira da cabeça a idéia de que a origem de tudo está na infância de Pessoa. A morte prematura do pai, a ausência da mãe… AFONSO – Está aí uma coisa em que ele não pensou. Posso sugerir que consulte teu material? AMÉRICO – Claro. Um silêncio. AFONSO – Américo... Tive uma idéia. Estou pensando em chamar Pessoa para a conferência. AMÉRICO – Você ficou louco?! AFONSO – Por quê? AMÉRICO – Se eu vir Pessoa lá, não vou conseguir falar. Não, Afonso, se ele for, prefiro não saber! AFONSO – Não exagera, Américo. AMÉRICO – Não, Afonso, por favor! Escurece. CENA 8 Clareia no escritório de Américo. Tarde do mes mo dia. Pessoa continua datilografando. Amália entra. AMÁLIA – Seu Jorge? JORGE – (deixando de datilografar) Olá. AMÁLIA – O senhor não vai comer nada? JORGE – Não, obrigado. AMÁLIA – O seu Américo não falou, mas o senhor pode comer. JORGE – É que eu estou mesmo sem fome, dona Amália. Amália começa a sair. JORGE – Interessante este trabalho, não? AMÁLIA – Está gostando? JORGE – Parece muito bom. AMÁLIA – Fernando Pessoa. Agora seu Américo não fala em outra coisa aqui em casa. JORGE – A senhora conhecia os poemas dele? AMÁLIA – Não. E o senhor? JORGE – Eu leio muito pouco, dona Amália. Poesia, então, nem se fale. AMÁLIA – Eu também não leio muito não, mas gosto. Quando eu era pequena, lia bastante. Toda semana minha mãe levava para casa um livro diferente. Mas hoje em dia eu não tenho mais tempo para essas coisas. JORGE – Seu Américo não, né? Seu Américo é um intelectual. AMÁLIA – É… Seu Américo é muito inteligente. Mas eu tenho muita pena dele. Ele fica o tempo inteiro trancado. Tem dia até que ele não vê a luz do sol, seu Jorge. JORGE – É... Esse pessoal que lida com arte é tudo meio estranho. AMÁLIA – O senhor pensa assim? JORGE – Ah! Definitivamente. Eu não daria para esse tipo de vida. AMÁLIA – Eu também penso como o senhor. Esse pessoal não sabe como viver. Vai ver que é por isso que me aflige tanto a vida do seu Américo. Às vezes vêm uns amigos dele aqui em casa e eles ficam conversando a noite toda… sobre cada assunto estranho… Às vezes eles brigam de um jeito… Dali a pouco está todo mundo rindo, como se nada tivesse acontecido. Voltam as dores de Pessoa, agora mais agudas do que antes. Ele tosse. AMÁLIA – O senhor está se sentindo bem? JORGE – Não é nada. AMÁLIA – Não quer tomar alguma coisa? JORGE – Não, obrigado. Nada sério. Pessoa aos poucos parece melhorar. Amália volta ao tom anterior. AMÁLIA – Quer ver só? Aquele poema que o senhor datilografou ontem. O senhor leu? JORGE – Li, deve estar por aqui. AMÁLIA – Eu vou ser franca com o senhor. Eu não gostei nada nada daquele poema. Para mim, Camões, com aquela linguagem difícil, é muito melhor. A gente entende. JORGE – Posso confessar uma coisa? AMÁLIA – Claro. JORGE – Eu também não gostei nada nada daquele poema. AMÁLIA – Mas não será porque o senhor está escrevendo depressa e daí não deu para prestar atenção? JORGE – Não, alguns eu até parei para ler. AMÁLIA – Cuidado, seu Américo pode não gostar. JORGE – Mas foi ele mesmo quem me autorizou! AMÁLIA – Ele? Ele disse que queria (imitando seu Américo) “alguém mais braçal para o trabalho”. JORGE – Para mim ele disse (também imitando o patrão) “pode ler à vontade”. AMÁLIA – É engraçado. JORGE – Só que não adiantou muita coisa. AMÁLIA – É chato, não é? JORGE – Muito. AMÁLIA – Ai, meu Deus, eu nem acredito que o senhor está dizendo isso. Estou até me sentindo culpada. Seu Américo eu conheço há quinze anos, e o senhor eu só conheci ontem. JORGE – Ah! Essas coisas acontecem, dona Amália. Às vezes a gente encontra uma… AMÁLIA – (cortando-o) É… Mas para falar a verdade, ontem eu achei o senhor meio estranho. JORGE – É? E hoje? AMÁLIA – Hoje já mudou um pouco. Mas só um pouco. Amália começa a sair. JORGE – Aonde a senhora vai? AMÁLIA – Tenho de arrumar a casa, que a cozinha está uma bagunça só. JORGE – Posso lhe dar um presente? AMÁLIA – Para mim? (voltando) Depende. Pessoa pega uma folha em branco e uma caneta. Amália aproxima-se ainda mais. Ele escreve de improviso um texto e entrega-o para Amália, que o lê em silêncio. AMÁLIA – Ah! Então o senhor também escreve. JORGE – Só de vez em quando. Amália continua a ler, sorrindo satisfeita. JORGE – Gostou? AMÁLIA – O pior é que gostei. O senhor fez agora? (ele confirma com a cabeça) Bonito. JORGE – Pode ficar. AMÁLIA – (devolvendo-lhe a folha) Não, obrigada. JORGE – Não quer? AMÁLIA – (sem jeito, ainda negando) Não, não posso. Então Pessoa, contrariado, pega a folha. Amália sai enquanto ele lê o texto, desiludido. Depois deixa-o na mesa, descuidadamente, e volta a datilografar, infeliz, como para esquecer o que se passou. Pessoa debruça-se sobre a máquina. Penumbra. Após alguns segundos, clareia novamente. Estamos ainda no escritório, com o poeta dormindo sentado. Amália entra trazendo Américo, ambos bastante preocupados com a situação. AMÉRICO – (tocando-o para acordá-lo) Seu Jorge? Que está fazendo, criatura?! JORGE – (acordando, sem entender onde está) Trabalhando. AMÉRICO – Mas precisa tanto? JORGE – Eu dormi? AMÁLIA – Eu falei para ele comer alguma coisa, mas ele não quis. JORGE – Eu não queria atrapalhar, seu Américo. AMÉRICO – Mas é o mínimo que eu posso fazer. Afinal, o senhor está trabalhando para mim, não é? Dona Amália, vá buscar café com torradas. AMÁLIA – Sim, senhor. Amália sai. JORGE – Eu estou aqui desde a hora em que o senhor saiu. AMÉRICO – É, eu sei. JORGE – Deu para adiantar muita coisa. AMÉRICO – Mas a culpa foi minha, não é? Eu é que não combinei direito. (tirando da gaveta um termo de compromisso) Seu Jorge, veja o que o senhor acha desta proposta. É mais do que combinamos. JORGE – (pegando a folha e mal lendo-a) Está bom, está muito bom. AMÉRICO – Ora, mas o senhor nem olhou direito. JORGE – Não é pelo dinheiro que eu estou aqui, seu Américo. AMÉRICO – Ah! Não? É pelo que, então? JORGE – Pelo trabalho em si. AMÉRICO – É, mas não precisa mais dormir em cima da máquina. JORGE – Eu exagerei um pouco, o senhor tem razão. AMÉRICO – E pode aceitar a comida da dona Amá lia, que é uma delícia. JORGE – Eu fui orgulhoso. Um silêncio. AMÉRICO – Seu Jorge, eu tenho uma outra propos ta para o senhor. Nós temos aqui em casa um quarto sobrando. Se quiser, pode dormir nele. JORGE – Aqui? AMÉRICO – Sim, já que gosta tanto de trabalhar. E se acabar antes do prazo, posso lhe pagar um pouco mais. JORGE – Posso pensar até amanhã? AMÉRICO – Claro. Amália entra trazendo uma bandeja com café e torradas. Clareia na sala. Américo vai até lá. AMÉRICO – Por aqui, dona Amália. (Amália acompanha o patrão, colocando a bandeja sobre a mesa da sala; Américo puxa uma cadeira para Pessoa sentar) Venha, Jorge. Pessoa levanta-se e aproxima-se da mesa da sala. Américo faz um sinal para ele sentar. JORGE – Eu não mereço, seu Américo. AMÉRICO – Como não merece? Agora pode ir, dona Amália. Sai Amália. AMÉRICO – (para Pessoa, que não toca na comida) Vamos, homem, coma. O senhor está ficando amarelo. Finalmente Pessoa senta-se e começa a comer timidamente. AMÉRICO – Enquanto isso, posso dar uma olhada no trabalho feito? JORGE – Claro. Américo vai até a mesa do escritório, guarda o termo de compromisso na gaveta e começa a ler as folhas datilografadas com olhar de aprovação. Encontra o texto que Pessoa há pouco escrevera para Amália. Suspende-o no ar, com certa ironia, e lê em voz alta uma quadra de Fernando Pessoa. AMÉRICO – “Ó pastora, ó pastorinha, Que tens ovelhas e riso, Teu riso ecoa no vale E nada mais é preciso.” AMÉRICO – Seu Jorge... Quem escreveu isto? JORGE – (temeroso) Eu. AMÉRICO – Quer dizer então que é poeta? JORGE – Imagine, seu Américo. Só de vez em quando eu escrevo umas coisinhas. AMÉRICO – Compreende-se. (referindo-se à mesa cheia de textos, deixando o poema de lado, aproximando-se de Pessoa; escurece no escritório) Cerca do de tanta genialidade, é natural que sentisse vontade de escrever. Comigo também já aconteceu. Mas eu logo vi que não levava jeito para a coisa. JORGE – E o que o senhor achou? AMÉRICO – Do quê? JORGE – Do poema. O senhor, como crítico conceituado que é… AMÉRICO – Bem, em primeiro lugar isso não é um poema. É uma quadra. JORGE – Quadra? AMÉRICO – Uma estrofe de quatro versos. Eu achei simplista demais. JORGE – Em que sentido? AMÉRICO – Em todos. Em primeiro lugar, tematicamente, é muito ingênua. Estilisticamente, as imagens são muito pobres. A questão do ritmo está bastante comprometida. Mas também, vamos querer o quê? O senhor não é poeta, não tem obrigação de saber essas coisas, não é? Ah! Jorge, Jorge, eu estou muito feliz por tê-lo aqui comigo. Há muito tempo que eu não trabalhava com alguém tão… tão… Ah! Seu Jorge… o senhor não precisa ser poeta para ser especial. O senhor já é especial por si mesmo, compreende? JORGE – Claro, seu Américo. É bobagem minha esse negócio de escrever. AMÉRICO – Ótimo. Bem, agora eu vou dormir que hoje o dia foi muito cansativo. JORGE – Eu também já vou indo. AMÉRICO – Não, não. Termine e vá. E pode deixar a porta aberta que depois eu peço à dona Amália para fechar. Ah! Seu Jorge! Pense com carinho na proposta de pousar aqui no trabalho. JORGE – Pensarei. AMÉRICO – Até amanhã. JORGE – Até amanhã, seu Américo. Américo sai. Pessoa dá visíveis sinais de perturbação, tanto física, por conta das dores que voltam a incomodá-lo, como psicológica, por tudo que acabara de ouvir. Sai. CENA 9 Clareia na sala de Pessoa. Noite do mesmo dia. Caeiro está sentado no baú, esperando seu criador. Pessoa entra. Novamente, como costuma fazer em sua casa, está vestido como ele mesmo. CAEIRO – O que te deu na cabeça? PESSOA – Não sei. Eu não imaginava que o homem pudesse chegar a esse ponto. Não reconhecer um poema meu. CAEIRO – Não me surpreende. PESSOA – A mim surpreendeu. CAEIRO – Não era o que você procurava? PESSOA – Se fosse, acha que eu iria? CAEIRO – Acho. PESSOA – Às vezes eu não te entendo, Caeiro. Ul timamente, então, nem se fale. CAEIRO – E para que você quer que ele reconheça um poema seu? PESSOA – Não sei. CAEIRO – (recitando um poema seu) “Passou a diligência pela estrada, e foi-se; E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia. Assim é a ação humana pelo mundo afora. Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos; E o sol é sempre pontual todos os dias.” PESSOA – Foi você quem escreveu? CAEIRO – Você sabe. PESSOA – Mas parece que não entendeu. CAEIRO – É melhor acabar com isso. PESSOA – Alguma coisa me diz que eu preciso continuar. CAEIRO – E não há outra que diga para você parar? PESSOA – Nenhuma. CAEIRO – Nada te diz que esse caminho não vai te levar a lugar algum? PESSOA – Nada. CAEIRO – Ou melhor: que vai te levar ao fim. PESSOA – Caeiro, vá embora. É você que é criação minha, não o contrário. Obrigado pelos conselhos, mas eu não preciso. Onde já se viu… Fim… CAEIRO – Eu só tentei te alertar. PESSOA – Eu estou me divertindo! Isso é uma brincadeira! CAEIRO – Você sabe que isso não é só uma brincadeira. PESSOA – Eu quero que seja assim e assim será! CAEIRO – Muito bem. Aqui me despeço. Nunca mais me verá. PESSOA – Por que tanto exagero? CAEIRO – Adeus. Caeiro sai. CENA 10 Ainda na sala, toca o telefone. Pessoa, atormentado, atende. PESSOA – Pronto? Clareia na redação da revista Presença. Afonso ao telefone. AFONSO – Boa noite. Fernando Pessoa está? PESSOA – Quem queria falar com ele? AFONSO – Diga que é Afonso da revista Presença. PESSOA – Pode falar, Afonso. AFONSO – Pessoa? Há quanto tempo! PESSOA – Que anda aprontando? AFONSO – Por quê? PESSOA – Apoiando a conferência do José Américo? AFONSO – O que você esperava? Você merece! PESSOA – Não exagera. AFONSO – Tem acompanhado o trabalho do Amé rico? PESSOA – Pouco. AFONSO – E que te parece? PESSOA – Para falar a verdade, não tenho uma idéia clara do que ele pensa sobre mim. AFONSO – Pois vai tomar um susto! Américo con seguiu reunir quase tudo que você publicou e mais uma porção de coisas a seu respeito. PESSOA – Diga a ele que sou muito grato. AFONSO – A propósito, tenho um convite a fazer. Quero que você vá à conferência. PESSOA – Está brincando! AFONSO – Não, não estou não. Acho que já é hora de vocês se conhecerem. Não é possível que dois gigantes permaneçam estranhos um ao outro por tanto tempo. PESSOA – Mas que constrangimento, Afonso! O homem vai falar sobre a minha obra e eu vou estar lá? O que vai parecer? Que estou vigiando, lógico! AFONSO – Não, não é nada disso! Olha, eu já sei como fazer. Quando tudo estiver terminando, lá pelas tantas, você chega e senta. Depois eu te apresento a ele. Se tiver jornalista, a gente foge de todos. Eu te apresento a ele, vocês conversam e pronto. PESSOA – Para que tudo isso? AFONSO – Vai ser bom para você, para a divulgação da tua obra. PESSOA – Você considera obra um livro? AFONSO – Justamente daí poderão vir outros. Pessoa, é um crime você continuar ignorado! (um silêncio) Promete pensar? (um silêncio) Perdeu a voz? PESSOA – Estou pensando, Afonso. Já estou pensando. De repente me ocorreu… (Henriqueta, entrando por trás de Pessoa, escuta a conversa sem ser notada) E se o Américo não simpatizar comigo? Às vezes o crítico gosta da obra e abomina o autor. AFONSO – Pode alguém não simpatizar com você? PESSOA – Tudo bem. AFONSO – Vai? PESSOA – Vamos ver. AFONSO – Mais para sim ou mais para não? PESSOA – No meio. AFONSO – Mas se tivesse de escolher… PESSOA – (após hesitar um pouco) Mais para sim. (Henriqueta sai, preocupada) AFONSO – Ótimo! Vai ser um acontecimento e tanto! Quando confirmamos? PESSOA – Eu te ligo. AFONSO – Muito bem, eu aguardo. PESSOA – Boa noite, Afonso. AFONSO – Boa noite, Pessoa. E obrigado por tudo. PESSOA – Por nada. Desligam o telefone. Saem. Escurece ao mesmo tempo nos dois lugares. CENA 11 Clareia na sala de Américo. Manhã do dia seguinte. Amália entra animada, servindo o café. Américo entra, bastante preocupado. AMÉRICO – (sentando-se) Bom dia, dona Amália. AMÁLIA – Bom dia, seu Américo. Café ou chá? AMÉRICO – Tanto faz. Amália serve-o. AMÁLIA – Está tudo bem? AMÉRICO – Não. AMÁLIA – Posso ajudar? AMÉRICO – Não. Américo toma o café. AMÉRICO – Senta, dona Amália. Coma. AMÁLIA – Eu estou sem fome, seu Américo. AMÉRICO – Então senta, por favor. Amália, sem graça, senta-se. AMÉRICO – Fernando Pessoa vai à conferência. AMÁLIA – Jura? AMÉRICO – Afonso me ligou. AMÁLIA – Que bom! AMÉRICO – Eu estou com o coração na boca, dona Amália. Já pensou se ele não gostar do que escrevi? AMÁLIA – E por que não gostaria? AMÉRICO – Já disse à senhora. AMÁLIA – O senhor não tem confiança no senhor? AMÉRICO – Claro que tenho. A senhora não entende. AMÁLIA – É claro que entendo! Ouvem-se palmas. AMÉRICO – Deve ser Jorge. Amália sai e volta com Pessoa impecavelmente vestido de Jorge, trazendo consigo, desta vez, uma mala. Vem com um estado de espírito reluzente de tanta alegria. JORGE – Bom dia. AMÁLIA – Bom dia. Pode entrar. JORGE – Como vai, seu Américo? AMÉRICO – Bem. O senhor, pelo jeito, parece que está ótimo! JORGE – Vontade de trabalhar. AMÉRICO – E a mala? JORGE – Aceitei seu convite! AMÉRICO – Claro. Ótimo! Saiba que será recom pensado por isso. JORGE – Não se preocupe. AMÉRICO – Dona Amália, sirva uma xícara de chá para o seu Jorge. JORGE – Já tomei. AMÁLIA – Só um pouquinho, seu Jorge. AMÉRICO – O senhor não sabe como essa notícia me veio em boa hora. AMÁLIA – (referindo-se ao chá) Está bom? JORGE – Perfeito. AMÁLIA – E o senhor, seu Américo? AMÉRICO – Não, obrigado. Dona Amália, leve a mala para o quarto e prepare a cama para o nosso hóspede. AMÁLIA – (pegando a mala e saindo) Com licença. AMÉRICO – (erguendo a xícara no ar, fazendo um brinde para Jorge) Muito bem, seu Jorge. Que o seu trabalho, por estes dias, seja o mais veloz e o mais perfeito. JORGE – (brindando da mesma forma) O mais veloz e o mais perfeito. Clareia no escritório. Pessoa vai até lá. Senta-se e começa a trabalhar com entusiasmo renovado. Penumbra. Clareia no corredor da casa, onde Américo está com Afonso. Conversam já há algum tempo. AFONSO – E o tal? Não vai me apresentar? AMÉRICO – Você quer mesmo? AFONSO – Você disse que eu não devia perder! AMÉRICO – Bobagem minha, Afonso. Um tipo estranho, desligado de tudo. Não se interessa por nada que diga respeito ao nosso mundo literário. AFONSO – É um feliz, então. AMÉRICO – Exatamente, um feliz. AFONSO – Bem, vamos lá. AMÉRICO – Seu Jorge, venha cá um instante, por favor! Escurece no corredor e no escritório. Os três vão até a sala. Pessoa surpreende-se ao reconhecer Afonso. Aflige-se desesperadamente, com medo de também ser flagrado naquela situação. Para não ter de olhá-lo nos olhos, simula uma certa timidez. AMÉRICO – Este aqui é Afonso, diretor da revista Presença, um importante órgão de divulgação literária aqui de Lisboa. (para Afonso) Este é Jorge, meu datilógrafo. JORGE – (estendendo-lhe a mão, sempre evitando olhá-lo de frente) Muito prazer. AFONSO – (também cumprimentando-o) Prazer, Jorge. Américo já me falou de você. AMÉRICO – Eu me referi à maneira engraçada como o senhor costuma falar. AFONSO – (abraçando-o como se fossem amigos) Como está indo o trabalho? JORGE – Bem. AFONSO – Gostando dos poemas? JORGE – Muito. AFONSO – Ótimo! Jorge, você está tendo a opor tunidade de conhecer um dos maiores poetas de Portugal. JORGE – É verdade. Pessoa deixa-se ver. Perturba-se. Porém, Afonso, sem reconhecê-lo, ao contrário, tomado de certa curiosidade, o observa como se estivesse diante de um bicho raro. AFONSO – Engraçado. Sabe que você me lembra uma pessoa? AMÉRICO – Caeiro! AFONSO – Será? Não. É estranho. Você falou dos heterônimos para ele? AMÉRICO – Mais ou menos. JORGE – Bem que ele tentou. AFONSO – Caeiro é um heterônimo de Pessoa. Agradeça, Jorge. Tua sorte é não ser parecido com o outro. JORGE – Quem? AFONSO – Álvaro de Campos. JORGE – E por quê? AFONSO – É um tanto efeminado, digamos assim. JORGE – (irritado) “Tabacaria”! AMÉRICO – Muito bem! AFONSO – O senhor, gostando dos poemas, é um bom sinal. JORGE – Por quê? AFONSO – É um indicativo de que a obra do poeta é mais popular do que pensamos. AMÉRICO – Até escrevendo ele anda. JORGE – Só um pouquinho, seu Américo. AFONSO – Quer um conselho, Jorge? Leia. Ler é mais importante do que escrever. Ou melhor, permaneça assim como o senhor é, que já está muito bom. Américo, qualquer coisa me ligue. AMÉRICO – Pode deixar, Afonso. AFONSO – (cumprimentando-o) Até logo, Jorge. JORGE – (ironizando-o com um gracejo, sem cum primentá-lo) Até logo. Américo acompanha Afonso até a porta de saída. Cumprimentam-se. Pessoa está bastante incomodado com o ocorrido. Afonso sai. Américo volta e defronta-se com o poeta. Pessoa estende a mão, mostrando-lhe uma folha, que entrega ao patrão. AMÉRICO – (pegando a folha) Outro? JORGE – Eu sei que o senhor não gosta, seu Américo. Mas é só mais esse. Lê em silêncio. AMÉRICO – Quando o senhor escreveu isto? JORGE – Não me lembro, mas eu juro que não foi aqui. Clareia no escritório. Américo vai até lá, seguido por Pessoa. Escurece na sala. AMÉRICO – O senhor decididamente tem um estilo muito estranho. Em todo caso, isto não é poesia, está mais para prosa. JORGE – E tem muita diferença? AMÉRICO – Sim, evidentemente. Mas isso é o de menos. O problema maior é a idéia que está por trás deste texto. (lendo o poema “Liberdade”, de Fernando Pessoa-Ele Mesmo, com certo desprezo) “Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada Estudar é nada. O sol doira Sem literatura.” O senhor não acha muita irresponsabilidade escrever isto? JORGE – Em que sentido? AMÉRICO – Já imaginou o estrago que pode causar na cabeça de um jovem estudante? JORGE – O senhor acha isso mesmo? AMÉRICO – Seu Jorge, quando se mexe com arte, é preciso pensar em tudo. Bom, até que o texto tem um estilo. Mas se eu tivesse de definir, diria que não é bom. JORGE – Por quê? AMÉRICO – Aí é que está, isso não se explica. Não é bom, não é bom. JORGE – É, estou vendo que eu vou ter de desistir mesmo. AMÉRICO – Mas lhe passava pela cabeça a idéia de tornar-se poeta? Não me disse isso quando se apresentou. JORGE – Teria sido um problema? AMÉRICO – Eu creio que sim. Olha, seu Jorge, não me interessa ter ao meu lado certo tipo de gente metida a intelectual. Não estou dizendo que é o seu caso, mas eu penso assim cada vez mais. JORGE – Mas isso não é o contrário do que o senhor disse sobre o jovem estudante que vai ler o meu poema? AMÉRICO – Por quê? São duas coisas completamente distintas. Uma é a arte, a outra é a vida. JORGE – E o senhor separa as duas? AMÉRICO – Evidentemente. JORGE – Ah! Agora entendi. Um silêncio. AMÉRICO – Os grandes poetas já nascem feitos, seu Jorge. Veja o caso do próprio Pessoa. Aos vinte anos já era o gênio que é hoje, aos quarenta e sete. Olha, seu Jorge… Eu estou ficando preocupado. Será que a proximidade de Pessoa está deixando-o assim? JORGE – Eu já estava assim na semana passada, seu Américo. E no mês passado, que eu me lembre. Acho que eu sempre fui assim. Às vezes escrevo feito um louco, depois eu paro. Não se preocupe, a culpa não é do senhor. AMÉRICO – Vamos fazer o seguinte: esqueça Fernando Pessoa. JORGE – Como assim? AMÉRICO – Esqueça o poeta. Não leia mais os poemas tentando prestar atenção. Quem sabe assim o senhor volta a trabalhar normalmente. A culpa foi minha, eu é que não devia tê-lo estimulado. Só não vale escrever escondido. JORGE – Está certo, seu Américo. Américo sai. Pessoa não consegue mais trabalhar. Com ânsia de vômito, sai. Escurece. CENA 12 Clareia no escritório de Américo. Madrugada do dia seguinte. Amália, preocupada com os últimos acontecimentos, reza com um terço na mão. Espera o patrão. Ele entra. AMÉRICO – Dona Amália! Acordada a esta hora? AMÁLIA – Seu Jorge não passou bem, seu Américo. AMÉRICO – Como? AMÁLIA – Ele teve uma dor forte no peito. Eu falei para ir ao médico, mas ele não quis. AMÉRICO – Ele trabalhou muito? AMÁLIA – O dia inteiro. AMÉRICO – Então vai ver foi isso. AMÁLIA – Não sei não. AMÉRICO – Onde ele está agora? AMÁLIA – No quarto, dormindo. AMÉRICO – A senhora acha que eu devo ir lá? AMÁLIA – Não precisa. Eu deixei o sininho com ele. Qualquer coisa, ele chama. Que bom que o senhor chegou. Américo aproxima-se da mesa e observa os papéis. AMÉRICO – Nossa, ele já fez quase tudo. Olha, dona Amália, se amanhã ele voltar a passar mal, a gente dispensa e manda se cuidar. É melhor. AMÁLIA – E o trabalho? AMÉRICO – Bom, se precisar, eu mesmo termino. Falta pouco. E depois, ele anda muito estranho. AMÁLIA – Como assim? AMÉRICO – Não sei. Eu só sei que a senhora tinha razão. Ele é muito estranho mesmo. Bem, agora eu vou dormir. Boa noite, dona Amália. AMÁLIA – Boa noite, seu Américo. Américo sai. Amália reza mais. Escurece. Clareia sobre o quarto de Pessoa. Madrugada do mesmo dia. Ele está deitado, recuperando-se das dores. Reis e Campos estão à cabeceira da cama. Conversam já há algum tempo. PESSOA – Esse sujeito é engraçado, não acham? REIS – O que você quer dele? Não está claro que ele jamais vai te compreender? PESSOA – Quem falou que busco compreensão? REIS – Então quer o quê? PESSOA – Nada. CAMPOS – Se quer compreensão, só eu posso te dar. PESSOA – (ironizando) Hum… CAMPOS – Reis, ele não quer me escutar. REIS – Nem a mim. Não é, poeta? Você não ouve mais ninguém. PESSOA – Eu sempre tive a nostalgia de um amigo. CAMPOS – E acha que ele seria seu amigo? PESSOA – Está difícil. CAMPOS – Claro! Nós somos teus únicos amigos! PESSOA – Então por que não me deixam em paz? Por que não deixam Jorge em paz? Ou será que agora a situação piorou? REIS – Como assim? PESSOA – Sim, agora ele escreve. Um concorrente a mais. CAMPOS – Chega, Reis. PESSOA – Vá e pense nas coisas absurdas que tem me dito. CAMPOS – Eu não vou pensar em nada. Eu penso só no que quero. PESSOA – Então pára de se intrometer na minha vida. Campos sai. PESSOA – E você também, vá embora antes que… REIS – (cortando-o com um poema seu) “Ninguém, na vasta selva virgem Do mundo inumerável, finalmente Vê o Deus que conhece. Só o que a brisa traz se ouve na brisa. O que pensamos, seja amor ou deuses, Passa, porque passamos.” PESSOA – Você me cansa, Reis. Esse teu ar cético me cansa. Esse teu semblante prepotente me arrebenta as entranhas. Que tal desaparecer da minha frente? REIS – Deixe-me examiná-lo. PESSOA – Não. REIS – Você está doente. PESSOA – Eu nunca me senti melhor em minha vida, compreendeu? REIS – Você voltou a beber. Reis tenta examiná-lo à força. Pessoa começa a gritar “não, não”. Debate-se e resiste com todo o corpo, evitando ser tocado pelo heterônimo. Amália entra correndo. AMÁLIA – Calma, seu Jorge. JORGE – Onde estou? AMÁLIA – Na casa do seu Américo. JORGE – E a senhora? AMÁLIA – Eu sou Amália, não lembra de mim? JORGE – Claro que lembro, dona Amália. Ah! Que sonho horrível. AMÁLIA – O senhor gritou muito. Tomara que seu Américo não tenha acordado. JORGE – Também desejo o mesmo. AMÁLIA – Que aconteceu? JORGE – Eu sonhei que… Nada. AMÁLIA – Conte. JORGE – Acho que a senhora não entenderia. Pessoa olha para Reis, que se levanta. Quase se to- cam com as mãos. Parece uma despedida. Amália, estranhando a atitude de Pessoa, que simplesmente não pode compreender, por não enxergar Reis, não sabe o que fazer. Está atônita. Reis sai. JORGE – Estou muito triste, dona Amália. AMÁLIA – Por quê? JORGE – Ontem eu mostrei um poema meu para o seu Américo e ele não gostou. Mas desta vez era um poema mesmo, não era uma quadra como o primeiro. E mesmo assim ele não gostou. Olha, dona Amália, não é que eu queira me comparar a Fernando Pessoa, mas tem um poema dele, que eu li, e o meu não fica nada a dever. AMÁLIA – Mas o seu Américo entende das coisas. JORGE – A senhora gostou daquela quadra. AMÁLIA – Mas a minha opinião não conta. JORGE – Conta sim. AMÁLIA – Eu não entendo nada de poesia. JORGE – Se a senhora visse o jeito que ele me falou. AMÁLIA – Vai ver ele não quis gostar. Vai ver ele não quis entusiasmá-lo com medo de o senhor não fazer direito o trabalho. Mas isso não significa que o senhor não leve jeito para a coisa. JORGE – Ele disse isso? AMÁLIA – Não, ele não disse. Mas pode ser. JORGE – A senhora é bastante otimista. (um silêncio) Quer ler o poema? (Amália hesita) Por favor. AMÁLIA – Só se for rápido. JORGE – Abra aquela mala. Está logo em cima. Amália vai até a mala. Abre-a e pega um papel. AMÁLIA – Este? JORGE – Agora faz uma gentileza? Leia em voz alta. AMÁLIA – Se o seu Américo acordar, ele me mata! JORGE – Vai acordar nada! AMÁLIA – “Liberdade”? JORGE – Isso. AMÁLIA – (lendo o mesmo poema “Liberdade”, agora um pouco mais completo) “Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada Estudar é nada. O sol doira Sem literatura. O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como tem tempo não tem pressa…” Amália, emocionada, lê o resto em silêncio. JORGE – Gostou? AMÁLIA – Nossa… JORGE – Muito ou pouco? AMÁLIA – É lindo. JORGE – E esse? AMÁLIA – Que tem? JORGE – Aceita uma cópia? AMÁLIA – Deste aceito. JORGE – Posso passar a limpo depois? AMÁLIA – Claro. Amália devolve o poema para Pessoa. AMÁLIA – O senhor está se sentindo melhor? JORGE – Muito melhor. Um silêncio. AMÁLIA – Sabe que o senhor me fez lembrar uma coisa que eu tinha esquecido há muito tempo? Quando eu era pequena, minha mãe me contava histórias antes de eu dormir. Foi assim que eu tomei gosto por leituras. Isso que lhe aconteceu hoje me lembrou muito uma dessas histórias. (mostrando-se arrepiada) Olha aí, eu até me emociono. JORGE – Mas o que foi que me aconteceu? AMÁLIA – O sonho. O senhor acordar gritando daquele jeito: “não, não”… Era assim na história também. Era um homem que sonhava com coisas estranhas. JORGE – E com o que ele sonhava? AMÁLIA – Com várias coisas. Mas eu não vou dizer não. Se o senhor não contar o seu, eu não conto o dele. Assim a gente fica sem saber se eles eram os mesmos. JORGE – Quem? Os homens? AMÁLIA – Não, os sonhos. Riem, descontraídos. JORGE – Já que a senhora está falando em histórias… Me conte uma. AMÁLIA – Para um homem feito como o senhor? JORGE – Ah! Se não for assim, eu não vou conseguir dormir. E amanhã eu trabalho duro, não vou conseguir… Amália procura se preparar para a tarefa. AMÁLIA – Era uma vez… (rindo) Eu me sinto ridícula. JORGE – Coragem, começou bem: “era uma vez”… AMÁLIA – Era uma vez um palácio muito rico em que vivia um rei que tinha um filho. Esse rei nunca deixava o palácio ficar feio e pobre por causa do filho, que ainda não conhecia a vida direito. O rei não permitia que as flores do jardim murchassem, para que o filho não conhecesse as flores murchas. Os empregados que envelheciam, o rei mandava embora, para que o menino não soubesse o que era a velhice. E assim ele cresceu, desconhecendo os males do mundo. Esse menino, seu Jorge, um dia teve um sonho muito parecido com… Seu Jorge? (notando que Pessoa adormecera) Já dormiu. Nota-se o afeto que Amália sente por Pessoa. Ela pega o poema e aproxima-se da mala para guardálo. Ao fazê-lo, porém, depara-se com o documento de Jorge, que é, em verdade, de Fernando Pessoa. Observa-o atentamente, comparando a foto com o rosto. É então que ouvimos sua voz sussurrada e perplexa pronunciar: “Fernando Antônio Nogueira Pessoa. Meu Deus...” Rapidamente guarda o documento na mala e levanta-se. Está simplesmente estarrecida com o que acabara de descobrir. Escurece. CENA 13 Clareia na sala de Américo. Manhã do mesmo dia. De saída para uma reunião de trabalho, Américo está em pé, impaciente, aguardando a chegada de Amália. Ela entra. AMÁLIA – Bom dia, seu Américo. AMÉRICO – Bom dia. Atrasada. AMÁLIA – Perdi a hora, o senhor me desculpe. AMÉRICO – Bem, tenho de sair. A senhora cuide do Jorge para mim, está bem? AMÁLIA – Sim, senhor. Américo sai. Amália está desorientada. Pessoa entra. JORGE – Bom dia, dona Amália. AMÁLIA – Bom dia. JORGE – Ontem, eu dei algum vexame? AMÁLIA – Imagine. JORGE – Não quer tomar café comigo? AMÁLIA – Eu ainda não preparei. Sentam-se. Amália, tensa, quase não olha para Pessoa. JORGE – Tem certeza de que está tudo bem? AMÁLIA – Eu não disse que está tudo bem. JORGE – Então será que… Ah! Meu Deus! A senhora estava me contando uma história e eu simplesmente dormi! AMÁLIA – Eu não estou assim por causa do senhor. JORGE – Não? AMÁLIA – Ou melhor, estou. JORGE – Está e não está. Como assim? AMÁLIA – Não estou. JORGE – Mas está. AMÁLIA – Não, não estou. Esquece que estou. Pessoa está cada vez mais intrigado. AMÁLIA – O senhor é um homem muito estranho. Devia trabalhar. Em vez disso, não. Fica escrevendo poemas e mostrando para o seu Américo. O senhor não tem medo de ser demitido? JORGE – Não é pelo dinheiro que eu estou aqui, dona Amália. AMÁLIA – É pelo que, então? JORGE – Acho que a senhora não entenderia. AMÁLIA – O senhor acha que eu não entendo nada, não é? JORGE – Eu vim por uma coisa que nem sabia ao certo qual era. Fiquei por uma outra e agora… AMÁLIA – (na expectativa) Agora? JORGE – (levantando-se) Agora eu tenho de trabalhar, dona Amália. Senão, seu Américo chega e acaba me matando. AMÁLIA – Seu Jorge… Pessoa estatela de medo do que pode ouvir e senta. AMÁLIA – O senhor acredita no amor? JORGE – Acredito. Eu é que não tenho esse sentimento há muito tempo. AMÁLIA – Mas teve um dia. JORGE – Só uma vez. Ofélia era o seu nome. AMÁLIA – E o senhor acredita que ele possa voltar? JORGE – O amor? AMÁLIA – Ele mesmo. JORGE – Acredito sim. AMÁLIA – Eu também acredito. Olham-se pela primeira vez na cena. No máximo dois segundos. JORGE – Agora preciso trabalhar mesmo, dona Amália. Clareia no escritório de Américo. Pessoa caminha até lá. Aflito, aproxima-se da mesa de trabalho. Amália permanece eufórica e pensativa na sala. CENA 14 Ainda no escritório de Américo, na seqüência. Campos entra trazendo um copo de vinho. Pessoa hesita em recebê-lo, mas cede. Brindam e bebem. Ouvem-se palmas. Amália vai até a porta. Miguel entra com um caderno na mão. Campos derrama vinho sobre os papéis de Américo. Depois começa a escrever deitado no chão. AMÁLIA – Senta, Miguel. Eu vou chamá-lo. MIGUEL – Está tudo bem, tia? AMÁLIA – Tudo bem. Amália entra no escritório e aflige-se. Continua não enxergando o heterônimo. AMÁLIA – Ai, meu Deus do céu! As coisas do seu Américo! Olha o que o senhor fez! Manchou tudo! JORGE – Tudo não. Só alguns. AMÁLIA – E agora deu para beber? JORGE – Eu sempre bebi. (mostrando um poema) Olha. Fiz outro. AMÁLIA – Não quero saber. Amália está prestes a explodir. AMÁLIA – Seu Américo falou para o senhor que vinha um moço aqui hoje? JORGE – Falou. AMÁLIA – Pois ele chegou. É meu sobrinho. Miguel, venha cá. Miguel entra no escritório. Escurece na sala. AMÁLIA – Quem vai limpar tudo isso, seu Jorge? JORGE – Pode deixar, dona Amália, pode deixar. Amália sai. JORGE – Ela está brava porque deixei cair vinho nas coisas do seu Américo. MIGUEL – Ah! Agora entendi. Pessoa tenta arrumar o estrago, recolhendo as folhas do chão. Brinca com um Campos que o estu dante também não pode enxergar. Miguel observa os textos sobre a mesa. MIGUEL – (tomando uma folha nas mãos, lendo-a) Fernando Pessoa. JORGE – (depois de recompor-se do susto de pensar ter sido descoberto) Exatamente. MIGUEL – Adoro ele. (recitando de memória um trecho do poema de Fernando Pessoa-Ele Mesmo, “Autopsicografia”) “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem…” JORGE – (cortando-o) “Autopsicrafia”. MIGUEL – (corrigindo-o) Autopsicografia. JORGE – Autopsicografia. MIGUEL – Isso mesmo. Eu tenho a maior admiração por Fernando Pessoa. Gostaria muito de conhecêlo um dia. JORGE – E por quê? MIGUEL – Ah! Ele me parece ser um homem muito especial. JORGE – Às vezes não, meu rapaz. Por trás de todo poeta pode haver um homem infeliz. MIGUEL – Mas não deixa de ser poeta por isso. JORGE – E isso é muito importante para você? MIGUEL – O quê? JORGE – A poesia acima de tudo. MIGUEL – Quem sabe se quanto mais infeliz um homem, melhor poeta ele pode ser. JORGE – E a poesia está acima da vida? MIGUEL – Eu não separo as duas. Para mim, poesia é vida! Além do mais, eu escrevo. Queria que Pessoa lesse uns poemas meus e desse uma opinião. JORGE – (tomando nas mãos o caderno de Miguel, passando os olhos por ele) E você? É feliz ou infeliz? MIGUEL – Eu? Bom, aí eu não sei. Aí eu precisaria pensar. Miguel, delicadamente, e com o consentimento de Pessoa, pega seu caderno de volta. O poeta, subitamente irritado, passa a ficar incomodado com a presença do garoto. JORGE – O que você quer mesmo? MIGUEL – Eu vim dar uma olhada no material do seu Américo. Tenho de escrever um artigo para a edição especial da revista que… JORGE – (cortando-o, impaciente, fazendo crer que voltaria a datilografar, mas logo mudando de idéia) Pode ficar à vontade, Miguel. Fique à vontade. Miguel apóia-se no outro lado da mesa e começa a analisar o material. Pessoa senta-se no chão, perto de Campos. Escrevem alguns poemas. Miguel, sem nada entender, espanta-se com o fato de Pessoa estar naquela posição. O telefone toca. Clareia na sala. Amália entra para atender. Clareia na casa de Pessoa. Henriqueta ao telefone. AMÁLIA – Boa tarde. HENRIQUETA – Boa tarde. Por favor, aí trabalha Jorge Madeira? AMÁLIA – Quem deseja? HENRIQUETA – É a irmã dele. AMÁLIA – Um instante. Seu Jorge, telefone para o senhor. JORGE – (levantando-se) Quem é? AMÁLIA – Sua irmã. Pessoa denuncia para Campos, em silêncio e com bom humor, o inusitado da situação. Entra na sala. Amália passa-lhe o telefone, mas não está disposta a afastar-se dali. Pessoa atende. A conversa é truncada pela impossibilidade de ele revelar-se. JORGE – Alô? HENRIQUETA – Fernando? JORGE – Sim. HENRIQUETA – Então você trabalha aí mesmo? JORGE – Pois é. HENRIQUETA – Como vai, Jorge Madeira? JORGE – Pois é, minha irmã. HENRIQUETA – Está se divertindo muito? JORGE – Muito. HENRIQUETA – E as dores? JORGE – Melhor. HENRIQUETA – Afonso ligou agora há pouco pro curando você. JORGE – O que ele quer? HENRIQUETA – Parece que José Américo está preci sando de material inédito para a conferência. Pessoa tem uma idéia luminosa. HENRIQUETA – Está me ouvindo? JORGE – (elevando a voz, simulando nervosismo) Ele disse isso, é? HENRIQUETA – Você não está sabendo de nada? Pessoa exagera sua reação. Amália alarma-se. HENRIQUETA – Fernando! JORGE – (exagerando cada vez mais, daqui por diante) Pois ele me paga! HENRIQUETA – Calma, não é para tanto. JORGE – Deixa só ele ver quando eu chegar aí! HENRIQUETA – Eu não vou contar a ninguém! JORGE – Ainda hoje estarei aí! HENRIQUETA – Fernando, você está bem? JORGE – Muito mal! HENRIQUETA – Eu estou preocupada! JORGE – Até à noite, minha irmã! Pessoa desliga. Henriqueta ainda insiste em dizer “alô, alô...”. Escurece sobre ela. AMÁLIA – O que aconteceu? JORGE – Problemas. Caiu o muro do quintal, os cachorros do vizinho invadiram a minha horta… (sentando-se, fatigado) Ai, dona Amália. Eu só consigo pensar em duas coisas: beber e escrever. Quer dizer, três. (dando a entender, com um olhar insistente, que é nela mesmo que pensa) Não consigo terminar o trabalho. AMÁLIA – Mas tem de terminar. JORGE – A senhora viu. Minha irmã. Eu preciso ir para casa. Ai, meu estômago. AMÁLIA – Vai ver foi o vinho. JORGE – Queima. Miguel entra na sala. MIGUEL – Terminei. JORGE – (levantando-se, tirando forças de onde não tem) Vou ver se consigo adiantar alguma coisa. (tocando-o, como se o cumprimentasse.) Foi um prazer, Miguel. MIGUEL – O prazer foi todo meu. Pessoa vai até o escritório. Senta-se. Está aturdido. Fica sem conseguir trabalhar. MIGUEL – O que ele tem? AMÁLIA – (num segundo em que parece pensar tudo) Miguel, posso confiar em você? MIGUEL – Claro, tia. AMÁLIA – Você precisa me ajudar. MIGUEL – Pode falar. Sentam-se. Penumbra. Ambos passam a conversar sem que escutemos. Ainda no escritório, Pessoa está próximo da mesa. Tem um surto de inspiração em que escreve e fala para si, em voz alta, ao mesmo tempo que Campos declama em pé, num crescendo de agonia e desespero, os versos iniciais de seu “Poema em linha reta”. CAMPOS – “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…” Campos sai. Clareia sobre Amália e Miguel. Pessoa, bastante perturbado, estava para entrar na sala, mas detém-se à porta e ouve o final da conversa de ambos. MIGUEL – Pode não ser, tia. Mas se for Fernando Pessoa mesmo… Ele deve saber o que está fazendo. AMÁLIA – Eu já tentei me conformar pensando assim. MIGUEL – E não adiantou? AMÁLIA – Não. MIGUEL – Bem... Infelizmente eu preciso ir. AMÁLIA – Promete não contar a ninguém? MIGUEL – Claro. AMÁLIA – Eu posso estar cismada à toa. MIGUEL – Obrigado por tudo, tia. AMÁLIA – Vá com Deus, meu filho. Miguel sai. Amália ameaça desesperar-se de vez. Pessoa entra na sala. JORGE – Dona Amália, que cara é essa? AMÁLIA – Esse menino, seu Jorge… fica me con tando histórias tristes de família. Desta vez, ao ser chamado de Jorge, Pessoa estatela. Olha Amália profundamente, pega duas cadeiras e faz com que sentem lado a lado. Finalmente parece estar disposto a confessar seu segredo. Amália, como já sabe do que se trata, parece intuir a mesma coisa e aguarda com angústia a revelação fatal. Porém, nesse exato instante, pouco antes que Pessoa, em gesto de devoção, toque as mãos de Amália, Américo entra. AMÉRICO – (alegre) Bom dia, amigos! (notando a excessiva proximidade de ambos; Amália levantase) Ô… ô… ô… Será que eu estou interrompendo alguma coisa? JORGE – Imagine. AMÉRICO – E o trabalho, Jorge? Terminou? JORGE – Amanhã termino. AMÉRICO – Amanhã termina? Impaciente, Américo faz rápida transição da sala para o escritório, vasculha o trabalho feito, toma uma das folhas na mão, manchada de vinho, e, irritado, atira-a sobre a mesa. Depois abre a gaveta, puxa um talão de cheques e preenche. Pega o termo de compromisso e alguns poemas que Pessoa escrevera. Retorna à sala, onde o poeta e Amália estão atônitos, ele tentando falar-lhe e ela fugindo. Escurece no escritório. AMÉRICO – O senhor está despedido. (entregandolhe o cheque e o termo, com uma caneta) Aqui está o pagamento e o termo. Por favor, assine. Pessoa, um tanto perplexo, toma os papéis na mão e começa a se abater. Mesmo assim, assina o que Américo lhe pede e devolve a caneta. AMÉRICO – Foi o senhor quem quis assim. Eu abri a minha casa como se abre para alguém da família. E tudo isso para quê? Para o senhor mentir para mim? Dizer que não gostava de poesia para depois ficar escrevendo feito um louco? Está aí, o escritório, cheio de poemas. Eu sou o que, por acaso? Um mecenas? JORGE – Não, mas… AMÉRICO – (cortando-o) Não tem nada de “mas”, nem nada. AMÁLIA – Seu Américo… AMÉRICO – E a senhora, fique quieta! (voltando a Jorge) O senhor traiu a confiança que eu lhe depositei, seu Jorge. No começo, até que trabalhava. Mas depois… E agora… Beber? Mas afinal, o que significa isto? (agressivamente mostrando as outras folhas que trazia à mão) Esses são os últimos poemas da safra? Pois deixe que eu lhe diga uma coisa, seu Jorge: o senhor não leva jeito para ser poeta. Os poemas que escreve são uma lástima. O senhor deveria arrumar algo mais interessante para fazer, em vez de ficar aí, lutando para ser uma coisa que o senhor nunca chegará a ser. Por mais que tente, seu Jorge. (jogando os poemas no chão) Por mais que tente! AMÁLIA – (num grito sufocado) Não… Pessoa sai correndo, desesperado. Amália está arrasada. AMÉRICO – Posso saber o que está acontecendo? AMÁLIA – O senhor não podia ter feito isso, seu Américo. AMÉRICO – Ah! Não? E por que, posso saber? Deixa eu descobrir alguma coisa entre vocês, dona Amália, deixa para a senhora ver o que acontece. AMÁLIA – Eu não fiz nada. AMÉRICO – Gostou do homem, não é? AMÁLIA – O senhor não sabe o que fez, seu Américo. O senhor nem imagina. Pessoa retorna, trazendo sua mala. Caminha para a saída da casa, até desaparecer por completo. Américo sai ao mesmo tempo, num gesto largo, seguido de um desabafo. AMÉRICO – Que vão todos para o inferno! Amália, entre lágrimas, pega ao acaso um dos poemas do chão, enquanto vemos Pessoa, desolado, caminhando pela rua. Clareia em frente ao rio Tejo. Pessoa vai até lá. Amália começa a ler o trecho de um poema de Álvaro de Campos, “Escrito num livro abandonado em viagem”. AMÁLIA – “... Não trago nada e não acharei nada. Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, E a saudade que sinto não é nem do passado nem do futuro. Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto: Fui, como ervas, e não me arrancaram.” Escurece na sala de Américo. CENA 15 Ainda em frente ao rio Tejo, na seqüência. Jorge agora está mais parecido ainda com Pessoa, apesar da roupa a meio caminho. Está sentado sobre sua mala. Contempla o rio. Campos entra. Aproxima-se. CAMPOS – Eu queria pedir desculpas. (sentando-se na mala) Exigi um sacrifício enorme. PESSOA – Mas eu aceitei. Não foi assim com os outros heterônimos? Até mesmo com muitos que você nem conheceu. CAMPOS – Mas eu fui egoísta, e definitivamente aquele não era o momento. PESSOA – Do que você está falando? CAMPOS – Do surto de inspiração. Você precisava terminar o trabalho. PESSOA – Você queria que eu terminasse? CAMPOS – Antes não. Mas quando eu vi o resultado… PESSOA – Que resultado? CAMPOS – A sua demissão. PESSOA – Mas não era o que você queria? CAMPOS – Antes. Mas não agora. Não depois. Agora você está aqui, sozinho, perdido, humilhado. Não te parece o suficiente? PESSOA – Não. CAMPOS – Mas para mim é. Aliás, para nós. Porque daqui por diante era o que temíamos que um dia viesse. E você não está disposto a voltar. Ao contrário. Só pensa em seguir em frente. E à frente não há nada de bom. PESSOA – Ah! Se eu pudesse voltar atrás como você diz. É claro que eu voltaria, Campos. Voltaria à casa onde nasci, no bairro do Chiado, de onde eu ouvia o badalo dos sinos e me sentia feliz. Voltaria ao Largo de São Carlos, ladeado pelo edifício da Ópera, de onde eu escutava a voz dos cantores e a música da orquestra. Voltaria àquele Tejo que eu via da varanda de casa, e que não é mais este que corre aqui diante de nós. E voltaria aos afagos de minha mãe, que nunca mais terei. Tudo isso não é mais possível, porque tudo agora não passa de um sonho. Um sonho que durou todo este tempo, que um dia se transformou em pesadelo, do qual estou querendo despertar. CAMPOS – Despertar? PESSOA – Chame como quiser. Campos olha intensamente para o rio. PESSOA – Eu procurava uma coisa. Só não a encontrei. Um silêncio. CAMPOS – O rio… passa... e leva tudo. PESSOA – (levantando-se) Ficamos eu e você. Campos também levanta-se. Abraçam-se. Ele entrega a mala para Pessoa, que pega-a e começa a andar na direção de sua casa. No percurso, trans-forma-se completamente nele mesmo. Não fosse a falta dos óculos e do chapéu, diríamos que é o próprio Pessoa que conhecemos no início da peça. Campos sai. Escurece. CENA 16 Clareia na sala de Pessoa. Tarde do mesmo dia. Henriqueta aguarda-o, aflita. Ele entra. HENRIQUETA – Fernando! PESSOA – Calma, Teca. HENRIQUETA – Onde você esteve? E essa roupa… esse cabelo… (passando a mão no rosto do irmão, carinhosamente) Acabou? PESSOA – Uma parte. Já não trabalho mais para o José Américo. HENRIQUETA – Graças a Deus! Sentam-se. PESSOA – Como você está? HENRIQUETA – Que interessa eu? O importante é você. Pessoa, exausto, apóia a cabeça no ombro da irmã. Depois procura reagir. PESSOA – Vim trazer o material para a conferência do Américo. Você me faz um favor? (tirando um envelope do paletó) Entregue este envelope para o Afonso. HENRIQUETA – Então você não vai à conferência? PESSOA – Não sei. HENRIQUETA – Deveria. Você precisa pensar mais em si e menos nessas bobagens. Cuidar da imagem, ganhar dinheiro… PESSOA – (tirando um cheque da mala) Por esse lado, até que valeu a pena. Olha o cheque. HENRIQUETA – (sem lhe dar atenção) Por que tudo isso, Fernando? PESSOA – Eu queria conhecer esse José Américo, esta Pessoa que dizia gostar tanto da minha obra. HENRIQUETA – E a que conclusão você chegou? PESSOA – É um bom homem. E eu sou um louco. Eu preciso te ouvir mais, Teca. HENRIQUETA – Você me assusta, Fernando. PESSOA – (beijando-a na testa) Obrigado por tudo. E perdoe qualquer coisa. HENRIQUETA – Deixe eu guardar essa mala. PESSOA – (pegando a mala e levantando-se) Eu não vou dormir em casa esta noite. HENRIQUETA – Onde você vai? PESSOA – Encontrar uma amiga. HENRIQUETA – Que amiga? PESSOA – Uma amiga, Teca. Uma amiga. Pessoa sai. Henriqueta está atônita. Escurece. CENA 17 Clareia no palco do Teatro da República. Noite do mesmo dia. Américo surge de frente para o público desse teatro, que é o mesmo que assiste à peça. Está isolado, sob um foco de luz especialmente apontado para ele. Faz um discurso que está chegando ao final. AMÉRICO – Pois bem, senhoras e senhores. Assim como está, tenho a impressão de que foi feita da minha a vossa opinião. E juntos chegamos à mesma evidência: Fernando Pessoa não é apenas o escritor maravilhoso que muitos conhecem, mas um gênio das artes, um espírito de luz como poucas vezes se viu na história de qualquer nação e em qualquer época. Feliz, então, de nosso Portugal! É claro que, para chegar até aqui, um árduo trabalho foi realizado, tendo eu contado com o apoio de inúmeras pessoas. Como seria impossível citar todas, deixo aqui registrado o nome de apenas uma delas: Afonso Camargo, diretor da revista literária Presença, na qual Fernando Pessoa tem publicado seus últimos poemas. Sem o seu apoio e sua amizade nada disto teria sido possível. E, claro, agradeço ao próprio Pessoa, que ajudou na organização deste evento de inúmeras maneiras. A maior prova disso é que mandou, através de sua irmã, aqui representando a família, dois poemas inéditos para que fossem lidos somente agora, no final. É com eles que termino a minha conferência, agradecendo mais uma vez a presença de todos. O envelope, só abrirei agora. Será uma surpresa para mim, assim como também para vocês. Vamos a ele. Américo abre o envelope tranqüilamente e dá uma olhada superficial nos poemas. AMÉRICO – Bem... Primeiro, vou ler o menor deles. Trata-se de uma quadra. Todos sabemos que Pessoa, ultimamente, dedicou-se a criar inúmeras quadras ao gosto popular. Vamos a ela. Lendo, aos poucos empalidece. “Ó pastora, ó pastorinha, Que tens ovelhas e riso, Teu riso ecoa no vale E nada mais é preciso.” AMÉRICO – (perplexo) Muito bem. Agora vamos ao segundo. Chama-se “Liberdade”. (empalidece mais ainda) Liberdade. (finalmente lê-se o poema na íntegra). “Ai que prazer Não cumprir um dever, Ter um livro para ler E não o fazer! Ler é maçada Estudar é nada. O sol doira Sem literatura. O rio corre, bem ou mal, Sem edição original. E a brisa, essa, De tão naturalmente matinal, Como tem tempo não tem pressa… Livros são papéis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta A distinção entre nada e coisa nenhuma. Quanto é melhor, quando há bruma, Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não! Grande é a poesia, a bondade e as danças… Mas o melhor do mundo são as crianças, Flores, música, o luar, e o sol, que peca Só quando, em vez de criar, seca. O mais do que isto É Jesus Cristo, Que não sabia nada de finanças Nem consta que tivesse biblioteca…” Aplausos. Américo, quase fora de si, tenta controlar-se para não sucumbir. AMÉRICO – Muito bem, senhoras e senhores. Com isso dou por encerrada a minha conferência, agradecendo mais uma vez a presença de todos. Obrigado e boa noite. Américo afasta-se, indo até Henriqueta, que o esperava no saguão do Teatro da República. Penumbra. Ele e Henriqueta permanecem cochichando, sem que escutemos. Escurece sobre o palco do teatro. Clareia no saguão. Entram Afonso e Miguel. AFONSO – Mas o Américo é mesmo de arrebentar. Viu só a sutileza com que conduziu tudo? Viu como o público se comportou? Uma atenção febril, do começo ao fim. (Miguel está alheio) Que foi, Miguel? Ainda está de birra com José Américo? MIGUEL – Não é isso. AFONSO – As pessoas estão lá, lendo o seu texto. MIGUEL – Eu sei, seu Afonso. AFONSO – E isso não significa nada para você? MIGUEL – Claro que significa. AFONSO – Isso vai ser bom para você, Miguel. Vai lançar seu nome no meio acadêmico. (após um silêncio) E Fernando Pessoa, hein? Será que ele não veio? Américo e Henriqueta aproximam-se. Vêm conversando sobre a “coincidência” dos poemas. Afonso vai até eles. Miguel permanece distante, entre revoltado e tímido. AFONSO – Américo! Parabéns, amigo! Olá, dona Henriqueta. Há quanto tempo! Que bom que a senhora veio! HENRIQUETA – Imagine, foi um prazer. Eu não imaginava que meu irmão fosse tão importante. AFONSO – E por falar nele… (avistando Pessoa, que se aproxima, indo até ele) Poeta! Pessoa entra. Está impecavelmente vestido, agora sim, sem tirar nem pôr, tal qual sua primeira aparição na peça. Todos estão totalmente magnetizados com a sua chegada. PESSOA – (aproximando-se, cumprimentando-os) Como vai, Afonso? Olá, minha irmã. AFONSO – Américo, este é Fernando Pessoa. AMÉRICO – (cumprimentando-o) É um prazer, poeta. PESSOA – (também cumprimentando-o) O prazer é todo meu. Todos procuram descontrair-se. AFONSO – Chegou faz tempo? PESSOA – Infelizmente, só no final. AMÉRICO – Não tem problema. Vou fazer uma edição especial sobre você. PESSOA – Obrigado. (para a irmã) E você? Chegou no começo? HENRIQUETA – No começo. PESSOA – Que bom que você veio. HENRIQUETA – José Américo conhece sua obra como ninguém, Fernando. Disse coisas que eu nem imaginava. AMÉRICO – Que é isso, poeta. PESSOA – (referindo-se a Miguel) E este rapaz? AFONSO – Trabalha para mim. Também escreveu um texto sobre você. PESSOA – Muito bem, depois gostaria de ler. AFONSO – Bem, agora que estão os dois aí… Vamos dar uma volta, dona Henriqueta? HENRIQUETA – Claro. (para Pessoa) Daqui você vai para casa? PESSOA – Não sei. Por quê? HENRIQUETA – Queria conversar. Eu te espero. Até logo, seu Américo. PESSOA – Obrigado, Afonso. AFONSO – Que é isso, Pessoa. Afonso, Henriqueta e Miguel saem. Pessoa e Américo estão constrangidos. PESSOA – Tenho acompanhado o seu trabalho. AMÉRICO – Eu é que sou seu admirador, poeta. PESSOA – Leio os seus artigos no Diário. AMÉRICO – Fico feliz. E a conferência? Gostou? PESSOA – Perdão. Como disse, só consegui vir para o final. Mas creio que a vida de uma pessoa é mais rica do que imaginamos. É muito difícil chegar à essência de um ser humano. (notando um certo incômodo em Américo) Não concorda? AMÉRICO – Concordo, claro. É que tem uma coisa que está me perturbando, poeta, e eu gostaria de lhe falar. Eu contratei uma pessoa para datilografar o texto da minha conferência. Só que, em vez de trabalhar, ele passou a me mostrar os poemas que escrevia. O problema é que ele me disse que ele era o autor desses dois poemas inéditos que o senhor mandou para serem lidos somente agora, no final da conferência. Não é estranho? Como ele pôde fazer uma coisa dessas? PESSOA – Eu tenho enviado inúmeros poemas para jornais, revistas… Se não eram inéditos, queira perdoar. (um silêncio) Mas esse homem… de alguma maneira o comove, não? AMÉRICO – Sim. Eu gostei… quer dizer, gostava dele. Mas é decepcionante, não? PESSOA – O mistério de cada um. Somos muito pequenos perante tudo. Pessoa está exausto. PESSOA – Bem... minha irmã me espera. AMÉRICO – Não está se sentindo bem? Parece pálido. PESSOA – Cansaço. (cumprimentando-o) Foi um prazer conhecê-lo. AMÉRICO – (também cumprimentando-o) O prazer foi todo meu, poeta. Pessoa sai cambaleando, sentindo dores. Américo sai eufórico. Escurece. CENA 18 Clareia no saguão do Teatro da República, na seqüência. Pessoa está com Henriqueta. Conversam já há algum tempo. HENRIQUETA – Volte lá e converse com ele. Diga que tudo não passou de uma brincadeira. Não é jus-to com o homem que tem feito tanto por você. PESSOA – Ele não sabe de nada. E se deixarmos assim, talvez nunca saberá. HENRIQUETA – Aí é que você se engana. PESSOA – Desista, Teca. HENRIQUETA – Um dia essa história virá à tona. PESSOA – Quem irá contar? HENRIQUETA – Mas é uma mentira! PESSOA – Ele não soube me reconhecer naquilo que eu tenho de melhor. Portanto, eu não sou obrigado a reconhecê-lo naquilo que ele tem de pior. HENRIQUETA – É justo passar por alguém que você não é? PESSOA – Todos nós passamos por alguém que não somos. Ou você pensa o quê? Que as pessoas sabem quem elas são? Ou que você mesma saiba quem é? No mais, não foi por má-fé. É verdade quando eu disse que fui até lá para brincar. Mas confesso que me choquei. HENRIQUETA – E o que foi que te chocou tanto assim, posso saber? PESSOA – José Américo me fez pensar que talvez eu seja um poeta de merda. HENRIQUETA – Mas como? PESSOA – Você nunca vai entender. Aquilo tudo, aquela encenação… aquela platéia lotada… Aquilo sim é a mentira que deve ser desmascarada. Porque a verdade, Teca, a verdade está em outro lugar. HENRIQUETA – Onde? PESSOA – No vazio e na solidão em que hoje se transformou a minha vida. E isso eu descobri que não é necessariamente um mal. E além de tudo, há os poemas. E mais do que os poemas, a obra. Que edifique ao menos uma alma no futuro e tudo isto terá valido a pena. HENRIQUETA – É isto que você chama de bom humor? PESSOA – É isto que eu chamo de realidade. E a realidade, cedo ou tarde, acaba se impondo. Não importa o tamanho do sonho, a realidade sempre se impõe. Um silêncio. HENRIQUETA – Vamos embora. PESSOA – Não posso. HENRIQUETA – Por quê? PESSOA – Tenho um encontro. HENRIQUETA – Com quem? PESSOA – Ofélia. HENRIQUETA – Você vai encontrar essa mulher? PESSOA – Ofélia não é uma só. Ofélia são muitas. Até logo, Teca. Pessoa sai. Henriqueta fica desolada. Sai. Escurece. Clareia no outro lado do saguão do Teatro da República. Entram Afonso e Miguel. Conversam já há algum tempo. MIGUEL – O senhor vai me matar. AFONSO – Vou se você não falar. MIGUEL – Ontem, quando eu fui à casa do seu Américo, fiquei um tempo conversando com minha tia, que estava muito nervosa. Ela tinha visto na mala de seu Jorge Madeira os documentos de Fernando Pessoa. Ou seja, Jorge Madeira não é Jorge Madeira. É Fernando Pessoa disfarçado de Jorge Madeira. AFONSO – Espera aí, garoto. Você acha que Fernando Pessoa iria se prestar a um negócio desses? MIGUEL – Ela disse que viu os documentos. AFONSO – Disse, mas pode não ser verdade. MIGUEL – E por que ela mentiria? AFONSO – Não precisa mentir. É sua tia, mas pode ter se enganado. MIGUEL – Como? AFONSO – Miguel, a vida não é tão simples como você imagina. MIGUEL – Eu sei, mas… AFONSO – (cortando-o) Garoto. MIGUEL – Senhor. AFONSO – Você precisa me ouvir. Eu conheço o meio literário português desde a sua idade. É todo o mundo querendo puxar o tapete de todo o mundo. Não dá para você ficar aí, interpretando tudo o que acontece. Se quiser vencer nesta vida, você precisa ser mais prático. MIGUEL – O senhor tem razão. AFONSO – É claro que eu tenho. Que idéia absurda essa. Fernando Pessoa disfarçado. E por quê? Para quê? E durante esse tempo todo, sem que ninguém desconfiasse? MIGUEL – É, acho que eu fui longe demais. AFONSO – Com certeza. MIGUEL – Desculpe, seu Afonso. AFONSO – Tudo bem. Agora vamos embora que a gente tem muito o que fazer. Saem. Escurece. CENA 19 Clareia na sala de Américo, onde está Amália, e no quarto de hotel onde Pessoa se encontra, tentando esconder suas dores. Manhã do dia seguinte. Cada um traz à mão um telefone. AMÁLIA – (atendendo) Alô? PESSOA – Dona Amália? AMÁLIA – Quem é? PESSOA – Jorge. AMÁLIA – Fernando?! (um silêncio) Como o senhor está? PESSOA – Fale baixo. AMÁLIA – Não tem ninguém aqui. PESSOA – Então a senhora sabia? AMÁLIA – Sim. PESSOA – Desde quando? AMÁLIA – Desde aquela noite em que o senhor pas-sou mal. Eu vi seus documentos. Então é verdade? PESSOA – É verdade. AMÁLIA – Era isso que o senhor queria falar naque la noite em que seu Américo entrou? PESSOA – Era. AMÁLIA – E o senhor não pôde. PESSOA – É. Não pude. AMÁLIA – Fernando Pessoa. Um silêncio. PESSOA – E eu, será que conheço a senhora? AMÁLIA – Eu sou Amália. PESSOA – Amália AMÁLIA – Fernando. PESSOA – Me chame de Jorge. AMÁLIA – Jorge. PESSOA – É melhor. AMÁLIA – Eu sou Amália, não tenho segredos. PESSOA – Todos nós temos. AMÁLIA – Então eu não me conheço. PESSOA – Eu também não me conheço. Pessoa não consegue mais disfarçar suas dores. PESSOA – Dona Amália. Se eu pedir um favor, a senhora me faz? AMÁLIA – Claro. PESSOA – Sabe o Largo de São Carlos? Voltei ao bairro de minha infância. Estou hospedado sobre a leiteria do Chiado. Estou muito mal, dona Amália. AMÁLIA – Estou indo já. Amália desliga. Sai. Pessoa também faz o mesmo. Escurece nos dois lugares. Clareia no escritório de Américo. Entra Amália seguida do patrão, que está preocupado. AMÉRICO – Dona Amália? Que aconteceu? AMÁLIA – Seu Américo. O senhor vai me desculpar, mas o seu Jorge acabou de ligar. Ele está muito doente. O senhor permite que eu vá me encontrar com ele? AMÉRICO – Mas o que ele tem? AMÁLIA – Eu não sei. O senhor permite? AMÉRICO – Mas é claro, mulher, que pergunta! Saem. Escurece. CENA 20 Clareia no quarto do hotel. Tarde do mesmo dia. Pessoa está deitado, doente. Caeiro ao seu lado. Preocupado com o estado de Pessoa, resolveu mudar de idéia e voltou para vê-lo. Conversam já há algum tempo. PESSOA – Agora eu não tenho medo. (recitando mais um poema de Fernando Pessoa-Ele Mesmo) “A morte é a curva da estrada, Morrer é só não ser visto. Se escuto, eu te ouço a passada Existir como eu existo. A Terra é feita de céu. A mentira não tem ninho. Nunca ninguém se perdeu. Tudo é verdade e caminho.” CAEIRO – Teu? PESSOA – Meu. CAEIRO – Quando fez? PESSOA – Agora. (um silêncio) E essa Amália? CAEIRO – Um presente. PESSOA – Essa Ofélia, quando eu já não esperava nada. CAEIRO – A vida nunca o deixa partir de mãos vazias. PESSOA – A vida me deixa partir? CAEIRO – A vida o deixa. PESSOA – E você? CAEIRO – Eu vou para onde você for. Num aperto de mão, Caeiro despede-se de Pessoa, agora definitivamente. Campos e Reis entram. Este último traz à mão o sino de Américo, que entrega para Pessoa. Entra Amália. Os três permanecem a uma distância respeitosa, não interferindo na cena. AMÁLIA – (sentando-se na cama, abraçando-o) Fernando… (afastando-se) Por que tudo isso? PESSOA – Me chame de Jorge. AMÁLIA – Mas... PESSOA – Foi assim que a senhora me conheceu. AMÁLIA – Mas não era o senhor. PESSOA – Jorge era mais eu do que eu mesmo. Um fundo de alma que sempre existiu. AMÁLIA – (voltando a abraçá-lo) Por que, Jorge? PESSOA – Por nada. Por tudo. AMÁLIA – (tentando levantar-se) Mas o que es tamos fazendo? Não podemos perder tempo. O senhor está doente, precisa ir ao hospital. PESSOA – (tocando o sino sutilmente) Chegou minha hora, dona Amália. AMÁLIA – (sem acreditar, com uma ponta de graça) Onde o senhor pegou isso? PESSOA – Que seja para saudar a minha partida. Ou a minha chegada a algum lugar. AMÁLIA – Pare com isso! PESSOA – Este é meu fim, dona Amália. Acabo de reconhecê-lo. Só não pensei que fosse tão doce. “Querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te ao extremo. Oh! Até o último extremo, acredita!” Assim falou Hamlet para sua Ofélia. Assim falo eu para o universo inteiro. Eu queria ser todos, dona Amália. Tudo! (voltando a sentir fortes dores na barriga) Ai, que dor. AMÁLIA – (segurando as mãos de Pessoa) Me deixa chamar um médico. PESSOA – (deitando-se no colo dela) Não. Escuta. Quando eu fechar os olhos… avise minha irmã, mais ninguém. AMÁLIA – E seu Américo? PESSOA – Não diga que eu morri. Diga que foi… Fernando Pessoa quem morreu. AMÁLIA – (percebendo que ele está partindo) Não… PESSOA – Dona Amália… Aquela história… como terminava mesmo? AMÁLIA – Não, Jorge, não! Pessoa morre. Amália chora. Penumbra. Num ritual de despedida, os heterônimos aproximam-se do poeta. Amália levanta-se e pela primeira vez na peça consegue enxergar aqueles seres imaginários. Campos tenta tocá-la no rosto, mas Amália afastase de medo. Ela sai. Os heterônimos saem. Pessoa permanece estático. Escurece. CENA 21 Clareia no escritório de Américo. Noite do mesmo dia. Ele aguarda o retorno de Amália com uma re- vista qualquer à mão, só para distrair-se. Ela entra chorando. AMÉRICO – Que aconteceu? AMÁLIA – Ele morreu. AMÉRICO – Jorge? AMÁLIA – Não. Fernando Pessoa. Ouvi a notícia agora, vindo para cá. Jorge está melhor. AMÉRICO – A senhora está me dizendo que Fernando Pessoa morreu, dona Amália? AMÁLIA – Estou, seu Américo. Abraçam-se. Choram. Escurece. CENA 22 Clareia no hotel. Noite do mesmo dia. Pessoa, como ressuscitado, levanta-se da cama e aproxima-se do público, com o sino na mão. Faz uma mesura. Depois, vira-se de costas para a platéia e começa a andar na direção do fundo, tocando o sino como se estivesse abrindo os portais da morte. Fica imóvel enquanto ocorre a próxima cena. Penumbra. CENA 23 Clareia no velório de Pessoa. Manhã do dia seguinte. Américo e Amália entram. Aproximam-se do baú, como se este representasse o corpo no caixão. Ficam um tempo a olhar para o suposto morto, tentando conter as lágrimas. AMÉRICO – Dona Amália? AMÁLIA – Que foi? AMÉRICO – O anel. AMÁLIA – Que anel? AMÉRICO – Ele está usando o anel de Jorge Madeira. AMÁLIA – E daí? Existem muitos anéis como esse, seu Américo. AMÉRICO – A senhora acha? AMÁLIA – Claro. O senhor deve estar com febre. AMÉRICO – Estou? AMÁLIA – Está. Começam a chorar. Amália puxa Américo, que hesita. Saem. Escurece no velório. Fica apenas Pessoa, sob um intenso foco de luz, por mais alguns segundos, até aos poucos virar-se de frente para a platéia. Permanece estático. Escurece. Fim. A TERRA PROMETIDA (peça teatral em ato único) Ficha Técnica A Terra Prometida estreou em 7 de setembro de 2001 no Teatro Sesc Anchieta (SP), com a seguinte ficha técnica: Autor – Samir Yazbek Diretor – Luiz Arthur Nunes Elenco – Luiz Damasceno (Moisés) e Marco Antônio Pâmio (Itamar) Dramaturgista – Silvana Garcia ConsultorTeórico – Reinaldo Amaro Mesquita Assistente de Direção – Marcelo Braga Cenógrafo – J.C. Serroni Assistente de Cenografia – Telumi Helen Equipe de Cenografia – Daniela Rodrigues / Nelson Kao Cenotécnico – Oswaldo Lisboa Maquinaria de Montagem – Walter de Miranda / Cleyton Nunes / Erick Claus / Adejanilson Rodrigues Pintor de Arte – Denerval Ramos Figurinista – J.C. Serroni / Telumi Helen Aderecista Cenográfico e de Figurinos – Márcio Vinícius / Daniela Rodrigues Costureira – Cida de Paula Iluminador – Guilherme Bonfanti Assistente de Iluminação – Fernanda Carvalho Operador de Luz – Marcos Loureiro Trilha Sonora – Tunica Sonoplasta – Aline Meyer Operador de Som – Fernanda Brankovic Projetista Gráfico – Estação Fotógrafo – Tuca Vieira Assessora de Imprensa – Débora Venturini Produtor e Administrador – Kalid Sarhan Assistente de Produção – Vera Lúcia Ribeiro Apoiador Institucional – SESC / SP Apoiadores Culturais – Teatro do Centro da Terra, Ministério da Cultura, Secretaria Municipal da Cultura, WRJ Artes Gráficas, Alpha Vision, The Park Lane Hotel, Restaurantes Velvet, Pequi, Folha de Uva, Samurai e Tucupy. Patrocinador – Gazeta Mercantil Realizador – EnCena São Paulo A versão final do texto, agora apresentada, beneficiou–se de preciosas sugestões dos atores Luiz Damasceno e Marco Antônio Pâmio, e do diretor Luiz Arthur Nunes, integrantes da montagem original. Em 2002, A Terra Prometida foi selecionado pelo jornal O Globo como um dos dez melhores espetáculos do ano. Em 2004, a peça foi publicada pela Coleção Dramaturgia, do Centro Cultural São Paulo. Luiz Damasceno e Marco Antônio Pâmio, em A Terra Prometida Fortuna Crítica A TERRA PROMETIDA em SP “A Terra Prometida convida os espectadores à reflexão”. Aguinaldo Ribeiro da Cunha Diário de S. Paulo “Quem quiser poesia, não deve deixar de ver (...) à montagem de A Terra Prometida, um poema dramático de Samir Yazbek de rara intensidade, uma discussão da condição humana conduzida com mestria pelos atores Luiz Damasceno e Marco Antônio Pâmio, dirigida (...) por Luiz Arthur Nunes.” Alberto Guzik Site Bravos Atores “O que poderia cair em um embate de ideologias acaba sendo o desvendamento recíproco de dois homens – quase tão perplexos com os ‘desígnios’ da história quanto os que esperamos por Godot.” Caderno Mais Folha de S. Paulo “O texto brilhante é de Samir Yazbek, a mais nova revelação de dramaturgia do teatro brasileiro. (....) Yazbek tem a densidade humana e a competência para defender profundamente seus personagens, deixando transparecer todas as suas qualidades e falhas, sem maniqueísmos. É um autor original que foge do realismo piegas e egocentrista que costuma dominar a nova dramaturgia. Tem universalidade. Ainda vamos ouvir e ver muitas peças suas. Ele tem genialidade e conhece seu ofício!”. Carmelinda Guimarães A Tribuna de Santos “É um belo texto baseado no Livro do Êxodo, da Bíblia. Teatro que prende pela força das palavras e das idéias transmitidas por atores apaixonados”. Jefferson Del Rios Revista Bravo “Tudo gira em torno de um diálogo muito claro e sincero, que denota bastante talento do autor, a respeito do povo judaico e de sua procura pela terra prometida.” Maria Lúcia Candeias Gazeta Mercantil “Bem construídos, os diálogos revelam amadurecimento do autor ao colocá-los a serviço das idéias. O texto é tecido com diálogos curtos, envolvidos por camadas de silêncio, cuja soma resulta em uma partitura irônica, poética e musical a um só tempo”. Marici Salomão Revista Bravo “O público sai não comovido, mas preenchido. O espetáculo honra não só quem o faz, mas, sobretudo, quem o vê”. Sérgio Salvia Coelho Folha de S. Paulo A TERRA PROMETIDA no RJ “A singeleza da proposta, somada ao empenho do autor em explorar para um público contemporâneo as questões éticas tão relevantes no texto bíblico, torna sua tentativa muito mais bem-sucedida do que tem sido alcançado com os ‘Diálogos’ de Platão, por exemplo”. Bárbara Heliodora O Globo “Embora o texto de Yazbek se situe num contexto bíblico, sem dúvida ele o transcende, à medida que vários temas que aborda – fé, liberdade de escolha e os riscos da intolerância, entre outros – são inerentes aos tempos atuais. E cabe ainda ressaltar a pertinência de todos os argumentos dos persona-gens em conflito, invariavelmente expressos com clareza e em total sintonia com a personalidade dos personagens”. Lionel Fischer Tribuna da Imprensa “A Terra Prometida confirma Samir Yazbek como um autor bem mais do que promissor”. Macksen Luiz Jornal do Brasil Luiz Damasceno e Marco Antônio Pâmio, em A Terra Prometida A Terra Prometida Cenário Acampamento no deserto. A tenda de Moisés. Um baú. Ação Uma hora antes do amanhecer. Personagens Moisés. Itamar. Moisés está sentado, orando de olhos fechados, apoiado em um cajado. Traz, ao alcance da mão, um véu que costuma utilizar sobre o rosto. Pela esquerda entra Itamar segurando um manto. ITAMAR – Com licença, tio. Moisés abre os olhos, depõe o cajado sobre o chão, pega o véu e cobre o rosto. ITAMAR – Onde o senhor esteve? MOISÉS – Vim para cá, descansar. (olhando-o pela primeira vez) E você? ITAMAR – Queria falar com o senhor. Moisés acena para Itamar se aproximar. MOISÉS – Pensei que tivesse ido dormir. ITAMAR – Ainda não. Um silêncio. MOISÉS – Não está se sentindo bem? ITAMAR – É difícil de entender. MOISÉS – Dê tempo ao tempo, filho. ITAMAR – Não consigo me conformar. MOISÉS – Deus sabe o que faz. Um silêncio. ITAMAR – (referindo-se ao manto) O que significa isso? MOISÉS – De agora em diante você assume o lugar de seu pai. ITAMAR – Eu nunca soube o lugar de meu pai. MOISÉS – Vai descobri-lo com o tempo. ITAMAR – Meu pai era diferente de mim em tantas coisas. MOISÉS – Eu sei. ITAMAR – Mas eu gostava muito dele. MOISÉS – Eu também. ITAMAR – Diga, tio: meu pai morreu de velhice, não foi? Moisés olha para o céu. ITAMAR – Eu estou falando com o senhor. MOISÉS – E eu estou falando com Deus. Moisés começa a orar. MOISÉS – Itamar, meu filho... ITAMAR – Descubra-se para falar comigo, tio. MOISÉS – Você sabe que eu não posso. Desde quan do eu vi Deus pela primeira vez, fiquei impregnado de sua luz. ITAMAR – Peça a ele, então. MOISÉS – Se ninguém suporta ver o brilho de Deus, por que você suportaria? ITAMAR – Tio... O povo está inconsolável. Diga a eles que meu pai morreu de velhice. MOISÉS – Não posso. ITAMAR – Por quê? MOISÉS – Porque não é verdade. Um silêncio. ITAMAR – Tem certeza de que é o brilho de Deus que quer esconder? Mais nada? MOISÉS – Por que está falando isso? ITAMAR – Quer dizer que meu pai morreu porque adorou um bezerro de ouro? MOISÉS – Deus nos proibiu de idolatrar qualquer imagem. ITAMAR – Mas foi uma atitude desesperada do povo! MOISÉS – Só por que me ausentei por quarenta dias? Aarão sabia onde eu estava e por que tinha ido. Eu lhe disse que Deus havia me chamado ao cume de sua montanha para me confiar sua lei, sua palavra... E quando desci com as tábuas dos mandamentos nas mãos e ouvi o povo cantando... Dançando em honra de um bezerro... Quando vi aquela orgia... ITAMAR – Meu pai sabia que não foi aquele bezerro que nos tirou do Egito. MOISÉS – Então por que permitiu que desafiassem assim a palavra de Deus? ITAMAR – Não desafiaram a palavra de Deus, mas a do senhor. Perante o povo, o bezerro substituía o senhor, não Deus! MOISÉS – Blasfêmia! ITAMAR – E quando o senhor sumiu por tanto tempo, nós pensamos que não voltaria mais. MOISÉS – Aarão sabia da verdade. Desde quando Deus nos chamou para comunicar a missão de libertar o povo de Israel do cativeiro egípcio. Aquele encontro foi importante demais para ser esquecido. ITAMAR – Quer dizer que meu pai foi o culpado de sua própria morte? MOISÉS – Não acredita? ITAMAR – Não creio que Deus se importe com esse tipo de coisa. MOISÉS – Desde quando você o conhece? ITAMAR – Castigo? É isso que seu Deus sabe fazer? MOISÉS – Nosso Deus! ITAMAR – Quem sabe? MOISÉS – O que quer dizer? ITAMAR – A partir de hoje talvez ele não seja mais meu. Um silêncio. MOISÉS – Nunca mais diga isso. Abandone seu povo e nunca chegará à terra que Deus reservou aos nossos antepassados. ITAMAR – É justamente o que eu estou pensando em fazer. Um silêncio. MOISÉS – Itamar, meu filho. Não agora que Aarão morreu. É seu dever seguir os passos de seu pai. Eu já o havia perdoado. Tentei convencer Deus a fazer o mesmo. Eu amava meu irmão mais do que tudo. E ele certamente teria seguido rumo à Terra Prometida se o Senhor não o houvesse chamado para junto de si. ITAMAR – Assim como chamou os três mil hebreus que cantavam e dançavam em honra ao bezerro. MOISÉS – Exatamente. ITAMAR – Que agora não estão conosco pela fúria dos homens. MOISÉS – Fúria de Deus. ITAMAR – Ou a do senhor. MOISÉS – Por que eu? ITAMAR – Jogou uns contra os outros. MOISÉS – Nada tenho a ver com isso. ITAMAR – Tampouco Deus. MOISÉS – É o que você pensa. (um silêncio) Posso saber o que lhe aconteceu? Homem de fé você nunca foi. Mas jamais tão intransigente. ITAMAR – Não se trata de intransigência. É que o povo não suporta mais. E o senhor sabe a gravidade da situação. MOISÉS – Como é que você tem coragem? Depois de tudo o que passamos... Após quarenta anos peregrinando pelo deserto, ainda estamos vivos. Isso não significa nada para você? ITAMAR – Significa que somos um povo resistente e teimoso. MOISÉS – Resistência e teimosia bastam para colocar um povo de pé? Resistência e teimosia bastam para fazer milhares de pessoas atravessar o deserto do Sinai em busca da Terra Prometida? ITAMAR – Não, não bastam. É preciso um pouco de boa vontade também. MOISÉS – Não seja cruel. ITAMAR – É melhor mesmo que eu deixe de falar. MOISÉS – O que mais me admira... É que depois de tantos prodígios... Depois de tantos milagres que Deus fez... Você ainda duvide de seu poder. ITAMAR – Que milagres? MOISÉS – Todos. As nuvens de dia e o fogo à noite guiando os nossos passos. A fuga de nosso povo através do Mar Vermelho. Isso lhe parece pouco? ITAMAR – Fenômenos da natureza, tio. MOISÉS – E as dez pragas que Ele mandou sobre o faraó que não queria nos libertar? A morte de todos os primogênitos egípcios... ITAMAR – O senhor realmente acreditou nessa história? MOISÉS – Eu estava lá quando tudo aconteceu. Disse que o Senhor só pouparia os primogênitos dos hebreus e assim foi. Quantas vezes já lhe contei essa história? ITAMAR – É absurda demais para que eu creia. MOISÉS – E essa praga, então, como você explica? ITAMAR – É claro que uma peste matou as criancinhas. MOISÉS – E as tábuas da lei? Quem escreveu os dez mandamentos? Eu? Um silêncio. ITAMAR – Pois então me mostre. Um milagre de Deus. Para que eu possa crer. Vamos, use o cajado. Não é ele que representa o poder de Deus sobre a Terra? Eu não vi quando ele se transformou em serpente e engoliu a serpente dos magos egípcios. Eu não estava lá. Eu não vi os guerreiros amalequitas, que queriam atacar o nosso povo, serem derrotados quando o senhor o erguia e ganharem quando o abaixava. Eu também não estava lá. Eu não vi o Mar Vermelho se abrir para a passagem de nosso povo e se fechar para os egípcios. (segurando o cajado) Aqui está ele. Faça algo para que eu deixe de duvidar. MOISÉS – Está certo disso? ITAMAR – Por que não? Seria muito trabalhoso para Deus? MOISÉS – Não há outra maneira? ITAMAR – Infelizmente não. MOISÉS – Vou tentar. Por você. Moisés ergue o cajado e ora. Depois de um tempo, volta-se para Itamar. MOISÉS – Ele não quer. Disse que você já teve motivos suficientes para crer. ITAMAR – Tio... O senhor é meu tio, irmão de meu pai. Eu não sei ao certo o que se passou no Egito, a não ser pelo que me contam uns e outros. Eu não tinha nascido sequer em sonho, é verdade. Mas isso nunca me impediu de respeitá-lo. E é por isso que eu venho adverti-lo: boa parte de nosso povo não quer mais seguir viagem. MOISÉS – Isso não me surpreende. Tantas vezes já aconteceu. Mesmo antes de você nascer. Qual é o problema agora? Fome? Posso pedir a Deus que mande novamente maná para o povo. ITAMAR – Creio que não é isso. MOISÉS – Sede? ITAMAR – Água ainda temos. MOISÉS – Desânimo, então? ITAMAR – Receio que um motivo mais justo que esse. MOISÉS – Qual? Falta de fé? ITAMAR – Não. Falta de confiança no líder. MOISÉS – Por quê? Eu tenho falhado em algo? Que apontem meu erro, mas em público! Não fiquem às escondidas falando mal de mim. ITAMAR – Isso ainda não é o pior. Há quem fale em matá-lo. Um silêncio. MOISÉS – Quem? ITAMAR – Isso eu não posso dizer. MOISÉS – Vai pactuar com o assassino de seu tio? ITAMAR – É que não é só uma pessoa. MOISÉS – Quem são? ITAMAR – São várias. MOISÉS – Tantas assim? ITAMAR – Não me pergunte quantas. MOISÉS – Que bela maneira de um homem como eu envelhecer. Perseguido no final da vida como se fosse um traidor. ITAMAR – Talvez seja a resposta que lhe dão a tanta indiferença. MOISÉS – Querem ser tratados como seres especiais quando não o são? (um silêncio) Ainda no Egito, por eu haver pedido ao faraó que tivéssemos três dias para oferecer sacrifícios a Deus no deserto, culparam-me por ter provocado a sua fúria. ITAMAR – E não estavam certos? Ouvi dizer que o trabalho foi redobrado. MOISÉS – Quando nos encurralaram na travessia do Mar Vermelho, chegaram a me perguntar por que os tirei do Egito. E eu tive de ouvir que seria melhor servir aos tiranos do que morrer no deserto. E mesmo depois que conseguimos atravessar, em vez de agradecimentos, o que eu ouvi foi somente: “E agora? Para onde vamos?” Eu já estou acostumado. Para eles eu sou o idiota que os tirou do Egito, um paraíso perto deste inferno. E tem também o caso daquele irmão hebreu que eu vi sendo açoitado por um egípcio. Pois ele me denunciou ao faraó por eu haver matado o egípcio, como se não fosse para vingá-lo. ITAMAR – Mas isso não contradiz nossa religião? MOISÉS – Por quê? ITAMAR – É justo matar um homem? MOISÉS – Quando este homem oprime um filho de Deus, sim. ITAMAR – Mas não somos todos filhos de Deus? MOISÉS – Matar, nesse caso, foi a forma que o Senhor encontrou de fazer tudo mudar para mim. Foram cortados os meus laços com o Egito, com a minha mãe adotiva. A partir de então, o meu destino estava selado entre os meus. ITAMAR – Não creio que um ideal qualquer justifique a morte de alguém. MOISÉS – Mas não se trata de um ideal qualquer. ITAMAR – Não consigo ver nada por trás dele. MOISÉS – Pode haver algo acima de Deus? ITAMAR – Depende do lugar de onde se olha. Um silêncio. MOISÉS – Por outro lado eu os entendo. Nunca foi fácil para ninguém seguir um Deus misterioso, um Deus que não tem forma, um Deus que ninguém vê senão através de mim. No entanto, é o Deus que eu trouxe e é preciso aceitá-lo. É preciso obedecê-lo, mesmo que custe muita dor. Um silêncio. ITAMAR – Pois eu quero que saiba que penso como esses que o senhor despreza. MOISÉS – Não diga o que não sabe. ITAMAR – Para mim não é mais possível ficar. Isso já vem há muito tempo. Nem sei se um dia cheguei a crer de fato no Deus de Israel. Mas agora que meu pai morreu... Tudo perdeu o sentido para mim. Eu não quero mais seguir rumo à Terra Prometida. Prometida por quem, para quem? É tudo tão vago. MOISÉS – E por causa disso vai pôr tudo a perder? ITAMAR – O senhor acha pouco? MOISÉS – Diante do plano de Deus, sim. ITAMAR – Ainda se houvesse um motivo para prosseguir... Mas está cada vez mais difícil. Um clima insuportável para os que não crêem. MOISÉS – Quando se trata de defender a palavra de Deus, é preciso ser duro. ITAMAR – A verdade é que eu não creio mais na Terra Prometida. Eu e muitos pensamos assim. Amanhã de manhã vamos mudar de rumo. MOISÉS – Quem? ITAMAR – Não sei ao certo. Só lhe digo que não são poucos. MOISÉS – Mas para onde vão? ITAMAR – Ainda não sabemos. Só não queremos errar mais quarenta anos pelo deserto à procura de uma terra que sequer sabemos existir. MOISÉS – O fato de vocês a desconhecerem não significa que ela não exista. ITAMAR – Então devo estar cada vez mais alheio aos planos do meu tio. MOISÉS – Não são meus planos! Um silêncio. ITAMAR – Não acreditamos que um Deus tão cruel possa ser um bom guia. MOISÉS – Que Deus, então, seria? ITAMAR – Não sei. Afinal, por que precisamos de Deus nesta caminhada? Não podemos seguir sozinhos? MOISÉS – Seria loucura prosseguir nessas condições. ITAMAR – Teríamos a comunidade, cada um de nós para ajudar... MOISÉS – Você acredita tanto assim nas pessoas? ITAMAR – Será que valemos tão pouco? (um silêncio) Alguns pensam em voltar para o Egito. MOISÉS – Para o Egito?! ITAMAR – Sim. MOISÉS – Para serem novamente cativos? ITAMAR – Dizem que lá as coisas têm melhorado. MOISÉS – Quem falou uma barbaridade dessas? ITAMAR – Notícias dos viajantes. MOISÉS – Isso é mentira! O Egito nunca vai melhorar! (um silêncio) Mas que espécie de memória vocês têm? (um silêncio) Você está pensando em voltar para o Egito, aquela fornalha de ferro? ITAMAR – Eu só queria colocá-lo a par do que está havendo, é meu dever. MOISÉS – Agora que a liberdade nos foi dada, é preciso fazer algo com ela. Não há como voltar. (um silêncio) É verdade, Itamar? Você está pensando em abandonar seu povo? (um silêncio) Por Deus, não faça isso. (um silêncio) Chame aqui os mais velhos! Chame todos para ouvirem! Vocês não conhecem o Egito! Pensam que eu sou o único que testemunhou o sacrifício do nosso povo? Trabalhos forçados dia após dia. Humilhação após humilhação. Em troca de quê? Construímos as cidades de Pitom e Ramsés a custa de nossas vidas. Quantos filhos nem chegaram a conhecer seus pais? ITAMAR – Tudo indica que esse Egito não existe mais. MOISÉS – Quem disse? O Egito nunca mudará! Vamos, chame os anciãos que desde o início nos acompanham. Eles terão o que dizer. ITAMAR – A maior parte dos homens que saíram do Egito está morta, tio. O senhor é dos poucos que restaram. E os que existem não virão. Eu falo e o senhor finge que escuta. Até quando? Um silêncio. MOISÉS – Mas posso saber o que os atrai tanto assim para lá? ITAMAR – Pergunte a eles. MOISÉS – Os deuses, aquela religião de bárbaros? Um deus egípcio por acaso os guiará de volta? ITAMAR – Não creio que seja isso. Apesar de até hoje muitos não saberem como se chama o Deus de Israel. MOISÉS – “Eu sou aquele que é”. Ele disse que é aquele que é, o único que pode haver, o mesmo para todos. ITAMAR – Convenhamos que é um tanto abstrato. MOISÉS – Cansei de repetir o que Ele pediu que eu dissesse: “O Deus dos seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó. Ele me enviou até vocês”. Onde andam com a cabeça? ITAMAR – Em todo caso, não acho que sejam os deuses o que mais atrai os filhos de Israel para o Egito. MOISÉS – Então o que é? ITAMAR – Talvez a civilização avançada. MOISÉS – Dinheiro? ITAMAR – Quem sabe? MOISÉS – Mulheres? ITAMAR – É possível. MOISÉS – Mas qual é a importância disso tudo para o povo de Deus? ITAMAR – O povo de Deus é formado por pessoas, tio. E cada uma deseja uma coisa diferente para si. Isso o senhor precisa entender. MOISÉS – E é você quem fala? Você, o porta-voz desses bastardos? Você que age de forma dissimulada? ITAMAR – Por quê? MOISÉS – Sei o que está pensando. Diga logo que quer voltar para o Egito. ITAMAR – Ainda não sei se vou. MOISÉS – Fale a verdade, Itamar. ITAMAR – Muito bem. E se fosse? MOISÉS – E o compromisso com o povo? E o dever com seu pai? Não se esqueça que você é um levita. A aliança com Deus prevê que você seja um sacerdote. Aliás, na prática você já é um deles, filho. ITAMAR – O senhor sabe que isso não significa nada para mim. (um silêncio) Talvez nem eu saiba ao certo por que o Egito nos atrai. Mas falam tanto de lá, que é impossível ficar indiferente. MOISÉS – Reconheça. É mais fundo o poço de seu desejo. ITAMAR – Está dentro de mim para saber? MOISÉS – Não esqueça que você é casado. ITAMAR – Minha família irá comigo. MOISÉS – Desgraça para todos? Pobre mulher. Um silêncio. ITAMAR – Por favor, tio. Deixemos isso de lado. Para o Egito ou não, é importante que nos separemos em paz. MOISÉS – Importante para quem? ITAMAR – Para todo o povo. Agora que meu pai morreu, ninguém quer ver o sobrinho brigando com seu tio. Ainda mais quando esse tio chama-se Moisés. MOISÉS – Querem que os abençoe por acaso? ITAMAR – Querem que seja menos orgulhoso, só isso. MOISÉS – Pois diga que Moisés está morto! (um silêncio) É uma agressão à memória do nosso povo! Vão e informem-se antes de falar! Eu não só convivi com os egípcios, como fui um deles! Sei como são e o que querem! É uma gente que não acredita em nada que não seja o esplendor de sua riqueza! Vivem para o poder e a glória! É inadmissível para um povo que prega a vida, como o nosso! (um silêncio) E tudo que fizemos por você, Itamar? Não conta para nada? ITAMAR – Claro que conta. Aprendi muito durante esses anos todos. O senhor não precisa ficar desse jeito. MOISÉS – Vejo que não me conhece. Se sofro, não é por mim. Deus sofre mais do que eu! Ele vê mais longe. Mesmo que não pareça, eu sou capaz de perdoar. Ele não. Nunca se esqueça disso. ITAMAR – Se é isso que eu mais quero esquecer... Um silêncio. MOISÉS – Sabe do que estamos precisando? De mais uma batalha como a que lutamos contra os amalequitas. Quem sabe assim, unidos pela guerra, voltamos a redescobrir nossa identidade. ITAMAR – O senhor esqueceu quantos morreram naquela ocasião? MOISÉS – De que vale uma vida diante do plano de Deus? ITAMAR – É o pensamento mais terrível que eu conheço. MOISÉS – Ao qual você precisa se acostumar. ITAMAR – Por quê? MOISÉS – Para se defender. Em breve será nosso inimigo. ITAMAR – É o que o senhor deseja? Um silêncio. MOISÉS – Vamos, chame os anciãos! Será que perderam a memória, ou resolveram calar-se? Chame-os aqui, depressa! ITAMAR – O senhor pensou que seria visto como um libertador. Mesmo os mais velhos sempre disseram que, desde aquela época, não querem nada com o senhor. E agora? Ainda quer chamá-los? MOISÉS – Mas se sobreviveram com a minha ajuda! ITAMAR – Isso eles não devem achar. MOISÉS – Então por que vieram até aqui? ITAMAR – Talvez não tivessem outra alternativa. MOISÉS – São uns malditos que nunca quiseram a libertação! Pois eu devia deixá-los perdidos no deserto, errando neste exílio sem fim! Exatamente como Deus o quis depois que idolatraram o bezerro de ouro. Você sabia que Ele chegou a desejar a morte de todos? E crianças também. E mulheres. Eu não devia ter intercedido por ninguém, essa é a verdade. ITAMAR – Então a fúria de Deus era para ser maior ainda? MOISÉS – Mais do que você imagina. ITAMAR – E foi o senhor que a conteve? MOISÉS – Não acredita? ITAMAR – Não digo nada. Apenas acho que essa não me parece uma boa estratégia para um Deus que busca aliados. É dessa forma que Ele pretende forjar o caráter do povo? MOISÉS – O Deus de Israel não é para qualquer um, filho. Só para os que estão preparados. Não se brinca com a vida, Itamar. Ela exige sacrifícios, renúncias. Às vezes, implica muita dor. ITAMAR – Eu nunca enxerguei a vida dessa maneira trágica. MOISÉS – A verdade é que é mais fácil abrir o Mar Vermelho ao meio do que conduzir o povo de Israel à Terra Prometida. Insolentes! Itamar, chame aqui os chefes das tribos rebeldes. Eu quero falar com eles. ITAMAR – Não será possível. MOISÉS – Por quê? ITAMAR – Para muitos as coisas chegaram a um ponto irreversível. MOISÉS – Pois que partam todos. Mas você... Você não pode. Depois da morte de seus irmãos, você é o primogênito, o sinal da presença de Deus em sua família. Terá de cumprir esse papel. Um silêncio. ITAMAR – Desculpe, mas eu tenho a minha própria vida. MOISÉS – E qual é o sentido dela, posso saber? ITAMAR – O senhor pensa que é só em nome de Deus que se pode ter uma existência digna? Eu também me preocupo com a condição miserável de nosso povo. Acha que só é possível ajudá-lo em nome de Deus? MOISÉS – Só Ele justifica o bem comum. ITAMAR – Não é o que minha experiência diz. MOISÉS – Sem Deus, quanto às boas ações, acerta se hoje, erra-se amanhã. ITAMAR – Com Deus também. MOISÉS – Depende do ponto de vista. ITAMAR – Mas aonde quer chegar? MOISÉS – Você só se preocupa com você. ITAMAR – O senhor sabe que não é verdade. Quan tas vezes eu não me compadeci da dor alheia? Eu e muitos! MOISÉS – Sim, eu tenho observado. Agora mesmo... Está provocando uma revolução porque perdeu o pai. Você é como uma criança num mundo de feras. Que efeito têm as suas ações? ITAMAR – E o efeito das suas, o senhor pode prever? MOISÉS – Eu não preciso. ITAMAR – Por quê? MOISÉS – Porque simplesmente vejo. ITAMAR – O desânimo, o medo? É isso que o senhor vê? Porque é só o que há para se ver hoje em dia. Uma porção de gente repetindo palavras que já não vêm do coração. MOISÉS – Ou são seus ouvidos que não sabem escutar o óbvio? ITAMAR – O senhor deveria admitir que seus planos fracassaram. (um silêncio) Além do mais, eu não creio que meu pai seguiria com o senhor se estivesse vivo. MOISÉS – Como? Mas que absurdo! Você está aproveitando da ausência dele para me desrespeitar! (procurando em algum lugar do espaço) Aarão! Volta aqui para dizer a este teu filho a verdade! ITAMAR – Deixe os mortos em paz! MOISÉS – (prosseguindo) Vê o que ele está fazendo? Não permita que ele abandone seu povo! Até quando Israel vagará perdida no deserto? ITAMAR – Mas por que está fazendo isso? Um silêncio. MOISÉS – Bem cedo perdi meus pais. Minha mulher e meu filho há muito não estão comigo. Depois perdi minha irmã, agora meu irmão. Perdas mais do que naturais para quem habita debaixo do sol. Sim. Minha vida é meu Deus. Mas eu sou um homem! Um silêncio. ITAMAR – Afinal, o que o senhor quer de mim? MOISÉS – Esqueceu de quando era jovem? Quando as pessoas o procuravam para pedir conselhos? Você me disse que sentia a presença Dele quando falava. ITAMAR – É, eu sentia. Mas depois vi que estava enganado. Não era Ele. Um silêncio. MOISÉS – Quando deixei o deserto para aceitar o chamado do Senhor, bem que eu me perguntei: “Será que esse Deus que me falou estará comigo quando as coisas ficarem difíceis?” Agora tenho a resposta. Eu não devia ter aceitado este fardo. Não devia ter abandonado minha vida de pastor, marido e pai. Por que fui dar ouvidos àquele chamado do anjo do Senhor na sarça ardente? Eu sequer sabia falar, não convivia com o povo, não tinha condições de liderá-lo. Acreditei na palavra de Deus. E agora? Você tem razão, Itamar. Eu não devo mesmo ser digno da confiança dos hebreus. ITAMAR – Não seja cínico, tio. MOISÉS – Por quê? Ele irá me castigar? ITAMAR – Há uma legião de pessoas a quem o senhor deve satisfação. Empenhou a promessa da Terra Prometida perante todos. MOISÉS – Mas se foi ditada por um Deus que você diz não existir. ITAMAR – Nesse caso, o senhor não teria outra saída a não ser assumir como sua a promessa empenhada e transformar-se nesse Deus. MOISÉS – Você não sabe mais o que fala. ITAMAR – Pois então deixe-me. É melhor eu ir embora antes que... MOISÉS – (cortando-o) Os filhos de Israel gemiam sob o peso da escravidão e clamavam. E do fundo da escravidão seu clamor chegou até o Senhor. (um silêncio) Mas por que fui o escolhido para salvá-los?! Só por que sabia cuidar das ovelhas de meu sogro e fui zeloso o bastante para buscar a desgarrada? Será o suficiente? ITAMAR – Não. Na verdade o senhor foi o escolhido porque era o mais incapaz de todos, aquele que nada iria fazer da vida se não metesse na cabeça que tinha uma missão! MOISÉS – É essa a idéia que você faz de mim? ITAMAR – No princípio o povo o adotou como libertador porque não teve outra saída. Foi a única forma que encontraram para se livrarem da escravidão. MOISÉS – Agora é fácil falar. ITAMAR – Eis o que ninguém mais pode esconder. Durante esse tempo todo o senhor impôs esse Deus ao povo, um Deus que na verdade nunca ninguém aceitou de boa vontade. Um Deus que... Afinal, o que o senhor pretende? MOISÉS – Um reino de paz. ITAMAR – E é assim, à força, que deseja conquistálo? Se Jeová existe e é mesmo o Deus de Israel, único Deus que há, e se Israel é o povo escolhido desse Deus, por que não deixa que cada um o encontre por conta própria? MOISÉS – Porque não são capazes! ITAMAR – Mesmo assim. Não é bom que cada um descubra em si essa incapacidade? MOISÉS – Para quê? ITAMAR – É só da verdade dos homens que nascerá um reino de paz. MOISÉS – Você está preocupado com isso? ITAMAR – Todos nós queremos esse reino, tio. Só que tem gente matando para alcançá-lo. Não lhe parece contraditório? (um silêncio) Eu não queria dizer isso. Nós não precisamos brigar. MOISÉS – Já não sei do que precisamos. ITAMAR – O senhor me fez perder a cabeça. MOISÉS – Difícil mesmo é entender por que o Se nhor se incomodou em deixar dez mandamentos se o mais próximo não consegue obedecer nem mesmo a um. ITAMAR – “Não Matarás”. MOISÉS – Deus é Deus e tem o poder de vida e morte! Moisés aproxima-se do baú. MOISÉS – Sabe o que está guardado aqui? ITAMAR – O senhor pensa que eu não conheço a história de Israel? MOISÉS – Os ossos de José. Sabe quem foi José? ITAMAR – Eu me recuso a responder. MOISÉS – O que você deve saber sobre ele? (abre o baú) Foi o primeiro a levar nosso povo ao Egito, quando ninguém podia imaginar que seríamos escravos. Quando a liberdade e o sonho era tudo para nós. Passado o tempo, quando valíamos quase nada, ele pediu ao povo de Israel: “Quando Deus intervier por vocês, levem os meus ossos daqui”. Ele queria ser enterrado na terra que Deus reservou para nós. ITAMAR – Isso eu já sabia. MOISÉS – Agora que não sirvo mais para nada, será que tenho o direito de conduzi-lo? ITAMAR – Claro que sim. MOISÉS – Por quê? ITAMAR – Ele pediu. MOISÉS – E daí? ITAMAR – Não se nega o pedido de um parente. Ainda mais falecido. MOISÉS – Isso faz alguma diferença para você? ITAMAR – Eu sei que faz para o senhor. Além do mais, José foi um homem honrado e de boa-fé, e como todo homem honrado e de boa-fé, não precisa da autorização de ninguém para ser exaltado. Eu, por exemplo, tenho o direito de exaltar o nome de José sem o consentimento de Deus, o senhor não acha? Moisés fecha o baú e afasta-se. MOISÉS – Realmente. Ouvindo-o falar nesse tom, é possível que eu tenha feito muito mal a esse povo. ITAMAR – Vamos, tio, deixemos assim. Aqueles que querem partir, que partam. E o senhor seguirá viagem com os que ficarem. Quanto a nós... MOISÉS – Nós quem? ITAMAR – Eu e o senhor. Não é o que importa? MOISÉS – Esqueça. Nós não existimos. ITAMAR – O problema é esse: só nós existimos! MOISÉS – Não diga bobagem. ITAMAR – Afinal, do que o senhor está fugindo? MOISÉS – Fugindo, Itamar? Um silêncio. ITAMAR – Por que o senhor não desiste dessa idéia? Tente enxergar o absurdo de toda essa situação. Vai levar o povo à loucura! Quarenta anos que podem se transformar em outros quarenta. E isso até quando? Chame a todos e diga que o senhor se enganou, que Jeová se enganou, seja lá o que for, mas livre-se deste peso, desse tormento! Por favor, não faça isso consigo! MOISÉS – Eu tenho pena de você, Itamar. Há um vazio imenso por trás de suas certezas. E uma arrogância insuportável para disfarçar este vazio. Você é tão jovem para isso. Ao mesmo tempo tão triste. Há todo um povo que você não enxerga. Toda uma vida. Você mesmo, cego para si. ITAMAR – Pois deixe–me. Se eu ficar, será pior para todos. Não sei do que seria capaz. MOISÉS – Você está desprezando o maior tesouro que alguém pode receber: seu próprio povo. Ainda mais quando é um povo eleito. Um silêncio. ITAMAR – Ao menos diga que a Terra Prometida não existe. Que é uma idéia que o senhor teve, uma idéia linda, está certo, mas impossível de existir. MOISÉS – Você não crê? ITAMAR – Nela, não. MOISÉS – E se eu a tivesse visto? ITAMAR – Eu não creio, tio. MOISÉS – Em quê você crê, então? ITAMAR – Na vida. MOISÉS – Em que parte dela? ITAMAR – Por que tantas perguntas? MOISÉS – É importante. Afinal, pretende caminhar no escuro até quando? ITAMAR – Quem disse que estou no escuro? MOISÉS – Não é como se sente? ITAMAR – Caminharei até encontrar a luz. MOISÉS – E nunca lhe ocorreu que precisa de luz para partir? Pois enquanto ela não vem, fiquemos com a Terra Prometida. Ela existe e nós chegaremos lá. (um silêncio) Ou melhor... Chegarão. Eu não vou seguir viagem. ITAMAR – Como? MOISÉS – Não posso mais seguir em frente. Deus não o quer. ITAMAR – Por quê? MOISÉS – De que adianta eu falar se não crê mais Nele? ITAMAR – Mas o senhor crê. E eu creio no senhor. Fale. MOISÉS – Quem sou eu para que creia em mim? ITAMAR – Diga-me logo, tio. Por que não entrará na Terra Prometida? Um silêncio. MOISÉS – Quando Miriam morreu, você sabe o quanto eu sofri. Miriam... Minha irmã, minha única amiga. Naquela noite em que ela se foi, Deus me chamou ao alto de sua montanha para me falar. Então Ele disse que, por conta do que eu fiz naquela manhã, não poderia mais entrar na Terra Prometida. ITAMAR – Mas o que o senhor fez de tão grave? MOISÉS – Não se lembra? Irritado porque as pessoas não guardavam luto por Miriam, mas, ao contrário, exigiam água para beber, bati com raiva duas vezes na rocha, com o meu cajado, para ver se a água jorrava das pedras. E Deus então se indignou, dizendo que eu o desobedecera em público. ITAMAR – E por isso não entraria na Terra Prometida? MOISÉS – Por causa de vocês. ITAMAR – Mas... Logo o senhor... Que há quarenta anos vive só para Ele, no mais completo isolamento, sem que ninguém possa se aproximar? MOISÉS – É verdade. ITAMAR – E o senhor não lhe disse nada? MOISÉS – Dizer o quê? E olha que eu sou o único desde Abraão que ousou argumentar contra a sua palavra. Mas nesse caso... ITAMAR – Um caso em que a razão está ao seu lado. MOISÉS – Não é possível sondar os desígnios de Deus quando Ele anuncia a morte de um filho. ITAMAR – Mas quem está falando em morte? MOISÉS – Chegou minha hora, Itamar. Deus não quer que eu entre na Terra Prometida. Nem hoje, nem nunca. ITAMAR – Mas que espécie de Deus é esse? MOISÉS – Eu juro que ainda tentei convencê-lo: “Querido Deus, sou eu, Moisés. Não se recorda como veio até a mim quando eu era jovem e dis-se: ‘Pegarei em sua mão e o levarei até o faraó. E juntos libertaremos seu povo.’ E como me levou à montanha por quarenta dias, me ensinou sua lei e sua palavra? E agora eu não posso entrar na Terra Prometida após quarenta anos? Tudo o que eu queria era mais um dia apenas, para tocar a grama, cheirar a terra... Por favor, Deus, não me deixe morrer”. ITAMAR – Isso é ridículo! MOISÉS – Eu também sou humano, Itamar. E pequei. Devo ser punido, como outro qualquer. Fui orgulhoso e Deus não quer o orgulho em sua Terra. Então Ele me disse: “Moisés, todos os humanos morrem. Mas eu estarei em seu enterro”. ITAMAR – E o senhor acreditou nisso? MOISÉS – Ele disse que virá dos céus para levar minha alma. ITAMAR – E isso é tão importante? MOISÉS – De certa forma significa que eu sou o eleito, seu filho mais querido. Penso em como ficaria feliz se na hora Ele... me beijasse... e chorasse. Seria a glória, a compensação de todo sofrimento, de tanta ingratidão. Um silêncio. ITAMAR – Se continuar assim, esse Deus ficará desmoralizado por toda a eternidade. MOISÉS – Só uns poucos escolhidos chegarão. ITAMAR – Um Deus que não consegue conduzir seu povo à Terra Prometida? MOISÉS – Só os que nasceram após a saída do Egito poderão entrar nela. ITAMAR – Um Deus que não discrimina os justos dos injustos? MOISÉS – É impossível compreender a vontade Dele. ITAMAR – Um Deus como esse não pode ser Deus. Um silêncio. MOISÉS – Ontem eu vi a Terra Prometida. ITAMAR – De onde? MOISÉS – Do alto do monte Amarim. E então? Vai voltar agora que estamos tão perto? ITAMAR – Como sabe que é ela? MOISÉS – Eu a reconheço. O território dos cananeus, dos jabuseus e outros povos que ocupam a Terra Prometida. Precisaremos vencê-los para impor nosso Deus. ITAMAR – Mas então a Terra Prometida não é uma terra vazia, feita somente para o nosso povo, onde reinará a justiça e a verdade acima de tudo? MOISÉS – Se fosse assim, seria muito fácil, não? ITAMAR – Não é a terra da paz e da prosperidade? MOISÉS – Depois que a espada fizer o seu trabalho, sim. ITAMAR – Então Jeová enganou seu povo. MOISÉS – Por que enganou? Deus foi, durante esse tempo todo, um mapa no deserto para nós. A Terra Prometida, porém, está em nossas mãos conquistar. ITAMAR – Não foi o discurso pregado durante anos. MOISÉS – Precisávamos estar melhor preparados. Quando eu mandei os chefes das tribos para explorar o país de Canaã, eles voltaram pessimistas com o que encontraram, dizendo que teríamos de reconquistá-la. Reconquistar uma terra que já era nossa antes de eles a ocuparem. Um silêncio. ITAMAR – Está bem, tio. Faça como quiser. Mas o senhor não vai morrer agora. MOISÉS – Como sabe? ITAMAR – Eu simplesmente sei. Não é justo. Não é digno desse Deus deixar que morra assim. MOISÉS – Não disse há pouco que queriam me matar? ITAMAR – Mas Jeová pode intervir! Onde Ele está? Diga-me! Eu quero falar com Ele! (um silêncio) Não precisávamos de nada disto. Reflita um pouco, tio. Conceba que o homem pode ser maior do que esta miséria que ele tem mostrado. Mas talvez não haja mais tempo para nada. O caos está instaurado. Um silêncio. MOISÉS – Você conhece bem Josué, não? Sabe de suas capacidades. Ele tem mostrado qualidades de líder. Será meu sucessor. A partir de hoje você está liberado para seguir seu rumo. Eu o autorizo, em nome de Deus. ITAMAR – Pare com isso, de uma vez por todas! Por que está insistindo nessa história? MOISÉS – Porque você é meu sobrinho! Lhe parece pouco? ITAMAR – Não adianta, tio. Eu vou embora! Um silêncio. MOISÉS – Itamar... Eu queria lhe pedir uma última coisa. ITAMAR – Fale. MOISÉS – Sinto-me cansado, preciso de sua ajuda para caminhar. ITAMAR – Farei o que puder. MOISÉS – Antes que partam... Gostaria de visitar as tendas dos hebreus, uma por uma e ver o que eles têm a me dizer. ITAMAR – Eles não dirão nada. MOISÉS – No fundo eu só queria ouvir: “Obrigado. Você é um de nós. Você nos levou para o nosso futuro”. ITAMAR – Desculpe, mas eu acho que o senhor não vai escutar isso de ninguém. MOISÉS – Pelo menos de alguém eu preciso ouvir. Um silêncio. ITAMAR – Está certo, tio. Em algum lugar as pessoas irão parar. Em alguma terra, prometida ou não, é natural que cheguem a algum lugar. Mas sabe o que vai acontecer quando esse dia vier? O povo, esse povo eleito, como o senhor chama, vai fazer tudo o que evitou durante quarenta anos. Então o senhor vai ver o que restará do plano de Deus. MOISÉS – É possível, mas aí já não será mais comigo. ITAMAR – Por quê? MOISÉS – Eu já terei feito a minha parte. Um silêncio. ITAMAR – Já que o senhor não pode fazer uso do cajado... Já que Jeová confia tanto em mim... Que eu posso crer sozinho... Eu quero ver o brilho de Deus ao menos uma vez. Quanto a isso, eu acho que tenho direito. MOISÉS – Você sabe que eu não posso. ITAMAR – E a misericórdia Dele? Não se pode apelar? (um silêncio) Talvez seja a última chance de nos entendermos. Ou quem sabe a face de Deus impregnada no senhor não ofusque meus olhos a ponto de eu perder a razão e querer ficar para sempre ao seu lado? MOISÉS – Crê mesmo nisso? ITAMAR – Eu penso que sim. MOISÉS – Deixar que veja assim a face luminosa de Deus? Poderá matá-lo. ITAMAR – A essa altura, não me importa. Tente. MOISÉS – Você acredita ser capaz? ITAMAR – Quem sabe? E o senhor? Moisés busca, em forma de oração, o consentimento de Deus. MOISÉS – Ele permitiu. Moisés tira o véu. ITAMAR – (Depois de olharem-se fixamente por um tempo) Sim, é como eu esperava. É a sua face que vejo, não a de Deus. Na verdade eu o entendo cada vez menos. Acho que nunca poderei alcançá-lo. Eu sempre observei o senhor de longe e pensei: “Este homem é melhor do que eu em tantas coisas. Mas é tão difícil me aproximar dele. Não permite uma refeição em comum. Nunca dividiu a mesma bebida ou a mesma conversa com ninguém... É um homem de figura poderosa e impressionante, de quem me sinto distante e inferior”. MOISÉS – Não olhe para mim, Itamar. ITAMAR – Da mesma forma, o Deus de Israel sempre me pareceu distante. Agora, quando penso Nele, não sinto nada que não seja uma mistura de ódio e desprezo. MOISÉS – Olhe através de mim. ITAMAR – Mesmo assim eu o amo, meu tio. Tanto quanto amei meu pai. Como amo a todos que são chamados pela voz desse Deus que eu nunca escutei, dono de uma face que jamais enxergarei. Moisés volta a colocar o véu sobre o rosto. MOISÉS – Foi Ele quem quis assim. Fez-se trevas para você partir em paz. Mas não o deixará. Um dia você irá encontrá-lo, quando menos esperar. Um silêncio. ITAMAR – De que me adianta ter o amor do mundo inteiro e mesmo de Deus, se em minha própria casa, entre os meus, eu me sinto um estrangeiro, um exilado? Agora mesmo... O senhor teve tempo de me olhar? Viu como é o rosto de seu sobrinho, filho de seu irmão? MOISÉS – Foi o que eu tentei fazer a vida inteira e você não percebeu. ITAMAR – Mas eu não perco as esperanças. Alguma coisa boa ainda vai me acontecer. A mim e a todos que irão comigo. MOISÉS – Boa viagem, filho. (um silêncio) Itamar... Sabe porque eu devo morrer em breve? Deus está furioso com o fato de terem me tomado por Ele. É preciso fazer alguma coisa para tirar dos homens a ilusão de que uma imagem ou pessoa possa ser maior do que o Senhor. A partir do momento em que Moisés for um estorvo aos planos de Deus, Moisés deixará de existir. ITAMAR – E o senhor? Não deseja nada para si? MOISÉS – Só o que retorna para Ele. Um silêncio. ITAMAR – Bem... Talvez partamos amanhã. Depois digo-lhe quais famílias irão. De todo modo ainda teremos tempo de nos despedir. MOISÉS – Quem sabe? ITAMAR – O senhor não vai morrer agora, tio. A não ser que queira. Nesse caso é diferente. E se for isso mesmo... Eu não posso fazer nada, infelizmente. Talvez o senhor deseje ser lembrado como o maior profeta que Israel já teve... (um silêncio) Tio... Isso tudo não vai levar a nada. Por favor, desista. MOISÉS – Não, filho. Agora é preciso caminhar com muita cautela. É mais fácil tropeçar no fim do que no começo. (um silêncio) Itamar... Que não seja por Deus, então. Que seja por nós. Eu e seu pai que tudo fizemos por você. Pela vida que lhe demos. Você ficaria? ITAMAR – Não, tio. Infelizmente não. Não que eu não queira. Eu não posso. (um silêncio) Não está mais em meu poder decidir. Acho que o senhor pode me entender. Talvez um Deus, tão grande quanto o seu, nos leve para caminhos desconhecidos, e isso não seja necessariamente um mal. Talvez um Deus cujo nome eu desconheça. Mas que importância tem isso agora? Falamos tanto para nada. É difícil saber o que restará disso tudo, o senhor não acha? Itamar pega o manto e começa a sair. ITAMAR – Tio... Obrigado pelo manto. Itamar sai. Moisés apóia-se no cajado. Fecha os olhos e começa a orar, como no início. Escurece. Fim. A ENTREVISTA (peça teatral em ato único) Ficha Técnica A Entrevista estreou em 25 de setembro de 2004 no Sesc Santo André (SP), com a seguinte ficha técnica: Autor – Samir Yazbek Diretor – Marcelo Lazzaratto Elenco – Lígia Cortez (Escritora) e Marcelo Lazza ratto (Entrevistador) Assistente de Direção – Vera Egito Cenógrafo – Ulisses Cohn Figurinista – Cássio Brasil Iluminador – Marcelo Lazzaratto Operador de Luz – Rodrigo Spina Sonoplasta – Marcelo Lazzaratto Operador de Som – Rodrigo Spina Locutor – Carlos Henrique Correa Projetista Gráfico – Sesc Santo André Fotógrafo – Ulisses Cohn Assessor de Imprensa – Sesc Santo André Produtor e Administrador – Kalid Sarhan Apoiador Cultural – Teatro do Centro da Terra Realizador – Sesc Santo André A versão final do texto, agora apresentada, beneficiou-se de preciosas sugestões de Lígia Cortez e Marcelo Lazzaratto, respectivamente atriz e ator / diretor da montagem original. Lígia Cortez e Marcelo Lazzaratto, em A Entrevista Fortuna Crítica A ENTREVISTA em SP “Samir Yazbek volta com outra profunda sondagem da alma humana, como fizera lindamente em O Fingidor, esmiuçando o nojo existencial de uma escritora, tomada ainda por uma crise de criatividade artística. Yazbek é – ao lado de Luís Alberto de Abreu – de longe, o mais adulto de seus colegas de geração”. Afonso Gentil Aplauso Brasil “Com absoluta candura, o texto concentra-se sobre o impulso criador (...) O assunto é uma reflexão ética sobre o fazer artístico (...) Nesta peça, em que a tarefa é evidenciar um processo introspectivo (...)” Mariângela Alves de Lima O Estado de S. Paulo “Nunca Samir Yazbek esteve tão strindberguiano como em A Entrevista: a obediência estrita à unidade de tempo e espaço, fazendo a peça se desenrolar em tempo real, na duração de um programa de TV, com cada gesto e fala sendo controlados por câmeras que se adivinham, dão ao espetáculo uma estrutura rigorosa, que exige uma grande maturidade dos artistas e público envolvidos. Essa falta de concessões garante o fascínio da montagem”. Sérgio Salvia Coelho Folha de S. Paulo “Escritora de sucesso enfrenta uma crise de identidade e ainda é obrigada a revelar problemas pessoais em um programa de entrevistas, sob o comando do ex-marido. Em linhas gerais, eis o resumo de A Entrevista, a mais recente peça de Samir Yazbek. O confronto, porém, permite ao espectador descobrir uma encenação que finalmente valoriza a palavra, dispensando recursos técnicos que servem apenas para entreter”. Ubiratan Brasil O Estado de S. Paulo “A palavra é salvaguarda da personagem de Lígia Cortez em expiação amorosa pela TV (...) Lígia Cortez disseca o ato criador pelas palavras de Yazbek”.” Valmir Santos Folha de S. Paulo Lígia Cortez, em A Entrevista A Entrevista Cenário Estúdio de um programa de televisão em que não vemos a aparelhagem, nem os técnicos. Destacamse uma cadeira giratória sob um foco de luz e uma mesa em que se encontra um copo d’água. Ação Bastidores de uma entrevista gravada; durante a entrevista propriamente dita. Antes do programa começar, ouvimos a voz do Entrevistador, próxima da Escritora (Entrevistador Cabine). Ao longo da entrevista, passamos a escutar a mesma voz nas caixas de som do teatro (Entrevistador Áudio). Num pequeno lapso durante a primeira parte, e também durante o intervalo do programa, voltamos a ouvir a voz do Entrevistador mais próxima da Escritora (Entrevistador Cabine). Finalmente, perto do fim da peça, o Entrevistador surge no palco (Entrevistador Cena). As transições de um momento para o outro serão devidamente indicadas pelas rubricas. Personagens Escritora. Entrevistador. Quando clareia, entra em cena a Escritora, vestida de preto, trazendo uma bolsa a tiracolo, de onde retira um maço de cigarros e um isqueiro. Ameaça fumar, mas logo desiste. Depois de um tempo, é nítido que, mesmo na presença dos técnicos imaginários, sente-se sozinha, tensa. Um silêncio nervoso, cheio de conflito. Ouve-se a voz do Entrevistador, próxima. ENTREVISTADOR (cabine) – Tudo bem, Lívia? ESCRITORA – Tudo. ENTREVISTADOR (cabine) – Podemos começar? ESCRITORA – Claro. ENTREVISTADOR (cabine) – Qualquer problema você me avisa, ok? ESCRITORA – Tomara que o microfone não caia, como da última vez. ENTREVISTADOR (cabine) – Isso não vai acontecer, pode ficar tranqüila. ESCRITORA – Por que não me avisaram que era você que faria a entrevista? ENTREVISTADOR (cabine) – Eu tinha medo que recusasse. ESCRITORA – Pois eu recusaria mesmo. ENTREVISTADOR (cabine) – Quando me disseram que a pauta foi aprovada, eu não consegui me controlar. Conversei com o Eduardo e resolvi entrar no lugar dele. ESCRITORA – Por que isso agora? ENTREVISTADOR (cabine) – Eu estava devendo isso para você. ESCRITORA – Você não está me devendo nada. ENTREVISTADOR (cabine) – Foi a forma que eu encontrei de mostrar quanto eu te admiro. ESCRITORA – (irônica) Com uma entrevista? ENTREVISTADOR (cabine) – Por que não? ESCRITORA – Se admirasse, faria o que fez? ENTREVISTADOR (cabine) – Que foi que eu fiz, Lívia? ESCRITORA – Me deixou naquele estado, esqueceu? ENTREVISTADOR (cabine) – Eu não estava supor tando. ESCRITORA – Mas eu tive de suportar. Chega, eu não quero mais falar sobre isso. Aliás, eu prometi para mim mesma que nunca mais ia falar com você. Começa logo, vamos ver aonde é que você pretende chegar. ENTREVISTADOR (cabine) – Eu não pretendo chegar a lugar nenhum. ESCRITORA – Tem certeza? ENTREVISTADOR (cabine) – Lívia, o que você esperava que eu fizesse? ESCRITORA – Nada. ENTREVISTADOR (cabine) – Está vendo? Há meses você não atende a um telefonema meu. Eu não tive outra saída. ESCRITORA – Ao menos tivesse a coragem de falar a verdade. ENTREVISTADOR (cabine) – E você aceitaria? ESCRITORA – O que você acha? ENTREVISTADOR (cabine) – Bem, Lívia... Você quer desistir? ESCRITORA – Como eu vou desistir de uma entrevista anunciada a semana inteira? ENTREVISTADOR (cabine) – A gente inventa uma desculpa qualquer. ESCRITORA – Pensa que eu enlouqueci? (um silêncio) Eu já vi você fazer muita coisa, mas nunca imaginei que chegaria a esse ponto. ENTREVISTADOR (cabine) – Então podemos seguir em frente? ESCRITORA – Você é quem sabe. ENTREVISTADOR (cabine) – Só um instante, por favor. (um silêncio) Bem, vamos lá. Boa sorte, Lívia. Ok, estúdio, trinta segundos. Talvez essa não tenha sido a melhor forma. Vinte. Mas eu não podia deixar de participar dessa homenagem. Dez. Eu só espero que tudo isso realmente valha a pena. Três, dois, um. A Escritora senta-se. Permanecerá assim quase até o final da peça, com poucos momentos de exceção, reagindo sensivelmente com o corpo a cada intervenção do Entrevistador. Escuta-se a vinheta do programa. A partir de então, a voz do Entrevistador será ouvida nas caixas de som do teatro. ENTREVISTADOR (áudio) – Boa noite. Ela é uma das mais importantes escritoras da atualidade. Dona de um estilo único, crítico em relação à condição humana, tem bastante afinidade com a obra do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. No entanto, essa escritora de apenas 43 anos, uma das prosas mais instigantes de hoje, tem uma longa história de peregrinações por redações de jornais, em que a poesia era a sua grande paixão. Nesta semana, o Comitê das Artes do Governo Federal inicia uma série de atividades em homenagem a esta que é considerada uma das vozes mais fecundas da nova ficção brasileira. É para conhecer um pouco dessa trajetória que convidamos para vir ao estúdio a escritora Lívia Vasconcelos. Lembramos que o programa de hoje, por motivos de força maior, não poderá contar com a participação do jornalista Eduardo Drumond, que normalmente o comanda. Boa noite, Lívia. ESCRITORA – Boa noite. ENTREVISTADOR (áudio) – Em primeiro lugar, eu gostaria de saber o que você está achando da homenagem que o Comitê das Artes do Governo Federal está lhe prestando. ESCRITORA – Antes eu queria agradecer as palavras da introdução. Bem, eu mentiria se dissesse que não estou feliz. Eu realmente não esperava por nada disso. Jamais imaginei que uma coisa dessas pudesse acontecer na minha vida. Mas esse evento está sendo feito de uma forma tão sincera, e por gente tão competente, que eu realmente não tenho do que me queixar. Agradeço muito a todo o pessoal do Comitê das Artes do Governo Federal. ENTREVISTADOR (áudio) – Eu quero dizer que acho muito justo o que está acontecendo. ESCRITORA – Obrigada, mas eu creio que há um pouco de sorte nisso tudo. ENTREVISTADOR (áudio) – Acompanho o seu trabalho há muito tempo e posso testemunhar a seriedade com que você se dedica à literatura. É por essas e outras que representa uma das vozes mais originais do nosso tempo. ESCRITORA – Isso é bondade sua, que me conhece desde que comecei. ENTREVISTADOR (áudio) – Só para iniciarmos, é possível detectar em toda essa onda “Lívia Vasconcelos”, um crescimento na venda de seus livros? ESCRITORA – Ah! Sem dúvida. A estimativa é que só nesse último ano, a vendagem dos meus livros tenha praticamente dobrado. ENTREVISTADOR (áudio) – E como você recebe essa notícia? ESCRITORA – Eu fico feliz, é claro. Para uma escritora como eu, é mais do que se pode imaginar. E depois, a gente escreve para ser lida, não é? ENTREVISTADOR (áudio) – E como você encara o fato de ser ainda tão jovem, mas ao mesmo tempo tão respeitada, talvez uma das mais respeitadas escritoras brasileiras da atualidade? ESCRITORA – Pois é, esse é o problema. ENTREVISTADOR (áudio) – Em que sentido? ESCRITORA – Essa repercussão toda às vezes incomoda. ENTREVISTADOR (áudio) – Como? ESCRITORA – Por um lado é muito importante que haja o reconhecimento do escritor brasileiro, disso eu não tenho como discordar. Nós não somos um país de muitos leitores, e sempre que um bom livro encontra ressonância no público e na crítica, isso deveria ser comemorado. Quanta gente maravilhosa eu conheço que dá a vida por um espaço e não consegue. Gente talentosa mesmo. Nesse sentido, muitos me ajudaram e eu tenho de ser grata. Mas por outro lado... Bem, eu nem sei se deveria falar sobre isso agora, mas confesso que eu me sinto um pouco desconfortável nesse papel. ENTREVISTADOR (áudio) – Por quê? ESCRITORA – Talvez seja bobagem da minha parte. ENTREVISTADOR (áudio) – Poderia explicar melhor? ESCRITORA – O problema está justamente no fato de eu ser jovem, isso para o qual você chamou a atenção. Só que para mim incomoda, pois o que à primeira vista parece virtude, na verdade pode não ser. O que eu quero dizer é que muitos escritores começam na idade em que eu estou. E eu ainda pretendo escrever muita coisa nessa vida. Só que de repente eu fui alçada à condição de “grande escritora”, e isso tem um lado que não é muito bom. Acomoda a gente. Tem uma voz lá no fundo que diz que tudo vai bem, que você já está bem, que pronto, já é uma artista consagrada, e em arte as coisas não funcionam bem assim. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas você não se considera uma artista consagrada? ESCRITORA – Não é questão de me considerar ou não uma artista consagrada, afinal eu vejo como me tratam. Se “consagrada” for isso, não há dúvida de que eu sou. Mas se eu pudesse escolher, eu deixava de lado o “consagrada” e ficava apenas com o “artista”. ENTREVISTADOR (áudio) – Sei. ESCRITORA – Tudo isso porque eu sinto que o meu melhor ainda está por vir, entende? Em todo caso, não é hora de reclamar de nada. Sobretudo quando nos prestam uma homenagem dessas, um presente tão lindo que estão me dando. Eu só posso agradecer. E agradecer também aos muitos amigos que colaboraram com o Comitê das Artes do Governo Federal. Bem, eu acho que você gostaria que eu falasse sobre outras coisas, não é? ENTREVISTADOR (áudio) – Não, podemos falar sobre isso mesmo. Aliás, aqui podemos falar sobre o que você quiser, que é, em última instância, o que interessa às pessoas que nos assistem. ESCRITORA – Então falemos. ENTREVISTADOR (áudio) – Me diga uma coisa, Lívia, eu não sei se estou certo, mas você não está me parecendo muito animada com tudo isso. ESCRITORA – Eu não lhe pareço bem? ENTREVISTADOR (áudio) – Estou te sentindo um pouco abatida. ESCRITORA – Como você percebeu isso? ENTREVISTADOR (áudio) – Antes mesmo da entrevista começar, enquanto a gente conversava, notei que você se referia à homenagem de uma forma meio vaga, sem entusiasmo. ESCRITORA – É, pode ser que você tenha razão, mas não se trata da homenagem em si. É que eu não ando com muita vontade de falar nada, sabe? Sobretudo hoje, em que acordei com muita preguiça. Mas comigo é normal isso acontecer. ENTREVISTADOR (áudio) – Anda muito mal-humorada? ESCRITORA – É, digamos que sim, de fato eu não ando muito empolgada. Sabe aqueles dias em que a gente acorda e não vê graça em coisa nenhuma? Pois então. Até fiquei com muito medo de não ter nada de interessante para dizer, mas depois eu consegui lembrar de algumas histórias e vim preparada. Pode perguntar à vontade. ENTREVISTADOR (áudio) – Não tem a ver com o frio que está fazendo? ESCRITORA – Não é nada físico. ENTREVISTADOR (áudio) – Nada relacionado à sua saúde? ESCRITORA – Minha saúde está ótima, graças a Deus. ENTREVISTADOR (áudio) – Você poderia ter cancelado o encontro, se quisesse. ESCRITORA – Imagine, eu já tinha marcado essa entrevista há mais de um mês. E depois, eu tenho muitos amigos nessa emissora, não queria desapontá-los. E também não quero passar por presunçosa, quando na verdade eu estou bastante orgulhosa com o que está me acontecendo. Um silêncio. ENTREVISTADOR (áudio) – Isso tem ocorrido muito? ESCRITORA – O quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Esse desânimo todo. ESCRITORA – De vez em quando acontece. ENTREVISTADOR (áudio) – Com muita freqüência? ESCRITORA – Você quer mesmo falar sobre isso. ENTREVISTADOR (áudio) – Se não for incomodar. ESCRITORA – Não, é que eu não gosto muito de co mentar sobre a minha vida pessoal. Eu quase nunca acredito que ela possa ser útil às pessoas. ENTREVISTADOR (áudio) – Ao contrário, eu acho que pode ser interessante para o público que nos assiste. Afinal, parecem coisas pessoais, mas acrescentam muito à compreensão que temos da sua literatura. ESCRITORA – Bem, o programa é seu, não é? ENTREVISTADOR (áudio) – Nosso. ESCRITORA – Mas é você quem manda. Eu vou lhe dizer o que acontece. (acende um cigarro) Eu sou uma escritora. O que me interessa é simplesmente escrever, mostrar os meus livros e saber como o leitor está recebendo o meu trabalho. Ocorre que nos dias de hoje, em que toda figura pública está o tempo todo em evidência, nem sempre temos algo de interessante a dizer. Mesmo sendo uma escritora, que as pessoas imaginam como se fosse uma sumidade em conhecimentos gerais, quando isso está longe de ser verdade. Eu não sou uma acadêmica, mas apenas alguém que se utiliza das palavras para dizer algo muito simples. De repente, voltamos a ouvir a voz do Entrevistador na Cabine. ENTREVISTADOR (cabine) – Um momento, Lívia. Desculpe, mas nós precisamos interromper a gravação. ESCRITORA – Por quê? ENTREVISTADOR (cabine) – Problema técnico. ESCRITORA – Comigo? ENTREVISTADOR (cabine) – Imagine. Olha, se quiser levantar, pode ficar à vontade. ESCRITORA – Pode fumar aqui? ENTREVISTADOR (cabine) – Claro. ESCRITORA – E durante a entrevista, também pode fumar? ENTREVISTADOR (cabine) – Claro, Lívia, o programa é seu. ESCRITORA – Ah! Quase esqueci. A Escritora levanta-se e vai até um canto do estúdio. Caminha profundamente perturbada. Depois de um tempo, aproximadamente um minuto, o Entrevistador retoma a conversa. ENTREVISTADOR (cabine) – Muito bem, Lívia, a gente já pode voltar. Houve um problema de freqüência no microfone, mas já foi corrigido. ESCRITORA – De novo o microfone? Acho que é para eu não falar nada mesmo, hein? ENTREVISTADOR (cabine) – Imagine, foi apenas uma interferência de ondas de rádio, não vai acontecer de novo. ESCRITORA – Talvez a gente não devesse nem ter começado. A Escritora senta-se. ENTREVISTADOR (cabine) – Será que você poderia retomar da última resposta? ESCRITORA – Eu sei lá o que eu estava falando. ENTREVISTADOR (cabine) – Você falava de como é ser uma figura pública hoje em dia. ESCRITORA – Me deu um branco, não faço a menor idéia. ENTREVISTADOR (cabine) – Que nem sempre o artista tem algo de interessante a dizer, lembra? ESCRITORA – É que antes eu estava no embalo, mas agora eu perdi completamente. ENTREVISTADOR (cabine) – Tenta lembrar mais ou menos, está bem? ESCRITORA – Está bem. ENTREVISTADOR (cabine) – Então podemos co meçar? ESCRITORA – Por favor. ENTREVISTADOR (cabine) – Quando eu disser “gra vando”, a gente retoma desse ponto, ok? ESCRITORA – Tudo bem. ENTREVISTADOR (cabine) – Eu te ajudo. ESCRITORA – Ah! Obrigada. ENTREVISTADOR (cabine) – Ok, estúdio... Gravando. Voltamos a ouvir a voz do Entrevistador nas caixas de som do teatro. ENTREVISTADOR (áudio) – Muito bem, Lívia, nós podemos retomar do seu incômodo em ser uma figura pública. ESCRITORA – (após um silêncio) O fato é que às vezes, para divulgarmos o nosso trabalho, somos obrigados a nos expor a determinadas situações que não gostaríamos. Ponto. Não é nada mais do que isso. ENTREVISTADOR (áudio) – Como esta, por acaso? ESCRITORA – Não, de jeito nenhum. Aqui eu me sinto bem, é como se eu estivesse em casa. ENTREVISTADOR (áudio) – Quer dizer então que a incomoda que as pessoas vivam sempre esperando que você seja alguém interessante, não importa em quê. ESCRITORA – Exatamente, e quase sempre a gente não é interessante em coisa nenhuma, essa é a verdade. Por isso acho que na maioria das vezes o melhor mesmo é não falar nada. ENTREVISTADOR (áudio) – E quando você escreve, acontece a mesma coisa? ESCRITORA – Ah! Sim, a mesma coisa. Afinal, por que você acha que eu estou há três anos sem publicar nada? Falta de editora eu lhe garanto que não é, embora eu saiba que esse é um problema para muita gente, e não o desprezo. Mas no meu caso é falta do que dizer mesmo. E também sinto que é um pouco mais do que isso. ENTREVISTADOR (áudio) – Como assim? ESCRITORA – A falta do que dizer é tão grande, que nem mais sobre isso eu quero escrever, entende? Cansei desse discurso auto-referencial e metalingüístico, em que utilizamos a linguagem para expor as nossas limitações. Embora eu já o tenha utilizado bastante, hoje em dia isso me parece o menos importante do que tudo. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas então, na sua visão, o que seria importante para as pessoas hoje em dia? ESCRITORA – Para mim o problema hoje é de outra natureza. A grande questão do século que se inicia, seria fazermos uma reflexão sobre a nossa incapacidade de agir, mesmo sabendo de tanta coisa errada que mereceria uma tomada de posição mais certeira da nossa parte. Uma espécie de Hamlet redivivo é o que eu antevejo para nós, enquanto um destino coletivo. Afinal de contas, porque justamente quando mais temos consciência de nossas limitações, menos parece que temos força para ultrapassá-las? ENTREVISTADOR (áudio) – Ultrapassá-las em que sentido? ESCRITORA – No sentido de sermos menos mesquinhos, de irmos além do nosso umbigo, daquilo que nos apequena. É claro que temos de encarar de frente toda essa nossa fragilidade, mas acho que isso já foi feito o bastante, pelo menos por mim, ou seja, eu já me convenci o suficiente do quanto sou falível e superficial. O problema é que, se ficarmos o tempo todo alimentando as nossas fraquezas, nós não vamos ter força para seguir adiante. Agora, por exemplo, seria o momento de uma tentativa de auto-superação. É por isso que, em termos de linguagem, eu gostaria de encontrar algo que apontasse para além desse eterno voltar-se para si mesma em busca de um sentido. ENTREVISTADOR (áudio) – Interessante, Lívia, diria até surpreendente. Você está dizendo coisas que contradizem tudo o que você já escreveu. Mas nesse caso, então, onde estaria o sentido para você? ESCRITORA – Não sei. ENTREVISTADOR (áudio) – Talvez na proximidade com o outro? ESCRITORA – Sem dúvida, o outro é sempre o foco de quem trabalha com arte. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas pensando assim, você não modificaria o cerne de seu trabalho? ESCRITORA – Por quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Em seus textos, muitas vezes você chega a mostrar que não acredita muito no ser humano. ESCRITORA – De onde você tirou isso? É claro que eu acredito. É curioso, mas há uma interpretação tão equivocada a respeito do meu trabalho. Tratase de um mergulho dentro de mim num tempo em que o outro desapareceu do horizonte. Para um escritor, não resta outra alternativa a não ser lidar com aquilo que a vida lhe apresenta. E eu acho que foi legítimo enquanto durou. Mas agora, em que o individualismo parece que veio mesmo para ficar, eu não poderia tentar mudar, resgatando o valor desse indivíduo, só que de uma forma mais positiva? ENTREVISTADOR (áudio) – Claro que sim. ESCRITORA – Pois é o que eu estou tentando fazer, mas confesso que não é fácil. ENTREVISTADOR (áudio) – E me parece muito corajoso de sua parte. ESCRITORA – E o outro hoje é o meu foco, é aonde eu quero chegar. Pena que na maioria das vezes ele não deseje o mesmo que eu. Mas basta que eu mesma tente, não é? Eu não vou me incomodar porque alguns amigos não sentem mais as mesmas coisas que eu, ainda que tenham sido alguns dos mais importantes para mim. ENTREVISTADOR (áudio) – Curioso, Lívia. Parece que há um lado desafiador nisso tudo que te atrai. Seria como se você estivesse destruindo a si mesma, a imagem que as pessoas têm de você, acreditando que alguma coisa mais interessante seja posta no lugar? É isso, Lívia, uma forma de superação? ESCRITORA – É, deve ser. Eu ainda pretendo ser reconhecida pelo que eu tenho de melhor. ENTREVISTADOR (áudio) – Então porque você não tem escrito? ESCRITORA – Eu não escrevo não por que não quero, mas simplesmente porque não consigo. ENTREVISTADOR (áudio) – Só que não é a escrita que me parece o mais importante. Eu confesso que a questão do outro é que me amedronta. ESCRITORA – Por quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Porque eu sinto que você está tocando no único ponto que realmente vale a pena tocar. ESCRITORA – Talvez seja isso mesmo, o único ponto importante que há. ENTREVISTADOR (áudio) – Só que não me parece nada fácil resolvê-lo concretamente, entende? ESCRITORA – O tempo vai passando e a gente percebe quanto dissipa as nossas melhores energias em bobagens. É por isso que eu tento me colocar à disposição, para facilitar esse processo de mudança, para que em breve eu consiga escrever sobre coisas que não sejam simplesmente a minha incapacidade de escrever sobre o que quer que seja. ENTREVISTADOR (áudio) – E também para que possa viver, não? ESCRITORA – Para mim é tudo a mesma coisa. ENTREVISTADOR (áudio) – E você está disposta a qualquer sacrifício para isso? ESCRITORA – Eu sei que é um caminho complexo, cheio de nuances, mas devemos seguir nessa direção incessantemente, mesmo sem alcançarmos resultados minimamente satisfatórios, porque há um lado nisso tudo que é assim mesmo, como as estações do ano, as colheitas... Nós fazemos parte da natureza e as coisas não acontecem simplesmente quando a gente quer. Nesse caso é preciso saber esperar. Eu não posso procurar desesperadamente uma saída, porque eu sei que eu não vou encontrar. Se eu soubesse como viver o tempo todo em estado criativo, não tenha dúvida que eu viveria, porque os momentos estéreis, como eu já disse, são bem difíceis de enfrentar. O que me assusta dessa vez é que o tempo de espera está sendo um pouco longo demais. Três anos. Um deserto. Talvez justamente por eu estar procurando algo muito diferente do que eu já vinha fazendo. No fundo, eu estou muito insatisfeita comigo mesma, essa é a verdade. Mas logo tudo isso vai passar e eu vou voltar a sorrir. ENTREVISTADOR (áudio) – Eu desejo o mesmo. ESCRITORA – Tudo isso, eu gostaria de acrescentar, tem um lado muito existencialista da literatura, no sentido que eu me sinto verdadeiramente morta quando não estou escrevendo. É terrível, mas é assim. No fundo, eu não sei o que seria da minha vida sem a literatura. ENTREVISTADOR (áudio) – Neste caso, então, onde estaria a resposta para você? ESCRITORA – Na vida. ENTREVISTADOR (áudio) – Na sua? ESCRITORA – Sim, claro, na minha. Mas cada um tem a sua. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas a resposta sempre esteve na vida para você? ESCRITORA – Se isso não redundar em mais individualismo, me parece importante resgatar essa idéia. A construção da vida como um destino que devemos explorar ao máximo. ENTREVISTADOR (áudio) – Lívia, você já pensou em desistir? (um silêncio) Quer dizer então que se você mergulhasse na sua vida, acredita que sairia desse impasse? ESCRITORA – Eu sempre tento mergulhar na minha vida. A resposta sempre esteve nela. Mas o que seria mergulhar na minha vida hoje em dia? Sinceramente eu não sei. E eu não sei se eu tenho tantas opções assim. Pelo menos não tenho encontrado nada que me convença a ponto de me fazer arriscar tudo o que consegui conquistar até hoje. Por aí você pode imaginar como seria se me tirassem o direito de escrever. ENTREVISTADOR (áudio) – Bem, Lívia, agora temos de fazer um rápido intervalo. Parece que a sua literatura está passando por um momento de transformação. Mesmo assim, se não se incomodar, na volta eu gostaria que explorasse um pouco mais esse impasse em que está vivendo. Creio que pode ser útil para muita gente. ESCRITORA – Será que eu consigo? ENTREVISTADOR (áudio) – Voltamos em um minuto. Novamente escuta-se a vinheta do programa. Um silêncio. Como antes, ouvimos a voz do Entrevistador na Cabine, próxima da Escritora. ENTREVISTADOR (cabine) – Está precisando de alguma coisa, Lívia? ESCRITORA – Não, obrigada. ENTREVISTADOR (cabine) – E então, gostando da entrevista? ESCRITORA – O que você acha? ENTREVISTADOR (cabine) – Viu como era uma homenagem? ESCRITORA – Quem lhe deu o direito de me expor dessa maneira? ENTREVISTADOR (cabine) – Eu só estou querendo ajudar. ESCRITORA – Eu não estou precisando de ajuda. ENTREVISTADOR (cabine) – Eu queria mostrar para as pessoas que você não estava morta. ESCRITORA – Mas eu estou morta. ENTREVISTADOR (cabine) – Está se saindo melhor do que eu imaginava. ESCRITORA – Uma violência, isso sim. Uma pergunta mais invasiva que a outra. Acho que eu vou embora. ENTREVISTADOR (cabine) – Agora não dá mais. ESCRITORA – Tem certeza? ENTREVISTADOR (cabine) – Bem, você é quem sabe. Aliás, é bem típico de você, não é? Fugir quando as coisas estão se esclarecendo. ESCRITORA – Do que você está falando? ENTREVISTADOR (cabine) – Lívia, fazia tempo que eu não te ouvia falar tanto. ESCRITORA – Fazia tempo que eu não falava, isso sim. Em todo caso, são as mesmas coisas de sempre. ENTREVISTADOR (cabine) – Não... Você está falando de um jeito que eu nunca vi. Eu não sabia que você estava tão lúcida. ESCRITORA – Está sendo irônico? ENTREVISTADOR (cabine) – Juro que não, eu estou realmente surpreso. Eu nunca te vi assim em todo o nosso tempo. ESCRITORA – Você gostaria que eu escancarasse o meu pior. ENTREVISTADOR (cabine) – Está vendo? Só que eu não sei como te ajudar. ESCRITORA – Mas quem você pensa que é para me ajudar? ENTREVISTADOR (cabine) – Você quer ajuda sim, Lívia, senão já teria ido embora faz tempo. Em todo caso, eu sei que me arrisquei, mas para mim está sendo ótimo. ESCRITORA – Por quê? ENTREVISTADOR (cabine) – Porque você está me fazendo pensar. ESCRITORA – No quê? ENTREVISTADOR (cabine) – Nos meus próprios erros. ESCRITORA – Então por que não me chamou para uma conversa em particular? ENTREVISTADOR (cabine) – Porque você não aceitaria. E se aceitasse, ficaria de longe, me olhando com mágoa, ressentida. Desse jeito, está sendo obrigada a me tratar bem, o que para mim é muito bom. ESCRITORA – Não lhe parece uma loucura falar dessas coisas publicamente? ENTREVISTADOR (cabine) – Ninguém vai se importar tanto assim. ESCRITORA – Ninguém vai se importar? Mas eu me importo. Eu não quero falar sobre coisas que eu preciso esquecer. ENTREVISTADOR (cabine) – O público vai compreender, Lívia, isso é muito importante para você. E a entrevista está ótima. E depois, eu acho que as pessoas podem se beneficiar com tudo isso, porque, afinal de contas, não estamos falando só de nós mesmos, não é? ESCRITORA – Em todo caso, eu gostaria que você parasse de comentar sobre certos assuntos que você adoraria... ENTREVISTADOR (cabine) – (cortando-a) Está bem, Lívia, eu prometo que vou moderar. Volta a vinheta do programa. Novamente ouvimos a voz do Entrevistador nas caixas de som do teatro. ENTREVISTADOR (áudio) – Olá, estamos de volta, hoje entrevistando Lívia Vasconcelos, uma das escritoras brasileiras mais importantes da atualidade. Muito bem, Lívia, antes do intervalo você nos falava de um certo desencanto geral com a vida e de um estado de paralisia criativa pelo qual está passando. Poderia nos dizer o que aconteceu para que as coisas chegassem a esse ponto com você? ESCRITORA – Sinceramente, eu acho que o mundo em si. De repente ficou muito difícil viver, simplesmente isso. E eu me lembro que há pouco tempo não era assim. Antigamente, havia uma crença comum de que nós iríamos melhorar como humanidade, que hoje eu já não encontro mais. Ficou muito pior do que eu imaginava. E do que muita gente imaginava. As pessoas, os lugares, a literatura, a competição entre os colegas, como se fôssemos executivos. Os leitores que não lêem. E se lêem, não têm o que dizer. E se têm o que dizer, normalmente dizem superficialidades. Acho que foi por tudo isso que eu fui me retraindo. E aí, no começo, como forma de entender o que acontecia comigo e com o mundo, eu achei importante falar sobre isso, mas agora eu queria expandir esse horizonte, eu me sinto presa. Parece que eu fui ultrapassada pelos acontecimentos e que não faz mais sentido pensar como eu pensava. Ou seja, ou eu encontro uma nova forma de escrever, ou então eu vou viver esse eterno tormento de estar sempre insatisfeita comigo mesma. ENTREVISTADOR (áudio) – Lívia, você não acha que fala de uma forma muito genérica? ESCRITORA – Por quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Não lhe parece que devemos buscar essa resposta mais dentro de nós do que numa análise do que acontece em volta? ESCRITORA – É importante analisar o mundo. ENTREVISTADOR (áudio) – Não esqueceremos de nós? ESCRITORA – Você acha que eu esqueço de mim? ENTREVISTADOR (áudio) – Às vezes parece que sim. ESCRITORA – Mas se agora há pouco eu disse que cada um tem a sua própria vida. ENTREVISTADOR (áudio) – Falar é mais fácil do que fazer. Aliás, de um certo modo, isso você também já disse, não é? Lívia bebe água. ENTREVISTADOR (áudio) – Que foi? ESCRITORA – Nada. ENTREVISTADOR (áudio) – Eu disse alguma bobagem? ESCRITORA – Imagine. ENTREVISTADOR (áudio) – Não, pode falar. ESCRITORA – Fique tranqüilo. ENTREVISTADOR (áudio) – Então por que o silêncio? ESCRITORA – É que às vezes eu fujo de mim mesma. Seria muito melhor se eu fincasse mais os pés no chão, eu conseguiria muito mais coisas. No fundo eu me iludo muito. Tem dias em que eu olho para dentro de mim e não encontro nada que já não estivesse lá, da mesma forma, no dia anterior. Aí sabe o que eu faço? Invento qualquer coisa, só para passar o tempo. Uma idéia qualquer, uma obsessão e pronto, já me dou por satisfeita. Dizem que nessa vida tudo é movimento, mas a experiência que eu tenho tido é de estagnação completa, acompanhada por uma falta de vigor absoluta. Você acha que assim eu poderei encontrar alguma resposta para mim? ENTREVISTADOR (áudio) – Talvez fosse necessário descobrir o que está lhe faltando, para tentar ir adiante. ESCRITORA – Ih! Tanta coisa me falta! Mas você não vai querer falar sobre isso agora, não é? ENTREVISTADOR (áudio) – Claro que não. Mas que existe algo, isso existe, não? ESCRITORA – Que algo? ENTREVISTADOR (áudio) – Algo que lhe falta. ESCRITORA – Para todo mundo falta algo. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas como é no seu caso? ESCRITORA – Você tem certeza que isso é uma entrevista? ENTREVISTADOR (áudio) – Desculpe. Um silêncio. ESCRITORA – Eu não sei muito bem o que me falta, talvez nem queira saber. Mas ter chegado a essa conclusão, ter admitido que eu, sozinha, não sou grande coisa, para mim já foi um grande avanço. Dá uma certa humildade. Perante o outro, perante o universo inteiro. É muito bonito, e de fato pode ser um novo caminho para mim. Mas não seria melhor a gente mudar de assunto? ENTREVISTADOR (áudio) – Por quê? ESCRITORA – Será que essas coisas interessam a alguém? ENTREVISTADOR (áudio) – Mais do que imagina. ESCRITORA – Você é quem sabe. ENTREVISTADOR (áudio) – A não ser que você queira parar. ESCRITORA – Não, é que não estava nos meus planos falar sobre isso. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas pode ser bom, não? ESCRITORA – O quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Falar sobre o que não se espera. ESCRITORA – É que normalmente isso é matéria da minha literatura. Eu costumava escrever muito sobre esses assuntos, mas não me lembro de ter ido tão longe falando sobre isso numa entrevista. Ou até mesmo escrevendo eu tenha ido tão longe. Mas vamos lá, até que não está tão ruim assim. Aliás, está começando a ficar interessante. (bebe mais água) Até essa água está mais gostosa. ENTREVISTADOR (áudio) – Você se surpreendeu? ESCRITORA – É, pode ser que eu esteja me surpreendendo. ENTREVISTADOR (áudio) – E se eu disser que o mesmo aconteceu comigo? ESCRITORA – Com o quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Com a nossa conversa. ESCRITORA – Não é uma conversa normal para você? ENTREVISTADOR (áudio) – Não. (um silêncio) Então podemos continuar? ESCRITORA – Claro. ENTREVISTADOR (áudio) – Muita gente pode estar passando por algo parecido. ESCRITORA – Pelo quê? ENTREVISTADOR (áudio) – Essa busca de um senti-do para a vida, que tanto norteia o seu trabalho. Talvez seja importante continuar falando por causa disso. Já que você se mostrou tão preocupada com o outro, pode ser uma forma de ajudá-lo. ESCRITORA – Eu não acredito que as pessoas estejam tão interessadas nessa busca de sentido. Em todo caso, não sei o que eu poderia fazer por elas. Realmente eu não sei se poderia fazer algo de significativo por mim mesma ou por quem quer que seja. Talvez eu não esteja tão preparada para lidar com o outro como eu imaginava. Às vezes eu acho que precisaria que fizessem mais por mim. Mas de que adianta gritar com sede num mundo em que parece que ninguém tem água para oferecer? ENTREVISTADOR (áudio) – É assim que você se sente? ESCRITORA – Às vezes pior. ENTREVISTADOR (áudio) – Não está sendo muito pessimista? ESCRITORA – Bom, talvez Deus nos salve, se Ele existir e puder fazer alguma coisa por nós. Olha aonde estamos chegando. Tem certeza de que nós devemos continuar falando sobre isso? ENTREVISTADOR (áudio) – Por quê? Medo da angústia? ESCRITORA – Não, talvez medo da lucidez mesmo. A condição humana é um desafio à nossa compreensão, desde que o mundo é mundo. E eu acho que nós não fomos feitos para o entendimento. Pelo menos não assim, com um pensamento confinado nessas poucas dimensões. Também tem isso. Eu antes eu não pensava na morte. E hoje ela está mais presente do que nunca. Eu perdi boa parte da minha família e isso contribuiu bastante para o meu estado de descrença. Os próximos seremos nós, não? ENTREVISTADOR (áudio) – Talvez haja outras for-mas de percepção para compreendermos a vida. ESCRITORA – Outras formas de percepção, eu também acredito nisso. Mas são justamente elas que me faltam hoje. E um dia eu as tive aos montes, a ponto de me sentir a filha preferida de Deus. ENTREVISTADOR (áudio) – Lívia, você acha que a arte deve ter alguma função transcendente? ESCRITORA – Eu creio que a arte pode tocar a corda do sagrado. Mas antes é preciso que o próprio artista tenha tido essa vivência. Mas quem sou eu para sonhar com isso hoje? ENTREVISTADOR (áudio) – Acha que precisamos ir tão longe, buscando essa transcendência? ESCRITORA – E o que estaria mais perto de nós? ENTREVISTADOR (áudio) – Não podemos dar conta nós mesmos do recado? ESCRITORA – Fazermos tudo sozinhos? ENTREVISTADOR (áudio) – Por que não? ESCRITORA – Acha que seremos capazes? ENTREVISTADOR (áudio) – Eu creio que sim. ESCRITORA – Eu não tenho essa certeza. ENTREVISTADOR (áudio) – Por exemplo, quando um leitor mostra compreender uma obra sua, isso não a sensibiliza? ESCRITORA – Claro que sim. Mas um leitor é apenas um leitor, um corpo estranho que não chegamos a conhecer pessoalmente. ENTREVISTADOR (áudio) – Quer dizer então que você gostaria de conhecê-lo? ESCRITORA – Conhecer, não ninguém em particular, mas todos se possível. ENTREVISTADOR (áudio) – Isso não lhe parece meio vago? ESCRITORA – Você está me deixando confusa. ENTREVISTADOR (áudio) – E se esse leitor lhe oferecer um testemunho pessoalmente? ESCRITORA – Aí é diferente. ENTREVISTADOR (áudio) – Se ele confessar que você mudou a vida dele. ESCRITORA – Isso é forte. ENTREVISTADOR (áudio) – Pois foi exatamente o que aconteceu comigo. Lívia desconcerta-se. ESCRITORA – Não fui eu que mudei sua vida, mas os meus livros. ENTREVISTADOR (áudio) – Não é a mesma coisa? ESCRITORA – Claro que não. (um silêncio) Às vezes eu sinto que a literatura não passa de uma forma para quem não conseguiu extravasar todo o amor que sente. E eu, particularmente, acho que tenho muito para dar. Mas é preciso que alguém receba. Eu gostaria de ser amada também, embora muitas vezes as pessoas pensem o contrário. Se não for assim, qual é a graça? Afinal de contas, tudo é pessoal nessa vida. Mas talvez eu tenha me trancado tanto, que isso já nem seja mais possível para mim. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas por que se trancou? ESCRITORA – Por tudo que eu já disse. ENTREVISTADOR (áudio) – Não haveria nada mais? ESCRITORA – Eu não quero mais falar sobre isso. ENTREVISTADOR (áudio) – Não quer mais falar? ESCRITORA – Não quero. (acende um cigarro; um silêncio) Ainda está gravando? ENTREVISTADOR (áudio) – Como você quiser. ESCRITORA – Você desenvolveu uma qualidade rara, que é ouvir. Acho que só por isso eu falei tudo o que falei. É verdade... Eu tentei fazer muito mal para mim mesma... Já pensei em desistir. Mas pela primeira vez após anos, eu me senti tocada por alguém. Provavelmente porque também o toquei, pois essas coisas nunca acontecem separadamente. A tal ponto que agora há pouco, me deu uma vontade louca de escrever, não sobre a minha impossibilidade de escrever, mas sobre esse copo d’água, por exemplo. Ou a mão de meu pai que outro dia invadiu os meus sonhos. Ou simplesmente você. ENTREVISTADOR (áudio) – Eu? ESCRITORA – Sim, aquilo que me causou. ENTREVISTADOR (áudio) – E que coisa foi essa? ESCRITORA – Também me agradaria saber o que eu lhe causei. ENTREVISTADOR (áudio) – Diga você primeiro. ESCRITORA – Talvez eu prefira escrever. ENTREVISTADOR (áudio) – Se puder, eu gostaria de ler. ESCRITORA – Se eu conseguir, vou mandar lhe entregar. ENTREVISTADOR (áudio) – Quer dizer que sempre vai precisar escrever? ESCRITORA – É que se eu não escrevo, é como se a coisa não tivesse acontecido. ENTREVISTADOR (áudio) – Não deveria primeiro viver, para depois escrever? ESCRITORA – Para mim seria difícil. ENTREVISTADOR (áudio) – Não deveria tentar? ESCRITORA – Viver sem palavras? ENTREVISTADOR (áudio) – Sim. ESCRITORA – E o que me restaria? ENTREVISTADOR (áudio) – Não sei. ESCRITORA – O silêncio? ENTREVISTADOR (áudio) – Talvez. ESCRITORA – O vazio. ENTREVISTADOR (áudio) – Pode ser. ESCRITORA – A realidade tal qual ela é. ENTREVISTADOR (áudio) – É o que dizem. ESCRITORA – Acho que eu não conseguiria viver assim. ENTREVISTADOR (áudio) – Às vezes a literatura pode atrapalhar. ESCRITORA – Será que eu ainda sou capaz de encarar a vida como antigamente, quando eu me sentia tão próxima das pessoas, que não parecia haver diferença entre a gente? Quando o tempo parecia não existir e tudo era uma sensação de eternidade. Hoje é tão difícil, às vezes eu me sinto tão pequena diante de tudo. Mas ao mesmo tempo é lindo, não? ENTREVISTADOR (áudio) – O quê? ESCRITORA – A vida. A experiência humana que, mesmo sem a certeza de uma inteligência superior, assombra. É como se eu não precisasse de mais nada para viver, e estivesse plena de algo desconhecido que me invade. Mas isso eu só consigo perceber de vez em quando. Agora, por exemplo, acaba de acontecer. Eu não sei o momento exato, mas acaba de acontecer. ENTREVISTADOR (áudio) – É... Parece mesmo que o amor é a coisa mais importante que há. ESCRITORA – Realmente, o amor é sublime. ENTREVISTADOR (áudio) – Mas também é certo que sem a sua literatura seríamos muito mais pobres. ESCRITORA – Imagine. (um silêncio) É verdade que muita gente pode se enriquecer na presença de uma obra de arte. A humanidade cresce no coração de quem se permite um diálogo desses. Mas quando isso representa o sacrifício do próprio artista, não de seu tempo precioso, mas da substância vital da qual ele se alimenta, aí algo não vai bem. E eu espero sinceramente o dia em que escrever seja uma forma de me revigorar. Então talvez tudo isso valha a pena, tanto escrever quanto viver. ENTREVISTADOR (áudio) – Também desejo o mesmo, Lívia. Bem, agora temos de encerrar. ESCRITORA – Já? ENTREVISTADOR (áudio) – Infelizmente. Gostaria de agradecer, em nome de toda a equipe. ESCRITORA – Eu é que agradeço. ENTREVISTADOR (áudio) – Faço votos de que você ainda nos encha de muitos frutos luminosos. ESCRITORA – Foi bastante agradável. ENTREVISTADOR (áudio) – A todos uma boa noite. Até a semana que vem, em mais uma entrevista com algum convidado do mundo das artes ou da cultura, dessa vez de volta com o jornalista Eduardo Drumond. Até lá. Novamente ouve-se a vinheta do programa. A Escritora levanta-se, arruma suas coisas na bolsa e procura pelo Entrevistador. Quando vai sair, voltamos a escutar a voz dele, agora em transição para a cena. ENTREVISTADOR (cena) – (entrando no palco) Lívia... ESCRITORA – Você enlouqueceu. ENTREVISTADOR (cena) – Eu quase me esqueci que era uma entrevista. ESCRITORA – Eu percebi. (um silêncio) O que você achou? ENTREVISTADOR (cena) – Adorei. ESCRITORA – Era o que você queria? ENTREVISTADOR (cena) – Eu jamais imaginei que fosse acontecer assim. ESCRITORA – Você conduziu muito bem. ENTREVISTADOR (cena) – (referindo-se ao maço de cigarros sobre a mesa) Posso? ESCRITORA – Claro. O Entrevistador pega um cigarro e a Escritora acende para ele. ENTREVISTADOR (cena) – Acho que finalmente nós vamos conversar sobre o que nos aconteceu. Du rante esse tempo todo, eu pensei em tantas coisas. Eu tenho tanta coisa para... ESCRITORA – (cortando-o) Eu só não quero conversar sobre isso agora. Tenho medo que a memória das palavras ditas com rancor, me faça novamente prisioneira de uma vida vazia, que era como eu estava quando você me deixou. Mas eu sei que você não teve culpa de nada. A culpa foi da minha loucura. Só sei que agora eu me sinto bem melhor. Melhor do que antes de vir para cá. Nesse sentido, eu te agradeço muito pela entrevista. ENTREVISTADOR (cena) – Eu também me sinto bem melhor agora do que antes. Um silêncio. ESCRITORA – E agora? ENTREVISTADOR (cena) – O quê? ESCRITORA – Posso ir embora? ENTREVISTADOR (cena) – Você é quem sabe. ESCRITORA – Eu não sei de nada. ENTREVISTADOR (cena) – Não? ESCRITORA – Para mim isso é tudo. Um silêncio. ENTREVISTADOR (cena) – Você quer ir para outro lugar? ESCRITORA – Não sei. ENTREVISTADOR (cena) – Continuar conversando. ESCRITORA – Também não sei. ENTREVISTADOR (cena) – Não sabe de mais nada? ESCRITORA – Não sei de mais nada. (um silêncio) A única coisa que eu sei, é que eu quero ficar em silêncio. ENTREVISTADOR (cena) – Entendo. ESCRITORA – Para ver se eu descubro o que fazer. A Escritora começa a sair. O Entrevistador aproxi ma-se dela. ENTREVISTADOR (cena) – Bem... Então, boa sorte na homenagem. ESCRITORA – Nossa... Eu tinha até esquecido da homenagem. O Entrevistador abraça-a. Ela corresponde, meio desajeitada. ESCRITORA – (desvencilhando-se) Emagreceu um pouquinho, não? A Escritora volta a sair. ENTREVISTADOR (cena) – Lívia... (ela pára) Você não tem medo do que o silêncio possa voltar a lhe trazer? ESCRITORA – Ter medo do silêncio? Como é que eu posso ter medo do único amigo que me acompanha do início ao fim? A diferença é que esse de agora está preenchido de algo. Algo cujo nome eu desconheço, mas existe. Existe porque eu sinto que existe. Que mais eu preciso dizer? A Escritora sai. O Entrevistador olha a cadeira, desolado. Sai. Fim. Índice Apresentação -Hubert Alquéres 05 Introdução -Samir Yazbek 11 O Fingidor 13 A Terra Prometida 149 A Entrevista 205 Créditos das fotografias Fernando Silveira 18 Cláudio Gimenez 22 Tuca Vieira 154, 158 Lenise Pinheiro 208. 210 Coleção Aplauso Perfil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Aracy Balabanian -Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Helvécio Ratton - O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça Ilka Soares - A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont - Do Cordel às Telas Klecius Henrique Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti - Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rodolfo Nanni -Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Especial Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Gloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Cinema Brasil Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Cabra-Cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Dois Córregos Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah e Newton Cannito Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Teatro Brasil Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso -Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Ciência e Tecnologia Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Os livros da coleção Aplauso podem ser encontrados nas livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual