A Cartomante Roteiro GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO GOVERNADOR GERALDO ALCKMIN SECRETÁRIO CHEFE DA CASA CIVIL ARNALDO MADEIRA IMPRENSA OFICIAL Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano Chefe de Gabinete Emerson Bento Pereira   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Cinema Brasil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistente Operacional Andressa Veronesi Tratamento de Imagens Tiago Cheregati A Cartomante Roteiro - História, Origem e Comentários por Wagner de Assis CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA IMPRENSA OFICIAL SÃO PAULO – 2005 IMPRENSA OFICIAL 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Assis, Wagner de. A cartomante : roteiro : história, origem e comentários / por Wagner de Assis. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005. 328p.: il – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-378-9 (Imprensa Oficial) 1. Assis, Wagner de. A cartomante – Crítica e interpretação 2. Cinema - Roteiros 3. Cinema e literatura 4. Romance brasileiro – História e crítica I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. 05-5642 CDD – 869.93 Índices para catálogo sistemático: 1. Romance e roteiro cinematográfico : Literatura brasileira : História e crítica 869.93 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Direitos reservados e protegidos pela lei 6910/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, tem como atributo principal reabilitar e resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas do cinema, do teatro e da televisão. Essa importante historiografia cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. O coordenador de nossa coleção, o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou, criteriosamente, um conjunto de jornalistas especializados para realizar esse trabalho de aproximação junto a nossos biografados. Em entrevistas e encontros sucessivos foi-se estreitando o contato com todos. Preciosos arquivos de documentos e imagens foram abertos e, na maioria dos casos, deu-se a conhecer o universo que compõem seus cotidianos. A decisão em trazer o relato de cada um para a primeira pessoa permitiu manter o aspecto de tradição oral dos fatos, fazendo com que a memória e toda a sua conotação idiossincrásica aflorasse de maneira coloquial, como se o biografado estivesse falando diretamente ao leitor. Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que caracterizam também o artista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e o biografado foram tomados desse envolvimento, cúmplices dessa simbiose, que essas condições dotaram os livros de novos instrumentos. Assim, ambos se colocaram em sendas onde a reflexão se estendeu sobre a formação intelectual e ideológica do artista e, supostamente, continuada naquilo que caracterizava o meio, o ambiente e a história brasileira naquele contexto e momento. Muitos discutiram o importante papel que tiveram os livros e a leitura em sua vida. Deixaram transparecer a firmeza do pensamento crítico, denunciaram preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando o nosso país, mostraram o que representou a formação de cada biografado e sua atuação em ofícios de linguagens diferenciadas como o teatro, o cinema e a televisão – e o que cada um desses veículos lhes exigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintas linguagens desses ofícios. Cada obra extrapola, portanto, os simples relatos biográficos, explorando o universo íntimo e psicológico do artista, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade em ter se tornado artista, seus princípios, a formação de sua personalidade, a persona e a complexidade de seus personagens. São livros que irão atrair o grande público, mas que – certamente – interessarão igualmente aos nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que envolve as linguagens do teatro e do cinema. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferenciação fundamental desses dois veículos e a expressão de suas linguagens. A amplitude desses recursos de recuperação da memória por meio dos títulos da Coleção Aplauso, aliada à possibilidade de discussão de instrumentos profissionais, fez com que a Imprensa Oficial passasse a distribuir em todas as bibliotecas importantes do País, bem como em bibliotecas especializadas, esses livros, de gratificante aceitação. Gostaria de ressaltar seu adequado projeto gráfico, em formato de bolso, documentado com iconografia farta e registro cronológico completo para cada biografado, em cada setor de sua atuação. A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar os cem títulos, se afirma progressivamente, e espera contemplar o público de língua portuguesa com o espectro mais completo possível dos artistas, atores e diretores, que escreveram a rica e diversificada história do cinema, do teatro e da televisão em nosso país, mesmo sujeitos a percalços de naturezas várias, mas com seus protagonistas sempre reagindo com criatividade, mesmo nos anos mais obscuros pelos quais passamos. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção Aplauso, ela inclui ainda outras séries : Projetos Especiais, com formatos e características distintos, em que já foram publicadas excepcionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivos documentais pré-existentes que sugeriram sua edição em outro formato. Temos a série constituída de roteiros cinematográficos, denominada Cinema Brasil, que publicou o roteiro histórico de O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil com a intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente, roteiros mais recentes, como o clássico O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer um Filme de Amor, de José Roberto Torero, que deverão se tornar bibliografia básica obrigatória para as escolas de cinema, ao mesmo tempo em que documentam essa importante produção da cinematografia nacional. Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior, da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeu e a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentos e formas de se fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão ao descobrirem que vários diretores, autores e atores, que na década de 70 promoveram o crescimento da TV Globo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o Grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. De nossa parte coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, contar com a boa vontade, o entusiasmo e a generosidade de nossos artistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas, com igual entusiasmo, colocar à disposição todas essas informações, atraentes e acessíveis, em um projeto bem cuidado. Também a nós sensibilizaram as questões sobre nossa cultura que a Coleção Aplauso suscita e apresenta – os sortilégios que envolvem palco, cena, coxias, set de filmagens, cenários, câmeras – e, com referência a esses seres especiais que ali transitam e se transmutam, é deles que todo esse material de vida e reflexão poderá ser extraído e disseminado como interesse que magnetizará o leitor. A Imprensa Oficial se sente orgulhosa de ter criado a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que nossa história cultural não pode ser negligenciada, e é a partir dela que se forja e se constrói a identidade brasileira. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo “O Homem sonha, Deus quer, a Obra nasce” Dedico este livro a todos os contadores de histórias   À minha mulher, Ivana, e pais, Luiz e Leni Prefácio I Tudo começou com A Cartomante, de Machado de Assis. Quer dizer, com A Cartomante do Machado revista pelo Wagner, que me procurou dizendo que tinha um roteiro adaptado de um conto de Machado de Assis e tinha vontade de filmá-lo. Sílvia, se você gostar do personagem, ficaríamos muito felizes de contar contigo nesse projeto, ele me disse. Eu respondi que adoraria ler e torcia por vir a gostar do roteiro, do personagem e ter a oportunidade de fazer um filme de longa-metragem. Fiquei apaixonada por aquela história de época, por aquele triângulo amoroso, pela possibilidade de fazer uma alpinista social no Brasil Império, que era a personagem que tinha sido acrescida ao roteiro. Mais do que uma atriz com vontade de experimentar um novo papel, eu era uma leitora envolvida completamente por uma narração linda, intensa, apaixonada, passional e triste em seu final. Talvez o mesmo sentimento de quando assisti a Romeu e Julieta no cinema. Tinha uns 12 anos, fiquei inexplicavelmente maravilhada e sofri junto com aqueles dois adolescentes (como eu) que morreram por se amarem tanto. O Wagner, assim como Pablo Uranga e Luigi Baricelli, eram outros apaixonados, com vontade de realizar, sérios, honestos (no mais tocante e largo sentido da palavra) e dedicados. Me tornei uma 4ª mosqueteira. Infelizmente, não conseguimos levantar todo o dinheiro para realizar o nosso tão desejado sonho de época. Wagner, inspirado para escrever como sempre, imbuído daquela tocante história de amor, escreveu a 2ª Cartomante. Que não tinha nada a ver com a primeira. Era quase um roteiro original. Devo confessar que, inicialmente, sofri um pouco com isso, fiquei triste em ter que deixar a minha alpinista social. Temi ao pensar que eu poderia não gostar nada deste novo roteiro, já estava tão envolvida com a outra história. Mas, para minha surpresa, o Wagner me presenteou com uma vilã. Não uma vilã qualquer. Era uma mulher velada, que vai se descortinando ao longo do filme. Que bom! Todo ator quer um vilão. Continuei envolvida até o pescoço. Além disso, amor e paixão que sempre existiram continuavam lá. Maldade e perversidade acrescentavam. Queria participar, me envolver o quanto fosse possível. E foi o que, curiosamente, aconteceu a todos que se juntaram ao projeto. Trocávamos idéias, sugeríamos coisas, assistíamos a filmes juntos, pensávamos no elenco. Se interessaram, se dedicaram, se envolveram. Mesmo com todas as dificuldades e adversidades que tivemos, estávamos todos ali, juntos, apaixonados, entregues pela arte de fazer arte. Nessa época, o Wagner já tinha deixado seu cargo tão promissor na TV Globo e tinha se entregado totalmente a esse sonho (mas com muito pé no chão!). Minha casa se tornou local de leitura e reunião. Luigi, Pablo, Wagner e eu líamos todos os personagem, procurávamos agilizar eventuais passagens do texto, pensávamos em figurino, cabelo, maquiagem, enfim, onde cada um podia cooperar para que as gravações transcorressem da melhor forma possível e com tão pouco dinheiro. Minha casa também se transformou em local de ensaio, emprestei objetos domésticos, móveis e peças de roupas para que pudéssemos agilizar tudo. Além disso, continuava dando meus telefonemas e contatando pessoas e/ou empresas que pudessem ainda nos ajudar e aumentar nossa verba. Nos preparamos o melhor que pudemos, todos. Independentemente de tudo, estávamos juntos, coesos, integrados. Fomos muito bem tratados, muito! Wagner e Pablo foram impecáveis. Comandaram a equipe como se fossem experientes no ofício, sem stress, com educação, humor, firmeza quando necessário, carinho e objetividade. Pode parecer piegas, mas acredito que foi isso que me fez entrar de cabeça nesse projeto. Essa seriedade, honestidade, determinação e dedicação deles. Com todas as dificuldades, nós fizemos o filme! Acredito que, mesmo com todos os erros, fizemos bem. Me sinto feliz de ter participado de um projeto desde o seu início. De ter ajudado para que ele acontecesse, para que, quem sabe?, venham muitas outras realizações/feitos pessoais e profissionais em seqüência deste. Wagner querido, obrigada por me presentear com a Antonia e de me propiciar a realização de um projeto tão trabalhado e batalhado. A toda a equipe que esteve junta neste barco, meu carinho, agradecimento e reconhecimento. Silvia Pfeifer atriz Prefácio II Fui às duas pré-estréias da A Cartomante, em São Paulo e no Rio de Janeiro, como sempre digo, com o entusiasmo e orgulho de uma mãe de miss. Não que tivesse gerado aquele recém-nascido, não porque fizesse parte direta da equipe de produção, não porque fosse investidora ou uma colaboradora direta ou ainda patrocinadora do filme, mas porque havia acompanhado, bem de perto, os primeiros passos de um entusiasmado amante da arte cinematográfica, um jovem cineasta que conheci quando ainda apenas sonhava com esse momento. Conheci Wagner de Assis exercendo sua função de jornalista na Assessoria de Comunicação da TV Globo em meados dos anos 90, ansioso, questionador e, por esses caminhos misteriosos e divinos que nos fazem percorrer, nos tornamos parceiros em roteiros de especiais para TV e filmes. Vivemos juntos muitos momentos de ansiedade a cada gestação de uma idéia, a cada mudança de rumo obrigatória em estórias que escrevíamos para serem produzidas, momentos de alegria e alívio por um trabalho terminado e algumas insatisfações pelo resultado final de outros. E foi assim que, sem surpresa, mas com admiração, recebi em 2001 uma ligação telefônica - era Wagner fazendo uma consulta pessoal e definitiva: O que você diria se eu saísse da TV para produzir meu primeiro filme de longa-metragem? É claro que nada do que eu dissesse poderia modificar o que já estava na sua cabeça e na sua alma há muito tempo. É claro que essa idéia vinha sendo amadurecida ao longo dos anos e foi ainda mais fortalecida quando Wagner foi para Nova York fazer um curso na NY Film Academy e voltou cheio de certezas e respostas para alguma dúvida que ainda tivesse e, naquele momento, estava apenas comunicando que a escolha já era definitiva. A mim só cabia aplaudir e torcer para que tudo desse certo, e me senti agradecida, ainda mais parceira, cúmplice e orgulhosa por poder compartilhar daquela decisão que transformaria definitivamente o jornalista no cineasta Wagner de Assis. Talvez, algum dia, o próprio Wagner traduza em um filme a aventura que viveu ao escrever o roteiro de A Cartomante, captar recursos, produzir, dirigir, montar e todas as outras etapas até o momento de considerar seu primeiro produto cinematográfico pronto para ser visto e entregá-lo aos críticos e ao público. Com certeza essa será uma estória com todos os elementos de aventura, suspense, drama e comédia - como foi na realidade. Embora o roteiro original de A Cartomante tenha nascido de época, na procura de maior fidelidade ao conto de Machado de Assis, as dificuldades iniciais de captação acabaram por conduzir Wagner a outro caminho. Desse mal sofremos todos nós que vivemos a realidade do cinema brasileiro: adequar sonhos ao orçamento, traduzir a riqueza de uma história em cenas possíveis de serem realizadas sem perder o rumo, sem perder a garra, sem deixar que a vontade de realizar seja derrotada pelos obstáculos que aparecem a cada passo da produção de uma obra cinematográfica. Mas, como Wagner sempre diz, e dizem também seus personagens no A Cartomante: Tudo tem um por quê. E hoje, percorrido o caminho, realizada a tarefa, penso que a transposição do conto para a atualidade foi um exercício de criatividade e de determinação, qualidades que foram premiadas quando o filme chegou às telas. Rever neste livro o roteiro de A Cartomante, e poder deixar minhas palavras registradas nele, faz com que eu reviva os mesmos sentimentos de entusiasmo e orgulho que senti na platéia do cinema. Vivian Perl produtora / roteirista Introdução Disciplina, Disciplina, Disciplina A todos aqueles que desejam escrever um roteiro, desejo a mesma coisa que Emmanuel, o guia espiritual de Chico Xavier, lhe disse com o intuito de escreverem uma obra de mais de 400 títulos: disciplina, disciplina, disciplina. O resto vem. Seja do mundo espiritual (nunca se sabe...), seja do esforço individual, a única coisa que realmente permite que um texto fique pronto é a disciplina para criá-lo. Há muito, o estigma da inspiração já foi derrubado e não acredito que haja alguém que não transpire muito na busca pela palavra certa, pelo sentimento revelador, ou riso, lágrima, vivendo incessantemente com o produto de seu trabalho. A diferença é a forma. No caso de um roteiro para cinema, todo o processo criativo vem sob o pacote de imagens. Porque se afirma por aí, muito categoricamente, que roteiro não é filme, não é obra de arte; é tão-somente uma seqüência de imagens e situações descritas em texto e que contam uma história. Tudo bem. Todo professor, autor, dramaturgo, tem uma definição do que seja um roteiro. Eu não tenho uma definição tão lapidada. Apenas uma certeza: um roteiro é o filme sim, visualizado através de um texto bem escrito, que possibilita ao leitor imaginar, sentir e viver perfeitamente o seu significado; é um tremendo trabalho artístico, capaz de dizer verdades, mentiras, modificar a si mesmo de acordo com cada interpretação e ainda modificar àquele que o absorve. Há dez anos, não havia muitos livros de roteiro em português disponíveis para aqueles que desejassem estudar a teoria desta forma de expressão. De fato, o roteiro sofria mesmo é muito preconceito por ser algo menor. Talvez ainda sofra – mas como não presto mais atenção à discriminação, deixo de perceber essa injustiça. Hoje as coisas estão melhorando. Basta ver que de uns tempos para cá se passou a falar de roteiristas, a ter escolas de roteiristas, sites, profissionais em profusão. Antigamente, nunca se mencionavam os grandes roteiristas dos clássicos do cinema. Apenas os diretores. Isso é compreensível, já que o roteiro não nasceu com o cinema e sim da necessidade dos primeiros cineastas para anotar as cenas que eles queriam filmar – essa teoria é minha. Por sua natureza técnica e lúdica ao mesmo tempo, ou por não ser uma forma de expressão final e depender de outro meio para ser completo, e mesmo por ser esse filhote bastardo do cinema, escrever um roteiro é ligeiramente fácil. Um homem acorda, vai ao banheiro, almoça, vai trabalhar, volta para casa, vê televisão e dorme. Essa seqüência pode transformar-se num roteiro facilmente. E ser filmada. Hoje, qualquer aspirante vai desembarcar numa livraria e encontrar títulos que ensinam as bases de um roteiro. Há muito mais teoria sobre essa arte do que jamais houve. Por quê? Pela valorização do ofício, certamente. Percebeu-se, no Brasil com um atraso enorme, como sempre, que um roteirista, um dramaturgo,  um escritor e uma vovozinha cercada de netos navegam no mesmo mar e enfrentam as mesmas ondas. Expressam-se em meios distintos com características específicas. Mas todos criam histórias. De qualquer forma, é maravilhoso ter tantos livros sobre roteiro, assim como ter os próprios roteiros publicados, comentados, estudados. Possibilita troca de informações com os estudantes, com os próprios profissionais do ramo. Hoje, há também cursos disponíveis no mercado, em faculdades ou mesmo pela Internet; há manuais com informações tão diversas como 180 Dicas para Tornar o Seu Roteiro Comercial, Manual do Roteiro e outros tipos. Isso tudo é ligeiramente fácil de aprender para quem deseja escrever um roteiro. Ou entender sobre roteiros. Nunca esqueço a cena daquela executiva de uma grande empresa que avalia textos para serem filmados segurando um Manual do Roteiro com a vontade e a pompa de quem vai descobrir os segredos dos Manuscritos do Mar Morto e ler o seu texto com o conhecimento de um membro da academia de artes dramáticas. Tudo bem. Difícil mesmo é escrever um roteiro bom. Contar uma história com todas as suas faces, verdades, sejam simples ou complexas. Difícil é montar a situação perfeita e desmontá-la trazendo o leitor junto, empolgado até o final. Construir crise, trabalhar clímax, ter conhecimentos de dramaturgia e literatura e aplicá-los. Difícil é fazer alguém rir ou chorar lendo um texto com detalhes técnicos, tais como interior, fusão e outros. Difícil é escrever uma história com cenas, diálogos, indicações e essa mesma história permanecer ao longo do processo produtivo do cinema, chegar nas telas e nos olhos do espectador. Desde que comecei a escrever roteiros, encontro pessoas que me dizem: Cara, eu tenho uma história maravilhosa. Qual é?, pergunto. A pessoa me diz empolgadíssima: É assim, uma velhinha vai no mercado, aí chove muito, e tem um outro cara de cabelo azul, ele fuma cigarro de palha com a velhinha, não é maneiro? E cai na gargalhada. Não, não é maneiro. Ou melhor, não é uma história. São apenas características de uma possível história. Isso acontece no meio artístico também. Histórias são encomendadas a partir de imagens isoladas, frases soltas, idéias frágeis. Às vezes, o roteirista precisa amarrar com coerência uma enxurrada de opiniões confusas. Situações desconexas que necessitam ganhar profundidade, ter todas as questões discernidas para se transformarem numa boa história. Isso não é errado, apenas um fato que ocorre e para o qual um profissional hoje deve estar pronto. Para quem quiser viver dessa profissão, deve estar preparado para ouvir os maiores absurdos e reagir com o conhecimento de que seu interlocutor apenas não sabe o que é uma história. Há também o contrário: aquela trama que você acha sensacional, redondinha, com todos os aspectos que você quer contar, é literalmente destruída por alguém que leu e... Não gostou. Aí a pessoa diz... Mas isso não é uma história! Pronto... O mundo desaba. Ou então vem um surreal... Está errado! E você volta para casa pensando... Como alguma criação artística pode estar errada? Ou o mortal e seco Não gostei e não sei por quê. Outra vertente muito comum: um dia o roteirista está andando num parque e descobre a idéia definitiva de sua vida num insight. Algo do tipo... Dois jovens de famílias diferentes vivem uma história de amor e acabam mortos. Que lindo... Mas Shakespeare pensou nisso antes. Isso quer dizer que acabaram as novas idéias? Tem gente que acha que sim. Eu acho que não. Talvez as situações dramáticas da raça humana já estejam catalogadas ao longo de tantos anos de produção artística literária/dramatúrgica - ou, mais recentemente, cinematográfica. Mas isso não é o fim da linha. Há muito mais vida do que a vida pode supor. Em tese, conhecer a fundo as bases de uma boa dramaturgia é apenas o início do diferencial entre um texto bom e ruim, entre uma história inovadora ou repetitiva. Saber onde estão as verdades de cada aspecto da trama, olhar onde pode-se cortar, melhorar, é sempre um trabalho árduo. Assim como conhecer os personagens como se fossem entes queridos há muitos anos. Saber como eles reagiriam a todas as situações, mesmo àquelas que não estão no filme. Usando  termos de Aristóteles, pai da dramaturgia, amarrar todos os nós e desfazê-los, aos poucos, é fundamental. Ou, ainda, entender o que é início, meio e fim. Mas nesta hora entra a grande novidade do trabalho criativo, o maior diferencial, a única possibilidade de algo inovador para um bom roteiro: o roteirista. É o autor que faz a diferença. O codificador das novas tramas que existem por aí, escondidas no universo. Um ser que pode acrescentar algo à humanidade ou à sua própria vida com todas as suas leituras, todos os filmes que viu, todas as piadas que contou. Ou não! Alguém que apenas conta histórias que entretêm, fazem rir e emocionam por eternos segundos. Aquele cara que sabe que ninguém transforma ninguém, que um roteiro não muda o mundo – uma pessoa capaz de abster-se de todas as suas idéias e ideais em benefício de uma história que fala por si mesma e não comporta interferência. Difícil mesmo é ser um artista que tem em suas mãos a chance de simplesmente criar – mesmo que seja um remake! Por isso, concordo plenamente com os teóricos quando eles dizem: Escreva sobre aquilo que você gosta. Ou que te incomoda. Sobre algo que você conhece. E, se você não conhece, pesquise. Aprenda como ser humano. Não adianta muito escrever sobre caridade se você não tem noção do que seja. Ou, ao menos, se nunca viu alguém fazer caridade. Mas, se você é um pão-duro, talvez o acesso ao tema seja pela porta dos fundos. Enfim, as histórias estão presentes no mundo, no inconsciente coletivo, nos neurônios, sei lá mais onde, prontas a serem trazidas por você para o mundo através de um novo e instigante roteiro. Um bom roteirista é como ouro. Mesmo num mercado de remakes. Por isso, além da disciplina de trabalhar diariamente os seus textos – porque se você não fizer isso vai ficar pra trás porque todos os outros estão fazendo – a única coisa que posso compartilhar é: leia tudo que você encontrar pela frente. Assista a todos os filmes que puder. Converse com todas as pessoas ouvindo-as atentamente, ponderando sobres suas histórias (todo mundo tem sempre uma história pra contar...); observe seus comportamentos, assimile a forma como pessoas de diferentes tribos se expressam, se vestem. Um surfista e um empresário podem encontrar-se um dia num elevador na cena principal do seu roteiro e, se você não tiver vivência desses dois personagens, pode se prejudicar. Tem sempre uma boa história escondida nalgum canto. Eu gosto também de ler reportagens de jornais, dos cadernos de cultura, das páginas de comportamento e assuntos gerais; gosto de ler os milhares de piadas que circulam diariamente na Internet – mas gosto mais ainda de ver bons contadores de piadas ao vivo, porque eles sabem o tempo de construção do riso. Isso precisa estar no texto de um roteiro, caso contrário, os atores, diretores, editores não vão contar a mesma história que você. E aí já era. Seu roteiro sucumbe no caminho. Por isso, a diferença entre um roteiro bom e ruim é, sem dúvida, o roteirista. Talvez a diferença entre bom e ruim seja das mais difíceis de serem compreendidas. E um roteirista vive isso diariamente. Uma história pode ser contada magistralmente por um cara. E a mesma pode ser arruinada por outro. Mas quem acha que ele a arruinou, pode também estar errado. Tem gente que ama o feio. Tem gente que se identifica com filmes trash. Mais ainda: tem gente que acha que um roteiro ruim está proporcionalmente ligado a uma pessoa ruim! Por favor! Cada vez mais deixo de ver bons filmes para ver boas histórias, ou melhor, bons roteiros. Claro que as peripécias visuais criadas pelos computadores enchem nossos olhos. Mas se não forem peripécias criadas a partir de boas histórias, descritas por bons roteiros, são apenas peripécias. E nada mais. Não cabe aqui citar exemplos. Tem um monte por aí, do passado, do presente e, principalmente, do futuro – esperando que um roteirista agarre-as e compartilhe-as com o mundo de forma criativa, se possível. Por incrível que pareça, gosto muito também de ver filmes ruins, roteiros que não funcionam. É neles que fico pensando quais as escolhas do roteirista que fizeram com que a história não funcionasse – o que eu faria se tivesse que reescrevê-la. Ou se foi mesmo o diretor quem estragou tudo – e aí penso como o roteirista pode sobreviver a um diretor ruim. No fundo, eu sempre acredito que dá pra segurar um roteiro das loucuras de um diretor. Claro que a sua palavra é a última. Em último estágio, ele estraga mesmo. Nestes casos, a única coisa que resta é não assinar a história – que foi absolutamente mutilada e não mais pertence ao seu criador original. Mas penso que um bom roteiro pode estar tão bem amarrado que a única coisa de que o diretor precisa é colocar a câmera no lugar certo; os atores, vivenciarem as emoções com sinceridade; e o editor, seguir as cenas escritas. E pronto, lá está o roteiro na tela, bonitinho, levando sua história para o público. Por isso a responsabilidade de um filme é de roteirista e de diretor. Sou do time dos que acham que o nome do roteirista venha junto do nome do diretor do filme nos créditos. E, quando os jornais dão o crédito de Um filme de..., o nome do roteirista deveria ser citado. Não citam as novelas por seus autores? Gosto também de ver filmes-seqüências, que são sempre complicados por conta dos limites aos quais a história precisa respeitar. São nesses tipos de roteiros que procuro aprender como escapar das muitas armadilhas que existem na fascinante arte de escrever roteiros. Aprender, eis uma palavra-chave e que me acompanhará por longos e longos anos. Porque tem um momento da criação em que o roteirista e sua história encontram-se protegidos numa crisálida de luz; estão ligados por todos os canais de energias e, juntos, a criação acontece de forma independente – suas mãos são como antenas que captam e traduzem o que está acontecendo numa outra dimensão. É mágico quando os personagens começam a ter vontades próprias; quando as cenas se apresentam sem que raciocínios pragmáticos as tenham criado; quando a angústia, a lágrima, as paixões presentes no texto extrapolam o meio e atingem o próprio criador; esse é o melhor momento de um roteirista – quando ele faz seu filme perfeito. Porque depois a crisálida desaparece, as folhas são impressas e copiadas para que outros usufruam, curtam ou cuspam em sua criação. Aí ela não mais faz parte daquele universo particular. Ganha o mundo, as críticas e os elogios, navega pelas mentes alheias e mostra seu potencial a cada reação, seja de prazer ou mesmo cara feia. Ela vive por si. E só nos cabe ter uma pontinha de ciúmes (!). Não sou teórico de roteiro. Apenas os escrevo. Claro que ao longo dos últimos dez anos nessa profissão, e com cinco filmes, dois argumentos, especial de televisão, prontos, e mais um monte de filmes por ficarem, aprendi alguns caminhos. Todos têm pedras. Mas sei que posso chegar ao fade out final – algo que por vezes parece inalcançável para muita gente que tenta escrever. Não fico adiando o momento para sentar e digitar – outra característica que a nossa mente anseia. Não fico com medo de escrever demais, de ser over. Mesmo sabendo que vou ter que enxugar tudo depois. Nas minhas próprias teorias, penso no roteiro como uma construção que deve seguir os preceitos da teoria quântica – ou seja, as forças que regem as pequenas partes são as mesmas que regem o todo. Cada cena é uma pequena parte, dividida em partes menores ainda, as palavras. Entre todos é preciso manter o foco da história. Tá certo que essa é a parte mais difícil, doutrinar a própria mente para ela não desviar o rumo. Porque tudo que a mente quer é desviar da pressão criativa exercida sobre ela. Qualquer motivo para escapar do raciocínio principal é agarrado. Nessa briga criativa, a história vai sendo construída. Este livro é a história da história. Como também dirigi e fui produtor executivo do filme, talvez misture um pouco as concepções adquiridas ao longo de todo o processo. Mas tudo nasceu exatamente assim, dedos no teclado, imagens e palavras aparecendo na tela mental e sendo transpostas, o mais rápido possível, para o micro, traduzindo pensamentos, palavras, sentimentos, com muito esforço e um prazer inenarrável. E reescrever, reescrever... depois mostrar, ouvir, sofrer, reescrever. Mostrar, ouvir, sofrer... sorrir, odiar, gostar e reescrever... Contando com a colaboração oficial de Pablo Uranga e Laura Mallin, e mais de um grupo de amigos/leitores sinceros que vão desde as jornalistas Valéria Schilling, Bia Radunsky, Tania Carvalho, Mônica Albuquerque, passando pela minha amada esposa Ivana, até os artistas-produtores do filme, Silvia Pfeifer e Luigi Baricelli, seus cônjuges, a colega roteirista Vivian Perl, além de médicos, como o Doutor Fabio Barros, o professor de português e literatura Luiz Antonio Alves, enfim, estes e alguns outros leram os tratamentos que se sucederam ao longo de uns seis meses e acompanharam um pouco da minha trajetória para confeccionar o roteiro. Contribuíram mais ou menos (porque até mesmo um silêncio como resposta diz muito). Mas quem agarrou a onça a unha fui eu. Como pai/mãe, padeci no paraíso. Até o fade out final e o famoso e sonhado pronto para filmar. Parte 1 O Projeto Capítulo I A Primeira Carta A Cartomante nasceu da vontade de contar uma história no cinema de longa duração depois dos vídeos caseiros, dos curtas-metragens, dos contos escondidos na gaveta, das poesias cometidas e guardadas mais fundo da gaveta ainda. Por conta de um consenso com o grupo que estava em torno do projeto do primeiro longa, estávamos à procura de um texto que não fosse de autoria de nenhum dos envolvidos. Concordei com o grupo que seria melhor todos abstermo-nos de nossas próprias histórias e encontrar uma trama conhecida para adaptá-la para o cinema. Arturo Uranga, cineasta argentino radicado no Brasil, diretor de Era Uma Vez, designer de produção de A Cartomante, story boarder de renome internacional, foi quem indicou o conto A Cartomante para seu filho, Pablo Uranga, um dos vértices do nosso grupo. Tem um conto do Machado de Assis sensacional, bem pequeno, cujo final é trágico. Não quer ler?, Pablo me perguntou. Coincidência ou não, minha mãe tinha sugerido Machado de Assis umas duas semanas antes, quando soube que eu estava procurando um texto consagrado para adaptar. Mas eu não tinha prestado muita atenção. Estava relendo romances ou mesmo alguns livros sobrenaturais. Quando o Pablo me falou era um segundo aviso e essas coisas não se pode deixar passar. Corri para a coleção de Machado na estante. Lá estava: A Cartomante. Quinze minutos depois, liguei para ele: Eu topo. Corta. Oito anos mais tarde, escrevo este relato. O fruto daquela adaptação não foi para a tela. Mas agora o filme é passado. Esse livro é flash-back, não tem jeito. Sugiro que o prezado leitor leia o conto agora mesmo. E depois volte para cá. A Cartomante - Machado de Assis   Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! Tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na R. da Guarda Velha; não passava ninguém na ocasião. Descansa; não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. “Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...” Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... Pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia...“ Que perdia ele, se...? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Então, voltemos para aquele momento logo após a leitura. O que me atraiu inicialmente para que eu topasse? Qual foi o modus vivendus para mergulhar e trabalhar no conto? O que brilhou nele que inundou minha mente de vontade de compartilhar com o mundo? O que havia que me fez me apaixonar? O imponderável. Principalmente, o imponderável. A presença de uma previsão equivocada no final, como se o destino estivesse enganando os amantes, fez-me perder a respiração. Dizer aquele famoso sensacional entre uma taquicardia e outra. A partir de então, li e reli inúmeras vezes. Descobri outras características e nuances que também me empolgaram. Uma delas era a forma como a tensão entre os amantes aumentava a cada vez que uma carta anônima e ameaçadora chegava. Como um thriller psicológico que ia minando os personagens até o limite. De uma certa maneira, tive também uma leitura dúbia a respeito do final. Acho que, por romantismo intrínseco, o final trágico não me pareceu tão trágico assim. Afinal, a morte chega para os dois juntos. E morrer juntos pode ser tão lindo dramaticamente quanto viver juntos. Separados, jamais. Imponderável, destino, amantes, tensão, um novo ponto de vista sobre uma suposta tragédia. Esses foram os aspectos que me atraíram no conto genial de Machado de Assis. Um dos poucos da literatura do mestre em que o final é trágico. Havia uma outra consideração: tratava-se de uma história pequena, que deveria ser muito bem trabalhada para crescer e virar um longa. Pesquisei uns três meses lendo tudo sobre a segunda metade do século 19 que pudesse me ajudar a sentir como era viver naquela época. O início de higienização da cidade, a possibilidade de alguma vida social, as modas francesas, ou seja, um Rio de Janeiro que olhava para o alto aspirando ser uma nova cidade, mas ao mesmo tempo convivia com a reta final da escravidão, com as relações difíceis entre patrão e escravos/empregados, com os amores intensos e sofridos, pouco expostos, entre convenções sociais, etc. O roteiro nasceu num jorro criativo depois desta pesquisa. Acho que no prazo de uns quinze dias ininterruptos em frente ao micro cheguei ao fade out final. Eu estava tão imerso naquele universo, que senti aquela preponderância mágica da história sobre algumas decisões que eu tinha tomado para seu desenvolvimento. Foi a primeira vez que realmente vi um roteiro vivo, falando sozinho, exigindo cenas e informações acima de meus comandos. Inicialmente escrevi uma adaptação direta. A história acontecia na mesma época, século 19, respeitando todos os fatos narrados por Machado de Assis – ou seja, o triângulo amoroso, o romance nascido da convivência entre Rita e Camilo, a paixão escondida, as cartas anônimas, todos estavam lá. Por conta da pequenez, resolvi criar uma trama adicional ao triângulo. Dei vida à mãe de Camilo, mas principalmente à família de Vilela. Ali, nasceu uma mulher ambiciosa por uma certa ascensão social, por convivência com a corte, por jóias e bons negócios. Ao mesmo tempo, uma família marcada pela fragilidade de seus valores. A derrocada daquela família ajudava na história do triângulo. E acrescentava muito na ambientação da vida do século 19, ajudando na veracidade dos personagens. O roteiro ficou forte e com uma carpintaria bem elaborada porque todos os nós estavam feitos e desfeitos sem forçar situação alguma. As cenas tinham importância, nada parecia fora do lugar, a princípio. Os personagens estavam muito interessantes, multidimensionais, com credibilidade e levando a história adiante. Também respeitei o final trágico. E resolvi mostrar pra todos os envolvidos. O retorno foi melhor do que eu esperava. Acho que todo roteirista deve ter uns cinco leitores oficiais. De origens diferentes, se possível. Assim dá para tirar uma média de gosto, sentir qual classe e gênero de público se interessa pelas questões que aparecem na história. Algo tipo uma pequena amostragem de público de cinema. Deve ter também uma tremenda paciência para esperar as respostas. Porque tem gente que demora um tempão para te dizer... gostei. Você pergunta, do quê? A pessoa diz... não sei. Tudo bem, use um pouco de seu lado investigativo que logo logo as respostas que você precisa para saber se o roteiro está agradando vão aparecer. Os leitores iniciais foram positivos. Gostavam do romantismo, da tensão, até mesmo da forma como a seqüência deixava imperceptível o final – exatamente como no conto. Feitas as primeiras leituras, submeti o texto aos artistas e outras pessoas. Mais elogios. Aquele roteiro deu origem ao projeto e à possibilidade de captar recursos através dos benefícios de Leis Federais. Estávamos empolgados e trabalhando a todo vapor. Eu tinha deixado a história descansar e só voltaria a ela para as melhorias que sempre aparecem quando realmente fôssemos filmar. Mas, como uma previsão inesperada, A Cartomante demorou para conseguir captar todos os recursos que seu orçamento inicial previra. Era um filme de época, que demandava muita elaboração de produção, de figurinos, locações, etc. Após três anos, não conseguimos alcançar os valores necessários. Conclusão: tínhamos que tomar uma decisão porque o prazo iria expirar e o recurso tinha que ter um fim. Voltando de uma viagem de férias, tive uma idéia no avião: por que não tentar reescrever o roteiro e adaptá-lo ao valor que tínhamos para filmar? Foi aí que nasceu o roteiro e conseqüentemente o filme que hoje existe. Capítulo II Novas Cartas A primeira decisão foi radical: esquecer completamente aquele primeiro texto e trazer a história para o presente. Já que o encarecimento era por conta da transposição da época, que viéssemos para os dias atuais. Todas as decisões tomadas pelos meses seguintes, desde o roteiro até a edição, foram em função desses recursos abaixo de valores que nos propiciariam filmar a história que queríamos. Foi a melhor decisão. Sem ela, hoje não teríamos filme. Confesso que esquecer aquele roteiro foi um processo difícil que perdurou, pelo menos, ao longo das três primeiras versões da nova trama. Vez por outra, eu me pegava pensando no passado, os diálogos nasciam com o tom errado, as cenas eram longas demais e havia menções às questões anteriores – seja pela presença de personagens que só faziam sentido no passado – como a mãe de Vilela, por exemplo, seja por ações dos próprios personagens – o Camilo paquerava na boate como se estivesse no século 19. Foi preciso muito olho clínico e a ajuda dos colaboradores para excluir todas aquelas referências e, principalmente,  limpar minha mente – e alma – das questões da outra história. Depois de tanto tempo pensando no passado, vivendo nele, era praticamente como ter que esquecer aquela temporada de férias em família. E ainda tinha a questão dos nomes, que preferi manter os mesmos do conto, acho que só pra complicar um pouco... A única cena que deixei foi o sonho de Rita, onde ela aparece entre Camilo e Vilela e um vulto atira neles – ali, eles poderiam muito bem estar vestidos com figurinos do século 19. Afinal, tratava-se de mais um ingrediente do imponderável que vinha para aumentar as indecisões da jovem, e funcionava também como uma espécie de premonição. Retiradas as cenas e aspectos do século 19, foram aquelas primeiras impressões que tive do conto que permaneceram. Aqueles sentimentos atemporais e universais eram o motivo criativo e não estavam ligados a uma história de época. Assim, trouxe comigo a presença marcante do imponderável, a tensão psicológica, o destino como agente transformador da vida dos personagens. Essas forças estavam tão presentes em meus intentos que, no terceiro tratamento em diante, escrevi um slogan na capa do roteiro. Era assim: Você acha que controla o destino? Espere para ver o que o destino acha... Desta forma, tentava fazer do roteiro, como meio artístico, uma leitura atraente para quem fosse ler. Antes disso, porém, passei cerca de um mês pensando no embrião desse novo roteiro. Não tenha dúvida: esse é o momento vital! Se a idéia nasce torta, corre o risco de crescer torta – e mesmo morrer por sua deficiência. É nessa hora que um roteirista cria uma história genial ou apenas uma história. Criar é mágico e aconselho a todo mundo. Seja uma historinha pra criança dormir, seja uma música, seja uma casinha de barro, dar vida a algo inexistente previamente é vivenciar uma energia imensurável e imponderável (olha o imponderável aí!). Guardei o livro que estava na escrivaninha e atraía meus olhares a todo momento – acho que isso deflagrava algum processo mental metafísico que me levava de volta ao passado. Com o tempo, Machado de Assis foi ficando para uma outra tentativa, com todo o respeito, com a consciência de sua grandeza e genialidade, e, principalmente, com a clareza de que literatura e cinema são meios distintos e toda e qualquer tentativa de adaptação sempre precisa fazer concessões em função do meio artístico em que se vai atuar. Deixei o bruxo do Cosme Velho de lado com o coração partido. Mas tinha que ser coerente. Pena que muita gente foi ver o filme achando que iria ver uma história adaptada do nosso grande escritor. Ficaram decepcionados, certamente. Mas era hora das palavras. E o primeiro tratamento terminou no dia 3 de novembro de 2001. Foram cerca de sete a oito semanas entre concepção e escrita. Não dá mesmo pra mensurar o tempo diário de trabalho porque é preciso escrever mesmo quando não se está escrevendo literalmente. É preciso também parar de assistir a todos os outros filmes (exceto em casos de consulta para alguma determinada informação que vai ajudar); parar de ler todos os outros livros. O nono, e último, tratamento antes da filmagem ficou pronto no dia 14 de março de 2002, com 119 cenas, 110 páginas. Começamos a filmar no dia 19 de março pela cena da sauna, onde os amantes transavam rapidamente e combinavam de fugir. Nada mal para uma estréia, não é mesmo? Por um daqueles sentimentos nostálgicos, o primeiro dia de filmagem me fez lembrar do início do processo de criação. Enquanto caminhava no set, a chuva fina caía por volta das 6h da manhã, a equipe ainda estava com cara de sono, mas animadíssima para começar a maratona que estava por precipitar-se; voltei alguns anos no passado para relembrar o roteiro de época; depois, numa elipse, avancei para aqueles primeiros dias de reescrever o roteiro sem Machado. Muitas imagens foram inseridas na minha mente: os riscos e rabiscos por todos os cantos, as folhas jogadas na lixeira, o computador cheio daqueles amarelinhos espalhados, o arquivo e a preocupação em fazer backup, enfim, do nada, absolutamente nada, nasceu algo de meu esforço pessoal e que agora ganhava vida com o esforço de uma equipe enorme, feita de técnicos e artistas, gente movida pela mesma força motriz: a vontade de fazer arte e cultura. Tenho um processo de escrever que começa com papel e lápis num bloco de rascunho feito de papéis velhos com versões antigas de outros roteiros. São madrugadas adentro feitas de muito pensamento, incessante, obcecado pelos mínimos e máximos detalhes. Nascem frases, círculos com idéias, nomes de personagens, um leve encaminhamento de cenas aqui, outro acolá; em geral, são desenhos e gráficos que faço com os personagens e suas relações. Parecem até cálculos matemáticos, aquelas coisas que nós somos obrigados a fazer no segundo grau. O gênero da história pauta esses traços, típicos de um quadro abstrato. Eu estava falando de uma situação dramática que Georges Polti catalogou, em seu livro As 36 Situações Dramáticas, como a 28a, ou seja, romance (não me pergunte se ele tem razão em catalogar apenas 36 porque há autores que chegaram a 70, outros a mais de 200). Enfim, eu não tinha dúvida quanto ao gênero. O que me preocupava era um possível subgênero ou mesmo tentar algum cruzamento de gêneros – algo que se procura fazer atualmente para abrir o leque de opções da história. Tal qual jornalismo, um bom roteiro também responde as cinco perguntas básicas de um lead. E eu já sabia Quem e O que estava escrevendo. Faltavam Como, Onde e Por quê. Como romântico, eu não tinha medo de escrever bobagens, nem ser melodramático. Também não cometi o erro vital de pensar no público para escrever. Talvez esse erro tenha existido em alguns momentos na hora de produzir e dirigir. Mas não no roteiro. Fui montando um quebra-cabeça a partir de vontades próprias, apenas isso. Tentando visualizar mentalmente cada palavra dita por cada personagem, cada cena (ela contém informações ou move a história adiante?), as respirações de cada personagem. Vivi as dores da Rita sem saber o que escolher para sua vida. Quase matei o Vilela com o Camilo quando estávamos à beira daquele precipício. Noutras vezes, estava falando sozinho para ver se as frases eram críveis. Isso tudo levantando a cada duas horas para comer uma fruta, ir à janela, ouvir o cachorro do vizinho latir ou as corujas piarem. Em meu primeiro roteiro, lá em 1996, estiquei todas as folhas no chão do quarto, para ver o tamanho de cada cena, as presenças dos personagens. Não dava pra andar pelo ambiente sem pisar nas cenas. Ficava olhando-as por horas e horas. Pintava cada fala de cada personagem com lápis coloridos. Hoje não faço mais isso, porém não digo que seja bobagem. Tudo o que for feito para ajudar a visualizar os pequenos detalhes dentro do roteiro deve ser tentado. Nas buscas por novas idéias, devo confessar que dirigir pelas ruas do Rio de Janeiro ajuda muito nas livres associações. De Grumari ao Leme, dá pra ter umas duas ou três boas idéias. Um bom chuveiro quente também contribui. Mas, às vezes, uma frase dita num elevador por um desconhecido libera uma idéia escondida em algum neurônio. O que não se pode é parar de fazer as perguntas certas. Alguns teóricos dizem que é fundamental fazê-las para encontrar as melhores respostas. Que é o único modo seguro de seguir adiante. No meu ponto de partida, eu tinha um imbroglio romântico com quatro personagens. Um casal, um amante e uma cartomante. Logo nos primeiros gráficos e anotações, uma relação ficava clara: a cartomante relacionava-se com o triângulo, influenciando-os por conta de suas previsões. Cartomantes existem no século 21 tão importantes quanto a mania milenar dos seres humanos em prever o futuro. Depois de dias e noites insones tentando imaginar o que aconteceria nesse romance, respeitando que Rita e Camilo fariam o casal de amantes e Vilela seria o vértice oficial, empaquei nos fatos que iriam marcar a narrativa. Como separar e juntar os amantes? Como criar o desejo de ficarem juntos, superar todos os obstáculos? Como demonstrar os conflitos internos de cada um, já que os conflitos externos estavam relativamente claros por conta de seus anseios românticos? Como desenvolver a presença da cartomante na vida de todos? Como seria esse amor marcado pelos dilemas e dicotomias dos apaixonados? Onde um simples detalhe (no caso, o horóscopo) poderia influenciar suas atitudes? Enfim, faltava um diferencial para a história: eu. (Bom, aqui faço um parênteses para alertar o amigo leitor que seria mais importante ver o filme antes, ou ter lido o roteiro aqui escrito e depois recomeçar a leitura porque... Vou contar o final!) Ok. Espero que você tenha gostado. Certamente viu que o final foi surpreendente. Você tinha idéia de que a história terminaria assim? Suspeitou da médica alguma vez? Sofreu com a histeria de Karen e a fragilidade de Rita? Enfim, este filme que você viu – ou leu – nasceu dos gráficos que ligavam a cartomante aos três apaixonados. O final do roteiro foi a primeira coisa que realmente nasceu de um desejo pessoal. Meu questionário tinha ponderações do gênero: as pessoas vão às cartomantes para saberem do futuro, essencialmente; descobrem também sobre o presente, sobre suas personalidades, sobre seus parceiros. Questões de amor são sempre uma incógnita para corações apaixonados, aflitos e inseguros, ansiosos por uma palavra de conforto que lhes dê paz e a certeza de que o amor irá ser bem-sucedido. Então, onde mais os habitantes deste século buscam compreensão para essas questões? Onde mais as pessoas pensam no presente e no futuro de suas próprias emoções? Na faculdade? Numa igreja? Num laboratório de ciências metafísicas? Ou seria nos consultórios psicanalíticos? De perguntas como essas, do raciocínio de que o imponderável e o ponderável estão sempre em jogo quando sentamos em frente a uma cartomante que vai interpretar e prever fatos de nossa vida em cartas com desenhos diversos – independente do lugar aonde cortemos o bolo das cartas; e ainda de que a psicanálise também procura resolver questões e encontrar verdades de cada ser, enfim, a partir de todo esse pensamento, adicionado a questões que realmente fazem parte daquele 1% de inspiração que faz parte do processo criativo, encontrei uma idéia simples e complexa ao mesmo tempo: e se a cartomante fosse também uma analista? Ou melhor: se a analista usasse o disfarce de cartomante para jogar com as vidas de meninas ingênuas como a Rita? O final do filme é esse. Dessa pergunta que nasceu na minha mente depois de algumas semanas ponderando sobre gráficos, pensando na Rita, Camilo, Vilela e nessa cartomante que nunca tinha um rosto na minha tela mental, veio a conexão entre os dois séculos, veio a personalidade múltipla de uma personagem que tinha ascendência sobre todos os outros. Nasceu o filme que você viu. Liguei para o Pablo e disse: A cartomante é a analista! Silêncio do outro lado da linha. Adorei, ele disse. Assim como os outros que ouviam a história. O produtor do filme, Carlos Guimarães, chegou a declarar que As analistas são as cartomantes dos ricos. Tempos depois, na hora de buscar a identidade visual do filme, eu defendi a idéia da mão cortando as cartas como a imagem principal para ilustrar pôster, material publicitário. Essa mão está presente no filme com um super- close. Indica justamente essa dicotomia: o momento de cortar as cartas é marcado por acaso ou influência de uma força maior chamada destino? Se a mão for mais abaixo do bolo de cartas, o destino e a leitura serão diferentes? Enfim, na idéia/imagem síntese do filme, eu tinha concreta a idéia de que há sempre duas forças atuando na vida. Profundo, não? Capítulo III Os Personagens Neste tempo, também trabalhei forte nos personagens. Como se tratava de uma trama onde a transformação deles seria o ponto interessante do filme, era estritamente necessário que eu tivesse conhecimento total da vida daqueles quatro entes queridos. Então, criei uma história pregressa da vida de cada um dos três envolvidos no romance, as quais compartilho aqui também. Antonia Maria dos Anjos Formação: clínica médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com especialização em psiquiatria e posteriormente psicologia pela Universidade Santa Úrsula. Especialização em suicidas. Antonia é filha única de Antonio Claudio Machado, embaixador do Brasil na Itália nos anos 50 e que voltou ao Brasil quando a esposa, Celina dos Anjos, engravidou. Celina é professora de filosofia mas não seguiu o magistério para cuidar da filha. É mulher religiosa, vai à missa ao menos uma vez por mês. E resolveu dedicar sua vida à criação de Antonia, a filha que ela não planejou, mas chegou. Antonio ficou um tanto contrariado porque sabia que voltar ao Brasil era um retrocesso em sua carreira. Mesmo assim, articulou para continuar no poder no Itamaraty – e assim fez até sua morte, na década de 1970, quando Antonia tinha 28 anos e estava recém-formada. Seu pai não era homem de muitos carinhos, mas quando o fazia era sempre bem colocado. Vivia na biblioteca lendo e escrevendo. Era muito inteligente e queria criar um modelo de organização mundial que pudesse diminuir a fome e a miséria do terceiro mundo. Antonia sempre o ouvia discorrer sobre a dominação inglesa na África, sobre o colonialismo americano, sobre o provincianismo brasileiro. Alguns ilustres da semana de arte de 22 passaram pelas salas de sua casa, tais como Tarsila do Amaral e o próprio Mario de Andrade, numa única noite que sempre foi lembrada pela família. Antonia conversava com a mãe sobre a igreja e sobre as religiões. Para Celina, as pessoas precisavam da religião e não podiam viver sem ela.  Seu pai era ateu e marxista não-assumido. Antonia viveu até os dez anos numa casa na Gávea, depois se mudou para Ipanema, onde passou sua adolescência tomando banho no Posto Nove. Mas, quando sua mãe descobriu que ela tinha um namorado que estava envolvido com a luta armada, Antonia foi mandada para Paris. Ela bem que gostou porque não sabia muito bem se queria ser guerrilheira. Provavelmente não. De certa forma, Antonia nunca hesitou em treinar tiros com o namorado num sítio que a família dele tinha na longínqua Barra da Tijuca. Num desses treinos, ela apontou para um pássaro e atirou nele, matando o bichinho. Esse fato ficou marcado em sua memória pelo remorso de ter tirado a vida do animal indefeso. Na capital francesa, ficou até os 18 anos. Morava no Quartier Latin, mas adorava o Marais, onde os operários bebiam cerveja até altas horas da madrugada e contavam histórias de suas conquistas sexuais. Antonia gostava de vê-los poderosos em volta da mesa, sentindo-se capazes de transarem com todas as mulheres do mundo. As lembranças de Paris remontam ao primeiro homem de sua vida, um alemão lindo, de olhos cristalinos, mas muito pouco tato com mulheres. Numa dessas noitadas, ela resolveu ir para o pequeno quarto do rapaz, um estudante de engenharia da Sorbonne que gostava de ouvir Led Zeppelin. Antonia queria faire l’amour, mas o cara só pensou em sexo. Saiu de cima dela assim que terminou e propôs que fossem beber uma cerveja (afinal, como bom alemão, mesmo em Paris, ele não dispensava a cevada). Foi o fim do romantismo na adolescência de Antonia. A propósito, ela não gozou. Mas prazer mesmo, ela conheceu depois, quando foi apresentada a um casal de brasileiros que viajava mochilando pelo mundo. Adeptos da cultura hippie, um dia Antonia deixou que eles dormissem em seu estúdio. Depois de algumas garrafas de vinho, ela aproveitou que a mulher estava dormindo, puxou o cara para seu lençol e, entre o medo de ser descoberta e o prazer de estar tomando a iniciativa, transou e gozou pela primeira vez na vida. Para sua surpresa, na noite seguinte, a mulher, uma carioca de corpo tatuado, perguntou se não podia juntar-se a eles. Antonia topou e descobriu que prazer sexual era algo sem preconceito. Desde então, sua bissexualidade nunca foi problema. Vale lembrar que, ao longo de sua vida, Antonia estava mais na cama com homens do que com mulheres; porém, vangloriava-se de ter estado na cama com algumas damas da sociedade brasileira e parisiense também. De volta ao Brasil, Antonia escolheu a faculdade de medicina apesar do teste vocacional ter indicado a área de antropologia. Os namorados passaram a diminuir. A mãe foi morar no interior de São Paulo, na cidade de Araras. Antonia ficou sozinha no apartamento de Copacabana, pé-direito de 3 metros, escada à la E o Vento Levou. O tempo de estudo fez com que ela ficasse cada vez mais reclusa. Quando não estava estudando para a faculdade, passava seu tempo na biblioteca do pai, devorando os russos, de Tolstói a Gogol, ou então lia e relia A Odisséia. Adorava Sinclair Lewis, no romance chamado Babbit – sempre chorava ao ler o final do livro, quando o personagem dizia que nunca fez o que sempre sonhou. Antonia tentou casar aos 26 anos, quando a faculdade tinha acabado. Durou três meses. Ele era um industrial interessante, inteligente, mas roncava. E ela não conseguia gozar de forma alguma com ele. Com o tempo, o sexo foi deixando de ter importância. O industrial era inconstante, ela descobriu que ele sofria de esquizofrenia compulsiva. De repente, Antonia se viu fazendo experiências com ele, atuando como terapeuta e não como esposa. Tanto fez que o homem, um dia, resolveu assumir uma desconhecida homossexualidade e saiu de casa. Meses depois, foi encontrado morto num cabaré na Lapa. Antonia decidiu estudar psicologia. E se internou em casa por mais seis anos, lendo e pesquisando tudo o que podia sobre essa o ser humano. Também se aprofundou no estudo dos aromas e gostava de desenvolver alguns aromas em casa, misturando ingredientes e curtindo o resultado de suas pesquisas. Também cultivava alguns ratos de laboratório, sem fazer muitas experiências com eles – na verdade, queria apenas livrá-los das mãos dos cientistas que faziam loucuras com eles. Nessa época, conheceu uma empregada que prestava serviço em sua casa. A mulher trabalhava arduamente, mas Antonia viu que ela sofria de depressão e tinha tendências suicidas. Com o tempo, as tendências se transformaram em fatos. Antonia evitou três tentativas de suicídio da mulher. Na quarta vez, enquanto a mulher sangrava com os pulsos cortados, Antonia resolveu dar-lhe um prazer que ela achava que a mulher queria muito. Deixou-a morrer. Os estudos de psicologia aumentaram. Ela resolveu tomar uma atitude radical e internou-se num hospício, falsificando um laudo e sendo tratada como enferma para conviver com os internos. Dia a dia, ia descobrindo os limites de cada um dos seus companheiros. Escutava suas histórias, estudava atentamente cada detalhe que lhe era narrado, buscando entender quais os pontos que fizeram com que a vida de cada uma daquelas pessoas desviasse do rumo. Em seu íntimo, não deixava de ficar assustada com as complexidades e como o abismo estava sempre muito perto daqueles homens e mulheres. Esta foi uma época difícil porque sua mãe morreu e ela herdou uma fortuna. Dinheiro deixou de ser qualquer preocupação. Antonia comprou as melhores roupas que podia. Não ligava muito para jóias. E montou seu primeiro consultório. Ela tinha 33 anos. Seus primeiros clientes foram homens do mercado financeiro, empresários que ela tratou com o maior amor e afinco. Depois, conheceu um padre que havia enlouquecido por ter visto um quadro de Jesus se mexer. Antonia estudou um pouco dos fenômenos paranormais, mas não chegou a conclusão alguma. Na verdade, o que mais lhe interessava eram pessoas à beira do precipício. E começou a procurar este tipo de personalidade. Foi às boates loucas de Nova York. Voltou aos cabarés de Paris. Viajou pela Polinésia e conheceu tribos rudes com seus rituais quase animalescos. Conheceu viciados em Los Angeles, mas, detalhe importante, em nenhum momento usou drogas. Achava que não precisava. No fundo, a possibilidade de perder o controle era o único receio dela. Aprendeu tudo a respeito de estados emergenciais da mente. Assim como aprendeu tudo sobre torturas quando conheceu um capitão do Exército amigo de seu pai. O homem quis se consultar porque sofria com os fantasmas das pessoas que torturou na época da Ditadura. Antonia se chocou tanto com as descrições do homem, que achou que ele não merecia mais viver e induziu-lhe idéias de suicídio. O homem se jogou do bondinho do Pão de Açúcar. Depois de muita pesquisa de campo, Antonia resolveu aquietar-se novamente no Brasil. E conseguiu o emprego na Vida Vital, a clínica de Agenor, onde cuidava de pacientes de risco, principalmente abordando o lado psicológico. Seus critérios são desconhecidos, assim como seu julgamento. Se um homem morde um cachorro, por exemplo, Antonia diz: Fez bem, revidou e ninguém sabe se está brincando ou falando sério. Detalhe: uma vez, ainda na faculdade, fez um teste de QI e assustou a banca com a média de 182. A tatuagem que tem nas costas, dois escorpiões lado a lado, foi feita em Venice Beach, Califórnia, quando convivia com os traficantes. Antonia sempre foi assim, adorava passar despercebida, ser a eminência parda, mas a voz que soa no momento certo, para resolver os problemas humanos, seja da forma como for. Apesar disso, ela não gosta muito do livro O Príncipe, de Maquiavel. Acha infantil. Dentre eles, gosta muito das histórias de Merlin, o mago que comandava o Rei Arthur e as fadas. Ou então Rasputin, que, segundo ela, tem mais visão de mundo do que qualquer outro governante. Além disso, tinha um quadro de Gengis Khan em seu quarto. Depois que sua mãe faleceu, ela nunca mais foi à igreja. Mas sempre quando passa em frente a uma, olha os devotos com pena. Antonia não tem amigas, apenas conhecidas, muito mais por causa de suas longas viagens; mas também por achar as meninas de sua época muito limitadas – que só pensam em casamento, dinheiro e sexo, nessa ordem, claro. Os momentos de tristeza de Antonia acontecem quando alguém muda o curso de algum trabalho seu. Só que ela não tem raiva, nunca; esse sentimento passa despercebido por sua cabeça e coração. Na verdade, também amou muito pouco, porque todas as suas relações aconteceram porque tinham que acontecer ou estavam na hora. O desprezo que tem pelo mundo nasce da capacidade de compreender todos os meandros da mente e da alma humana. Como não conhece o amor de verdade, Antonia cria uma crença em si mesma, e acredita realmente que é capaz de criar ou matar. Esses são alguns fatos da história dessa mulher enigmática. Em sua casa, as fotos revelam uma Antonia rica, inteligente e bonita. Mas se prestarmos atenção no olhar, há um ser humano que clama por horizontes maiores, talvez inexistentes neste planeta. Camilo Silva e Silva Camilo é um cara com uma história muito comum no Brasil. Filho de classe média, seu pai trabalhava numa companhia estatal que foi à falência no meio da década de 1980, quando a inflação era hiper e a economia míni. Seu pai resolveu ir embora de casa e esse fato marcou muito a vida de Camilo. Ele tinha nove anos de idade, já sabia muito bem distinguir o clube do Bolinha e se interessava cada vez mais pelo da Luluzinha. Adorava espiar pela fresta da porta o namoro de seus pais. Observava com espanto e um certo prazer como seu pai gostava de usar uma lanterna iluminando o corpo da mulher. Esse gosto marcou muito os sonhos de Camilo. No futuro, o rapaz não hesitou em repetir o gesto. Quando o pai foi embora, a mãe resolveu ser mãe e pai ao mesmo tempo. Foi trabalhar e queria complementar as carências, tentando controlar tudo da vida do filho. A relação ficou doentia, claro. As namoradas chegaram cedo. Aos 12, Camilo encontrou uma vizinha de 21 que lhe ensinou os caminhos do corpo de uma mulher. Ensinou-lhe que todas as mulheres têm uma chave e que só é preciso tocá-la com precisão que o mundo do amor se abre. Camilo não gostava da escola e aprendia com dificuldades. Sempre ficava de recuperação, mas isso tornava-se até um prazer, porque ele podia paquerar mais meninas. Até o dia em que descobriu que as professoras também tinham suas carências. Não é preciso dizer que em pelo menos algumas matérias Camilo tirou dez sem precisar sequer fazer provas. O resto de sua infância e adolescência, sempre pelo bairro da Tijuca e depois Flamengo, foi gasto na rua. Camilo gostava de soltar pipa, jogava bola no asfalto. Ia à praia e pegava jacaré – não gostava de surfe por duas razões: não tinha dinheiro para a prancha e depois preferia ficar na areia. Pode-se dizer que a praia é seu ambiente natural. Sua beleza natural faz com que ele não tenha medo das novidades. Não era raro ficar com duas meninas numa mesma festa numa época em que isso era um feito a ser comentado por todos os amigos. Camilo nunca namorou sério. O máximo de tempo que ficou foi com uma paulista que veio passar o verão no Rio. De outubro a maio. Camilo gostava também de dançar, demonstrando uma relação com seu corpo sadia e fruto de muitos anos de vida da rua, nas rodas de capoeira que por vezes freqüentou, nas boates ou mesmo nas academias. Gostava de malhar, mas apenas para estar num lugar social. Não pela construção dos músculos. Já brigou algumas vezes por causa de coisas irrelevantes, aquelas coisas de boates e grupos rivais. Mas nada demais. Seu barato mesmo é curtir a vida. Não gosta de pensar em mais nada que não sejam alguns planos para as noitadas. Apesar de ser boêmio, a bebida é a cerveja, consumida moderadamente. Os dois namorados que a mãe teve depois da saída do pai de casa sofreram com seu ciúme. Camilo deixava a mãe constrangida por não sair de casa. E ficava ouvindo a música que seu pai colocava todo sábado de manhã, uma música clássica com um ritmo acelerado, um disco chamado Hooked on Classics. Esse disco ainda mora na estante da sala e raramente sai do aparelho. Com o tempo, sua mãe começou a escassear em casa. Camilo desconfiou das relações dela, porque o dinheiro começou a aparecer e o rosto da mãe envelheceu anos em apenas alguns meses. Mas o jovem Camilo, que se acha conhecedor de todos os mistérios do amor, não sabe se ela faz realmente programas. Na verdade, este assunto, como todos os outros que aparecem com perguntas simples, mas que demandam respostas complexas, Camilo simplesmente evita. Sua melhor resposta é: Odeio perguntas simples porque elas sempre pedem respostas complexas. Leitura nunca foi seu forte. Mas, no fundo, inconscientemente, sempre se considerou um daqueles românticos clássicos, que dá flores. Mas detalhe: Camilo nunca deu flores a ninguém. Nem disse poesia. Tudo está dentro dele, no fundo, mas não desabrochou. Até o dia em que conhecer um amor de verdade, e sofrer do mesmo veneno de sua sedução. Rita de Cássia Rita é a terceira filha de uma numerosa família de seis filhos que mora no interior do estado do Rio. Já morou em Volta Redonda, depois Angra dos Reis e finalmente em Friburgo, tudo por causa do trabalho de seu pai, a agricultura. Rita passou a infância nos campos. Mas não gostava. Por contradição, sempre preferiu a cidade. A única coisa que a atraía no campo era a solidão. Estava sempre sozinha olhando as árvores ganharem as flores na primavera e as perderem no inverno. O dia que sua mãe, uma mulher rude de pouco estudo que teve como missão de vida cuidar dos filhos, brigou com ela para que ajudasse numa macarronada, Rita aproveitou para tomar a decisão mais importante de sua vida: sair de casa. Tinha completado 20 anos. Pegou sua poupança e veio para a cidade do Rio de Janeiro. Não estava longe, então, não se sentia tão desamparada. Alugou um conjugado e foi procurar um emprego. Neste dia, sentiu-se enjoada e entrou no hospital. Não se sabe realmente se estava sentindo-se mal ou somente entrou no local para obter alguma atenção, fazer algo diferente, ou mesmo arrumar emprego. Viu médicos serem cuidadosos com seus pacientes e logo começou uma insuspeita falta de ar. Asma foi o diagnóstico dado pelo médico mais bonito da emergência: Vilela. Como era um hospital particular, Rita não podia pagar. Vilela deixou a consulta passar de graça. No dia seguinte, ela voltou. E ele cuidou dela novamente. Na semana seguinte, lá estava Rita com suas carências. Numa dessas idas ao hospital, ela conheceu Antonia, com quem logo travou uma conversa boa. A médica marcou para se encontrarem no consultório. Rita começou a namorar Vilela, que lhe arrumou um emprego mediano num antiquário. Pronto, agora sua vida estava começando a ganhar rumo. Não deu o endereço para seus pais e ligava dizendo que era do orelhão. O passado pobre nunca foi uma lembrança agradável. Não que Rita não ame seus pais. Sua mãe levou-a numa vidente assim que nasceu e a mulher não conseguiu prever nada. Mau sinal!, disse a mãe. Rita não é religiosa, gosta de horóscopo e esteve tentando entender como funcionam os tarôs. Adora também colecionar os textos de seu signo. É pisciana dos primeiros dias da regência, e não está mergulhada na dicotomia do signo, que simboliza dois lados tentando entender partes diferentes da vida. Seu equilíbrio, todavia, aparece com a harmonia das pequenas coisas. Daí amar seu conjugadinho, que considera um tremendo cantinho. Gosta de se vestir com roupas molengas, mas está sempre deixando partes de seu corpo, magrinho, de fora, como quem quer escapar sempre das amarras da vida. Usa um saltinho para não perder a pose, não gosta de tênis porque acha que são para meninos. Ela não faz o estilo mulherão, mas sabe bem como jogar com seu corpo para conquistar quem quiser. Ao mesmo tempo, sabe ser menina quando desejar. De fato, os hormônios fazem parte importante de seu comportamento. Quando a coisa esquenta, quando está molhada, há um ponto de retorno do qual ela não consegue mais voltar. Daí não pensar muito com a cabeça e mais com o corpo. Seu primeiro namoro foi com 15 anos. Em seu aniversário, deu um beijinho de estalinho em um menino que dançou a valsa com sua irmã. A festa de 15 anos foi aguardada porque suas irmãs mais velhas não tiveram a festa – eram épocas duras para a família – e resolveram se satisfazer com a irmã. Daí terem contratado um ator da Rede Globo para dançar. Rita gostou de tudo, mas seu interesse mesmo era no menino que dançava com sua irmã. No dia, aconteceu o primeiro beijo. Uma semana depois, Rita abriu sua blusa e pediu para o menino beijar seus seios. Noutro dia, abriu a calça do menino mas ele saiu correndo. Decepcionada, Rita resolveu partir para outras conquistas. O rapaz mais rico da cidade foi seu alvo e não demorou dois meses para estar passeando na garupa de sua mobilete. Mas não foi a ele que Rita quis se entregar, e sim, ao seu primeiro namorado, que fugiu. Mesmo namorando o rapaz rico da cidade, Rita transou com o outro e se sentiu feliz. Por que fazia isso? Porque simplesmente nunca questionou suas atitudes. Apenas queria ser feliz. E só sabia ir atrás de seus sonhos. É essa Rita que vai trair Vilela, se apaixonar por Camilo e errar todas as suas atitudes por causa de sua obsessão em controlar os fatos e antever o destino. Augusto Vilela Ele é Deus ou não? Essa é a pergunta que algum desprevenido por se pegar falando ao conversar com Vilela. O melhor estudante do primário, do ginásio e da faculdade, o melhor nadador de sua turma. Seu currículo é over qualified para qualquer posto que vá ocupar. Filho único de Agenor Vilela e Andreza Tavares Vilela, desde pequeno sempre foi o xodó da família. Seu pai levava-o ao jóquei quando ainda tinha uns seis anos e lhe dava as dicas corretas para apostar e ganhar nos cavalos. No colégio, Vilela sempre tirou notas altas. Chegava a ponto de sair da sala às vezes, porque já sabia a matéria. Ou então seus pais ouviam reclamações dos professores que ele estava atrapalhando a aula fazendo perguntas adiantadas para a turma. Fala quatro línguas: inglês, espanhol, francês e italiano. Não fala alemão porque não gosta. Conhece todos os continentes mas gosta mesmo é do Brasil, do Rio de Janeiro, onde pode desfrutar dos melhores restaurantes e de seu pequeno círculo de amigos. Mas apesar de todo esse background, sua família não é podre de rica. Nos anos 70, seu pai, um médico dedicado do hospital Samaritano, juntou-se a mais dois amigos e fundou uma clínica. Em 25 anos, essa clínica tornou-se a principal da cidade. E foi nesse tempo que Vilela sempre teve tudo o que pediu. Sua mãe, ao contrário, não era muito afeiçoada a ele. Carinhos eram poucos. Atenção também. Na verdade, ela estava mais preocupada com a própria vida, que ia para o buraco com o sucesso do marido e as amantes que vinham na esteira. A mãe de Vilela tentou se anular e conseguiu, de todas as maneiras. Para o filho, as grandes lembranças da infância são junto com seu pai e com o amigo mais próximo, Camilo. Eles eram vizinhos de porta e Camilo estava sempre brincando em sua casa. Um dia, quando a clínica estava de vento em popa, Vilela mudou-se. Tinha cerca de 18 anos. A amizade com Camilo terminou. Quem escolheu a medicina para ele foi o pai. Vilela aceitou de bom grado, achando que não tinha saída mesmo, uma vez que tudo que sempre teve foi benefício da clínica e que deveria dar em troca. Esqueceu a vida de esportista e aventureiro e foi para a faculdade. Provou para o pai que poderia ser diretor do hospital ao se formar com notas altíssimas – uma das maiores médias da história da UFRJ. Depois, fez pós-graduação na British School, em Nova York. Atuou mais na área de emergência. Nessa hora que Vilela descobriu um primeiro grande prazer em sua vida: salvar vidas. Em suas contas, apenas quatro pacientes que atendeu em cinco anos de emergência morreram em suas mãos. As namoradas não foram muitas. Seu pai o levou a uma casa onde prostitutas de cinco mil dólares desfilavam. Vilela apontou uma e teve sua primeira noite de sexo. Depois, as mulheres do hospital sempre lhe prestavam carinhos e, não se sabe muito bem se por interesse ou por gostarem, favores sexuais. Vilela não aceita perder nem porrinha. Não gosta de discutir e sabe que tudo o que tem a fazer na vida é seguir os passos do pai, ser diretor do hospital e casar-se com essa desconhecida que um dia entrou no hospital com crise de asma e por quem se apaixonou. Ele arrumou um emprego para ela perto e depois comprou um flat maior. Tudo em sua vida está esquematizado. Apenas uma coisa não faz parte dos planos de Vilela: o destino. A única com quem eu não conseguia dialogar nem ouvir fatos do passado era a bendita da cartomante. De que adiantava ser uma senhora com vincos nos rosto, mãos marcadas e ornadas por anéis de rubis, se não entendia os seus por quês? De fato, com o tempo, percebi que não me importava muito o que ela dizia. Qualquer que fosse sua previsão, ela não teria tanta importância na história. E, quando percebi este fato, o vínculo dela com a analista ficou mais forte ainda. Não importava o que ela dizia, mas o que a pessoa escutava. Isso faz diferença sim. Capítulo IV Story Line O roteiro tinha conflitos muito claros: Rita quer casar com Camilo. Camilo não quer se envolver com ninguém. Vilela quer ser o diretor do hospital e casar com Rita. E Antonia quer brincar com os três ao seu melhor estilo. Ao mesmo tempo, Camilo e Vilela querem provar que um é melhor do que o outro. Camilo tem problemas com a mãe. Haja gráfico... Mas esses conflitos externos tinham que ter suas extensões internas, porque desde o embrião estávamos falando de uma história focada nos personagens e suas transformações. Ainda, estávamos falando de um universo que navegava entre o lúdico e o factual, com previsões certas e erradas, com misticismo, um mundo de pessoas que se perguntam o que é fruto da verdade, o que é obra do acaso, o que está escrito em seus destinos ou o que eles podem mudar. Isso tornava todos os acontecimentos da história muito importantes. Nada podia ser apenas para respirar, como acontece com algumas cenas inseridas depois de uma seqüência de perseguição, por exemplo. Por isso, busquei fazer com que os momentos de encontros e desencontros do casal fossem vistos com olhos dúbios. Inicialmente, eram sempre frutos do acaso. Você encontra alguém num elevador e isso é obra do destino ou não? Com o desenrolar, percebe-se que não eram situações tão casuais assim. O roteiro tem um encaminhamento de fatos que podem acontecer coincidentemente e outros que estão escritos no destino. Por exemplo, quando Camilo vê Rita em seu brechó (que, a propósito, originalmente era um antiquário, mas virou brechó por conta do acerto com a locação), esse encontro é absolutamente casual. Mas, quando ela vai ao seu apartamento entregar a Vênus de Milo comprada pelo amigo Duda, era forjado pelo destino. Até o quarto tratamento, o roteiro tinha um final que poderia ser considerado cult. Acabava justamente na cena do consultório da analista. Rita errava os tiros. Antonia caía na gargalhada (uma risada de deboche do destino que não conseguiu fazer com que ela própria fosse morta). Vilela desdenhava de todos e saía. Camilo não suportava ter sido manipulado por Antonia, ter sido traído por Rita e também saía. Rita e Antonia ficavam num último olhar. A médica não dizia nada. Rita também a deixava sozinha. Ficávamos com o deleite da analista, ainda com restos do traje de cartomante. Fade out final. Mas, para um romance, na minha concepção, o não-desenlace poderia tornar o filme incompreensível. Ou odiado por não cumprir a promessa de juntar o casal. A idéia dos três desfragmentados, com suas mazelas expostas, com suas vidas viradas ao avesso e saindo do consultório onde viveram uma catarse ficava incompleta. Cada vez que eu relia, sentia necessidade de ver o casal junto. E havia ainda mais uma necessidade grande durante aquele quarto tratamento: quem seria o personagem principal do filme? Sim, a médica era a personagem principal, isso estava decidido. Mas como estaria agindo às escondidas, não poderia ser tão exposta. Percebi que deveria haver um outro personagem principal à vista do público. Como a história estava escondendo realmente quem era aquela médica, eu precisava de um personagem para ocupar este lugar, montando uma estrutura de um personagem principal ativo e outro passivo. Seria isso uma inovação estrutural? Nem pensei. Apenas pensei na história. Foram horas de telefone, de reuniões com os colaboradores do roteiro, Pablo e Laura Mallin, além de transpiração pessoal. Além disso, eu ouvia sempre do produtor um pedido apenas: fazer um filme claro, de fácil compreensão. Ok. Foi neste momento que me deparei com uma coisa que eu deveria ter feito alguns meses antes. Qual a frase do filme? Como sintetizar a história em uma frase somente? Ou ainda, aquele seria um filme sobre o quê? Qual a palavra, o verbo, a idéia síntese do roteiro? Considero que estas respostas deveriam ter sido conseguidas ainda naquele tempo de embrião e não durante o quarto tratamento. Mas não acho que isso seja um agravante. Só que era vital. E doeu muito para ser alcançada. Então, qual seria a síntese do filme? Uma jovem se apaixona pelo melhor amigo de seu noivo e toma suas decisões baseadas nas previsões de uma cartomante, apesar de ser amiga de uma analista. Não é uma síntese tão fácil para a percepção da história. Mas deixa clara a relação entre os personagens. E também o gênero principal do filme. Se fosse filme americano, talvez a forma de desenvolver o roteiro fosse outra – com um conflito mais simples. Corria o risco de haver uma queda para a comédia romântica e não para um thriller romântico, como era a proposta. Fosse filme europeu, iríamos observar o decorrer dos fatos sem muito envolvimento. E os três jovens teriam o mesmo espaço, com muitas cenas metafóricas da psicologia de cada um. Mas o filme é brasileiro e pronto, conta a história de forma passional, intensa, talvez até um pouco exagerada para corações frios e pouco dado a paixões, vencidos pelo intelecto improdutivo. A propósito, há muitos por aí, infelizmente. Ao longo dos tratamentos, eu percebia também que havia muita tensão na história e adorava. Os personagens ficavam muito ansiosos por realizarem seus desejos, exatamente como acontece aos apaixonados. Não havia respiração. Tudo acontecia muito rápido. A atriz Silvia Pfeifer chegou a comentar que o roteiro parecia uma avalanche. Rita estava sempre no limiar da paixão e da loucura a partir do momento em que conhece Camilo e descendo degraus a cada ida à cartomante ou a analista. E Antonia, seja oficialmente ou disfarçada, empurrava-a cada vez mais para o precipício de sua sanidade. Assim, a partir do momento em que decidimos qual era a frase do filme, tudo pareceu mais claro: a essência da história era escolhas. Estávamos falando sobre decisões, sobre livre-arbítrio – que, no subtexto, não seria tão livre assim, quando uma previsão coloca algemas no destino e não dá chances de mudanças. Daí vem a manipulação de Antonia. Com Rita, ela queria o prazer e a derrocada de um fio frágil de existência – assim como fez com Karen e fica indicado que vai fazer com a jovem Vitória. Com Camilo, quer apenas um prazer de seduzir um sedutor; e, com Vilela, ela jogou para vencê-lo mentalmente ao assumir a direção da clínica. Não que fosse uma apaixonada pela raça humana. Mas Antonia era também como a doença que vem dizer quais os limites da saúde, como o tombo para aprender a andar. Expondo as mazelas de cada um deles – infelizmente tomada por um sentimento de desamor – a médica abria uma chance para eles mesmos. O nono, e último, tratamento resultou num texto com personagens fortes pelas suas multidimensões, com uma trama engendrada, tensa e com um final revelador. Assim, era hora das cópias. Foi o adeus ao meu poder sobre o texto. Confesso que esse dia me deu um sentimento de angústia – que não contei para ninguém. Até porque eu estava seguro que tanto atores quanto técnicos estavam conscientes de todas as nuances da história. Era fundamental que todos estivessem contando a mesma história. Os atores me pareciam muito à vontade durante as leituras – contribuíam com suas inteligências a detalhes dos diálogos, mostravam que as palavras tinham encaixe em suas dicções. Deborah Secco, em seu primeiro ensaio de mesa, disse uma frase-chave de Rita com a certeza-fraqueza ideais. Já marquei a data do casamento e comprei o vestido, mas você não pode ver porque dá azar... Quer ver? Essa era a frase do personagem, e é maravilhoso quando a atriz entende-a perfeitamente, com todas as suas profundidades. Mas mesmo depois de pronto, nunca está pronto! Só para exemplificar essa afirmação, a primeira cena da história nasceu depois de terminadas as filmagens. Contraditório? Mais ou menos. De fato, o roteiro começava com Camilo entrando na boate, conhecendo a empresária, indo para a casa dela, entrando na maior roubada, quase morrendo e sendo atendido pelo amigo de infância há muito não visto. No primeiro tratamento, Camilo tinha um emprego de guardador de carros. Ele pegava os carros e dava um volta pelo bairro para azarar as meninas. Depois, entrava na boate misturando-se aos donos dos carros. Mas isso era muita informação para começar a história. Ele perdeu o emprego. Na verdade, ficou muito mais rico como personagem ao não ter emprego. Ser filho de uma mãe de condutas dúbias e ainda um vagabundo era mais interessante para um cara que se sentia o maior conquistador. E o ator Luigi Baricelli deu-lhe o olhar e o silêncio sedutor necessários para o tom que o roteiro pedia. Quando terminamos as filmagens e editamos o primeiro corte (que ficou com cerca de 2:40h, para um roteiro de 90 páginas), percebi que a analista/cartomante tinha que começar o filme porque seu poder acima de todos na história era muito marcante. E seria coerente. Afinal, ela é quem realmente tocava a trama adiante. Afinal, era meu personagem principal escondido. Assim, a analista tinha que ser o início e o fim da história. Mas onde e como? No topo de um prédio, olhando o mundo lá embaixo, os pobres mortais, em sua acepção, contando como, em seu ponto de vista, ela estava ajudando os homens frágeis de um mundo cão. Assim a Dra. Antonia abre o filme. Depois, mantive as aberturas dos personagens tais quais elas nasceram. Camilo na boite, Vilela salvando-o no hospital e Rita acordando linda e leve. Essas preponderâncias e atitudes eram muito importantes para sedimentar as bases de cada personagem. Ainda mais porque havia uma verdadeira seqüência de loucura logo de cara com a empresária Karen Albuquerque. E, tal qual louca que estava, a seqüência com Karen também teve efeitos surpreendentes na história. Capítulo V Roteiro Light Assim que entreguei o roteiro para a equipe de produção, havia uma preocupação inicial: como fazê-lo viável em quatro semanas de filmagens. Numa reunião urgente, percebi que tínhamos que diminuir mais ainda. De fato, estes cortes foram feitos num dos dias de maior desapego à história e, talvez, de mais independência e imparcialidade com relação ao que se apresentava. Foram cerca de dez cenas simplesmente riscadas – para muitos, cenas que eram gorduras. Para mim, um sentimento novo: depois de tanto trabalho, sempre é possível melhorar a partir da boa e velha conhecida mãe da criatividade – a necessidade. E foi aí que considerei que a história principal do roteiro poderia sobreviver ao que viria pela frente – filmagens e edição. O romance estava garantido, a tensão estava garantida e a trama com final surpreendente também. Sentei sobre uma mesa com o roteiro em mãos. Pablo Uranga sentou-se sobre a outra. Ao lado, o assistente de direção, Rafael Salgado, em frente a um quadro com as cenas recortadas, uma a uma, e enfileiradas ao longo dos dias de filmagens. Em seu olhar, a preocupação. Foi um momento iluminado, típico de qualquer doctor de roteiro hollywoodiano. Eu e Pablo tínhamos apenas uma coisa em mente: a história de Rita, por conseqüência, a história de Antonia. Em torno dessa trama – que na verdade era uma só – tinha o conflito entre Camilo e Vilela. E só. Assim, metemos a tesoura. Uma semana antes, as cenas pareciam-me essenciais. Porque davam mais consistência aos personagens, mais profundidade à trama. Naquele dia, eu já não ligava mais para elas. Não há dúvidas de que um roteiro só pode contar apenas uma história. E tem que fazê-lo da forma mais concisa, clara e coerente possível; porque senão desanda. A melhor forma de ver se uma cena é essencial para a história é retirá-la. E, assim, de repente, aquelas seqüências geniais não eram mais geniais e não faziam mais falta para contar a história da cartomante. Devo confessar que elas não me são saudosas. Mas jamais imaginei que pudessem sumir até aquele dia. Coisas da criação. Aqui vai uma dica compartilhada com os aprendizes de um eterno aprendiz – é sempre possível cortar. Todo mundo sabe que menos é mais; o difícil é saber operar essa matemática artística sem prejuízo do trabalho. Em outros roteiros, também tive que fazer cortes perto da época de filmagem. Mas sabia que estava abdicando de aspectos importantes da história. Sabia que iria contar a trama de forma capenga. E o filme me mostrou que eu tinha razão. Porque tem um momento em que o roteiro não é mais seu e  todo mundo dá opinião. Aí a coisa pode ficar uma loucura. Por isso é preciso saber até onde a tesoura pode andar. No caso de A Cartomante, as cenas que risquei, para alegria do assistente de direção, fizeram enfim o roteiro encaixar em quatro semanas de filmagem. Eu e o Pablo fomos comer um croissant com gosto diet, repetindo para nós mesmos, meio que tentando convencer-nos, que aquelas eram gorduras quase imperceptíveis do roteiro. Acho que ainda estávamos tontos. Estes cortes serviram para mostrar também que o cerne da história conseguiria sobreviver. Ele tinha que suportar mais um monte de provas até chegar à tela. Tinha que passar pelos atores, pelos outros inúmeros problemas de produção e principalmente pela pós-produção, que inclui problemas técnicos e, claro, a edição. No fundo, um roteiro acaba tendo mesmo um significado maior do que as cenas literalmente como elas estão escritas. A exemplo da teoria da montagem de Eisenstein, há entre duas cenas escritas um terceiro significado que é o que realmente luta para permanecer até a tela – e dela para o coração e mente do público. Nós filmamos todas as cenas do roteiro. Mas, sem dúvidas, a edição é como reescrever o roteiro. Acho que é o momento mais crucial da história. Foi na edição que encontramos muitas soluções que não foram necessárias no roteiro, desde a presença da empresária Karen espalhada ao longo da história, passando pela forma como inserir os créditos iniciais, até mesmo a imagem das cartas caindo pontualmente e marcando momentos importantes. Neste último roteiro escrito na edição, diminuímos algumas cenas do namoro entre Camilo e Rita. Havia uma leve perseguição dele em frente ao brechó dela, observando-a diariamente até o dia em que ela saía para surpreendê-lo do outro lado da rua. Camilo, o que você tá fazendo aqui? – ela pergunta. E ele diz que tem algo no brechó que lhe interessa mas ele não pode comprar. Outra cena que foi cortada era o momento inverso da perseguição, quando Rita vai à academia de Camilo por acaso, ou, como ela mesma dizia, para ver os preços. Na cena, eles conversam rapidamente, ela menciona o noivo (e amigo) Vilela, Camilo recua um pouco lembrando que tem uma dívida para com ele por ter-lhe salvo a vida. Após a visita dela, Duda aparece para paquerar mais um pouco com Camilo. Outra seqüência que saiu na edição era a participação de um travesti que, por conta dessas coincidências, encontrava-se com Camilo num barzinho e eles tinham uma conversa amiga – algo do tipo... O travesti ajudava-o a entender seus pensamentos confusos. O mesmo travesti passeava pela praia e encontrava Vilela, este sim, bêbado. O médico desabafava com ele. No dia seguinte, quem entregava o jornal para Rita? Ele mesmo, o menino que na noite anterior estava todo montado. Infelizmente não deu pra incluir porque desviava a atenção da história principal. Mas agradeço ao amigo Serginho “Tula Mancini” pela participação. Uma última mudança na edição foi sugerida pelo distribuidor. Era que não mostrássemos que Antonia não tinha sido atingida pelo tiro de Rita. Que cortássemos a sua gargalhada que ecoava pelo consultório quando ela mesma percebia que Rita havia errado o tiro – ou seja, até o destino tinha sido vencido por ela. Aceitamos a sugestão e congelamos a imagem de Rita com o tiro. Isso criou um artifício que permitiu deixar a tensão continuar na tela. Voltamos aos personagens em seqüência... Vilela narra como aquela situação o afetou;  depois fala de Antonia – e vemos Antonia e Karen (a conexão!); vemos e ouvimos Camilo despedir-se da mãe; isso tudo sem saber o que aconteceu realmente com Antonia, ou melhor, sem vê-la morta por conta do tiro. Aparece Rita arrumando seu quarto e narrando, de forma positiva, sobre os seus pensamentos e sentimentos, talvez no momento mais lúcido da personagem quando ela diz: Não é porque uma louca cruzou o meu caminho que vou deixar de acreditar... Pronto. Os personagens envolvidos saíram ilesos porém marcados para sempre daquela situação em que se meteram. Transformados, levaram suas cicatrizes pelo resto da vida. Mas onde está a manipuladora? Ela reaparece na última cena, na última imagem, como quem diz... eu tenho a última palavra. Nada como estar atento à história e conhecer todos os processos de contá-la. Capítulo VI Todos em Offs A estrutura do roteiro parecia simples, mas não era. Por conta de personagens tão marcantes, resolvi usar um artifício comum, a narração, mas de forma pouco convencional, dando voz aos pensamentos dos quatro envolvidos. Como não havia necessidade de descrição dos fatos, essa narração serviu como ponderação, reflexão, de suas mentes. Foi uma tentativa artística mesmo. Numa época em que os roteiros quebram algumas regras de dramaturgia – sempre em busca de novas formas de contar boas histórias – me perguntei: por que não poderia ouvir algumas considerações dos quatro personagens de uma só vez? Mesmo que fossem pensamentos diferentes das ações, concluí que valia a pena tentar. A começar pela Dra. Antonia, cujas palavras são, inicialmente, totalmente contraditórias às suas atitudes. Depois, percebe-se, em sua última inserção narrativa, quando ela conta sobre a vida da empregada que tentou suicidar-se em sua frente, e ela deixou-a morrer, que seus valores não são tão saudáveis quanto parecem. Sua medicina é outra. Ia funcionar. Camilo, Rita e Vilela também demonstram suas impressões sobre o que está acontecendo com narrações intimistas. Eu gostava porque dizia muito sobre a vida de cada um. Era uma forma de abrir opções de acompanhamento da história. Quem quisesse ouvir e acompanhar a história sobre o ponto de vista do médico Vilela, por exemplo, começaria pensando na relação dele com Camilo desde a infância, no (des)amor que ele tem por Rita. E percebe o quão prepotente ele é. O off me ajudou para trazer um pouco das vidas dos personagens que estavam previamente criadas nos perfis. Rita e sua obsessão por colecionar o horóscopo, mostra claramente o quanto influenciável ela é ao abrir o jornal e comentar em off que nunca se sabe o que pode acontecer com um sorriso no rosto – fruto de uma boa e pueril previsão diária; foi com a sua voz interior que percebi que aquela menina dos primeiros tratamentos do roteiro, que aparecia mais pragmática, até mesmo um pouco má, era menos inteligente, esperta e, conseqüentemente, mais ingênua e propensa às brincadeiras do destino; com o tempo, ela vai perdendo sua verve para se tornar vítima de si mesma e dos outros. Não um joguete, mas um barco à deriva. Só que a sua narração final demonstra um amadurecimento que só quem passa por tantos problemas pode alcançar. Vale dizer que é preciso muito cuidado para escrever os textos narrativos. Porque eles tendem a nascer muito grandes, explicando demais, redundantes ou frágeis. Camilo, por exemplo, tinha um lado poético na narrativa que foi perdido ao longo dos tratamentos, porque o personagem realmente não se enquadrava com aquelas palavras. É nessas horas que a gente vê o roteiro agindo sozinho. Camilo escrevia poesias até o terceiro tratamento, mas depois perdeu o gosto pelos versos. Na verdade, sua única atitude romântica era copiar o pai ao utilizar uma inusitada lanterna e iluminar o corpo de suas amantes. Os textos foram editados e acredito que contribuíram para uma expansão da psicologia de cada personagem. Meu medo inicial era psicologizar demais. Depois, eu receava por ter escrito muitos offs, algo que nunca tinha tentado nos outros roteiros. E algo que não consegui encontrar em outros filmes numa rápida pesquisa que fiz. Pensei: se ninguém fez, é porque não deve dar certo? Mas ao mesmo tempo me defendi: será mesmo que ninguém na história do cinema usou uma estratégia de ter 4 narradores? Afinal, essa não é uma idéia genial, mas tão-somente um artifício de uma ferramenta de roteiro. Ainda não consegui encontrar uma tentativa. Mas, nunca é demais lembrar, se a gente não tentar nunca vai saber. E medo é coisa para medrosos. O mais interessante, e engraçado de certa maneira, é que, particularmente, não gosto de usar a estrutura do narrador num roteiro. Como ela foi completamente explorada ao longo dos anos, ficou parecendo um clichê irremovível. Mas, de repente, usar quatro me atraiu. Em tempos de estruturas alternativas, com misturas de gêneros, com os famosos atos preconizados pela dramaturgia moderna sendo misturados, recortados, invertidos, com início, meio e fim não sendo mais apresentados nesta ordem, para citar apenas um exemplo de desfragmentação, não custava nada experimentar um pouco aquela estrutura com todos os personagens em off. Acho que valeu. O mesmo acontece com a estrutura geral do roteiro. Ele é dividido em três atos que são divididos em três míni-atos. Não há muito espaço para ponderação ou amadurecimento da história. Perguntei-me: vou amadurecer um romance? Ora, um romance é a coisa mais fácil de criar identificação. Porque o público (a gente sempre imagina coisas da vossa senhoria, o público) gosta ou não gosta imediatamente dos apaixonados. Claro que há formas de fazer com que eles sejam adoráveis ou intratáveis. Mas sedimentar as bases de um romance não precisa de muita firula. Teve um momento, lá pelo oitavo tratamento, que eu resolvi submeter o roteiro à bula do Syd Field. Procurei o livro empoeirado na estante e lá fui eu. Os primeiros dez minutos, que são os que contam a história, não contavam a história. Pensei... já era. Mas depois concluí que a seqüência da Karen, que ocupava esses 10, 15 minutos iniciais do roteiro, funcionaria como um prólogo. Tive a idéia de colocar os créditos iniciais depois do tiro fatal dela. Mas abandonei porque, como ela espalhou-se pela história, os créditos pontilharam a abertura de forma mais impactante. Então, a história era apresentada ao longo do primeiro ato, que se estendia mais ou menos até a página 30 do roteiro, quando encontrava a primeira virada da história, o primeiro plot point. Puxa, eu tinha lido Syd Field em 1995, quase oito anos antes, e nunca mais tinha pegado no livro. Mas não é que estava lá? O roteiro pedia uma virada e... Rita traía Vilela com Camilo! Seguindo em frente, e abismado como nosso amigo Syd podia sobreviver no nosso subconsciente, confesso, encontrei também o famoso mid-point com a visita de Rita à cartomante, bem no meio do segundo ato. Lá vamos nós para o segundo plot point... Rita voltando para Vilela! Enveredando pelo terceiro ato, percebe-se a preparação para o momento final... e pronto. Syd Field, David Howards, Dave Troitier, Harold Apter, Doc Comparato, todos acertaram em cheio. Aos mestres modernos, o meu carinho. Outra estrutura a qual tentei submeter o roteiro foi a trajetória clássica do mito do herói, definida por Joseph Campbell e adaptada para a dramaturgia por alguns autores, entre eles David Mackena e Christopher Vogler com seu Jornada do Escritor (livro que recomendo). Rita, como personagem principal, era a heroína que saía de sua terra após receber o chamado para uma aventura. Encontramo-la já na primeira fase da aventura, onde ela encontra em Vilela um companheiro e em Antonia aquele companheiro traidor chamado de curinga. Daí pra diante, Rita encara algumas barreiras – a cartomante, o descaso de Camilo ao não fugir com ela – até chegar ao consultório e mergulhar na barriga da baleia. Nesse mergulho, ela encontra-se com seu próprio ser. Mas, tal qual anti-heroína que demonstra ser, ela não abdica de sua vida em prol de um ideal. Ao contrário, quase tira a vida numa atitude covarde. E depois ainda tenta exterminar com Antonia, que seria um motivo para responsabilizar a sua própria fragilidade. Ok, quem leu a obra de Campbell entendeu o que eu disse... Mas o que mais me chamava a atenção não era a intrincada relação entre os personagens principais, da qual já falei. Se olharmos a história às avessas, do fim para o início, fica claro que Antonia é a personagem principal porque é quem toca a história adiante. Só que ela o faz de forma reflexiva. Assim, como o tempo dramático é formal – início, meio e fim, nessa ordem –, Rita aparece como a personagem principal porque o conflito é dela. Percebi também que o roteiro tinha um misto de estrutura moderna com uma história nada moderna – um triângulo amoroso. Tinha a inquietante presença de uma personagem cuja história navegava paralelamente – a empresária Karen. Tinha 3 atos, mas sem momentos de respiração entre eles, sem cenas preparatórias para as viradas em cada transição. Cada cena serve como um rolo compressor que pode se desgovernar. Rita pode a qualquer momento tomar uma atitude louca. Vilela pode descobrir a noiva no apartamento do amigo, embaixo dos lençóis. Com tanta atenção para a questão estrutural, optei por desenvolver algumas cenas consideradas clichês para romance. Assim explica-se um sonho romântico na praia, a contemplação do nascer do sol, a apresentação de Rita fazendo maquiagem, enfim, detalhes de fácil identificação. Até porque eu tinha um problema que também me assustava desde o início: as cenas de consultório. Como escrever uma cena de consultório sem que o espectador pense: lá vem mais uma cena de consultório, ou seja, uma pessoa falando, outra escutando. As cenas da terapia psicanalítica de Rita são rápidas e, sempre que possível, mostram alguma informação. Logo na primeira delas, sabemos que há uma cartomante que se instalou recentemente ao lado do consultório de Antonia. Essa informação é uma das muitas pistas que estão espalhadas para montar o quebra-cabeças. Noutra cena de terapia, é Camilo quem faz um minidiscurso debochado enquanto Antonia apenas o observa. Considero que o resultado das cenas de consultório ficou bom para a história. Assim como as cenas de bar, que sempre se tornam motivo de problema (já vi longas discussões entre roteiristas sobre o que e como fazer com que as seqüências de bar, que parecem onipresentes em todos os filmes, sejam produtivas). No caso de A Cartomante, uma cena não teve jeito, a que Camilo e Vilela falam do passado e Vilela convida-o para ser padrinho de seu casamento. No meio da cena, para não ficar apenas diálogo com informação, vi que poderíamos ter mais uma leve ameaça na questão da descoberta da traição quando o amigo de Camilo, o jovem Duda, interpretado pelo ator Silvio Guindane, aparece para saber se a armação da compra da estátua da Vênus de Milo deu certo. Nesse momento, a cena ganha uma tensão que ajuda a aumentar o drama. Deixo aqui registrado que, durante as leituras de mesa com o elenco principal, quem fazia a voz de Duda era eu mesmo. Adorava ler as linhas do personagem. Para minha surpresa, quando Silvio testou para o papel, o fez exatamente como a minha mente tinha imaginado. Isso é gratificante. Capítulo VII Antonia Mas voltemos ao embrião da história. Havia um aspecto fundamental a ser resolvido – a personalidade da cartomante/analista. Atualmente, muitos profissionais da área da psicologia trabalham com tarôs, runas, etc. Isso não é nada inverossímil – o que era um temor inicial.  A atriz Silvia Pfeifer foi uma das primeiras a encontrar personagens como a Dra. Antonia na vida real. A decisão de tornar a analista uma pessoa do mal fez com que todos os outros fatos da história decorressem dali. Foi uma opção pessoal. De seu divã, a analista apenas observa os fatos e joga com as mentes dos envolvidos. Ao usar o disfarce de cartomante para jogar com a pobre Rita, ela estava apenas identificando que a janela de entrada em seu desequilíbrio era o imponderável. E que o botão de sua vida era uma cartomante. Pablo Uranga e eu estivemos por algumas vezes nos perguntando como teria sido o processo de manipulação da empresária Karen. A julgar por suas atitudes, certamente Antonia usou estratégias que falavam de ir ao fim da linha em busca de um sentimento de amor desconhecido. Isso explicaria, por exemplo, uma noitada onde um vidro de ecstasy, a droga do amor, é consumido por inteiro (e esse raciocínio foi usado no desenvolvimento do personagem da empresária, como já disse em outro capítulo específico sobre ela). Entre o previsível e o imprevisível, Antonia ia destilando sua obsessão em jogar com a vida e a morte das pessoas. Fossem literais, como no caso de Karen, fossem simbólicas, como no caso de Vilela e Camilo, a psicóloga era o pior problema de todos eles; embora aparecesse como a melhor solução, principalmente para Rita. A opção aqui foi fazer daquele personagem um instrumento de exposição da vida e dos problemas daquelas três pessoas. Algo do tipo... A antítese que faz ver a tese. Através de Antonia, eu poderia ter interação com a mente dos outros três personagens. Ainda, poderia ter cenas de sedução intelectual e, quem sabe?, uma apimentada no romance fazendo-a interceder eventualmente no triângulo. Por que isso? Bem, tem coisas no processo criativo que não têm explicação. Estou apenas tentando descrever alguns caminhos que escolhi para escrever este roteiro. Com o tempo, vi que alguns desses caminhos foram de difícil compreensão para o público. Outros foram tão impactantes que criaram a emoção desejada. Muitas mulheres ficaram incomodadas com as reações de Rita numa demonstração clara de identificação. Outras se sentiram distantes. Durante as leituras, raros foram os comentários negativos. Mais um aspecto era importante no desenvolvimento do personagem da analista/cartomante. Enquanto a empresária Karen fora uma surpresa pela força com que apareceu ao longo da história, a médica tinha que seguir absolutamente despercebida para não levantar suspeitas. Só assim a trama – e conseqüentemente a cena final – iria funcionar. A médica não podia ousar. Era uma história trabalhada para surpreender aos leitores, exatamente como os fatos imprevisíveis que chegam às nossas vidas. Para minha alegria, o intento sempre era alcançado durante o desenvolvimento. Nenhum dos leitores desconfiava das maldades do personagem até a cena da boate. Antonia tinha um comparativo na frieza e maldade – o canibal Hannibal Lecter, Anthony Hopkins nos filmes O Silêncio dos Inocentes e a continuação Hannibal. Mas, ao contrário do médico, ela não estava assumida como uma devoradora de pessoas. Seu canibalismo desfilava por outras vertentes menos literais. E mais: ela gostava de atuar escondida. Para muita gente, o fato de Antonia não ser uma assassina declarada é um ponto positivo do filme. Trouxe requinte à trama. Para outros, é um aspecto confuso porque o público se acostuma com a médica boazinha e, como sua mudança é somente no final, não há tempo de sedimentar as bases de suas maldades. O público passa o tempo inteiro acreditando na médica e, de repente, sente-se perdido em quem acreditar – já que, como disse o diretor de fotografia Rodrigo Monte, ninguém nessa história é confiável. Enfim, a gente escreve é para isso mesmo. Capítulo VIII A Seringa Virou Comprimido A idéia da personagem da empresária era para começar o filme com muita tensão no ar. E usar a seqüência para ajudar na história da cartomante/analista. Desde o nascimento da cena, eu queria que a Karen ficasse tão forte ao longo do roteiro, que fosse tão inesquecível para o espectador quanto seria para o próprio Camilo. Devo confessar que esta empresária é uma surpresa tanto para mim quanto para os que leram o roteiro. Por ela, a história ganhou uma trama muito bem engendrada, com jeito de thriller. Também por ela, as ações da Dra. Antonia realmente alcançaram uma dimensão que nunca imaginei – ela virou realmente uma intelectual serial killer. A atriz Giovanna Antonelli leu o roteiro durante o carnaval de 2002. Ligou para mim na quarta-feira de cinzas dizendo: Eu quero ser a Karen! Ela tinha percebido a intensidade daquela história particular dentro da história geral. A Karen é um grande parêntese na trajetória de Rita. Na verdade sempre tive muito claro em minha mente que a Karen era uma representação anterior do que iria acontecer com a Rita. Por isso, criei aquela jovem no final, chamada Vitória – para ser a continuidade do que aconteceu com as duas anteriores. Karen, Rita e Vitória são pacientes de Antonia. Teve gente que viu o filme e achou que a Vitória era um aprendiz de feiticeira. Eu adorei porque não estava na minha concepção. E a atriz Mel Lisboa deu uma interpretação perfeita para deixar essa dúvida no ar. Acrescentou à participação especial, um quê de dubiedade que só nasceu quando o filme ficou pronto. Coisa da magia do cinema. Mas houve muitos comentários a respeito da Karen Albuquerque. Principalmente quando, na edição, os 15 minutos de história da empresária foram espalhados pelo filme inteiro. Ela era tão forte que tinha que voltar vez por outra para assustar o público e, de certa forma, sinalizar que Rita estava no mesmo caminho apenas pelo sentimento de tragédia que deixava no ar. Usamos artifícios de efeitos sonoros e visuais para sublinhar esses inserts nas lembranças de Camilo. Se espalhasse as imagens de Karen no roteiro seria muito difícil de perceber por que, durante a leitura, ela permanecia muito forte mesmo no início. Por uma dessas razões que são difíceis de ponderar exatamente, as primeiras montagens, quando a seqüência estava montada apenas no início, praticamente pediam para que víssemos a Karen mais vezes na história. Ponto para o trabalho de direção, de câmera, de interpretação e, claro, de edição. Isso só reforça que um roteiro precisa ser coerente o suficiente para sobreviver a todas as mudanças que vão ocorrer nele. De fato, toda essa compreensão da relação entre Rita, Karen e Vitória demanda que o espectador esteja muito atento para as informações visuais que aparecem no filme. Não é dito que elas têm esse fato em comum. Por vezes, pensei que isso tornaria a história pouco compreensível e clara. Talvez isso seja um pouco verdade. Não há conexão entre as duas trajetórias – de Rita e Karen – até o momento em que adicionamos uma pequena cena, lá no final, também filmada posteriormente. É quando vemos Karen, seu marido Juca e a médica Antonia numa celebração muito íntima. Uma cena propositalmente feita em vídeo, para dar a sensação de arquivo particular. Ali, exatamente ali, todas as histórias do filme são reveladas. Em apenas cinco segundos, com uma narração de Vilela, vemos que Antonia tinha uma amizade com Karen. A conclusão era óbvia: Antonia também é a responsável pela atitude da empresária. Só que o óbvio é das coisas mais difíceis de se alcançar. Realmente, algumas pessoas não entenderam toda a extensão da história. Perguntavam: Mas a médica também conhecia a empresária?, mesmo depois de terem visto a cena. Acho que eles estavam sob o impacto da médica ser a cartomante; sob o impacto da quase-morte de Rita, para quem o roteiro encaminha a torcida na história. Passamos o tempo todo construindo o romance. De repente, um vendaval de informações cruza o romance. Se o público piscar, ele perde uma cena e fica com jeito de quem gostou, mas não entendeu e tem vergonha de dizer. Vale lembrar que a relação entre a empresária e a médica era exposta, originalmente, na seqüência final, a qual abordamos no capítulo a seguir. Mas ali também era muita informação para uma cena só.  Se há um aspecto que esse roteiro tem, que é muito arriscado – e que talvez possa incorrer em deficiência na história – é a força de tantas informações. Muita gente não elabora todas as conexões. Gente que está no cinema para se distrair vendo um romance – ao menos o que o filme propõe grande parte do tempo. De repente, aparece um quebra-cabeça e, pronto, quebra realmente a cabeça do público. Mas houve o contrário. Em muitos, mais pessoas do que o outro grupo, observei um sorriso de compreensão e prazer ao ver a extensão de como Antonia realmente reina sobre todo mundo. Gente que exclamou com ênfase quando percebeu a trama. Gente que curtiu a proposta da história. Isso é impagável. É engraçado – e uma lição também – como, por vezes, apenas mostrar uma informação não é suficiente para o entendimento do espectador, mesmo num meio visual como o cinema. É preciso reforçar com algum tipo de informação, seja através de diálogo, insert, enfim, qualquer artifício. Mas, no caso da Cartomante, não busquei reforçar a conexão com palavras. Não havia espaço, nem seria necessário porque estava claro. Pelo menos eu achava que estava... Revelo aqui também que a empresária nasceu de forma muito mais intensa do que a que foi filmada. Na verdade, o primeiro tratamento mostrava que ela usava heroína para viver uma noitada como aquela. Ela simplesmente se aplicava em frente a Camilo, amarrado numa cadeira; depois, aplicava a droga na veia dele. Aí partia para sua loucura de viver no extremo. Ainda tinha pensado em colocá-la sob um parapeito mas resisti a mais este clichê. Era uma seqüência assustadora mesmo. Porém, ponderar e balancear os fatos de um filme é outra tarefa do roteirista. Mesmo sua influência. Com o tempo, fui percebendo que aquela seqüência para maiores de 18 anos era um tanto quanto incoerente com a forma com que Antonia manipularia sua paciente. Ao escrever, eu não podia perder de vista a história em geral. Antonia não usaria uma forma tão forte de fazer uma empresária usar drogas injetáveis para chegar ao limiar de sua vida. Na suposta manipulação de Antonia, não ficava crível que a heroína pudesse exercer uma influência tão grande numa empresária, sem que ela tivesse uma história pregressa de vício. Ou seja, heroína não era a droga certa para aquela seqüência. Também pensamos na questão da censura porque não estava em nossos planos ter um filme de 18 anos (outra preocupação do roteirista também). Numa conversa com a própria atriz Giovanna Antonelli, com o ator Luigi Baricelli e com a preparadora de elenco que veio para trabalhar a seqüência com o casal, Rossela Terranova, discorremos sobre a história de Karen. A personagem não tinha um passado escrito em meus estudos sobre os personagens. Mas acabou sendo a que mais demandou um exercício criativo do conhecimento de suas atitudes para que pudéssemos chegar a um resultado coerente e feliz. Então, qual seria a droga que Karen toparia experimentar naquela noite em que ela simplesmente resolve ir até o fim da linha da vida? Ao longo da história, saberíamos que sua vida era aparentemente perfeita; casada com o também empresário Juca, Karen era uma mulher feliz e tranqüila. Mas quem tem um vulcão dentro de si, prestes a explodir, também pode estar num paraíso de águas cristalinas antes da erupção. Era o caso dela. Como a vítima escolhida é um cara qualquer que se aproxima na boate – num momento de abandono por parte do marido (quando ele vai ao banheiro), a questão primordial da vida daquela mulher era afetiva – sua busca é por amor, provavelmente um sentimento o qual ela jamais conheceria. Pelas suas atitudes e palavras, imaginamos que a empresária ansiava por descobrir todas as extensões do amor, talvez por ter um coração frio demais, uma mente articulada demais. E, principalmente, por estar convivendo com a pessoa errada – nossa querida médica. Não conclui qual a forma com que Antonia trabalhou a fraqueza de Karen. Só uma coisa me interessava: influenciada pela loucura que Antonia impetra-lhe na alma, aquela mulher não sabe fazer bom uso de suas escolhas. Ela chega ao fim da linha movida por amor, ou melhor, desamor. Então, só havia uma conclusão: sua droga era ecstasy, conhecida como a droga do amor, por mais contraditória que essas palavras possam ser. O nome da droga era também uma menção ao êxtase que ela busca em sua louca jornada. Êxtase como algo que paira entre o sagrado e o profano, que passeia pelo universo religioso, banhado de uma sensação de plenitude, ao mesmo tempo sexual. Êxtase que provoca sensações acima das mensuráveis... Das ponderáveis (olha a palavra chave!). Giovanna e Luigi usaram todas as suas energias criativas na seqüência. Deixo registrado que, ao longo de duas madrugadas, numa cobertura do bairro do Leblon, no Rio, filmamos todos os momentos daquela noite louca. Os resultados do making of  foram clássicos: uma lente quebrada, arranhões na testa de Luigi, torção de tornozelo do assistente de câmera, vidros e copos quebrados, uma meia dúzia de lâmpadas estouradas e a locação destruída. Para quem não acredita em bruxas... não tente filmar uma seqüência como essas. Capítulo IX As Previsões Erradas Não pensei jamais em reescrever. Mas, como a proposta desse livro é contar a história da história, sempre aparece aquele capítulo e se você pudesse fazer de novo, mudaria alguma coisa? Bem, se houvesse a chance de reescrever para melhorar algum aspecto do roteiro, apenas uma chance, talvez eu não escrevesse a cena final com tantos acontecimentos, ou seja, tantas informações. Principalmente quando há muitas nuances em quatro personagens. Falo em escrever, porque, nesse caso, a edição foi eficiente e trouxe à cena o que ela deveria mostrar. Mas deu trabalho. E por isso vira um capítulo nessa história da história. A cena 113 do roteiro de A Cartomante era o momento em que aconteciam as resoluções de todas as tramas do filme. No roteiro aqui publicado, ela ganhou outro número. Mas, em respeito a todos os cabelos que ela nos arrancou, vou manter o seu número original como forma de homenagem. Isso porque ela era um risco desde o início. Por várias razões. Lembra aquele velho ditado da vovó de não colocar todos os ovos no mesmo cesto? Mesmo assim, quando cheguei ao ápice da história, eu tinha que resolver várias questões criadas nas vidas daqueles quatro personagens. Entre ir resolvendo ou trazer tudo para uma grande catarse final, optei pela segunda opção. Mas a história me mostrou, mais tarde, que a primeira opção seria melhor. Na concepção que o roteiro propôs, a cena seria uma grande catarse mesmo, com altos e baixos e todas as informações revelando os porquês de cada personagem. Mais ainda: era o gran finale de Antonia, onde ela iria desfilar sua verve, sua manipulação, suas maldades, em público. Aquela médica que passa o filme inteiro ouvindo as lamúrias de Rita, a presunção de Camilo, recebendo a prepotência de Vilela, e, ainda, para disfarçar mesmo, no melhor estilo pista falsa, cuida de uma menininha linda e indefesa (que está internada na clínica sob os cuidados dela e depois ainda serve de vítima da loucura de Vilela), iria aparecer transformada por uma maquiagem, usando um artifício pueril para mostrar o quanto a vida pode ser frágil. Acontece que a cena resolve que: 1 – Antonia é a manipuladora da vida de Rita, usando do disfarce de cartomante; 2 – Antonia seduziu, humilhou e declinou de Camilo, deixando-o à mercê de seus próprios defeitos; 3 – Antonia vencia um duelo intelectual de poder com Vilela; 4 – A cena também mostra que Rita está à beira do precipício e resolve tomar uma atitude passional, que poderia resultar na sua própria morte, usando a mesma arma de Karen – que esteve com seu marido, Juca, passou para as mãos de Camilo e finalmente cai em poder de Rita; 5 – Ainda tem um confronto físico entre Vilela e Camilo, finalmente, com a descoberta da traição por parte do médico; 6 – Confirma a premonição que o sonho do século 19 traz a Rita; 7 – No roteiro (depois foi cortada), mostrava também que Karen era paciente de Antonia. A revelação acontecia quando Camilo desconfiava das palavras da médica sou um presente do destino, fazia uma conexão imediata com as mesmas palavras ditas pela empresária antes de se matar em sua frente. Na cena original, ele encontrava os arquivos de Antonia expostos no chão por conta de briga com Vilela e descobria a ficha de Karen; 8 – E, por fim, explica como a manipulação de Antonia era realizada: com o consultório contíguo à sala da cartomante. A tudo isso some o fato de ter que reunir um elenco absolutamente matemático nos planos de filmagem. Silvia Pfeifer, Deborah Secco, Ilya São Paulo e Luigi Baricelli tinham compromissos anteriores ao início das filmagens. Portanto, só poderíamos reuni-los em um dia apenas – no domingo, um inesquecível domingo de Páscoa. Ao escrever um roteiro não se pode imaginar os problemas de produção. Mas nunca é demais lembrar que estamos fazendo cinema no Brasil e a facilidade de refilmar cenas ainda é um privilégio de poucos produtores. Portanto, não dava para errar. A cena foi mexida inúmeras vezes. Cortamos diálogos, algumas explicações verbais (que são instrumentos sempre ruins, vale ressaltar) que reforçavam o que estava sendo mostrado. Ela foi diminuindo também. Ficou menos teatral, melodramática. A primeira versão dela era a seguinte: Primeiro tratamento Cena 113 - int. Consultório de Antonia/Ante-sala – dia Rita espera, ansiosa. Camilo chega. RITA Como você sabia que eu tava aqui? CAMILO Eu não sabia. Tenho... Uma consulta com a Antonia. RITA Você... você faz terapia com ela?! CAMILO Faço... depois da overdose, tive que fazer. Rita, a cartomante que você se consultou é essa aqui do lado? Rita concorda. CAMILO Eu, eu fui nela, Rita, eu ia matar ela... Mas ela me disse umas coisas, Rita. Disse que nosso futuro junto vai ser maravilhoso, que a gente tem chances sim, é só a gente mudar... Reação de Rita. RITA Ela disse isso? Disse. E então, só depende da gente, o que vamos fazer? Estão pertinhos um do outro. Vão se beijar. A porta se abre, é Vilela. Camilo e Rita se afastam. Camilo alisa o bolso levemente para certificar-se da arma. Silêncio mortal. VILELA Você ia ser meu padrinho de casamento. RITA Calma, Vilela, ele não teve culpa de nada, nem eu, foi a cartomante, foi ela! VILELA Você quer que eu acredite nisso? CAMILO Você também foi à cartomante. RITA Ele também foi à cartomante?! VILELA Eu tava bêbado e ela me falou um monte de coisas que eu já sabia. Só não sabia que era você quem estava me traindo, Camilo. CAMILO Eu também fui enganado. Acabei de vir de lá... (olha pra Rita) Ela disse que eu e a Rita não temos a menor chance, que a Rita vai se casar contigo. RITA Mas você falou. VILELA Você ainda insiste? Devia te quebrar a cara. Vilela acerta um soco em Camilo. Camilo reage e acerta um soco em Vilela. A arma cai do bolso de Camilo. Rita pega a arma. RITA O sonho... Eu tive um sonho assim... Esse mundo é muito pequeno pra nós três... Rita aponta a arma para um e para outro VILELA Rita, você não sabe o que está fazendo. RITA Claro que sei, Vilela, você acha que eu sou a menina tontinha que você conquistou? Acorda, cara! Eu te conquistei. Eu forcei você a casar. CAMILO Rita, acaba logo com esse sofrimento, vai! RITA Isso a cartomante não me disse, mas o sonho me disse, o sonho... A porta do consultório se abre. Os três olham e lentamente... Antonia aparece vestida de Cartomante. ANTONIA Não, Rita, o sonho não revelou nada para você. Isso é um desejo inconsciente, só isso. Os três estupefatos – outro silêncio. Antonia desfila pela salinha. Vai desmontando a maquiagem, rugas, cílios, lenços, unhas. ANTONIA É isso mesmo, meninos, eu sou o destino de vocês. CAMILO Você fez a gente a fazer todas essas cagadas! ANTONIA Eu? Tem certeza, Camilo? Quem se apaixonou pela Rita quando foi na festa? CAMILO Você me levou lá, disse que eu tinha que conhecer gente nova... ANTONIA Você queria se apaixonar por alguém. RITA Você me traiu... ANTONIA Rita, a sua insegurança morre aqui. Assim como as suas crises forçadas de asma. Gente, ela não sofre de asma. (Reação de Vilela e Camilo) RITA A cartomante disse que eu ia ser feliz com o Camilo... ANTONIA Eu só ajudei os fatos, meninos. VILELA Você fez ela terminar comigo... Antonia, como você é sórdida.  ANTONIA Não diga isso, se você quisesse mesmo casar com ela já teria feito. RITA Você não pode fazer isso, não pode! CAMILO Louca. Rita, ela é uma louca! Brincou com a gente o tempo todo. ANTONIA Um momento... Vocês poderiam ter evitado tudo... Rita podia não ter aceitado o presente que o Camilo te deu. INSERT - Cena em que Rita resolve entrar na casa de Camilo. ANTONIA Vilela poderia não ter brigado com a Rita quando soube que eu era sua médica. INSERT - Vilela briga com Rita no antiquário. ANTONIA E, você, Camilo, você poderia ter sido um pouco verdadeiro... E não ter traído o cara que salvou a sua vida. CAMILO Eu também salvei a vida dele. Ele ia se matar na ponte, eu cuidei dele! VILELA Eu não ia me matar... Eu tava bêbado. ANTONIA Ele ia te matar, Vilela. Mas isso, ainda bem, ele conseguiu evitar. CAMILO Não acredita nela, ela mente o tempo todo. ANTONIA Camilo, acho que se alguém aqui não pode falar de verdades é você, né? Você poderia ter falado a verdade pra mim... Mas não, achou que podia me manipular, como faz com suas namoradinhas. CAMILO Rita, eu te amo, é só isso, só isso. ANTONIA Camilo, você não ama nem a você... Você deseja todas as mulheres que passam na sua frente... Lembra da noite passada, em cima do meu divã? CAMILO Louca, você me seduziu... ANTONIA E a lanterna que ilumina o corpo? RITA (p/ Camilo) Canalha... vocês todos não prestam! ANTONIA Até que você tem razão, Rita, vocês não amam nem a vocês mesmos... O egoísmo chegou a tal ponto que... Sumiu, como uma estrela que implode. Tá certo, quis brincar um pouco. Retira o livro do Machado de Assis da estante.  ANTONIA Conhecem Machado de Assis? Tem uma história de um triângulo amoroso que é levado pelas previsões de uma... Cartomante. Eu quis reproduzir a ficção, devo confessar. RITA E... Como acaba? ANTONIA As previsões são erradas... E o final... É trágico. Os três se olham, Rita ainda com a arma.       VILELA Por que isso tudo? ANTONIA (senta-se) Ah, eu tava um pouco entediada. Aquele hospital é muito... maniqueísta, entende? Uma lágrima escorre no rosto de Camilo, constrangido. Rita está muito agitada. RITA Não!!! De repente, Rita aponta a arma para Antonia. Tensão nos olhares, Camilo e Vilela ainda gritam para ela não fazer mas... (Câmera lenta) Seu dedo aperta o gatilho seis vezes. Camilo e Vilela se protegem. Vemos a pólvora mas... Antonia continua intacta. Rita larga a arma. Camilo pega a arma – abre o tambor. CAMILO Tá descarregada... só tinha pólvora. Nasce uma gargalhada, a primeira, em Antonia, que ecoa pela sala. Camilo joga a arma longe. Olha para os três, abre a porta e sai. Vilela faz o mesmo. Rita olha para Antonia, enxuga as lágrimas e sai. Antonia ri mais ainda... coloca o livro de volta na estante. STOCK SHOT – NASCER DO SOL   Ufa. Dá pra perceber claramente a influência do conto, como o fato dos três passarem pela cartomante; ou mesmo as explicações demasiadas, arrastando o tempo de leitura – e, conseqüentemente, arrastando a história. Mas primeiro tratamento é assim mesmo. Agora, vejamos o quarto tratamento, por exemplo.   Quarto tratamento Cena 113 - int. Consultório de Antonia – dia Rita espera, ansiosa. Camilo entra, passa pela ante-sala e chega ao consultório, onde Rita está sentada. RITA Como você sabia que eu tava aqui? CAMILO A cartomante me falou. RITA Cartomante? Que papo é esse? CAMILO A cartomante que você se consultou é essa aqui ao lado? (Rita concorda) Eu, eu acabei de sair dali, Rita, ela me disse que nosso futuro vai ser junto, que a gente tem chances sim! RITA Ela disse isso?! CAMILO E só depende da gente, vamos sair daqui. Estão pertinhos um do outro. Beijam-se. A porta se abre, é Vilela. Camilo e Rita se afastam. Camilo alisa o bolso levemente para certificar-se da arma. VILELA Você ia ser meu padrinho de casamento. RITA Calma, Vilela, ele não teve culpa de nada, nem eu, foi a cartomante, foi ela! CAMILO Você também foi à cartomante. RITA Ele também foi à cartomante?! VILELA Eu tava bêbado. Ela me contou um monte de histórias. Será que toda vez que alguém vai numa cartomante uma merda tem que acontecer? CAMILO Eu também fui enganado. Acabei de vir de lá... (olha pra Rita) Ela disse que eu e a Rita não temos a menor chance, que a Rita vai se casar contigo. RITA Mas você falou. VILELA Essa mulher virou sua cabeça. RITA Qual delas? A cartomante? VILELA Já não sei mais... A Antonia me chamou aqui. Quer falar de você.  CAMILO (chega perto) Vilela, você tem que entender que... VILELA Não se mete! Vilela acerta um soco em Camilo. Camilo reage e acerta um soco em Vilela. Eles caem sobre uma escrivaninha de documentos, tudo se espalha. A arma cai da calça de Camilo. Rita pega a arma. RITA O sonho... eu tive um sonho assim... Rita aponta a arma para um e para outro nervosamente. VILELA Rita, você não sabe o que está fazendo. RITA Claro que sei, Vilela, você acha que eu sou a menina tontinha que você conquistou? Acorda, cara! CAMILO Ótimo, acaba logo com esse sofrimento, vai! RITA Isso a cartomante não me disse, mas o sonho me disse, o sonho... A porta da sala se abre. Rita olha e entra. Camilo e Vilela entram depois. Uma porta lateral, na parede, do consultório se abre. Os três olham e lentamente... Antonia aparece vestida de CARTOMANTE!!! ANTONIA (voz fake) O sonho não revelou nada para você. Isso é um desejo inconsciente, só isso. Os três estupefatos. Antonia desfila pela salinha e desmonta a maquiagem, rugas, cílios, lenços, unhas, látex do rosto. CAMILO (ri nervoso) Você fez a gente a fazer todas essas cagadas? Essa voz... como é que eu não percebi isso. ANTONIA Como nenhum de vocês percebeu, é verdade, como? RITA Você me traiu... ANTONIA Rita, querida, você está curada. Não precisa mais das suas mentiras. Não tem medo mais da solidão... Pode escolher entre viver ou morrer, não pode? (p/ os dois) Ela não sofre de asma. Reação de Vilela e Camilo. RITA Eu traí o Vilela porque a cartomante falou, e eu fiquei impressionada. Foi por isso.  ANTONIA Você queria trair, só precisava de um empurrãozinho... eu só ajudei os fatos, meninos. Não interferi em nada. CAMILO Não tô crendo nisso... (p/ si) ... devia ter ficado com a morena... VILELA Você fez ela terminar comigo... Antonia, como você é sórdida. (p/ Rita) Eu sabia que você nunca teve asma.  ANTONIA Se você quisesse mesmo casar já teria feito. VILELA Usou das informações e fez o que quis com a gente. Conseguiu até a promoção. ANTONIA Você acha mesmo que pode ser diretor daquele hospital? Depois de falsificar o prontuário de uma menina indefesa? VILELA Você? Falando de ética? ANTONIA E você vai deixar de ser médico, se eu quiser provar sua fraude. Vilela abaixa a cabeça. VILELA Eu não sabia onde tava com a cabeça. ANTONIA Essa é a desculpa preferida... De todos vocês. CAMILO Louca. Rita, ela é uma louca! Manipulou a gente o tempo todo. ANTONIA Um momento... Vocês poderiam ter evitado tudo... Rita podia não ter aceitado o presente que o Camilo te deu. INSERT: Cena em que Rita resolve entrar na casa de Camilo. ANTONIA Vilela poderia não ter brigado com a Rita quando soube que eu era sua médica. INSERT: Vilela briga com Rita no antiquário. ANTONIA E, você, Camilo, você poderia ter sido um pouco verdadeiro... E não ter traído o cara que salvou a sua vida. E agora querem botar a culpa em mim? CAMILO Não acredita nela, ela mente o tempo todo. Ela me empurrou para o antiquário, Vilela, foi ela. ANTONIA Peraí, isso foi coincidência. VILELA (para Rita) Ela entrou na sala dos médicos pra me fazer acreditar que eu tinha descoberto que você fazia análise com ela. ANTONIA Isso... É verdade. CAMILO Rita, ela mente esse tempo todo, por isso nunca falei nenhuma verdade pra ela! RITA Você faz terapia com ela? CAMILO Tive que fazer... Depois daquela noite. ANTONIA Mas não adiantou, né? Se alguém aqui não pode falar de verdades é você. CAMILO Rita, eu te amo, é só isso, só isso. Contra tudo e contra todos, lembra? ANTONIA Camilo, você não ama nem a você... Lembra da noite passada, no meu divã? CAMILO Você me seduziu... ANTONIA Vocês estão condenados uns aos outros... Eternamente... Vão trair ou ser traídos... Eterno retorno, queridos. Antonia retira um livro do Machado de Assis da estante. ANTONIA Conhecem Machado de Assis? Há uma história de um triângulo amoroso que é marcado pelas previsões de uma... Cartomante. Eu quis reproduzir a ficção, devo confessar. RITA (arma tremendo, entre Camilo e Vilela) E... Como acaba? ANTONIA As previsões dela são erradas... e o final... é trágico. Os três se olham, Rita ainda com a arma.        VILELA Por que isso tudo? ANTONIA (senta-se) Quem sabe o porquê das coisas? Quem? VILELA Você não é Deus. ANTONIA Mas recriei a realidade... isso já me basta. Eu sou um presente do destino! Camilo atenta para a frase. INSERT - Karen diz a mesma frase. Juca diz a mesma frase. Camilo se espanta – começa a revirar as gavetas abertas pela briga com Vilela. Um livro de arquivos escrito Karen Albuquerque. Uma foto dentro, de Karen e Antonia abraçadas. CAMILO Eu não acredito nisso, não pode ser... (segura a foto de Antonia e Karen) Silêncio, Antonia senta-se, cabisbaixa. CAMILO Karen, a Karen era sua paciente! E ela se matou! Você... Meu Deus, você fez ela se matar, Antonia! É isso que você quer com a Rita, comigo, com o Vilela... VILELA Essa mulher esteve no hospital uma vez, por tentativa de suicídio. CAMILO Você quer que a gente enlouqueça até se matar! VILELA Tá explicado... Era sempre ela quem cuidava dos pacientes que chegavam com tentativa de suicídio... Foi assim com essa Karen, mas eu soube que ela se matou... CAMILO Foi ela que me drogou, Vilela, ela que quase me matou. E meteu um tiro na cabeça! VILELA Outras pacientes também apareciam, ela cuidava de todas... E todas por tentativa de suicídio. ANTONIA Seus idiotas, eu liberto as pessoas, deixo elas criarem uma nova realidade pra não se sentirem tão oprimidas com a pequenez de suas vidas, não sou eu quem aperta o gatilho, quem injeta a seringa. A culpa é de vocês, a culpa é de todos vocês! CAMILO Você é um monstro! Você pichou a parede pra me ameaçar... VILELA Eu sabia, tinha que ter alguma coisa errada... Bem, isso é um adeus à direção do hospital. ANTONIA Não há como provar nada, Vilela. CAMILO E ainda se fantasiou... Você é a louca! (Rita às lágrimas) Rita, você não tá pensando em fazer nenhuma bobagem, né? ANTONIA Rita, você me entende? Eu quero o seu bem! Você vai se libertar, ande, tenha coragem! É tudo uma questão de escolhas! Rita à beira de explodir. Tensão, ela admira a arma como se fosse atirar contra si, depois... RITA Não!!! (Rita aponta a arma para Antonia, que se assusta) (Câmera lenta) Seu dedo aperta o gatilho seis vezes. Camilo e Vilela se protegem. Vemos a pólvora mas... Antonia continua intacta. Chorando, Rita larga a arma. Camilo pega a arma – abre o tambor. CAMILO Só tinha pólvora. Aquele mané não ia se matar nada... Nasce uma gargalhada, a primeira, em Antonia, que ecoa pela sala. Camilo joga a arma e a foto longe. Olha para os três, abre a porta e sai. Vilela faz o mesmo. Rita olha para Antonia, enxuga as lágrimas e sai. Antonia já sem fôlego para rir mais ainda... coloca o livro de volta na estante. STOCK SHOT (símbolo de liberdade)   Melhorou pouco. Mas era possível ver que as explicações tinham que ser eliminadas ao máximo. O nono tratamento, pronto para a filmagem, trouxe a cena assim: Nono tratamento Cena 113 - int. Consultório de Antonia – dia Rita dentro. Camilo se aproxima. CAMILO Rita, o que você tá fazendo aqui? Rita levanta e abraça Camilo. RITA Eu só queria me casar, só isso... Você é tudo que eu quero, mas não sou forte... Você não é forte, por que Deus tá fazendo isso comigo, por quê? Vilela está parado à entrada. VILELA Eu não acredito em Deus. (Camilo e Rita se afastam. Camilo alisa a arma levemente) VILELA Você ia ser meu padrinho de casamento. RITA Ele não teve culpa de nada, nem eu, foi a cartomante, foi ela! CAMILO (chega perto) Vilela, você tem que entender que... VILELA Eu devia ter deixado você morrer! Vilela acerta um soco em Camilo. Camilo reage e acerta um soco em Vilela. Eles caem sobre uma escrivaninha de documentos, tudo se espalha. A arma cai da calça de Camilo. Rita pega a arma e admira-a.  RITA O sonho... Eu tive um sonho assim... Era um aviso. Uma porta lateral, na parede do consultório se abre. Os três olham e lentamente... Antonia aparece vestida de CARTOMANTE!!! ANTONIA (voz fake) O sonho não revelou nada para você. É um desejo inconsciente, só isso. Os três estupefatos. Antonia desfila pela salinha e desmonta a maquiagem, rugas, cílios, lenços, unhas, látex do rosto. CAMILO (ri nervoso) Não tô acreditando nisso... ANTONIA Meninos, essa é a nossa última sessão. Reação de Vilela e Camilo. VILELA Antonia, como você é sórdida! CAMILO Manipulou a gente o tempo todo. ANTONIA Um momento... Eu só ajudei, não interferi em nada. Vocês poderiam ter evitado tudo. Eu não fiz vocês se encontrarem no antiquário... Isso foi coincidência. E vontade própria. CAMILO (p/ Rita) Eu te amo, Rita, é só isso que tenho a dizer. ANTONIA Você não ama nem a você mesmo... Lembra da noite passada, no meu divã? Rita olha para Camilo, que acusa sua culpa. RITA (surto) Não... não pode ser... é mentira, mentira! VILELA Você não é Deus. ANTONIA Mas sou como um presente do destino! Camilo atenta para a frase. INSERT – FLASHES - Karen diz a mesma frase. Juca diz a mesma frase. CAMILO (vai pra cima dela) O quê? O que você disse? Não é possível! Camilo começa a revirar as gavetas abertas por causa da briga com Vilela. Vemos um livro escrito Karen Albuquerque. INSERT - Uma foto de Karen e Antonia abraçadas. CAMILO (segura a foto de Antonia e Karen) É a Karen, ela era sua paciente! Você fez ela se matar! Foi ela que me drogou, Vilela, e depois meteu um tiro na cabeça! E disse que era um presente do destino... ANTONIA (dura) Seus tolos, eu liberto as pessoas para que elas criem uma nova realidade. Pra não se sentirem tão oprimidas com a pequenez de suas vidas. Não sou eu quem aperta o gatilho. Todos vêem que Rita está com a arma na têmpora. ANTONIA (fria) Rita, você me entende? Eu quero o seu bem! Você está curada, vai se libertar, ande, tenha coragem! É tudo uma questão de escolha, lembra? E agora você não tem mais escolha! Rita à beira de explodir. Vilela reage. Camilo também. CAMILO Não, Rita, por favor, não faça isso... RITA Não!!! (Rita aponta a arma para Antonia, que se assusta) Câmera lenta Seu dedo aperta o gatilho seis vezes. Vemos a pólvora mas... Antonia continua intacta. Chorando, Rita larga a arma. Camilo pega a arma – abre o tambor. CAMILO (para si) Só tinha pólvora. Aquele mané não ia se matar nada... Nasce uma gargalhada, a primeira, em Antonia, que ecoa pela sala. Rita olha para Antonia e sai; Camilo joga a arma, abre a porta e sai. Vilela faz o mesmo. Antonia está sem fôlego para rir mais ainda. Fusão para STOCK SHOT   Esta foi a versão mais enxuta a que o roteiro conseguiu alcançar. Realmente, a informação da Karen mostrou-se demais para a edição. Nós temíamos muito com o resultado da cena. Primeiro porque a maquiagem não era hollywoodiana. Segundo, porque a cena foi filmada com takes únicos em função do tempo. Recortamos toda a seqüência em mais de 40 planos. No final, não houve uma crítica específica para a cena. Nem durante as exibições testes. E a 113 acabou ficando como está no roteiro que está publicado. Um belo trabalho de edição, a propósito. Vale a pena dar uma olhadinha de novo... Capítulo X Dirigindo, Produzindo, Editando... Filmando!   O filme A Cartomante foi dirigido por mim e co-dirigido por Pablo Uranga. A idéia de dividir a direção nasceu do fato que Pablo iria ser o editor do filme. Como eu estaria à frente do meu primeiro longa, achei que duas cabeças poderiam prever e solucionar todos os problemas que aconteceriam. E foi uma atitude correta. Roberto Farias diz que é preciso a força de 100 cavalos para dirigir um filme. Mas acrescenta que, às vezes, é preciso a rapidez de apenas um cavalo para chegar na frente e terminar o filme. Juntar dois jovens cineastas, munidos de toda a força e toda a rapidez que podiam, foi bom para o projeto. Pablo foi um grande companheiro de jornada.   Então, nessa dupla que hoje assina a autoria do filme, não havia somente dois diretores, mas um pool de profissionais: o roteirista e também produtor executivo (outra função que exerci) e o editor e co-produtor, o Pablo. Podíamos englobar todos os processos em duas pessoas. A produção oficialmente estava a cargo de Carlos Guimarães. Mas ele não interferiu no processo artístico. Como havia prometido, quando me incentivou a dirigir o filme, e devo-lhe agradecimentos por aquele almoço em que ele disse: Você não vai se arrepender, ele estaria comigo até o fim dando suporte a todas as minhas decisões. E cumpriu.   Na questão que sempre vem à tona quando um filme é assinado por dois diretores, devo dizer que eu e Pablo não tivemos uma discussão sequer. Isto porque conversamos muito durante toda a preparação, desde a produção do roteiro (do qual Pablo é colaborador) até a pré-estréia. Assim, estávamos contando a mesma história e fazendo o mesmo filme. Pode parecer óbvio, mas, em termos de cinema, não é.   Em caso de conflito, tínhamos um acordo: nos trancaríamos numa sala e só sairíamos com a decisão. Em caso de novo conflito ainda, eu teria a palavra final. Mas nunca usei dessa prerrogativa. Nem gostaria de tê-la usado. O processo de filmagem é tão intenso que não é possível estar certo o tempo todo. Eu sou um ex-atleta que cresceu acreditando no conjunto. E é inviável não prestar atenção  a tantas idéias que surgem. Vez por outra, elas não valem nada. Mas, em sua grande maioria, é útil ponderar naquele bom e funcional raciocínio quântico e... Decidir. Principalmente quando a primeira cena do filme acaba sendo uma cena de transa. Isso mesmo. Foi justamente como nós começamos – dentro da sauna, com Deborah Secco e Luigi Baricelli, às 6:00h da manhã, vivendo um momento tenso e apaixonado da história (esclareço: no primeiro dia da filmagem, uma imprevisível chuva apareceu a despeito das previsões e tivemos que optar pelo plano B de filmagem. E ele começava justamente pela cena da sauna...) Sem problemas. Nós já estávamos preparados para todas as borrascas da filmagem. E foi assim que fizemos e cumprimos todos os planos de filmagem, com apenas um ou dois dias de uma ou outra cena pendurada. Foi assim que a equipe aprendeu a nos respeitar, porque viu que nós estávamos coesos com nossas propostas. Foi assim também que, depois da edição, assumimos a função de produtores de finalização, produtores musicais e mais um monte de outras coisas.   Assim, posicionar a câmera, idealizar a movimentação dos atores, elaborar a fotografia, afinar a iluminação e, principalmente, estar ao lado dos atores para obter o melhor de suas interpretações foi uma busca em conjunto. Fizemos cerca de dez leituras de mesa com o elenco e ensaiamos por três semanas em quase todas as locações. Como havia pouca grana, compramos pouco negativo. Com pouca película, era fundamental não errar (só que não contaríamos isso para os atores!!!). Portanto, era mais do que fundamental que eles estivessem com o texto afinado, com as marcações gravadas e com o sentimento exposto. E não errassem. Lembro apenas de uma seqüência em que Ilya São Paulo precisou de uns cinco takes para acertar o tom e a fala. Ator experiente de cinema, quando viu o desespero se apoderando de meu rosto e do Pablo – já estávamos pensando minuciosamente como aproveitaríamos as tentativas anteriores, ele sentou-se ao meu lado e disse... calma, vou acertar agora e parar de queimar negativo. Eu ri de nervoso, tentando disfarçar. Não sei se isso foi um incentivo, mas logo depois ele fez uma linda cena.   Fizemos ainda algumas sessões de trabalho com os atores junto à preparadora de elenco Márcia Tannuri. Ela evidenciou as energias que o grupo estaria trocando, usando, produzindo. Fez com que meditássemos em grupo, repetíssemos mantras e sintonizássemos nossas forças. Ou seja, não dava para descuidar de nenhum detalhe. Até shiatsu durante a produção foi promovido.   Assim, eu e Pablo absorvemos a responsabilidade de fazer o filme e estivemos juntos em todas as fases. Delas, a pós-produção é, sem dúvida, onde as histórias mais loucas acontecem, com problemas e mais problemas se alternando. Sofremos mas vencemos. Por exemplo: uma lâmpada do revelador queimou e isso acarretaria um atraso enorme. Eu saí louco à procura de alguém que pudesse me arrumar uma bendita de uma lâmpada, peguei telefone, reclamei. O laboratório dava uma previsão. Mas eu não aceitava e queria achar a lâmpada antes disso. Pablo, budista, sentou, focou na resolução do problema e... Esperou. Não é que deu certo? Outro aspecto da produção que nos ajudou a fazer esse filme em quatro semanas e três dias foi o fato de termos encontrado uma casa no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, que serviu simplesmente para quase todas as locações internas. É uma casa de três andares, com cada pavimento decorado e construído de forma diferente. Desde o piso até os batentes das portas.   No primeiro andar, com tábuas corridas, fizemos algumas alterações de cores e filmamos o consultório de Antonia, a sala da cartomante com a famosa e elogiada cortina de cristais (criação de Arturo Uranga, designer de produção, e Ana Perin, diretora de arte). No segundo andar, usamos um quarto para fazer apenas as cenas na porta do apartamento de Camilo. Pintamos o corredor com outra cor e, no outro cômodo, obtivemos o quarto de Rita – com direito a porta e corredor de outra cor. No terceiro andar, foi a vez do apartamento de Camilo, e de seu quarto, montado na varanda da casa. Ainda filmamos na escada, com chão quadriculado.   Essa casa proporcionou uma economia de tempo vital. Ajudou no trabalho de mudança de locação. Só tinha um leve problema: uma creche ao lado. Então, nossas filmagens começavam às 17:00h da tarde, exatamente no momento em que tocava a sineta de saída da creche. Era lindo ver as crianças saindo quietinhas para respeitar a produção. Nova geração culta é isso mesmo. Só não deu para calar os passarinhos, os cachorros e os vizinhos que estavam pouco se lixando para o fato de que estávamos filmando. De repente, um Cauby Peixoto surgia nas alturas para desespero de George Saldanha, operador de áudio.   As outras locações foram pela cidade mesmo. Sempre com a preocupação de minimizar o deslocamento. Dentro disso, e de mais um monte de outras razões, devo grandes agradecimentos ao diretor de fotografia, Rodrigo Monte, que deu o melhor de si com uma tarefa quase insana: filmar o maior número de cenas possíveis por dia. Entre uma cena e outra, normalmente perde-se um tempo para montar a luz. Mas o Rodrigo estava simplesmente turbinado. Conclusão: nas filmagens da cena final, onde os quatro atores estavam juntos, chegamos à marca de mais de 40 planos num mesmo dia. Como disse um amigo produtor, cinema de guerrilha... Devo agradecer também ao cantor Leoni, que também entendeu o espírito da coisa e contribuiu muito acima do esperado com o intuito do filme ir para as telas. Compôs música (Canção do Acaso), sugeriu e ajudou na gravação do clip com a Banda Penélope – que interpreta, e além disso compôs toda a trilha incidental num trabalho minimalista e intenso.   O filme teve seis versões de edição. Foi visto, durante essa fase de desenvolvimento, por umas 100 pessoas, entre diretores, roteiristas, amigos, parentes, desconhecidos que estavam na casa dos amigos, enfim, um monte de gente. A cada exibição mal-ajambrada de VHS, minha mente enchia-se de curiosidade para ver as reações das pessoas. Assim eu ia sentindo como a história repercutia. Era o momento final da criação – contar com o público-teste para ajustar a história. E, num prazer imensurável, ver aquelas idéias que você teve anos antes interagindo com outras pessoas através da arte.   Houve também cabines de teste oficiais e, pelas notas dadas, 70% de aprovação. Entre os 30% de pessoas que viram e não gostaram, metade porque não tinha entendido, outra metade simplesmente porque não. Foi a época mais difícil de todo o processo – evoluir para o corte final. Ali não era mais eu e o computador dentro de uma crisálida. Mas um monte de gente interessada num filme pronto para ser exibido em circuito comercial. Chegamos a rir de cenas que funcionavam no roteiro, mas, na hora da verdade, não tinham conseguido sobreviver. Ou seja, ainda dava pra cortar!   Até que chegamos à última versão. E fiquei livre... Depois de dois anos labutando naquela história. Concluí que ela realmente sobreviveu. O filme que está na tela e nos DVD/VHS é o melhor que pudemos fazer. Não há nada que possamos dizer: Aqui poderia ser assim. Principalmente mediante todos os problemas – no processo de pós-produção aconteceu de tudo um pouco, a palavra que eu mais usava era surreal para adjetivar os fatos e prefiro não registrar porque seria um livro tragicômico. Com muito mais tragédias do que comédias. Mas com final feliz, graças a Deus.   Porque levar um filme para as telas de cinema de forma absolutamente independente é uma vitória numa indústria incipiente. O resto vem depois. Críticas, comentários, as semanas em cartaz, as vendas (maravilhosas) de DVDs, enfim, as outras janelas de exibição. É como vencer um jogo. Mas o campeonato ainda está rolando... E logo depois dá vontade de jogar de novo. escrito por Wagner de Assis (com  a colaboração de Laura Malin e Pablo Uranga) Parte 2 O Roteiro A CARTOMANTE  Roteiro escrito por Wagner de Assis FADE IN CENA 1 – EXT. TELHADO DE PRÉDIO – DIA Dra. ANTONIA, 42, observa pessoas do telhado de um prédio alto no centro da cidade. Seu olhar está perdido, tem um leve sorriso no canto da boca. Lá embaixo, as pessoas movem-se freneticamente no ritmo típico de um dia de trabalho no centro da cidade. Parece um formigueiro enquanto Antonia está acima deles. ANTONIA (off) Quando eu tenho tempo livre, eu gosto de olhar as pessoas e pensar nos milhares de histórias que se cruzam pelo mundo. Me lembro de uma empregada que tinha na casa dos meus pais. Quando ela tentou se matar pela primeira vez, eu fiz um torniquete e consegui parar o sangramento dos pulsos. Eu ainda a salvei mais duas vezes. Meu nome é Antonia Maria do Anjos, sou formada em psiquiatria e em psicologia. Meu interesse é o ser humano. Mas esta não é a minha história. Corta para CENA 2 – INT. BOATE – NOITE Uma típica boate com gente bonita, música fervendo. CAMILO, 27, um cara bonito, corpo malhado, roupas despojadas, entra de peito estufado, sentindo-se poderoso. A seu lado, DUDA, 22, seu amigo, um tipo esguio, magrinho, acompanha-o no mesmo clima. As meninas logo percebem a chegada de Camilo. A começar pela Recepcionista, que dá uma boa olhada desejosa para o rapaz. RECEPCIONISTA BOATE Oi, Camilo. Camilo e Duda chegam ao bar. Corte contínuo CENA 3  – INT. BAR DA BOATE – NOITE Camilo e Duda observam as meninas ao redor. Servem-se de cervejas no bar. DUDA Um brinde! Batem seus copos. Camilo lança olhares para as meninas dançando. DUDA A elas! Vem cá, você acha que eu pego alguém hoje, hein? Tu vai colocar mulher na minha fita, não vai? CAMILO Pergunta idiota não merece resposta... Duda molha o dedo na cerveja e passa no pescoço. Camilo estranha. CAMILO O que é isso? DUDA Perfume de cevada! Eles riem. Uma loura mais insinuante paquera Camilo. Ele não pensa duas vezes e vai até ela. Segura no seu braço, no meio da pista, com delicadeza e determinação. CAMILO (sussurra) Meu amigo tá muito a fim de te conhecer. (aponta Duda) LOURA Não pode ser você? CAMILO Acho que você devia dar uma chance pra ele. Duda fica empolgado com os olhares da loura. Dança amarradão. Camilo desvia o olhar para o fundo da boate. Lá atrás, na penumbra de um recuado, ele divisa uma mulher linda, séria, fumando, sentada com postura clássica, olhar perdido, misterioso. De novo, Camilo não pensa duas vezes e vai até ela. CAMILO (off) Eu sempre soube que o destino de todo conquistador é sofrer do mesmo veneno. Mas achava que estava preparado... Ele chega perto da mulher. CAMILO Posso? Indica se pode sentar, ela não responde. Camilo entende que não deu certo. CAMILO Ok, tudo bem (vai saindo). Ela parece sair de seu mundo particular e percebe a presença de Camilo. KAREN ALBUQUERQUE, 30, é uma empresária linda, blasé, poderosa. KAREN Espera... Pode sentar.  Camilo gosta do climinha. Senta sedutor, já a fixando com o olhar. KAREN O que você quer? CAMILO Te conhecer. Ela olha-o com firmeza. KAREN Tem certeza? CAMILO Alguma dúvida? Karen pondera novamente em seu mundo particular. Pega um remédio de um estojo e toma. Camilo observa sem muito questionar. Ela dá um trago num whisky sem gelo. E manda pra ele, sem vacilar. KAREN S´eu te pedir uma coisa você faz? Ele concorda. KAREN Me tira daqui. Agora! Camilo adora a decisão dela. Taí uma mulher de verdade, ele pensa. E segura o braço dela para saírem juntos. Corta para CENA 4 – INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Camilo contempla a vista, curte o ambiente. Karen prepara mais bebidas. É uma cobertura moderna e clean. Com piscina, muitas garrafas de bebidas. CAMILO Muito lindo o seu apartamento... Tô me sentindo em casa. Ele se aproxima, os copos já estão cheios à mão. Seu olhar é decidido, mas as palavras raras. CAMILO Posso perguntar seu nome? Karen continua calada, jogando com ele. CAMILO Vai fazer o estilo misteriosa... Taí, gostei de você. Ela enfim dá um sorriso. Mas continua misteriosa. Camilo perde um pouco a paciência. Karen pega sobre um móvel o estojo de remédios e toma mais uma pílula. Camilo estranha. CAMILO Outro remédio?  Enfim, ela resolve conceder algumas palavras para Camilo. KAREN Não... Não é remédio não... É presente... Presente do destino. CAMILO Interessante. Ela o segura pela blusa, dando uma decisão no joguinho da sedução. KAREN Quer saber? Quero fazer sexo, quero fazer muito sexo, sem parar, intenso, profundo, definitivo. Karen traga toda a bebida de seu copo, pega o copo de Camilo para beber. Ele fica sem palavras. Ela se afasta. Vai até a ponta da varanda. CAMILO Você é sempre assim ou é só hoje? KAREN Qual a diferença? Sem o menor pudor, Karen solta o zíper, e seu vestido desliza pelo seu corpo deixando-a de roupas íntimas, sensuais. Ela traga o cigarro, joga fora a guimba. Eles se beijam. A coisa vai esquentando, com leves mordidas. Karen vai perdendo o controle, ficando intensa demais. Segura Camilo pela nuca, tentando dominá-lo. KAREN Agora você vai fazer tudo que eu mandar! Entendeu? Camilo, esperto, vivido, desvencilha-se. CAMILO Calma, aí! As coisas não são bem assim... Vamos por partes, gatinha. KAREN Gatinha é a tua mãe, você tá me ouvindo? Você tá me ouvindo? Eu quero você, e eu quero agora! Karen vai perdendo a pose, o tom de voz, o sorriso blasé. CAMILO Enlouqueceu? KAREN Cala a boca, cala a boca... O tempo tá acabando! CAMILO Que tempo? KAREN Tempo de viver. Tempo de viver. CAMILO Que é que você tá falando? Karen começa a se debater, perdendo realmente o controle sobre si mesma. De repente, ataca Camilo e morde seu corpo. Camilo se protege como pode. CAMILO Pára com isso. Tá maluca? Você é muito gata mas não vai rolar mesmo... Tô saindo fora! Camilo joga Karen com violência. Ela cai no chão. Ele resolve sair. Quando Camilo está perto da porta, no reflexo de um espelho, um tiro explode destruindo sua imagem no espelho. Camilo se recupera e percebe a situação: Karen aponta uma arma para ele. Ela está totalmente descontrolada. Brinca com a arma. KAREN Você não vai não... Porque agora eu quero gozar, eu quero gozar até o fim. CAMILO Que isso? KAREN Ainda falta você... CAMILO (assustado) Eu? Do que você tá falando? Acabou! Não vai rolar mais nada! Camilo tenta reagir, mas Karen aperta o gatilho quantas vezes puder. Camilo vai se jogando pelo chão, protegendo-se aos trancos. O local fica destruído. CAMILO (grita do chão) Calma aí, calma aí, espera. Karen pára de atirar e se aproxima dele ainda apontando a arma. Está completamente descontrolada. KAREN Senta. Senta. Camilo obedece. CAMILO Pelo amor de Deus. Não vai fazer besteira! KAREN Senta. CAMILO Calma. Tô sentando. Karen segura-o pela nuca novamente, aponta a arma para sua boca. Muita tensão no ar. Respirações ofegantes. KAREN Presentinho pra você também. Ela pega o vidro com os comprimidos. KAREN Sua vez. Abre a boquinha, abre. Abre! Engole! Engole! Engole! Engole! Karen simplesmente despeja todo o conteúdo do vidro dentro da boca de Camilo. Joga bebida dentro e aperta para ele engolir. Camilo quase sufoca. Karen, sempre alternando o tom de voz, entre a louca e a criança, entre a descontrolada e a sã, cochicha em seu ouvido. Tenta abraçá-lo, fazer e receber carinho. KAREN Essa é a droga de amor. Sabia que até pro amor tem remédio? Só tem uma coisa que não tem jeito... CAMILO (quase sufocado) O quê? Karen joga Camilo no chão e aponta-lhe a arma. A imagem da empresária prestes a atirar vai ficando turva, perde o foco e desaparece. Fade out Fade in   CENA 5 – INT. HOSPITAL (SALA DOS MÉDICOS) – DIA A porta de um armário se abre. VILELA, 28, aparece trocando seu terno pelo guarda-pó verde típico dos médicos de emergência. VILELA (off) Eu nunca acreditei nessa coisa do destino... Sou ateu, acredito nos fatos. Vilela vê, numa parede, uma imagem de Jesus Cristo crucificado. Ele desdenha da imagem.   CENA 6 – INT. HOSPITAL (CORREDOR) – DIA Vilela caminha entre os pacientes e outros médicos. Sente-se poderoso, não olha para os lados, tem passos firmes. VILELA (off) Convivi com o Camilo dos seis aos 18 anos... Eu ia pra escola, ele ia à praia, eu ia pra faculdade, ele vivia nas boates... CENA 7 – INT. HOSPITAL (SALA DE EMERGÊNCIA) – DIA Vilela entra num biombo de emergência onde encontra seu amigo, DR. JOÃO, que já está no clima do próximo atendimento. JOÃO O paciente tem 28 anos, duas paradas na ambulância, com sinais de overdose... Vilela olha para a maca e vê Camilo, reconhecendo seu amigo de infância. VILELA Camilo?! Merda!   João se aproxima de Camilo, encosta o ouvido conforme a técnica médica e percebe uma parada cardíaca. JOÃO Parou! Vilela decide o choque para tentar o ressuscitamento. VILELA As pás! Vilela aplica choques e massagem cardíaca em seu amigo. VILELA (off) Se o destino colocou o meu amigo na minha frente, não era ele quem ia salvá-lo, mas eu... E isso... Isso é divino. Vilela toma novas decisões. VILELA Prepara a entubação. João rapidamente prepara a canícula para entubar Camilo. JOÃO Passou! Camilo agora está entubado, com soro, e Vilela ainda faz manobras para salvar sua vida. VILELA Vamos, Camilo. Eu não vou deixar você morrer, tá entendendo? Camilo não reage. Vilela traz o eletrochoque novamente. Em uma visão subjetiva, o médico encosta as pás na câmera. Som do choque.   Corta para CENA 8 – INT. QUARTO DE RITA – DIA O som do choque invade a cena e mistura-se a um irritante despertador que marca 6:00h. A mão de uma mulher escorrega para encontrar o botão que vai calar a máquina. A mulher levanta e vai direto ao espelho. Faz uma maquiagem básica, olhos, boca, blush e cabelo. De repente, ela retorna para a cama. INSERT - O relógio agora marca 8:30h Novamente a mão da mulher desliga o aparelho. Agora menos intensamente. Ela levanta-se, olha-se no espelho – aquelas escrivaninhas com divisões que multiplicam as imagens. RITA, 25, é uma linda jovem que agora tem a aparência de uma menina preguiçosa acordando e, ao mesmo tempo, de uma mulher madura e decidida. Ela olha para si mesmo na imagem e manda um beijinho.   RITA Lindona! Rita levanta, abre a porta, pega o jornal embaixo do tapete. Mecanicamente, abre no caderno cultural, vai à seção de horóscopos e recorta com uma tesoura o signo de peixes – em detalhe. Ela pega o pequeno recorte e cola num caderno bem infantil todo decorado que tem justamente outros recortes do mesmo signo. Rita coleciona horóscopos! RITA (off) Eu sempre gostei de acordar maquiada... Eu acho que todas as mulheres devem fazer isso ao menos uma vez na vida. Espanta os fantasmas... Prepara pras surpresas do dia... Nunca se sabe o que pode acontecer... Em seu olhar esperançoso.   Corta para CENA 9 – INT. HOSPITAL (CORREDOR) – DIA Rita chega e uma Atendente a recebe.   RITA Oi! ATENDENTE Eu acho que eu conheço você. RITA Tudo bem? ATENDENTE Tudo Rita... E com você? RITA Tá tudo ótimo. Ele tá aí? ATENDENTE Ué, não tá com asma? RITA Não, qual o problema? ATENDENTE Nenhum... Peraí que vou chamar. RITA Não precisa... Deixa que eu vou até lá. Rita vai entrando sem autorização. ATENDENTE Peraí, você não pode entrar assim...  RITA Você não me viu, tá?   Corta para CENA 10 – INT. HOSPITAL (SALA DOS MÉDICOS) – DIA Vilela trabalha no computador. João entra com papéis à mão. JOÃO Taí, Vilela, era ecstasy mesmo... Tinha quantidade suficiente para umas quinze pessoas no estômago do teu amigo. Ia ser uma festa e tanto, viu... VILELA Quanto tempo ele teria? JOÃO Bom, como ele tinha ingerido álcool também, eu acredito que em meia hora, uma hora no máximo, o rapaz teria morrido. Eles se levantam, saem da sala e entram pelo corredor.   CENA 11 – INT. HOSPITAL (CORREDOR) – DIA Vilela conversa com João.   VILELA Então você acha que foi tentativa de suicídio mesmo? JOÃO Ah, e o que mais? A não ser que ele quisesse transar uns três meses, não é? De repente, Vilela vê Rita caminhando em sua direção. João se afasta. Ele, insatisfeito com a surpresa, vai até ela, sorridente. VILELA Quê que cê tá fazendo aqui, Rita? RITA Surpresa! VILELA Você tá maluca? Isso aqui não é lugar pra surpresa. Como cê entrou? RITA Sou uma hóspede antiga, lembra? VILELA Tá sentindo alguma coisa? RITA Não, você me curou. Mas é que meu horóscopo de hoje disse que eu tinha que ir em busca de todos os meus ideais. VILELA Rita, a gente não tinha combinado que eu ia te pegar na hora do almoço? RITA É, só que me deu vontade de ser o seu almoço. Vilela cede à sedução.   CENA 12 – INT. FLAT DE VILELA – DIA Rita e Vilela terminam de transar. Ele logo se levanta para voltar ao trabalho.   VILELA Vamos nessa! RITA Ah, não, não. Já, não. Fica mais um pouquinho... Meu horóscopo hoje disse... Vilela coloca suas roupas. VILELA (interrompe) Quantas vezes vou ter que repetir que esse negócio de horóscopo é pura armação? Os caras têm um monte de texto pronto e a cada dia sorteiam um pra colocar no jornal. Se você reparar bem, tem dia que é repetido... RITA A gente pode saber se as pessoas dão certo pelo signo... VILELA Tem estrela hoje no céu que já morreu e a luz continua brilhando. Vai querer basear sua vida em estrela que já morreu? RITA Até que é romântico... O brilho eterno, que nem o amor... Ah, o importante é que dá certo. VILELA É? E quando dá errado? RITA Aí eu esqueço. É... Vai ver que eu sou mesmo uma menina muito insegura. (muda o tom, brinca) Eu preciso de você, meu herói, não me abandone na torre desse castelo, pois há muitos perigos ao redor! VILELA (relaxa) Deixa de ser boba. Olha, eu soube que vão mudar o diretor do hospital. É quase certo de ser eu... Você sabe... Assim que sair a promoção, a gente casa. O rosto de Rita se transforma, seus olhos brilham.   Corta para CENA 13 – INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Rita no divã. Antonia ouve atenta. RITA Assim que sair a promoção, a gente casa... Não é linda essa frase? Ah, mas a gente nem pode conversar direito, ele foi logo atender os pacientes dele. ANTONIA Bom, é a profissão dele, Rita. RITA Eu tenho medo... Assim... Dele me deixar! ANTONIA Vocês acabaram de acertar que vão casar, por que ele te largaria? RITA Eu acho que eu vou numa cartomante! INSERT CENA 14 – EXT. RUA EM FRENTE A CARTOMANTE – DIA Rita caminha pela calçada e vê a placa indicando uma cartomante. Ao lado, ela entra no consultório de Antonia.   RITA (off) Abriu uma aqui do lado, cê viu? ANTONIA (off) Não... Por que ir numa cartomante? Volta para Rita e Antonia. RITA É... Não tem porquê... Afinal de contas, eu vou me casar, não é? E eu nunca mais vou dormir sozinha... E nenhum paciente dele vai me atrapalhar...   Corta para CENA 15 - INT. HOSPITAL (SALA DE EMERGÊNCIA) – DIA Camilo está no respirador, dormindo. Vilela e SIMONE, 45, mãe de Camilo, uma mulher bonita, porém maltratada pelo tempo, maquiagem over, roupa idem, estão na porta do biombo. Ouvimos a respiração de Camilo através da máquina. Antonia chega sorridente. Vilela faz as apresentações.   VILELA Essa é a dona Simone, mãe do Camilo, essa é a Dra. Antonia, a médica que eu estava falando pra senhora. SIMONE A senhora vai curar meu filho? ANTONIA Curar? Depende... Primeiro eu vou conhecer seu filho e depois eu vou ver o que eu posso fazer para ajudá-lo, se ele quiser ajuda, claro. Simone repara em Camilo, ele acorda levemente.   Corta para CENA 16 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – NOITE Simone e Camilo entram em casa, num silêncio que diz tudo. Ela não se contém.   SIMONE Bom voltar pra casa, né? Você devia era agradecer. E sai. Camilo fica sozinho, como que percebendo agora o perigo por que passou. Senta, medita e, de repente... INSERT A lembrança de Karen invade sua mente, com a música estrondosa. A empresária dança loucamente com a arma, Camilo vai levantando do chão, dando seqüência ao momento em que a cena foi interrompida. Volta para A imagem de Karen some tão forte como apareceu. Camilo pressente o problema. Fusão para STOCK SHOT   CENA 17 - INT. FLAT DE VILELA - DIA Vilela e Rita à mesa, ele prova um macarrão em frente a uma Rita apreensiva. De repente, o resultado. VILELA Putz... Isso é Miojo? Rita desarma. VILELA (continua) Meu amor... Você conseguiu estragar o miojo? (climinha, ele desmonta) Qual o telefone mesmo da pizzaria? (Rita acalma) VILELA (continua) Eu quero te dar uma coisa... Você sabe que eu sou um cara formal. (entrega uma caixinha de jóias para ela) Casa comigo? Rita abre e vê um par de alianças. RITA Ai, meu Deus, é linda. A campainha toca. VILELA Casa? A campainha toca novamente. RITA Bobo, vai atender a porta... É linda, linda, linda! Vilela abre a porta. É Camilo, envergonhado. VILELA Camilo? CAMILO E aí, cara... Tudo bem? Eu vim aqui pra te agradecer tudo que você fez por mim. VILELA Que isso! Entraí. Vem conhecer a minha noiva. Camilo entra e o primeiro olhar com Rita é marcante, embora ela desvie sem deixar que um contato maior aconteça. VILELA Essa é a Rita. Camilo. CAMILO Prazer. Eles trocam um leve beijo no rosto. Camilo se recupera do impacto da visão de Rita. Percebe a situação. CAMILO Cara, você me desculpa. Eu não sabia que vocês estavam... (indica o jantar)... Vou nessa. VILELA Qué isso, cara... Sentaí, come com a gente. (para Rita) O Camilo saiu ontem do hospital. CAMILO Olha, não precisa mesmo. Camilo senta constrangido. VILELA Vai me desapontar? Deixa de cerimônia. Rita, serve o Camilo. RITA Claro. VILELA Foi a Rita mesmo que fez... Ela tá pronta pra casar... Prova. Tá gostoso? Camilo prova o macarrão. Pensa antes de falar. CAMILO Gostoso. Vilela cai numa gargalhada, Rita e Camilo sorriem, mas um para o outro. Corta para CENA 18 – INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Camilo observa os livros da estante de Antonia, que o observa impassiva.   ANTONIA Não quer sentar? CAMILO Ah? Não. Tô bem assim. ANTONIA Ok. Eu gostaria que você me falasse um pouco da sua vida. Camilo senta-se. CAMILO Minha vida? Minha vida é tranqüilíssima, doutora. O que aconteceu foi um descuido. Isso é tudo que eu tenho a dizer. E fica encarando a médica, que não expressa reação.   Corta para CENA 19 - EXT. RUA EM FRENTE AO BRECHÓ – DIA Camilo caminha e vê Rita à porta do brechó. Resolve entrar.   Corta para CENA 20 – INT. BRECHÓ – DIA Rita atende uma cliente, entrega-lhe um embrulho. RITA Aqui, muito obrigada. Volte sempre. Tchau. Camilo entra. CAMILO Rita? Você trabalha aqui? RITA Camilo! Que coincidência, né. Eu trabalho sim. Você gosta de brechó? CAMILO Gosto... Quer dizer, não vou a muitos, mas gosto. Eu malho aqui perto... Tava passando e me chamou a atenção e... RITA Eu também não conhecia muitos brechós, mas depois que eu comecei a trabalhar aqui, eu até invento uma história pra cada peça, sabe... As pessoas adoram. E então, você vai querer levar um presente pra namorada? CAMILO Eu não tenho namorada. Leve reação de Rita. CAMILO Adorei aqui. Qual dessas peças você gosta mais? RITA Ah, tem várias, essa aqui, por exemplo... É a Vênus de Milo, uma peça de uns duzentos anos antes de Cristo... Rita pega uma pequena estátua da Vênus de Milos. RITA ... Eu costumo dizer que ela não tem os braços porque se apaixonou pelo Cupido.  CAMILO (ri) E quem flechou o cupido? Ela que não foi, né? Camilo vai segurar a peça e esbarra levemente na mão de Rita. Ela sente o toque proposital e retira a mão levemente. RITA Antigamente as pessoas idealizavam o amor... Sonhavam com romances platônicos, quase proibidos. CAMILO É verdade... Hoje também não é fácil... RITA O quê? CAMILO Os amores proibidos. Os olhares se intensificam. Uma paixão nasce. Mas eles recuam, a começar por Camilo, sedutor que sabe a hora que deve parar.   CAMILO (continua) Eu preciso ir... Mas se eu gostar de alguma coisa eu levo. RITA Então tá. Tchau. CAMILO Tchau. Camilo sai do brechó e Rita enfim respira. Está fisgada.   Corta para CENA 21 - INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Rita está deitada às avessas no divã. Antonia ouve atenta. RITA Eu conheci um garoto... Ele tava internado lá no hospital... Tentou se matar, acho que você deve saber quem é... Chama Camilo, um amigo do Vilela. ANTONIA Rita, eu vejo algo a mais nessa frase ou eu tô enganada? Rita recua, desvia o olhar. RITA Tá enganada. Corta para CENA  22 - INT. ACADEMIA DE GINÁSTICA – DIA Camilo e Duda malham. De repente, Camilo joga o peso, demonstra preocupação.   CAMILO Cara, acho que me meti numa roubada.   INSERT CENA 23 - EXT. FRENTE DO BRECHÓ – DIA Camilo observa Rita de longe, está escondido. Ele vê Vilela se aproximar num lindo carro, saltar e receber Rita com um beijo. Ela sai com ele. Camilo acusa estar apaixonado e sente-se inferior ao amigo. Volta para...   DUDA Outra? CAMILO Outra. Passa uma menina bonita. Duda logo se vira para ela, sem prestar atenção no amigo. DUDA Outra... CAMILO Dessa vez eu acho que me ferrei.   Corta para CENA  24 - INT. BRECHÓ – DIA Rita arruma coisas e Duda entra no local.   DUDA Ôpa... E aí?   RITA Pois não? DUDA Tô dando uma sacada aí. É... Você é a Rita, não é? RITA Oi, desculpa. Será que eu posso te ajudar em alguma coisa? DUDA Na verdade, eu tô procurando uma peça do século... Duda olha o número 200 escrito em sua mão, como uma “cola”. DUDA ... Do século duzentos! RITA Século duzentos??? DUDA A peça é mais ou menos assim: a mulherzinha tá pelada, e ela é deficiente, não tem um braço... É maneta. RITA Eu acho que você tá falando dessa aqui. A Vênus de Milo. DUDA Vênus de onde? RITA De Milo. DUDA Onde fica isso? RITA Pra falar a verdade, eu também não sei muito bem onde fica Milo... DUDA Ah, não sabe. Ah, então tá tudo bem. Então, então é isso aí. Eu vou levar essa aí, ó. Toma. (entrega um dinheiro) Pode embrulhar. RITA Não é tão cara não... Cinqüenta resolve. Rita devolve algumas notas para Duda. DUDA Sério? Pô, então demorô. Show de bola... É... Assim... Dá pra botar na notinha uns setenta? Rita ri da armação dele. DUDA Eu vou querer que você entregue, mas tem que ser você, mais ninguém. Tá aqui o endereço. Vou nessa. RITA Tudo bem.   CENA  25 - EXT. FRENTE DO PRÉDIO DE CAMILO – DIA Rita chega ao prédio sem desconfiar de nada. Traz o embrulho. Segue em...   CENA 26 – INT. HALL DO APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Rita chega, confere o endereço, toca a campainha. De repente, quem abre a porta? Camilo. Sorriso nos lábios da brincadeira que deu certo, sem camisa, barba por fazer, um convite ao pecado. Rita se recompõe. E entrega a caixa que traz.   RITA Parece que seu amigo entende tudo de antiguidades. Ele pediu até pra colocar um preço mais caro na nota... Assina aqui. Camilo assina a nota de recebimento. Abre a caixa, pega a estátua e entrega para Rita.  CAMILO É pra você. Rita se surpreende. Aí perde a pose. Está seduzida. Sem palavras. Vai falando e recuando até chegar à beira da escada e descer. RITA Não, você não vai fazer isso comigo... Eu preciso ir. Camilo vê a menina descer a escada indefesa, quase uma presa preste a ser abatida, questão de tempo.   Corta para CENA  27 - INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Rita está em pé, ansiosa. Antonia sentada confortavelmente.    ANTONIA Então, Rita... RITA (interrompe) Toni, hoje eu não queria falar nada não. ANTONIA Tá tudo bem?  RITA Tá... Tudo bem.   INSERTS CENA  28 - INT. SALA DA CARTOMANTE – DIA A partir daqui, a cena é marcada com imagens da visita de Rita à Cartomante. As cartas caem, Rita corta o baralho, olha atenta, vê os ENAMORADOS, a TORRE, Rita feliz com as previsões.   ANTONIA (off) Aconteceu alguma coisa? RITA (off) Não, não. Não aconteceu nada. RITA (off) Eu tô indo nessa já então, tá? ANTONIA Rita! Rita estava na porta, de saída. ANTONIA Pense bem antes de fazer qualquer coisa! RITA Tá bem. Ela sai. Antonia fica atenta, mas não esboça reação. Corta para...   CENA 29 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – NOITE Camilo abre a porta novamente e quem está no hall? Rita. Ela entra, decidida.   CAMILO Rita! RITA Eu fui numa cartomante... Eles se olham, tudo está entendido, compreendido.   Segue em CENA 30 - INT. QUARTO DE CAMILO – NOITE Camilo usa uma pequena lanterna para acariciar o corpo de Rita. Ela brinca com o facho de luz, seduzida. Depois, ele larga a lanterna e eles se beijam.   Corta para CENA 31 - INT. ESTACIONAMENTO DO HOSPITAL - NOITE Vilela chega ao seu carro, mas vê Antonia saindo do prédio também. Ele chama por ela.   VILELA Antonia! Como é que tá o Camilo? ANTONIA Bem no começo, Vilela, ele não se abre. É assim mesmo, mas pode preocupar. Principalmente se o paciente não tem apoio em casa e não encara o vício como doença. Com licença. Antonia deixa Vilela pensativo.   Corta para CENA 32 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – NOITE Camilo está deitado com Rita depois de fazerem amor. A campainha toca. Ele vai atender. É Vilela! Rita cobre-se com a colcha e fica em meio às almofadas. Camilo fica à porta, articulando o que fazer.   CAMILO Vilela! VILELA E aí, como é que você está? CAMILO Que surpresa! VILELA Tudo bem? CAMILO Sabe que eu tava pensando em você? VILELA Não vai me convidar pra entrar? Tem alguém aí?  CAMILO Aqui? Não... (aparece a idéia) Cara, vamos tomar uma cerveja? Vou pegar minha camiseta aqui. VILELA (entrando em direção ao quarto) Cara, tua casa continua a mesma coisa, hein? Parece até que a gente tem 10 anos e vai ficar vendo revistinha de sacanagem, lembra? Vilela pára em frente ao quarto, onde se pode ver as almofadas e o lençol onde Rita está escondida. Camilo olha a cena, tensão. Ele continua com sangue-frio. CAMILO Lembro... É, muito tempo... Vamos nessa? Ei, vam´bora. Camilo vai saindo pela porta. Vilela ainda dá uma olhada a mais para o local e sai. Rita respira aliviada. Corta para... CENA 33 - INT. BARZINHO – NOITE Camilo e Vilela são servidos e brindam.   VILELA Saúde. CAMILO Saúde. VILELA Então, me fala Camilo. Me conta tua vida.  CAMILO Minha vida? Cara... Sei lá. Normal. VILELA Sabe, Camilo, salvar vidas faz parte do meu trabalho, mas sinceramente foi muito bom saber que era você. CAMILO Você sempre foi bom em tudo. VILELA Sem falsa modéstia? Eu sei. Fazer o quê? Minha vida é ótima, cara. Tenho um bom carro, um apê legal, uma gatinha linda com quem vou me casar... Me dei bem. E você, me fala de você.  CAMILO Como diz o meu amigo Duda, eu não tô pro que der e vier... Mas pras que vierem e derem. VILELA Camilo, só aqui entre a gente... Você é praticamente meu irmão... Como é que você foi entrar numa roubada dessa de drogas, cara?   INSERT INT. APARTAMENTO DE KAREN - NOITE Karen derrama o vidro de ecstasy na boca de Camilo.   KAREN Abre a boquinha, abre. Camilo engasga. Volta para CENA  34 - INT. BARZINHO – NOITE Vilela e Camilo, agora incomodado pela lembrança.   CAMILO Às vezes a gente não pensa que pode tudo e que nada vai acontecer com a gente? Foi isso. Duda aparece feliz da vida, com uma ruiva ao lado. DUDA Fala Camilão!!! E aí... Pegou a mulherzinha? CAMILO (assustado) Duda, esse aqui é o Vilela, o médico que me atendeu na emergência. DUDA (nem percebe) E aí chefia, beleza...? Então, Camilo, me conta. Pegou a mulhézinha ou não? CAMILO Do que cê tá falando? DUDA Ah, não acredito... Liga não, doutor, esse cara é assim mesmo. É modesto... Pega geral, mas não gosta de falar, sabe? VILELA O Camilo tá com namorada? DUDA O senhor acredita que a mulher é casada? E eu me meti no meio da estória, né? Armei tudo com ele, fui lá no trabalho dela... CAMILO (interrompe) Duda! Some daqui. DUDA Ué, mas a mulher não é casada mermo? Tá bom, não tá mais aqui quem falou. Mas aí, que teu cupido preto aqui mandou bem, mandou. Não mandou não? Ei, mau humor, hein!? Já entendi, demorô, tô indo. Vamo, minha deusa. Vamos deixar os brancos conversarem em paz. Doutor, prazer. Duda sai, Camilo respira de mais uma ameaça. VILELA Camilo, eu quero que você seja o meu padrinho de casamento! Agora Camilo vê que o circo se aperta totalmente e percebe o tamanho do problema em que se meteu.   Corta para STOCK SHOT CENA  35 - INT. QUARTO DE RITA – DIA Rita fala ao telefone.   RITA Tá bom, mãe. Tá certo. Não, não se preocupa não, que eu tô bem... Manda um beijo no pai, tá? Tá, mãe, eu sei me virar sozinha sim... Tá, não vou fazer nenhuma besteira... Tá, tchau. Rita desliga, seu pensamento voa, totalmente diferente do que acabou de falar.   Corta para CENA  36 - INT. HOSPITAL (QUARTO) - DIA Uma menina está recostada. À sua frente, numa banqueta de café, uma folha com um desenho infantil que ela recém-terminou. Ela está calada, olhar perdido.   ANTONIA Oi, Juju. Muito lindo o seu desenho. Antonia examina rapidamente a menina, que continua calada, típica de quem viveu um trauma.   ANTONIA Eu vou dar uma saidinha, mas se você precisar é só tocar aqui (indica a campainha ao lado da cama) que eu volto, bem rapidinho, tá? Tchau. Antonia sai e Dr. João está à porta, observando a menina. Antonia mostra-se preocupada. ANTONIA É a primeira comunicação dela desde que chegou aqui. O departamento social não consegue encontrar a família. Eles saem, a menina apenas olha a médica.   Corta para CENA 37  - INT. HOSPITAL (SALA DOS MÉDICOS) – DIA Vilela mexe em seus papéis e novamente implica com o crucifixo na parede. Ele vai pegar a estátua para guardá-la quando Antonia aparece falando ao telefone, sem perceber que Vilela está no ambiente. Ele ouve e se aproxima desconfiado. ANTONIA Rita? Rita, sou eu, Toni. Eu tô te ligando porque a nossa consulta vai ter que ser adiada pra outro dia. É, eu não vou poder sair daqui do hospital. Tá? Um beijo. Depois a gente se fala. Tchau, tchau. Vilela está ao lado de Antonia. ANTONIA (sem graça) Vilela!? VILELA Antonia, essa Rita com quem você tava falando, é a minha Rita?! Antonia não responde, como que tentando segurar sua ética médica.   Corta para CENA  38 - INT. BRECHÓ – DIA Vilela entra no local batendo a porta. Rita, em seu trabalho, é pega de surpresa com a visita do noivo.   RITA Vilela! Mas ele não está de bom humor. VILELA Por que você não me contou que fazia análise, Rita? RITA Como assim? VILELA Você faz análise com a Antonia!  RITA Sim... Pois é... Eu faço. VILELA (esquenta) Por que não me contou?! RITA Porque eu achei que eu não tinha que contar... VILELA Você mentiu pra mim, Rita!? RITA Vilela, fala baixo. Aqui é o meu trabalho. VILELA Dane-se, quem arrumou isso aqui pra você fui eu! RITA Vilela, eu não menti pra você... Será que você não entende? Eu só não contei, será que tem alguma coisa errada nisso? Sacode ela. VILELA Escuta aqui. De hoje em diante você não vai mais se consultar com a Antonia, entendeu? Rita se desvencilha da violência. RITA Peraí, você não é o meu dono não. VILELA Tá falando assim porque? Criou asas agora, é? Ou você pára de se consultar com ela ou nós vamos ter sérios problemas! Ela respira e enfrenta. RITA Então a gente vai ter sérios problemas! Vilela continua ameaçando, Rita encarando. Ele resolve sair batendo a porta. Rita respira aliviada, mas está mexida. Corta para CENA  39 - INT. HOSPITAL (SALA DE CAFÉ) – DIA Antonia lancha e Vilela chega segurando um café. VILELA O que que você sabe sobre mim que eu não sei? Antonia ainda pondera um pouco o estranho da pergunta. Termina de mastigar, calmamente, mas vai continuar comendo a cena inteira, sem alterar o tom de voz. ANTONIA Eu não sei o que você sabe sobre você. VILELA Antonia, vamos deixar nossas rixas de lado, tá? Eu vou ser claro: essa situação me incomoda muito. ANTONIA Para um aspirante a diretor você me parece um tanto inseguro. VILELA O que a Rita falou de mim pra você? ANTONIA Isso é antiético.    VILELA Escuta aqui, a Rita não vai mais se consultar com você, entendeu? ANTONIA Vilela, eu não tive nunca a intenção de te enganar... Eu preservei a relação médico-paciente o máximo que eu pude. Se alguém tinha que falar alguma coisa, esse alguém é ela, você não acha? VILELA A Rita é uma ingênua, coitada. ANTONIA Ela não me parece ingênua.   INSERT CENA  40 - INT. ACADEMIA DE GINÁSTICA – DIA Rita chega na academia e encontra Camilo. Eles não se contêm e se beijam com muita paixão.   VILELA (off) É sim, saiu da cidade dela há alguns meses, tinha asma, era desamparada... Se não fosse por mim, não sei nem onde estaria agora. Teria voltado pra casa dos pais. Volta para...   ANTONIA Bom, eu não vou mais falar nada. Ela que continue à beira do desastre emocional. VILELA O que você tá falando? ANTONIA Pelo visto não é só ela, não é Vilela? VILELA Escuta aqui, Antonia. Não me desafie. Você sabe com quem você tá falando, não sabe? ANTONIA Claro que sei... Tem tomado muitas pílulas, Vilela? Com licença. Antonia se levanta dando o embate por vencido. Vilela fica tentando conter sua raiva, mas acaba esmagando o café que tinha nas mãos.   Corta para CENA  41 - INT. ACADEMIA DE GINÁSTICA – DIA Rita e Camilo entram pela sauna adentro se beijando, tirando o que podem das roupas e fazendo amor ali mesmo. Depois, ainda ofegantes, Rita insiste com Camilo.    RITA Vamos fugir! CAMILO Fugir pra onde? RITA Não sei... Mas eu quero fugir com você! CAMILO Mas como? RITA Dane-se. Hoje, sem falta, eu te espero no meu trabalho. Rita sai e Camilo fica pensativo.  INSERT   CENA  42 - INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Como sempre, a imagem de Karen invade a mente de Camilo. A empresária continua dançando, com a arma na mão, curtindo sua loucura. Camilo grogue, tenta reagir.   KAREN Não é maravilhoso!? CAMILO Que é que cê tá fazendo comigo? KAREN (aponta a arma, faz menção de atirar) Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Pôu! Camilo cai novamente no chão.   Volta para Camilo está na sauna, parece atemorizado pela lembrança e pelo convite de Rita.   Corta para CENA  43 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Rita toca a campanhia e Simone, de máscara facial, baby doll, abre a porta. Fuma, está com o mesmo olhar triste.   SIMONE Ele saiu. Ela sai da porta e deixa Rita parada à entrada. Volta para o sofá. Rita vai entrando lentamente, ganhando confiança. SIMONE E aí, a coisa vai ou não vai pra frente? RITA Como é que a gente vai saber? SIMONE Eu vou te contar um segredo. Ele não vai conseguir. RITA Como é que você sabe? SIMONE O Camilo é igualzinho ao pai dele. Ele nunca vai conseguir ser feliz. RITA O que aconteceu? SIMONE Sumiu há quinze anos. Ele me amava como uma princesa, usava uma lanterna, me iluminava o coração. Você acha que controla o seu destino? Já perguntou pro seu destino o que ele acha disso?  Rita não contém a lágrima.   Corta para CENA 44 – INT. RESTAURANTE / BAR – DIA Rita e Antonia lancham. A médica está faminta, em ótimo humor e come sem parar.   RITA Obrigada por ter vindo quando eu te liguei. Minha cabeça tá muito confusa... Eu não tô conseguindo pensar. ANTONIA Calma, você não precisa resolver nada agora... Por que você não come alguma coisa? Assim a gente conversa e quem sabe você não clareia um pouco as suas idéias? Afinal, Rita. Tudo o que você quer na vida é se casar. Todo mundo se casa um dia... E se descasa também. Mas isso é assunto pra uma outra sessão. Antonia morde mais um biscoitinho, Rita está desesperando, desmontando cada vez mais.   Corta para CENA  45 - INT. QUARTO DE RITA - NOITE Rita entra e Vilela já está dentro. Ele estica-lhe uma caixa de jóias.   RITA Você não vai me comprar. VILELA Mas é assim mesmo que eu sou. RITA Você foi um grosso comigo, tá? VILELA Vem, pega suas coisas. Vamos lá pro flat. Isso aqui é um pardieiro. Rita cede ao noivo, pega a caixa, ele a abraça, dá um beijinho terno. Corta para...   CENA 46 - INT. CASA VAZIA – DIA Rita e Vilela vêem uma casa para comprar. É um casarão, amplo, iluminado.   VILELA Pequeno, né? CORRETOR Sem problemas, eu tenho maiores. Eles andam ainda um pouco mais pelo imóvel. CORRETOR (sem acreditar) Não gosta mesmo? RITA (impressionada) Nossa... VILELA Vê se arruma uma coisa melhor? RITA Meu amor, eu tenho que voltar pro trabalho. VILELA Tá bem meu amorzinho, eu também preciso voltar pro hospital. Isso é só o começo. RITA (dúbia) Eu nem imagino o final então. Rita pensativa, Vilela sonhador.   Corta para CENA  47 - INT. APARTAMENTO DE RITA – DIA Rita entra e arruma uma mochila, pega suas agendas, diários e sai.   CENA 48 - EXT. BRECHÓ – DIA Rita sentada à frente do brechó esperando Camilo.   CENA 49 – INT. APARTAMENTO DE CAMILO Camilo olha a muda de roupa, a mochila, segura a lanterna. Está pensativo. De repente...   INSERT INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Karen pula em cima de Camilo, morde ele, grita. Camilo tenta desvencilhar-se da loucura, mas está muito drogado. Volta para... Camilo respira fundo, larga a lanterna, desiste de fazer a mala. CENA 50  - EXT. BRECHÓ – NOITE Rita na mesma posição. Exausta de esperar, decide ir embora.   Fusão para STOCK SHOTS DE PASSAGEM DE TEMPO   CENA 51 – INT. BRECHÓ – NOITE Rita fecha o local. Camilo entra.   CAMILO Eu não consegui. RITA Eu sei disso. CAMILO Eu pensei, mas nessas horas... RITA O Vilela me levou pra casa dele. CAMILO Por quê?  RITA Porque a gente vai casar, você esqueceu?  CAMILO Rita, por que você não termina logo com esse cara? RITA Porque ele foi fazendo as coisas, fazendo... E eu não consegui falar nada! CAMILO Vamos assumir tudo! Eu não tenho medo dele. RITA Então por que você não fala com ele?  CAMILO Porque eu não posso... Ele salvou minha vida. RITA Você pode sim, é claro que pode... A gente vai dar um jeito, tá? Pra tudo tem um jeito! Agora vem... Vem... Ela o beija, puxa para o fundo do brechó. Eles se beijam, vão se amar mais uma vez.   Fusão para CENA 52 - EXT. PRAIA – AMANHECER Camilo e Rita caminham de mãos dadas e se detêm para observar o nascer do sol. RITA Você acredita em destino? CAMILO Em destino não... Mas em coincidência sim. RITA Eu duvido que a gente esteja nesse mundo por acaso. CAMILO Também duvido. Mas eu não pago pra ver. RITA Eu queria entender por que as coisas nunca são como a gente escolhe. CAMILO Deve ter um por quê. RITA Então, me diz por quê? CAMILO Pergunta simples sempre tem resposta difícil, já percebeu? Rita perde o seu olhar. O sol nasce.   CENA  53 - EXT. FRENTE DA CARTOMANTE – DIA Rita entra na cartomante.   CENA 54 – INT. SALA DA CARTOMANTE – DIA As cartas caem, Rita observa atenta, uma delas é a MORTE.   CENA  55 - EXT. FRENTE DA CARTOMANTE – DIA Rita sai da cartomante, está abatida, apavorada.   CENA 56  - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Camilo abre a porta, Rita entra cabisbaixa.   CAMILO O que foi? RITA Eu fui à cartomante. CAMILO Cartomante? De novo, Rita?  RITA Não ria, não ria porque ela me falou que você vai morrer se a gente continuar junto. CAMILO Rita, eu não acredito nessas coisas. RITA Por que que vocês são assim? Será que você não tá vendo? Isso é um aviso, Camilo. Um aviso. CAMILO Rita, a gente vai ficar junto. Independente de cartomante, vidente, macumbeira, entendeu? RITA Eu tenho muito medo de perder você pra sempre. CAMILO O que você vai fazer? RITA O que a cartomante disse. Eu vou me casar com o Vilela.   Rita sai do apartamento de Camilo. Ele fica puto, soca a parede.   Corta para CENA  57 - INT. HOSPITAL – DIA Vilela trabalha e Rita aparece à porta. Ele pensa duas vezes antes de falar. Controla o tom.   VILELA O que que foi, Rita? RITA Eu não tô bem. VILELA O que que você tá sentindo? RITA Tá doendo aqui. Rita aponta o peito, como se fosse angústia.   CENA 58 – INT. HOSPITAL – DIA Vilela examina Rita, mais fazendo carinho do que trabalhando. Ela está carente, gosta.   Corta para CENA 59 - INT. FLAT DE VILELA – NOITE Vilela entra em casa e o local está todo decorado com buquês de flores. Rita está sentada no sofá, abraçada a uma grande caixa de presente.   VILELA Ai que dia... Tô exausto. Ele vai preparar um drinque. VILELA Isso aqui tá parecendo uma floricultura. Alguém morreu? (ri sozinho) Que é isso? RITA Eu marquei a data. VILELA Que data? RITA Do nosso casamento. Semana que vem, tá bom? E eu comprei o vestido também, meu amor. É lindo. Pena que você não pode ver porque dá azar... Você quer ver? Mostra a caixa. VILELA Meu amor, eu gosto muito de você, eu te amo... A gente vai ficar junto, mas sabe aquela história do hospital? Pois é, o assunto ainda não foi resolvido. Levanta, joga a caixa, dá uma decisão. RITA Augusto Vilela, você quer ou não casar comigo? VILELA Eu não entendo por que essa pressa! RITA Olha, eu tô voltando pro meu apartamento. Quando você decidir se quer ou não quer casar, você me liga, tá? Rita sai furiosa. VILELA Volta aqui, Rita! Você anda muito abusada, sabia? Segura o braço dela violentamente. RITA Me larga! Rita bate a porta. Vilela retira um vidro de remédios do bolso e toma umas pílulas.   Corta para CENA  60 - INT. HOSPITAL (ENFERMARIA) – DIA Vilela entra no quarto onde se encontra a menina Juju. Uma enfermeira trabalha. VILELA Pega um soro pra mim. ENFERMEIRA Claro! A enfermeira sai do quarto. Vilela se aproxima da menina, que dorme. Pega o prontuário, observa, pensa, pega uma caneta e escreve nele. A enfermeira volta com o soro. ENFERMEIRA Aqui, senhor. Vilela pega o soro e sai. A enfermeira vai ao prontuário, coloca dois comprimidos na medicação da menina. Depois, checa o papel e coloca mais dois comprimidos. Uma leve passagem de tempo. A menina agora está deitada reta, sem sinais vitais. Outra enfermeira cuida dela. Antonia entra no quarto. Percebe algo errado com a menina. ANTONIA Juju! O que que aconteceu aqui? ENFERMEIRA Não sei, doutora. ANTONIA Alguém medicou essa menina? ENFERMEIRA Que eu saiba não. ANTONIA Por que é que não me ligaram? Onde é que está o prontuário? ENFERMEIRA Logo ali. Antonia pega o prontuário e percebe a alteração de Vilela.   Corta para CENA 61 - INT. FLAT DE VILELA – NOITE Vilela está bêbado, uma garrafa de bebida vazia caída no chão, outra pela metade na mão.   CENA  62 - INT. QUARTO DE RITA – NOITE Rita mexe em seus diários. De repente, encontra o mesmo texto em dias diferentes. Sente isso como premonição, está descontrolada.   CENA 63 - INT. BARZINHO – NOITE Camilo bebe sozinho no balcão de um bar. Não olha para as meninas. Duda chega com uma linda japonesa. Fala com alguns amigos presentes.   DUDA E aí, mermão, beleza? Duda vê Camilo no bar. DUDA Fala, Camilão! Seguinte, vim aqui te apresentar minha futura esposa. CAMILO (para a japonesa) Você tem certeza do que você tá fazendo? Você conhece bem esse cara aí? DUDA Deixa de ser mané, rapá. Ela não entende a nossa língua não. A gente se comunica numa espécie de linguagem do amor. Não é não minha gostosa? Se liga, tá lembrado daquela ruiva lá? Mermão, aquela mulher é a maior macumbeira! Eu tô falando sério. Eu cheguei lá na casa dela, na hora do vamo ver ela começou a olhar pra minha cara e a falar assim: Menino, oriente-se, oriente-se. Olha só o que apareceu na minha vida, Camilão: a japa! Japa é de onde? Do Oriente! CAMILO Vem cá! Chama para um abraço fraterno. Duda corresponde. DUDA (para a japonesa) Dá tchau aqui pro meu amigo, vem aqui dar tchau pra ele. Isso... A japonesa abraça Camilo, mas Duda logo interrompe. CAMILO Um abraço! Boa sorte! DUDA Tá bom, tá bom, desencosta. Acabou! Cuidado porque esse cara aqui é pegador... Pegador, cê entende? Ah, entende, né safada? Aí, mermão, eu vou te falar uma parada: eu te amo cara, tô falando sério. Te amo mesmo. Se deu certo comigo, pode dar certo contigo também... Tomara que você consiga lá essa mulher que te deixou babando. Não fica maus não, vai. Camilo demonstra sua tristeza.   Corta para CENA 64 - EXT. FRENTE DO BRECHÓ – NOITE Camilo caminha e vê o carro de Vilela. O médico está sentado no chão, com a garrafa.   CAMILO Vilela! Vilela! VILELA Que é que tú tá fazendo aqui, cara? CAMILO Eu que te pergunto, cara. VILELA Eu vim pegar a Rita. Pedir desculpa pra ela. Um brinde. Ele bebe e tomba no chão. Camilo ajuda. CAMILO Vilela! Acorda! Esse carro é teu? VILELA É nosso! Corte contínuo Camilo, ao volante, sai com o carro. Vilela ao lado, bêbado.   VILELA Eu amo a Rita! A Rita vai ser minha! O hospital vai ser meu! CAMILO Que é que você tá falando? Camilo aumenta o som, acelera, curtindo o carro do amigo.   Fusão para CENA 65 - EXT. RUAS - NOITE O carro passeia por encostas, penhascos.   STOCK SHOT CENA 66 - EXT. RUAS – AMANHECER O carro de Vilela estaciona.   VILELA Pára, cara, eu preciso vomitar! Camilo pára. Vilela salta e corre para o parapeito. Debruça a começa a vomitar. Camilo chega e vê que se trata de um local alto e perigoso. Camilo ampara a testa do amigo. CAMILO Segura a onda aí, companheiro! Vai lá, Vilela. Vai lá, bota pra fora! Mais uma! De repente, Camilo tem uma idéia maligna. Olha para as pedras, o mar batendo, segura o cinto de Vilela, parece que vai jogar o amigo do penhasco. Ele respira fundo, está prestes a cometer o crime.   INSERT                  Rita despede-se dele no apartamento. RITA Eu vou me casar com o Vilela.   INSERT 2 Camilo recebe choques elétricos.   Volta para Camilo empurra Vilela, mas desiste na hora H. Puxa o corpo do amigo, quase inteiro pendurado. Vilela ainda está atordoado. Nem percebeu o que se passou.   CAMILO Tá bem aí? Vambora.   Corta para CENA 67 – INT. QUARTO DE RITA – DIA Rita está encolhida num canto do quarto, todo desarrumado. O telefone toca insistentemente, mas ela não o atende.   CENA 68 – INT. HOSPITAL – DIA Quem liga para Rita é Antonia. Ela fica preocupada porque a menina não atende ao telefone.   CENA  69 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Camilo traz uma xícara de chá para Vilela, que observa fotos, sentado no chão.   CAMILO Vidão, hein? Toma aí. VILELA Tava precisando, cara. Olha só, encontrei essas fotos. CAMILO Isso é da minha mãe. VILELA Nossos pais, novinhos aqui. É impressionante como a gente acaba seguindo o caminho dos pais... CAMILO Vai ver que é por isso que sou assim, não tenho pai. VILELA Seus pais eram felizes, cara. Você não sabe o que tá falando... CAMILO Ah, Vilela. Você falando de felicidade? Olha as nossas vidas! VILELA Posso te confessar uma coisa, cara? Eu sou um fracassado, cara. Acho que nem conseguir casar eu vou. Quando você tava ali, entre a vida e a morte, o que passava na tua cabeça?   INSERT INT. APARTAMENTO DE KAREN - NOITE Karen abraçada com Camilo, com a arma em seu rosto. KAREN A gente, a gente vai transar... Transar!   Volta para Camilo pensativo.   CAMILO Eu só queria viver. Só isso, viver...   INSERT 2 INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Karen no ouvido de Camilo, a cena continua...     KAREN Transar até morrer... CAMILO Não quero! Camilo levanta jogando a empresária longe. Ele estufa o peito para ela. A mulher aponta a arma, olhos injetados. Camilo a enfrenta pela primeira vez, peito aberto. Encosta o dedo na ponta da arma... Karen ameaça atirar.   Corta para CENA 70 - INT.  QUARTO DE RITA – NOITE À porta de Rita, Antonia bate.   ANTONIA Rita, você taí? Liguei pro seu trabalho, eu sei que você taí. Abre pra gente conversar, vai ser bom pra você! (tempo) Eu vou embora então, mas se precisar me procura, nós somos amigas, lembra? Antonia se afasta e a porta se abre. A médica entra. Rita está sentada encolhida numa poltrona, em nítido surto. RITA Eu fiz outra besteira. ANTONIA Ah não. RITA Eu não tô bem, Toni. Eu não tô nada bem.  ANTONIA Sabe, Rita, eu também fico muito preocupada, às vezes. Mas eu penso bem antes de tomar as decisões. Eu planejo tudo, aí eu me sinto mais confiante, você entende? RITA Eu terminei com o Camilo, Toni... Eu fui na cartomante de novo. Ela me disse que há mais coisas entre o céu e a terra do que eu posso supor... Ela me disse que o Camilo vai morrer. ANTONIA Rita, isso é Shakespeare, não há nada de novo nisso. Qualquer dia desses alguém vai dizer que a vida é uma droga e você precisa cortar os pulsos pra ir pro paraíso! Antonia tira o casaco. Deixa transparecer uma tatuagem nas costas, com dois escorpiões. ANTONIA Rita, vira, isso, respira. (massageia suas costas, aliviando a tensão) Sabe o que que você tá precisando?  RITA Mais massagem. ANTONIA Não. Você tá precisando botar os seus bichos pra fora.   Corta para CENA 71 - INT. BOATE – NOITE Uma boate doidona, música acid, gente estranha. Antonia e Rita dançam no meio da pista sem pudor.   Corte contínuo CENA 72 - INT. BOATE (RECUADO) – NOITE Num recuado da boate, Antonia chega trazendo duas garrafas de bebida. Rita está descansando, parece mais relaxada.   RITA Toni, qual o seu signo? ANTONIA Escorpião, ascendente em gêmeos. RITA Engraçado, não combina com o meu. Antonia mostra as bebidas que acabou de servir, lado a lado. ANTONIA Um é absinto. O outro é uma poção mágica que faz a gente se encontrar com os deuses. RITA Morrer?  ANTONIA Quem sabe? Você pega um e eu pego o outro. Rita embarca no jogo perigoso. Escolhe um copo e sorve. RITA Eu não tô sentindo nada. ANTONIA Você escolheu o absinto. RITA Meu Deus, Toni! E você, você tá bem? Olha pra mim, diz. Você tá bem? ANTONIA Eu já sou uma deusa. Rita não entende. Antonia desmonta e ri. ANTONIA Brincadeirinha, boba! Rita relaxa. Pega a garrafa e bebe pelo gargalo. O líquido escorre pelo pescoço. Antonia observa-a sensual, maquiagem borrada. Antonia estende a mão para enxugar a bebida do pescoço de Rita. Antonia lambe os próprios dedos, Rita percebe a sedução. Antonia avança para ela. Beija seu pescoço, lambe o colo com a bebida. Rita se encolhe no sofá.  ANTONIA Calma, aquela Rita boba morreu, aquela Rita que eu conheci no hospital era uma mentira. Antonia lambe mais... Vai beijar Rita. Antes, detém-se um pouquinho, como que curtindo o momento. E deixa escapar. ANTONIA A cartomante não previu isso? É a frase que chama Rita de volta à realidade. Ela se desvencilha realmente, apavorada, já com o efeito da bebida. RITA A cartomante, meu Deus! A Cartomante! O Camilo! O Camilo! Sai correndo, deixando Antonia sozinha no sofá. A médica recompõe-se e entende que deixou escapar a menina. Antonia vai dançar loucamente no meio do salão.   Corta para CENA 73 - EXT. RUA – NOITE Rita corre desesperada pela rua.   CENA 74 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – NOITE Vilela à porta, pronto para ir embora. Camilo se aproxima.   VILELA Depois eu te devolvo as roupas, cara. CAMILO Mas lavadas, tá? De repente, a porta se abre e Rita entra desesperada. Vê os dois abraçados, empurra-os para surpresa de ambos, tenta proteger Camilo. RITA Não! Não! Você precisa se proteger! Não! VILELA Calma, garota! RITA Ele tem que viver! VILELA O que que você tá falando? Ela grita e Vilela acerta-lhe um tremendo tapa que a joga no sofá. Camilo segura Vilela, empurrando-o para trás. Vai até Rita. CAMILO Calma... Vilela, calma! Rita, ele tá bem. Ele tá bem! RITA O quê que tá acontecendo aqui? VILELA Você bebeu? Que cheiro é esse? Isso é álcool puro! RITA Vocês dois tão bem? CAMILO (olhando nos olhos dela) Claro! Vilela tenta entender a situação, pergunta a Camilo. VILELA Você que chamou ela, né? CAMILO (sem saída) É... Chamei. VILELA Vem, vamos pra casa. Vilela pega Rita e vai saindo. Ela está desmontada, atordoada. Olha para Camilo desesperada, mas ele deixa-a sair com o noivo. Camilo respira.   Corta para CENA 75 -  INT. BARZINHO – NOITE Um bar em fim de expediente, sem clientes, cadeiras viradas, garçom varrendo. Camilo chega.   CAMILO Vê o de sempre. HOMEM DO BAR Qual é o de sempre? CAMILO Mistura alguma coisa com qualquer coisa e finge que é o de sempre. Camilo repara que há um outro cliente, na outra extremidade do balcão. Ternos frouxos, olhar perdido, JUCA ALBUQUERQUE, 45, é a imagem do empresário que está desesperado. JUCA Dá um aqui pra mim também, chefia. O de sempre vai ser o último. CAMILO Companheiro, se for mulher, relaxa porque se fosse pra entender vinha com manual de fábrica. JUCA E quando ela mete uma bala na cabeça? Esse teu manual aí diz alguma coisa?   INSERT INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Karen aparece apontando a arma para Camilo, retomando a cena. Camilo coloca o dedo no cano da arma, desafiando-a JUCA (off) A gente foi numa boate, eu fui ao banheiro e ela saiu. Pegou o carro com alguém, encheu a cara de ecstasy, não trepou não. Simplesmente meteu uma bala na cabeça. Você entende?   Volta para Camilo desconfia que possa ser a empresária.   CAMILO As coisas acontecem e a gente nunca sabe direito o porquê.   INSERT 2 INT. APARTAMENTO DE KAREN – NOITE Karen está morta no chão, atirando contra a própria cabeça. Camilo desesperado com a cena, sai correndo do apartamento. Volta para... JUCA A gente se amava todo dia, cara. Tudo tava perfeito, eu tava feliz. A analista dela diz que o destino costuma dar presentes pra gente. Uns merecem bons presentes, outros não. É por isso que eu não vou esperar, eu vou me dar um presente, é isso... E quer saber como? Com a mesma arma que ela usou. Juca tira uma arma do paletó. Camilo se assusta, levanta. CAMILO Opa, assim não. JUCA Não é o certo? CAMILO Calma. Juca vai andando pra trás, Camilo vai avançando contra ele. JUCA Aí, pode escrever na minha lápide... Juca Ribeiro Albuquerque, desistiu. Desistiu. Paga minha conta, companheiro. CAMILO Eu não vou pagar conta nenhuma!!! Porque eu já pago a minha conta, e ela não é barata não... Ir embora do mundo não é só covardia não; é deixar a dívida pra depois... Se eu fosse você, pagava a sua conta e a da sua mulher, pra ajudar ela um pouco. JUCA Eu não vou pagar nada! Juca vai colocar a arma na cabeça, mas Camilo está perto o suficiente para evitar. Ele dá o bote e retira a arma da mão do homem, que cai em prantos. Camilo o abraça e leva para o bar. CAMILO Calma aí, companheiro. Vê um café aí, esse eu pago. Sabe que eu nunca disse essas coisas pra ninguém? Corta para CENA 76 - SONHO DE RITA Rita está vestida com roupas do século 19, ao lado de Camilo. Vilela aparece com uma arma e atira; Rita está ao lado de Vilela. Camilo aparece e atira neles. Agora, Rita está com Vilela e Camilo. Um vulto aparece e atira neles.   Corta para CENA 77 - INT. APARTAMENTO DE VILELA – DIA Rita acorda assustadíssima. Vilela prepara-se para ir trabalhar. Acode.   VILELA Rita, fica calma! Relaxa. Olha, eu vou trabalhar e não quero que você faça nada, nada! Não saia daqui, ouviu? Vilela sai e deixa Rita apavorada com seu sonho.   Corta para CENA 78 - INT. HOSPITAL (SALA DA DIREÇÃO) – DIA Agenor, o diretor do hospital, Armando, outro diretor, estão sentados à mesa. Vilela sentado no sofá, esperando a notícia da nova nomeação do diretor.   VILELA Então, vamos logo ao que interessa? AGENOR Vamos, é claro que vamos. Antonia! Antonia entra triunfante na sala. Reação de Vilela. AGENOR Queria te apresentar, Armando, a nova diretora da minha clínica. ANTONIA Agenor, muito obrigada pela confiança. Armando, a clínica está em boas mãos. (vai para Vilela) Esse é o relatório do caso da Juliana. Ela está bem agora, apesar da dose extra de calmantes. E, Vilela, você tá despedido. Antonia triunfa sobre o rapaz. Corta para CENA 79 - INT. FLAT DE VILELA – DIA Rita corta o vestido de noiva. Fere-se, o sangue jorra. Rita quebra o apartamento inteiro de Vilela, numa explosão de raiva.   Corta para CENA 80 - INT. HOSPITAL (SALA DOS MÉDICOS) – DIA Vilela está sentado no chão da sala. Toma sua pílula. Acima dele, colocaram a estátua de Cristo novamente.   Corta para CENA 81 - INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – NOITE Antonia está vestida um pouco mais sensual. Em sua frente, Camilo.   ANTONIA Camilo, eu pedi que você viesse aqui porque eu tive pensando na sua alta. CAMILO Doutora, eu nem falo pras pessoas que tenho que vir aqui... A gente não tem mais nada pra conversar, sacô? ANTONIA Pode ser, mas eu tenho uma surpresa pra você.       Ela o circula, o rapaz se assusta. Corta para CENA 82 - INT. FLAT DE VILELA – DIA Vilela caminha pelo flat totalmente destruído.   Corta para CENA 83 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Camilo observa a arma que tirou de Juca. Lembra de Karen segurando a mesma arma. Tocam a campainha. Camilo abre a porta e um bilhete está no chão. Ele pega, fica pensativo.   Corta para CENA 84 - EXT. TELHADO DO PRÉDIO (CENA INICIAL) – DIA Antonia anda pela cobertura do prédio, igual à cena inicial.   ANTONIA (off) Quando eu tenho tempo livre, eu gosto de pensar no que eu posso fazer pra ajudar as pessoas. A empregada dos meus pais tentou se matar três vezes, na quarta, ela conseguiu. Eu a deixei morrer ali mesmo, na minha frente. Enquanto assistia sua vida ir embora, uma pergunta me intrigava. Ela estava mesmo cumprindo o seu destino ou era tudo apenas uma grande coincidência? Afinal de contas, quem tem a última palavra sobre nossas vidas? Bem, esta é a minha história. Corta para CENA 85 - INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Rita está sozinha, sentada no divã. Camilo entra, com o bilhete na mão.   CAMILO Rita, o que que você tá fazendo aqui? Ela corre até ele. RITA Eu só queria me casar. Você é tudo que eu quero, você é tudo que eu quero. Mas eu não sou forte e você também não é forte. Meu Deus, meu Deus. Por que que Deus tá fazendo isso com a gente, por quê?   Vilela aparece na sala. VILELA Eu não acredito nisso. RITA Vilela, a culpa não foi dele. Foi uma cartomante. VILELA Você ia ser meu padrinho de casamento, cara. Eu devia ter deixado você morrer! Vilela agride Camilo, que agride de volta. Eles caem sobre a estante. A arma estava na calça de Camilo e cai no chão. Rita pega. RITA Meu sonho era um aviso. Uma porta localizada no fundo da sala se abre. Todos olham para ela. Um vulto entra na sala. É a cartomante, que tira os óculos, a túnica, o chalé. Na verdade, é Antonia!! ANTONIA O sonho não revelou nada para você? É um desejo inconsciente, só isso. Espanto total dos três. CAMILO Não acredito nisso...   INSERT - FLASH-BACK INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA Rita diz para Antonia. RITA Eu fui numa cartomante e eu fiz uma besteira.   INSERT 2 - FLASH-BACK Rita à porta e Antonia avisando-a ANTONIA Rita, pensa bem antes de fazer qualquer coisa.   INSERT 3 – FLASH-BACK Rita no divã e Antonia ouvindo-a   RITA Eu posso te dar um abraço? ANTONIA Nós somos amigas agora, não somos. É claro que pode! INSERT 4 – FLASH-BACK INT. BOATE – NOITE Antonia quase beijando Rita. ANTONIA A Cartomante não previu isso? Volta para Rita lembrando de todos os momentos em que houve alguma ligação com o fato que acaba de ver – Antonia disfarçada de cartomante. VILELA Antonia, você é sórdida! CAMILO Você manipulou a gente o tempo todo. ANTONIA Eu só ajudei. Vocês poderiam ter evitado tudo. CAMILO Rita, eu te amo. É só isso que eu tenho a dizer. ANTONIA Você não ama nem a você... Você se lembra da noite passada, no meu divã?   INSERT 5 INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – NOITE Antonia agarra, beija e seduz Camilo, transando com ele no divã. Volta para Camilo entregue pela traição.   RITA Olha pra mim e diz que isso é mentira. VILELA Você não é Deus, Antonia. ANTONIA Mas eu sou um presente do destino! Não sou eu quem aperta o gatilho. De repente, Rita está com a arma encostada na cabeça. CAMILO Não, Rita! ANTONIA Rita, você me entende? VILELA Não faça isso, Rita. ANTONIA Eu quero o seu bem! Você tá curada, você vai se libertar! É tudo uma questão de escolha, Rita, lembra? RITA Não!!! Rita desiste de atirar em si mesma, aponta a arma na direção de Antonia e atira. Congela no tiro.   Fade out Fade in   CENA 86 - INT. HOSPITAL (SALA DOS MÉDICOS) – DIA Vilela retira as coisas de seu armário.   VILELA (off) Durante muito tempo, eu me perguntei quem era a Antonia...   INSERT CENA 87 - INT. CASA DE ANTONIA – NOITE Antonia aparece numa festa festejando com Karen e Juca, demonstrando ser amiga da empresária. Fusão para INSERT 2 INT. CONSULTÓRIO DE ANTONIA – DIA As fotos de Antonia em vários momentos de sua vida, em nada demonstrando ser a mulher manipuladora que foi.   Volta para   VILELA (off) ... E eu podia imaginá-la como uma pessoa boa, inteligente, rica... Que em algum momento da vida perdeu o rumo, confundiu tudo e escolheu o lado errado... Acho que no fundo ela é mais uma vítima. Como todos nós. Vilela olha o crucifixo uma última vez e sai.   CENA 88 - EXT. PRAIA – DIA Vilela dirige pela praia.   VILELA (off) Eu continuo não acreditando muito nessa história de destino, apesar de tudo o que aconteceu... Sei que errei com a Juju, e isso vai ficar na minha consciência até que eu me sinta absolvido por mim mesmo... Um dia vou ser o dono do hospital, vou encontrar uma menina linda com quem vou me  casar... E quero ser uma pessoa melhor quando esse dia chegar. Fusão para CENA 89 - INT. APARTAMENTO DE CAMILO – DIA Camilo arruma suas roupas finalmente. Deixa uma rosa e uma carta para a mãe e sai.   CAMILO (off) Esse tempo todo me fez entender que só tem sentido brigar com a pessoa que a gente ama porque a gente pode perdoar. Meu pai foi embora e o passado vai ficar perdido no próprio passado... Eu o perdôo e me perdôo. Mas agora é hora de partir, procurar um Camilo perdido dentro de mim. Eu não sei do futuro e também não quero saber... Afinal, quem tá preparado? Perguntas simples, respostas difíceis.   Fusão para CENA 90 - EXT. RUA MOVIMENTADA – DIA Camilo caminha e mistura-se à multidão.   Fusão para CENA 91 - INT. APARTAMENTO DE RITA – DIA Rita arruma seu pequeno quartinho. Chega à janela  e respira fundo, esperançosa.   RITA (off) Eu cancelei a assinatura do jornal, joguei fora meus diários, minhas maquiagens. Fiquei só com um batonzinho básico, né? Porque ninguém é de ferro. Tem dias que eu acordo linda, noutros um horror... É, mas tudo bem... Talvez eu vá numa outra cartomante, ou faça análise... Não é porque uma louca cruzou meu caminho que vou deixar de acreditar, não é? Afinal, nunca se sabe o que pode acontecer.   Fusão para STOCK SHOTS   CENA 92 - INT. MUSEU – DIA Camilo caminha pelo museu de arte e vê uma réplica em tamanho natural da Vênus de Milo. Seu pensamento perde-se nas lembranças. Neste momento, no fundo do salão, uma jovem entra trazendo um grupo de turistas. É Rita. Ela avista Camilo, caminha até ele. A paixão ainda é a mesma. Eles olham-se, tocam-se e beijam-se. Mais no fundo do salão ainda, Vilela está tomando um café, alheio à presença deles.   Fusão para CENA 93 - INT. SALA – DIA Vitória, uma bela jovem, aparência intelectual, está sentada num sofá.   VITÓRIA A gente não pode ter medo da vida, nem da morte... Afinal, nunca vai saber mesmo se o destino existe ou se a gente é que faz ele acontecer. Por isso é que eu amo estudar psicologia, filosofia, física, religião. Desafiar as pessoas a enfrentarem as suas próprias fraquezas, ajudá-las a serem melhores e a encontrarem felicidade dentro delas mesmas... É isso que eu quero, ajudar...  Eu esqueci de me apresentar, meu nome é Vitória e eu tô muito feliz de estar aqui... Sei que você vai me ajudar... Porque não existe salvação espiritual nem moral, se a gente não ajudar o próximo, você não acha? Antonia é a interlocutora da jovem. Está mudada, de óculos, cabelos compridos. Antonia dá um sorriso de prazer, que sabemos ser de loucura. Olha para a jovem, ansiosa por uma resposta.   ANTONIA Acho.   Fade out final Agradecimentos às empresas que fizeram o filme acontecer Aos co-produtores Labocine, FX Sound, CG Produções e Califórnia Filmes; Aos patrocinadores Banespa, Heineken, Rio Tinto Brasil, Correios, Eletrobrás, Computer Associates, Audi; Aos apoiadores Galena Marketing, Globo FM, Fnac, Tibet Filmes, Edson Freitas Coiffeur, Outback; além da Globo Filmes e Central Globo de Comunicação da TV Globo. Ao Banco Máxima, que emitiu os certificados. Elenco Silvia Pfeifer Dr. Antonia Maria dos Anjos Luigi Baricelli Camilo Deborah Secco Rita Ilya São Paulo Dr. Augusto Vilela Giovanna Antonelli Karen Albuquerque Mel Lisboa Vitória Silvio Guindane Duda Christiane Alves Simone Ronnie Marruda Juca Ribeiro de Albuquerque Ovídio Abreu Otílio Luciana Fregolente Atendente hospital Henrique Taxmann Dr. João Helio Leite Dr. Agenor Jaime Leibovitch Dr. Armando Sabrina Sato Namorada japonesa Juliana Jardim Namorada ruiva Danita Loura boate Ana Isabel Promoter Sandra Wajnberg Cliente Brechó Sabrina Lemos Enfermeira 1 Helena Hesperandio Enfermeira 2 Ana Letícia Menina Juju Roberto Matos Corretor Marcelo Farias Homem do bar Bruna Pietronave Morena boate Ficha Técnica Roteiro Wagner de Assis Direção Wagner de Assis e Pablo Uranga Colaboração roteiro Laura Malin e Pablo Uranga Assist. de direção Rafael Salgado 2º assist. de direção Jazmin Castillo Estagiário direção Alex Fabiani Continuísta Fernanda Colin Preparação elenco Márcia Tannuri Preparação elenco Seqüência Karen Rossela Trabanco Produção de elenco secundário Estela Albani Produtor Carlos Guimarães de Matos Jr. Prod. executivos Carlos Guimarães de Matos Jr. e Wagner de Assis Gerente produção Flávio Leandro Trilha sonora Original Leoni Trilha sonora Adicional Plínio Gomes Peças clássicas Humberto Barros Produção musical Wagner de Assis e Pablo Uranga Assist. produção Mitzzi Carvalho Djalma Santos Letícia Teixeira Aganju Cardoso Estagiário de produção Bernardo Antunes Boy de Set Miele Ivan Fernandes Administr. financeira Ângela Rizzo Contabilidade BNC Informática Assess. imprensa Leonardo Jurassek Assess. marketing e Planejamento estratégico Richard Ávila Galena Marketing Campanha e ident. visual Central Globo de Comunicação Produção/SP Guilherme França Fabio Zuanon Diretor de fotografia Rodrigo Monte Operador de câmera Rodrigo Monte 1º assist. câmera Alexandre Ramos 2º assist. câmera Lula Cerri 3º assist. câmera Cindy May Operador Steady Cam Fabrício Tadeu Vídeo-Assistant Tarcísio Junior Foto Still Cristiana Isidoro Foto do pôster Rodrigo Lopes Eletricista-chefe César Silva Assistente de elétrica Marcelinho Maquinista-chefe Teko Assistente de maquinaria Ronaldo Estag. maq.-elétrica D. Jota Técnico de som direto George Saldanha Microfonista Joaquim Santana Diretor de arte Arturo Uranga Story Board Arturo Uranga e Candy Uranga Produção de arte Ana Perin Assistente Rita Porto e Melissa Buest Contra-regra Farinha Gilberto Santos Sílvio Maia Aderecistas Cláudia Taylor e Lília Saraiva Pintor Luciano Guinelli Figurinista Carla Garan e Tatiana Menezes Assistente Adriana Trivelato Estagiária Rosemary Oliveira Camareira/costureira 1 Fátima Félix Costureiro 2 Alex do Brasil Chefe de maquiagem Helena Cabelo Débora Simão Edson Freitas Coifeur Stunt/doublé Felipe Aquino Armas Sérgio Farjala Produção de finalização Wagner de Assis e Pablo Uranga Revelação negativos Casablanca Finalização de imagem Labocine/ Cinegrafika Cinema Operador de Smoke Zeca Daniel Equipe técnica Carlos Becquet Rafael Gouvêa Leonardo Puppin Telecine Marcio Pasqualine Finalizaçao de som FX Sound Sound designer Osvaldo Vacca Supervisão de Som Victoria Zalokar Edição de som Ruben Perretta Del Missier Mixagem/op. Foley/ Efeitos sonoros especiais Jorge Gutierrez Artista de Foley Jorge Longo Transcr. negativo ótico Megacolor Cinecolor – SP Consultor Dolby Digital Mario Faucher Motoristas Joel/Altair/Paulo Severo/Nilson Elmo/Jorge/ Edinho/Edson dos Anjos Índice Apresentação – Hubert Alquéres 5 Prefácio I – Silvia Pfeifer 15 Prefácio II – Vivian Perl 21 Introdução – Wagner de Assis 25 Parte I A Primeira Carta 43 Novas Cartas 63 Os Personagens 77 Story Line 99 Roteiro Light 109 Todos em Offs 117 Antonia 129 A Seringa Virou Comprimido 133 As Previsões Erradas 143 Dirigindo, Produzindo, Editando... Filmando! 177 Parte II O Roteiro 189 Elenco 309 Ficha Técnica 311 Crédito das fotografias Todas as fotografias foram fornecidas pela produção do filme. Still: Cristiana Isidoro Coleção Aplauso Perfil Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Especial Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Gloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Cinema Brasil Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Cabra-Cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Casa de Meninas Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Dois Córregos Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Teatro Brasil Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce - Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso - Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Ciência e Tecnologia Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Os livros da coleção Aplauso podem ser encontrados nas livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/lojavirtual ctp. 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