Djalma Limongi Batista Livre Pensador Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Cinema Brasil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistente Operacional Andressa Veronesi Revisão Ortográfica Wilson Ryoji Imoto Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Djalma Limongi Batista Livre Pensador por Marcel Nadale São Paulo - 2005 Djalma Limongi Batista Livre Pensador por Marcel Nadale CULTURA FUNDAÇÃO PADRE ANCHIETA IMPRENSA OFICIAL São Paulo - 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação elaborado pela Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Nadale, Marcel Djalma Limongi Batista : livre pensador/por Marcel Nadale. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005. 216 p. : il. – (Coleção aplauso. Série cinema Brasil/coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2. (obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-340-1. (Imprensa Oficial) 1. Cinema – Produtores e diretores 2. Cineastas – Brasil 3. Cinema – Brasil – História 4. Batista, Djalma Limongi – Biografia I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. CDD 791.430 981 Índice para catálogo sistemático: 1. Cineastas brasileiros : Biografia 791.430.981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Agradecimentos   Aos meus pais, que sempre acreditaram em mim. A Deus, em quem eu acredito. Introdução   O sobrado de Djalma Limongi Batista, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, é guardado por um portão de madeira azul, baixo, desses que não intimidam nenhum invasor. Ele costuma dizer que a vizinhança é boa, acrescentando que duas casas para o lado, mora a cineasta Tata Amaral e, ali atrás, a Suzana (Amaral), suas colegas de ofício. Talvez a despreocupação com a segurança venha da infância em Manaus, quando não havia ladrão e a gente passava a noite no pátio, vendo as estrelas com meu pai. Manter o portãozinho tímido e frágil, porém, parece uma decisão natural, quase inconsciente, para um cineasta que tem muito a preservar, mas muito pouco a esconder. Djalma surgiu no universo cinematográfico escancarando seus próprios desejos no premiado curta Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora, de 1968. Não se trata apenas do pioneiro registro de produção da Escola de Comunicações e Artes da USP, mas também do primeiro filme nacional a abordar a homossexualidade com seriedade e respeito. Foi assim que, a partir de então, o jovem cineasta construiu sua carreira: recortando sua auto-imagem em película fílmica. Todas as obras seguintes também receberam seu sopro divino da criação: aquela parcela que apenas o bom diretor de cinema sabe deixar de si mesmo, seja como profissional, seja como ser humano. Mesmo longe das câmeras, Djalma sempre soube guardar um pouco de sua personalidade e sua história. Quando foi informado de que seria tema de uma biografia ricamente ilustrada, anunciou entusiasmado que tinha caixas e mais caixas de fotos, cartas e recortes antigos. Mas, assim como não gosta de rever seus filmes, emendou logo que jamais as abria. Estavam mofando, guardadas para resguardá-lo. Djalma revirou esses e outros baús de sua memória em uma série de entrevistas regadas ao chá mais solícito do mundo e devidamente testemunhadas por sua cadelinha poodle. A serelepe Iaiá, batizada parcialmente em homenagem à dona de uma das cadeias de cinema de Manaus que ele freqüentava quando criança, é sua única companhia no sobrado desde a morte de seu irmão e maior parceiro, Gualter, em 1993. Pelo leve sotaque, Djalma comprova que, como diz, no fundo jamais abandonou sua cidade natal. E, como bom nortista, é daqueles conversadores inveterados, que falam alto, riem fácil e não medem a palavra. Abusa de adjetivos, que emprega fartamente para descrever os amigos, as paixões e as aventuras. Até oralmente revela sua queda pelo cinematográfico, pelo espetacular dos superlativos e pelo suspense dos advérbios bem colocados. Djalma tem motivos de sobra para descrever sua vida, involuntariamente, como em um roteiro hollywoodiano. Ao lado do pai, uma sumidade intelectual do Amazonas, viu a inauguração de Brasília, para onde depois se mudou, ainda jovem estudante. Em São Paulo, participou da primeira turma de Cinema da ECA, onde realizou mais dois curtas além do polêmico Um Clássico. Sofreu com a ditadura militar e, na Europa, presenciou o florescer de uma outra revolução muito mais duradoura – aquela sexual e comportamental promovida pelo movimento hippie. Sobreviveu ao terror da Aids e entrou nos anos 90 aclamado como diretor de teatro, com Calígula. No meio disso tudo, ainda teve tempo de rodar Asa Branca, Brasa Adormecida e Bocage – obras exclusivas de suas verdades e anseios e, como tais, sem qualquer paralelo na cinematografia brasileira. Djalma, entretanto, prefere acreditar que cumpriu a sina que ele mesmo vaticinou em O Mito da Competição do Sul, seu segundo curta-metragem, a respeito de um cineasta que não consegue concretizar seus projetos. Até estranha que utilizem o termo carreira para falar de sua espaçada filmografia, com apenas três longas. Mas, ainda que não saiba enxergar o valor imensurável de suas contribuições passadas com a mesma visão que hoje a crítica lhe dedica, Djalma, o maior cineasta gay do Brasil, é um homem de fé inabalável no futuro. Investe, sem titubear, em qualquer oportunidade que possa colocá-lo atrás das câmaras – seu lugar favorito no mundo. Este livro busca registrar o passado com o qual Djalma vive às turras porque acredita que ele é grande demais para caber nas meras caixas amareladas guardadas sobre o armário de seu quarto. E porque acredita que, inversamente, sua filmografia não é pequena demais por conter só três títulos. Mas, principalmente, porque acredita na premonição que outro pioneiro amazonense na sétima arte, Silvino Santos, fez a respeito de Djalma, no final dos anos 60. Silvino identificou o então jovem Djalma em meio a um grupo de amigos que foram a sua casa rodar um documentário. Do alto de sua experiência, como cineasta e como espírita, afirmou antes mesmo que o garoto pudesse se apresentar: De todo mundo aqui, só você vai se tornar diretor de cinema de verdade. E dos bons. Capítulo I 1. Manaus, Anos 50 Lembro quando, em 1959, E Deus Criou a Mulher (Et Dieu Créa la Femme, 56, de Roger Vadim) estreou em Manaus. Eu tinha doze anos. Não se falava de outra coisa na cidade. Um amigo do meu pai havia visto o filme no Rio de Janeiro e sua esposa retornara horrorizada: Ela fica nua sem pudor! É nojenta! – este foi bem o termo que usava para se referir a Brigitte Bardot. Eu e meus irmãos velhos, Gualter e Gilma, loucos para ver aquele escândalo, pedimos auxílio ao nosso mon oncle tio Cazuza. Prontamente chegamos ao Cine Polytheama, respeitosamente acom- panhados, inclusive, pela nossa tia Nícea. O porteiro do cinema logo reconheceu a gente, freqüentadores assíduos, e avisou: Esses meninos não podem entrar, eles não cumprem a censura. Como não? Eles têm quinze anos!, respondeu meu tio, achando que a idade mínima era de quatorze. Mas o filme é proibido para menores de dezoito anos!, rebateu o porteiro. Meu tio, sempre cúmplice, não titubeou: Então eles têm dezenove!. E vimos o filme. ... E Deus criou o cinema! Mais do que ilustrar a minha paixão desde criança pelo cinema, esta anedota explica muito da família que me criou e da Manaus em que cresci. A cidade ignorava a censura federal e os oito cinemas locais, quatro de cada cadeia, permaneciam sempre de portas abertas para todos – uma das vantagens de se morar numa cidadezinha de 150 mil habitantes, cercada pela selva amazônica por todos os lados, sob um sol e calor infernais. O ciclo da borracha já havia se extinguido, deixando como herança os casarões portugueses. Manaus era quase uma aldeia, estagnada no tempo e isolada no espaço – sem estradas que não fossem os grandes rios, sem luz elétrica nas casas, sem televisão. Apenas os aviões, que pousavam lá duas ou três vezes por semana, traziam sinais do mundo exterior, como os enormes rolos de filmes que estreavam todo dia. A literatura era, para nós, a chave do mundo. Mas o cinema era as portas do século 20. O primeiro filme que vi, me contam, foi Aviso aos Navegantes (Brasil, 1950, de Watson Macedo). Diziam que eu chorava muito. Mas o primeiro do qual tenho memória, talvez por ser colorido, talvez por ser desenho animado, foi Bambi, de Disney. De qualquer maneira, sempre tive o hábito de ir ao cinema desde muito cedo. Minha avó materna – Filomena Demasi Limongi – pertencente a uma das quatro famílias italianas que migraram da Basilicata, na Itália, para Manaus  –  sempre nos levava às matinês. Com ela, mesmo sem saber, assisti a todo o neo-realismo italiano. Ela adorava. Meu pai, Djalma da Cunha Batista, um médico muito popular e querido na cidade, verdadeiro visionário, um ecologista antes mesmo de se inventar o termo, também amava o cinema. Muitas vezes contratava um projecionista para passar filmes lá em casa mesmo, com lotação esgotada de primos, amigos, vizinhos. Seus oito filhos herdaram essa paixão, mas nenhum tanto quanto eu e Gualter. Ele era o mais velho dos homens, batizado como meu avô. Sou o segundo e recebi o mesmo nome do meu pai (até hoje tenho amigos que visitam Manaus e acham que a principal avenida da cidade é uma homenagem a mim!). Quase viro Júnior, mas fui salvo a tempo por meu rigoroso e temido avô Gualter, que impôs que eu fosse registrado com o Limongi de minha mãe, Gilda Limongi Batista. Depois vieram José Roberto e Cláudio. Entre as meninas, Gilma, Marilena, Edith e Francisca. Todos – como bons nortistas – com seus respectivos apelidos, muitos apelidos pelos quais nos tratávamos no cotidiano. O meu sempre foi Nani. Não preciso dizer que morava numa casa, no mínimo, animadíssima. Foi o cinema que uniu Gualter e eu, mais que os outros irmãos. Íamos praticamente todo dia ao cinema, às vezes matando aula de datilografia para pegarmos duas ou três sessões seguidas. Quando bem crianças, eram as empregadas domésticas que nos levavam para assistir aos musicais da Atlântida, que nós adorávamos. Para horror do meu pai, que não admitia que os atores falassem português errado ou, pior ainda, que Oscarito e Grande Otelo aparecessem vestidos de mulher. Devorávamos todo estilo e gênero de filme, e logo a família começou a perceber que havia ali dois irrecuperáveis monstrinhos cinematográficos... Acordávamos a casa toda, em plena sesta (naquela época, havia sesta obrigatória no norte), discutindo quem sabia mais sobre filmes, diretores, atores – com nossos caderninhos de perguntas e respostas e nossos recortes das revistas Cinelândia e Cinemascope (guardo alguns encadernados até hoje). Até a vovó Filomena, que alimentara aquele nosso hábito desde cedo, uma vez me viu encenar uma morte superdramática em uma brincadeira de mocinho e bandido e vaticinou: Excesso de cinema! Gualter e eu éramos muito parecidos. Gildowisky (gozação carinhosa a nossa mãe, como se ela comandasse a família como uma inabalável camarada russa) nos vestia igual e todo mundo perguntava se éramos gêmeos. Só depois, na adolescência, meu irmão ficou pequeno e eu espichei como varapau para meu 1,90 m de altura. Fui amorenando e ele continuou branquinho, lindo, bem italianinho. Mas, no cinema, logo tivemos gostos diferentes. Ele era fã no 1 de Jeanne Moreau; eu gostava mesmo era da Marilyn Monroe. Eu me concentrava nas tramas; ele sempre foi muito visual, viajava nas cores e nos detalhes do cenário, na fotografia. Em pleno filme, muitas vezes até se esquecia da história, cutucava minhas irmãs e perguntava: O que está acontecendo? Elas caíam na gargalhada. E assim ele cresceu para se tornar um grande artista plástico e o diretor de fotografia de nossos filmes. Foi meu maior parceiro e amigo, toda a vida. E a nossa cumplicidade surgiu aí: adorando os filmes de suspense, comédias e musicais de Hollywood; Cleópatra e todos os péplons (fitas de halterofilistas /gladiadores) da Cinecittà (destes só eu gostava!) e descobrindo a Nouvelle Vague com Quem Matou Leda? (À Double Tour, 59, de Claude Chabrol); vendo Antonioni, Fellini, Visconti; acompanhando a formação do cinema brasileiro pela Vera Cruz de O Cangaceiro (Brasil, 53, de Lima Barreto), até surgir A Grande Feira (Brasil, 61,de Roberto Pires) do ciclo baiano, depois o Cinema Novo... Eu só nunca tive saco para filme de bangue-bangue.   2. O Pai Meu pai também foi uma figura essencial na minha infância e adolescência. Pode-se dizer muita coisa sobre ele: que era cientista, médico, intelectual; que escrevia divinamente; que foi fundador do primeiro dispensário de tuberculose da Amazônia, fundador e presidente por dez anos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (o seu adorado Inpa), etc. Mas, sobretudo, ele era uma pessoa fantástica. Não se deixe enganar pela reação dele às chanchadas: ele era muito liberal. Mantinha uma biblioteca enorme em casa e todos nós éramos convidados a escolher qual livro quiséssemos. Nunca você o ouviria dizer: Este livro não é para a sua idade. A Gilma, por exemplo, estudava em colégio de freiras e levava Lolita, do Nabokov, ou Capitães de Areia, do Jorge Amado, na bolsa. Era um escândalo. O Djalmão também tinha uma habilidade linda, que eu acho que herdei nos meus filmes, que era a de transformar todos os lugares onde estava em um ambiente mágico. Umas duas ou três vezes por ano ele nos levava para viajar – primeiro quatro filhos, depois os outros quatro, porque todos juntos ele não agüentava. Íamos para Belém e ficávamos hospedados dentro do imenso parque do Museu Emílio Goeldi, que fazia parte do Inpa. Ele ia nos mostrando os animais, explicando cada detalhe e, quando se trancava para trabalhar em alguma sala, nós ficávamos soltos em pleno museu, passeando por corredores escondidos, zanzando entre os pesquisadores, mexendo com os bichos. Era como se fosse um sonho deslumbrante. Lá em Belém, ele também nos levava aos cinemas. Para mim e para o Gualter, era o paraíso, aqueles cinemas enormes, modernos, chiques, com ar condicionado. Só perdiam para os da Capital Federal, quando acompanhávamos meu pai ao Rio, em suas angustiantes viagens para requisitar verbas junto ao Conselho Nacional de Pesquisa para o programa de bolsistas do Inpa que ele criara. Também íamos muito ao teatro e nas casas de colegas intelectuais do meu pai. Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro, Aurélio Buarque de Hollanda – vale a pena esclarecer que era Hollanda com dois l antes da reforma ortográfica de 1943; e agora é Holanda? – Noel Nütels, Paulo Vanzollini, eram todos do círculo do meu pai. Visitavam a gente em Manaus também. Numa de suas viagens para os EUA, para tratar um problema nos ossos, ele comprou uma câmera de cinema para mim e para o Gualter. Era daquelas bem simplesinhas, 8 mm, a corda. Mas foi com ela que, em 1960, depois de muito ensaiar com os filminhos familiares, nós demos o grande passo e fizemos nosso primeiro curta, As Letras. A gente até tentou copiar aquela abertura de Um Corpo que Cai (Vertigo, 58, de Alfred Hitchcock) –  que  adorávamos! Era um barato. Desde cedo, então, eu sabia que queria ser diretor de cinema. O Gualter não, mudava sempre, queria ser cineasta, pintor, arquiteto. Meu pai nunca censurou nossas vocações. Nem mesmo exigiu que algum dos filhos seguisse sua carreira (e, hoje em dia, eu até gostaria que ele tivesse exigido, porque fazer cinema no Brasil é tão difícil...). Mas foi como se ele tivesse desligado a gente do universo da ciência. E, ao mesmo tempo, projetasse sobre nós esse fascínio que ele tinha pelo cinema. Às vezes ele perdia a paciência com nossa mania. Foi quando nos levou ao Hotel Amazonas, o único hotel muito chic de Manaus, para conhecermos um intelectual seu amigo, Cláudio Araújo Lima, que, embora amazonense, vivia no Rio. E, eis que no bar do hotel deparamos com Françoise Dorléac, Jean-Paul Belmondo e toda a equipe do filme O Homem do Rio (L´Homme de Rio, 64, de Philippe de Broca), que estava sendo rodado no Brasil. É claro que nem olhamos para o amigo de meu pai. E ele ficou tão, mas tão bravo, que acho que poucas vezes levamos um carão tão raivoso quanto aquele à saída do hotel. O Márcio estava conosco, e é engraçado que o Márcio, hoje, ocupa a cadeira Cláudio Araújo Lima na Academia Amazonense de Letras. E, durante a década de 70, trabalhei muito, escolhido pelo próprio Cláudio, um livro seu sobre Plácido de Castro (o grande herói acreano), adaptando-o para o cinema. Projeto que foi e voltou inúmeras vezes para a Embrafilme, e nunca o filmei. Por causa de suas idéias avançadas, seu jeito liberal, meu pai sempre foi tido como comunista. Era uma pessoa muito combativa, mas, em política, não partidário, sequer filiado ao PC. Tampouco se importava com o rótulo. Minha mãe, sim, tinha medo, a repressão da Era Vargas não tinha piedade. Uma vez, o Censo foi lá em casa e encheu meu pai de perguntas. Minha mãe, ao lado, ficou só escutando; até que perguntaram qual era a religião dele. E meu pai, que era ateu mas também não tinha problemas com o clero, ponderou e respondeu: livre pensador. Minha mãe quase desmaiou. Para ela, era o mesmo que colocar uma faixa do Partido Comunista na porta de casa. Eu, por outro lado, achei o máximo. Livre pensador. Se tivesse que ser qualquer coisa na vida, eu gostaria de ser um livre pensador. 3. A Escola Meu pai não era religioso, mas isso não o impediu de nos colocar nas melhores escolas – fossem elas católicas ou não. Primeiro, eu freqüentei o Instituto Christus, que era pra lá de vanguarda, uma coisa bem Piaget mesmo. As amigas da minha mãe ficavam chocadas. Como vocês deixam seus filhos naquele lugar? Os professores são desregrados e as crianças voltam todas sujas! E é claro que fomos estudar lá, porque a gente fazia o que bem queria. Meu pai dava a maior corda. O ginásio, porém, eu fui fazer no Dom Bosco, um colégio salesiano. A transição só não foi tão difícil porque, apesar da linha dura, já havia lá um clero tendendo mais para Concílio Vaticano II. Entre eles, o Padre Hermano Schilp, um alemão muito culto que nos ajudou a fundar um cineclube no colégio, atrelado ao Grupo de Estudos Cinematográficos do Amazonas, que começava a existir em Manaus. Ele também gostava de cinema, mas não podia ir com tanta freqüência porque toda a cidade comentava. Uma vez teve a ousadia de ver A Doce Vida (La Dolce Vita, 60, de Federico Fellini), e foi um qüiproquó... Assim, com o cineclube funcionando dentro do colégio mesmo, ele podia manter-se atualizado. Foi por meio do cineclube que eu e Gualter conhecemos Márcio Souza, amigo de longa data, que nos acompanharia em nossa aventura por Brasília e São Paulo. Também se tornou cineasta e dramaturgo, além de escritor consagrado. Ele era colega de sala do Gualter e se dava superbem com meu pai. Tinham um humor muito parecido, adoravam gozar e desafiar um ao outro. Mas o cinema também me meteu em confusão com os padres. Havia no pátio do Dom Bosco um mural que, a cada semana, era decorado por uma das séries. Os meus, claro, eram sempre sobre películas, atores, Hollywood, e faziam o maior sucesso. Quando Os Cafajestes (Brasil, 62, de Ruy Guerra) estreou no Rio de Janeiro, eu decidi falar sobre o filme, mesmo sem tê-lo visto. E afixei aquela foto célebre da Norma Bengell fumando na praia, com o Jece Valadão deitado ao fundo. E, do cigarro dela, fiz saírem umas bolhas de papel colorido, que iam aumentando, aumentando... Mal sabia eu que aquilo, na verdade, era um cigarro de maconha. Causou sensação. Todo mundo veio ver. Ficou psicodélico, pura imaginação de moleque, mas os padres não quiseram nem saber. Até hoje não esqueço o Padre Conselheiro, um calabrês (da Calábria mesmo!), abrindo o mural e rasgando tudo. Fui advertido, mas, tempos depois, aprontei outra, ainda involuntariamente: homenageei a minha musa Marilyn Monroe quando ela se suicidou, em 1962. E, pra mim, desde aquela época, a Marilyn encarnava o cinema, era o próprio cinema. Aí, os padres radicalizaram: nunca mais pude fazer o mural. Era a primeira de muitas experiências que eu teria, na minha vida, com a censura – de todos os tipos e origens. Quase fui expulso do Dom Bosco por causa de Marilyn Monroe! Só abrandaram a punição porque os padres, no fundo, tinham muito apreço e algum medo do meu pai. Não só porque ele era popular, mas porque ele nunca cobrava os exames para o clero no laboratório clínico que mantinha, àquela altura o mais avançado da região, e que até hoje é o sustento da minha família. Uma vez, um padre desavisado impediu meu pai de ser padrinho no batismo de um sobrinho dele, acusando-o de comunista na porta da igreja. Veio até o arcebispo de Manaus pedir desculpas depois. Mas aquilo sempre o marcou profundamente. 4. Brasília, Anos 60   Quando o Gualter terminou o chamado Científico, eu ainda estava no terceiro ano do Clássico, no Colégio Estadual do Amazonas. Era um tempo maravilhoso, com muitos amigos e muito a se aprender. Tinha até aulas de grego clássico! Eu e minha colega de sala, Helenice Garcia, sabíamos de cor a carta que Jeanne Moreau lia na seqüência final de A Noite (La Notte, 61, de Michelangelo Antonioni). Foi quando meu pai nos levou em uma viagem, junto com a Marilena e a Edith. Fomos para Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, e ele nos avisou: tínhamos de escolher em qual das três cidades queríamos fazer faculdade. Nós já havíamos conhecido Brasília antes, na inauguração, uma das muitas viagens familiares inesquecíveis. Brilha na minha memória. Desta vez, quando retornamos, a cidade já tinha quatro anos – estávamos a poucas semanas do golpe de 1964. A Universidade de Brasília, recém-inaugurada, tentava criar um verdadeiro pólo de inteligência, não só para o Brasil como para a América Latina. Tudo era novo, esperançoso e belo – o que nos fascinava. E todos os amigos do meu pai estavam lá: Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira foram os fundadores; o Eduardo Galvão já chefiava o Instituto das Ciências Humanas; a esposa dele, Dona Clara Galvão, chefiava a Biblioteca... Havia ainda o Oscar Niemeyer ensinando Arquitetura, o Cláudio Santoro na música, Salmeron na física, e muito mais. Tudo aglutinava lá. Mesmo assim, meu pai fez um esforço para que escolhêssemos São Paulo. Ele amava São Paulo. Considerava o centro do Brasil desenvolvido. Ao chegar aqui, assistimos a várias peças que nos marcaram muito, como Os Pequenos Burgueses, no Teatro Oficina, e Arena Contra Zumbi, pelo Teatro de Arena. Depois, no Rio, ainda vimos Um Bonde Chamado Desejo, do Tennessee Wiliams, e Descalços no Parque, com uma atriz que já curtíamos dos filmes, a Helena Ignez.  Vi meu primeiro desfile de escola de samba, o da Mangueira; e, participei do famoso comício da Central do Brasil, com o qual o Presidente João Goulart selou sua (nossa) má sorte, apavorando a direita do País e a CIA dos Estados Unidos. Mas eu e Gualter já havíamos tomado nossa decisão. Se tínhamos de escolher, íamos para Brasília. Mudamos para o Plano Piloto mesmo, na W3, um quartinho alugado. A Asa Norte quase não existia, com exceção do conjunto habitacional da universidade. O resto era praticamente faroeste. Tinha uma coisa árida, vermelha, era lindo. Mas mesmo assim, claro, era um ambiente totalmente diferente da minha Macondo natal. Foi difícil me acostumar. Às vezes, no fundo, eu acho que eu nunca saí de lá. É como a vila de Brigadoon do filme A Lenda dos Beijos Perdidos (Brigadoon, 54, de Vincente Minnelli), a história de uma aldeia escocesa isolada que só existe uma vez por século)... Nunca deixei Manaus de verdade. Fui completar o terceiro ano do Clássico no Ciem, o Centro Integrado de Ensino Médio, já dentro do campus da universidade. A estrutura do ensino de lá também era revolucionária, avançada, ligada ao anterior governo de esquerda. Já procurava nos encaminhar para as carreiras universitárias, sem vestibular. Estudávamos todo dia das 7h às 18h, com  pausa  de duas horas para o almoço, que eu gastava na biblioteca. Como a minha turma era pequena, só com oito alunos, e o convívio era intenso, logo ficamos muito amigos. Vivíamos num clima de efervescência pré-68, que já pairava no ar. A gente pintou e bordou tanto que eu acho que é por isso que nos anos seguintes aboliram o curso Clássico lá. Fomos os únicos do famoso Ciem da UnB. Para o meu irmão, as coisas não foram tão boas. Ele tentou passar em Arquitetura e não conseguiu. Começou a estudar pintura no ateliê do Glênio Bianchetti, que viu o trabalho dele e adorou. Mas Gualter nunca se adaptou, seu estilo nunca foi aceito. Falaram tanta coisa que ele nunca mais voltou a pintar. Só retornou às tintas uns três anos antes de morrer. Acho que na vida logo se aprende, na marra, que tudo é uma faca de dois gumes: na UnB estava reunido o máximo do Brasil, mas, ao mesmo tempo, era um povo muito antipático e esnobe, forçando a barra para passar-se como elite. E nós vínhamos de uma cidade provinciana, fechada, ainda que tivéssemos tido uma educação muito culta. Foi duro. Ainda assim, eu viveria em Brasília um dos melhores anos da minha vida. Já estava tendo aula com grandes mestres, como Paulo Emílio Salles Gomes, Nelson Pereira dos Santos, Jean-Claude Bernardet e a esposa dele, Lucila Bernardet. Eu me lembro que a Lucila se vestia de maneira européia, que impressionava aos meus colegas e a mim; o Nelson era uma doçura, mas nos deu poucas aulas; e o Paulo Emílio era o mais popular, ídolo das multidões. Toda quinta, na Escola-Parque, ele projetava grandes clássicos do cinema. Ele era um verdadeiro showman, um charme só, todo mundo morria de rir com seus comentários. Era muito aplaudido. Foi quando começou a minha formação cinematográfica codificada, digamos assim. Porque, de repertório, minha formação foi toda mesmo em Manaus. Só que em Brasília eu entrei em contato com o Cinema Novo. E o Jean-Claude esmiuçava aqueles filmes para nós. Foram aulas fundamentais para compreender a escrita cinematográfica. Tudo que é bom, porém, dura pouco. No final de 1965, o Presidente Castelo Branco, que odiava Darcy Ribeiro e toda a universidade, deu um jeito de colocar um interventor do Ministério da Educação. O corpo docente reagiu imediatamente: em uma assembléia catastrófica, eles se demitiram em massa. E Castelo Branco – o Carcará – simplesmente assinou a carta de demissão coletiva e fechou a UnB. Foi um choque muito grande para mim. Além disso, foi um dos momentos em que tive que fazer uma das mais importantes escolhas da minha vida. 5. Entre Berkeley e São Paulo   Eu demorei a acreditar. Meu pai, quando soube da notícia, veio imediatamente para Brasília. Ele tinha uma proposta para mim. Nos encontramos na famigerada Pizzaria Kasebre e ele me explicou que um colega cientista de Berkeley, na Califórnia, o havia visitado em Manaus. A universidade estava montando um curso de Cinema e ele veio com as brochuras, disposto a me oferecer uma vaga. A chance para estudar cinema nos EUA! Numa incrível coincidência, Paulo Emílio, Jean-Claude e Lucila também estavam no Kasebre naquela noite. Foi a primeira vez que meu pai os conheceu. E eles me chamaram à mesa e me apresentaram outra alternativa: pretendiam voltar a São Paulo e montar um curso de Cinema na USP. Ou seja, as duas opções surgiram praticamente no mesmo instante, como se eu tivesse que definir, ali, o rumo do resto da minha vida. E eu... Fiz a maior besteira da minha vida! Eu era fascinado pelo Paulo Emílio. Mais importante ainda: eu era fascinado pelo cinema brasileiro! Que, se diga de passagem, naquela época, tinha mesmo uma força cultural muito grande. E meus professores, a universidade, Brasília, encarnavam isso! Eu amava o cinema norte-americano de paixão, mas como é que eu poderia me vender a Hollywood? Eu já estava com a cabeça feita...  Preferi vir para São Paulo! Meu pai, ah, coitado, era uma santa criatura! Compreendeu minha decisão. Por que ele não pegou o chicote, me deu nas costas e me mandou embora para os EUA? (Porque eu teria desobedecido da mesma forma, sempre fui rebelde).  Só muito depois fui perceber o quanto a oportunidade de Berkeley representava. Porque, assim como eu fui da primeira turma de cinema da USP, também teria sido parte da primeira turma de Berkeley e colega de classe de, simplesmente, gente como Steven Spielberg, George Lucas e Francis Ford Coppola. Eu não seria da geração deles, eu seria colega deles! Colega dos atuais donos de Hollywood! Todos surgiram nessa época, dessa escola. E, com o tempo, eu fui notando que meu cinema tinha muito mais a ver com a revolução que eles praticaram nos anos 70 do que com os rumos que a produção brasileira tomou. Um cinema nacional que sempre me estranhou e colocou meu trabalho em dúvida. Desprezar a chance de ir para os EUA foi um erro imperdoável. Estou pagando por ele até hoje. Acabei participando de uma geração prensada nos anos 80, rejeitada pelos mestres do Cinema Novo, mas que apenas fazia o que eles sugeriam, já se adaptando a uma nova época, a nossa. Surgi de São Paulo com um filme que ninguém conseguiu entender de onde vinha – o Asa Branca, um Sonho Brasileiro. Fui ponta-de-lança do cinema paulista dos anos 80, antes do Chico Botelho, Hermano Pena, Wilson Barros, Guilherme de Almeida Prado, Alain Fresnot, Roberto Gervitz, Sérgio Toledo, Suzana Amaral, Augusto Sevá, Gal (Luiz Alberto Pereira), Kiko Martins, José Antonio Garcia e outros. Nunca achei meu lugar e, como naquele verso da canção de Bob Dylan sobre as estradas não-tomadas da vida, acredito que meu lugar era lá nos EUA. Confirmei a impressão quando visitei Hollywood pela primeira vez e me apaixonei, em 1998, já com Bocage, o Triunfo do Amor (radicalizando ser o mais anti-hollywoodiano possível, que ironia!). Mas, enfim, vim para São Paulo em dezembro de 1965. Enquanto Paulo Emílio e seus colegas tentavam estruturar a Escola de Comunicações e Artes, prestei vestibular para Ciências Sociais. Foi um vestibular dificílimo, prova oral, prova escrita. Todos ao meu redor tinham ares tão sabichões! Desconfio que me safei pela redação. Eu e Márcio Souza fomos aprovados. Gualter, por outro lado, tentou mais uma vez Arquitetura e falhou. Foi um trauma. Capítulo II 6. ECA Eu detestava o curso de Ciências Sociais. Lembro, por exemplo, do futuro presidente Fernando Henrique Cardoso dando aula de sociologia, todo pomposo, tufado feito pavão lá na frente da sala. No final do segundo ano, assim que a ECA foi inaugurada, prestei novo vestibular, para Cinema. Passei e, por um ano, até tive a intenção de cursar, paralelamente, Cinema e Antropologia. Naquela época era possível. Mas desisti. Foram bons os anos da minha vida como estudante da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Mas posso afirmar solenemente que não aprendi nada na ECA. Nada que já não tivesse aprendido em Manaus ou Brasília. Minha formação, lá, foi estritamente pessoal. Todos os amigos que tenho até hoje, amigos de fato, são da época da faculdade. Poucos surgiram depois, nos filmes. Como já disse, participei da turma inaugural da ECA. Minha sala tinha umas dez pessoas apenas: Eduardo Leone, Ismail Xavier, Plácido Campos Jr., Regina Jehá, Aloysio Raulino, Marília Aires, Jan Koudela, João Cândido Galvão, Valéria Silveira, Walter Rogério... Mas, naquela época, os primeiros dois anos eram de aulas em comum para todos os cursos, então também conheci muita gente de Jornalismo, Artes Cênicas e Rádio e TV que se tornaram amigos. Foi o caso de Rubens Ewald Filho, que ficou pouco tempo lá na ECA, e Thomas Going, grande parceiro no meu primeiro curta. Aliás, o primeiro e mais antigo registro de produção nos arquivos da ECA também é meu: o curta-metragem Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora. Como eu já não aprendia nada de novo na teoria, restava o desafio da prática. Em 1968, comecei a pensar num roteiro para ser filmado, por pura vontade própria, sem nenhuma ligação com as exigências curriculares do curso. Naquela época, era sustentado pela mesada que meus pais enviavam. Foi com esse dinheiro que consegui viabilizar meus três curtas da época da ECA. Claro, sem pagar ninguém, todo mundo sem um tostão e se ajudando mutuamente, pela mera motivação da juventude mesmo. Um dos meus colegas, o Aloysio Raulino, também havia elaborado um projeto de curta e eu propus uma troca: Você fotografa o meu que eu fotografo o seu. Mas o meu foi rodado primeiro: surgia o Um Clássico..., minha polêmica estréia como cineasta.   7. Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora   Não lembro exatamente como o argumento de Um Clássico... foi bolado. Naquela época já começavam a surgir minhas primeiras preocupações com a minha orientação sexual e eu, que sempre fui muito impetuoso, decidi colocar tudo no papel. Criei o relacionamento conturbado de dois jovens numa cidade grande. Evidentemente que, quando revejo, hoje, este trabalho, eu mesmo me assusto, porque é cruel, trágico, propositadamente existencialista. Éramos todos ligados ao existencialismo. Aloysio, Thomas, Mariangela Alves de Lima (que cursava teatro, e, hoje, minha adorada comadre e crítica de teatro, sou padrinho do Diogo, seu filho mais velho) e eu adorávamos Sartre, Camus, Kafka, Virginia Woolf. Discutíamos muita literatura. E o Um Clássico... já foi feito sob o impacto da contracultura, do underground, sem a preocupação de uma estética clássica. Quanto mais sujo e áspero, mais charmoso. Filmamos tanto o Um Clássico... quanto o curta do Aloysio, Retorna, Vencedor, num período de três meses, com a câmera dele, uma Paillard Bolex de 16 mm. O Thomas, que era de Santos, me apresentou um amigo de lá, o Eduardo Nogueira, um nadador/surfista lindo, deslumbrante, que instantaneamente se tornou meu ator-fetiche. Ele protagonizou meus três curtas da fase ECA. Só que o Eduardo nunca quis ser ator (tanto que, depois dessas três experiências, não fez questão de continuar a carreira). Na primeira semana, já tivemos uma briga. Ele tinha certo pavor, estava assustado com a temática do filme, com a atenção que estava recebendo por causa dele. Chegava atrasado às filmagens, às vezes desaparecia por dias. Tentei substituí-lo, não deu certo, aí eu o procurei, ele também se arrependeu e retomamos a parceria, sem mais problemas. Para o outro personagem protagonista eu tive muita dificuldade de escolher o ator. Na época, o Márcio tinha uma namorada, a Ana, e ela sugeriu um colega de classe, o Carlos Alberto. Era o auge da Rua Maria Antônia e do prédio homônimo, sede da Faculdade de Ciências Sociais da USP, onde ele estudava Filosofia e eu ainda insistia em Antropologia. Eu também morava lá e usei meu apartamento como locação para Um Clássico... O Beto, como o chamávamos, morria de rir, ficava tímido, porque afinal era um papel homossexual. Isso era completamente transgressor na época. Mas o engraçado é que nunca passou pela minha cabeça que realizar o Um Clássico... era um ato corajoso. Hoje, eu o vejo assim, mas na época era só um divertimento. Ou talvez uma necessidade revolucionária. Estava acontecendo a revolução sexual do século 20! Eu nem mesmo me senti intimidado por estar rodando meu primeiro filme. Há algumas marcações que até hoje me surpreendem, como a da cena em que o personagem do Beto abria o lençol na janela. Eu fico pensando: Como é que eu imaginei aquilo? Especialmente porque nunca tivemos aula de direção de atores. Mas eu imaginava mesmo. Acho que eu já sabia o que era interpretar para a câmera. Além do Maria Antônia, filmamos também no Viaduto do Chá, na Cidade Universitária e na célebre Galeria Metrópole, que, hoje, é um marco do movimento gay. A casa do protagonista, logo no início, era de uma empregada da Vera Roquette Pinto, uma estudante de Rádio e TV mais velha que a gente, que logo se tornou minha amiga e diretora de produção dos meus filmes seguintes até o Brasa Adormecida. Na mesma época, cumprindo meu trato, fotografei Retorna, Vencedor. O Thomas era o protagonista. Vivia um garoto atormentado, pressionado por todos ao seu redor: a mãe, o amigo, a namorada. Funcionava também como alegoria à ditadura, que se tornava cada vez mais rígida. Era ficcional, mas tinha um tom de documentário, com imagens do Golpe, do presidente Costa e Silva, tudo misturado. Foi o primeiro filme do Nuno Leal Maia, que também era aluno da ECA e era dessa turminha de Santos. Eu editei o Um Clássico... a mão, no meu apartamento na Maria Antônia, com o projetor do Leone emprestado e uma tesourinha de unha. Tudo para economizar dinheiro, porque a sonorização no laboratório da Odil Fono Brasil e a montagem do negativo no laboratório da Líder Filme eram caríssimas. Era película, não era vídeo! Um Clássico... saiu da Líder, absolutamente inédito, direto para a inscrição no Festival de Curtas do Jornal do Brasil – naquela época o periódico mais importante do País. Lembro que cheguei na sede do JB, chiquérrima, na Av. São Luís, às 19h00 do último dia de inscrição. Só que o prazo tinha vencido às 18h00. E a atendente, uma mulher muito bonita, elegante, chamada Gilda, que nem minha mãe, disse que não ia aceitar. Eu implorei, conversei, joguei a culpa no atraso do laboratório que havia feito a cópia só naquele dia. No fim, ela cedeu. Sorte minha e dela: dias depois, recebeu uma echarpe linda, que eu comprara em agradecimento. O Um Clássico... havia vencido todos os prêmios do festival! 8. Consagração e Frustração   Fomos no Fusca do Aloysio, eu, ele e a namorada dele na época, a Leda Senise, até o Rio de Janeiro, acompanhar o Festival. Gualter foi antes, de ônibus, com a Marilena. E nós assistimos a todas as sessões, lá no Cine Paissandu. Tinha uma turma de Minas Gerais com uns filmes surrealistas, muito legais; havia também um curta baiano chamado Doce Amargo, sobre um menino que vendia pirulitos na rua, que era lindo. Foi o único que eu pensei: Ah, esse pode bater o meu. O autor, principiante como eu, era simplesmente o André Luiz de Oliveira, aquele que depois fez Meteorango Kid, o Herói Intergalático. E parece que o júri realmente se dividiu entre os dois. Mas o meu era melhor mesmo, mais impactante. Tinha uma linguagem mais desafiadora e uma temática que não reportava ao Cinema Novo, como todos os outros. O Um Clássico... era totalmente urbano. Basta dizer que, na cena em que o Eduardo matava o Beto, eu fiz questão de tocar Rolling Stones (eu sempre fui fã deles; não era lá muito chegado nos Beatles). O Cinema Novo só viria a discutir a vida urbana com o Arnaldo Jabor. E o próprio Jabor estava na exibição do Um Clássico... Lembro que, na saída, passei por ele, pelo Joaquim Pedro de Andrade, pelo Rogério Sganzerla, pelo David Neves... Me olhavam perplexos. Alguns chegaram mesmo a me perguntar diretamente: Mas quem é você? De onde você surgiu? Eu havia ficado hospedado na casa do pai da minha amiga Vera Roquette Pinto, aliás, o único filho do memorável Edgard Roquette Pinto. E com ele, morava Mateus Colaço, então velhinho, e que interpretara, travestido de velha, o célebre curta-metragem de Humberto Mauro, A Véia a Fiar. Ele me acompanhou em todas as sessões do Cine Paissandu, e, no final, concluiu outro dos grandes augúrios de minha vida: Seu filme é o melhor, o mais surpreendente. Você foi muito corajoso. De fato, Um Clássico... venceu como melhor filme e nas categorias de direção, montagem, roteiro e ator (para o Eduardo Nogueira). Subi ao palco descalço para receber o troféu. A imprensa inteira me fotografou sem sapatos. Saiu até nos cinejornais, que ainda existiam então. Meus pais ficaram horrorizados. Mas ficaram ainda mais chocados quando leram, na revista Realidade, que o filme abordava a homossexualidade. Meu pai tomou imediatamente um avião rumo a São Paulo para vir conversar comigo. Evidentemente, ele ainda não sabia de nada. Embora fosse liberal, era duro para ele encarar algo assim. Ainda mais tão publicamente. Acho que ele ficou muito amargurado com isso, pelo resto da vida, que não foi longa. Morreria poucos anos depois. Conversamos muito e ele me colocou para fazer terapia. Fiz psicodrama uns três meses, e parei; depois voltei à análise só nos anos 80 e agora, recentemente. Um Clássico... marcou muito minha vida, porque a partir daí eu sempre fui rotulado como um cineasta gay. Mas o pior ainda estava por vir: o sucesso do filme chamou imediatamente a atenção da ECA. Antes, a escola nem tomava conhecimento de que já estávamos realizando filmes. Os professores de cinema quiseram proibi-lo. Fui convocado para uma reunião que parecia uma inquisição. Só os graúdos reunidos: Paulo Emílio, Jean-Claude, Rudá de Andrade, Marcelo Tassara, Maurice Capovilla, Roberto Santos, Thomaz Farkas, todos. O problema não era somente com a temática, mas também porque, naquela época, a ECA tinha intenção de formar cineastas voltados ao documentário. Ironicamente, eu já havia passado por uma experiência de censura semelhante anos antes, ainda em Brasília, sob os mesmos argumentos. Jean-Claude e Lucila haviam barrado uma fotonovela que eu havia realizado como trabalho para o curso deles mesmos, porque consideraram o tom ficcional e a temática muito poética, metafísica, introspectiva. Ainda que gostassem do resultado final, eles achavam contraproducente exibi-la para os outros alunos. E, naquela época, eu aceitei a decisão sem questionar, talvez porque já tivesse criado laços afetivos muito fortes com ambos – os  mesmos laços que, acredito, me estimularam a acompanhá-los rumo a São Paulo, para a criação da ECA, ao invés de ir para Berkeley... Quando tentaram fazer o mesmo com o Um Clássico..., porém, eu revidei. Não iria aceitar aquela injustiça. Respondi a todas as perguntas insidiosas que me fizeram. E, no final, foi o Paulo Emílio quem deu o veredicto, depois de ter ficado calado a reunião inteira, só escutando: o filme iria, sim, ser exibido para os alunos de cinema e de toda a escola! No início de 1969, porém, com o AI-5, tanto o Paulo Emílio quanto o Jean-Claude foram expulsos da ECA. O Rudá de Andrade assumiu a direção e a Reitoria, em 1970, baniu sumariamente não só o Um Clássico... como também meus outros dois curtas, Hang-five e O Mito da Competição do Sul. A longo prazo, houve ainda outras repercussões. Fiquei de fora do primeiro longa-metragem realizado na ECA, chamado Vozes do Medo, em 1970. Era uma compilação de episódios dirigidos por vários alunos, alinhavados pelo Roberto Santos, que supervisionava o projeto. Mesmo já admitindo ficção, não me convidaram. Isso me magoou muito e me desligou ainda mais de uma faculdade com a qual eu já não me identificava mais. Muitos anos depois, o Roberto Santos me confessou, arrependido, que se sentia em dívida comigo por causa desse incidente e que a decisão de me excluir não partira dele, mas do alto escalão da USP.   Pouco depois da polêmica na ECA, decidi aproveitar meus prêmios do Festival do Jornal do Brasil: mil dólares em dinheiro e uma passagem para onde quer que a Varig voasse. Coloquei a mochila nas costas e sumi por três meses na Europa. Conheci Portugal, Holanda, Inglaterra, França e Itália, numa viagem mágica. Comecei por uma Lisboa gelada de março e ainda salazarista, nada a ver com a cidade de hoje. Foi paixão à primeira vista – uma paixão que só exprimi no cinema quando fiz Bocage, o Triunfo do Amor. Em Londres, me vesti inteirinho de hippie na Carnaby Street e em King’s Road. Já estávamos em 1969 e, embora não me considerasse hippie nem usasse drogas, lia muito Herbert Marcuse, mentor de Maio de 1968, e achava um barato as cores, a música e, sobretudo, a liberação sexual. Foi um sonho ver aquelas pessoas, uma mais linda que a outra, na praça principal de Amsterdã, num clima de Woodstock, ainda sem a decadência da droga. Visitei uma igreja calvinista que eles haviam transformado em danceteria... Foi a primeira vez que vi um rapaz nu em pêlo, dançando em cima da mesa. Era um universo inquieto, surpreendente, fantástico. Mas a maior parte da viagem passei mesmo em Paris. Um antigo amigo de Brasília, Lévy Santos, fazia doutorado em Sociologia na Sorbonne com o Alain Touraine, e, por intermédio dele, assisti por curiosidade a várias aulas lá, inclusive algumas de Roland Barthes e Nathalie Sarraute. Fiquei morando no Quartier Latin, àquela altura um bairro completamente estudantil, e ainda pude sentir os ecos de Maio de 68: a agitação cultural, a troca de idéias e o policiamento ostensivo nas ruas. Quando voltei para o Brasil, eu, que já era enlouquecido, fiquei mais deslocado ainda. E me sentia definitivamente um diverso: havia assistido três vezes ao Teorema de Pasolini, filme que me marcou profundamente, até hoje um dos meus cinco prediletos e, é claro, naquela época proibido de ser exibido no Brasil.   9. As Tragédias de 1969   Aqui, porém, o clima era bem outro. O ano de 1969 reservava uma onda de tristezas e traumas, a começar pelo expurgo do Paulo Emílio e do Jean-Claude. Para piorar, nossa professora de Estética, a poeta Lupe Cotrim, que eu venerava, cuja casa freqüentei, e que quase se tornou a estrela do Hang-five mesmo não sendo atriz, morreu de câncer. Ou seja, meus maiores interesses na ECA haviam ido embora. Meu tão querido companheiro Thomas Going também morreu, suicidando-se. O AI-5, o arrocho do regime militar, afetou a todos. Num dos piores episódios da minha vida, passei mais de uma hora com o cano de uma metralhadora encostado na minha cabeça. Era uma das ações da chamada Operação Bandeirantes, à procura de subversivos no apartamento onde morávamos, na Maria Antônia. Cinco homens arrombaram nossa porta, me renderam e exigiram que o Gualter lhes mostrasse o restante do apartamento. Reviraram tudo e só não acharam nada porque, cerca de um mês antes, nossa amiga Vera Roquette Pinto sugeriu que queimássemos nosso material estudantil no quintal da casa dela. Houve, ainda, outra intervenção divina nesse caso. Eu costumo dizer que foi o anjo de Jacó (aquele que o impediu de sacrificar o filho). Nessa tarde estava com a gente a namorada do Eduardo Nogueira, chamada Cléa. E nossa sorte é que o líder do esquadrão policial a reconheceu: ela era filha de um delegado de Santos. E foi ela quem os convenceu de que não éramos subversivos. Porque, senão, nós tínhamos ido numa daquelas peruas Veraneio e sabe-se Deus o que nos teria acontecido. A ironia é que eu me considerava, sim, um subversivo, entretanto bem distante do que aqueles policiais temiam e conceituavam como subversão. Porque assim como admirava Maio de 1968, eu também discutia os ideais comunistas, lia Marx e Engels, Lenin, Mao e Trotsky, mas não era um militante. Tinha em mim uma sensação parecida com a de meu pai, que dizia que não se filiava ao Partido Comunista porque lá todos eram forçados a pensar igual, sem questionar, sempre apelando para um bode expiatório óbvio demais: a burguesia. Contudo, eu e meu irmão sempre estivemos imersos no debate político e rodeados de amigos comunistas. Logo quando vim para São Paulo, passei bastante tempo com um casal de cientistas amigos do meu pai, o Dr. Leônidas Deane e a Dra. Maria Deane. Eram pessoas maravilhosas, sempre muito engajadas, mas nossos pontos de vista, que convergiam ao mesmo ponto, raramente batiam na práxis da vida. Quando assistíamos aos festivais de música da Record, por exemplo, eles sempre curtiam os engajados – Geraldo Vandré, Edu Lobo... E eu ia gostar bem de quem? Do Caetano, do Gil e dos Mutantes. Eles me olhavam como se eu fosse a coisa mais estranha do mundo. Precisa ver a cara que fizeram quando me viram de volta da Europa, com um cabelão enorme, calça pantalona, camisa colorida... A Doutora ralhava mesmo comigo! A filha deles, Luiza, de 15 anos, era linda. E, como a maior parte dos filhos de professores da USP, estudava no Colégio de Aplicação. Nós ficamos rapidamente amigos da turma dela, comunistas declarados. Participávamos de almoços, reuniões, debates. E eu sempre entrava na discussão. Meu irmão não, ficava mais na dele. Era aquela geração 1968 mesmo, aquele turbilhão de vontades e idéias. Para agonia de seus pais, a Luiza acabou entrando para a luta armada. Eles ficaram completamente enlouquecidos quando ela bandeou para a clandestinidade. Fizeram o possível e o impossível para protegê-la. Foi outra tragédia que marcou muito a gente. No final, eles conseguiram que ela se exilasse no Chile, depois na França, mas ela voltou muito deprimida, sem nenhum traço da menina incrível que havia sido. Naquela época, estávamos mesmo todos contra a parede. Não tínhamos opção: ou entrávamos para um movimento de esquerda guerrilheiro, como a Luiza, ou tentávamos encontrar um outro caminho. E então surgiu a contracultura, o underground. Foi esse que eu trilhei (o que não impediu meus pais de levarem outros tantos sustos: chegara aos ouvidos deles um boato maluco de que eu havia ajudado a seqüestrar um avião para Cuba!). Na ECA, a situação também não era das melhores. A impressão que tenho é que a direção do curso de cinema, pós-Paulo Emílio, mais serviu para desintegrar a nossa primeira turma do que para uni-la. Vide o que acontecera em Vozes do Medo. Nós poderíamos ter dado um bom grupo de cineastas, mas a escola preferiu apartar os melhores e destituir as lideranças. Acho que, no fundo, eles tinham medo de nós. Medo de mim, em particular. Eu já havia me rebelado totalmente. Participava do movimento estudantil. Ia para a aula descalço, usava um monte de colares no pescoço, um chapeuzão na cabeça. Só eu, o Sganzerla e a Helena Ignez usávamos aquele tipo de chapéu em São Paulo! Nem mesmo o poeta Piva, de quem ficara, aliás, muito amigo. Ele lia seus poemas para mim, enquanto passeávamos pela Bienal. 10. O Mito da Competição do Sul e Hang-five   Desse sucesso no JB, eu deveria ter feito um esforço enorme e passado ao longa-metragem, como o Júlio Bressane e o Rogério Sganzerla fizeram. Mas o Bressane era rico e o Sganzerla já era integrado a São Paulo, contava com toda a estrutura daqui, de jornalista. Eu não, ainda me sentia um desterrado. E, naquele momento, mais do que nunca, me sentia um descolado de tudo. Não me liguei a nada. Então continuei como o enfant terrible da ECA, enchendo o saco dos professores e enchendo o meu próprio saco. Nesse período, fiz mais dois curtas, altamente experimentais e interessantes. O primeiro foi O Mito da Competição do Sul, rodado em 1969, já depois que eu havia retornado da Europa. Este marca a minha estréia como ator e a do meu irmão Gualter como diretor de fotografia. A minha amizade com o Aloysio havia esfriado e nós nos afastamos. Ele partiu para os seus famosos documentários, para alegria da diretoria da ECA, e eu não, insistia  no rumo errado. Era o gauche do gauche ... A história de O Mito da Competição do Sul tinha um pouco disso. Era sobre um diretor que queria fazer cinema, mas não conseguia e, daí, resolvia que a realidade era muito melhor que a arte. Eu, claro, interpretava o diretor, e o Eduardo Nogueira fazia o ator. O que se pretendia era um road movie: no final eles saíam estrada afora, rumo à vida. Mas deu tudo errado, né? Não foi nada disso, nem na vida nem no filme. Só rindo mesmo. O Mito... foi bastante influenciado pelo Living Theater. O título foi extraído ao acaso, de uma reportagem sobre surf, porque eu queria que tudo fosse assim, motivado pelo instante, pelo imediato. Ele foi rodado inteiramente na Cidade Universitária, nos barracões B9, que o Diretório Acadêmico havia ocupado para pressionar a Reitoria. Outra locação foi uma sala de aula envidraçada, bonita, com um quadro-negro enorme e um tablado, comum a todos os cursos. Ali, em plena Reitoria da USP, o Eduardo dançava Honky Tonk Woman (outra do Rolling Stones!) nu em pêlo, por uns cinco minutos. Meu objetivo com O Mito... era tentar algo radicalmente diferente de Um Clássico... que, apesar de também ser experimental, tinha uma historinha definida e era bastante estruturado. O resultado foi um filme audacioso e muito bonito, mas que tem alguns problemas técnicos. A Paillard-Bolex, por exemplo, já não era adequada. Foi a primeira vez que eu filmei em cores e a película que usei exigia iluminação artificial – um luxo que as mesadas de nossos pais realmente não nos permitiam.   O Um Clássico... eu havia tirado do meu próprio bolso. Mas, a essas alturas, a ECA já tinha a obrigação de custear os filmes de seus alunos. Eu precisava do dinheiro menos para a produção do que para a finalização: a edição e sonorização na Odil Fono Brasil, e as cópias e montagem do negativo na Líder. O Aloysio logo ganhou sua verba, mas eu, que insistia na ficção, levei um chá de cadeira de meses. Tanto que, nesse entrementes, rodei também o Hang-five e acabei finalizando os dois filmes ao mesmo tempo. A Reitoria, ao conferir o material de ambos, me enviou uma carta que dizia que meus filmes eram pornográficos e subversivos. Recordo bem dos termos, porque, para mim, eles não eram nem uma coisa nem outra. Mas eu sempre fiz questão de conquistar minha liberdade assim, a duras penas, mesmo pagando esse altíssimo preço: o de nunca ter o apoio financeiro adequado. Hang-five, já em 1970, foi outra tentativa de inovar, passando longe de Um Clássico... e O Mito.... Eu queria exercitar um enorme rigor narrativo, não necessariamente acadêmico, mas uma coisa meio Nouvelle Vague. Queria contar uma história bem contada, mas de maneira bem estetizante. A trama tinha influências da antropofagia modernista e do Roda Viva, do Zé Celso Martinez, que eu vi dezesseis vezes. Falava de uma poetisa que criava seus personagens, eles encarnavam de verdade e ela os devorava vivos. Um dos meus objetivos era realizar um longo plano-seqüência, bem estudado, como os que estavam na moda na época. Ai de quem não soubesse fazer um! Não era digno de um lugar no universo cinematográfico! Mas havia um problema: a Paillard-Bolex só utilizava rolos de filme curtos. Então, fiz uma das minhas loucuras: seqüestrei a Éclair novinha que a ECA acabara de adquirir. A Éclair era uma câmera blindada que, portanto, permitia fazer som direto. Assim, os alunos poderiam fazer entrevistas para seus supostos documentários, bem ao estilo do cinéma-vérité de Jean Rouch (que, de fato, usava aquele mesmo modelo de câmera). E o Rudá de Andrade morria de ciúmes dessa Éclair, tanto que ela logo ganhou um apelido: O Bebê de Rosemary. Pois eu raptei o Bebê de Rosemary, levei para o Guarujá, onde rodei o Hang-five, fiz meu plano-seqüência de dez minutos, que foi todo milimetricamente ensaiado e, ainda, dei um ultimato para a escola: ou liberavam a verba para finalizar O Mito..., ou adeus Éclair, a faria sumir no mar. Daí, você tira o quanto eu era rebelde. Mas que a chantagem bem à la Sérgião Bianchi funcionou, isso funcionou! A protagonista de Hang-five, originalmente, seria a Lupe Cotrim; eu adorava a elegância dela, a vivacidade, e ela já tinha aprovado o roteiro. Mas, com sua morte, busquei uma aluna da Escola de Artes Dramáticas, linda, chamada Haifa Helena. O Eduardo interpretava seu amante surfista, que ficava apavorado com os personagens que ela inventava e que ganhavam vida. O Nuno também está nesse filme, é um dos mortos-vivos.  E o anjo de Jacó, a  Cléa, namorada do Eduardo, também. Infelizmente, porém, a Haifa passava por algum processo de catatonia assim que ligávamos a câmera. Ela estava acostumada só com palco. Como, apesar da Éclair, eu não iria utilizar som direto (sempre detestei som direto), fiquei ao lado dela, passando as falas, enquanto ela repetia. De resto, a gente disfarçava com uns closes. Não ficou bom, mas, por incrível que pareça, a interpretação dela foi o mais repetido elogio feito ao Hang-five. Tanto a repercussão de Hang-five quanto de O Mito... foram pequenas. Quando ambos foram concluídos, preparei uma apresentação especial na ECA, incluindo o relançamento de Um Clássico.... Preparei, eu mesmo, pôsteres lindos para os três curtas, mas, logo que os pendurei, no dia seguinte, já haviam sido arrancados. Pouco depois, os próprio curtas sofreriam censura semelhante, desaparecendo nos porões da USP. Só no começo da década de 80 pude reavê-los, já bastante deteriorados. O Carlos Augusto Calil (que, embora fosse da segunda turma de alunos, já se tornara meu amigo naqueles anos de ECA) conseguiu fazer, agora em 2001, uma cópia em vídeo do Um Clássico... para mim e outra para o acervo da ECA. Os outros dois filmes estão preservados na Cinemateca Brasileira. Toda vez que eu junto dinheiro, prometo que vou restaurá-los, mas sempre acabo investindo nos meus próximos projetos. Não gosto de olhar para trás, me dói tanto no coração. Sou meio assim, fatalista. Prefiro que o tempo decida se eles serão salvos ou não. Capítulo III 11. Longe das Câmeras, Perto do Coração Parece que, com O Mito da Competição do Sul, já estava prevendo o que aconteceria com minha carreira. Dez anos separaram a graduação na ECA, em 1971, e meu primeiro longa, Asa Branca, um Sonho Brasileiro, em 1981. Nesse hiato, por vontade própria e por necessidade, experimentei de tudo. Crítica jornalística, teatro, fotografia, atuação... E até um breve retorno à sétima arte, com meu curta-metragem Porta do Céu, de 1973. Apenas duas atividades eu prometi a mim mesmo que não realizaria: dar aulas na ECA, como todos meus outros colegas, e fazer filme publicitário. Criei na minha cabeça a superstição de que, se tentasse algum dos dois, me acomodaria e jamais voltaria ao cinema de verdade. Em 1969, ainda na ECA, tive a oportunidade de colaborar com o jornal Diário de São Paulo. Os alunos de cinema foram convocados para realizar críticas semanais das novidades que chegavam ao circuito. Toda segunda, íamos à redação dividir as pautas – eu, Ismail Xavier, Eduardo Leone, Valéria Silveira, Marília Aires e até mesmo meu irmão Gualter, que nem da ECA era. Modéstia à parte, meus textos eram muito bons. Pude resenhar filmes incríveis, como Armadilha do Destino (Cul-de-Sac, 66, de Roman Polanski), Fome de Amor (68, de Nelson Pereira dos Santos) e 2001 – Uma Odisséia no Espaço (68, de Stanley Kubrick). Este, eu chamei de a Capela Sistina do século XX e, recentemente, li um crítico de Nova York fazendo a mesma comparação. Foi um trabalho muito gostoso, que durou cerca de um ano. A gente até recebia salário! Uma pena não ter continuado. No mesmo ano, começou meu flerte com o teatro e a fotografia profissional. Fui assistir a O Balcão, o megaespetáculo que Ruth Escobar montou, baseado na obra de Jean Genet e dirigido pelo argentino Victor Garcia. Achei deslumbrante! O público ficava num funil de arame e, no centro, os atores atuavam sobre pequenos elevadores ou em imensas plataformas de acrílico. Decidi na mesma hora: Quero fotografar esta peça! Mas eu queria um trabalho aprofundado, não apenas passar uma noite no teatro com a câmera na mão. Fiz minha proposta e o Victor Garcia me avaliou em um breve teste dramático. Fui aprovado: por um mês, substituí um dos muitos jovens atores que faziam figuração, interpretando os revolucionários. E passei esses trinta dias fotografando e me apresentando toda noite. Foi uma experiência inesquecível e gratificante. Fiz amigos como Célia Helena, Raul Cortez, Semi Lufti, Sérgio Mamberti e Carlos Augusto Strazzer. Eu já curtia fotografia desde sempre. Fiz aquela minha polêmica fotonovela em Brasília, mas tanto eu quanto Gualter só fomos aprender direitinho a técnica de registro e ampliação quando conhecemos o José Marreco, namorado da Luiza Deane. Foi ele quem nos ensinou. Depois da Operação Bandeirantes ter invadido nosso apartamento na Maria Antônia, ficamos tão traumatizados que nos mudamos para uma casinha na Rua Lisboa, onde, nos fundos, improvisamos um laboratório para revelação e ampliação de fotos. Algum tempo depois, já saído da ECA, montamos um estúdio fotográfico profissional, na Rua Oscar Freire. Este estúdio foi responsável por boa parte do meu sustento até 1986, quando eu o perdi;  ficava nos fundos de um terreno cuja frente era ocupada pelo grupo de teatro Pod Minoga – alguns deles futuros astros de Asa Branca, um Sonho Brasileiro. Nesse estúdio, fizemos de tudo. Editoria, moda, publicidade, stills para filme. Aliás, meu primeiro trabalho profissional nem foi no cinema, foi como repórter fotográfico da revista Bondinho, que havia começado como um projeto da rede Pão de Açúcar e depois se tornou uma publicação porta-voz do underground. Também fiz muita capa para a revista Planeta e fotos de moda para a Editora Três. A fama foi se espalhando. O Paulo Emílio Salles Gomes, que, depois de afastado da ECA, se tornou chefe do Centro Cultural da Prefeitura, me convidou para ser fotógrafo do Idart, o Departamento de Informação e Documentação Artísticas. Assim, voltei a fotografar teatro, como fizera com O Balcão. Graças ao Idart, também participei de uma pesquisa fantástica organizada pela Lúcia Pereira e pela Maria Thereza Vargas, a respeito do circo-teatro na periferia de São Paulo, em 1977. Minhas fotos para esse projeto, chamado Circo: Espetáculo de Periferia, estão entre os trabalhos mais lindos que eu fiz em toda minha vida. Por fim, também realizei stills para cinema. Era uma ótima oportunidade para estar próximo, dentro do cinema, e também fazer contatos. Eu sempre terminava muito amigo dos atores e da equipe. No set de Paranóia (77), um dos primeiros filmes do Antônio Calmon, até me cotaram para substituí-lo, depois que ele brigou com a produção. Estava louco para voltar a dirigir, mas sempre fui muito ético. É claro que não aceitei. Aliás, a produção desse filme produzido pela Empresa Haway de São Paulo foi cheia de incidentes. A Norma Bengell brigava muito com o diretor e me lembro que a equipe chegou a fazer um abaixo-assinado pedindo para a Lucélia Santos deixar de andar pelada pelo set. Era agridoce: fotografar filmes me aliviava porque eu estava aprendendo cada vez mais sobre cinema, mas me angustiava porque não estava realizando meus próprios longas. Ainda em Paranóia, certa vez a Ana Maria Magalhães, uma das divas do cinema-novo, veio me elogiar. Viu umas fotos que tirei dela e exclamou: Nossa, menino, você é muito bom still! E lá dentro de mim, eu chorava: Bom still nada, eu sou é um grande cineasta! 12. Flávio Império   O cinema teve de esperar. A década de 70 foi mesmo da fotografia e do teatro. Em boa parte, por causa da minha amizade com Flávio Império. O Flávio foi um raio de luz nos meus últimos anos na ECA. Se, afinal, aprendi alguma coisa naquela escola, com certeza foi com ele. Sua mera contratação como professor de cenografia já prova como o intuito original da Escola de criar apenas documentaristas estava se esfacelando. Mesmo assim, alguns alunos ainda o levavam a sério e, por isso, as aulas do Flávio logo se esvaziaram. Só eu assistia. Então, fiquei praticamente tendo aula particular com esse gênio, que me ensinou muito mais do que apenas cenografia. Nós analisamos principalmente estilos de interpretação, traçando paralelos com os gêneros fílmicos e as correntes de pensamento do século 20 que os influenciaram. Vimos interpretação não-realista, distanciada, brechtiana, através dos filmes do Godard, do Glauber. Dissecamos Rocco e seus Irmãos (Rocco e i suoi Fratelli, 60, de Luchino Visconti) para entender o décor do cinema realista, por exemplo. Além disso, revimos juntos todos os meus curtas e ele me apontou os erros e acertos de cada ator. Se, hoje, sei dirigir ator, desde veterano a novato, é por causa do Flávio Império. Ele, afinal, era patrimônio da cena teatral brasileira. Criara toda a concepção visual do Teatro de Arena. Também colaborou em grandes montagens do Oficina, como Roda Viva (que, como já disse, foi uma enorme influência nas minhas idéias). Repaginou os shows da Maria Bethânia. Depois, ainda, trabalhou em marcos dramáticos como Labirinto e Réveillon, nos quais fui seu parceiro. Depois da minha formatura, passei a integrar o ateliê do Flávio. Minha função, além de colaborar na produção, era fotografar a execução e o resultado de cada cenário. Numa das peças que dirigiu, Os Fuzis da Senhora Carrar, em 1968, no Teatro Universitário da USP, ele inaugurou a era multimídia com a primeira megaprojeção de slides. Depois, voltou a utilizar o recurso em Réveillon e no ciclorama de Labirinto –  e, em ambas, eu fui o responsável pelas imagens dos slides. O Flávio também foi o cenógrafo do Porta do Céu. Até mesmo, cedeu sua casa para uma das locações. Só não me ajudou no Asa Branca, um Sonho Brasileiro e no Brasa Adormecida porque dizia que não conseguia mais fazer cenário realista – e, estes seriam filmes dentro do realismo. Para ele, Bocage... caberia como luva: o ambiente poético é todo muito Flávio Império. Foi mesmo uma homenagem a ele, que faleceu em 1985. 13. Porta do Céu A Secretaria da Cultura do Estado mantinha anualmente um programa de incentivo ao curta-metragem. Todo ano, eu inscrevia meus projetos e não ganhava. Meus temas eram sempre reprovados – aliás, os mesmos temas que continuam sendo evitados até hoje. Lembro que quis realizar um documentário sobre moda, tomando como eixo a Rua Augusta, naquela época uma rua muito chique. Até tentei enfiar o depoimento de um sociólogo no meio, para envernizar melhor o assunto. Não deu. Os únicos temas que vingavam eram aqueles ligados à cultura popular brasileira. Mas, por cultura popular, entenda-se pobreza. Então achei meu próprio jeitinho de falar sobre isso sem cair naquela coisa cinemanovista. Eu visitei Aparecida do Norte e fiquei impressionado com a cidade. Achei aquilo um retrato, um microcosmo, uma síntese do Brasil: tudo incompleto, tudo por fazer, tudo um tumulto. Pensei imediatamente num roteiro e fiz a proposta. Em 1973, ganhei o incentivo. Fiquei muito comovido com a fé daquelas pessoas humildes. Mesmo a exploração religiosa e o fanatismo, tudo aquilo tachado logo como ópio do povo, me encantavam. Eram, para mim, uma exaltação daquela crença. Além disso, a partir dessa época eu já estava interessado em realizar um cinema que investigasse os mitos primordiais do Brasil. Foi o que me guiou, anos depois, rumo ao Asa Branca. E qual mito maior que o de Nossa Senhora? Ela é a deusa-mãe, a nossa força matriarcal atávica. Engraçado é que, embora eu fosse underground, existencialista, revolucionário e louco, eu era também uma pessoa muito religiosa. Sempre fui (e eis um dos motivos pelo qual eu e os comunistas não nos entendíamos). Quando criança, vivia na casa de minha adorada avó Dinda – Edith Castro Batista – que ia à missa todo dia às cinco da manhã. Acho que herdei essa fé. Aliás, fui o único em casa, a ponto dos meus irmãos até mangarem de mim. O Gualter, por exemplo, tinha horror a imagem de santo. Nas filmagens de Porta do Céu, havia um take na sala-de-milagres ao lado da Basílica. Era um travelling longo, que descrevia muletas, fotos, imagens, cachos de cabelo, milhares de ex-votos, pernas, rins, corações, seios, olhos de cera. Quando terminamos, já do lado de fora, olhei para o meu irmão e ele estava pálido. E, plaft, caiu no chão, desmaiado. Depois acordou e me disse: Você não me coloca mais dentro daquela sala por nada nesse mundo! Não foi o único incidente engraçado dos bastidores do Porta. Não foi nem mesmo a única crise do meu irmão! Ficamos uma semana rodando em Aparecida do Norte, com consentimento do clero, mas sempre com alguém nos vigiando. A maior parte da verba que havíamos recebido da Secretaria de Cultura, porém, foi utilizada para contratar um helicóptero, que, numa das principais cenas do filme, ajudaria nossa imagem de Nossa Senhora a voar. Mas nada saiu como planejado... Naquela época, Aparecida ainda era pequena. Perto da Basílica acho que havia um matadouro, porque o céu estava apinhado de urubus. E nosso piloto, pelo rádio, dizia que não ia pousar ali com aquelas aves agourentas, de jeito nenhum! E a gente rebatia que, se ele não pousasse, não íamos pagá-lo. Eu tenho horror a voar, então junto com ele estava o Plácido Campos Jr. com uma das câmeras. Eu e meu irmão acompanhávamos tudo do solo, com outra. E nisso o piloto exigiu que fôssemos para a base aérea de Guaratinguetá, a cidade próxima, para discutirmos. Eu fui dirigindo feito um louco, fulo da vida, seguindo o helicóptero. Só que, por onde ele passava, era um caos: as pessoas viam a santa voando e se benziam, ajoelhavam, rezavam no meio da estrada... Nós deixamos a cidade inteira em polvorosa! Mas isso não foi o pior. Dali a pouco, Nossa Senhora despencou do helicóptero! Caiu no meio de um arrozal! O Flávio Império teve um faniquito. E toca todos nós pararmos para ir procurar a santa. Foi surreal! Meu irmão teve um ataque de riso histérico e, mesmo depois que recuperamos a imagem, ele seguiu rindo até Guaratinguetá. Bruno Schmidt (amigo querido que fazia o mensageiro no filme, e se tornaria, duas décadas depois, o diretor de arte do Bocage) resolveu dar uns tapas no Gualter pra ele parar de gargalhar e recuperar o fôlego. E eu preocupado: Agora é que o piloto vai se recusar a trabalhar conosco, parece tudo louco. A santinha, porém, operou milagres. Lá na base aérea, os outros pilotos foram extremamente gentis. Acalmaram o nosso homem, dizendo que ele podia pousar em Aparecida sem medo dos urubus. Enquanto isso, o Flávio restaurou a figura de Nossa Senhora, fez mais furos no seu véu para que o vento não atrapalhasse e até pendurou uns lastros para que ela não se movesse no arranjo de flores que havíamos criado para ela. E assim fomos de volta à Basílica. Tudo isso levou tanto tempo que acabamos filmando a cena ao cair da tarde. Ficou bem bonito... Foi uma filmagem muito alegre, muito divertida. Além do Flávio e do Gualter, estavam comigo a Vera Roquette Pinto, mais uma vez como produtora, e também outro colega de ECA, o Plácido, que fez uma fotografia lindíssima para o filme. O Gualter não tinha experiência em 35 mm, e preferiu ser seu assistente. A assistente de direção era a Valéria Silveira, que também fora do Um Clássico... e dos outros dois filmes na ECA. A atriz Vivian Mamberti fazia Nossa Senhora; ela era adorável, e voltou a trabalhar no Asa, pouco antes de falecer. E o narrador foi o Carlos Augusto Strazzer, que eu conhecia do Balcão. Eu já queria montar uma equipe fixa, coisa que nunca consegui, porque nunca houve dinheiro para dar continuidade. Porta do Céu não foi bem compreendido em sua época. Quando o inscrevi no Festival de Curtas do JB, estranharam o contraste com o Um Clássico.... Um dos diretores do jornal (da alta cúpula da Igreja) odiou o filme, tachou-o de obra comunista. E, do outro lado, quando o levei para a Jornada de Cinema da Bahia, os comunistas massacraram-no como reacionário e propagandista católico. Cada um tentou rotular de um jeito. 14. Curtas Inacabados e Projetos Recusados Ainda nos anos 70, tive mais duas aventuras atrás das câmeras. Assim como o Porta..., foram dois curtas-metragens de documentário. O primeiro, chamado Puxando Massa, fiz sem qualquer apoio financeiro e nunca consegui terminar. O segundo, Rasga Coração, aproveitava-se desta minha recém-firmada proximidade com o teatro e teve suporte da Funarte. Mesmo assim, só foi concluído com quase uma década de atraso, após as filmagens de Brasa Adormecida. Puxando Massa foi inspirado (até mesmo no título) pelo documentário Pumping Iron, em cuja produção estava envolvido o Andy Warhol, e estrelado pelo então anônimo Arnold Schwarzenegger. Eu acompanhava o cotidiano de um jovem fisiculturista da periferia, chamado Paulo Roberto – ele pegando o trem, indo pra casa, tomando banho, malhando numa academia ali na Baixada do Glicério... Naquela época, os homens não eram todos bombados como hoje. Aquilo ainda era uma atividade muito marginalizada. O Aloysio topou fazer a fotografia comigo (meu irmão finalmente cursava a faculdade de Arquitetura), mas me achando um tanto quanto louco. Mas eu queria fazer um filme assim mesmo, bem underground. Tive de interromper porque faltou dinheiro e, quando quis retomar, não consegui mais localizar o menino. Meu personagem-tema havia sumido. Já o Rasga Coração surgiu bem mais tarde, em 1979, incentivado por um concurso para filmes culturais. O subtítulo explica tudo: O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina. A minha intenção era criar uma espécie de vinheta que também pudesse estimular a consulta ao Arquivos Multimeios do Idart. Usei praticamente só material desse arquivo e fiz o table-top na câmara Igashima da ECA, com auxílio de um aluno, o Sung Fai Sung. Para a pesquisa, eu contava com minha parceira do Circo: Espetáculo de Periferia, Maria Thereza Vargas. E o texto da locução lida por Strazzer foi escrito pela Mariangela Alves de Lima, também do Circo. Percorrendo toda a história do teatro nacional, há o anúncio da chegada do Procópio Ferreira a São Paulo; a foto do primeiro beijo nos palcos brasileiros, entre Sonia Oiticica e Paulo Porto; e a estréia de Bibi Ferreira, registrada pelo Departamento de Informação e Propaganda do governo Vargas. Entrevistei com eles Fernanda Montenegro e Walmor Chagas para falar do pós-TBC; conversei também com Nelson Rodrigues sobre a estréia de Vestido de Noiva. O filme é narrado por Paulo Autran e dedicado a Cacilda Becker. Depois de coletar todo esse material, porém, tive que deixar Rasga Coração de lado temporariamente. Só que eu cresci na selva e tenho um lado meio Macunaíma, preguiçoso, que me fez protelar sua conclusão por anos. Por mim, ele teria ficado inacabado, como o coitado do Puxando Massa. Mas, em 1986, depois de muita pressão da Funarte, eu o finalizei, ainda a tempo de ser beneficiado pela lei de obrigatoriedade da exibição de curtas-metragens nos cinemas. Rasga... foi um projeto que me deu uma satisfação diferente, porque não era nada autoral. Eu e Maria Thereza até tínhamos um apelido carinhoso para ele: filmelho. Então, de certa maneira, foi engraçado vê-lo fazer enorme sucesso (basta dizer que tivemos de tirar seis cópias dele!). Até hoje, ele é requisitado para novas cópias e acho que desempenha uma função didática muito legal. De filmelhos, porém, eu já estava satisfeito. Paralelamente a tudo isso, eu tentava passar para o longa-metragem. Apresentei diversos roteiros na Embrafilme, então criada para proteger os egressos do Cinema Novo do regime capitalista bravo que a ditadura havia imposto. Era, no entanto, um clube fechado, uma panelinha impenetrável. Perdi a conta de quantas propostas minhas foram recusadas ali. Por outro lado, não me considero uma vítima do sistema. Há minha parcela de culpa. Tenho até muita raiva de mim, desse meu tal jeito Macunaíma: deveria ter insistido mais. Três desses projetos, acredito, tinham muito potencial: As Marias Brasileiras, uma comédia escrita para minhas amigas Marília Pêra e Zezé Motta, em que elas viveriam duas figuras míticas aprontando em São Paulo; o drama Vivenda da Luz, sobre um caso entre dois rapazes, que deve ter horrorizado a Embrafilme; e o meu favorito, Rio Máximo Amazonas, que até hoje, reescrito várias vezes, tento emplacar. Mas a espera valeu a pena. Ainda em 1979, no meio daquela bagunça para o Rasga..., fui informado que, finalmente, um dos meus roteiros havia sido selecionado para receber um incentivo da Secretaria de Cultura do Estado. Era o governo do Paulo Egídio. Entre os dez premiados, estava lá um filme sobre futebol: era o meu Asa Branca, um Sonho Brasileiro. Capítulo IV 15. Asa Branca Alça Vôo Foi por causa de Asa Branca que deixei Rasga Coração de escanteio. Ia, enfim, realizar meu sonho: dirigir um longa-metragem. Eu havia enfrentado uma batalha de dez anos para chegar ali. E, por isso mesmo, hoje, quando olho para trás, só consigo recordar aquela satisfação enorme de estar dirigindo. Não me importam as agruras do período da produção, que vou contar a seguir, ou mesmo os prêmios que o Asa Branca ganhou depois: o que ficou, para mim, foi a felicidade de filmar. Foi no Asa Branca que consolidei velhas amizades e conquistei novas, que iriam mudar a minha vida. Gente como meu eterno montador José Motta; o sócio Carlos Roberto de Souza, com quem fundei a Cinema do Século XXI para produzir o filme; o figurinista (e depois cenógrafo do Brasa) Felipe Crescenti; a assistente mais amiga que um diretor podia desejar, a cineasta Tânia Savietto; o carisma natural do Gato, meu primo Fábio Limongi; a produtora Vera Roquette Pinto, que realizava milagres sem dinheiro algum; o José Possi Neto, amigo que me ajudou a dirigir e ensaiar os atores; e claro, Edson Celulari, com quem trabalharia mais duas vezes, uma no cinema e outra no teatro. E mais um monte de gente! É por isso, até, que não gosto de rever meus filmes – esses dias, contei que, de toda a equipe e elenco do Asa Branca, dezesseis pessoas já morreram. É muito doloroso. Futebol sempre fez parte da minha vida, desde criança. Meu tio, Flaviano Limongi, foi presidente da Federação Amazonense de Futebol por décadas. Ele construiu o estádio de Manaus, onde assisti a muitos jogos. Além disso, meu vizinho, seu Alfredo Barbosa, era o técnico do principal time de Manaus, o Nacional. Com o tempo, fui perdendo o gosto pelo esporte. Hoje, raramente acompanho os jogos. Asa Branca, porém, não é um filme sobre futebol. É um filme de um personagem do futebol: o jogador. Acho que a chave para entendê-lo é a transformação pela qual passou a figura do jogador de futebol a partir do tricampeonato mundial. Foi uma somatória da revolução comportamental dos anos 50 e 60 com o estrelismo gerado pela mídia, que consagrou o futebolista como o mais popular ícone do papel masculino de vitorioso e como símbolo de ascensão social, herói de massas e nacionalidades. Em torno de 1958, quando o Brasil foi campeão da Copa pela primeira vez, o jogador era visto quase como um xucro anônimo, um gladiador nas arenas, cuja função era divertir o público. Nelson Rodrigues tem várias crônicas ótimas em que discorre sobre esta sua relação de admiração e, ao mesmo tempo, desprezo, pelos atletas. Aos poucos, porém, eles foram se impondo como pessoas ativas e influentes na sociedade, verdadeiros ídolos. Na década de 70, ocorre, enfim, uma mudança final, de uma fase puramente machista, para outra mais liberal, em que o craque é também alguém desejado sexualmente e que dita moda fora dos campos. Isso pode ser notado na imprensa. Quando realizamos a pesquisa para Asa Branca, eu e meu irmão trouxemos de Manaus a enorme coleção de revistas Placar de nosso irmão caçula, Cláudio. Além dos textos começarem a ironizar tabus como o homossexualismo no futebol, as fotos haviam ganhado a coragem de tratar os jogadores como corpos lindos, absolutamente deusificados. E era isso que eu queria, ainda na minha busca pela mítica do Brasil: pegar o brasileiro e transformá-lo em algo idealizado até as últimas conseqüências. Como se tratava de um filme pautado por um personagem, sabia que ele tinha de ser autêntico, verossímil. Então, resolvi ir a fundo na pesquisa. Passei quinze dias dormindo na Escola de Futebol Vicente Feola, do São Paulo Futebol Clube. Fiquei lá, entrevistando e fotografando os garotos. Acompanhava os treinos, as refeições, os exames médicos. Outra parcela do roteiro surgiu dos relatos de jogadores de futebol já profissionais com quem eu tinha intimidade, lá em Manaus e aqui em São Paulo. Tudo isso foi compondo o Asa Branca, tanto o filme quanto o personagem. O incentivo da Secretaria de Cultura de São Paulo ainda era muito pouco, então levei Asa Branca para a Embrafilme. Naquela época, Celso Amorim, atual Ministro das Relações Exteriores do governo Lula, havia aberto as portas da instituição, finalmente aceitando novos cineastas. Eu consegui um financiamento mínimo, de US$ 150 mil, então o menor orçamento da Embrafilme. Mas não me desanimei e passei logo à pré-produção. O Gualter e eu rodamos o interior do Estado de São Paulo em busca da locação ideal para ser Mariana do Sul, a cidadezinha na qual Asa Branca passa sua infância e adolescência. Íamos fotografando cada município. Eu queria um ar interiorano, simples, mas, ao mesmo tempo, muito luxo nos clubes sociais. E, na pracinha central, um bar que remetesse à modernidade de Brasília. Minha inspiração era claramente a Manaus da minha infância, em especial a sorveteria Pingüim ao lado de casa, onde a turma se reunia. Foi difícil achar uma única cidade com todas estas qualidades. Nas que pareciam mais promissoras, eu tinha vontade de gritar quando via a decadência dos clubes. Até que, em Americana, uma estudante da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP veio conversar com a gente e depressa matou a charada: Isso aí que vocês procuram é Santa Bárbara d’Oeste. E era mesmo. Até o bar, do jeitinho que eu queria. Nem precisei construir o cenário. 16. Encontrando o Verdadeiro Asa   Escolher o elenco também foi complicado. Alguns vieram fáceis. Walmor Chagas, eu já conhecia da época de Labirinto. Gianfrancesco Guarnieri, quem trouxe foi o Roberto Santos, de sua parceria na obra-prima que é O Grande Momento. E, para convencer a Eva Wilma, eu contei com a ajuda de sua filha com John Herbert, Vivian Buckup, uma menina linda de morrer, que eu conheci lá na ECA enquanto fazia o Rasga Coração. Inicialmente, eu a queria como namoradinha do Asa e Eva como mãe dele. Mas Vivian não se interessou de pronto, só depois toparia o papel. Outra parcela veio do grupo Pod Minoga, que, como eu já disse, ocupava o galpão em frente ao meu estúdio fotográfico. Usei Flávio de Souza, Mira Haar, Iara Jamra, todos como amigos do jovem Asa Branca. E, para sua namorada, decidi enfim por Regina Wilke, também do Pod Minoga, linda e excelente atriz. Seu único problema era o marido, o cartunista Paulo Caruso, um poço de ciúmes. Ele nem deixou que ela fizesse a cena do beijo de despedida, quando Asa sai de Mariana para jogar na capital. E ali a história pedia por um beijo cinematográfico! Fiquei chateado mas tive que aceitar. Pior seria se o Paulo se enfezasse de vez e tirasse Regina do filme. Naquele tempo, a única coisa que eu via na TV era o Cassino do Chacrinha. Eu adorava. E encasquetei que Rita Cadillac tinha que ser a esposa do cartola do clube em que Asa jogava. Entramos em contato e ela veio fazer um teste no estúdio. E, tadinha, estava tímida, assustada, mal olhava para a gente. Era outra pessoa completamente. O José Possi Neto me auxiliava nos testes e estava preocupado. Essa mulher não vai funcionar, dizia. E eu respondia: Não, tem que ser ela, ela é maravilhosa! Pois quando lhe emprestamos um casaco de pele da Vera Roquette e começamos a fotografá-la, ela se revelou. Começou a se mover para a câmera com uma sensualidade tão natural que todos ficaram encantados. O vestido para ela criado especialmente pela Tânia Marcondes e pelo Felipe Crescenti só para a sua cena, lá pelo fim das filmagens, mesmo sem mais nenhum tostão no bolso, foi o prêmio que a Ritinha sempre merecera: a Cadillac, de fato, uma lady do povo. Outra participação especialíssima, em uma única cena, foi a do Garrincha, quando Asa sonha com a seleção brasileira campeã mundial, no Maracanã. Originalmente, estariam ali todos os jogadores de 1958. Havíamos contatado todos e até o Pelé tinha aceitado. Só que, quando conversamos com o Zagallo, ele considerou um absurdo o cachê simbólico que podíamos lhes oferecer. Não apenas desancou a Vera Roquette no telefone como ligou para todos os ex-colegas e os dissuadiu de participar. Quer saber? Eles que se danem!, estrebuchava. Tem outro jogador que é melhor que todos eles e que precisa mais do dinheiro. Nós íamos gastar quanto com essa gente? Uns quatro mil dólares? Vai tudo pro Garrincha! E acho que foi a decisão correta. Ele vivia humildemente lá em Bangu e foi um amor durante a filmagem. Além disso, ele havia sido tema de Garrincha, a Alegria do Povo, um dos poucos filmes do Cinema Novo que assistira ainda em Manaus, e ao qual Asa Branca se reporta constantemente. O tempo se passou e, faltando quinze dias para começarmos as filmagens, eu ainda não havia realizado a mais importante seleção de elenco: o ator para interpretar Asa Branca. Marco Aurélio Marcondes, gerente de distribuição da Embrafilme, já de olho no potencial do longa, insistia em Tony Ramos. Mas eu já havia me definido. Queria um ator novo, desconhecido, puro. O elenco de apoio, sim, é que tinha que contar com grandes nomes. Além disso, o tal ator tinha que saber jogar bola. Coloquei cartazes em clubes de futebol e na faculdade de Educação Física da USP. Vinham rapazes interessantes, mas que não sabiam atuar. Muitos eu utilizei para completar os times que aparecem no filme. Tentei também bailarinos, como Thales Pan Chacon e João Maurício, mas os dois tinham outra cabeça. Eles, ao contrário, atuavam, mas jamais passariam por jogadores de futebol (acabei realizando uma belíssima exposição só com fotos dos dois). Até que, um dia, minha irmã Francisca, que, embora nunca creditada, é a minha verdadeira diretora de elenco, viu um rapaz numa novelinha da Tupi. Fazia um papel de tímido, bem coadjuvante. Carlos Capeletti, ator e também da equipe de produção do Asa, tinha contatos na emissora e conseguiu convidá-lo para fazer um teste. No dia marcado, estava apenas eu no estúdio. Ele estacionou uma Brasília azul na calçada e veio caminhando pelo longo corredor que dava no estúdio. E, só de observá-lo, já tive certeza. Quando ele chegou até mim, falando sem parar de tão nervoso, eu simplesmente anunciei, na maior calma: Menino, você é o ator do meu filme. Dali em diante, Edson Celulari e eu trabalharíamos juntos por 14 anos. 17. Luz, Câmera, Ação!   Fiz alguns testes com Celulari, mera formalidade. Deixávamos uma bola por ali, ele logo a dominou e fez alguns dribles. Gostava de futebol desde pequeno. Tirei algumas fotos, ele com gaiolas de passarinho ou fazendo embaixadas. No dia seguinte, voltou para acertarmos o cachê. Na Embrafilme, Marco Aurélio e seu então assistente, Rodrigo Saturnino Braga (hoje todo-poderoso senhor da Columbia Pictures no Brasil), ainda chiaram, porque diziam que nenhum craque tinha o biotipo do Edson. Eram todos batorés, baixinhos, por isso assim corriam mais. Eu dei Pelé e Sócrates como exemplo contrário e ponto final. Contudo, quando o filme finalmente parecia que ia engrenar, eu e Gualter recebemos a notícia de que meu pai havia falecido. Já era seu terceiro enfarto e deste ele não escapou. Foi um choque terrível. Ele, que financiara os meus primeiros curtas, não viveu mais alguns anos para ver meu sucesso com Asa Branca. Imediatamente voamos para Manaus e ficamos lá até a missa de sétimo dia. Adiamos o início da filmagem. Eu só tive cabeça para pegar numa câmera em 3 de setembro de 1979. As filmagens duraram exatos três meses, terminando em 3 de dezembro. Primeiro, rodamos todos os trechos de São Paulo; tiramos uma semana para organizar nossa ida para Santa Bárbara d’Oeste, onde ficamos quinze dias; depois mais uma semana de folga; e então registramos as cenas finais no Rio de Janeiro. Foi um itinerário apertado e muito, muito sofrido, com pouquíssimo dinheiro para despender. O primeiro dia de filmagem, lembro bem, foi no Campo de Marte, em um avião DC-3, que traz Asa para a capital. Depois, rodamos as cenas da pensão, muito inspiradas na minha experiência com os meninos do São Paulo F.C.; as festas, incluindo a cena da Ritinha; e todas as demais seqüências de São Paulo. A única coisa que eu deixei para o final foram as cenas de futebol. Não podia correr o risco de Celulari se machucar. Alguns treinos e jogos que se passam no interior, na verdade, foram filmados nos campos de várzea que existiam próximo ao Rio Tietê. No campo do Nacional, rodamos a cena em que o Edson derruba a trave. Tivemos de repeti-la inúmeras vezes e nunca dava certo. E isso porque minha verba para película era contada – em média, realizei Asa Branca em 4 para 1, ou seja, com apenas quatro takes para escolher o melhor. Sempre com duas câmeras, eu em uma e meu irmão na outra.   As cenas de jogo eram sempre complicadas. Quando anunciava para o Gualter e a Savietto que, no dia seguinte, iríamos filmar futebol, eles só faltavam morrer. As jogadas eram ensaiadas diversas vezes com um técnico do São Paulo, com o qual eu havia feito amizade, e que ensinou ao Edson todos os cacoetes e macetes de um verdadeiro craque. Mesmo assim, eram necessárias várias tomadas para que o resultado fosse no mínimo aceitável. Além disso, o trabalho de bastidores também era duro. Corríamos muito, perdíamos a voz. No Estádio do Pacaembu, também chegamos a filmar durante jogos de verdade. A cena em que Walmor conversa com Edson na boca do túnel para o vestiário foi rodada no intervalo de um Palmeiras versus Guarani. Tudo ensaiado e cronometrado para não perdermos a chance. Outra vez, colocamos o Edson para entrar num vestiário junto com os jogadores profissionais, ao fim da partida. A presença das câmeras acompanhando aquele anônimo alvoroçou a imprensa, que ficou se perguntando quem ele era, se era um novo contratado do time, etc. Mas, em São Paulo, a cena mais traumática acabou não envolvendo futebol. Foi o encontro entre Edson e Guarnieri, numa pastelaria na Rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros. Nossa preocupação era a encenação do atropelamento do personagem de Guarnieri, que ocorreria logo a seguir, com um dublê. Mas o diálogo foi muito mais difícil, porque ele havia bebido e estava ininteligível. Foi a única vez na vida que fiz som direto, para evitar ter de dublá-lo, mas a emenda saiu pior que o soneto: o trabalho de edição foi quase impossível por causa de sua fala emaranhada. Depois de tantas peripécias, achávamos que teríamos sossego no interior. De fato, Santa Bárbara d’Oeste nos recebeu de braços abertos, só que eram braços até demais. Nossa presença alterou a rotina não apenas da cidade, mas de toda a região. Vinham caravanas assistir às filmagens, como se fossem a um show. Na cena em que Cleyse Antunes (a personagem de Regina Wilke) desmaia ao ver o Asa, havia centenas de moradores acompanhando. Todo mundo batia palma a cada tomada. Eles davam trabalho, mas também eram muito legais. A comunidade nos acolheu com carinho. O prefeito mandou fazer funcionar a fonte da pracinha, que estava desativada há anos. A Romiseta, fabricante do primeiro carro nacional, tinha uma fábrica na cidade e nos cedeu cinco modelos de seu museu, para utilizarmos na reconstituição de época. Até os moradores conseguiram participar, como figurantes nos jogos ou na cena do baile. Uma garota que era a cara do Flávio de Souza, mal falada na cidade, segundo suas amigas, se tornou a irmã do personagem dele.   Nossa produção era tão precária que, para hospedagem, alugamos umas casinhas bem simples. O núcleo de direção inteiro – eu, Gualter, Possi e Crescenti – dormíamos no chão de um quartinho apertado, com um ventilador barulhento e grande feito uma hélice de avião dos anos 40, que uma das produtoras, a Marina Altenfelder, tinha trazido para atenuar o calor. Já era verão. Eu mesmo mal dormia, porque passava a noite decupando, na minha cabeça, as cenas que faríamos no dia seguinte. Sempre fui muito hábil em decupagem, até mesmo de improviso. Mas elas só acontecem na noite anterior a filmagem. Nem tudo, porém, dava certo. O tempo era curto e o dinheiro, mais ainda. A cena das Romisetas, por exemplo, não ficou boa, porque filmamos à noite. Dava dó do desespero em ver o Gualter distribuindo tão poucos refletores por um set tão grande quanto uma praça! Nosso parque de luz não era pobre, era miserável! Briguei muito com meu irmão por causa desta cena, apesar de todo o seu cuidado na fotografia. Quando percebi que não havia ficado do jeito que eu queria, não tive escolha: ou era assim, ou não era. Não tínhamos tempo extra para refilmagens. Prometi a mim mesmo que, depois de Asa Branca, jamais voltaria a realizar externas durante a noite. E, pode comprovar, em Brasa Adormecida e Bocage, as externas são todas de dia! Por fim, o incidente no Maracanã. Meu tio da Federação Amazonense de Futebol conseguiu, com amigos cariocas, a permissão para que utilizássemos o estádio durante um dia inteiro e por duas horas à noite, com os holofotes ligados. Quem cuidou de tudo foi o Fábio, filho do tio Flávio. Ele conversou com os cartolas e armou toda a produção. Era um dia de vestibular e a Penalty nos cedera gratuitamente trezentos uniformes completos. Propomos um acordo aos estudantes que estavam fazendo a prova: quem figurasse no filme podia ir embora com o figurino. Era a cena em que, sonhando, Asa é aclamado pelos fãs, e acaba sufocado enrolado numa gigantesca bandeira do clube. Preparamos uma bandeira tão grande que ocupava metade do campo do Maracanã. Depois das filmagens, ela rendeu uma centena de lençóis que doamos para uma instituição de caridade. Por último, deixei para rodar a cena em que Asa joga bola com a lua e Garrincha. Sabia que ia dar confusão. E não deu outra: quando os cartolas viram aquele homem nu em pêlo no meio do campo do Maracanã, ameaçaram cortar a luz e botar os viados pra correr. E o Gato (Fábio), usando todo o prestígio do pai, tentava se explicar para os cartolas que haviam levado esposas e filhas para assistirem às filmagens! Foi um Deus-nos-acuda, enquanto lá embaixo eu botava toda a equipe, Garrincha, Celulari, o Póca, em ação. Filmamos na marra! Havia trilhos para travelling, mas tiveram de ser abandonados, para desgosto do Gualter, que planejara os mais belos movimentos de câmera... Esses últimos dias foram dolorosos. Já não tínhamos um tostão. Para se ter uma idéia, nas tomadas aéreas de Mariana, eu, que morro de medo de voar, me enfiei no avião sem nem pestanejar, porque nosso piloto havia aceitado trabalhar de graça. Quando as filmagens se encerraram, eu estava esgotado. A via-crúcis de Asa Branca, porém, mal começara. Mais uma vez eu ia penar para finalizar uma obra minha.   18. A Embrafilme   Na primeira cena com Asa Branca, eu queria uma aparição magistral, digna de um personagem que, afinal, sustentava todo o restante do filme. Rodei vários takes com o Celulari, gastei rolos e mais rolos de película. Foi a única vez que me dei a este luxo na vida. E me lembro que, quando a Vera Roquette descobriu, fez o maior escândalo. Disse que, se continuasse assim, não chegaria na metade do filme. Pois bem, cheguei na metade sim. Passei dela, mas não fui até o final. Para isso, dependeria mais uma vez do financiamento de terceiros. Mais especificamente, da Embrafilme (Vera e eu até tentamos captar recursos por fora, com o irmão dela, então dono da Atlântica Boa Vista, só que ele preferiu investir num filme B, picaretagem internacional, chamado Piranhas. Deve ter se arrependido amargamente: ele sequer foi convidado para a estréia e nunca mais reouve o dinheiro aplicado!). Celso Amorim me explicou que, agora, não poderia mais requisitar dinheiro do setor de produção, e encaminhou proposta para adiantamento sobre minha parcela na distribuição. E quem cuidava desta área era Marco Aurélio Marcondes, o mesmo que insistira em Tony Ramos para o papel principal. O Marco Aurélio me fez esperar por quase um ano. Ele nem me recebia, quando eu ia lá na antiga sede da Embrafilme, na Rua Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro. Ali, na frente, havia a igreja de Santa Rita de Cássia, e, antes das minhas tentativas de reunião, eu sempre ia acender uma vela e rezar.  Juro que rezava pelo cinema brasileiro todo, vivos e mortos. Mas era desesperador. Foi quando pedimos ajuda ao Leon Hirszman. A Savietto também fora assistente do Leon em Eles Não Usam Black-Tie e os dois namoraram. Acho que, apenas em respeito ao Leon, Marco Aurélio aceitou conferir um portfólio do filme, levado pessoalmente por ela. Aí, a coisa mudou de figura. Quando colocou os olhos sobre o material, Marco Aurélio ficou logo entusiasmado com Asa Branca. Entusiasmado em excesso, eu diria. Perguntou de quanto precisávamos e Savietto, que já tinha consigo todos os dados, deu o valor. O valor, veja bem. O preço que pagamos foi muito mais alto. O dinheiro foi liberado, mas Marco Aurélio começou a pressionar a finalização, dando palpite em tudo. Acreditava que um filme sobre futebol, no Brasil, poderia atrair facilmente quatro milhões de espectadores. Eu sabia que isso não era verdade. As restrições orçamentárias impediram que eu incluísse em Asa Branca cenas de futebol que realmente empolgassem uma platéia torcedora do melhor futebol do mundo. O filme não funcionaria se fosse vendido como uma história de futebol. Marco Aurélio discordava e exigiu que o filme baixasse sua duração de mais de duas horas para uma hora e quarenta. Assim, poderia ser exibido cinco vezes ao dia em cada sala de cinema, ao invés de quatro. Ele até mesmo apontou quais cenas queria que fossem cortadas – evidentemente, as mais polêmicas. De cara, o nu de Celulari no Maracanã, que eu captava da cabeça aos pés (Uma lambida da câmera de Limongi, como diria o crítico Edmar Pereira), foi a primeira a ir para o lixo. A cena da bandeira gigante, idem. Quem sofreu ainda mais com esta arbitrariedade foi meu montador, José Motta. Sem grana, nós havíamos montado o filme numa moviola emprestada pelo Palácios, em plena Boca do Lixo, que só podíamos usar da meia-noite às 4h da madrugada. Era de chorar, porque além do ambiente ser cruel, tudo caindo aos pedaços, o clima era assustador, tipo Zé do Caixão. Para a redução, pelo menos, conseguimos trabalhar na moviola italiana, novinha, que a Cinemateca Brasileira tinha acabado de adquirir, instalada no Parque da Conceição. De fato, Asa Branca – Um Sonho Brasileiro precisava dos seus 122 minutos originais. O filme tinha uma envergadura mais majestosa, como a de autêntica saga de um herói. Acredito que foi o impacto desta versão completa que me garantiu os prêmios que recebi no Festival de Brasília – recompensas merecidas, porque, modéstia à parte, o filme era um impacto estético na produção do cinema brasileiro daquela época.   19. Crítica e Público   Como havia previsto, Asa Branca, lançado em 1982, não levou multidões ao cinema. Mas também não decepcionou: 600 mil espectadores, excelente performance para o filme de um diretor estreante e com pouca propaganda. Mas, naquele tempo, longas nacionais de sucesso chegavam fácil aos hoje tão sonhados dois milhões de espectadores. O problema do Asa Branca era que os homens se decepcionavam com o futebol, enquanto as mulheres, que mais se apaixonaram pelo filme, hesitavam vê-lo exatamente por causa do tema. Além disso, acredito que Asa Branca era transgressor e polêmico em sua proposta estética, até mais do que em sua insinuação homossexual. Eu tinha a intenção clara de me comunicar com o grande público, mas acho que, até hoje, o brasileiro se incomoda quando encara seus próprios mitos. É mais fácil lidar com a problemática, com o sofrimento, com o comportamental moralista – acho que fazem parte do pathos étnico do povo brasileiro, sei lá. É uma cultura cheia de ambigüidades cuja identidade até existe, mas é negada sumariamente para aproximar-se de tudo que não seja comprometedor, ou seja, a fantasia dos filmes estrangeiros. Disfarçadamente, Asa Branca também é um filme culto, sutil, delicado. Daí a recepção da crítica ter sido, no geral, calorosa. Em 1982, Asa Branca não apenas concorreu como venceu o Festival de Brasília – um festival que nós havíamos visto nascer, fundado pelo Paulo Emílio Salles Gomes, na época em que ainda morávamos por lá. Aquela primeira edição foi fantástica, vencida por A Hora e a Vez de Augusto Matraga, do Roberto Santos, mas que contava também com pesos-pesados como São Paulo S/A, do Luis Sérgio Person, Menino de Engenho, do Walter Lima Jr., e o meu favorito, O Desafio, do Paulo César Saraceni. Só de estar lá, naquela segunda vez, não como espectador, mas como diretor, ao lado destes colegas, já era uma honra. Dentre as turbulências do Festival, a mais difícil de enfrentar foi ter como rival logo o Joaquim Pedro de Andrade, cujos filmes eu amava! Ele concorria com O Homem do Pau Brasil, então o filme mais caro já produzido pela Embrafilme, orçamento de US$ 400 mil. Na decisão da categoria de melhor longa-metragem, os jurados dividiram-se igualmente em apoio ao meu e ao dele. O voto de Minerva cabia ao presidente da Embrafilme, o embaixador Celso Amorim. E eu soube, tempos depois, por alguns dos jurados, que ele solenemente anunciou que, por força de seu cargo, precisava dar o voto à produção em que mais havia investido.   Joaquim levou o troféu de melhor filme, mas minha vitória como melhor diretor foi o suficiente para que ele ficasse quase três anos sem me dirigir a palavra. Bem eu, que gostava tanto da obra dele. Encontrei-o uma vez no Rio, na porta de um teatro, em 1984, pouco antes de sua morte. Tive, enfim, a chance de fazer as pazes, me declarar como seu fã incondicional, e me lembro que ele me abraçou, muito tocado. O mesmo estranhamento que eu havia causado com Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora, em 1968, no auge do Cinema Novo, parecia se repetir treze anos mais tarde, com meu primeiro longa. Em meio a outras obras com forte influência tanto do Cinema Novo quanto da repressão política, a minha parecia um desvario, um sonho pessoal. Um filme político apenas na proposta estética, que indicava um novo caminho para o cinema nacional – um caminho que, acho eu, só foi vingar agora, na retomada. É o cinema que, por exemplo, Walter Salles Jr. faz em Central do Brasil (98). Houve resistência contra essa inovação, claro. Mas acho que herdei essa característica do meu pai: sou abre-caminhos. Pioneiro, facilitador para quem vem a seguir. Foi só em Brasília que o Asa Branca foi maltratado por uma parte da crítica. Houve quem me chamasse até de nazista, por idealizar demais meu herói! Acusavam o filme de ser veículo do governo Médici, sendo que Gualter e eu passamos dias no table-top das fotos do Asa, inserindo-o entre os tricampeões de 1970 e apagando artesanalmente (não havia scanner...) toda e qualquer referência ao uso que o governo ditatorial fizera daquela vitória brasileira. Outra análise me acusava de trair o público, porque o filme começava com leveza em Mariana e depois se tornava sombrio e dramático em São Paulo. Mas eu queria mesmo que fossem duas metades conflitantes no filme; um contraste da aspereza da cidade grande com o resgate inicial quase poético, fantasioso, da adolescência num ambiente quase rural. É isso que justifica, por exemplo, o nonsense de Mariana, como o figurino caricato do técnico ou a cena em que a estátua atira uma flecha. Mais uma vez minhas influências do Cinema Novo eram evidentes: eu repetia algo que me encantara no Leon Hirszman de Garota de Ipanema, cujo filme tem a estrutura de seu personagem – seu sonho aos poucos sendo esvaziado pela realidade. Mais uma vez, acho que o conjunto teria funcionado melhor se a duração original tivesse sido mantida. Asa Branca também foi para o Festival de Gramado e 1982 foi um daqueles anos de grande safra. Asa concorria com O Sonho Não Acabou, de Sérgio Rezende; Luz Del Fuego, de David Neves; e Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, entre outros. Em Brasília, eu até cheguei a pensar que tinha mesmo chances de ganhar. Em Gramado, não. Pra Frente Brasil era um filme extremamente necessário naquele momento que o país atravessava. Eu gosto muito dele. Mas, assim como Joaquim Pedro de Andrade, Roberto Farias virou a cara para mim quando venci a categoria de melhor diretor. Ele ficou mais bravo ainda quando o prêmio de melhor ator não foi para seu irmão Reginaldo, e sim para Walmor Chagas, tanto por Asa Branca quanto por Luz del Fuego. Pior e muito engraçado foi quando anunciaram a escolha da crítica pelos alto-falantes do hotel Serra Azul e o Asa vencia as categorias de filme, direção e ator! A revelação nos pegou todos desprevenidos no nosso quarto – saímos correndo assim que ouvimos os nomes. Só que estávamos um sem camisa, outro de pijama, outra de calça e sutiã. E no fim do corredor, encontramos os Farias todos de smoking, prontos para a festa. Verdade é que tenho a maior admiração por Roberto e Reginaldo, e considero Assalto ao Trem Pagador um dos meus filmes brasileiros preferidos. Em novembro de 1982, Asa Branca foi escolhido entre dezenas de concorrentes de países do Terceiro Mundo como o melhor filme do Festival des Trois Continents, em Nantes, na França. A alegria maior foi quando, no dia seguinte, o crítico Louis Marcorelles fez altos elogios ao filme em artigo de capa do jornal Le Monde. No Brasil, no ano seguinte, veio consagração definitiva com o Prêmio Air France de Cinema: Asa Branca venceu nas categorias de filme, diretor e ator. Recebi os troféus com ainda mais ânimo, imaginando que esta boa repercussão facilitaria a obtenção de um grande financiamento na Embrafilme para o próximo filme. Ledo engano. Capítulo V 20. Os Primos Levei nada menos que cinco anos para lançar meu segundo filme. Mais uma vez, passaria um longo período submetendo vários roteiros para análise. Rio Máximo Amazonas, em uma nova roupagem, foi o que chegou mais próximo de ser concretizado, com uma parceria entre Brasil e França. Mas depois, sem explicação, os franceses desistiram. Outro projeto, para o cantor Ney Matogrosso, retomava minha paixão por Chacrinha. Queria fazer um musical, uma história mais ou menos assim: o Velho Guerreiro era  seqüestrado e o caso era investigado por um personagem andrógino chamado Pan (misto de Peter Pan com o fauno de Sonhos de uma Noite de Verão). Batizei o projeto como Pan, Amor e Fantasia, alusão aos longas italianos do pós-guerra que via com minha avó. Acho que foi descartado, em grande parte, por ser um musical. Continuo até hoje, em 2004, tentando fazer um filme neste gênero – caso dos meus dois últimos projetos (também recusados...). Não faltavam atores interessados nas minhas idéias. Ponte sem Retorno havia atraído Paulo Autran, Lilian Lemmertz e, depois que ela morreu, Marília Pêra, além, claro, de Edson Celulari e Walmor Chagas. Autran seria um operário-modelo do ABC cujo filho (Celulari), um universitário, era preso por porte de maconha. O pai descobriria, então, que o rapaz tinha um caso com uma mulher maravilhosa (Lilian/Marília) mas também com um homem (Walmor, repetindo assim o casal de Asa Branca). E o legal do roteiro é que o personagem de Autran, ao invés de se voltar contra o filho, se envolveria de tal maneira no universo dele que ele mesmo se transformava e não podia mais voltar atrás. Algo que antecedia (ou ia junto) com o revolucionário cinema que Pedro Almodóvar – o grande cineasta da minha geração – haveria de realizar. Este projeto, porém, provocou reações ainda mais adversas que Pan. Carlos Augusto Calil, amigo meu até hoje, havia assumido a direção da Embrafilme e opôs-se violentamente ao projeto, argumentando: Você quer se tornar o cineasta gay brasileiro? Sua proposta é um filme gay. Você não deve produzi-la. Você tem capacidade para dirigir um filme que acumule público de quatro milhões e é isso que eu quero que você faça.   Eu sabia que realmente tinha capacidade para realizar um grande sucesso popular. E Asa Branca, de certa maneira, tinha uma ambigüidade narrativa que convenceu todo mundo do mesmo. Só que eu estava interessado, naquela época, em fazer filmes que tivessem a minha cara. Que fossem autorais. Que fossem parte da cultura brasileira de vanguarda, não para dar corda na nascente indústria cultural nacional. Calil, no entanto, estava resolvido. E me designou para uma pornochanchada escrota chamada Os Primos, sob produção de Aníbal Massaini. O roteiro era asqueroso, no nível daquela série americana Porky’s. Basta dizer que, em dada cena, um menino se masturbava vendo a prima trocar de roupa. Eu, na hora, quis pular fora. Em uma semana, adaptei Memorial de Aires, de Machado de Assis, junto com meu irmão e Maria Thereza Vargas. Mas Calil não aceitou. Com meu estúdio fotográfico falindo e desesperado para trabalhar, aceitei Os Primos, mas fazendo um enorme esforço de autopersuasão. Eu vou filmar bem, pensava. Vou fazer uma comédia completamente maluca e, como sei dirigir atores, o resultado vai ficar bem acima da média da pornochanchada. Vai fazer sucesso, eles vão achar bom e pronto. Mas era difícil entrar na onda. Quando ofereci um papel para Henriqueta Brieba, ela me ligou horrorizada, dizendo que aquele roteiro era um insulto à sua carreira de mais de 50 anos... O problema, no fim, foi o Aníbal Massaini. Como bom produtor, tudo que eu sugeria ele vetava imediatamente, por causa dos custos. E me falou uma grande verdade que  reinava no cinema nacional. Você está louco? No Brasil, ganha-se dinheiro com a produção, não com a distribuição! E eu, veja só que louco, queria gastar toda a verba da produção... na produção! Naquela época, este ainda era um conceito ingênuo demais. Dei as costas e saí andando. Como o prêmio da Embrafilme era nominal ao diretor, deixei o barco correr. Os Primos realmente ganhou um subsídio, mais uma vez ínfimo: US$ 120 mil. Ou seja, eu teria US$ 30 mil a menos que obtivera para a produção do Asa. Mas não importava. Assim que o recebi, me reuni com Massaini e anunciei: Você não está mais no meu filme. Foi o caos. Ele ficou uma arara, só desistiu de me processar porque Calil o acalmou. Nisso, eu me mudei de mala e cuia para a Raiz, produtora da Assunção Hernandes, que, depois de fazer os filmes do marido, João Batista de Andrade, havia cuidado pela primeira vez de um filme de fora, A Hora da Estrela, da Suzana Amaral. Começamos, eu e Gualter, a reescrever o roteiro todinho. Mantivemos só a base, que era um triângulo amoroso entre primos numa fazenda. Por causa deste argumento, meu irmão logo sugeriu um paralelo com Jules e Jim – Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 62, de François Truffaut), um de seus filmes favoritos. Mas eu nunca havia visto e recusei a idéia prontamente. Estava numa fase anti-Nouvelle Vague. A cada trabalho tento me reinventar, me renovar, então dessa vez queria algo que não traísse o que esperavam de mim, um filme para o grande público. Já achava ótimo que era uma comédia, um gênero diferente do drama de Asa Branca. Tivesse eu seguido o conselho do Gualter e assistido a Jules e Jim, minha reformulação para Os Primos teria tomado o rumo que, no fundo, tanto almejava. Mais radical ainda foi a decisão de, ao tentar aniquilar a origem pornográfica do projeto, levá-lo sem querer para um puritanismo absoluto. Anos depois, quando tentei vendê-lo para a exibição na Rede Globo, o funcionário da programação viu a fita toda e disparou: Pô, você faz um filme com a Maitê Proença e não mostra nem um peitinho? De qualquer maneira, estávamos lá, o Gualter e eu, num jogo de idéias, recriando a personalidade de cada um dos coadjuvantes da história. E, aí, foi quando ele pensou em outra referência cinematográfica, por causa do ambiente campestre: Brasa Dormida (28, de Humberto Mauro). Esta eu achei genial. Sempre considerei Ganga Bruta (33, de Humberto Mauro) um dos melhores filmes mudos não só do Brasil, mas do mundo inteiro. E, assim, alterando o rosto de Os Primos e homenageando o grande cineasta nacional, foi surgindo meu segundo longa, Brasa Adormecida. 21. Acendendo a Brasa   Tentei reunir, no Brasa, a mesma equipe e praticamente o mesmo elenco de apoio de meu filme anterior. Queria fazer à maneira de Buñuel e Bergman, que sempre trabalharam com os mesmos colaboradores. Mas, no Brasil, isso é pura ilusão. Não há como mantê-los porque a freqüência com que se consegue produzir filmes é muito baixa. Entre os que permaneceram, estavam Tânia, Vera, Motta e Crescenti. Houve alguns acréscimos que enriqueceram muito essa minha segunda experiência atrás das câmaras. Felipe Crescenti, figurinista do Asa, passou a cenógrafo. Cedeu o cargo anterior ao Patrício Bisso. E, pelo Flávio Império, cheguei a seu sobrinho, Cao Hamburger, que havia acabado de lançar Frankenstein Punk (86, de Cao Hamburger). Foi ele quem cuidou de muitos efeitos especiais do Brasa; Paulo Schettino, dos demais. Aliás, esses meus dois primeiros filmes revelaram muitos talentos que estão até hoje por aí. Jacob Solitrenick, premiado em Gramado por Durval Discos (2002, de Anna Muylaert) era assistente de fotografia de Gualter. E Katia Coelho era sua assistente de câmera (como ocorrera com Asa, realizamos Brasa sempre com duas câmeras). Ticão, o primo interiorano que tenta impedir o casamento do primo Toni com  Bebel, fora criado para o Celulari. Restava completar o triângulo amoroso. Para o Toni, eu queria Lauro Corona, com quem sempre sonhei trabalhar. Mas, além de haver problemas em sua agenda, ele era muito baixinho para contracenar com a Maitê Proença, minha Bebel. Escolhi então Paulo César Grande, que havia despontado no teatro, em Bent, e que funciona magnificamente no filme. Nunca esteve tão lindo nem nunca haverá de estar. A Bebel, como disse, acabou sendo a Maitê, mas não foi escolha assim tão fácil. Pelo contrário, foi a que mais tirou meu sono. Não, porque, como no Asa, faltava alguém à altura do papel. Era o inverso: simplesmente tanto Maitê Proença quanto Malu Mader se apaixonaram por Bebel – ambas  lindas, novinhas e ainda almejando a celebridade... E eu imediatamente me encantei pelas duas. Não tive coração para escolher. Cheguei a consultar cartomante, bruxa, I-Ching. E me lembro que o I-Ching indicou a Maitê, mas, no final, baseei minha decisão em outros critérios. Para ser sincero, a minha paixão era mesmo a Malu. Mas a Maitê era a mulher mais linda que eu havia visto na vida. Seu corpo era um deslumbre. Além do mais, ela tinha um tipo de beleza mais clássico, mais anos 60, à la Grace Kelly, como Brasa Adormecida pedia. Malu é um tipo mais urbano, agressivo, aliás, com esta imagem ela se transformou em estrela.   Foi uma tristeza lhe dar a notícia. Liguei para ela e contei que havia escolhido outra. Ela só perguntou: É a Débora Bloch? e eu disse que não, que era a Maitê. Ah, ainda bem. Não entendi muito, elas deviam ter alguma rivalidade. A ironia é que eu realmente sondei a Débora, mas na época em que ainda era a chanchada Os Primos. Mas tudo acabou bem: seis meses depois do lançamento de Brasa Adormecida nos cinemas, Malu explodiu com a minissérie Anos Dourados, que, por coincidência, também era ambientada na mesma época e emprestava nosso Tom Jobim. O único problema foi que a saída da Malu implicou a saída de Hugo Carvana, seu grande amigo, que estava escalado para o papel do pai de Bebel, um almirante rígido mas muito cômico. Como eu só fui me definir pela Maitê a uma semana de começar a rodagem, já estávamos na locação, filmando, quando Carvana telefonou dizendo que não ia mais atuar. E o figurino dele já estava pronto, feito para suas medidas! Aí, quem deu a solução foi a Ilka Soares, que eu adorava, da época das chanchadas. Por que não chamam o velho Anselmo?, sugeriu. Ela se referia ao ex-marido, Anselmo Duarte. Eu sei que, no final, vai sobrar para mim agüentá-lo, mas não faz mal, eu topo, brincou. Eu achei o máximo, já que o primeiro filme que vi na vida foi Aviso aos Navegantes (50, de Watson Macedo). E lá veio Anselmo, supereducado, vestido de novo de marinheiro. Olha, é coisa do além mesmo, porque se houve substituição maravilhosa, foi essa! A única outra escolha que me deixou tão ou mais tenso que a de Bebel foi a de Tom Jobim. Seria, talvez, mais justo dizer que foi ele quem escolheu Brasa Adormecida, não o contrário. Ele só havia participado dos filmes do Saraceni e, quando o sugeri para compor a trilha sonora, todos me diziam que ele iria cobrar US$ 10 milhões. Mas eu quis tentar mesmo assim. Uma das assistentes de cenografia, Urszula Grozka, topou fazer a produção musical da trilha, e consegui contatá-lo, depois que já havíamos rodado todo o filme. Ele havia recém-chegado dos EUA, onde tinha se exilado depois que a bossa-nova entrara em declínio por aqui. Levei o filme em banda dupla para um estúdio da Herbert Richers no Rio de Janeiro, onde ele teve uma sessão exclusiva. O filme não estava nem finalizado: as dublagens ficavam numa banda e algumas músicas noutra. Havia versões de Dindim (Dindi) cantadas pela Dolores Duran, Silvinha Telles e Maysa; Only You interpretada pela Dolores Duran; duas músicas do João Gilberto; um poema lido pelo Vinicius de Moraes; e Ruby, a célebre gravação Ray Charles, que era a música-tema da protagonista.   Tom Jobim assistiu a tudo na primeira fileira. E eu, meu irmão e a Urszula cruzávamos os dedos na última. De vez em quando, o Paulinho Jobim, filho dele, olhava para trás e nos fazia um sinal de que Tom estava gostando. Depois da projeção, ele elogiou o filme e disse que era muito engraçado eu tentar algo naquele gênero, que, na época dele, seria tachado como alienado. Mas ele ainda precisava de um tempo para decidir. Fiquei uma semana no Rio esperando, ansioso, a resposta. Então ele marcou de almoçarmos lá na Plataforma, a churrascaria que era seu reduto. E eu não estou brincando: fomos almoçar e só saímos às 20h. Ficamos lá a tarde toda, ele divagando sobre o canto dos pássaros, o nome das pessoas, o talento do Chico Buarque. E as pessoas vinham, sentavam com a gente, conversavam, depois iam embora, e eu lá, ainda sem saber. Ele bebericou uma garrafa inteira de whisky. E, depois de muito suspense, finalmente disse que ia fazer, sim, a música do Brasa. Cobrou pouquíssimo, só US$ 10 mil. Tempos depois, Paulinho me confirmou que ele realmente recebia propostas de Hollywood na casa de US$ 1 milhão. Mas ele não topava porque não gostava dos filmes. Então aquilo era, sem dúvida, um elogio ao Brasa. A única exigência que Tom fez foi a exclusão de Ruby, porque achava que era uma canção muito forte e que iria derrubar o restante da trilha que  comporia. E tinha razão. Isso acarretou na mudança do nome da personagem de Maitê, que até então era mesmo Ruby. Tivemos que redublar, e só assim é que ela virou Bebel. Nós gravamos lá no Rio de Janeiro mesmo. Todo mundo dizendo que ele daria muito trabalho, cheio de estrelismos, mas que nada! Foi um cavalheiro. Durante uma semana, todo dia, eu, o Gualter e a Grozka íamos buscá-lo em sua casa, e ele já estava na porta, de banho tomado e cabelo molhado. Íamos para o estúdio e, até às 16h em ponto, ele compunha, fazia os arranjos, improvisava, analisava os temas do filme. Não houve imprevisto algum. Só quando eu sugeri ao Paulinho que chamássemos o João Gilberto que ele me respondeu: Está louco? Eles juntos? Vão querer analisar cada nota! Aí, sim, seu filme só fica pronto daqui a quatro meses! Ainda na pré-produção, tão importante quanto definir o elenco era definir a locação. Precisávamos de uma fazenda marcante. Eu tinha um livro só com imagens de grandes propriedades do interior de São Paulo e fui visitando uma a uma. Quando entrei na Guariroba, próxima de Campinas, tive uma reação igualzinha à da primeira vez em que vi Celulari. Disse para meu irmão e para a Vera: Ou eu filmo aqui ou eu não filmo em lugar nenhum!  22. A Boa Vida na Guariroba     A Guariroba era uma fazenda de sonho. Linda, absolutamente linda. Era do Segundo Império, pertencera a um barão do café e ainda tinha seu vasto cafezal, onde rodamos uma das cenas. Os proprietários estavam fora, na Europa, e a nossa sorte é que o filho deles, Fernando de Almeida, era ator. Logo foi criado um papel para ele – o do cirurgião que, por todo o filme, tenta seduzir Ilka Soares. As filmagens duraram exatamente um mês – o de junho de 1985. Ficamos hospedados num local próximo, o Hotel Fazenda Andorinha. Logo no primeiro dia, Fernando convidou elenco e equipe para um jantar simples, que os empregados da casa prepararam para nos dar as boas-vindas. Serviram uma sopa deliciosa que, todos nós, ingênuos, devoramos. Mal sabíamos que aquilo era só a entrada: logo veio um banquete, com carneiro regado a vinho, tudo servido nas baixelas mais chiques da casa. Louça francesa e inglesa, que, aliás, foi toda utilizada no filme. A Guariroba era tão perfeita que mal precisou de ajustes no cenário. Nosso único acréscimo foi o piano de cauda, no qual Cao Hamburger gastou dois dias inteiros para realizar a animação das luvas mágicas. Fora isso, usamos o que tinha lá. Até mesmo o delicioso almoço baiano, numa das cenas mais engraçadas do filme, foi preparado de verdade pelas cozinheiras. A fazenda estava intacta e a família Almeida fez questão de que a devolvêssemos assim. A casa grande, durante toda a filmagem, teve o chão forrado de plástico. Havia um controle enorme de quem chegava e quem saía. E posso dizer que nada, absolutamente nada foi destruído ou danificado. Era o mínimo que podíamos fazer por aquele lugar maravilhoso, que nos acolheu numa filmagem muito, muito feliz. Chegávamos todo dia bem cedo, às cinco da manhã, num frio terrível, e a Guariroba surgia envolta em neblina. Só se via o topo das palmeiras-reais. Era de extraordinária beleza. Queria que o Gualter registrasse aquela imagem, mas trabalhávamos quinze horas por dia. Não dava para fazer o Gualter acordar uma equipe secundária inteira às 3h da madrugada só para satisfazer tal desejo de penosa tarefa. Mesmo trabalhando tanto assim, a produção de Brasa Adormecida foi um paraíso se comparada com a de Asa Branca. Para se ter uma idéia, meu pior problema era conseguir expulsar os atores que já haviam cumprido seus papéis. Porque, enquanto eu ficava filmando com um núcleo em algum ponto remoto da propriedade, o resto da turma ficava na piscina, andava a cavalo, ia ao pomar, essas coisas. À noite, a gente jantava junto e o velho Anselmo contava histórias e mais histórias dos bastidores do cinema. Só não podíamos mencionar o Cinema Novo, porque aí ele se atacava de ódio e fúria! A Maitê, então, era uma verdadeira espoleta. Adorava essas atividades ao ar livre. Só que eu tive que proibir tanto ela quanto Edson e Paulo de se aventurarem. Não queria um dos meus astros gripado ou com uma fratura por cair do cavalo ou de uma árvore. E, certa vez, cheguei no hotel tarde da noite e estavam todos os três, lindos de morrer, de maiô vermelho, na piscina gelada. Só pra me provocar! Aquilo era uma colônia de férias. A Miriam Pires, por exemplo, não queria ir embora de jeito nenhum. Foi um sacrifício colocá-la no avião em Viracopos. E, por mim, ficávamos todos lá, numa grande família. Mas a Assunção vinha de São Paulo de vez em quando, para controlar a grana. E, como sempre, eu continuava gastando demais, segundo a opinião dos produtores. A locação do Thunderbird original em cujo capô Maitê se deita provocou tamanha discussão entre mim e a Assunção que achei que ela ia deixar o cargo. É muito caro! Você tem que escolher entre esse carro ou o filme, dizia. E eu respondia na hora: O carro! A Vera Roquette, como boa diretora de produção, simplificava: Tanto faz um Thunderbird ou um DKW, dá no mesmo. Só que, a meu ver, são esses detalhes que minam a qualidade da reconstituição de época. A família de Bebel era a oligarquia do Brasil, jamais teria um DKW! Só rindo! Outra discussão foi o tamanduá, que teve de ser trazido de Mato Grosso, com fiscal do Ibama e tudo. Não apenas uma, mas mais duas bocas para alimentar! Foi tão caro quanto o Thunderbird. Na trama de Brasa, o bicho conversaria com a alucinada Miriam Pires. E a Vera Roquette insistia: Por que não uma galinha? Ou um peru? Aliás, todos os animais que usamos deram dor de cabeça – inclusive aqueles que nem aparecem no filme. Felipe Crescenti se esforçou para trazer várias carpas douradas para a cena em que o trio conversa na fonte, mas, toda vez que ligávamos as luzes, os peixes fugiam. Infelizmente, eu não podia me dar ao luxo de esperá-los se aclimatarem. Rodei sem eles mesmo. Outra ausência foram os pavões, que rodeariam Maitê na cena do balanço. Um vizinho da Guariroba trouxe-os de graça. Só que as filmagens se atrasaram e tive de deixar aquela tomada para o dia seguinte. Ele se irritou e foi embora. E, no final do filme, onde aparece aquela animação com girafas em chamas, eu queria os bichos de verdade diante das câmeras. Íamos trazê-las do zoológico de Campinas, mas, quando soube que teriam de viajar dopadas, achei muita crueldade. Desisti. Agora, catástrofe mesmo foi o gavião controlado pelo personagem do Celulari. Com poucas dicas do criador, Edson logo conquistou a confiança da ave. Ela vinha e pousava fácil no braço dele. Mas não tínhamos dinheiro para a trucagem de seu vôo, quando ela ataca os primos de Ticão. Tentamos filmar na grua, em mergulho, com o gavião pousado na mão de seu criador, convenientemente deixado fora do quadro. Só que o bicho não abria as asas! Então, no filme, ele voa meio assim, capenga... Se o Celulari se deu bem com a ave, o mesmo não pode ser dito das jibóias, que, em certo momento, seu personagem jogava sobre os convidados do casamento. Assim como eu, Celulari odeia cobras. Aliás, ninguém ficou confortável nos três dias que elas passaram na Guariroba. Só a Maitê, que as enrolava no pescoço e saía passeando, bem Luz del Fuego. E, completando a sessão bichos nojentos, houve também a filmagem com as aranhas – uma que Aninha Nascimento esmagava numa bundada, e outra que Cao fazia andar, patinha por patinha, puxando fios de náilon. A Guariroba era abençoada. Tanto que a única cena que rodamos em outra locação gerou um escândalo terrível. Para filmarmos o baile de debutantes, procuramos um salão que tivesse um estilo moderno, que lembrasse Niemeyer, afinal, a história se passava nos dourados anos JK. Descobrimos o saguão do Instituto Biológico de Campinas que serviria com perfeição, com uma enorme escada espiral. Foi uma luta para conseguir a autorização. E, bem no dia da filmagem, quando os representantes da universidade estavam observando, tudo desandou. O estopim foi o ciúme que o figurinista do filme, o ator performático Patrício Bisso, tinha da atenção que eu dava a Maitê. Ele circulava do cômico ao dramático, vivia como se a vida fosse um filme mesmo, e adorava aprontar cenas arrebatadoras. Certa vez, encontrei Bisso carrancudo, sentado embaixo de uma mangueira. Depois que aquela lá chegou, é tudo ela, tudo ela! Você não liga mais para mim!, resmungou. Eu tive de explicar que, dos meus três atores, a Maitê era a que mais precisava da minha orientação, pois sua interpretação precisava ser afetada, mas na medida exata, como eram as moças daqueles anos.   E, lá na Unicamp, a rixa entre os dois chegou a tal ponto que, por uma irritação de nada, Patrício Bisso deu um tapa num dos coadjuvantes. Gritou, xingou, fez birra. A Mira Haar saiu chorando, dizendo que não ia mais filmar... Enfim, foi um caos. E toda a diretoria do Instituto vendo aquilo. Na maior parte do tempo, porém, Bisso era uma figura, um amor de pessoa, muito divertido. Tinha dias que ele vestia uma peruca e um vestido e se apresentava a todos como a irmã lésbica da Bebel. Um sarro! Além disso, era muito competente, tanto que trabalhei com ele de novo em Calígula. A única outra pessoa que foi capaz de deixar 100% da equipe em total estado de nervos, como Patrício, neste incidente, foi Grande Otelo. No dia em que ele chegou para registrar sua participação especial, eu estava em outro ponto da Guariroba, já filmando. E, tadinho, mesmo com centenas de filmes no currículo, ele se sentiu desamparado e acuado, porque não conhecia ninguém ali. Resultado: começou a beber, beber, beber. Quando voltei, ele já estava fora de si. Não falava nada com nada, e, em certo momento, até se sujou. Tivemos de rodar a cena num take só, até ele acertar tudo, e só conseguimos porque Celulari ajudou a conduzi-lo. Aí, mandei a Assunção levar logo Otelo para Viracopos e nem embarcar ele conseguiu, a companhia aérea se recusava porque estava alcoolizado. Foi um terror. Eu, que venerava Otelo desde o tempo das chanchadas, fiquei em frangalhos. Todo mundo chorava. Essa imagem ruim do meu ídolo só foi desfeita muito depois, durante as dublagens. Já antecipando outro desastre, pensei: Não vamos trazê-lo para São Paulo; é melhor levar o filme até o Rio. E lá, ele era outra pessoa. Quando lhe mostramos o Brasa inteiro, ele se transfigurou. Virou a pessoa mais doce do mundo, pediu um milhão de desculpas pelo que tinha acontecido, muito humilde e envergonhado. Eu cheguei lá e estava tão apavorado, não conhecia ninguém, explicou. Mas agora estou entendendo tudo que eu fiz! Nossa, como o filme é bonito, que imagens lindas! E, talentosíssimo que era, dublou tudo com perfeição, remendou os próprios buracos de suas falas. Na trama, seu Preto Velho representava a bênção para o personagem do Celulari e, no fim, Grande Otelo foi também uma bênção para o Brasa. As filmagens de Brasa terminaram no finzinho do mês e, para comemorar e se despedir, Celulari e Maitê organizaram uma festa junina surpresa. Foi o encerramento perfeito. Desde criança, eu sempre adorei festa junina, mais até do que Carnaval ou Natal; eu e Gualter até animávamos um bumba-meu-boi que a Dinda tinha feito para nós. E aí, naquela noite, a Guariroba se iluminou com a fogueira e os fogos de artifício. Comemos, dançamos, brincamos. No dia seguinte, na hora do adeus, todo mundo chorava. Nós, o Fernando, o caseiro, as cozinheiras... 23. A Peste   Acho que o clima leve dos bastidores transparece em Brasa Adormecida. Mas, por trás da sua ingenuidade e até mesmo de seu puritanismo, há um subtexto sensual muito forte. O roteiro original que eu e Gualter criamos, assim que destituímos Os Primos, previa que não apenas Ticão e Toni eram apaixonados pela Bebel como também mantinham uma relação entre si. Próximo do clímax, quando o trio se encontra sob a forca na qual Ticão queria se matar, o Almirante deveria flagrar, pelo binóculo, um beijo entre os dois rapazes. Seria a revelação daquilo que está subentendido em outros trechos: todos os três ali se amavam, sentiam ciúmes mútuos e queriam ficar juntos. Mas esse beijo jamais aconteceu. Ele é apenas sugerido, numa elipse. Meu irmão insistiu para que filmássemos aquilo que o roteiro previa. Celulari e Paulo César estavam cientes e dispostos. A Savietto também insistiu para que eu registrasse o beijo. Depois você decide se usa ou não, dizia. A equipe inteira, enfim, me cobrava. E eu, que sempre fui tão ousado e libertário, fui o único que disse não. Eu estava apavorado e tinha motivos: no Brasil e no mundo, começavam a morrer as primeiras vítimas de Aids. Nem mesmo a ditadura militar, que colocou uma metralhadora na minha têmpora, me causou tanto pânico total quanto a descoberta da Aids. Era um inimigo desconhecido, sem origem, sem rosto, que estava matando amigos muito queridos ao meu redor. O próprio Flávio Império só não fez a cenografia do Brasa porque já estava morrendo. E foram-se Laurinho Corona, Carlos Augusto Strazzer, Marquito, Carlos, um amigo meu de Campinas, meu primo Fábio (o Gato do Asa), Edmar Pereira... que lista imensa!  E, por fim, alguns anos depois, meu irmão Gualter. Não se sabia o que era. Não havia informações. Era simplesmente tida como uma peste gay. Isto era ainda mais dolorido: o estigma sobre algo tão importante para mim, uma escolha sexual alternativa a que eu creditava uma grande liberação filosófica, política, afetiva. E, muito assustado, eu pensava: não sei se tenho Aids ou não, não sei se vou morrer amanhã, semana que vem, mês que vem. Então decidi que não queria que aquilo estivesse no meu testamento. Não quis incluir o beijo com medo de tomar uma atitude ostensivamente gay e angariar todo o preconceito que a caça às bruxas da Aids havia despertado. Hoje, evidentemente, me arrependo muito desta decisão firmada pelo pavor. Tanto que Bocage foi uma guinada de 180 graus: muito erótico, explícito, chocante. Naquela recusa ao projeto de Pan, Amor e Fantasia, Calil havia me perguntado se eu queria me tornar o cineasta gay brasileiro. E acho que, depois de Asa Branca, estava, sim, preparado para agarrar o título com unhas e dentes. Mas a Aids fez com que eu me retraísse completamente. Tomei uma atitude muito brasileira: fechei as comportas. Ao contrário, por exemplo, do espanhol Pedro Almodóvar, que encarou o touro de frente e foi com tudo. Por isso que sempre digo que Almodóvar concretizou aquilo que toda a minha geração perdida dos anos 80 gostaria de ter feito. Adoro os filmes do Almodóvar! As pessoas ainda hoje me cobram muito. Vários amigos me dizem: Você vai ter que ser o responsável pelo grande filme gay da retomada brasileira. Porque, afinal, até um país atrasado e conservador como Portugal já tem sua grande obra homossexual. No Brasil, o cinema ainda permanece machista, misógino e homófobo – mesmo nesta fase atual, que todos acreditam ser tão diversificada e democrática. A reação mais contundente à minha autocensura, contudo, veio de uma colega cineasta. Após a sessão de Brasa Adormecida no Festival RioCine, o único em que ele concorreu, Suzana Amaral chegou até mim e me disse com todas as letras: Você traiu seu filme, traiu seu espectador e traiu suas idéias: eles tinham de se beijar no final! Eu caí do cavalo.   24. A Carreira de Brasa Adormecida   O RioCine dedicou muitas outras críticas ao Brasa, tão amigáveis quanto a de Suzana. E nem todas tão justas. É inadmissível que a Embrafilme tenha gasto milhões numa comediazinha dessa, acusou um cineasta baiano desavisado em um dos debates. Djalma Limongi Batista revelou suas verdadeiras intenções: quer mesmo é fazer um cinema comercial, pontificou Maria do Rosário Caetano. A experiência foi de tal maneira desagradável que, novamente, me retraí. Decidi que, depois daquilo, não cederia Brasa Adormecida a nenhuma outra mostra ou competição. Ao menos pude contar com grandes aliados para me defender quando me faltava a palavra. Assunção, que sempre havia pegado no meu pé, se revelou. Ficou possessa quando mencionaram nossa verba milionária. Jogou na cara de todos que Brasa havia recebido o menor orçamento da Embrafilme e que tivemos de filmar em uma proporção ainda mais famélica que a do Asa – dois takes para um. Para irritar ainda mais a turma do contra, Maitê Proença foi escolhida a melhor atriz do festival, em detrimento de Carla Camurati, musa da Vila Madalena naquele momento. A escolha do júri até me espantou, mas é explicável: pouco após encerrarmos a produção, Maitê havia estourado com a novela Dona Beija, na Manchete. Tornara-se uma estrela. Tanto que nem participou da premiação. Fui eu que subi no palco para agradecer, sob uma torrente de vaias. Em meio ao coro, distingui uma voz. Djalma, você é arte, ela não é!, gritava. Era Paulo José, que conheci em Réveillon e que, naquele momento, namorava a Camurati (de quem gosto muito, como atriz e diretora, diga-se de passagem). Também gosto muito do Paulo e aquilo me magoou bastante. Todo o desfecho do RioCine foi chocante. Não porque eu achasse que devia ganhar vários prêmios. Cidade Oculta (86, de Chico Botelho), estrelado por Camurati, era mesmo melhor filme, e Chico Botelho também mereceu o troféu de direção. Mas houve outras categorias cujo resultado me ofenderam. Tom Jobim perdeu para Arrigo Barnabé como melhor trilha sonora! Aquilo não podia ser! Para completar, a Folha de S. Paulo começava a emergir como o jornal de maior influência e direcionava o País rumo a uma globalização vertiginosa. Tudo que era considerado excessivamente nacional era logo descartado. O crítico que analisou Brasa o tachou de brasileirinho, repleto de clichês do nacionalismo, por retratar com nostalgia a era JK e por ser embalado ao som da bossa-nova. Mas houve adesões irrestritas ao filme, como o apoio de Nelson Motta, no Rio, e de Rubens Ewald Filho, em São Paulo. Brasa Adormecida era muito diferente do que estava sendo realizado naquele momento. Era o auge da geração Vila Madalena, produzindo filmes dark, de temática urbana e pesada, como o próprio Cidade Oculta. Não só Brasa não se encaixava nesse perfil como não se adequava a nenhum outro. Ele é bastante difícil de se situar: é uma comédia juvenil, uma comédia de erros, uma fantasia, pudico mas também sensual nas entrelinhas... Hoje, todo mundo me pergunta como é que eu fui capaz de fazer um filme desse em plenos anos 80. Assim como ocorrera com Asa, a Embrafilme exigiu cortes para tornar Brasa mais comercial mas, por outro lado, o promoveu de modo equivocado. Minha intenção desde o início era contar uma história infanto-juvenil. Eu e Gualter havíamos decidido que seria como a adolescência de Narizinho e Pedrinho, do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Só que, com o sucesso de Maitê em Dona Beija, quiseram empurrá-lo como uma história de amor adulta. Além disso, Maitê e seu marido haviam conseguido um subsídio milionário junto ao Banco Safra para a divulgação. Só que deixamos o dinheiro investido na Embrafilme, que, também repetindo a velha história, atrasou o lançamento em um ano. Só que eram tempos de uma inflação voraz. O dinheiro de Maitê virou merreca. Brasa jamais foi promovido como deveria. Nem mesmo a trilha ganhou um disco! No geral, no entanto, o filme foi bem de público. Na verdade, rendeu mais quando apareceu em vídeo do que nos cinemas. Foi a fita nacional lançada pela Globo Vídeo de maior sucesso em 1987. Capítulo VI 25. Bocage versus Collor Quase simultaneamente à conclusão e ao lançamento de Brasa Adormecida, meu estúdio fotográfico na Rua Oscar Freire encerrou sua agonia financeira, prontamente acelerada, também, pela dissolução do grupo Pod Minoga, com quem eu compartilhava o terreno. Como solução temporária, eu e meu irmão levamos os equipamentos para a sede da Raiz, onde chegamos a trabalhar por certo tempo, mas Assunção já estava envolvida com A Dama do Cine Xangai (87, de Guilherme de Almeida Prado), e simplesmente não havia espaço suficiente para todos. Aos poucos, deixamos nosso material de lado, que foi ficando para os filhos da Assunção. Enquanto isso, Maitê e eu decidimos dar outro fim ao que restara do subsídio obtido com o Banco Safra. Sempre fui apaixonado por Nelson Rodrigues e tive a idéia de levar ao cinema Anjo Negro, uma de suas peças que pouco havia sido encenada. Maitê seria a protagonista, Virgínia. Eu até sondei, junto à viúva de Nelson, o valor dos direitos autorais – pouca coisa, em torno de US$ 2 mil. Só que, entrementes, a Globo já havia seduzido Maitê. Ela achou que meu projeto era pesado demais e talvez estragasse a imagem que ela havia construído. Coisas de atriz. Ironicamente, quando Bocage, o Triunfo do Amor foi para Gramado, em 1998, recebi uma ligação às sete da manhã no hotel. Era Maitê, querendo ressuscitar o projeto de Anjo Negro. Aí, quem não aceitou fui eu, porque achava que ela já não era mais adequada para interpretar a adolescente Virgínia. Mas tentamos outro projeto juntos: uma terceira versão de Rio Máximo Amazonas, desta vez um romance rasgado, esteticista, passado entre Belém, Manaus e Coimbra, em Portugal. Não deu em nada e ainda entrei no novo milênio com meu saldo bancário zerado. Voltando ao passado, aquela recusa de Maitê em protagonizar Anjo Negro me forçou a cogitar outros projetos até fora do cinema. Eu, ela e Celulari pensamos em encenar Dois na Gangorra ou Descalços no Parque. Seria minha estréia no teatro. Celulari já estava atuando nos palcos, em uma montagem de Fedra, de Racine, ao lado de Fernanda Montenegro. Ele vivia Hipólito, o enteado por quem ela se apaixonava. E, entre os dois, surgiu uma relação de muito carinho. Ela meio que o adotou artisticamente. E lhe deu, de presente, um livro lindo, enorme, repleto de gravuras eróticas, indecentes mesmo, inspiradas em... Bocage.   Quando Celulari me mostrou, eu achei aquilo demais. Imediatamente vieram à minha mente as piadas que eu ouvia quando criança. Não havia quem não as conhecesse. E, aí, surgiu a inspiração para realizar um filme acintosamente hedonista, erótico, a respeito daquele personagem provocador. Escrevi rapidamente o roteiro, que, na verdade, não tinha nada a ver com o Bocage que eu lancei mais de dez anos depois. Originalmente, era para ser uma produção rápida e rasteira, filmada toda dentro de um teatro, baseada exclusivamente em suas anedotas, numa ficção em que o único elemento real seria o próprio protagonista. Celulari seria Bocage e Maitê Proença, a cortesã Manteigui. As roupas seriam de época, mas o tom escolhido foi o da farsa histórica, uma sátira mais ou menos como depois veio a ser Carlota Joaquina (95, de Carla Camurati). E, como o assunto era comédia, farsa de verve erótica, não foi difícil conseguir a aprovação para financiamento. Mas, claro, estava tudo fácil demais para ser verdade. Já havíamos agendado o início das filmagens para junho – mês de sorte do Brasa. Mas, no começo do ano, havia subido ao poder o presidente Fernando Collor de Mello. E, em março, numa tacada só, ele desmantelou a Embrafilme, reteve os subsídios e ainda tomou nossas poupanças, no bendito plano econômico que levou seu nome. Como tantos brasileiros, fiquei na mão. Em toda a cena cinematográfica, o débacle foi geral. A produção do País foi suspensa à força e mal imaginávamos que só retornaria à normalidade vários anos depois. Àquela época, ainda esperávamos que o confisco fosse revertido. Então, para não ficarmos parados, esperando, eu e Celulari partimos logo para a ação. Pensamos em uma alternativa teatral. E, na época em que estava pesquisando Dois na Gangorra e Descalços no Parque, me deparei com uma antiga paixão: Calígula, de Albert Camus. Tudo que bastou foi o aval de Fernanda Montenegro. É um grande texto e um grande personagem, não hesitou a venerável Dame. Vai em frente, Edson! 26. A Cinecittà é Aqui   Calígula conseguiu um pequeno subsídio da Secretária Municipal de Cultura. O investimento maior saiu dos nossos bolsos. Celulari tinha cerca de US$ 5 mil em casa, eu tinha mais uns US$ 3 mil, e, de resto, nos endividamos até o pescoço. Pedimos um empréstimo de US$ 60 mil. Nosso material de propaganda anunciava uma produção de US$ 250 mil, mas na verdade não passou de US$ 75 mil. Mas foi o suficiente, contudo, para realizar um espetáculo teatral ousado, luxuoso e refinado. Quem viu, tenho certeza de que nunca esquece. Alugamos uma casa caindo aos pedaços na Rua Treze de Maio e a transformamos em nosso estúdio, nosso ateliê, nossa oficina. Durante os meses de pré-produção, era sempre revigorante entrar ali: técnicos construindo o cenário, atores passando o texto, gente fazendo as roupas. Parecia um barracão de escola de samba. Tudo funcionando a toque de caixa mesmo: depois da escolha do elenco, tive apenas dois meses para preparar tudo. Nossa estréia seria no Teatro Sérgio Cardoso. O dinheiro nos permitiu aspirações dignas da Broadway. Incluindo Celulari, o elenco contava com 25 atores. Uma multidão. Alguns, eu já havia escolhido antecipadamente, como Malu Pessin, ex-esposa do Celulari, ainda dos tempos da EAD, de quem eu conhecia o trabalho; e Linneu Dias, que já havia filmado comigo em Asa Branca, e que eu adorava como ator e gente. O restante, selecionei entre 150 candidatos em teste aberto, num único e exaustivo dia, no TBC. O único personagem que tive dificuldade em escolher foi o Minotauro – meu acréscimo como encenador ao texto original. Já estávamos ensaiando e o ator ideal não pintava. Agentes interpretavam errado minhas requisições para o personagem e me enviavam ou halterofilistas gigantes ou algum desses modelões com cara de neonazistas. Até que um dos garotos no elenco me chamou num canto. Olha, eu tenho um amigo que veio do sul e só anda fazendo teatro infantil e trabalhando como stripper no Clube das Mulheres. Você quer vê-lo?, perguntou. E eis que surgiu, assim, Victor Wagner. Era um bailarino gaúcho que tinha vindo tentar a sorte como ator e modelo em São Paulo, mas, como não conseguiu nada, foi fazer strip-tease para mulheres – não para homens, porque ele era bem do tipo machão. Mas era também uma doçura. E lindo de morrer. Quando veio fazer o teste, eu avisei que o Minotauro teria de ficar nu em cena. Sem problemas, respondeu, já tirando a roupa. Aí, então eu quase desmaiei: fisicamente, era um Nureyev moreno. Quando Calígula saiu em turnê pelo País, ele até ficou com um dos papéis dos patrícios romanos. Ensaiei muito com ele, pedi para que ele estudasse voz e perdesse o sotaque carregado, tchê! Acabou dando muito certo – tão certo que, depois, se tornou o Bocage do meu longa-metragem. Fiz questão de que o elenco tivesse mesmo atores de diferentes formações. Misturei veteranos, profissionais, recém-formados e até amadores. Havia dois rapazes que contratei porque faziam shows de sexo explícito – eu precisava de gente capaz de ter uma ereção na cena da adoração de Vênus. No começo, houve constrangimento nos bastidores. Até o Celulari ficou ressabiado, mas confiava. Patrício Bisso retornou como meu figurinista. Era o trabalho perfeito para ele, porque seu repertório era totalmente hollywoodiano. Desde criança, um dos meus gêneros cinematográficos prediletos foi o épico histórico. De Ben-Hur (59, de William Wyler) a Satyricon (69, de Federico Fellini), de Helena de Tróia (Helen of Troy, 56, de Robert Wise) a Cleópatra (63, de Joseph L. Mankiewicz). E eu dizia pro Bisso que Calígula seria minha chance de fazer um péplon à la Cinecittà (assim como, nos bastidores de Brasa, dizia que estava fazendo um filme com minha Elizabeth Taylor: a Maitê Proença). Mas, desta vez, ela não estaria lá para enciumá-lo... Ele resmungava seu portuñol. Bisso era amigo de Constanza Pascolato e conseguiu, de graça, os tecidos para o figurino. Chegamos a tentar compor uma túnica conforme nos descrevia, fidedignamente, um livro de História Antiga. O resultado acumulou incríveis 30 kg de pano e quase rompeu a coluna do Linneu Dias, nossa cobaia. Linneu ria-se desse absurdo o dia todo, sem parar. Bisso me dizia que eu era o oposto de todos os diretores com quem trabalhara. Enquanto os outros diziam: Abaixa o tom, não exagera, tira, eu gritava: Pelo amor de Deus, isso ninguém vai ver, aumenta, exagera, enlouquece! Bisso fez um trabalho magnífico. Às vezes, ia ao Brás com sua assistente, a Débora, e voltava com uma mera colcha de cama que ele transformava em capa imperial impressionante. Ele tem o dom. Isso não nos impediu, claro, de continuarmos a divergir ocasionalmente. Ele, por exemplo, não queria que o Minotauro ficasse com a bunda de fora de maneira alguma. Vai parecer que ele saiu de uma danceteria de Nova York, alegava. Mas era isso mesmo que eu queria! Ele achava que eu estava exagerando, tentando ser perverso quando o próprio texto já era perverso demais. Ele também se recusou a fazer uma roupa de inspiração grega para a cena em que Celulari declamava o poema da lua. Mas, como insisti, ele apareceu no estúdio com um colega. Trouxe aqui um amigo que trabalha em Paris, com Yves Saint Laurent, para cortar a grega!, ironizou. O rapaz colocou a seda sobre o corpo do Edson e começou a trabalhar freneticamente. Era como se estivesse esculpindo no manequim vivo. Eu fiquei arrebatado. Lindo, lindo, é assim que eu imaginava. E, claro, Bisso se afastou, remoendo-se de ciúmes. Só fui descobrir, muito tempo depois, quem era aquele jovem talento: o estilista Ocimar Versolato. Minha relação se complicou com Bisso quando, em pleno ensaio na madrugada antecedendo a estréia, percebi que a escala de cores que havíamos criado não estava funcionando. Inicialmente, queria que, no decorrer da tragédia, o tom da peça fosse se tornando cada vez mais verde-escuro. Era uma referência ao chão do Capitólio de Roma. Mas, ali, na hora, troquei tudo: melhor seriam cores quentes no começo e frias no final. E, de quebra, eliminei três trajes e metade das perucas da personagem da Malu Pessin. Ele, que já estava tenso com a estréia, ficou uma fera. Dizia que eu o havia apunhalado pelas costas. Ficou os três meses seguintes sem falar comigo. Na noite de abertura, veio acompanhado da Constanza e não me deu nem oi. Mas eu não me importei porque já tinha coisas demais na minha cabeça. Com apenas dois meses de ajustes, nem o cenário nem o elenco estavam preparados adequadamente. Aquilo que seria uma estréia se tornou praticamente um ensaio aberto. Catastrófico, mas deslumbrante!   27. Sobe o Pano Não tive alguma dificuldade para deixar de ser diretor de cinema e me tornar diretor de teatro. Descobri que, tanto no set quanto no palco, sou motivado pela intuição, uma das minhas grandes qualidades. Além disso, acho que sempre soube ler corretamente um texto. Enquanto todo mundo considerava Calígula um personagem libertador, eu, ao contrário, via na peça uma aula extremamente didática sobre o Existencialismo. No entanto, eu e Celulari sabíamos que já existia o filme Calígula, que tinha causado todo aquele escândalo em torno da pornografia e que fizera muito sucesso. Achamos que não devíamos desconsiderá-lo. E a peça dava margem a esta leitura, abordava a devassidão. A crítica paulistana, porém, foi crua, cruel, crudelíssima. Porque esta não era a interpretação de Camus a qual estava acostumada. Eu fui o bode expiatório: acusaram a peça de sofrer com toda a má influência da minha origem cinematográfica. Escreveram linhas e linhas, por exemplo, questionando minha decisão de usar, na cena da Vênus, um spot-canhão visível ao público como em shows de rock direto sobre Celulari. Possi, que fazia o desenho da luz, já me advertira, mas eu insisti e ele cedeu. Nos bastidores, eu chamava aquela luz de spot Judy Garland. Nunca neguei minha origem no cinema, mas não concordava com as críticas que a condenavam. Calígula era um espetáculo multimídia, à la Labirinto, à la Réveillon, à la Flávio Império. O Minotauro surgia em cena portando uma câmera de vídeo cujas imagens (num truquezinho que remetia a Méliès...) eram passadas às paredes de seu labirinto: como se Calígula se perdesse em meio a si mesmo. A concepção do cenário era mesmo deslumbrante, da arquiteta Vera Cristina Azevedo. Além disso, sugeri ao Lívio Tragtenberg, meu coordenador musical, que o som fosse ao vivo e tivesse efeito sensuround, como de cinema. Espalhamos caixas de som em todas as paredes. E toda noite Lívio e mais cinco ajudantes mixavam a música na hora, quase como uma orquestra sinfônica, mas inteiramente eletrônica. Eu queria mesmo esse feeling de show de rock, de espetáculo pop – para mim a verdadeira teatralização do texto de filosofia profunda de Camus. E deu certo, porque, principalmente quando a platéia era jovem, a peça se encerrava com o público abanando as mãos no alto, como se estivessem mesmo num show. E, a despeito de todas as críticas, o público veio. Ficamos um mês e meio no Sérgio Cardoso sempre com sessões lotadas, de quarta-feira a domingo, e ainda apresentações extras aos sábados.  E, depois, uma semana no Theatro Municipal, a pedido da Prefeitura. Era em teatros operísticos como o Municipal que tudo funcionava melhor no espetáculo, inclusive a idéia do som ao vivo. Quando abriram a bilheteria, comprovamos que todo nosso esforço e investimento arriscado haviam tornado Calígula um sucesso. A fila contornava o quarteirão. De todos os trabalhos da minha carreira, nenhum teve tanto retorno positivo quanto Calígula. Até mesmo no campo financeiro. No cinema, o dinheiro pára na mão da distribuidora e do exibidor. O bom do teatro é que basta a platéia ir embora para podermos conferir e repartir, na própria bilheteria, o lucro de cada um. E quem cuidava da contabilidade era a irmã do Celulari, uma cobra no assunto. Ele recebia 10% como ator, eu 7% como diretor e repartíamos ainda, igualmente, outra parcela como produtores. E ainda sobrava para pagar muito bem toda equipe técnica, o enorme elenco e os aparelhos de projeções de vídeo. Quanto mais os jornais achincalhavam, mais o povo ia. Eu vibrava. Confesso que, no início, não encarava Calígula como um empreendimento a longo prazo; era só algo para não ficarmos a ver navios naquela crise instaurada por Collor. Tive de mudar meus planos. Começamos a rodar o País com a peça. Fomos primeiro ao Rio, depois voltamos a São Paulo. Nisso, já havíamos saldado a dívida no banco. E até a crítica já nos recepcionou com outro enfoque. Era só elogios. 28. O Descobrimento do Brasil   Calígula estreou no final de 1991 e só encerrou sua carreira em 1993. E, ainda assim, porque a gente quis. Tínhamos fôlego para ficar em cartaz por vários anos. A Globo, porém, convidou Celulari para estrelar a novela Deus Nos Acuda. Até pensamos em continuar a turnê no Rio, permitindo que ele conciliasse ambos os trabalhos. Mas Celulari achou melhor acabar com a peça de vez. Nossa amizade de quase quatorze anos, que havia atingido o ponto máximo de cumplicidade naqueles últimos meses, encerrou-se ali, abruptamente. Celulari ousou muito com Calígula. Um texto difícil e terrível, que ele dominou divinamente, inscrevendo-se na linhagem dos grandes atores nacionais, como Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Walmor Chagas, Raul Cortez... Quando lhe propus o nu para a cena da Vênus, no início do segundo ato (o imperador encenava o surgimento de Vênus, a deusa do amor, exigindo que todos os patrícios a venerassem) Celulari aceitou sem hesitar. Não sabíamos como concretizar tal imagem, até que o  Gualter viu uma foto do Maplethorpe na qual um modelo negro, fortíssimo, escondia o pênis atrás das coxas e se passava por mulher. Celulari ficava sobre um pedestal, com o pênis preso, fazendo micagens (estudadíssimas!) com as mãos e boca, tirando o maior sarro de seus senadores. No palco, dezoito atores em cena reverenciando-o, dois deles em ereção total, e uma das duas únicas mulheres, uma bailarina linda, nuinha, com uma cornucópia recolhendo os óbolos dos patrícios. Em quase todas as sessões, Celulari era aplaudido em cena aberta. A platéia se acabava de rir, mas, ao mesmo tempo, era um riso nervoso, histérico. O texto original de Camus tem essa ambigüidade e acho que conseguimos passá-la. Depois da segunda temporada em São Paulo, percorremos todo o interior do Estado e recebemos uma ótima notícia. A TransBrasil aceitou um acordo de patrocínio para nos fornecer passagens aéreas. Poderíamos levar a peça para todo o País! O cenário viajaria em um caminhão da transportadora Confiança, que também se tornou nossa parceira. Agora, é que ninguém nos segurava. Entretanto, como ainda haveria outros encargos, como hospedagem e alimentação, tive de realizar alguns cortes no espetáculo. O cenário foi reduzido. Tivemos de dar adeus a uma enorme cúpula de ferro que ficava no alto do palco. O elenco foi cortado para quinze pessoas e a equipe técnica, para apenas cinco. Grande problema foi substituir o então desconhecido Gabriel Braga Nunes, que vivia Cipião, o efebo amante de Calígula. O papel acabou provocando muita disputa entre os outros atores. Trabalho, porém, era o que não faltava: eu designei a cada membro do elenco uma função dos bastidores. Dali em diante, eles mesmos passaram a cuidar do cenário, do figurino, da maquiagem. Os únicos técnicos exclusivos que eu mantive foram o do som, do vídeo e da luz. Sonia Kavantan era a diretora de produção. Aos poucos, sem querer, havíamos formado um grupo de teatro. Nosso itinerário era puxado. Ficávamos só uma ou duas semanas em cada cidade. Chegávamos geralmente na quarta, e a equipe já corria para montar os cenários. Passavam a luz e, em torno das 18h, realizavam um ensaio geral. Às 21h, a peça já estreava. Nesse meio tempo, Celulari e eu fazíamos o circuito de divulgação, dávamos entrevista para rádio, jornal, TV. Era ele quem abria as portas, claro. Foi só aí que comecei a entender o poder desses astros das telenovelas brasileiras. Havia, também, o outro lado da moeda. O fascínio que Celulari gerava nas fãs causou incômodos. Em Ribeirão Preto, duas delas seguiram nosso carro e nos bloquearam com um cavalo de pau. Vieram até nossa janela e choravam de soluçar, totalmente histéricas. Fiquei com medo de que fossem ter um ataque do coração. Sai do carro, Edson, deixa elas te tocarem, mostra que você é gente de carne e osso, pedi. E ele foi, deu autógrafo, beijou as meninas e conversou com elas até se acalmarem. Celulari sempre foi disciplinado e dominava suas emoções. Em Teresina, onde fiz questão que fôssemos, mesmo sem o apoio da TransBrasil, que não voava até lá, os fãs nos sitiaram dentro do hotel. Era uma gritaria na recepção desde as 6 horas da manhã. A equipe ficou fula da vida porque havíamos rodado oito horas de ônibus para chegar até lá. E, nas outras cidades, apesar do corre-corre, técnicos e atores ainda tinham tempo de pegar uma praia, fazer turismo, até mesmo ir à academia manter os músculos. Ali, nem deu. Ficamos ilhados. Eu assisti e conduzi, como um maestro, a todas as apresentações de Calígula durante seus dois anos e meio de temporada. Eu o considerava um work in progress, sempre podendo ser melhorado. Em Porto Alegre, por exemplo, recrutei um ator local fantástico que conheci numa peça para integrar nossa trupe. E lá, pela primeira vez, sentei para ensaiar direitinho com Celulari seu monólogo final. Ele até o falava bem, mas não estava como queria e por muito tempo tive preguiça de corrigi-lo. Quando finalmente pus a mão na massa, o resultado ficou sublime. Todos os outros atores, aquela noite, notaram a diferença e aproximaram-se para ver da coxia a cena, admirados.   Uma coisa muito legal dessa turnê é que ela me permitiu voltar a Manaus e apresentar o espetáculo no Teatro Amazonas, o maior de todos os símbolos de minha infância. Tivemos de fazer tantas sessões extras, que o Celulari perdeu a fala. Como já disse, era nesses antigos palcos para ópera que Calígula mais funcionava. O melhor de todos, contudo, foi em outra cidade que tive prazer de rever: Brasília. O Teatro Nacional, construído por Niemeyer, tinha a boca de cena mais ampla, então abrimos bem os espelhos que circundavam a espiral, salientando seu declive de 1,20 m. Para combinar, as poltronas e paredes da sala de espetáculos eram verdes, casavam perfeito com nossas massas de cores. Foi um sonho. Apesar da consagração que Calígula me permitiu, minha cabeça não parava de pensar no cinema. Simultaneamente, a turnê me permitiu revisitar regiões do País às quais não ia desde as viagens com meu pai. Foi aí que o projeto de Bocage começou a se transfigurar. Passou pela sua primeira metamorfose: eu queria trocar o Teatro São Pedro, em São Paulo, por um teatro ao ar livre, em pleno Ceará. Queria usar as falésias. Queria usar a iluminação solar. Queria usar o Brasil que havia redescoberto. Capítulo VII 29. O descobrimento da Lusofonia Todo o dinheiro que ganhei com Calígula, investi na pré-produção do meu terceiro longa-metragem, Bocage, o Triunfo do Amor. Em 1994, o presidente Itamar Franco decidiu revitalizar o panorama da nossa sétima arte. Criou um prêmio, apropriadamente chamado de Resgate, que não era nem de incentivo ao cinema: era de salvação mesmo! A inscrição para o concurso, no prédio do antigo Ministério da Cultura do tempo de Getúlio Vargas, lá no Rio, foi muito humilhante. Todo o cinema nacional, de Walter Hugo Khouri a Nélson Pereira dos Santos, de Cacá Diegues à nova geração, estava lá, mendigando, com a papelada absurda que a burocracia exigia. A fila, quilométrica, que parecia coisa do INSS. Uma vergonha. Havia cerca de duzentos projetos. Vinte foram selecionados. E, entre eles, Bocage. Criei coragem e liguei para o Edson Celulari. Sabia que ele não toparia, mas queria poder rezar o Pai Nosso de consciência limpa. Contei do filme e, a princípio, ele vibrou. Dois dias depois, me ligou com voz tumular e me dispensou educadamente, dizendo que não ia fazer porque tinha programado uma peça para o ano todo. Sem Celulari, eu quis repensar o roteiro. Mas, aí, houve outra deserção: Felipe Crescenti disse que cuidaria da cenografia a distância, sem viajar para as distantes locações durante as filmagens. Mas, desse jeito, eu não queria. Felipe, você sabe, eu filmo muito de improviso, preciso de você lá, pedi. Ele não podia. Estava começando a ficar desesperado. Liguei para um velho colaborador da década de 70, Bruno Schmidt, que havia estudado na School of Visual Arts em Nova York e depois se mudara para Paris. Amigo, fiquei sem ator, fiquei sem cenógrafo e, com a morte do Gualter, fiquei sem diretor de fotografia, desabafei. E, inesperadamente, Bruno se predispôs a resolver parte do problema: queria ser meu diretor de arte. Mas você largaria tua esposa e filhos na França por seis meses? E ele: Nani, eu já estou no teu filme! Bruno propôs que eu fosse à Europa encontrá-lo e, em Lisboa, faríamos uma pesquisa melhor a respeito do poeta para a reformulação do roteiro. E aí que Bocage se metamorfoseou mais uma vez. Foi quando descobri a verdadeira importância de Manuel Maria Barbosa du Bocage, seu veio poético, sua época, sua personalidade, seu choque com a corte portuguesa. Aquilo me tocou profundamente. Se eu já não estava muito a fim de realizar o roteiro original, agora é que tinha perdido a vontade de vez. Há, no Brasil, um certo pânico de nossa ascendência portuguesa – talvez porque, devido ao regime salazarista, o país de nossos ancestrais se tornara uma nação retrógrada, estanque, em meio à modernidade do mundo. Sempre tentamos evitar nosso passado, chegando até mesmo a ridicularizá-lo, abordá-lo sob uma ótica grotesca. E, ao enfocar apenas as anedotas de Bocage, uma parcela minúscula de sua vasta produção poética, eu estava agindo sob o domínio deste mesmo preconceito. Estava estigmatizando meu personagem-tema como fizeram seus detratores em sua época, para destituí-lo. No instante dessa epifania, troquei a lusofobia pela lusofonia. Nessa viagem ao lado de Bruno, na qual redescobri minha paixão por Lisboa, pela literatura portuguesa, pelo mundo da lusofonia, enfim, também tive outras duas revelações preocupantes: a primeira, o preconceito que os próprios portugueses nutrem contra Bocage – mesmo ele compondo, ao lado de Camões e Pessoa, a tríade sagrada da poesia nacional. O Instituto Histórico Português atribuía ao tema do filme suas recusas aos nossos pedidos para utilização das locações históricas. Mas, mesmo que permitissem, não poderíamos usá-las (e eis minha segunda revelação): tudo na Europa era caro demais para os nossos bolsos. Vide, por exemplo, minha tentativa de arregi- mentar um português autêntico para o papel principal. Durante a viagem, me apaixonei por um astro que estava em ascensão na TV lusa naquele momento: o apresentador de programa infantil Diogo Infante. Contatei-o através de uma agente, que me ofereceu outros dois atores muito bonitos e talentosos. Os três demonstraram interesse, mas o cachê médio exigido era de US$ 30 mil. Imagina de onde a gente ia tirar esse dinheiro? Ainda mais porque eu sabia que nossas filmagens seriam arrastadas e ininterruptas (embora jamais imaginava que fossem durar quase três anos, como de fato ocorreu). Como não podíamos utilizar as locações portuguesas, reescrevi o roteiro para que ele acompanhasse a viagem que Bocage realizou por todo o império português após ser expulso da corte. Seguindo a jornada de Camões, séculos antes, ele visitou Brasil, Angola e Moçambique na África, Goa na Índia e Macau na China. Bocage, o Triunfo do Amor é uma viagem ao mesmo tempo física mas também interior – uma dualidade muito bacana que eu também senti como cineasta, rodando Brasil e Portugal com a câmera e a equipe. Troquei a investigação mítica do Brasil pela investigação mítica de todo o universo da lusofonia. Eu quis, em meu filme, capturar algo como o sonho primordial e atávico de nossa cultura. 30. São Paulo, Ceará, Amazonas, Paraná, Paraíba e Minas Gerais   Ao regressar para o Brasil, aluguei junto com Bruno e Sonia Kavantan um pequeno apartamento em Fortaleza, onde pretendia iniciar rapidamente minha pré-produção. A pressa era justificada: o Prêmio Resgate exigia que se começasse a filmar ainda naquele ano. Enquanto isso, em São Paulo, minha irmã Edith alugava duas salas e montava uma sede para a produção. Tornou-se minha produtora-executiva, sem a qual esse filme não teria existido. Decidi, também, que Bocage reaproveitaria os louros restantes de Calígula, tanto humanos quanto materiais. Era minha velha vontade de criar um grupo fixo de colaboradores. Não queria perder aquela gente com quem havia me afeiçoado tanto. Eles seriam meus atores e técnicos e eu lhes ensinaria cinema. Os cenários e figurinos, fomos buscar onde os havíamos estocado: na igreja do popular santuário de São Judas Tadeu, no bairro do Jabaquara. O padre João Luís, amigo de Linneu Dias, tornou-se uma espécie de capelão de todo o grupo, salvando-nos de muitas enrascadas, entre outras, a de onde guardar as cinco toneladas de cenários e figurinos! Desnecessário dizer que essa decisão também foi motivada pela contenção de gastos. Em Fortaleza, eu contava com uma poderosa amiga e aliada: a então secretária de turismo, Ângela Borges. Através dela, chegamos ao governador Ciro Gomes, que nos prometeu um subsídio de R$ 120 mil. Antes que pudéssemos comemorar, porém, estourou o escândalo da entrevista do Ministro Rubens Ricupero captada por uma antena parabólica. Ciro Gomes foi chamado para substituí-lo em Brasília e, em seu lugar, entrou um governador interino que não oficializou nossa verba. Esse, por incrível que pareça, foi o segundo apoio financeiro que perdemos por razões que nunca ficariam muito claras. Quatro anos antes, o projeto havia vencido também um concurso na Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, cujo prêmio também dependia da realização do filme. Começamos a filmar antes que o prazo de cinco anos expirasse. Enviamos diversos relatórios informando os avanços na produção, mas a Secretaria, oficialmente, deu Bocage como não filmado. Ângela, porém, foi um anjo. Tínhamos dificuldade em conseguir benefícios simples, como hotel ou transporte, porque não havia grandes estrelas no elenco. Mas ela intermediou um acordo com o Hotel Praia das Fontes, no qual ficamos hospedados durante a realização de 60% do filme. Os salões de festa do prédio foram transformados em estúdio 1 e estúdio 2, onde foram rodadas todas as poucas internas de Bocage. Enquanto Bruno preparava o set em um, eu filmava no outro. Ângela também nos colocou em contato, quase que instantaneamente, com o estilista Lino Villaventura, que tinha ateliê na cidade mesmo. Vi um de seus desfiles no jornal e achei sua moda ideal para o clima étnico do filme. Não podia convidar Patrício Bisso, cuja inspiração era basicamente hollywoodiana. Mesmo em Brasa Adormecida, quando eu dizia que famílias ricas como a de Bebel importavam roupas princi- palmente de Paris, ele insistia em fazer vestidos à la Sandra Dee. Para diminuir custos, trouxe de Calígula, além dos cenários, a iluminação teatral. Mas todo diretor de fotografia com quem eu conversava para o cargo torcia o nariz para o equipamento. Aí me enchi e disse: Quer saber? Vou eu mesmo fotografar este filme! E trouxe, como apoio, Zeca Abdalla, um garoto talentoso que até então só havia trabalhado com vídeo e fotografia still. Ele se saiu ótimo. O resto da mão-de-obra, optamos por selecionar entre as comunidades locais que pretendíamos visitar. Uma coisa muito legal foi que, em Fortaleza, arregimentamos toda uma aldeia de pescadores próxima ao hotel, que nos ajudou a construir o cenário. Bruno, que comandava aquele trabalho artesanal, logo conquistou o carinho das mulheres. E, quando tivemos que ir embora, elas e seus maridos se despediram organizando uma festança deliciosa de forró. Nós retribuímos a honra convidando-os, anos depois, para a estréia de Bocage no Cine Ceará. E eles ficaram fascinados com o resultado. Foi uma bela de uma contrapartida social! Nossa temporada em Fortaleza se encerrou junto com a grana do Prêmio Resgate. Dessa vez, não havia conseguido nem ir até o fim da produção do filme: a verba se encerrou na metade. Retornei à minha terra natal e implorei para que o governador do Amazonas investisse no projeto. Nessa altura, havia contatado Vera Fischer e ofereci-lhe um papel – o do escritor Dante Alighieri.  Isto logo vazou para a imprensa, e, imediatamente consegui um contrato com o governo amazonense. Assim como Petrarca lhe mostrou o Inferno, Dante apareceria num sonho de Bocage para apresentar-lhe o Céu. Isto porque Bocage havia sido um dos melhores tradutores de Dante para o português. Vera adorou a oportunidade. Desde Gláuber Rocha não lia nada tão lindo, dizia. Nunca me deram um papel em que eu não tivesse de ficar nua! Já estávamos, porém, em 1995, e Vera se tornara protagonista da telenovela Pátria Minha, na Rede Globo. Sua atribulada vida pessoal ganhava as páginas dos jornais. Sua personagem foi eliminada no meio da novela. E, para meu desespero, sua participação em Bocage também parecia ameaçada.   Estava hospedado no Amazonas, em um hotel isolado no meio da selva quando, certa vez, recebi um telefonema no meio da madrugada. Saí exausto do meu quarto, naquele breu danado, barulho de macaco para tudo quanto é lado, e fui atendê-lo na recepção. Era Vera, transtornada, não falando coisa com coisa, querendo que eu lhe explicasse um diálogo que não estava conseguindo entender. Eu já deveria suspeitar que a coisa só iria piorar a partir daí. Ela não foi a única diva cujo estrelismo me pregou um susto em pleno Amazonas. Estava ali para filmar uma cena no encontro das águas do Rio Negro e do Rio Solimões. Era uma produção complicada: Viétia Rocha atuava em uma canoa, acompanhada por dois índios – um deles, autêntico, da região; o outro, um lindíssimo descendente, gerente do nosso hotel. Eu filmava de um barco, também gentilmente cedido pelo hotel, e Zeca Abdalla estava em um helicóptero, que também consegui de graça, com um colega do meu tio no Comando da Amazônia. O cenário natural era esplendoroso, exceto por um detalhe. O céu estava se fechando, anunciando um temporal. Só que eu precisava rodar a cena naquele dia, porque não poderia utilizar ambos os transportes gratuitos depois. Graças a Deus, exatamente sobre onde estávamos as nuvens não se acumularam. Foi como se Deus tivesse jogado um holofote só sobre nós. Era lindo – tão lindo que Viétia, emocionada com o final da filmagem, decidiu se banhar ali mesmo. Aquela louca pulou na água de roupa e tudo, um vestido lindo, de fio de barbante costurado em renda, que Lino havia criado. Só que ela não sabia que aquela região contém redemoinhos violentos. De longe, vendo pelo binóculo, eu quase desmaiei. O que é que eu diria para a família dela se ela morresse ali? Ela se debateu por vários minutos. Só não aconteceu uma tragédia porque os índios a agarraram pelos cabelos e braços e só a soltaram quando ela já estava de volta, arfante, na canoa. Com a verba amazonense, filmei também nas Cataratas de Foz do Iguaçu, no Paraná; na escadaria de Bom Jesus de Matosinho, em Congonhas do Campo, Minas Gerais;  e, em Natal, no Forte dos Reis Magos. A cerca de 60 km da capital potiguar ficavam duas árvores com mais de duzentos anos de existência, enormes e exuberantes, que eu havia escolhido como locação para o encontro de Bocage e Dante. Era a hora de Vera Fischer comparecer. Ela exigiu que comprássemos quatro passagens de avião – para ela, o filho, a babá e a secretária. Mesmo com o dinheiro a conta-gotas, aceitamos. Só que ela passou a adiar ao máximo o embarque. Toda noite me ligava e chorava ao telefone, dizendo que no dia seguinte viria a Natal. Mas não vinha. Inventava desculpas. Dizia que o filho estava doente. A Edith, com as passagens na mão, aguardava no Rio. Fiquei uma semana inteira com a equipe parada, gastando horrores só com a hospedagem e a alimentação. Até que o impasse se tornou insustentável. Chega!, decidi. Cometi um erro em chamar esta mulher! Vamos tentar outra pessoa! Liguei para minha agenda inteira: Walmor Chagas, Paulo Autran, Fernanda Montenegro, Maitê Proença. Ninguém, porém, queria segurar o rojão de substituir  Vera Fischer. Todo mundo acompanhava os jornais e sabia que ela estava no epicentro de acontecimentos favoráveis a fofoqueiros de plantão. Resolvi, enfim, que não ia mais utilizar estrela alguma.  E o filme prosseguiria na sua proposta radical e nas suas intenções originais. Pedi a Ana Nascimento e Silva (com quem trabalhara no Brasa) para fazer o papel, e fomos correndo até as árvores centenárias. A equipe já me esperava desde as quatro da manhã. Minha concepção do Céu foi eliminada por questões orçamentárias e resumiu-se aos famosos espelhões de Calígula deitados no chão. Seria uma representação da água; e alguns bezerros dum esquálido rebanho até os lamberam confundindo-se com poças de verdade! Aninha não conseguiu decorar seu enorme diálogo na breve viagem de ônibus de Natal até a locação. Tivemos de trabalhar com um ponto e acho que, mesmo assim, ela foi fenomenal. Mas, durante a dublagem na pós-produção, troquei completamente sua personagem: de Dante, ela se tornou Érato, a musa grega da poesia erótica. É a tal magia do cinema, Ana! Começaste escritor italiano e, agora, viras musa falando latim!, zombei. Mas ela não entendeu nada e muito menos conseguiu dublar em latim. Quem acabou fazendo sua voz foi o próprio tradutor para o latim. Ou seja, ainda pela decantada magia do cinema, Érato era um poderoso contralto! A saída de Vera Fischer, porém, implicou a ausência de outro sex symbol brasileiro: Rita Cadillac. Eu a havia escalado para viver uma monja que era estuprada por um árabe e depois se vingava, segundo um dos poemas de Bocage. Tudo isso seria filmado em João Pessoa, na Paraíba.  Mas, com a lengalenga da Vera, meu dinheiro se esgotou. Só para variar. Merecia processá-la, mas juro, adoro a Fischer! Quis, logo lançado Bocage, fazer com ela no teatro Depois da Queda, de Arthur Miller. Ela seria minha Marilyn Monroe! Pena que, outra vez, a vida nos atropelou. Tanto quanto em Marilyn, tudo em Vera Fischer deve ser perdoado. Ela ainda é a maior estrela que o cinema brasileiro engendrou. 31. Portugal   A produção ficou paralisada por mais alguns meses. Edith tentou pleitear recursos junto ao Ministério da Cultura e acabou sendo humilhada. Um dos figurões, do alto escalão, já ouvira falar muito de Bocage: Ah, aquele filme que precisa ser assistido com camisinha? Como é lamentável saber que o destino da produção cultural no Brasil encalha sempre aí! Ironizando esse idiota, realmente distribuímos preservativos na estréia do filme. Fizeram um sucesso! Quem nos resgatou, dessa vez, foi o canal a cabo HBO Brasil, com seu primeiro prêmio para filmes em finalização. Submeti um breve trailer, que  havia sonorizado com uma música fantástica de Saka- moto. Fui um dos três premiados, ao lado de O Judeu (96, de Jom Toby Azulay) e Ed Mort (97, de Alain Fresnot). Ganhamos R$ 100 mil em verbas e mais R$ 100 mil em publicidade na TV por assinatura. Com esse dinheiro, fomos eu, Bruno e Sonia enfrentar nossa última jornada. Retornamos a Portugal, onde tudo havia começado, para rodar os 20% finais da história e realizar toda a pós-produção. Eu ainda tinha um objetivo extra: encontrar um produtor local que topasse investir em Bocage. O subsídio da HBO não duraria muito tempo em terras estrangeiras. Minha sorte foi que Antônio da Cunha Telles, um dos maiores da indústria cinematográfica de lá, conferiu o material e se apaixonou. Fez algo que nunca fizeram por mim: meteu o pé na porta da presidente do Instituto Português de Cinema e exigiu: Quero recursos para terminar este filme, é obra rara! Conseguiu o dinheiro na hora (até hoje eu não sei exatamente quanto) e toda a pós-produção de som foi feita na Videocine, em Lisboa. Os efeitos especiais, em Madri, e o dolby-digital em Pinewood, Inglaterra. Sem fazer esforço, entrara na era da globalização... Bocage, porém, ainda teria de superar outras adversidades. Quando Victor Wagner foi a Lisboa gravar suas últimas cenas, depois de vários meses sem nos vermos, fiquei pasmo: ele estava magro, chupado, raquítico. Nem parecia o rapaz forte e bonito com quem filmara. O itinerário puxado das gravações da novela Xica da Silva, que ele protagonizava, tinha acabado com ele. Quase mandei um bilhete desaforado para o diretor Walter Avancini: Cara, você destruiu esse menino. O dano ao filme só não foi maior porque, em Portugal, rodamos justamente a demência e a morte de Bocage. Acentuamos sua decadência física jogando uma pasta escura para endurecer e, principalmente, colorir os cabelos de Wagner, que estavam loiros por causa da novela. Mesmo assim, tive de descartar uma cena de dança bastante sensual que havia concebido especialmente para ele, já que era bailarino. Essa cena ocorreria na arena de um castelo no Alentejo, uma das muitas locações alternativas que nos foram sugeridas por um historiador que conseguimos contratar. Nosso dinheiro não permitia cumprir todas as leis trabalhistas referentes ao setor cinematográfico europeu, então muitas vezes nos valíamos dos poucos recursos que tínhamos. Eu mesmo encontrei outra locação, que lembrava ter visto nas páginas de uma National Geographic quando criança: umas construções de pedras encimadas por uma cruz, que eu acreditava serem túmulos dos bárbaros que tinham invadido Portugal. Quando lá chegamos, no Trás-os-Montes, descobri que aquilo eram silos familiares para armazenar comida no inverno. De pedra, só existiam aqueles. Para a cena que rodei em Monsaraz, convidei a cantora Eugénia Melo e Castro, que conheci num show dela em São Paulo. Geninha tem uma voz maravilhosa, que me encantou. Imediatamente, lhe ofereci um papel e acho que, na hora, ela nem acreditou. Mas foi com a gente e se revelou uma ótima atriz. Também colaborou com a trilha sonora. O processo de pós-produção foi minha última dor de cabeça. Tive de cortar duas tomadas de efeitos especiais – a da transformação do tritão e a conversão das lágrimas de sangue de Nossa Senhora nas pedras de rubis do rosário – porque eram caríssimas. Preferi usar o dinheiro para empregar atores das diferentes etnias das antigas colônias portuguesas para dublar os personagens. Bocage conta com sotaques de Angola, Moçambique e Cabo Verde, além do português castiço de Coimbra, das entonações do Sul e do Nordeste brasileiro e das participações de outras línguas latinas, como espanhol e francês. E o latim original, entoado por um professor da USP, Marcos Martinho dos Santos, que sabe falá-lo com a cadência correta, segundo as mais recentes pesquisas da lingüística. 32. Incompreendido em Vida, na Morte e em Filme   Acho que tempo é dinheiro também no cinema. Bocage foi meu filme que mais captou verbas em múltiplas fontes, mas também o que mais demorou para ser realizado. Quase quatro anos separaram a vitória de seu roteiro no Prêmio Resgate e sua estréia na sétima edição do Cine Ceará, em 1997. Era de se imaginar que, com esse histórico de recordes e exageros, ele também teria uma repercussão ainda mais polêmica que a de Asa Branca ou Brasa Adormecida. Não dá para fazer por menos! Os espectadores do festival aplaudiram diversas vezes durante a exibição de gala, no Cinema São Luís, um patrimônio fortalezense desde a década de 40. Rodado no injustamente esquecido formato Cinemascope, Bocage se beneficiou daquela tela enorme, como só as salas antigas ainda têm. Todos estranharam a luminosidade que o filme irradiava. E, pra variar, acharam que eu tinha gastado milhões para realizar um filme daqueles, que simulava com criatividade ares de superprodução. A crítica, porém, perdeu-se nas referências. Não soube identificar as matrizes estéticas, que envolviam o estilo manuelino, o pré-barroco português, os últimos suspiros do gótico. E o enfoque foi inteiramente desviado para o conteúdo escandaloso, um estigma que permaneceu. Quando Bocage foi a Gramado, lembro de Nelson Pereira dos Santos me dizendo que não queria perder o filme porque o haviam advertido para não assistir porque era escandaloso. Mestre Nelson ria e duvidava que algo ainda pudesse chocar no cinema, queria saber como. Gramado, que outrora havia me consagrado com Asa Branca, recepcionou-me com certa frieza. Os tempos eram outros. Havia uma tentativa ingênua de se conduzir a política cultural do País rumo a uma produção comercial, que consolidasse nossa indústria de entretenimento. E que se manifestou numa campanha arbitrária em prol do concorrente, um elefante branco co-produzido pela Columbia Pictures custando US$ 6 milhões, contra Bocage, que, no máximo, havia consumido cerca de US$ 1,5 milhão. Jornais do Brasil todo, nos dias seguintes, fizeram galhofa da inexplicável vitória esmagadora de For All (For All, O Trampolim da Vitória, 97, de Buza Ferraz) – até porque, entre outros concorrentes, estava o no mínimo surpreendente Os Matadores (97, de Beto Brant), que valeu justo prêmio de direção a Beto Brant. Bocage enfrentou um surto moralista e homofóbico. Quando foi exibido, contudo, fiz questão de dizer que ele decepcionaria quem esperava por um filme gay. Há na película um erotismo frio, que remete a Pasolini. É um culto metafísico do corpo, o que condiz com o poeta Bocage, que vai da pornografia ao sublime. Anunciaram logo o Prêmio Especial do Júri para Bocage, a segunda estatueta entregue na noite. Estava, ainda, com grandes esperanças, havia a direção de arte do Bruno Schmidt, os figurinos do Villaventura, a música do Tragtenberg, atores novos revelados... Nenhum deles venceu. Fiquei tão decepcionado que sequer fiz questão de levar meu Kikito. Larguei-o na poltrona da sala de exibição do Festival. Foi a Gilma quem o recolheu. No restaurante onde jantamos depois, meio que de brincadeira, colocamos uma sainha nele, presa com um elástico, e é vestido assim que foi parar em Manaus. Só este ano veio morar comigo em São Paulo, com sua sainha rodada, gostoso de olhar. Bocage entrou em circuito no começo de 1998, no mesmo dia que o megassucesso Titanic (97, de James Cameron). Ainda assim, teve uma ótima carreira, permanecendo em cartaz por dois meses em São Paulo. Em Portugal, ficou duas semanas. Walter Carvalho, quando assistiu à pré-estréia do filme no Rio, comentou comigo: Você estava no Festival errado! Tivesse deixado ir para Brasília, eu era o presidente do júri, e esse filme ia ganhar todas! Mas, assim como fiz com Brasa, decidira interromper em Gramado a carreira do filme no circuito de festivais nacionais. No caso do Bocage, arrependi-me amargamente. O filme, os atores, o pessoal da equipe de criação estreando, todos mereciam muitas outras oportunidades, que lhes neguei. Querendo preservá-los, proteger o filme, errei e me penitencio. Bocage, porém, rodou por muitos outros países. Participou do Festival Internacional de Cinema de Tróia (em Setúbal, onde nasceu o poeta) e do Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoame- ricano, em Cuba. Também foi bastante requi- sitado por mostras gays, como o Festival de Chicago. É, até hoje, meu filme mais solicitado para apresentações internacionais, como a do MoMa e do Guggenheim em Nova York. Em 1997, ainda antes de estrear comercialmente, Bocage foi incluído na seleção oficial do Sundance Film Festival, junto com Central do Brasil, de Walter Salles Jr. Era uma boa oportunidade para sondar distribuidores locais, mas nenhuma empresa norte-americana se interessou. Não fiquei chateado: estiquei a viagem até Los Angeles. Eu já havia visitado Nova York várias vezes e era um pouco como Woody Allen. Achava que Los Angeles devia ser medonha. Este e outros preconceitos, incluindo aqueles contra a poderosa indústria do cinema norte-americano, vieram por terra quando conheci Hollywood. Não havia como evitar. Um lugar em que se comia, respirava e vivia cinema! Eu estava no meu paraíso. Hoje, sei que a única cidade fora do Brasil em que gostaria de morar é Los Angeles. Urbanisticamente, é construída como se fosse uma cidadela, toda voltada para proteger o cinema. Mais nenhuma vontade de voltar a Nova York...   A Universidade da Califórnia havia preparado uma exibição especial de Bocage (que até rendeu belos elogios na Variety!) e eu logo me tornei amigo do pessoal do Film Archive que organizou a exibição, porque eles adoraram o filme no Sundance. Saíamos para lanchar e eles morriam de rir com meu conhecimento quase enciclopédico sobre os diretores, os astros, as grandes produções... Tudo que eles iam me mostrar, eu já sabia, conhecia, completava, debatia. Parecia uma criança num parque de diversões. Tomei o avião de volta para casa remoendo angústias. Foi ali que me dei conta, pela primeira vez, que, se tivesse ido estudar em Berkeley, meu futuro como cineasta teria sido muito diferente. Capítulo VIII 33. O Prazer e o Futuro do Cinema Depois que estreei no longa-metragem, levei cinco anos para realizar meu segundo filme e mais dez para concluir o terceiro. Tenho medo de que, nessa velocidade, o próximo só saia em 2013. Como já mencionei anteriormente, minha última investida, uma nova versão para Rio Máximo Amazonas, exauriu todas as minhas economias e mesmo assim não saiu do papel e da CVM. Acredito que, atualmente, a realização cinematográfica está mais difícil – e não me refiro apenas à viabilização financeira. Há, sem dúvida, novas tecnologias, como o formato digital, que facilita o registro, a edição, a reprodução e a preservação do material. Mas penso nas complicações da ordem prática. Fico imaginando, por exemplo, como seria rodar Asa Branca hoje. Imagina, um aspirante a cineasta bater na porta de uma escola de futebol e pedir para dormir ali quinze dias? Ou, ainda, filmar no Pacaembu e no Maracanã, só com acordos verbais, sem papelada nenhuma? Impossível. Ninguém conseguiria, assim, sem burocracia, sem grana! Entrei na era digital com um documentário biográfico superinteressante, sobre o ator Walmor Chagas. Não tínhamos roteiro nem plano de filmagem. Registrava seu cotidiano atual de velho na Serra da Mantiqueira, livremente. Depois fomos a Porto Alegre, aos lugares onde nasceu e cresceu. Estivemos em festivais de cinema, Gramado e São Luís (Guarnicê). Revimos os seus lugares favoritos em São Paulo, e fomos ao Rio, estúdios da Globo e ao teatro que ele construiu, o Teatro Ziembinsky. Quis parecer como se o próprio Walmor estivesse gravando tudo, subje- tivamente, por isso chama-se Autovideografia. Resultou bem a cara de Walmor, personalíssimo, elegante e desafiante. Há dois anos, sou também professor de direção em cinema, num projeto muito especial, da Prefeitura de Santo André, a Escola Livre de Cinema e Vídeo. É gratuito, assim muito jovem sem condição de pagar um curso dispendioso como os de cinema lá tem sua vez. E há tantos talentosos! Chego a surpreender a mim mesmo com o esforço que faço para tentar transmitir-lhes tudo que eu sei. É estressante, mas compensa. Não é o presente que me preocupa, mas o porvir. Acho que o futuro do cinema nacional será semelhante ao futuro do País. E às vezes, chego a desconfiar de nossa sobrevivência como nação. A viagem multiétnica de Bocage, em especial, me fez enxergar um Brasil cuja única identidade é a língua portuguesa – e que, ainda assim, é renegada junto com todo nosso passado. Aspiramos a outras pátrias. Nossa elite é um entreposto de bom grado para as multinacionais. Não há, portanto, reservas de mercado para nossa produção cultural. Não há sequer um senso de dar prosseguimento a nossa história. Por outro lado, o mesmo Bocage me fez perceber que o principal trunfo do Brasil é o ethos e pathos de seu povo. Nutrimos uma cultura da afetividade que, sem qualquer intuito de nacionalismo laudatório, acho que só existe aqui. Esse ponto forte se traduz tanto numa sexualidade aflorada quanto num anarquismo perene. Talvez isso é que nos liberte. A História, graças a Deus, é imprevisível. Enquanto este futuro é esperança, bem ou mal, continuo tentando a única ambição de minha vida: fazer filmes. A única exigência de que nunca abro mão é a de poder me renovar a cada trabalho. Para mim, cada filme precisa ser uma nova aventura estética. Quanto mais desafiadora, mais vou gostar. A maturidade me fez saber que sou um esteta. Prezo a Estética como a forma mais próxima do conhecimento e da única ordem possível – aquela mais perto do coração selvagem. Mais que as ciências e as religiões. Por isso, cineasta: pelo fado brasileiro, portanto bissexto. Cada um dos meus filmes é o Everest da minha existência. Já vivi mais de meio século e posso afirmar, sem qualquer receio, que o sentimento mais lindo que já experimentei em todos estes anos é aquele no instante da criação artística. Quem observa um set de filmagem do lado de fora pensa que aquilo é um manicômio – tudo dando errado, diferentes decisões a serem tomadas, vários detalhes a serem checados, conflitos a apaziguar. Mas é nessa aparente desordem que desabrocho. Guio-me pela intuição. Minha língua é a da sensibilidade e por ela entendo o que os artistas e técnicos têm a me dizer, acato o que os atores têm a acrescentar e acolho o que a própria circunstância me oferece. É dessa amálgama que nasce o meu cinema e a minha felicidade. A revista francesa Cahiers du Cinéma houve tempo que comparava os diretores a imperadores romanos, tirânicos. Engraçado, nunca me senti assim. Não tenho esse prazer de posse egoísta, mas justamente o contrário. O de estarmos, juntos, criando.  Filmografia 1968 Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora Drama, curta-metragem, 28’ Direção, roteiro e edição: Djalma Limongi Batista Direção de Fotografia: Aloysio Raulino Elenco: Eduardo Nogueira, Carlos Alberto, Lino Sérgio Assistente de Direção: Valéria Silveira Direção de Produção: Vera Roquette Pinto Prêmios: • Melhor Filme, Direção, Roteiro, Edição Festival de Curtas do Jornal do Brasil • Melhor Ator Festival de Curtas do Jornal do Brasil (Eduardo Nogueira) Retorna, Vencedor Documentário, curta-metragem Direção e roteiro: Aloysio Raulino Direção de Fotografia: Djalma Limongi Batista Elenco: Thomas Going, Nuno Leal Maia 1969 O Mito da Competição do Sul Drama, curta-metragem Direção, roteiro e edição: Djalma Limongi Batista Direção de Fotografia: Gualter Limongi Batista Elenco: Djalma Limongi Batista, Eduardo Nogueira Assistente de Direção: Valéria Silveira Direção de Produção: Vera Roquette Pinto Hang-five Drama, curta-metragem Direção, roteiro e edição: Djalma Limongi Batista Direção de Fotografia: Gualter Limongi Batista Elenco: Haifa Helena, Eduardo Nogueira Assistente de Direção: Valéria Silveira Direção de Produção: Vera Roquette Pinto   1972 Puxando Massa Documentário, curta-metragem, inacabado Direção e roteiro: Djalma Limongi Batista Diretor de Fotografia: Aloysio Raulino Elenco: Paulo Roberto 1973  Porta do Céu Documentário, curta-metragem Direção e roteiro: Djalma Limongi Batista Direção de Fotografia: Plácido Campos Jr. Direção de Arte: Flávio Império Elenco: Vivian Mamberti, Carlos Augusto Strazzer (locução) Assistente de Direção: Valéria Silveira   Rasga Coração – O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina Documentário, curta-metragem Direção e roteiro: Djalma Limongi Batista Elenco: Fernanda Montenegro, Walmor Chagas, Nélson Rodrigues, Paulo Autran, Bibi Ferreira, Paulo Autran (locução) 1981 Asa Branca, Um Sonho Brasileiro Drama, longa-metragem, 111’ Direção: Djalma Limongi Batista Roteiro: Djalma Limongi Batista e Gualter Limongi Batista Direção de Fotografia: Gualter Limongi Batista Elenco: Edson Celulari, Walmor Chagas, Eva Wilma, Regina Wilker, Geraldo D’El Rey, Gianfrancesco Guarnieri, Rita Cadillac, Mira Haar, Garrincha, Mário Américo, Vivian Buckup, Dorit Deipenbach, Vivian Mamberti, Ana Maria Nascimento e Silva, Ruth Rachou, Birgit Rademacher Edição: José Carvalho Motta Trilha Sonora: Inácio Zatz Figurino: Felipe Crescenti Direção de Atores: José Possi Neto Assistente de Direção: Tânia Savietto Direção de Produção: Vera Roquette Pinto Produção: Cinema do Século XXI Distribuição: Embrafilme Prêmios: • Melhor Direção Festival de Brasília • Melhor Direção e Ator (Walmor Chagas) Festival de Gramado • Melhor Filme, Direção e Ator (Edson Celulari) Prêmio Air France de Cinema • Melhor Filme Festival des Trois Continents 1986 Brasa Adormecida Comédia, longa-metragem, 91’ Direção: Djalma Limongi Batista Roteiro: Djalma Limongi Batista, Gualter Limongi Batista Direção de Fotografia: Gualter Limongi Batista Elenco: Edson Celulari, Maitê Proença, Paulo César Grande, Anselmo Duarte, Grande Otelo, Ilka Soares, Iara Jamra, Fernando de Almeida, Ana Maria Nascimento e Silva, Marcelia Cartaxo, Zeni Pereira, Miriam Pires, Berenice Raulino, Alda Varella, Lucia Pereira, Alfredo Damiano Edição: José Carvalho Motta, Djalma Limongi Batista, Gualter Limongi Batista Trilha Sonora: Tom Jobim Figurino: Patrício Bisso Direção de Arte: Felipe Crescenti Efeitos Especiais: Cao Hamburger e Paulo Schettino Assistente de Direção: Tânia Savietto Direção de Produção: Vera Roquette Pinto Produção Executiva: Assunção Hernandes Produção: Raiz Filmes Distribuição: Embrafilme Prêmio: • Melhor Atriz RioCine Festival (Maitê Proença) 1998 Bocage, o Triunfo do Amor Drama, longa-metragem, 84’ Direção: Djalma Limongi Batista Roteiro: Gualter Limongi Batista, Djalma Limongi Batista e José Carvalho Motta Direção de Fotografia: Djalma Limongi Batista e Zeca Abdalla Elenco: Victor Wagner, Francisco Farinelli, Viétia Rocha, Majô de Castro, Ana Maria Nascimento e Silva, Eugênia Melo e Castro Trilha Sonora: Lívio Tragtenberg Direção de Arte: Bruno Testore Schmidt Edição: José Carvalho Motta Assistente de Direção: Tânia Savietto Direção de Produção: Sônia Kavantan Produção Executiva: Edith Limongi Batista Distribuição: Riofilme Prêmio: • Prêmio Especial do Júri Festival de Gramado 2003 Autovideografia Documentário, curta-metragem Direção: Djalma Limongi Batista Roteiro: Djalma Limongi Batista e Walmor Chagas Elenco: Walmor Chagas A Coleção Aplauso, concebida e editada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, se tornou um sucesso de venda e de repercussão cultural. Coordenada pelo crítico Rubens Ewald Filho, a Coleção resgata, para um público amplo, a vida e a carreira de grandes intérpretes, diretores e roteiristas do cinema, do teatro e da televisão brasileira. Vários fatores se somam para explicar a gratificante aceitação. São escritos, em sua maioria, por jornalistas especializados, que se baseiam depoimentos dos próprios biografados, resultando em textos diretos, fluentes, entremeados de episódios divertidos. Publicados em formato de bolso e com adequado projeto gráfico, os livros trazem fotos inéditas do acervo pessoal de cada biografado de relevante interesse artístico e histórico. A escolha dos biografados representa outro fator decisivo para o interesse despertado pela Coleção. São personalidades representativas rememorando suas trajetórias de vida, sua formação prática e teórica, seus métodos de trabalho, suas realizações e – em alguns casos – suas frustrações, recuperando assim a própria história acidentada do cinema, do teatro e da televisão em nosso país. A Coleção, que tende a ultrapassar os cem títulos, já se afirma e reúne um time ilustre e variado, de dar orgulho a qualquer brasileiro. São atores e atrizes, como Bete Mendes, Cleyde Yaconis, David Cardoso, Etty Fraser, Gianfrancesco Guarnieri, Irene Ravache, John Herbert, Luís Alberto de Abreu, Nicette Bruno e Paulo Goulart, Niza de Castro Tank, Paulo José, Reginaldo Faria, Ruth de Souza, Sérgio Viotti, Walderez de Barros. Diretores, como Carlos Coimbra, Carlos Reichenbach, Helvécio Ratton, João Batista de Andrade, Rodolfo Nanni e Ugo Giorgetti. Atores que também se tornaram diretores, como Anselmo Duarte, o único brasileiro a arrebatar até hoje a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. Além dos perfis biográficos, que são a marca da Coleção, ela inclui projetos especiais, com formatos e características distintos, como as excepcionais pesquisas iconográficas sobre Maria Della Costa, Ney Latorraca e Sérgio Cardoso. Publicamos, também, roteiros históricos, como O Caçador de Diamantes, de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o primeiro roteiro completo escrito no Brasil para ser filmado, ao lado de roteiros mais recentes, como O Caso dos Irmãos Naves, de Luís Sérgio Person, Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradores de Javé, de Eliane Caffé. Destaca-se a excepcional obra Gloria in Excelsior, organizada por Álvaro de Moya, sobre a ascensão, apogeu e queda da TV Excelsior, que mudou o jeito de fazer televisão no Brasil. Muitos leitores se surpreenderão quando descobrirem que vários dos diretores, autores e atores que promoveram o crescimento da TV Globo, nos anos 70, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior, que sucumbiu juntamente com o grupo Simonsen, perseguido pelo regime militar. Nesse sentido, a obra de Moya acaba retratando mais do que a trajetória de uma rede de televisão, uma época histórica do País. Contudo, se algum fator de sucesso da Coleção Aplauso merece ser mais destacado do que outros, é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. Precisa apenas dispor de fontes de informação atraentes e acessíveis. É isso que a Imprensa Oficial propiciou ao criar a Coleção Aplauso, pois tem consciência de que toda nação que esquece sua história cultural, fica mais pobre espiritualmente, arriscando-se a perder sua identidade. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Títulos da Coleção Aplauso Perfil Djalma Limongi Batista - Livre Pensador Marcel Nadale Anselmo Duarte - O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Carlos Coimbra - Um Homem Raro Luiz Carlos Merten Rodolfo Nanni - Um Realizador Persistente Neusa Barbosa João Batista de Andrade - Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Carlos Reichenbach - O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Ugo Giorgetti - O Sonho Intacto Rosane Pavam Aracy Balabanian - Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Renata Fronzi - Chorar de Rir Wagner de Assis Rubens de Falco - Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Renato Consorte - Contestador por Índole Eliana Pace Carla Camurati - Luz Natural Carlos Alberto Mattos Rolando Boldrin - Palco Brasil Ieda de Abreu Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Sérgio Hingst - Um Ator de Cinema Maximo Barro Cleyde Yaconis - Dama Discreta Vilmar Ledesma Irene Ravache - Caçadora de Emoções Tania Carvalho Ruth de Souza - Estrela Negra Maria Ângela de Jesus David Cardoso - Persistência e Paixão Alfredo Sternheim John Herbert - Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa Reginaldo Faria - O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Paulo José - Memórias Substantivas Tania Carvalho Sérgio Viotti - O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Etty Fraser - Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Paulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em Família Elaine Guerrini Walderez de Barros - Voz e Silêncios Rogério Menezes Rosamaria Murtinho - Simples Magia Tania Carvalho Bete Mendes - O Cão e a Rosa Rogério Menezes Gianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Luís Alberto de Abreu - Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Niza de Castro Tank - Niza Apesar das Outras Sara Lopes Cinema Brasil De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Carlos Reichenbach e Daniel Chaia Cabra-Cega Roteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Como Fazer um Filme de Amor José Roberto Torero Dois Córregos Carlos Reichenbach Narradores de Javé Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu O Caso dos Irmãos Naves Luís Sérgio Person e Jean-Claude Bernardet Casa de Meninas Inácio Araújo O Caçador de Diamantes Vittorio Capellaro comentado por Maximo Barro Teatro Brasil Antenor Pimenta e o Circo Teatro Danielle Pimenta Trilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce - Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso - Pólvora e Poesia Alcides Nogueira Alcides Nogueira - Alma de Cetim Tuna Dwek Ciência e Tecnologia Cinema Digital Luiz Gonzaga Assis de Luca Especial Dina Sfat - Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Maria Della Costa - Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Sérgio Cardoso - Imagens de Sua Arte Nydia Licia Ney Latorraca - Uma Celebração Tania Carvalho Gloria in Excelsior - Ascenção, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya