Antenor Pimenta Circo e Poesia A Vida do Autor de ...E o Céu Uniu Dois Corações Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretora Financeira e Administrativa Nodette Mameri Peano   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Teatro Brasil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Revisão Cláudia Rodrigues Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Assistente operacional Andressa Veronesi Revisão Ortográfica Heleusa Angélica Teixeira Tratamento de Imagens José Carlos da Silva Antenor Pimenta Circo e Poesia A Vida do Autor de ...E o Céu Uniu Dois Corações por Daniele Pimenta Cultura Fundação Padre Anchieta São Paulo - 2005 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pimenta, Daniele Antenor Pimenta : circo e poesia : a vida do autor de – E o céu uniu dois corações / por Daniele Pimenta. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura - Fundação Padre Anchieta, 2005. 376 p. : il. – (Coleção aplauso. Série teatro Brasil / coordenador geral Rubens Ewald Filho) ISBN 85-7060-233-2 (Obra Completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-342-8 (Imprensa Oficial) 1. Artistas 2. Pimenta, Antenor 3. Teatro brasileiro I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. 05-2772 CDD 791.309 2 Índice para catálogo sistemático: 1. Artistas de circo : Artes circenses 791.309 2 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 Apresentação Passar a vida sem uma casa de verdade, saltando de cidade em cidade, em cima de uma carroça, trem ou caminhão, parece coisa de gente maluca. Pois gente de circo é assim, todo o mundo sabe. É gente nômade e acostumada ao desconforto, que troca a mesmice cotidiana dos escritórios por brilho e aplausos. Gente de circo tem vida dura, treina e ensaia à exaustão, vende pipoca nos intervalos, conserta lona esburacada, ensina aos filhos tradições técnicas e lições de escola, tudo para agradar ao público na hora em que a bandinha tocar. De longe, parece poética essa vida errante. Mas são muitas as histórias de amor daqueles que fugiram com o circo e acabaram deserdados e renegados pelas famílias tradicionais... Porque circo é risco e irreverência. Palhaço incomoda e seduz, o espetáculo é atrevido e a risada é ambivalente. Para os que estão do outro lado da vida ou na outra ponta da arte, a atitude anárquica desqualifica e incomoda. Daí vem a intolerância e o preconceito que muitos têm contra esse tipo de arte e seus artistas. Esse preconceito existe não só com relação ao circo-teatro, mas ao teatro popular em geral, incluindo todos os espetáculos que não se encaixaram em gaveta nenhuma, aqueles que seguem sem rótulos e se apresentam indefinidos quanto ao gênero ou estilo. Considerando que o popular não segue regras ou escolas, nem tem manifestos para definir padrões e conceitos estéticos, discute-se apenas com o “gosto” e “não gosto”, como se essas manifestações não merecessem uma abordagem mais aprofundada. Em arte, se puxarmos o fio da história, veremos que sempre existiram duas correntes paralelas: a popular e a erudita. Desde os gregos ou, talvez, até antes. Arnold Hauser alertava que, se tivéssemos conhecido o teatro que rolava nas ruas da Grécia, deixaríamos de acreditar na clássica superioridade racional helenística. Eram bufonadas, mimos, dramas descomplicados e farsas grosseiras que divertiam o povo nas praças, em oposição às grandes tragédias levadas nos anfiteatros. Obviamente essas manifestações de rua (ou dentro de estalagens ou lugares inapropriados) eram feitas sem um texto escrito. Eram improvisadas ou calcadas, unicamente, na linguagem corporal. Enquanto isso, do lado grego erudito, Aristóteles proclamava as racionais leis do drama em sua célebre Poética. Os textos sobreviveram e nos contaram como era o teatro daquela época. Estudamos o teatro clássico através da literatura dramática, não através do espetáculo. E nem imaginávamos o teatro grego de rua... ou vielas. O circo e seus remotos ancestrais estiveram sempre ligados a essa cultura popular e à arte de emocionar sem complicações. A rigor, é muito difícil precisar a data e origem dos espetáculos em recintos fechados ou abertos, que marcariam o surgimento do gênero. A vontade de divertir foi inventando, durante séculos, feiras populares, barracas exibindo fenômenos, habilidades extravagantes, truques mágicos e malabarismos. O circo, cujas remotas raízes estão naqueles espetáculos populares dos gregos e dos romanos, apossou-se também das criações dos palhaços da comédia popular e, depois, dos tipos fixos da Commedia dell’Arte para, mais tarde, chegar ao melodrama e ao esquema circo-teatro. Em suas estruturas e técnicas familiares, o teatro popular nunca sofreu alterações radicais. Quando foi proibido pela censura cristã, este teatro resistiu e sobreviveu pelas mãos de atores improvisando nas estalagens, nas esquinas, nas praças. A Commedia dell’Arte, que nasceu em Veneza no século XVI, repetiu e estilizou os mesmos “truques” do passado. Mas trouxe um indiscutível aprimoramento técnico ao teatro popular e inaugurou, no mundo, o teatro profissional, modificando o caráter de organização e preparando o futuro teatro comercial. A Commedia representa, até hoje, o mais rigoroso exemplo de utilização técnica de máscara e improvisação, de trabalho de grupo e de universalização dos tipos-fixos. Deu status ao popular porque mostrou teatro “muito bem feito e com belo acabamento”. Foi no Brasil que o circo-teatro mais se desenvolveu e se espalhou. Nos outros países, o circo é, praticamente, reservado a espetáculos de variedades cheios de “atrações”. Na Itália, há um fenômeno contemporâneo de organização semelhante. São as chamadas famiglie d’arte, consideradas as verdadeiras descendentes da Commedia dell’Arte que hoje desenvolvem uma espécie de teatro próximo aos melodramas circenses. No arcabouço dessas peças há o lugar certo para o galã, para a dama-galã, para a ingênua e para que um velho tio (ou médico da família, ou advogado do casal) dê conselhos. Há também o espaço ideal para que casais enamorados atinjam seus objetivos, para que criados divertidos compliquem a vida de seus patrões, para que heróis incorruptíveis vençam as dificuldades. No edifício melodramático, há princípios como “nós”, “complicações”, “desfecho”. Como na Commedia dell’Arte, os tipos são fixos, mas maleáveis e flexíveis aos tempos. Essas construções se adaptaram a outras companhias itinerantes e, assim, chegaram ao Brasil. O público brasileiro das pequenas cidades interioranas atravessou décadas deleitando-se com dramas lacrimosos em cirquinhos mambembes. Do pacto entre atores e platéia, entre risos e choros, entre sofisticação e “breguice”, registrou-se uma estética única, pois foi feita do nosso jeito: o circo teatro de pavilhão! Foi nessa estética típica e ingênua, distante das influências televisivas e dos rigores acadêmicos, que Antenor Pimenta mergulhou no prazer do melodrama mais famoso de todos os tempos: ...E o Céu Uniu Dois Corações. Ele não fez dramaturgia de gabinete, pois não escrevia isoladamente. Como na melhor tradição popular, compôs diretamente para a cena e experimentou dirigir o resultado de sua obra. Reaproveitou modelos e situações do teatro de tradição oral e os transpôs para texto escrito, com eficácia, conforme vai nos apontar a autora. Antenor Pimenta elaborou seu sistema de regras operacionais em cima da estética popular e criou uma dramaturgia circense única e bem cuidada. E é aí que sua obra se distingue: na preocupação constante com o acabamento. Tempos atrás, alguém que se metesse a pesquisar o circo, ou palhaços ou melodramas, estaria perdendo seu tempo e uma ótima oportunidade de fazer um trabalho sério, “de valor”, um trabalho daqueles que deixariam os pais orgulhosos. Hoje, ainda são poucos os trabalhos universitários que abordaram o circo-teatro brasileiro. Daniele Pimenta foi minha aluna na Unicamp, durante os quatro anos da graduação. Como sabia das minhas pesquisas em teatro popular, foi, aos poucos e cautelosamente, me mostrando fotos e me contando fatos de sua família. Encantada, estimulava-a a me contar mais e mais: sobre o circo de seu pai; o que fazia ele agora; como havia sido sua infância. Delicioso era saber do namoro entre seus pais e como a mãe fazia o número da amestradora de pombos, a grande atração do espetáculo. Os retratos eram lindos e mostravam Dani, ainda criança, usando fantasias. Mas eram de carnaval, pois o pai vendera o circo antes que pudesse optar. Sobre o tio Antenor, foi me mostrando o rico material e relatava-me sobre as formas como poderia ampliá-lo, pedindo às primas e tias os textos originais e mais fotos. Paralelamente, Daniele, que nunca trabalhou em circo, foi atriz em três peças que dirigi. Logo na primeira (encenei um texto do russo Erdmann como montagem de formatura de sua turma) veio a surpresa: ela cantava! E também dançava graciosamente, pois havia estudado balé desde criança. Como atriz, entende com facilidade as convenções do teatro popular. Tem o tempo certo da comédia e não se inibe ao pactuar com a platéia (será serragem nas veias?...) Após a estréia, conheci toda a família. A mãe que toca acordeão, os irmãos, os primos. Percebi o quanto todos se orgulhavam dela e de seu diploma da Unicamp. Alguns anos depois, vieram o Mestrado na USP e o teatro profissional. Na defesa da tese, eu estava na banca e pude ver a linda figura da mãe, emocionada, na platéia: Daniele Pimenta introduzia Antenor Pimenta no âmbito dos estudos acadêmicos. Em sua trajetória na Universidade, estudou os gregos, fez seminários belíssimos sobre Brecht, passou brilhantemente por todos os “ismos”, técnicas e estéticas. Mas ela resolveu fugir com o circo. Investiu nessas zonas periféricas, por onde antes era raro aventurarem-se pesquisadores ou críticos. Correu o risco. Mas não foi deserdada nem condenada. Ao contrário... sua história de amor ganhou esta edição. O circo-teatro, praticamente, acabou. As histórias folhetinescas e imprevisíveis migraram para a TV. Os ingredientes mais mágicos dessa arte foram perdidos. Dani Pimenta quer resgatar esse teatro que o Brasil inventou num tempo em que ainda se tinha esperança. Quando ainda não havia os apelos de uma indústria chamada televisão... Preconceito só deveria existir contra espetáculos malfeitos e mal-acabados. Tradição popular é ouro. Preservar cultura popular é, sem dúvida, passaporte para a modernidade. Este livro vem para contribuir com a preservação de nossas tradições ao mesmo tempo em que ajuda a fazer justiça à obra do desconhecido mais famoso do teatro brasileiro. Neyde Veneziano Um Céu Mais Baixo Um céu mais baixo, um círculo à volta; guizos e risos punham-me no mundo do sonho infantil. As roupas burlescas punham-me nu. E eu via-me assim. Assim como eu era. Hoje... Não há guizos nem risos. Meu céu está longe daqui onde estou. E me vejo vestido com roupas estranhas. Assim eu não sou. Antenor Pimenta Capítulo I Para Entender o Contexto... Antenor Pimenta, meu tio-avô, foi um dos grandes nomes do circo-teatro brasileiro, autor do texto ...E o Céu Uniu Dois Corações, que se tornou um clássico da dramaturgia circense e que é montado até hoje por estudantes e grupos de teatro de todo o Brasil. Para quem viveu nos anos 30, 40 e 50 (do século passado, quem diria!!), ir ao circo-teatro era uma experiência fascinante e, para Antenor, a vida no circo foi muito, muito intensa. Assim, o foco principal deste livro será sua trajetória como artista e empresário circense, um artista plural (foi ator, autor, ensaiador, diretor artístico geral e poeta), empreendedor arrojado e até inventor, que colocava todos os seus talentos a serviço da qualidade de seus espetáculos e da boa relação com o público. Como nem todo mundo viveu naquela época, começarei escrevendo um pouquinho sobre o que foi o circo-teatro, assim teremos mais elementos para imaginar como foram as histórias que contarei. O circo no Brasil foi formado por tradicionais famílias circenses de várias nacionalidades que para aqui migraram, segundo registros oficiais, a partir da década de 1830 e, ao longo dos anos, adaptaram seus modelos de trabalho aos padrões de cultura popular do Brasil. As pantomimas, que eram encenações sem falas, se não eram novidade nos picadeiros desde o primeiro circo de Philip Astley, tiveram maior difusão no Brasil principalmente a partir da segunda metade do século XIX. Astley (1742-1814) é considerado o criador do circo moderno. Construiu em Londres, na década de 1770, um circo de madeira com arquibancadas e um picadeiro, onde mesclava exibições de equitação a apresentações de saltimbancos. Vale ressaltar que picadeiro, originalmente, é o local onde se treina equitação e o termo vem de picador, isto é, treinador de cavalos. As pantomimas foram adotadas ou aperfeiçoadas aqui no Brasil muito provavelmente como alternativa de incremento dos espetáculos das companhias, que não conseguiam ter ou manter números de feras amestradas, as quais eram um dos maiores e mais raros atrativos dos circos da época, mas que acarretavam enormes despesas para as companhias. Eram muitas as dificuldades para trazer animais exóticos ao país e, ainda mais grave, para mantê-los vivos nas precárias condições de manutenção e de transporte dos circos, feito em carroças. Os animais, mal alimentados nas longas viagens em que dificilmente se encontrava carne fresca, não resistiam e, por fim, pouquíssimos circos mantinham a estrutura de circo zoológico, como eram chamados na época. O desenvolvimento de pantomimas, que absorviam habilidades acrobáticas dos artistas em sua execução, teve uma enorme aceitação por parte do público, fazendo com que muitas companhias se dedicassem à sua criação para complementar seus espetáculos. Fruto dessa evolução, as comédias de picadeiro - peças curtas, com falas, mas geralmente sem texto escrito, desenvolvidas como improvisações sobre roteiros - eram parte quase que obrigatória em todos os espetáculos circenses nas últimas décadas do século XIX. O sucesso das comédias de picadeiro em todo o Brasil é certamente uma das origens da importância mítica do palhaço até hoje. A afirmação, feita ainda atualmente, de que um bom circo depende de um bom palhaço, mais que senso comum era regra básica na época das pantomimas e comédias de picadeiro. Vem desse período de formação e desenvolvimento do circo no Brasil a distinção que circenses mais antigos fazem entre palhaço mímico e palhaço pilhérico - apoiado no humor verbal - de acordo com o estilo de suas performances. Essa classificação correspondia, geralmente, à diferença entre as atuações de palhaços estrangeiros e brasileiros no mesmo picadeiro e suas diferentes formas de comunicação com o público. A transição das comédias de picadeiro para o circo-teatro é uma transformação estrutural. Algumas companhias montavam um tablado no picadeiro, ou entre este e a cortina, para dar destaque às pantomimas e comédias. Os tablados, que inicialmente tinham cerca de um palmo de altura, foram ampliados com o tempo, devido ao sucesso e importância adquirida pela representação teatral nos espetáculos circenses. Existem várias explicações para a estruturação definitiva do circo-teatro no Brasil, mas a explicação abordada mais precisamente nas pesquisas é a criação de um pavilhão por Benjamim de Oliveira e Afonso Spinelli em 1918, como alternativa para enfrentar a crise gerada pela Gripe Espanhola, no Rio de Janeiro. Em seu Circo-Teatro, ou Teatro de Pavilhão, eles reuniram artistas de circo e de teatro cujas companhias tinham sido dissolvidas pela morte de colegas. O empreendimento, considerado muito arriscado por causa da desolação geral da população, em função da Primeira Guerra Mundial e da Gripe Espanhola, tornou-se um grande sucesso, justamente por oferecer uma nova alternativa de diversão em momento tão difícil. Apesar da referência precisa sobre a inauguração do Circo-Teatro Spinelli, é fato que várias companhias adotaram a estrutura de circo-teatro na mesma época: palco e picadeiro separados para um espetáculo dividido entre o programa circense tradicional na primeira parte e um espetáculo de teatro completo, com maiores possibilidades cenográficas já preparadas no palco, na segunda parte. Foi a evolução natural da estrutura do circo para atender às necessidades das representações cada vez mais elaboradas. A década de 1920 viu surgirem, assim, várias companhias de circo-teatro por todo o Brasil. Essa estrutura consolidou-se por dois motivos principais: o sucesso dos quadros teatrais junto à população, que não tinha fácil acesso à leitura, e a adesão de grupos teatrais que não tinham condições financeiras para manterem temporadas em teatros das capitais ou para sustentarem viagens pelo interior. Tanto o circo vinha ao encontro das necessidades dos atores, que encontravam espaço gratuito, com salário e público constantes, como os atores vinham ao encontro das necessidades do circo, de aperfeiçoamento técnico do elenco e maior repertório. Piolim, famoso palhaço, autor e protagonista de inúmeras comédias de picadeiro, dizia que o circo-teatro era sinal da decadência do circo, referindo-se à estruturação do palco separado, pois além do espetáculo passar a ser dividido em duas partes, o que exigia a redução dos números circenses tradicionais, no palco eram levados dramas e as chamadas altas comédias, não havendo espaço para a atuação de palhaços caracterizados na parte teatral, na qual os cômicos atuavam de cara-limpa, como dizem os circenses. Controvérsias à parte, o fato é que o surgimento do circo-teatro veio ligar definitivamente a história do circo à história do teatro no Brasil, tanto pelo ingresso de companhias de teatro nas empresas circenses como pela disseminação das representações teatrais por todo o país. As companhias montavam peças portuguesas, histórias bíblicas, adaptações de romances franceses, tudo que pudesse atingir e comover as platéias do interior de um país tão heterogêneo como o Brasil. Em pouco tempo, na década de 30, surge a segunda geração do circo-teatro. Os adaptadores passaram à condição de autores, criando uma dramaturgia original, com um estilo de linguagem próprio: o Melodrama Circense, que atingia a platéia dos circos-teatros atendendo às necessidades de seu imaginário, com jovens apaixonados, vilões terríveis e angústias maternas, em uma linguagem brasileira. A chamada terceira geração surgiu a partir do final da década de 50, com o declínio do circo-teatro tradicional, e atingiria seu auge nas décadas de 60 e 70. Seja pelas inúmeras crises financeiras, seja pela perda de grande contingente de bons atores para a televisão ou por mudanças no perfil e gosto do público, as maiores empresas de circo-teatro decidiram suspender a parte teatral para voltar a investir no circo tradicional. Funcionários desses circos acabaram comprando o material de cena e figurinos e, sem condições de contratarem um elenco de artistas circenses e sem habilidades para executarem eles mesmos os números acrobáticos, fundaram circos que eram destinados quase exclusivamente às encenações teatrais. São os famosos cirquinhos das não tão poéticas lonas furadas, que se espalharam pelo país e hoje vivem, por anos e anos, sem sair de uma mesma cidade, mudando apenas de bairro a cada mês, tão pequeno é seu raio de alcance publicitário. Geralmente, esses circos apresentam uma primeira parte reduzida a uns poucos quatro ou cinco números circenses muito simples e uma segunda parte com uma peça, baseada nos dramas tradicionais ou chanchadas, onde o palhaço do circo atua caracterizado, como nas comédias de picadeiro anteriores à estruturação do circo-teatro. Na década de 70, outra atividade dos pequenos circos, que acabava sendo sua maior atração, era a contratação de shows de cantores populares, de artistas de televisão e exibições de luta livre. Atualmente também estes shows estão reduzidos a cantores populares e grupos musicais da própria região onde o circo se instala. Hoje, o circo-teatro desapareceu dos grandes circos e está desaparecendo de nosso panorama cultural, pois sendo uma forma de arte extremamente popular, depende da transmissão de suas tradições para sobreviver e, justamente o que o fez mais popular, isto é, seu caráter itinerante, é o que mais dificulta e torna dispersa essa transmissão. O circo-teatro não faz parte da cultura desta ou daquela região, não é arte de um lugar específico, portanto, não faz parte de um folclore regional, o que, provavelmente, garantiria sua preservação. Não há responsáveis por sua manutenção, a não ser dentro da própria comunidade circense, que participa do processo evolutivo do circo atendendo às suas necessidades práticas e que, portanto, não tem o devido distanciamento para compreender a importância da preservação do circo-teatro como fenômeno histórico. Este livro pretende contribuir para essa preservação e aborda as atividades de Antenor Pimenta, como artista e empresário. Antenor e seu Circo-Teatro Rosário fizeram parte da segunda geração do circo-teatro no Brasil, considerada sua fase áurea, na qual praticamente todos os circos brasileiros adotavam a fórmula de picadeiro e palco. A linguagem de encenação circense se aperfeiçoava, havia uma dramaturgia brasileira para o gênero e o público freqüentava intensamente os circos por todo o país. Este livro traça a trajetória de Antenor Pimenta e suas empresas – o Circo-Teatro Rosário e o Gran Rosário Circus – e apresenta a análise de sua peça para circo-teatro mai significativa: ...E o Céu Uniu Dois Corações. Como sobrinha-neta de Antenor Pimenta, filha de seu maior parceiro e de uma grande admiradora, Tabajara e Gê Pimenta, convivo com lembranças de histórias incríveis ouvidas desde pequena, sobre uma época em que o circo era muito diferente dos circos em que cresci. E, se hoje meu pai é o único Pimenta a continuar ligado ao circo, eu sou a única ligada ao teatro. Circo e teatro, a vida de Antenor Pimenta. Entretanto, mais forte que o vínculo pessoal com Antenor Pimenta, é o estímulo artístico que me move a estudar sua obra. Como pesquisadora, atriz e produtora de teatro, tenho meu trabalho voltado ao teatro popular. Não poderia, portanto, abrir mão da possibilidade de conhecer melhor a trajetória de um artista que soube tão bem, e de tantas formas, comunicar-se com seu público. Tenho grande interesse em tentar preservar a história do circo no Brasil, da qual Antenor Pimenta faz parte, e acompanho, particularmente preocupada, seu desaparecimento. Pouco resta das tradicionais famílias circenses que, como a minha, se têm desgarrado do circo por conta dos tempos (cada vez mais) difíceis. É grande o número de jovens circenses promissores que deixaram o país a convite de companhias estrangeiras e sustentam a família que se fixou fora do circo, no Brasil. Também é grande o número de jovens que deixaram o circo para concluir seus estudos e estabeleceram-se em outras profissões. Cidades como Campinas, Ribeirão Preto, São Paulo, São José do Rio Preto, Belo Horizonte, Divinópolis, Londrina, Cuiabá, Fortaleza, entre outras, são focos de concentração de ex-artistas circenses. Hoje, ao visitar os circos, encontro jovens oriundos de circos-escolas (louvável iniciativa) que foram para o circo em busca de uma vida romântica, bem diferente da dura realidade, e descendentes das famílias tradicionais que, por falta de instrução, não conseguiram se fixar fora do circo. Os artistas que permanecem no circo por opção dedicam-se ao aprimoramento de suas técnicas circenses para números de picadeiro, o que garante a preservação da qualidade dos espetáculos das grandes companhias. Ainda há alguns pequenos circos no interior do País e na periferia de grandes cidades que apresentam algo aparentado com o teatro, numa mistura estranha de palhaços e mocinhas de maiô, encenando piadas ou dramas que apresentam de memória, sem ensaios, relembrando a seqüência de cenas 30 minutos antes de entrarem em cena, conforme depoimentos colhidos nessas pequenas companhias. É difícil avaliar se essas representações são fruto da descaracterização das antigas representações de circo-teatro, em função da falta de instrução e de contato com a tradição, ou se, em caráter menos nobre, são uma tentativa oportunista, ou a única saída, para pequenas companhias que querem agradar um público habituado a diversões no padrão das apelativas bobagens televisivas. A época de ouro do circo-teatro, com o capricho, a disciplina e o orgulho pelo trabalho bem feito, passou há muito. É improvável que voltemos a ver companhias de circo-teatro como o Circo-Teatro Rosário e tantas outras de grande qualidade estrutural e artística, em efetiva atividade pelo país. Entretanto, se textos como ...E o Céu Uniu Dois Corações continuam despertando o interesse de grupos de teatro pelo país, o circo-teatro continuará sendo referência e Antenor Pimenta continuará sendo lembrado. Capítulo II A Vida de Antenor Pimenta, Antes e Depois do Circo Antenor da Silva Pimenta, conhecido como Antenor Pimenta, nasceu em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em 22 de julho de 1914. Seus pais eram Antônio da Silva Pimenta e Verônica Caligher Pimenta e, além de Antenor, tiveram mais dois filhos: Arlindo, meu avô paterno, e Jacyra (o sobrenome da Silva Pimenta não era o sobrenome original da família que, vinda da Itália, adotou-o ao providenciar documentação brasileira, escolhendo Silva por ser o nome mais comum no Brasil e Pimenta, sobrenome do escrivão que fez os registros, para distinguir a família. Antenor e seus irmãos registraram seus filhos sem o Silva e atualmente a família tem apenas o nome Pimenta). A família de Antenor era pobre; ele precisou trabalhar desde criança e, por obra do destino ou pura sorte, seu primeiro emprego foi como aprendiz-gráfico em uma tipografia: deu certo, ele aprendeu bem o ofício, passou para uma tipografia maior e, no início da adolescência foi trabalhar no jornal Diário da Manhã. A partir daí, Antenor entra em uma fase que foi de enorme influência sobre sua futura carreira de escritor. Fez amizade com os redatores do jornal, que o apelidaram de garoto-especula, tão insistentes e freqüentes eram suas perguntas sobre tudo o que lia e ouvia. Foi nesse período que seu interesse pela literatura foi despertado, compondo letra por letra as matrizes para impressão das crônicas de Humberto de Campos e outros tantos colaboradores do jornal, como os membros da ALARP - Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto - da qual Antenor seria integrante muitos anos mais tarde. Antenor trabalhou muito tempo no Diário da Manhã, até que, em 1938, quando já era redator do jornal, teve uma crise muito séria de saúde e precisou deixar o emprego. É que, além de Antenor ter começado a trabalhar muito cedo, sempre foi franzino e seu trabalho era desgastante: exigia que ele passasse a noite inteira correndo contra o relógio para que a composição da matriz do jornal ficasse pronta a tempo para a impressão, pois, como o próprio nome diz, o jornal era diário e tinha que estar nas bancas logo pela manhã. Até então, a rotina de sua vida tinha sido quebrada por dois acontecimentos muito marcantes: sua participação como combatente na Revolução Constitucionalista, em 1932, e seu casamento, em 1936, com Jacyra Alves de Souza, sua única namorada, também de Ribeirão Preto. Entretanto, Antenor não fazia idéia do quanto sua vida ainda estava para mudar... Quando saiu do jornal, trabalhou um breve período em um emprego diurno, porém sua saúde não melhorou apenas com a mudança de horário de trabalho e Antenor, precisando se restabelecer, partiu com Jacyra para uma viagem com o Circo-Teatro Rosário, que excursionava pela região de Ribeirão Preto . A amizade com os donos do circo, Sr. Guarim Gonçalves e D. Rosária, veio por intermédio de seu irmão, que era ator e palhaço, o palhaço Pimenta. Vô Arlindo, que também começou a trabalhar cedo, optou pela vida circense seguindo seu tio Juvenal, que é considerado o primeiro circense da família. Hoje em dia, ninguém sabe dizer como Juvenal foi parar no circo mas, quando Arlindo foi atrás dele, Juvenal era proprietário do Circo Novo Horizonte. Antes disso, Juvenal foi dono do Circo Zoológico e do Circo-Teatro Pimenta (cujo ensaiador, espécie de diretor de teatro da época, era Antolin Garcia, fundador do famoso Circo Garcia, que encerrou suas atividades recentemente). Antenor, dessa maneira, resgatava seus laços com o circo, guardados desde a infância quando, fascinados pela vida de Juvenal, Antenor e seus irmãos ensaiavam e apresentavam um pequeno show no quintal de casa. Cobravam palitos de fósforo como ingressos e, segundo o próprio Antenor, sua mãe ficava muito tempo sem precisar comprar fósforos, tamanho o sucesso que faziam entre as crianças do bairro. No Circo-Teatro Rosário, durante a viagem que em princípio seria de férias, Antenor fez sua estréia como ator na peça O Grito da Consciência, no papel de mordomo, substituindo um ator que adoecera. Antenor passou horas estudando sua única fala: Senhor Barão, a pessoa que Vossa Excelência mandou chamar acaba de chegar – e saiu-se bem em sua inesperada estréia, recebendo vários elogios. A partir dessa experiência, desperta-se em Antenor o gosto pelo palco. Satisfeito por poder retribuir a acolhida do amigo Guarim, coloca-se à disposição para outros pequenos papéis e acaba assumindo uma nova carreira, que se desenvolveu ao longo de anos como ator, autor, ensaiador e empresário circense, como veremos mais adiante. Antenor interrompeu sua carreira no circo de 1957 a 1960, para acompanhar os estudos dos filhos. Antenor e Jacyra tiveram quatro filhos: Marly, Helton, Nely e Vera Lúcia, sendo estas últimas filhas adotivas. Quando chegaram à idade escolar, seus filhos foram morar com a avó Verônica, em Ribeirão Preto, para estudar, e freqüentavam o circo nas férias, quando Marly e Helton interessaram-se e iniciaram-se também nas artes circenses; Helton era o palhaço Pipo e Marly, trapezista. Ambos tiveram experiências como atores nas peças do Circo-Teatro Rosário, mas não desenvolveram carreiras circenses. Atualmente, Marly é secretária-geral da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP, Helton é locutor esportivo em rádio e televisão em Campinas; Nely, já falecida, era professora em Ribeirão Preto e Vera Lúcia tem um instituto de beleza em São Paulo. Nesse período, trabalhou na Rádio ZYR-79, em Ribeirão Preto, a convite de Gastão Miranda, atuando no então famoso programa Cadeira de Barbeiro. Em pouco tempo, passou a escrever radionovelas e a Escolinha do Grupo, um programa didático-humorístico infantil que fez muito sucesso. Antenor também trabalhava como radioator nessa programação e seus trabalhos radiofônicos lhe renderam muito prestígio e homenagens. Trouxe do circo seu irmão Arlindo para trabalhar como radioator, afirmando para os donos da rádio que Arlindo era superior a ele como ator e criando personagens especialmente para ele. Na verdade, Antenor estava, dessa maneira, lançando mão da grande cumplicidade desenvolvida ao longo dos anos em que contracenou com Arlindo no circo, como palhaço e ator, período durante o qual criaram um sem-número de gags que poderiam ser aproveitadas no rádio, no mínimo facilitando muito o dinâmico trabalho de atuação ao vivo, com uma relação de comicidade já muito desenvolvida. Após esse período, Antenor voltou à vida no circo, associado a seu sobrinho e afilhado Tabajara Pimenta, meu pai, no Gran Rosário Circus, que percorreu o país apresentando espetáculos tradicionais de circo, até Antenor aposentar-se em 1964. Essa parte da história também será contada mais adiante. Paralelamente à sua carreira circense e radiofônica, Antenor escreveu centenas de poesias, tendo várias delas publicadas em jornais e revistas. Sua obra poética está sendo organizada para uma futura publicação por seu neto Helton Carlos, que mora fora do Brasil. Como ator, além do teatro e do rádio, também experimentou o cinema, tendo atuado com Mazzaropi no final da década de 1960. Ao estabelecer-se definitivamente em Ribeirão Preto, recebendo sua aposentadoria como artista circense, Antenor dedicou-se a outra aptidão: era inventor. Desde jovem era bastante engenhoso, procurando soluções criativas para problemas domésticos e do circo. Sua maior preocupação era com a população carente, tendo criado vários inventos que pretendia lançar como alternativas mais populares, como calçados com solado removível, que o próprio usuário pudesse trocar quando furasse e pré-moldados alternativos para construção de casas populares. Até o fim de sua vida Antenor requereu a patente de cerca de 3 mil inventos. Em 1967, em Ribeirão Preto, Antenor escreveu um novo texto, completamente diferente das peças escritas para circo-teatro, chamado Realidade. Um texto de crítica política e social, com dramaturgia fragmentada, que parte de um jogo de metalinguagem, apresentando um grupo de teatro que se prepara para montar uma peça também chamada Realidade. O grupo é composto por 12 amigos dirigidos pelo autor do texto, que se chama Jesus. A peça começa com a desbocada faxineira Madalena reclamando da bagunça de papéis, cinzeiros e garrafas espalhados por Jesus, que fuma e bebe enquanto escreve - ... e como o Jesus escreve!!!. Depois de muitas discussões entre o elenco, com intervenções de Madalena, são apresentados quadros da peça montada, criticando a situação vivida pelos brasileiros. Realidade seria montada por Adhemar Guerra, mas foi censurada e a montagem não se realizou. Antenor propôs-se a reescrever o texto, mas abandonou o projeto porque as alterações estavam descaracterizando demais o trabalho. Em 1987, Antenor foi empossado na Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto, na cadeira nº 29, e escolheu Piolim como patrono, emocionando a todos que assistíamos a solenidade com seu discurso em que exaltava o grande palhaço Piolim, também de Ribeirão Preto. Em 1988, Antenor foi agraciado com o título de Cidadão Emérito pela Câmara Municipal de Ribeirão Preto. Antenor chegou a apresentar seus textos em Ribeirão Preto, em montagens amadoras dirigidas por ele e feitas gratuitamente na rua onde morava, numa nova versão de suas apresentações da infância, aquelas feitas a troco de fósforos para sua mãe. Entretanto, seu projeto era estruturar uma companhia profissional para apresentações de teatro na rua, com palco desmontável, cenografia e figurinos de qualidade, para viajar pelo país. Não conseguiu um resultado que o satisfizesse a ponto de convidar possíveis patrocinadores para sua idéia. Irritava-o o trabalho com os amadores voluntários e não tinha mais paciência para formá-los tecnicamente. Queixava-se de que os amadores falavam cantando e não entendiam o tipo de interpretação que ele desejava. Como não tinha subsídios para o trabalho, interrompeu o projeto à espera de melhor momento para sua realização e nunca o retomou. Outro projeto de Antenor que não se realizou foi a criação e publicação de uma coleção de livros para crianças, contando as muitas histórias vividas por ele e seus companheiros de circo durante as viagens pelo Brasil. Antenor e Jacyra voltaram ao palco no ano de 1986, a convite de Magno Bucci, diretor do GUT – Grupo Universitário de Teatro – da Universidade de Ribeirão Preto. O grupo montou ...E o Céu Uniu Dois Corações, com Antenor no papel de Benevides e Jacyra no de D. Santa. Durante o processo de montagem, Antenor entrou em atrito várias vezes com o diretor. Não gostava do tipo de interpretação solicitada aos atores, considerando-a exagerada, estereotipada, ao que Bucci contra-argumentava dizendo que era assim que se fazia no circo-teatro. Antenor precisou discutir muito para convencer o diretor de que o trabalho em sua companhia era diferente e ajudou-o a orientar os atores, chegando a um bom resultado. Foi uma inestimável oportunidade que tive de assistir a uma montagem correta do texto, ainda que em uma produção bastante simples e, principalmente, de testemunhar a qualidade do trabalho de Antenor e Jacyra no palco, que fizeram rir e chorar uma platéia surpreendida pela emoção, uma platéia que esperava apenas uma singela demonstração do teatro de outros tempos. Antenor faleceu em 1994, em plena Copa do Mundo. Foi velado e enterrado em dia de jogo do Brasil e as ruas de Ribeirão Preto, vazias como em um feriado, pareciam tristes por sua morte, não fosse o contraste dos rojões a lembrar que o deserto tinha outro motivo. Apenas seus familiares mais próximos foram à sua despedida, em uma cerimônia discreta no Cemitério da Saudade de Ribeirão Preto. Capítulo III No Circo-Teatro Rosário Quando Antenor foi para o circo, em 1938, sua nova carreira desenvolveu-se rapidamente, tanto pela descoberta de seu talento para o palco, assumindo papéis cada vez mais importantes, como por sua personalidade forte e espírito curioso. Procurava conhecer e envolvia-se em todas as etapas do processo de criação dos espetáculos, auxiliava na administração geral do circo e, em pouco tempo, além de ator, passou a ser autor, ensaiador e relações públicas do circo. A função de autor foi a que tornou Antenor conhecido até hoje, o que aconteceu assim: Seu amigo Guarim, dono do circo, sabia que ele tinha sido redator de jornal e passou para Antenor a responsabilidade pelos textos das peças da companhia. No começo de sua carreira circense, Antenor revisava os textos que já estavam no repertório e escrevia adaptações de livros e de filmes para o palco. Como já gostava de escrever poesias e pensamentos, resolveu testar sua capacidade e escrever um texto que fosse realmente seu. A partir de suas observações sobre os vários aspectos do teatro circense, principalmente sobre as reações da platéia, escreveu seu primeiro texto original, que foi também seu maior sucesso: ...E o Céu Uniu Dois Corações. O texto foi escrito em cinco atos, encadeados por ganchos folhetinescos, isto é, cada ato termina em um momento crítico, criando suspense e expectativa para os atos seguintes. É um melodrama que emprega todos os recursos do gênero: o forte contraste entre a torpeza do vilão e as virtudes da ingênua, uma pobre órfã criada pela avó cega, enquanto seu pai, preso injustamente, aguarda a restauração da justiça pelas mãos do herói, um jovem apaixonado pela ingênua, que se ilude com a dedicação do vilão, seu tutor e verdadeiro assassino de seu pai, que tentará impedir de todas as formas a união dos jovens, que só será possível no encontro apoteótico de suas almas no céu. Com o sucesso de ...E o Céu Uniu Dois Corações, Antenor foi convidado para ser sócio de Paulo Seyssel (da mesma família de Waldemar Seyssel, o palhaço Arrelia) e Reinaldo Martini, no Circo-Teatro Universo, mas, passados alguns meses, Antenor deixou esse circo em meio a conflitos ético-profissionais. Depois de várias peças montadas, seus sócios, donos do material do circo, não quiseram mais pagar a porcentagem que lhe era devida, forçando sua saída por considerarem-no desnecessário. Acreditavam que as montagens se manteriam sem direção e que conseguiriam, eles mesmos, ensaiar novas peças seguindo o método de Antenor. Antenor voltou para Ribeirão Preto e, novamente, foi convidado por Guarim Gonçalves para coordenar os espetáculos do Circo-Teatro Rosário. Guarim resolveu parar de viajar quando sua esposa Rosária faleceu e, em 1947, ofereceu a empresa a Antenor, fazendo-lhe uma proposta de amigo: vendeu fiado. Antenor não tinha economias guardadas. Sempre afirmou que ganhava muito dinheiro como artista, mas gastava tudo o que ganhava, não só em proveito próprio e de sua família, como também, como veremos adiante, em benefícios para seus funcionários. Guarim confiou em Antenor, que pagou pelo circo com a bilheteria dos espetáculos ao longo de um ano, mesmo investindo em melhorias e mantendo seu padrão de vida, tamanho o sucesso da empresa. Contratou seu irmão Arlindo, que estava no Circo-Teatro Universal do empresário Máximo Bernardi e, assim, Arlindo foi com D. Graciana e seus filhos para o Circo-Teatro Rosário, onde atuariam nas duas partes do espetáculo. Antenor assumiu assim não só a direção dos espetáculos como de toda a empresa, passando a reestruturar a companhia segundo seus ideais. Planejava todos os detalhes para o espetáculo, investindo no material do circo, contratações, produção das peças e no conforto do público, chegando ao ponto de mandar fazer poltronas estofadas e reclináveis (projetadas por ele), para adequar o ângulo de visão do público à diferença entre palco e picadeiro. O circo tinha capacidade para cerca de 1200 pessoas, sendo 800 na arquibancada e 400 nas cadeiras e camarotes. Com 34 metros redondo, como dizem os circenses (isto é, com 34 m de diâmetro), seria hoje um circo de porte médio, mas era grande para a época. Considerado um dos melhores circos-teatros de então, por artistas e pelo público que o prestigiava, o Rosário era um dos circos contemplados por uma subvenção federal que, mais do que por seu valor financeiro, era um importante indicador de qualidade. As poucas companhias escolhidas pelo governo para receberem o prêmio de estímulo à manutenção de bons espetáculos esforçavam-se para manter o subsídio e faziam muita propaganda do feito. Realmente, criar, administrar e manter espetáculos de qualidade é um trabalho muito complexo, e era ainda mais, se considerarmos as questões técnicas da época. O material do Circo-Teatro Rosário era muito volumoso, com todo o aparato de cenografia e figurinos (equivalente a três caminhões), lona, madeiramento, poltronas e arquibancadas e ainda a bagagem dos artistas. O transporte dos circos, nesta época, era feito por trem e a companhia chegava a fretar uma composição inteira, com vagões de carga e de passageiros, numa época em que o serviço ferroviário era superior ao rodoviário em qualidade, rapidez e abrangência de território. Como a necessidade de transporte é freqüente, os circos da época não tinham a autonomia de uma frota própria e tornaram-se um bom negócio para as empresas ferroviárias que ofereciam preços especiais para os circenses, clientes fiéis, com descontos que chegavam a 70% sobre o valor normal. Os circos da época eram os chamados circos de pau fincado: a equipe de montagem tinha que cavar buracos para todos os mastros, mastaréus e paus-de-roda do circo, em pontos matematicamente calculados para que a lona ficasse bem esticada, pois não havia o recurso das retinidas, cordas que esticam e sustentam a armação, como se vê hoje em dia. Era um trabalho muito minucioso e demorado, no qual todos os homens da companhia, artistas e empregados, se envolviam. Quanto aos espetáculos teatrais, Antenor escolhia o texto a ser montado e reunia todo o elenco do circo para a sua primeira leitura. Sentava-se no centro do picadeiro, com os atores na platéia e lia, sozinho, todo o texto, dando as explicações necessárias e empregando as intenções desejadas em cada fala. Às vezes, essa leitura levava mais de um encontro para ser finalizada. Os artistas não sabiam quem estaria escalado para a montagem, mas, ao término da leitura, geralmente os atores já previam qual a escalação do elenco pelas características dadas por Antenor aos personagens durante a mesma. A partir da definição do elenco, Antenor entregava aos atores seus papéis – como, na época, os textos tinham que ser datilografados um a um, os atores recebiam apenas as falas de seu personagem, datilografadas em preto, as deixas datilografadas em vermelho (no caso, apenas a última palavra da fala que precede a fala do personagem), além das indicações de marcação de cena, já previstas pelo ensaiador. Como Antenor exigia que os textos fossem decorados, dirigia seus ensaios com bastante rigidez, pois a simples troca de uma palavra nos diálogos comprometeria a seqüência da cena. Lidava com seu elenco com uma percepção aguçada, sabendo como agir com diferentes atores e em diferentes situações nos ensaios: podia interromper uma cena, pedindo que um ator em dificuldades descansasse enquanto ensaiava outra cena, como também chegava a fazer um ator repetir dezenas de vezes a mesma fala até atingir com exatidão o resultado desejado, mesmo que o ensaio não avançasse mais naquele dia. De qualquer maneira, os artistas que trabalharam com ele dizem que ele sempre sabia de que modo conseguir do ator o desempenho desejado, muitas vezes fazendo a cena ele mesmo, para que o elenco o observasse, outras vezes sendo bastante duro e enérgico em suas críticas. Marly, filha de Antenor, conta: Ele decorava comigo porque eu não sabia ler, ele ensaiava comigo sem ensaiar com o pessoal, em casa, e quando foi meu primeiro ensaio no palco, a primeira cena - ela vem com uma tigela com gemada, lambendo o dedo e correndo da empregada, esse tipo de coisa, e eu fiz isso achando que estava a maior perfeição. Ele parou na hora o ensaio, acabou comigo. Por acaso se você for lamber a tigela na tua casa, correndo, você faz desse jeito? Que que é isso? Você tá pensando que você tá aqui representando o quê? Você tem que representar uma realidade, da forma como você faz, como você vive... e não parava de falar ... eu me lembro até hoje, eu tinha 5 anos! Ensaiavam ato por ato da peça, a partir do primeiro, só passando ao ato seguinte quando o anterior estivesse pronto e, durante o processo, Antenor aceitava sugestões e discutia as cenas com os atores que se interessassem, incluindo idéias para cenário e iluminação. Os ensaios aconteciam de manhã, de tarde e, eventualmente, nas noites em que não havia espetáculos. O processo de montagem durava cerca de dois meses, sendo, em média, 15 dias para o ensaio de cada ato e mais alguns dias de ensaios gerais, tendo o restante da companhia como público. Antenor exigia uma preparação adequada para cada espetáculo e seus atores recebiam treinamento específico sempre que necessário, como no caso da montagem de Os Irmãos Corsos, para a qual enviou um dos artistas para dois meses de treinamento em uma escola de esgrima em São Paulo, para que aprendesse as técnicas e as ensinasse ao restante do elenco. Um exemplo interessante de como ele conseguia bons resultados na preparação de seu elenco ocorreu em uma apresentação de seu último texto escrito para circo-teatro: O Riso do Palhaço. O texto tem uma construção metalingüística, começando pelo ensaio da última cena da peça, cena esta chamada de O Epitáfio do Palhaço Pimenta (nome do palhaço de Arlindo, que representava o papel principal). A ação passa para cenas de camarim e para o começo do espetáculo. Já no picadeiro, a atuação de Pimenta é interrompida por um funcionário do circo que vem lhe avisar que seu filhinho está à beira da morte. A ação continuaria se desenvolvendo a partir do conflito interno do palhaço que, com a morte da criança, voltaria ao picadeiro no dia seguinte para alegrar o público, que ignorava seu sofrimento. Durante uma das apresentações, em Barretos, quando o ator que representava o funcionário do circo traz a notícia do acidente, um sargento que estava na platéia interrompe o espetáculo, invade o picadeiro e começa a organizar uma operação de salvamento, mandando buscar seu carro para levar a criança ao hospital e pedindo que procurem um amigo médico para a acompanhar. Esse exemplo ilustra a qualidade da interpretação naturalista obtida por Antenor no trabalho com seus atores, principalmente se considerarmos que, segundo os depoimentos, o papel do funcionário do circo, que despertou tal reação, era feito por atores menos experientes, em seu processo de aprendizado. Paralelamente aos ensaios, era levantada a produção do espetáculo, com a preparação rigorosa de figurinos, cenários, iluminação e sonoplastia. Como Antenor idealizava e coordenava todo o trabalho de montagem, a produção estava absolutamente a serviço da encenação. Antenor considerava o trabalho dos atores de circo, em geral, muito artificial, em decorrência das condições acústicas, e acreditava que o envolvimento do público era, por isso, prejudicado. Procurava uma nova forma de interpretação para sua companhia pois, para ele, o resultado final deveria ser o mais natural possível. Além do rigor nos ensaios e preparação de seus atores, experimentava inúmeros recursos técnicos na produção de seus espetáculos para viabilizar o tipo de encenação que desejava. O palco era equipado com microfones, pendurados em sua estrutura interna, para que o público pudesse ouvir bem todo o texto sem que seus atores recorressem a uma impostação exagerada. Havia um cuidado especial com a cenografia que, mais do que o tradicional telão pintado ao fundo, trazia uma ambientação completa, com mobília, lustres, portas e janelas que revelavam outros ambientes, como miniaturas de telhados em perspectiva, por exemplo. Rampas, escadarias, pontes e varandas eram projetadas para resistirem ao peso dos atores em movimento, em cenas como a que descreve Cecília Beraldo Rosa, irmã de minha avó Graciana: Em Se Eu Fora Rei, eu tinha que rastejar por uma rampa e escalar um muro, bonita, de cabelo todo solto, com uma faca na mão, pra ajudar o mocinho que lutava no cenário de cima. Tinha que chegar de surpresa e atacar o bandido por trás, só o público me via. Inúmeros recursos técnicos, muitos deles criados por Antenor, eram utilizados para possibilitar maior envolvimento da platéia. Uma das inovações projetadas por ele foi o palco sobre trilhos que, acionado por um mecanismo de roldanas e cabos-de-aço, invadia a cena com todo um outro cenário e elenco colocados, em um efeito quase mágico no jogo de luzes das mudanças de atos. Antenor já fazia uso do telão transparente de filó quando queria produzir efeitos diferentes de iluminação, revelando cenas sobrepostas. Esse recurso era muito usado nas apoteoses de seus espetáculos. Além do telão de filó, vários recursos de iluminação eram utilizados. Antenor foi o primeiro proprietário de circo a comprar canhão de luz; usava luz em resistência através da imersão de fios em tambores com água e sal (quanto mais submerso na solução. maior a condutibilidade e, conseqüentemente, maior a luminosidade) e tinha uma engenhoca para obter o efeito de pisca-pisca que consistia em um cilindro de madeira envolto por uma espiral de metal ligada à corrente elétrica que, quando girado, alternava o contato de uma agulha de vitrola conectada à iluminação, entre o metal e a madeira. O cenoplasta (cenógrafo) da companhia era o húngaro Rodolpho Heisler Radjosk, conhecido como Alemão. Rodolpho desenhava três ou quatro propostas de cenário, seguindo as idéias de Antenor, que escolhia uma delas para ser confeccionada. Os móveis, inicialmente, eram diferentes em cada praça (praça é o termo usado pelos circenses para designar a cidade em que se apresentam). Eram escolhidos em lojas de móveis novos ou usados, de acordo com as necessidades do repertório a ser levado, e a permuta era feita com a cessão de cortesias (como os circenses chamam os convites). Aos poucos, Antenor foi desenhando móveis desmontáveis e adaptáveis, e mandou construir um mobiliário definitivo, com estruturas básicas e capas diferentes para cada peça. A única coisa que Antenor não teve em seu material de cena foi um caixão de defunto que, necessário em alguns espetáculos, tinha que ser solicitado em funerárias. Os atores queixavam-se dessa superstição (acreditavam que Antenor ligasse a presença de um caixão a um mau presságio), pois tinham que carregar um caixão verdadeiro, muito mais pesado do que poderia ser, se fosse cenográfico. A sonografia (sonoplastia) era feita com discos de vinil de 78 rotações, em três toca-discos, com alguns efeitos executados manualmente, como no rádio. Toda a operação da sonografia era coordenada por um único profissional, Francisco Alves, o Quim, em uma cabine, um pequeno estúdio chamado controle de som. Quim executava a operação de som e coordenava ajudantes para efeitos sonoros ao vivo, como trovões, portas rangendo e batendo e som de cascos de cavalos. É interessante observar que não havia a gravação da trilha dos espetáculos; se um espetáculo demandasse a execução de 40 faixas, eram usados os 40 discos e Quim, o sonografista, conhecia absolutamente todas as faixas, de todos os discos do circo, pelo nome e estilo, sendo capaz de organizar a sonografia pedida por Antenor diretamente na hora dos ensaios, mesmo sem saber ler, recorrendo apenas à sua memória. Tabajara, meu pai, fazia a pesquisa musical para Antenor. Passava horas nas rádios procurando trechos de músicas que atendessem às necessidades dos espetáculos e, depois, se necessário, viajava para São Paulo para comprar os discos, às vezes por causa de um único trecho de poucos segundos. Eram utilizados vários recursos para dar veracidade às cenas como, por exemplo, em Os Heróis de Monte Castelo, texto de Antenor sobre dois pracinhas brasileiros enviados à 2ª Guerra Mundial. Na encenação, Antenor construía um sistema de bombas elétricas de pólvora que simulavam explosões, enquanto um compressor de ar, debaixo do palco, espalhava a areia do cenário, como numa explosão verdadeira, recurso que, aliás, é utilizado até hoje no cinema. Havia uma equipe de trabalho coordenada por Antenor para a realização de toda essa produção: roupista (figurinista), cenoplasta, sonografista, iluminador e contra-regras. No caso de adaptações de filmes, como as de ...E o Vento Levou e Se Eu Fora Rei, toda a equipe ia ao cinema com Antenor e assistia inúmeras vezes ao filme, fazendo anotações e desenhos detalhados para o levantamento da produção. Nesses casos, o termo usado pelos circenses para anunciar seus espetáculos era “transladado” e não “adaptado” do cinema. O figurino era muito bem cuidado, Antenor supervisionava o trabalho de seu alfaiate, João Vidal, e da camareira, D. Maria Batista, para que tudo fosse feito com qualidade e mantido em boas condições: roupas de época (que alguns circenses chamavam de roupa fora de época, considerando como época o tempo presente), cabeleiras, adereços, etc. A maquiagem também recebia cuidado especial para obter efeitos mais verdadeiros, como, por exemplo, as barbas de poucos dias, que os atores faziam com cabelo verdadeiro, picotado e colado com um verniz especial, em lugar da barba de rolha (pintada) que outras companhias usavam. Meu pai conta que, fora todos os figurinos específicos ou fora de época, que eram responsabilidade de Antenor, todo artista tinha seu próprio smoking, seu summer, sua calça risca-de-giz. O sapato também era do ator, todo ator tinha dez, 12 pares de sapato impecavelmente cuidados e reservados apenas para o palco. Tradicionalmente, os artistas eram respeitados por seu guarda-roupa, que era referência até para contratação em todas as companhias circenses. Outra coisa interessante na companhia de Antenor é que ele fazia questão que os atores decorassem suas falas. O Ponto (uma pessoa que “soprava” discretamente as falas) agia somente até que o espetáculo estivesse sendo realizado com segurança ou em caso de substituições no elenco. Logo, na maioria dos espetáculos da companhia, o Ponto apenas acompanhava o texto para dar segurança ao elenco. Aliás, segundo Antenor, antes do ingresso de atores não circenses nas companhias, as montagens não utilizavam o Ponto. Os elencos circenses trabalhavam com texto decorado, nos dramas, desde antes da estruturação do circo-teatro, quando se apresentavam no picadeiro (nas comédias abusavam das improvisações, desde que não perdessem o rumo da trama, usando os textos mais como roteiros). O uso do Ponto foi introduzido por influência dos atores que se incorporaram às companhias e que criticavam o método de trabalho dos atores circenses que pareciam papagaios, enquanto eles podiam se concentrar só na emoção, na interpretação, sem se preocuparem com as falas. Na realidade, existia uma diferença muito grande entre os sistemas de trabalho dos elencos circenses e dos elencos das cidades. Desde a estruturação do circo-teatro, as companhias circenses formavam seu repertório e viajavam por todo o país, reapresentando suas peças em cada nova praça. As melhores companhias das cidades também mudavam constantemente de espetáculo, mas como não mudavam de cidade, não mantinham um repertório a ser reapresentado, ensaiando novas peças semanalmente, daí a importância do Ponto. Ainda sobre a exigência de Antenor, de que seu elenco trabalhasse com textos decorados, meu pai conta como meus avós, Arlindo e Graciana, passavam horas andando pela casa e dizendo seus textos quando ele era pequeno, e que anos depois ainda falavam textos inteiros só para matar as saudades do circo-teatro. Já que os atores falavam seus textos decorados, o Ponto tinha tempo para fazer anotações sobre o andamento do espetáculo e outras observações. Por exemplo, no texto original de Heróis de Monte Castelo, datilografado por Antenor e usado pelos Pontos nas apresentações, podem ser lidas várias anotações feitas por eles, algumas bastante curiosas, que iam desde datas e nomes de cidades a comentários mais extensos sobre a apresentação, receptividade da platéia, problemas técnicos, a chegada das poltronas reclináveis, uma atriz que chorou em cena com saudade de um ator substituído à entrada de seu personagem, até uma anotação em código Morse, comemorando o recebimento da subvenção do Governo. Como o elenco não era fixo, alguns atores ocasionalmente “apontavam”. Aliás, segundo as anotações e listas de elencos, apenas o personagem Helton teve um intérprete único: o próprio Antenor. É claro que, como o elenco decorava o texto e o Ponto se manifestava apenas quando os atores tinham um lapso de memória, algumas vezes ocorriam erros e confusões inesperados que geraram histórias divertidas. Ubirajara R. Pimenta, meu tio Bira, substituindo Antenor em uma cena de Sansão e Dalila, deveria dizer: Examinem parte por parte do corpo do animal, referindo-se ao leão morto por Sansão sem o uso de armas. Preocupado em não esquecer o texto e pensando em “animal” e “leão”, disse: Examinem parte por parte do corpo do alemão, o que poderia ter passado despercebido pelo público se ele não corrigisse dizendo: Alemão não, leão... opa, animal. A platéia irrompeu em gargalhadas e as cortinas foram fechadas enquanto Bira, então muito jovem, chorava de vergonha. O silêncio se refez, ouviu-se o sinal para o reinício do espetáculo e, ao retomarem a cena, assim que Bira abriu a boca, a platéia voltou a rir tanto que o espetáculo foi interrompido novamente e retomado em cena posterior. Bira só voltou ao palco como outro personagem que representava no ato seguinte, irreconhecível, com barba e peruca para compor um idoso. Já Tabajara ganhou um apelido de Antenor quando, em Noite de São João, deveria dizer: “Belinha é minha noiva e é só o que lhe digo!”. E disse: ...é só o que lhe te digo! Dessa vez a platéia não percebeu, mas Antenor passou um bom tempo chamando meu pai de Litidigo. Antenor também cometeu suas gafes, mas sua experiência fazia muita diferença na condução das cenas, como em um exemplo de Se Eu Fora Rei, em que deveria dizer: Por ordem do rei, ninguém sairá do palácio. Ele disse: Por ordem do rei, ninguém sairá de palhaço, ao que imediatamente emendou: porque com esta indumentária estás mesmo parecendo um palhaço!... e seguiu a cena. Capítulo IV As Temporadas O circo ficava de quatro a oito semanas em cada cidade, chegando a funcionar todos os dias dependendo do tamanho da cidade. Havia um roteiro de cidades repetido anualmente e Antenor trabalhava a divulgação de sua empresa também por meio dessa freqüência: sorteava Permanentes de Prata Eternas, que eram cartões de prata que davam direito a convites para a família do contemplado em todas as temporadas do circo naquela cidade, anunciava os projetos de novas montagens para o próximo ano e, assim, a empresa era esperada com ansiedade todos os anos. Durante a temporada, além da divulgação com carro de som, cartazes e placas anunciando a programação, Antenor chegava a apresentar trailers das peças: entre a primeira e a segunda parte do espetáculo, apresentava uma cena completa, com cenário e figurinos, da peça que seria levada no dia seguinte ou que estaria estreando em breve. Os trailers eram um recurso de divulgação muito eficiente, que estimulava a curiosidade e a expectativa do público, quase hipnotizado pela repetição das chamadas do locutor que ficava repetindo “Muito breve! Não percam! Breve!”, antes e depois da apresentação de uma cena de grande impacto e suspense, obviamente interrompida antes de sua resolução. Um dos eventos de grande popularidade organizados por Antenor era, geralmente no último sábado de cada praça, a Noite do Riso, um espetáculo inteiro com números cômicos, não só pela apresentação de comédias na segunda parte, mas também com uma versão escrachada da primeira parte, com homens e mulheres travestidos nos bailados, esquetes, reprises e números musicais, usando as habilidades dos artistas. Esse espetáculo também era ensaiado e Antenor dava orientações sobre tempo cômico, relação com a platéia e outros pontos importantes da linguagem cômica, preparando artistas não habituados ao improviso. Outro evento regular e de grande sucesso era a Sessão do Troco, espetáculo completo que acontecia às segundas-feiras com ingressos a preço popular. Os artistas chamavam-na de sessão do pão-duro e Antenor chamava-a de sessão do quatrocentão, referindo-se ao valor cobrado, que era de 400 réis. Segundo Antenor, era necessária a ajuda de várias pessoas para a contagem do dinheiro, que ficava em sacos espalhados pelas barracas dos artistas que ajudariam na contagem, tamanho o volume feito pelo montante arrecadado em trocados. Em uma época em que não se temia tanto sair à noite, não havia distinção de espetáculos para adultos e crianças. As famílias iam completas, com crianças e idosos, às sessões noturnas, marcadas geralmente para as 20h30 no Circo-Teatro Rosário. O horário noturno era o preferido, visando ao conforto do público que ficava, assim, livre do calor excessivo, mas quando a temporada estava muito boa, Antenor marcava sessões extras aos sábados e domingos, trabalhando às 19h00 e 21h30min e, em algumas cidades, fazia também um bangue-bangue seriado, como acontecia nos cinemas, dividindo uma estória em quatro episódios que eram apresentados aos domingos à tarde. Para o lançamento de uma nova montagem, Antenor organizava uma apresentação de gala para autoridades e imprensa, uma avant-première como dizia, com cartazes especiais e programas impressos em seda. Era um homem muito caprichoso e atento aos detalhes, o que se refletia em sua forma de atuar, como artista e empresário. O Circo-Teatro Rosário tinha cerca de 50 peças em seu repertório. Os títulos de peças das quais minha família se lembra são: Filho das Ondas Amor de Perdição Soldado da Pátria Canção de Bernardete O Amante da Estrela Ódio, Crença e Perdão Noite de São João O Homem Que Nasceu Duas Vezes 20 Anos de Martírio Que Mãe Que Eu Arranjei Os Dois Órfãos ou Os Dois Garotos 15 Anos Romanos O Morro dos Ventos Uivantes Justiça A Tosca Lágrimas de Homem Pense Alto Sempre no Meu Coração De Amor Também Se Morre Deus Lhe Pague O Pagador de Promessas Aimée O Mundo não Me Quis Doida de Albano A Ré Misteriosa Milagres de Santo Antônio Culpa dos Pais Coração Materno O Ébrio Pobre Diabo Pecadora A Escrava Isaura Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo Sansão e Dalila Sinal da Cruz Os Irmãos Corsos Se Eu Fora Rei ...E o Vento Levou O Riso do Palhaço Heróis de Monte Castelo ...E o Céu Uniu Dois Corações Antenor procurava inovar em seu repertório, acrescentando aos textos que já se tornavam clássicos do circo-teatro, adaptações de filmes e novos textos montados e publicados no Rio de Janeiro e em São Paulo, como Pense Alto e Deus Lhe Pague, por exemplo. Esse era um traço que diferenciava sua companhia, tanto no tocante à receptividade do público, que tinha a oportunidade de assistir a espetáculos inéditos, quanto pelo empenho exigido de seus atores. Outras companhias geralmente trabalhavam com um repertório tradicional de circo-teatro, facilitando em muito a manutenção dos espetáculos, pois os atores contratados já vinham sabendo os textos. Antenor sempre atuava nos espetáculos e fez tanto sucesso como autor e ator que chegava a ser contratado para apresentar suas peças nos teatros das cidades grandes. Geralmente Antenor fazia o papel principal em seus espetáculos, até por exigência do público, que se sentia logrado e se manifestava ruidosamente quando ele não interpretava o herói. Há um caso curioso de dois circos que estavam na mesma cidade, um deles começou a anunciar ...E o Céu Uniu Dois Corações, de Antenor Pimenta, para breve e começou a haver uma grande movimentação na cidade em torno dessa expectativa. O proprietário do outro circo, Nhô Pai, amigo de Antenor, contratou o espetáculo da companhia de Antenor, pagando um preço cobrado para não fazer, como dizia meu tio, e anunciou ...E o Céu Uniu Dois Corações, com Antenor Pimenta e foi um sucesso estrondoso. Outra situação marcante para Antenor e sua companhia se deu em Ribeirão Preto, em janeiro de 1946: Antenor estava em temporada na cidade e apresentava sua nova peça, Heróis de Monte Castelo, escrita em 1945 para homenagear os pracinhas brasileiros. Depois de 15 noites apresentando a mesma peça com casa cheia, fez uma apresentação especial no Teatro Pedro II, com todos os pracinhas e oficiais da cidade e região nas primeiras filas. Foi um enorme e emocionante sucesso, com todo o público da platéia, frisas e camarotes aplaudindo de pé. Nessa noite, Antenor foi homenageado, recebendo um tinteiro de prata com a inscrição Ao conterrâneo, notável escritor, Antenor Pimenta, singela homenagem do Teatro Escola Ribeirão Preto 30/01/46. Capítulo V Antenor Pimenta e Seus Funcionários Antenor mantinha com seus funcionários uma relação de empreendedor inovador, com uma qualidade de tratamento superior a qualquer outro circo. Oferecia a seus artistas casas de madeira desmontáveis (projetadas por ele, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro) e férias anuais, quando, em geral, organizava excursões de caça e pesca para quem quisesse ir com ele. Os artistas diziam que ele não era um diretor, era um amigo. As casas eram financiadas por Antenor, que cobrava prestações baixíssimas para que o artista estivesse comprometido com a empresa por muito tempo. Aliás, sempre foi uma preocupação de Antenor a manutenção de sua equipe de trabalho. Investia muito tempo e dedicação na preparação de seus espetáculos e formação de seu elenco, portanto, além do aspecto humano, os benefícios fornecidos a seus funcionários eram uma forma de manter a equipe satisfeita, evitando prejuízos na qualidade dos espetáculos em caso de pedidos de demissões. Todos recebiam seus pagamentos (mensais, quinzenais ou semanais, dependendo da opção do artista), que eram feitos, como até hoje nos circos, por família (a divisão dos valores para cada integrante é decisão da família) e variavam de acordo com o número de pessoas, o tipo e a quantidade de atividades exercidas. Além do pagamento fixo, a cada cidade era feito um Festival do Artista: a renda da última sexta-feira da temporada era dedicada a um artista e sua família. O contemplado tinha total liberdade na organização do espetáculo, desde a escolha da peça a ser apresentada e dos números da primeira parte (que podia ser reduzida se a peça fosse muito longa) até o valor dos ingressos, promoções e divulgação. Antenor disponibilizava o carro de som da companhia, material para pintura das tabuletas (como o repertório era muito variado, a companhia mantinha um pintor/letrista que refazia as tabuletas do circo freqüentemente) e o único desconto era referente aos direitos autorais, recolhidos a cada sessão e enviados à SBAT, que sempre intermediava as relações de Antenor com os autores dos textos por ele montados e de Antenor com os circos que montavam seus textos. A escolha dos espetáculos nos Festivais era, geralmente, em função do sucesso de bilheteria, repetindo o espetáculo que tivera maior público naquela cidade ou apresentando um trunfo como ...E o Céu Uniu Dois Corações ou Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entretanto, às vezes, a opção do artista era decorrência de sua participação na montagem: alguns escolhiam aquela em que tivessem maior destaque, outros escolhiam aquela da qual não participavam, liberando-se dos ensaios para poderem se concentrar na divulgação. Os artistas eram beneficiados a partir de um ano de contrato e a ordem dos festivais obedecia à ordem de entrada na companhia. Havia também o Festival oferecido aos funcionários que trabalhavam na armação do circo há mais de um ano, que eram cerca de quatro ou cinco (a maioria dos empregados braçais ficava no circo apenas enquanto este estivesse próximo às suas cidades) e que dividiam a renda da noite como se fossem uma família de artistas. Antenor procurava fazer de sua empresa um bom lugar para se trabalhar e se viver. Além das medidas já citadas, como cuidados com a infra-estrutura e envolvimento da equipe nas promoções artísticas, estimulava a integração entre os artistas e funcionários com passeios (pescarias, caçadas, idas à praia e cachoeiras) e festas. Por exemplo, quando nascia uma criança no circo, o bebê recebia uma faixa como de campeão de futebol, escrito O Caçula do Circo. A criança ficava com a faixa até outro nascimento, quando Antenor oferecia uma nova festa para se passar a faixa. Um aspecto peculiar da relação de Antenor com seus atores precisava de algum tempo para ser compreendido. Ao fim de uma apresentação, principalmente nas estréias, Antenor sempre falava com seus atores, cumprimentando-os, fazendo críticas e sugestões, mas se o ator tivesse trabalhado muitíssimo bem ele não falava nada. Às vezes apenas um dá licença a caminho de outro ator na coxia. Levou tempo para que entendessem que, enquanto Antenor se preocupava em estimular o elenco, preocupava-se também em não perder um ator para a vaidade, pois o ator que tivera um ótimo desempenho sempre se esforçava para manter a qualidade de seu trabalho até receber os merecidos cumprimentos de Antenor. Capítulo VI Baixando a Lona O Circo-Teatro Rosário teve uma carreira de sucesso constante, mas, em meados da década de 50, a situação para os circos no Brasil, de maneira geral, estava mudando. Algumas entrevistas e matérias de jornais apontam a popularização da televisão como grande culpada pela perda de público, não como concorrente direta como opção de entretenimento, mas por ter tirado os melhores atores das grandes companhias de circo-teatro, obrigando-as, muitas vezes, a interromperem suas temporadas para reensaiar espetáculos e – o que agravava a situação – com elencos despreparados. Some-se a isso o próprio desenvolvimento urbano das cidades, a construção de cinemas, teatros e, muito freqüentemente, cine-teatros, que passavam a atender um pouco melhor às companhias de teatro que outrora incorporavam-se aos circos para trabalhar. Na prática, o circo-teatro, como empreendimento, tornava-se cada vez menos lucrativo para aqueles que procuravam manter a qualidade artística e a variedade de sua produção. Quanto ao Circo-Teatro Rosário em particular, antes que o declínio se instaurasse, Antenor, que estava nos últimos anos afastado dos filhos, resolveu encerrar suas atividades, estabelecendo-se em Ribeirão Preto como autor e ator em programas de rádio. Antenor voltou para o Circo poucos anos depois, em sociedade com meu pai, Tabajara, em uma nova companhia, o Gran Rosário Circus. Capítulo VII No Gran Rosário Circus Ao mudar-se para Ribeirão Preto, Antenor levou seu irmão Arlindo para trabalhar com ele no rádio. Vô Arlindo saiu do circo com minha avó Graciana, também atriz, e seus filhos menores, mas os filhos mais velhos, Bira e Tabajara, continuaram trabalhando em circos como os acrobatas e equilibristas Irmãos Ubirataba. Bira e meu pai eram muito versáteis e podiam fazer cerca de dez números diferentes envolvendo equilíbrio, acrobacias e malabarismos. A maioria era de números solos, mas eles eram contratados juntos. Um divulgava o trabalho do outro e, quando iam juntos aos circos ou ao Café dos Artistas, usavam roupas iguais, muito elegantes com seus sapatos bicolores e ternos completos, para serem notados e identificados rapidamente (os artistas e empresários de circo reúnem-se, até hoje, às segundas-feiras, em um bar do centro de São Paulo; é onde sabem quem está disponível, quem está contratando ou simplesmente quem é que está pela cidade para matar a saudade dos amigos). Moraram em São Paulo por algum tempo, trabalhando por cachê, ou seja, apresentando-se sem compromisso fixo em circos, casas noturnas e programas de televisão, o que lhes permitiu uma experiência diferente da vida no circo. Mas por mais que a cidade de São Paulo oferecesse atrativos para dois jovens apaixonados por bailes e festas, os Irmãos Ubirataba não resistiram à proposta de um dono de circo, Sr. Pires, e voltaram a viajar pelo Brasil, começando por Cuiabá, cujas possibilidades de aventuras em meio à natureza eram mais fascinantes que as noitadas e o sucesso junto às rodas de estudantes de São Paulo. Durante esse período, em São Paulo e de volta às viagens, meu pai descobriu um certo talento para a publicidade e ganhou dinheiro e experiência criando o que ele chamava de cardápio do espetáculo, isto é, um programa impresso com as atrações dos espetáculos, que ele montava como uma revista da qual vendia espaços para a divulgação de empresas locais. Descobriu rapidamente que a venda de espaço publicitário era mais facilmente compreendida e aceita pelos empresários do que a idéia de patrocínio ou apoio cultural em troca da divulgação, mesmo que, na prática, fosse funcionar do mesmo modo. Em 1960, meu pai, seguindo o exemplo empreendedor de Antenor Pimenta, decide estruturar uma nova companhia e convida-o para ser seu sócio na empresa. Meu pai criou um projeto inovador, aliando sua experiência artística à sua nova faceta de publicitário e, depois de apresentar a proposta, em um projeto ilustrado por Bira, para várias empresas ligadas a produtos para crianças, como a Johan Fabber e fábricas de chocolates, teve seu projeto acolhido pela empresa Caracu, que patrocinou o material do novo circo e financiou as despesas de viagem em troca da divulgação da marca. Cada cinco tampinhas davam 50% de desconto no ingresso e ainda havia sorteios de brinquedos, doados pela fábrica Estrela. A inauguração foi feita em Ribeirão Preto, em 15 de janeiro de 1961, e teve cobertura jornalística até de São Paulo, pela Gazeta Esportiva, que mantinha uma página sobre circo, assinada por Tito Neto. A parceria fez muito sucesso e a empresa manteve o patrocínio, previsto para durar um ano, por quase três anos. Meu pai, além de trabalhar como artista, cuidava da administração e da estrutura física do circo, enquanto Antenor respondia pela direção artística e relações públicas da empresa. O novo circo foi construído nos moldes do circo de tiro (ou circo volante), introduzido no Brasil pela família Palácios no final da década de 50. O circo de tiro recebeu esse nome por ser muito mais fácil de montar, agilizando as viagens. O mesmo sistema usado até hoje, com estacas externas e retinidas (cordas) garantindo a sustentação da lona, erguida sobre mastros e mastaréus que não precisam ser fixados no chão. O novo sistema possibilitou aos circos fazerem temporadas em quaisquer cidades, por menores que fossem, pois se o público se esgotasse em três dias o circo já poderia estar mudando para a próxima praça sem prejuízo. Se antes as companhias priorizavam as grandes cidades, onde poderiam ficar ao menos um mês sem o trabalho da mudança, os circos de tiro podiam passar por todas as pequenas cidades situadas no trajeto entre as praças maiores, às vezes desarmando e montando sem interromper as apresentações por um dia sequer. Após o fim do acordo de patrocínio, Tabajara e Antenor mantiveram a empresa por mais de um ano, até que Antenor decidiu parar definitivamente de viajar em 1964. Todo o período de existência do Gran Rosário Circus foi marcado por situações inusitadas. Antenor e meu pai foram ousados em sua administração, viajando realmente por todo o país e por várias cidades fronteiriças nos países vizinhos. Sua frota de caminhões (na época já não se utilizava o transporte ferroviário e os circos tinham que ter transporte próprio) foi a primeira a percorrer o caminho de Cuiabá a Porto Velho, abrindo picadas com facão, dormindo ao relento nas carrocerias dos caminhões, desviando das tribos indígenas perigosas que sinalizavam seus limites com corpos de seringueiros, cravados de flechas e amarrados às árvores. A viagem era tão lenta e o caminho tão fechado, que as crianças brincavam pendurando-se em cipós e “voando” de um caminhão para outro, num verdadeiro passeio aéreo, enquanto os homens abriam caminho. Antenor escreveu várias poesias sobre as emoções de viagem tão surpreendente. Percorreram os rios da Amazônia, apresentando-se no convés de navios para a população dos pequenos vilarejos e montando o circo em vilas e cidades maiores, que nunca tinham visto um espetáculo de circo. O Gran Rosário Circus não fazia distinção de cidades, apresentava-se tanto nas capitais como nas menores cidades do interior. Para isso, Antenor reestruturava o espetáculo de acordo com o perfil do público, pois se nas grandes cidades a expectativa era pelo grande circo de variedades, no interior o grande sucesso ainda eram as comédias de picadeiro. Assim, como um retorno às origens, Antenor remontou inúmeras comédias para atender à expectativa de um público muito diferente do público das capitais, para quem os bons espetáculos eram aqueles dos circos de variedades que, recebidos como uma grande novidade, paradoxalmente restabeleciam a tradição original. As comédias de picadeiro sempre fizeram e ainda fazem sucesso no interior do país. Levando geralmente o nome do palhaço do circo, no Gran Rosário Circus as comédias eram, entre outras: Pimpim Assentou Praça, O Culto da Meia Noite, O Casamento do Pimpim, Pimpim Contra o Lampião. É muito divertido ouvir contar como era: Pimpim vestido de cangaceiro ou, como Dr. Redondo, de médico, dando consulta com aquele bloco enorme, com aquele lápis enorme, as receitas... Um médico palhaço!... e o povo ria! A Pensão da Dona Estela: Pimpim era o vigia e o hóspede reclamava que tinha percevejo na cama. Pimpim entrava com revólver, dava tiro, a cama pegava fogo. O hóspede contando vantagem e o Pimpim vinha com uma tartaruga, punha na cama, o cara gritava: Que é isso? - Não, é só uma pulguinha! Aqueles contrastes! O dia d’O Casamento do Palhaço tinha até desfile na rua. Alugavam 20 carroças, o palhaço na frente e o elenco soltando foguetes pela rua... e o povo ia... O Gran Rosário Circus procurava apresentar-se no maior número de cidades possível, por menores que fossem, pois quanto mais difícil o acesso, maior a garantia de que a população iria prestigiar seus espetáculos. Bastava que a cidade tivesse um terreno plano apropriado para a armação do circo, o que nem sempre era possível. Um fato muito curioso, que ilustra essa disposição para apresentar-se em qualquer cidade, deu-se em Areias, uma cidadezinha paraibana na Serra Grande, que tinha uma única avenida no alto de uma montanha e toda a cidade se espalhava montanha abaixo, de ambos os lados da avenida. O único terreno plano da cidade ficava no fim da avenida: o cemitério. Havia uma área em frente ao cemitério que era quase suficiente para a armação, mas os portões do cemitério teriam que permanecer abertos para dar espaço às estacas e retinidas da parte de traz do circo que invadiriam a área interna do cemitério. Foi o prefeito que sugeriu o local, animado pela presença do circo, querendo garantir a temporada. Porém, como Antenor contava anos depois: Vai que morre alguém? Morreu! E como entrava o enterro? O enterro, os acompanhantes, o caixão, todo mundo entrou com a maior seriedade pelo meio do circo. Atravessaram o picadeiro, desembocaram no cemitério onde enterraram o morto no maior respeito. Areias é a terra de Pedro Américo e Antenor escreveu três poemas sentado sobre o túmulo do pintor, numa das poucas vezes que, em seu hábito de escrever à noite, saiu do picadeiro para aproveitar o silêncio e a luz do luar. O Gran Rosário Circus fez muito sucesso em suas ousadas viagens pelo país, levando espetáculos de qualidade a recantos ignorados por outros empreendimentos artísticos e de diversão, mas também passou por momentos muito difíceis durante sua existência. Um dos mais significativos foi decorrência de uma tragédia em um circo em Niterói, que abalou o país e afastou a população que via nos circos um perigo em potencial. Criminosos puseram fogo no Circo Norte Americano, em 1961, numa matinê superlotada, para depois saquearem as vítimas em busca de jóias. Muitas pessoas morreram na catástrofe e a imprensa noticiou intensamente o ocorrido. Naquela época, quase todos os circos do Brasil pararam, porque as exigências para liberação de alvará tornaram-se impraticáveis. Algumas cidades pediam uma chuva artificial sobre a lona do circo, com mangueiras plásticas furadas e bombeamento de água; em outras, o Corpo de Bombeiros deveria estar disponível, dentro do circo, durante o espetáculo. O povo não ia mais ao circo. Circo era sinônimo de incêndio. Nessa época, o Rosário chegou a ficar 90 dias sem funcionar. Outro momento difícil foi o golpe militar de 1964, que criou um clima de tensão que afastou a população dos circos. Apesar desses problemas, a trajetória do Gran Rosário Circus era de sucesso. O circo contou com artistas de primeira linha e algumas atrações especiais. A maior curiosidade era a Orquestra de Crianças, dirigida por Waldemar Justino (meu avô paterno). Era composta pelos 11 filhos de Waldemar, que tinham entre quatro e 16 anos de idade quando a orquestra foi contratada. Os músicos eram de Jaboticabal e faziam tanto sucesso que meu pai os contratou para uma viagem que deveria durar apenas o período das férias de verão das crianças e acabou durando quatro anos. Vô Justino ensinara dois instrumentos musicais para cada filho, um erudito e um popular. Assim, o grupo mantinha um repertório bastante variado, além de números criados especialmente para o espetáculo, como um solo de trompete no centro do picadeiro enquanto os trapezistas faziam evoluções. Quando o Gran Rosário Circus encerrou suas atividades, a família Justino fixou-se em São Paulo, deixando no circo duas filhas, minha mãe, Jerônima, e minha tia Maria Tereza, que se casaram com os irmãos Tabajara e Ary, respectivamente. As jovens também prepararam números circenses e atuaram por muitos anos com seus maridos em vários circos do Brasil. Bem, Jerônima era conhecida na época como Gina e era famosa por seu número de pombos amestrados. Hoje é conhecida como Gê Pimenta e trabalha como musicista (acordeonista) em minha companhia de teatro. Quanto a Antenor, em 1964 deixou em definitivo o circo. A sociedade foi desfeita e meu pai comprou a parte de Antenor para que ele se estabelecesse definitivamente com a família em Ribeirão Preto. Dos muitos artistas e técnicos que trabalharam sob a direção de Antenor em seus dois circos, minha família se lembra dos nomes de: Irmãos Belton, Adalberto Garcia, Joel Dias, Agenor Silva, Agenor Silva Jr., Ester Silva, Demétrio Ribeiro, Pimpim, Gazola, Lourdes Leal, Raul Gonçalves, Mariazinha Gonçalves, Edyr Martinelli Gonçalves, Ozório Martinelli, Lysandro Brandão, Zilda Brandão, Polydoro, Canaguary, Oscar Bellando, Dalva Dias, Francisco Romano, Vitória Romano, Diva Luz, Tomás Altair Gomes da Silva, Aparecida Baxter, Jarbas Savalla Baxter, Reinaldo Martini, Rodolpho Zimermann, Horizontina Zimermann, Wilson Nery, Olindo Dias, Hermes Cunha, Maria Batista, João Vidal, Renê Berirk, Maria da Guia (Dona Nêga), Marlene da Guia, Machado, Bebeto Medeiros, Dejanira Souza, Fábio Tavares, Francisco Alves (Quim), Dândalo Márcio, Rodolpho Reisler Radjiosk, Adelino, Waldemar Justino e família, Arlindo da Silva Pimenta, Graciana Pimenta, Jacyra Pimenta, Ary Pimenta e Sônia Kimiecik; além dos depoentes, Ubirajara Pimenta, Tabajara Pimenta, Jerônima Justino Pimenta, Yara Rocha Ferraz, Cecília Beraldo Rosa, Alípio Gomes Miguel, Marly Pimenta (Vecchi) e Helton Pimenta. Foram vários motivos, provavelmente associados, que teriam levado Antenor a deixar o circo. O desestímulo com a nova situação do país depois do Golpe de 64 e o desgaste com interferências familiares, que achavam a sociedade desnecessária, podem ser parte dos motivos, mas segundo o próprio Antenor, o único motivo para afastá-lo da vida no circo e de seu grande parceiro Tabajara foi a saudade da família. Estava em um momento financeiramente propício para fixar-se junto aos filhos e acompanhar o crescimento de seus primeiros netos, ainda jovem o suficiente para novas tentativas de empreendimento. Passou por várias atividades montando negócios em sociedade com filhos ou genros e dedicou-se aos seus inventos, mas nunca deixou de escrever poemas sobre a saudade de seus tempos mais felizes. Por essas fotos pode-se comprovar o cuidado dedicado por Antenor a suas montagens. Os figurinos abaixo são da montagem Se Eu Fora Rei, e os da página ao lado são de Sansão e Dalila, na fase anterior à presença de Antenor no Cine Teatro Rosário Capítulo VIII Antenor Pimenta e o Público Antenor, em sua inquietação constante e marcante para quem o conheceu, sempre procurou meios para ampliar sua relação com o público, como empresário e artista, em todas as fases de sua carreira. Seu escritório era quase sempre um bar ou restaurante popular da cidade em que seu circo estava. Escolhia uma mesa perto da entrada e ali recebia autoridades, artistas locais e cidadãos comuns que o procuravam. Reunia as funções de administrador e relações públicas, sempre atento ao perfil do público local que, em conversas com ele ou observado a distância, fornecia-lhe dados para a seleção do repertório, estratégias de preços e divulgação, além de – inúmeras vezes – inspiração para seus poemas. Esse seu escritório, que lhe custava muito dinheiro, também era, de certa forma, uma divulgação em si. A possibilidade de contato com o artista mais aplaudido do espetáculo, o intérprete de personagens que chegavam a provocar desmaios nas moças mais afoitas (que eram beliscadas discretamente por Jacyra, para verificação da veracidade do ataque, quando levadas até ele nos bastidores), o acesso às histórias bem contadas de suas viagens e à declamação de seus poemas alimentavam o mito Antenor Pimenta. Mescla de ator, autor e ensaiador, Antenor era o grande responsável pela euforia de uma platéia que chegava a comprar, imediatamente após o término de uma apresentação, toda a lotação do circo para, na noite seguinte, voltar a vê-lo morrer de amor em ...E o Céu Uniu Dois Corações. Tinha o hábito de, à noite, após o encerramento da função, ir para o centro do picadeiro com uma cadeira e uma pequena mesa. Acendia uma única lâmpada para, em silêncio, escrever e lapidar seus poemas, como um exercício diário de organização de seus pensamentos, impressões do dia, das pessoas que conhecera, das emoções reveladas por seu público diante de sua obra e de suas próprias emoções. Sua preocupação com o público era perceptível em todos os aspectos de sua administração, desde o conforto das já citadas poltronas estofadas e reclináveis (projeto seu), passando pela alta qualidade e variedade de suas produções e pelas muitas formas de promoção que possibilitavam o acesso de todas as camadas sociais. E ia além: a companhia fazia apresentações beneficentes fora do circo. Em algumas cidades, havia uma parcela da alta sociedade que não freqüentava circos. Como Antenor travava laços de amizade com muitas pessoas em todas as cidades, sabia que essa elite queria ver seus espetáculos e, como eram as pessoas que poderiam pagar os melhores preços, Antenor organizava, em parceria com o prefeito local, uma apresentação de sua companhia no teatro da cidade, cobrava ingressos mais caros e revertia toda a renda para obras assistenciais. Outro exemplo de percepção do perfil do público foi, como já comentamos, a variedade de formatos dos espetáculos e promoções do Circo-Teatro Rosário e a flexibilidade dos espetáculos do Gran Rosário Circus, que eram modificados nas diferentes regiões, com o retorno às comédias de picadeiro em atenção à expectativa do público de cidades pouco ou nada habituadas ao novo padrão de espetáculos puramente circenses. E, finalmente, uma das formas mais inusitadas de aproximação com o público adotadas por Antenor foi a criação de uma rádio-pirata. Ele instalou o equipamento necessário na cabine de som do circo (na época do Circo-Teatro Rosário) e Quim, seu técnico de som, mantinha a rádio em operação ao longo do dia. Muitas cidades do interior não tinham estações de rádio próprias e o povo só recebia as transmissões da Rádio Nacional, em ondas curtas. O carro de som da companhia circulava divulgando a freqüência da rádio-pirata, que funcionava em ondas médias, e o sucesso era enorme. As pessoas iam ao circo para fazerem pedidos e oferecimento de músicas e mandarem recados. Ouviam atentos à programação da rádio e, é claro, às propagandas do circo nela inseridas. Na época, não houve nenhum incidente ou problema pela ilegalidade da operação da rádio, que, ao contrário, era muito bem recebida, até mesmo pelas autoridades dessas cidades distantes. Toda a generosidade de Antenor em relação ao público passava por seu crivo de empresário, sempre ciente da importância da satisfação do público para a continuidade do bom desempenho da empresa. Assim, levava a sério todos os cuidados necessários para a conservação do material do circo, escolha do repertório, divulgação, promoções e qualidade dos espetáculos. Em contrapartida, exigia do público o respeito devido a todo o empenho seu e de seu elenco e, em caso de desrespeito e má conduta de alguém em sua platéia, o espetáculo era interrompido e o foco de baderna iluminado pela luz de platéia ou canhão seguidor. Uma advertência era feita ao microfone por Antenor ou pelo mestre de pista (apresentador do espetáculo), avisando que o espetáculo só prosseguiria com a garantia do respeito aos artistas e ao restante do público, o que geralmente resolvia o problema e o espetáculo era retomado sob aplausos do público, em apoio à reprimenda. No entanto, houve situações extremas, em que o espetáculo teve mais de uma interrupção e, apesar da manifestação de encrenqueiros que afirmavam serem filhos de pessoas importantes da cidade, Antenor ameaçava suspender a temporada e cumpria a promessa caso o tumulto não fosse interrompido. Houve um caso em que a temporada foi suspensa logo após o espetáculo de estréia. Antenor era irredutível em suas decisões tomadas diante do público e, por mais problemático que fosse abandonar uma praça logo após o primeiro espetáculo (o que significava ter que resolver o que fazer com as semanas de hiato até a próxima praça agendada), Antenor começou a desmontar o material na mesma noite, afirmando que, assim, garantia a possibilidade de retorno àquela praça no ano seguinte com o merecido respeito do público (que se encarregaria de enfrentar e isolar os baderneiros, vetores de sua frustração). Capítulo IX Em Que Antenor Pimenta Fez Diferença O circo-teatro teve um papel fundamental na divulgação da arte teatral por todo o Brasil. Milhares de cidades e vilarejos eram visitados pelas companhias de circo-teatro e, para muitos deles, esse era o único contato com o fantasioso universo da representação. A ousadia de empresários e artistas circenses levou espetáculos de grande comunicabilidade a lugares que jamais receberam qualquer outro tipo de companhia teatral, para pessoas que nunca teriam outra oportunidade de viver experiências semelhantes, de sentirem as emoções fluírem indo do riso ao choro, despertadas por incríveis figuras que surpreendentemente eram de carne e osso. Mais do que o mérito de ir até o povo, o circo-teatro tinha o poder de atraí-lo. O conforto e a proteção da mágica lona eram a versão popular das grandes casas de espetáculos. Até hoje encontramos, mesmo nas grandes cidades, pessoas simples cuja única experiência teatral se deu em um circo-teatro. Pessoas que acreditam que o circo é um lugar a que têm realmente direito de acesso, onde não importa a roupa que vistam ou o que calcem, tudo se iguala na poeira de serragem. São vários os depoimentos gravados na memória ao longo de anos de viagens que fizemos com os circos pelos quais passamos, eu e minha família e, das menores às maiores cidades, encontramos pessoas que só têm idéia do que é teatro pelos relatos de seus pais e avós que iam ao circo. Em muitas conversas, ouvimos curiosas histórias sobre circo do ponto de vista do público, desde técnicas para varar a lona até vovós que se entreolhavam ruborizadas e cúmplices ao ouvirem o nome de Antenor Pimenta. O Circo-Teatro Rosário, na administração de Antenor, foi considerado um dos melhores circos-teatros do Brasil, tanto pelo público como por artistas daquela e de outras companhias. Vários eram os fatores que contribuíam para essa imagem em cada um dos campos considerados. Assim, no tocante aos artistas que trabalharam no Circo-Teatro Rosário, os pontos que distinguiam a companhia de Antenor de outras companhias iam do rigor nos ensaios e qualidade técnica dos espetáculos à qualidade de vida proporcionada pela empresa. O apoio dado por Antenor para a compreensão dos textos estudados, o desenvolvimento técnico e aprimoramento artístico dos atores, a integração entre a rotina de trabalho e a vida social na companhia, tudo isso fazia com que os artistas do Circo-Teatro Rosário se sentissem valorizados e respeitados. Mesmo com o fim da empresa, esse respeito se mantinha ao irem para outras companhias, nas quais os atores do Rosário eram considerados, além de bons atores em cena, ótimos atores nos ensaios: disciplinados, produtivos e – um dos aspectos mais valorizados – sabedores de vários textos de memória, o que não só agilizava o processo de ensaios, mas também significava a possibilidade de ampliação do repertório da nova companhia, com novas peças transcritas por eles. Além da valorização imediata dos artistas que trabalharam com Antenor, as outras companhias, contemporâneas ou posteriores ao Circo-Teatro Rosário, também o tinham como referência de qualidade e de sucesso, procurando reverter tal sucesso em seu próprio benefício. Levavam ...E o Céu Uniu Dois Corações como espetáculo garantido, pra tirar da praça, como dizem os circenses em relação a um espetáculo apresentado quando o circo está em uma temporada ruim e precisa conseguir fundos para a mudança de cidade. Quanto ao público, entre os fatores de sucesso do Rosário, além de todo o conforto do circo, da qualidade estética dos espetáculos, das inúmeras promoções e dos diversos tipos de espetáculos, dois pontos eram fundamentais: o repertório da companhia e a figura carismática e quase mítica de Antenor Pimenta. Esses dois aspectos estavam absolutamente entrelaçados, como tudo, aliás, no Circo-Teatro Rosário. A presença de Antenor era perceptível em todos os detalhes do Rosário e o público era tocado e marcado por ela. As peças levadas pelo Rosário, mesmo as tradicionais, levadas por outras companhias, tinham algo de especial que encantava o público inexplicavelmente e que só foi percebido pelos próprios artistas do Rosário muito tempo depois: Antenor personalizava seu repertório, não só por ser autor e adaptador para a companhia, mas também, o que consideramos elemento-chave na análise de sua trajetória, por interferir, alterar os textos de outros autores como um co-autor. Era muito comum, em todas as companhias, serem feitas adaptações nos textos como cortes e simplificações nos diálogos mais rebuscados, facilitando o entendimento dos atores e do público, mas Antenor trabalhava em outro sentido, muitas vezes até ampliando o texto trabalhado. Como poeta que era e homem de sensível relação com o público, Antenor aprofundava a construção de algumas personagens: escrevia poemas que inseria nas falas dos heróis e que levavam o público às lágrimas ou acrescentava apartes que inspiravam ódio em cenas dos cínicos. Momentos de amor ganhavam dimensão surpreendente e é claro que, como autor e galã, dizia seus versos com propriedade, tornando-se o ator mais adorado da companhia. Esse aspecto de sua obra só foi percebido por seus atores com o fim da companhia quando, trabalhando em outros circos, descobriam as diferenças entre os textos montados. Como conta Cecília Beraldo Rosa, irmã de minha avó Graciana: Em Canção de Bernardete, eu era a principal e ensaiava tanto que sabia tudo de cor, as partes de todo mundo. Quando acabou o Rosário, eu transcrevi inteirinho, palavra por palavra, um ato que foi o Antenor que escreveu. A peça tinha três atos, mas no Rosário tinha quatro e ficava muito melhor. Então eu tive que escrever o ato todo a mão quando mudei de circo. E eu sabia tudo do jeitinho que o Antenor escreveu, então ficou muito bom. (...) mas, sucesso mesmo, na época, era o Antenor. O povo só queria ele nos papéis. Nos outros circos o mocinho era diferente, tinha ator muito bom também, mas o Antenor falava umas coisas que deixavam as moças da praça apaixonadas, depois elas não saiam da cerca do circo. Antenor Pimenta, artista de nome como dizem todos que se referem a ele, foi o responsável pelo sucesso da companhia e foi seu nome que fez o sucesso de ...E o Céu Uniu Dois Corações. A peça era levada por provavelmente todas as companhias de circo-teatro, fazendo parte do repertório de muitas delas ou levadas eventualmente para atender a pedidos do público. E tinha sempre que ser anunciada como ...E o Céu Uniu Dois Corações – de Antenor Pimenta. É interessante observar que o texto é, até hoje, uma das poucas peças de circo-teatro cujo autor é lembrado, juntamente com O Ébrio, de Vicente Celestino (a peça, na realidade, é uma adaptação do romance homônimo de Gilda de Abreu, esposa de Celestino, que também escreveu o roteiro que fez tanto sucesso no cinema. Entretanto, na cópia da peça que circula entre os circenses, figura apenas o nome de Vicente Celestino). Antonio Santoro Júnior, que foi artista de outra companhia, o Circo-Teatro Pavilhão Arethuza, explica que as companhias de circo-teatro muitas vezes mudavam o nome das peças montadas, fosse em busca de um nome de maior impacto, fosse por enganos devidos à forma praticamente oral de transmissão dos textos ou mesmo para fugir à cobrança dos direitos pela SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), a exemplo de Maconha, ou O Veneno Verde, ou ainda, A Erva do Demônio. Entretanto, ...E o Céu Uniu Dois Corações (alterado para O Céu Uniu Dois Corações em sua transmissão oral) sempre foi levado não só com seu nome original, mas também com o nome de seu autor quase como um subtítulo. A maior alteração encontrada em referência ao texto é a inclusão da frase O Drama dos Enamorados, sendo anunciada então como: O Céu Uniu Dois Corações, de Antenor Pimenta - O Drama dos Enamorados. É muito significativo que ...E o Céu Uniu Dois Corações seja montado até hoje por grupos de teatro amador e de estudantes. E essa característica não é sintoma de modismo, o texto sempre foi difundido, oficial ou extra-oficialmente e em profusão surpreendente, se considerarmos que a cópia cedida pelo autor à SBAT alguns anos depois de sua estréia foi roubada, não havendo nenhuma outra forma de se conseguir o texto que não com alguém que já o tenha montado. ...E o Céu Uniu Dois Corações é até hoje escolhido para montagens amadoras não só pela simplicidade e comunicabilidade inerentes ao gênero, por sua qualidade dramatúrgica e possibilidades dramáticas, mas principalmente por ser uma obra referencial, ainda presente na memória de pais e avós de tantos quantos vivam nas pequenas cidades e periferias desse país. Se algum palhaço faz parte das lembranças de quem foi ao circo na infância e as pernas da trapezista invadiram os sonhos do adolescente, quem era jovem ou adulto nos tempos do circo-teatro já suspirou alguma vez por Alberto e sentiu a melancólica alegria de seu reencontro com Neli no alto de uma escada de nuvens. Antenor Pimenta, mais que o autor de um clássico do melodrama, deve ser considerado como artista. Um artista complexo, absolutamente autoral, que fundia vida e obra ao dedicar-se integralmente ao seu trabalho. Do convite para ingressar no circo até o fim de sua vida, Antenor expressou-se como artista. Os poemas da adolescência, escondidos timidamente de seus colegas do jornal, ganharam voz e frutificaram em centenas de outros, expostos em qualquer oportunidade, espontânea ou criada por Antenor, que os punha em cartas, declamava-os para os amigos, para estranhos, em festas, nos bares, em suas peças e, sempre que possível, os publicava em jornais e revistas. Sua visão artística estava impregnada por seu espírito empreendedor e é muito difícil considerá-los separadamente. Administrou seus circos empenhando-se na qualidade artística dos mesmos, buscando entender e aprofundar a relação com o público. Qualidade acessível, esta era a fórmula de seu sucesso. O dinheiro ganho revertido em qualidade, um movimento cíclico, um trabalho de ourives, burilando, acertando detalhes com minúcia e dedicação. Não havia separação entre o homem e o artista. Antenor considerava todos os momentos e situações importantes e significativos para seu trabalho, a começar por sua imagem como artista e empresário até a observação das pessoas, suas atitudes e seus conflitos, que procurava filtrar sob a perspectiva poética para reverter e absorver em suas criações. Orgulhoso e vaidoso, falava sem falsa modéstia sobre sua companhia e seu sucesso, que considerava muito mais fruto de trabalho intenso do que de talento. O pouco tempo com os filhos e netos foi marcado por sua poesia. Estar em família significava leitura e longas conversas sobre as histórias do circo (quando não ensaios extras na época do circo-teatro). Disciplina e ética transmitidas com doçura e alegria. Um homem vigoroso e estranhamente envolvido com engenhocas e projetos inusitados que seus netos pouco compreendiam. Em seus últimos anos foi, eventualmente, convidado para proferir palestras sobre circo-teatro, convites aos quais atendia graciosamente. Nas vezes em que tive oportunidade de ouvi-lo falar em público, pude observar com que maestria conduzia a audiência à emoção. Conseguia ensinar mais do que a história do circo, fazia-nos experimentar, vivenciar um pouco do que seu público sentia ao vê-lo atuar. Entremeando a palestra com casos engraçados, poemas e trechos de peças, Antenor conquistava-nos com seu talento. Esse talento não era só o que poderíamos chamar de dom artístico, era também um absoluto controle sobre a comunicação com o público. Encontrei um manuscrito de Antenor totalmente estruturado como um diálogo. Era a organização de uma palestra cuja abordagem dos tópicos foi feita como respostas a hipotéticas perguntas do público. Esse é um exemplo de como Antenor tinha a recepção em foco e de como tinha um domínio consciente de sua relação com o público. O público, interlocutor mais importante nas relações artísticas de Antenor Pimenta, maior beneficiado durante toda sua trajetória e de quem Antenor recebeu, sempre, calorosos e emocionados aplausos. Antenor Pimenta, artista popular no melhor dos sentidos, sempre acreditou que o povo merecia qualidade e respeito artísticos. Foi o mentor de muitos artistas que aprenderam a dar o melhor de si para o sempre Respeitável Público. Capítulo X Dramaturgia ou Para Entender o Texto Vou tratar agora especificamente do trabalho de Antenor como dramaturgo, isto é, como autor de peças teatrais. Para isso, vou analisar uma de suas peças preferidas: ...E o Céu Uniu Dois Corações, como forma de demonstrar seu método de trabalho e até sua forma de conceber um espetáculo, pois, como ele escrevia para sua companhia, seus textos já têm uma perspectiva de cena. Antes, porém, vou escrever um pouquinho sobre Melodrama, para que possamos situar ...E o Céu Uniu Dois Corações dentro desse gênero. Uma das características mais fortes do melodrama é a rigorosa oposição de vontades e interesses de dois grupos de personagens, definidos claramente em seu antagonismo como os bons e os maus e que agem firmemente dentro de suas premissas na busca por seus objetivos. Essa bipolaridade também se faz presente no encadeamento das ações e suas conseqüências, na sempre presente perseguição dos bons pelos maus, fazendo com que a trama se desenvolva em uma constante alternância entre momentos de euforia e tristeza, tranqüilidade e desespero, esperança e angústia, levando sempre à esperada punição dos maus, mas nem sempre à felicidade dos bons. Aliás, é dado comum, em toda a bibliografia consultada, que as tramas com desfecho infeliz eram as de maior sucesso entre o público no período áureo do melodrama, no século XIX, justamente porque não satisfaziam a expectativa de felicidade gerada durante o desenrolar da trama, instigando a reflexão e a discussão do público sobre os pontos que poderiam ter tido soluções diferentes, tornando a peça intensamente comentada. As matrizes temáticas do melodrama podem ser divididas em dois núcleos: a reparação da injustiça e a busca da realização amorosa, que podem estar entrelaçados, como no caso de ...E o Céu Uniu Dois Corações, em que estão, ambos, igualmente presentes e ligados em sua origem. No desenvolvimento desses temas, como recurso inerente ao melodrama e catalisador das fortes emoções, estão as revelações: não há melodrama sem surpresas. Seja por meio de cartas, seja pelo reconhecimento de objetos ou traços pessoais, as revelações são um recurso fundamental para o autor, que pode alterar o rumo da trama quantas vezes e de quantas maneiras lhe convier, em busca do maior impacto sobre a platéia. Desse modo, o autor joga com infinitas possibilidades para sua trama, na qual filhos desaparecidos, irmãos separados, testamentos secretos, testemunhas de crimes e cartas extraviadas são algumas das peças disponíveis para cada novo mosaico. No melodrama, o público está diante de uma longa sucessão de nós, desenlaces e pequenos clímax que se encadeiam até o clímax final, em um arremate geralmente espetacular, apoteótico. Outro aspecto importantíssimo é a diferença entre os antagonistas na condução da trama e construção dos personagens: geralmente os personagens maus são muito mais audaciosos e impetuosos, fazendo com que os bons assumam seu papel heróico por oposição. Toda ação é impelida pela perseguição, por alguma atitude cruel ou ardil que trará conseqüências que mobilizarão os outros personagens. De fato, o segredo para um bom melodrama está na consistência de seu vilão, cuja magnitude cruel e inescrupulosa sustenta o fio de iminente desgraça que nos faz torcer pelos heróis. É bastante freqüente que o vilão seja alguém próximo de um dos heróis, sendo seu parente ou tutor, ampliando a dimensão de suas maldades em contraste com a afeição que lhe é dedicada. Alguns recursos são muito empregados no melodrama na busca pelo maior impacto emocional sobre a platéia. O uso de punhal ou veneno na morte ou ameaça de morte dos heróis, cenas em prisões, calabouços e masmorras e a morte do ente querido justamente quando se alcança o sucesso na busca pela justiça e punição dos maus, são exemplos recorrentes em diversas obras, repetindo-se como códigos que balizam a recepção. Assim, a previsibilidade de muitas situações transforma-se em elemento catártico, dando ao público a sensação de um poder divinatório ou de perspicácia ao tomarem como descobertas, frutos de seu raciocínio investigativo, o reconhecimento de conflitos recorrentes, apenas recontextualizados entre novos personagens. Em contraste com as enormes dificuldades presentes na trama do melodrama, encontramos elementos de humor que trazem alívio cômico em vários momentos. Geralmente os autores incumbem personagens muito próximos do herói ou do vilão, como seus criados, parceiros ou amigos e confidentes, de criarem essas situações de humor. É bastante freqüente também que o humor se dê de maneiras diferentes, por um lado, em situações criadas pela esperteza de um parceiro do herói e, por outro, em situações criadas pela idiotice de um parceiro do vilão. Essas situações de humor podem decorrer tanto de confusões criadas por atitudes equivocadas ou atrapalhadas, quanto de jogos de linguagem que gerem mal-entendidos ou mesmo pela inconveniência de comentários desbragados, permitidos a personagens de classe inferior aos heróis. O alívio cômico é um elemento muito importante, que propicia à platéia o relaxamento necessário para suportar o desgaste causado pela tensão diante dos sofrimentos apresentados em cena; é um recurso delicado e que deve ser empregado com habilidade para não desequilibrar ou descaracterizar o espetáculo. Essa descaracterização é muito freqüente na última fase do circo-teatro, com alterações como a entrada de um palhaço travestido de noiva grávida em lugar de Neli, na apoteose de ...E o Céu Uniu Dois Corações, por exemplo. Entre as figuras típicas do melodrama encontramos, freqüentemente, e como em ...E o Céu Uniu Dois Corações, além do vilão como tutor do herói, donzelas órfãs e idosos fragilizados ou injustiçados pelas maldades do vilão. No circo-teatro, era empregada uma nomenclatura particular para os tipos ou personagens, sendo que a maioria dos atores atuava sempre em papéis semelhantes nas diversas montagens, especializando-se em tais tipos, classificados da maneira que se segue: - o personagem mau ou vilão: CÍNICO - o herói: GALÃ - a heroína: INGÊNUA - o cômico masculino: CÔMICO - o cômico feminino: CARICATA - o parceiro do CÍNICO: COMPARSA - a figuração: COMPARSARIA (com ou sem pequenas falas) Essa nomenclatura faz parte da tradição oral do circo-teatro, utilizada como referência na distribuição dos papéis, com exceção do termo “comparsaria”, no sentido de figuração, que aparece nas rubricas e nas indicações de falas nas pequenas participações, sem criar confusão, portanto, com os comparsas do cínico, tratados pelo nome no texto. Capítulo XI ...E o Céu Uniu Dois Corações Antenor afirmava ter escrito 14 peças, entre adaptações e textos originais. Porém, nos depoimentos e na documentação analisada, pudemos levantar apenas os títulos de nove peças: Sempre Em Meu Coração, De Amor Também Se Morre, Se Eu Fora Rei, Mensagem, ...E o Céu Uniu Dois Corações, Heróis de Monte Castelo, O Riso do Palhaço, Brasil, Campeão do Mundo ou Um Campeão de Futebol, Realidade. ...E o Céu Uniu Dois Corações, seu primeiro texto original, foi escrito em 1942 e tornou-se seu maior sucesso. O texto teve milhares de montagens em circos-teatros de todo o país e ainda é montado por grupos de teatro amador e de estudantes que se interessam por teatro popular. Antenor nunca cedeu seu texto para nenhum outro ensaiador. Todas as montagens de outras companhias foram feitas a partir de transcrições ou de cópias de um texto subtraído, segundo o autor, por um funcionário chamado Paulo Cerasa, que cedia o texto a outras companhias em troca de 50% da bilheteria da estréia. Encontrei duas versões do texto, além da original do autor. Uma, que era utilizada pelo Circo-Teatro Pavilhão Arethuza, doada por Antonio Santoro Júnior para a Sociedade Dramática Gastão Tojeiro; outra, cedida pelo dramaturgo Luís Alberto de Abreu, que costuma aplicar o texto como referência em cursos de dramaturgia. Existem várias diferenças entre as versões, conforme observaremos mais adiante. A versão original do texto, utilizada nesta análise, está disponível no final deste livro. Quanto ao texto, considerado um dramalhão (na acepção circense de drama longo), foi escrito em cinco atos, sendo que em todos os atos há mudança de cenário e no segundo, terceiro e quarto atos há, também, significativa passagem de tempo. Em todos os quatro primeiros atos, novos conflitos são apresentados e encadeados e seu desenvolvimento terá conseqüências no ato seguinte, até a conclusão final no quinto ato. Sintetizando os espaços, épocas e conflitos de cada ato são: Primeiro ato: passa-se no bar de Velasco, com Neli ainda criança. O industrial Perdinari é morto por De La Torre e Fernando é preso injustamente. Segundo ato: na casa de Neli, 11 anos depois. Apresentação da situação de Neli e Alberto que, apaixonados, teriam que enfrentar De La Torre para poderem se casar. Terceiro ato: casa de De La Torre, cinco meses depois. Torre calunia Neli, induzindo Alberto a comprometer-se a casar com Adélia, filha do rico Benevides. Quarto ato: cena na rua, em frente à igreja, alguns meses depois. Alberto volta de Portugal, Juca arma um plano para prender Torre e Francisco, esses temem ser desmascarados e Francisco apunhala Neli. Quinto ato: casa de Neli, no dia seguinte. Fernando é solto, D. Santa volta da cirurgia e Alberto chega para o confronto com Torre. Só agora sabem da morte de Neli. Torre é preso, Francisco atira em Alberto. Alberto e Neli encontram-se no céu. Antenor, que afirmava ter escrito ...E o Céu Uniu Dois Corações sem qualquer base teórica e com até então pouquíssimas referências de outras obras dramatúrgicas, construiu seu texto, ainda que intuitivamente, dentro do modelo da dramática rigorosa, conseguindo expor toda a trama, posições e atitudes de seus personagens através de diálogos. Não existe narrador nem qualquer solilóquio na peça, mesmo as falas longas ou descritivas, como o sonho de Neli, são falas dirigidas a outro personagem. Acredito que, com isso, ele buscava garantir a naturalidade de interpretação que imprimia em suas encenações. É importante observar que Antenor, usando a confidência como recurso narrativo, teve o cuidado de colocar em cena interlocutores que estavam ouvindo a narrativa pela primeira vez, o que tornou o diálogo mais rico em reações, já que o interlocutor encontrava-se na mesma posição da platéia quanto à ciência do fato narrado. Assim, desde o primeiro ato, Antenor utiliza diálogos para explicitação da trama, como na apresentação dos planos do vilão Torre a seu comparsa Francisco ou, da mesma maneira, quando Fernando esclarece a origem da situação em que se encontram, narrando-a a Torre e Francisco. O texto pretende surpreender a platéia com novas informações, como quando Perdinari revela a Torre que está com um documento que passa toda sua fortuna para o nome de seu filho Alberto, que receberá a herança quando se casar. Essa informação dá maior vulto ao ardil de Torre que, de posse desse documento, conseguirá muito mais do que o dinheiro que roubaria de Perdinari no golpe original, tornando-se tutor de Alberto. Da mesma maneira, a trama ganha em tensão dramática quando Perdinari declara a Torre que pretende recontratar Fernando, tornando o golpe de Torre muito mais cruel pela aniquilação das possibilidades que se abririam para Fernando e sua família se a sua recontratação se efetivasse. Antenor desvia a atenção do público com um conflito leve, como a confusão dos copos entre Velasco e Perdinari para, em seguida, surpreender com o tiro e, num choque ainda maior, completa o golpe com a impressão de Perdinari de que realmente foi Fernando quem atirou. O clímax melodramático do primeiro ato está na seqüência em que D. Santa acredita que Torre havia declarado sua culpa no crime em presença do inspetor, exaltando-se em defesa do filho e ficando mais frágil em seu desamparo, enquanto Torre solidifica sua vilania com requintada crueldade ao lidar cinicamente com a cegueira de D. Santa. Não podemos deixar de destacar também o forte efeito trágico da inocente declaração de Neli ao inspetor, incriminando o próprio pai na tentativa de salvá-lo. O segundo ato começa 11 anos depois do primeiro e essa passagem de tempo e a situação das personagens também são explicadas através de diálogos. São apresentadas as novas personagens, Marli, confidente de D. Santa e de Neli, e Juca, irmão de Marli, cômico que muito contribui para o desenvolvimento da ação. Antenor torna a situação de D. Santa e Neli mais penosa por meio da narração de Santa, pela qual se sabe que o povo da cidade também execrou Fernando e sua família. O povo também sofre as conseqüências da vilania de Torre, pois com a morte de Perdinari sua fábrica é fechada e os operários ficam na miséria. Não há só a opressão do poderoso contra o pobre, que se encerraria com o triunfo de Torre e a prisão de Fernando, há também a crueldade do próprio povo, atacando Neli e D. Santa quando essas tentam mendigar. Essa narrativa, além de fazer crescer a personagem de Santa, cria grande empatia e expectativa sobre a entrada de Neli adulta. Antenor prepara o clímax melodramático do último ato (quando Santa retira os curativos dos olhos para ver Neli morta) desde o segundo ato, quando Santa manifesta, mais de uma vez, seu desejo de ver sua neta, sendo que, na segunda vez, no mesmo ato, roga a Deus que lhe permita vê-la vestida de noiva, mesmo que por poucos instantes. Ainda sobre Santa, Antenor coloca em rubricas que ela é conduzida por Marli para seu quarto, optando pelo recurso dramático de fragilizá-la ainda mais por sua cegueira, quando poderia optar pela lógica de que ela saberia se locomover sozinha em sua própria casa. Com o mesmo recurso também fica justificado que Santa não surpreenda Neli e Alberto na sala, pois não sairia sozinha de seu quarto. Antenor simplifica cenas que poderiam ser problemáticas ganhando em agilidade de encenação. Por exemplo, no primeiro ato, Velasco diz que servirá o jantar quando seu empregado chegar, assim, pode desenvolver toda a ação sem se prender à coerência cênica e aos problemas práticos de se servir um jantar em cena. No caso citado no parágrafo anterior, basta que Santa não se movimente sozinha para que Neli e Alberto conversem a sós, sem a necessidade de incluir qualquer ação ou diálogo que justifique a não-interrupção da conversa. Antenor novamente prepara a tragédia final com o sonho de Neli, numa premonição que não é levada a sério, mas que se confirma no desvio de Alberto e na expectativa de felicidade eterna após a morte. Aliás, sobre o sonho de Neli, é muito interessante observar a grande diferença de perspectiva sobre Alberto que se dá pela troca de uma palavra nas diferentes versões do texto: no original, Alberto interrompe a narrativa de Neli dizendo que seu sonho é estranho, o que nos deu, na leitura, a sensação de tensão e interesse; nas outras duas versões encontradas, ele diz que seu sonho é esquisito, palavra que nos deu a sensação de displicência, desinteresse, tornando o personagem superficial. Assim, nas duas versões não originais a cena ficou parecendo incoerente, pois, após um comentário vazio, Alberto faz juras fervorosas de amor. Outro ponto marcante no texto é a velocidade com que as informações nos são dadas: todos os atos começam com diálogos que nos situam na ação e Torre nos apresenta seus planos rápida e objetivamente, o que deixa o público em expectativa quanto ao sucesso ou não de seus ardis. Chama a atenção o domínio de Torre sobre seus comparsas, que demonstram mais insegurança e covardia que ele, que é o mentor dos planos e a quem obedecem mesmo não acreditando ou não entendendo de todo o plano proposto. Os comparsas de Torre assumem nitidamente a função de seus confidentes, possibilitando ao cínico expor seus planos e, com isso, o texto constrói toda a tensão necessária para prender a atenção do público e garantir a empatia das personagens. Aliás, Torre é uma personagem mais forte que as outras, tanto no sentido do impacto causado sobre a platéia quanto no sentido da própria construção das personagens. Assim, Alberto, longe de ter o perfil do herói absoluto, é frágil e, no princípio, manipulável, ganhando a empatia do público muito mais por sofrer as conseqüências das ações de Torre do que por suas próprias ações, ou seja, nós temos em ...E o Céu Uniu Dois Corações um cínico (ou vilão) absoluto, transformando as outras personagens em vítimas ou heróis por oposição. Ainda quanto a Alberto, é importante observar suas mudanças ao longo da peça para entender melhor como Antenor constrói a heroicidade de suas personagens. Antenor apresenta Neli e Alberto já apaixonados no segundo ato e cientes de sua situação no que concerne à ligação de Fernando com a morte de Perdinari. O grande conflito não está, como se poderia esperar de um melodrama, na revelação de que Alberto ama a filha do suposto assassino de seu pai. Eles se amam apesar desse conflito e das dúvidas sobre a autoria do crime e estão dispostos a se casarem, independentemente da permissão ou não de Torre. Como um Romeu dizendo amar Rosalina, Alberto nos faz, numa primeira leitura, questionar seu amor por Neli ao acreditar tão instantaneamente na carta forjada por Torre, aceitando casar-se com Adélia. É necessário atentar para o padrão moral da época e do próprio texto para entender o horror cego de Alberto diante da idéia de que Neli já não era virgem, que já perdera sua inocência, situação tão grave quanto a própria culpa por supostamente enganá-lo com o jovem Francisco. A traição, talvez, pesando tanto ou menos que a torpeza de enganá-lo quanto à virgindade, enquanto mantinha relações sexuais com Francisco. Em ...E o Céu Uniu Dois Corações não há dúvidas para o público sobre a plenitude das virtudes de Neli, mas é justamente o questionamento dessas virtudes que leva Alberto a abandoná-la, abandonando também sua tentativa de restabelecer a justiça. Vale ressaltar que, em se tratando do melodrama, se já participamos de discussões sobre a aplicabilidade do termo maniqueísmo ao gênero, no qual encontramos entre os bons vários exemplos de personagens cuja virtude pode ser socialmente questionável, como prostitutas e adúlteros, neste texto, particularmente, Antenor Pimenta não abre qualquer possibilidade de questionamento. Suas personagens principais são integralmente virtuosas ou vis e é essa perspectiva maniqueísta que move Alberto em seu repúdio à suposta hipocrisia de Neli. Alberto reaparece no quarto ato, decidido a mudar quase toda a situação, retomando as promessas feitas a Neli de operar os olhos de sua avó e libertar seu pai. Seu retorno não está ligado a seu amor por Neli e, sim, ao seu senso de justiça. Fica claro que, dentro de sua ética, o perdão a Neli só viria com a prova de sua inocência. Seu amor não superaria as atitudes que ele acreditava serem de Neli. A certeza da inocência de Neli o faz assumir, finalmente, no quinto ato, seu papel de herói, trazendo livre Fernando, liderando o confronto com Torre e recusando ajuda quando ferido por Francisco, num abandono à própria vida em nome da esperança do reencontro com Neli. A trajetória de Alberto é de amadurecimento. Apresentado como uma personagem de sentimentos intensos e impulsiva, Alberto, mesmo apaixonado por Neli, sucumbe ao impacto de uma calúnia e aceita, por revolta, desesperança e gratidão a Torre, casar-se sem amor com Adélia (note-se que, no terceiro ato, Alberto parece galanteador, mas sua resposta seca a Adélia quando diz que apenas admirou, mas não gostou de sua declaração de amor, nos mostra que tem sido, até então, apenas gentil e educado). Reaparece firme e decidido após meses de estudo em Portugal, onde teve que viver sozinho e onde encontrou provas para incriminar Torre e o velho Francisco e libertar Fernando. Esse amadurecimento do personagem, proposto pelo autor, pode ser exemplificado pela busca de respaldo legal por Alberto quando entrega a confissão de Francisco às autoridades portuguesas para a tramitação oficial. Antenor poderia ter optado por outras atitudes para o personagem, como um arroubo vingativo, por exemplo. Esse amadurecimento da personagem é que torna crível sua posição heróica no último ato, como agente restaurador da justiça e não um agente de vingança. Em ...E o Céu Uniu Dois Corações é interessante observar que, quando as revelações são feitas para os personagens, já são conhecidas do público. Aqui Antenor faz uma opção pela onisciência do público, trabalhando com a intenção de criar as sensações de ansiedade pela felicidade e angústia com a previsão da catástrofe, trabalhando muito bem com a crueldade de situações em que personagens anseiam pela felicidade que o público já sabe impossível. D. Santa é a personagem que carrega maior carga dramática na peça. Sua cegueira, seqüela do acidente, está presente desde sua primeira entrada em cena e, desde o começo, sua figura vem indefesa, carregada de fragilidade por não poder acompanhar tudo o que se passa, dependendo da disponibilidade de outros para saber o que acontece. Diferente de Neli, cuja orfandade é substituída pela figura maternal da avó, ou seja, vemos D. Santa lidando com sua cegueira, mas não vemos Neli sem os pais em sua infância. No primeiro ato, Fernando está presente e, no segundo, já encontramos Neli adulta, cercada dos carinhos de Alberto e de D. Santa. Antenor, como já observamos anteriormente, nos mostra D. Santa muito frágil em sua dependência, não podendo sequer movimentar-se sozinha em sua própria casa. Essa idéia de fragilidade torna suas falas mais sofridas quando, por exemplo, acompanhamos sua narrativa sobre o período de mendicância em que ela e Neli eram execradas pela população da cidade. O quadro é desumano, se imaginarmos os passos e as vozes agressivas surgindo da escuridão. Ao mesmo tempo, longe de demonstrar desesperança e derrotismo, D. Santa, que suportou todas as agruras de continuar na cidade para não se afastar da prisão onde está seu filho, anseia pela felicidade de Neli e acredita na própria felicidade a partir da expectativa de que Alberto operará seus olhos e se casará com Neli. Tive oportunidade de assistir Jacyra, esposa de Antenor, representando o papel de D. Santa em montagem dirigida por Magno Bucci, em Ribeirão Preto, em 1987, e pudemos confirmar não só a opinião de familiares de que ela era uma grande atriz, mas também a força que a personagem de D. Santa pode ter no espetáculo. Seu anseio pela felicidade da família em contraste com as sucessivas desilusões, a força da emotividade de suas falas em contraste com a fragilidade de sua figura, tudo isso emociona o público e se constitui em um desafio para as atrizes que a representam. Antenor construiu uma personagem melodramática com uma delicadeza que dificulta que ela seja criticada em cena, como é comum acontecer com o melodrama atualmente, quando atores, com formação e experiência distanciadas do melodrama, têm dificuldade para jogar com a verdade cênica necessária ao estilo. A falta de intimidade com a linguagem, e mesmo seu desconhecimento, fazem com que, com freqüência, o melodrama seja encenado caricaturalmente, com apelativas construções estereotipadas que o tornam risível. Essa percepção da emotividade de D. Santa se confirmou também na reação do público, observada em uma leitura dramática do texto, realizada pela Sociedade Dramática Gastão Tojeiro no final de 2001, quando a platéia se emocionou até as lágrimas com a leitura de suas falas, mesmo no ambiente adverso em que a leitura ocorreu. Neli, por sua vez, aparece em cena ainda criança e, em suas poucas falas no primeiro ato, Antenor joga com a crueldade da situação, pois, em sua inocência, ao descrever a cena para o inspetor, acaba incriminando o próprio pai ao repetir as palavras de Perdinari que, sendo socorrido por Fernando, acreditou ter sido ele o autor do tiro que o atingira. Neli ressurge no segundo ato já com a simpatia do público, preparado pelo diálogo entre D. Santa e Marli, no qual Neli é descrita em sua força, bondade e beleza, mesmo tendo vivido uma infância de penúria. Antenor nos mostra então uma Neli bem humorada e simpática, afetuosa, mas prática, diferente da heroína sofredora que se poderia esperar depois das situações por ela vividas. Essa construção faz com que a empatia do público pela personagem se confirme. Aliás, Antenor engrandece D. Santa e Neli quando as apresenta com esperanças e otimismo, em vez de buscar a empatia pela compaixão nesse segundo ato. Perdinari é apresentado como a primeira vítima direta de Torre, sendo por ele assassinado. Por esse crime Fernando será preso injustamente, tornando-se a segunda vítima de Torre. Essa seqüência de vilanias de Torre vem para legitimar a posição de Neli e Alberto como heróis da trama. Fernando só reaparecerá em cena no final do último ato. Seu padecimento como preso injustiçado se faz presente através do sofrimento de Neli e D. Santa, mas o público não o acompanha, nem se compadece diretamente por seu martírio durante quase toda a peça. Importa muito mais o sofrimento vivido por Neli e D. Santa pela ausência de Fernando e pela incompreensão das pessoas da cidade. Fernando é apresentado com falhas que o humanizam e, ao mesmo tempo, não o tornam herói da trama, deixando espaço para os verdadeiros heróis, Neli e Alberto. Demonstra revolta contra Perdinari e humilhação por aceitar comida de Velasco. Fernando, embora vítima de um acidente no qual perdera sua esposa e que deixara sua mãe cega e em situação miserável em função da demissão, realmente agira contra as normas do trabalho, utilizando um veículo da empresa fora do expediente e para fins particulares, por mais nobres que fossem seus motivos. O desenvolvimento do primeiro ato mostra Perdinari, seu ex-patrão, muito mais íntegro, em sua bondade, do que Fernando, quando diz a Torre que recontratará Fernando como chefe de seção e que sua demissão foi apenas exemplar pela desobediência às normas da empresa. Cena em que, aliás, Antenor consegue ampliar o impacto do destino de Fernando, aumentando o contraste entre sua prisão e a vida que teria retomado com a readmissão na empresa de Perdinari, que o tiraria da posição de suspeito perfeito para os planos de Torre. Fernando reaparece no último ato e, novamente, suas atitudes são muito humanizadas ao descontrolar-se diante do corpo de Neli, expondo seu sofrimento em detrimento da necessidade de poupar D. Santa. Outros personagens que se apresentam bastante humanizados, no sentido da presença de conflitos internos, são os dois Franciscos que, como colocamos anteriormente, comportam-se como um mesmo personagem e demonstram insegurança, covardia e arrependimento, contrastando, em sua submissão, com a torpeza firme do inescrupuloso De La Torre. Torre, por sua vez, é construído vigorosamente em sua vilania e crueldade, mas Antenor coloca-o com a fraqueza de depender da submissão de seus parceiros, o que o torna mais torpe, pois está sempre na iminência de chantageá-los. E torna mais patética a cena em que, no quarto ato, Neli aponta-lhe a arma que ele mesmo lhe oferecera para que ela se suicidasse e Torre acovarda-se, sendo salvo por Francisco, que apunhala Neli. Torre, então, diante do pânico de Francisco, que quer fugir, retoma sua atitude de superioridade e frieza, convencendo-o a permanecer na cidade para não levantar suspeitas, como se já não tivesse exposto sua encoberta covardia. Um dos pontos que intensificam sua frieza está no fato de ter criado Alberto como filho e, mesmo depois de tantos anos de convivência, dispor da felicidade do rapaz para realizar seus planos, numa demonstração de que passara todos esses anos simulando um afeto familiar apenas para garantir seu acesso à fortuna que seria herdada por Alberto no dia de seu casamento. A relação entre Alberto e Torre nos remete a um aspecto do texto que é a colocação da hereditariedade como fator decisivo na formação da personalidade, apesar de não levantar uma discussão explícita sobre o tema. A obra é posterior aos períodos oficialmente considerados para o Melodrama e o Naturalismo, portanto passível de ter influências de ambas as vertentes; entretanto, concluímos que a hereditariedade entra intuitivamente na composição do texto, a partir do senso comum da “herança de sangue”. Essa percepção está ligada ao referencial melodramático das revelações de laços de sangue, os tradicionais reencontros entre pais, filhos ou irmãos nos melodramas, como recurso muito mais emocional do que de pretensão científica. Assim, Alberto, mesmo criado por Torre e, segundo manifesta no terceiro ato, ciente de suas trapaças, tornou-se um homem honesto, íntegro. Da mesma forma, mas em sentido oposto, o texto nos apresenta os dois comparsas de Torre, avô e neto, em épocas diferentes, ambos com o mesmo nome e com a mesma postura: submissão e covardia, seguindo as ordens de Torre, sempre o mentor de planos cruéis. No primeiro ato, Francisco, o avô, mais velho que Torre, manifesta a preocupação de que um dia seu neto venha a saber que ele era desonesto, deixando claro que não teria má influência sobre o garoto, escondendo sua vida de crimes. Portanto, não foi o meio ou a criação que fizeram de Francisco, o jovem, um criminoso. Na verdade, os dois Franciscos seriam o mesmo personagem, agindo da mesma forma e servindo aos mesmos fins, mas Antenor precisava de um jovem para compor a intriga da carta de Neli e, ao mesmo tempo, a presença do velho Francisco em Portugal permitiu que a ação continuasse se desenrolando no Brasil enquanto Alberto colhia provas da inocência de Fernando com o testemunho de Francisco, arrependido, em seu leito de morte. Torre, por sua vez, pretendia usar o amor de Francisco pelo neto como garantia de que o primeiro não confessasse seus crimes. 1. Humor Como em todo melodrama, além da presença dos confidentes e auxiliares de heróis e vilão, existe a forte presença do alívio cômico. No texto, Antenor não usa o recurso um tanto freqüente de colocar um personagem cômico ou parvo como assistente do vilão. O alívio cômico principal está em Juca, amigo da ingênua (ainda que não seu confidente), que é uma personagem muito importante, com personalidade e iniciativas próprias, esperto, apesar de ignorante, destacando-se que Juca mostrou-se mesmo mais engenhoso que o próprio Alberto: é ele quem idealiza a armadilha para prender Torre antes da chegada da prova final sobre o assassinato de Perdinari. É importante observar que ele utiliza o recurso do humor ao longo de quase toda a trama, mas no quinto e último ato, que se desenrola totalmente na presença do cadáver de Neli, não há nenhum momento de comicidade, a ponto de Juca, personagem importante no desenvolvimento da ação, mas responsável por muitas gags com sua gagueira, não proferir nenhuma palavra, mesmo estando presente e ativo. Outro responsável pelo alívio cômico na peça é Velasco, dono do bar onde se passa o primeiro ato. O autor utiliza Velasco, velho e surdo, para colocar os personagens em situações engraçadas em seus diálogos, fazendo com que o público seja surpreendido por uma ação forte quando Torre aproveita a distração de Perdinari com a confusão dos copos e sua queixa sobre a água trazida por Velasco para, bruscamente, após um breve chamado para Francisco (e para o público), atirar em Perdinari pelas costas. Benevides e Adélia, os portugueses do terceiro ato, estão em longas cenas de mal-entendidos verbais, numa brincadeira sobre as diferenças da língua portuguesa no Brasil e em Portugal. Antenor coloca as duas personagens como fortes presenças no terceiro ato. Sua importância na trama está em inspirarem um novo golpe de Torre que pretende casar Alberto com Adélia para obter um grande empréstimo de Benevides. A cena já nos apresenta Adélia interessada em Alberto e Torre articulando o golpe. Benevides e Adélia permeiam todo o terceiro ato com seus mal-entendidos, colocando Benevides em tal estado de perturbação que ele chega a julgar-se insano e declara que passará toda a sua fortuna para as mãos da filha e do futuro genro, novamente aumentando o alcance do golpe pretendido por Torre, como ocorreu com a declaração de Perdinari, no primeiro ato. A confusão criada por Adélia e Benevides também funciona como justificativa para que Benevides, já em desespero, depois de inúmeras tentativas de comunicar-se com os convidados e os criados, tentando descobrir se estava mesmo insano, entregue as cartas a Juca, tentando ajudá-lo, pois Juca é o primeiro a responder-lhe que ele não está louco. E é muito interessante que esta cena, uma cena de humor, prepare a solução para o drama. O fato de Benevides, um homem rico, não conseguir ler as cartas para entregar a carta certa a Juca justifica-se, além da própria piada em que Benevides diz que não sabe ler “brasileiro”, pela explicação em uma fala de Torre que diz, referindo-se a Benevides, esse português bronco, possui uma fortuna imensa e uma ignorância ainda maior, de onde se pode concluir que a riqueza de Benevides não dependeu de sua formação cultural. De qualquer maneira, era necessário que as duas cartas caíssem nas mãos de Juca para que a trama se desenvolvesse e é, no mínimo, interessante que Antenor tenha empregado Benevides nessa cena e não um criado ou mesmo Juca sozinho sem conseguir identificar a carta que deveria levar. O argumento de que Antenor coloca Benevides armando a confusão das cartas a partir da idéia preconceituosa das piadas de português é contrabalançado pela presença inteligente e articulada de Adélia, também portuguesa, indicando que, como escritor de teatro popular, o autor sabia obter humor de várias facetas do texto, não apenas da opção mais óbvia oferecida por uma personagem. Assim, Benevides e Adélia vêm com várias funções dramáticas e dramatúrgicas: separar Alberto de Neli, levá-lo para Portugal, onde encontraria o primeiro Francisco, enriquecer Torre com o empréstimo e proporcionar cenas cômicas a partir de vários aspectos, como o conflito de gerações, diferenças entre expressões idiomáticas, o desejo desesperado de ambos pelo casamento de Adélia, a ignorância de Benevides, além do recurso do humor pela repetição insistente da mesma pergunta que, segundo depoimentos, muitas vezes era feita pela platéia junto com a personagem: Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo? 2. O Autor em Processo O texto utilizado nessa análise possui muitas anotações e alterações feitas por Antenor. Algumas alterações são simplesmente para o corte de excessos e redundâncias ou para garantir fluência (far-me-á por ele me fará, p.ex.). Outras têm funções mais complexas e também foram feitas, muito provavelmente, durante o processo de ensaios para a montagem da peça. Neste exemplo do primeiro ato, temos um tipo de alteração feita para imprimir maior clareza e verossimilhança à trama. O diálogo foi escrito originalmente, assim: TORRE Mas o que não sabes é que ele amanhã embarca para o Rio a fim de internar o filho num colégio e realizar vultoso negócio de compra. Para isso levará consigo grande quantia. FRANCISCO Bem. TORRE Ora, como o Banco aqui onde ele tem todo o seu dinheiro depositado não tem filial no Rio, ele teria que retirar a quantia necessária para fazer o negócio. FRANCISCO Ah... percebo... Mas como soubeste disso? TORRE Eu não vivo dormindo. E tanto assim, que hoje, desde cedo, segui-lhe os passos. Agora à tarde ele retirou do Banco vultosa quantia e logo depois telefonou ao gerente da fábrica que só aparecerá lá pelas seis horas; que primeiro iria receber o aluguel de suas casas. E foi alterado da seguinte maneira: TORRE Mas o que não sabes é que ele amanhã embarca para o Rio a fim de internar o filho num colégio e realizar vultoso negócio de compra. (Corte da última frase) FRANCISCO Bem. TORRE Ora, como o Banco aqui onde ele tem todo o seu dinheiro depositado não tem agência (opção mais correta em substituição à palavra filial) no Rio, ele teria hoje que retirar a quantia necessária para fazer o negócio e também o dinheiro para fazer os pagamentos da fábrica. (Acréscimo desta última frase) FRANCISCO Ah... percebo... Mas como soubeste disso? TORRE Eu não vivo dormindo. E tanto assim, que hoje, desde cedo, segui-lhe os passos. Agora à tarde ele retirou do Banco vultosa quantia e em seguida foi receber o aluguel de uma a uma de suas casas. (Final da fala alterado, tornando as informações mais objetivas) Dessa forma, o diálogo passa a fornecer objetivamente as informações que tornam possível e verossímil o golpe planejado por Torre, explicitando com mais clareza por que Perdinari chegaria com tanto dinheiro. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Antenor fez as seguintes alterações neste exemplo do segundo ato: ALBERTO Não fiques triste, Neli. Hoje mesmo vou falar com as autoridades. Hei de trabalhar até conseguir o perdão para teu pai. NELI (grande alegria) Alberto! ALBERTO Hei de fazer-te feliz, se Deus quiser. Restituirei teu pai e dar-te-ei a minha mão de esposo! O diálogo sofreu as seguintes alterações, que também resultam em maior clareza e verossimilhança do diálogo: ALBERTO Não fiques triste, Neli. Hoje mesmo vou falar com as autoridades. Hei de trabalhar até conseguir o indulto (substituindo a palavra perdão) para teu pai. NELI (grande alegria) Alberto! ALBERTO Ele já cumpriu mais da metade da pena. (Frase acrescida) Hei de fazer-te feliz, se Deus quiser. Restituirei teu pai e dar-te-ei a minha mão de esposo! Em outro tipo de anotação, pode-se observar o trabalho de escolha cuidadosa das palavras, procurando o melhor sentido em seu emprego, como no exemplo abaixo, escrito originalmente assim: TORRE Se as coisas não correrem como eu espero, nós vamos assaltá-lo esta noite em sua casa. Mas se forem como eu espero, dentro em pouco estaremos com o cobre do italiano. Sofreu uma primeira alteração : TORRE Se as coisas não correrem como eu desejo, nós vamos assaltá-lo esta noite em sua casa. Mas se forem como eu espero, dentro em pouco estaremos com o cobre do italiano. E, em alteração final, ficou assim: TORRE Se as coisas não correrem como eu espero, nós vamos assaltá-lo esta noite em sua casa. Mas se forem como eu desejo, dentro em pouco estaremos com o cobre do italiano. Note-se a preocupação em empregar as palavras para demonstrar da melhor maneira possível as motivações do personagem, imprimindo maior dramaticidade à sua declaração. Em algumas alterações, podemos observar a preocupação com excessos melodramáticos das falas de D. Santa. Antenor faz cortes que imprimem maior agilidade ao desenrolar da trama. Nesse primeiro exemplo, do primeiro ato, o original era: SANTA Nem sequer com palavras podemos agradecer-lhe, pois é um infeliz como eu. A mim, falta-me a luz dos olhos e não posso ver os que mais amo neste mundo: a ti, meu filho, e à minha querida Neli. A ele, falta-lhe a audição e não pode ouvir. Com o corte a fala ficou assim: SANTA Nem sequer com palavras podemos agradecer-lhe, pois é um infeliz como eu. A mim, falta-me a luz dos olhos e não posso ver, a ele falta-lhe a audição e não pode ouvir. (Cortando toda a frase intermediária os que mais amo neste mundo: a ti, meu filho, e à minha querida Neli.) Da mesma maneira, no exemplo que se segue, do segundo ato. Escrito originalmente assim: SANTA E quantas vezes ficamos sem comer! A mim já não fazia falta a comida... Habituei-me... Mas a minha pobre netinha, pedia-me um pedacinho de pão, e... eu não tinha... Nesses dias então, minha filha, o nosso único alimento eram as lágrimas que, brotando dos olhos, escorriam em borbotões pela face, para pousarem sobre os lábios ressequidos pela fome. (chora) Com o corte, ficou assim: SANTA E quantas vezes ficamos sem comer! A mim já não fazia falta a comida... Habituei-me... Mas a minha pobre netinha, pedia-me um pedacinho de pão, e... eu não tinha... Nesses dias então, minha filha, o nosso único alimento eram as lágrimas. (Corte de toda a frase final que, brotando dos olhos, escorriam em borbotões pela face, para pousarem sobre os lábios ressequidos pela fome, cortando também a rubrica que indicava seu choro). Em outros momentos do texto, Antenor reforça, com novas falas, o que seria apenas mostrado cenicamente, como no exemplo que se segue, em que uma nova fala de Torre é introduzida durante o manuseio das balas do revólver, não deixando dúvidas sobre seu plano, no primeiro ato: TORRE Veja. (tira dois revólveres, retirando de um uma bala. Guardando-os em seguida) Com a alteração, ficou assim: TORRE Veja. (tira dois revólveres) (substitui a continuação da rubrica pelas frases que se seguem) Este está com uma bala deflagrada. E não precisarei mais do que uma. (guarda-os) Com o mesmo efeito, mas em sentido oposto à alteração anterior, novas rubricas reforçam a clareza do desenvolvimento da ação, como neste exemplo do primeiro ato, originalmente assim: PERDINARI (italiano que se esforça para falar em português) Boas tardes, senhores. (...) PERDINARI (os três riem com o que acaba de dizer Perdinari) Hoje de tarde fui ao cartório para fazer o documento. Aqui dentro deste envelope lacrado, estão os papéis que declaram meu filho Alberto dono de tudo quanto eu tenho, no dia do seu casamento. Com as alterações ficou assim: PERDINARI (italiano que se esforça para falar em português, está com uma pasta) (introdução de rubrica que indica o porte da pasta) Boas tardes, senhores. (...) PERDINARI (os três riem com o que acaba de dizer Perdinari) Agora mesmo fui ao cartório para fazer o documento. (Abre a pasta para retirá-lo. Aparece muito dinheiro) (introdução desta nova rubrica sobre a exposição do dinheiro) Aqui dentro deste envelope lacrado, estão os papéis que declaram meu filho Alberto dono de tudo quanto eu tenho, no dia do seu casamento. Antenor intensifica o jogo com a platéia por meio de algumas alterações, como neste exemplo, do primeiro ato, em que aumenta a credibilidade de Torre junto ao inspetor, cortando a rubrica e a fala que demonstravam seu cinismo, quando toda a platéia sabe que Torre é o verdadeiro culpado. Com a alteração, Torre manifesta apenas sua falsa indignação com a situação. Como foi escrito originalmente: TORRE Como?!... (com um sorriso cínico) Não se iluda!... (sério) Não consinto que diga semelhante cousa! Pois eu, Manuel De La Torre, homem de dignidade conhecida em toda a cidade, nunca poderei acobertar um crime do qual sou testemunha de vista. Como ficou: TORRE Como?!... (Corte da demonstração de seu cinismo) Não consinto que diga semelhante cousa! Pois eu, Manuel De La Torre, homem de dignidade conhecida em toda a cidade, nunca poderei acobertar um crime do qual sou testemunha de vista. Antenor também retrabalhou o texto para conseguir maior naturalidade no uso das pausas dramáticas dos diálogos, como neste exemplo do terceiro ato, que foi escrito, originalmente, assim: TORRE Com teu avô precisa que seja assim. Mas... ela poderá ser interceptada e estaremos perdidos. Não devo mandá-la. (põe sobre a mesa) Como ficou: TORRE Com teu avô é preciso que seja assim. Mas... Tem razão. Esta carta poderá ser interceptada e ... Não, não devo mandá-la. (põe sobre a mesa) (Acréscimo de falas e corte de estaremos perdidos, imprimindo à fala um ritmo muito mais natural e espontâneo). Durante a leitura do texto, pode-se observar outro tipo de alteração, ocorrida diretamente no texto datilografado e não como uma sugestão de revisão. Trata-se da grafia das falas de Juca. No segundo ato, quando Juca é introduzido, não há indicação de sua gagueira em rubrica. As falas são escritas exatamente como devem ser pronunciadas. No ato seguinte, Antenor indica em rubrica “sempre gaguejando” e escreve as falas de maneira fluente, deixando livre para o ator a escolha pela maneira de gaguejar. Ele volta a escrever falas com pronúncia dirigida apenas nas situações em que essas falas têm um efeito desejado específico, como quando Neli questiona Juca sobre as cartas e ele responde Já dei... dei... e, só depois de já ter assustado Neli, dei... xei em casa. Essa mudança simplificou o trabalho de datilografia do texto, como pudemos observar ao digitá-lo. É provável que, por ser seu primeiro texto, Antenor tenha demorado para atinar para a facilidade da rubrica na construção das falas de Juca, mas também devemos considerar a possibilidade de que, como escrevia já com a perspectiva de ensaiador, tenha optado por dar, inicialmente, subsídios ao ator que fosse interpretá-lo, para que seguisse um determinado padrão de fala nos atos seguintes. Em um último destaque quanto ao trabalho de Antenor sobre seu texto, ainda que não se trate de uma alteração, chamamos a atenção para o vocabulário popular empregado pelo autor, como no exemplo que se segue, do segundo ato: NELI Ele é estudante de medicina. Está se especializando em doenças de olhos e dentro de poucos meses receberá diploma. Ao optar por não empregar o termo oftalmologista, ele demonstra cuidado com a recepção, conhecedor que era do perfil extremamente popular de seu público, além da coerência na construção das falas dos diálogos entre Neli e D. Santa, nos quais Neli estaria tomando os mesmos cuidados que o autor em relação à recepção. 3. Do Papel para o Palco ou quando a Cena Resolve A objetivação da ação é traço inerente à forma melodramática, que depende dos acasos providenciais e das soluções milagrosas, traço que ainda é encontrado se observarmos as simplificações de roteiro das atuais telenovelas importadas, nas quais um simples exame médico de rotina determina uma doença fatal que levaria a heroína à morte em poucos meses. São obras escritas para um público de gosto popular, para quem o importante é o desenrolar dos conflitos e as emoções provocadas, não há cobrança de explicações que poderiam fundamentar melhor os fatos, mas que não mudam o destino da trama e que acabariam por interferir no ritmo dos acontecimentos, que devem ser surpreendentes a cada obra do acaso. A leitura do texto revela alguns pontos que seriam problemáticos e que não percebi nas montagens a que assisti, provavelmente porque a dinâmica de encenação desviasse o foco para outros pontos. No primeiro ato, há um exemplo que, acredito, pode ser resolvido através da interpretação dos atores: D. Santa diz que quer ir para um asilo e entregar Neli a uma família para que Fernando possa trabalhar, mas quando Torre oferece emprego a Fernando, este comemora o fato de não ter mais que se afastar de sua mãe e sua filha. A leitura apresenta a situação como uma grande incoerência, pois se Fernando não pode trabalhar porque tem que cuidar de sua família, como o emprego oferecido por Torre será a solução para não se afastar de sua mãe e filha? Acredito que essa incoerência possa ser aproveitada para humanizar as personagens, apresentando-as perdidas e desesperançadas diante da miséria em que se encontram, enxergando apenas soluções pessimistas e, diante da nova perspectiva de trabalho, seus ânimos mudam completamente, vendo na proposta de Torre a solução para seus problemas. De qualquer forma, o texto está construído dessa maneira e não há nenhuma rubrica que indique que a incoerência seja intencional. Outro exemplo de inconsistência está no terceiro ato: Torre adultera a carta de Neli transformando 2 em 12 dias sem ver Francisco, nome que também é acrescentado na adulteração; entretanto, ao entregarem a carta a Alberto, Francisco diz que suas relações com Neli foram anteriores ao envolvimento dela com Alberto, o que se deu há, no mínimo, cinco meses. A ação segue após o episódio sem que a confusão de datas seja questionada. Na mesma linha, no quarto ato, Santa e Alberto despedem-se com até amanhã e depois dizem que não combinaram o encontro para a cirurgia, que acaba sendo naquele mesmo dia. Em outros pontos, encontrei exemplos que, ainda que possam soar como inconsistências são, na verdade, aí sim, traços pertinentes ao gênero. Antenor trabalha com uma praticidade muito comum em tramas populares, dispensando arremates e explicações para questões que atrasariam o desenvolvimento da ação. Ainda no quarto ato, por exemplo, não se questiona se o empréstimo que Benevides fez a Torre foi cobrado, já que Alberto desistiu de casar-se com Adélia ainda na viagem de ida a Portugal; o assunto é ignorado. Não há explicações sobre o vínculo de Alberto com o hospital no qual operará D. Santa. Alberto simplesmente pede a Juca que a leve no mesmo dia para ser operada, sem explicar como tem acesso ao hospital, podendo operar assim que chega de viagem. Da mesma maneira, é importante que Juca tenha consigo as cartas que inocentam Neli e Fernando para entregá-las imediatamente a Alberto, mesmo que isso signifique a improvável situação de Juca mantendo-as nos bolsos, sempre que sai de casa, há vários meses. Pode-se observar a noção prática de Antenor na construção das cenas nas quais diálogos aparentemente insuficientes para expor uma situação são sustentados pela ação cênica. Por exemplo: Torre e Francisco esquecem as cartas na sala por causa da movimentação de festa na casa, assim, a ação cênica dá veracidade a uma situação que seria improvável apenas baseada nos diálogos. Assim, a ação em ...E o Céu Uniu Dois Corações se precipita rapidamente, o que me faz considerar Antenor um autor com grande perspectiva de cena. O espetáculo não deixa brechas para o questionamento da veracidade dos fatos, brechas essas possíveis na leitura do texto. A trama desenvolve-se em um ritmo que encadeia novas expectativas, fazendo com que o público mantenha o foco no que realmente interessa, como os desenlaces dos conflitos e o destino final das personagens. Antenor faz bom uso do que chamamos de ironia trágica, ou seja, a manifestação de desejos, planos e fantasias que serão cruelmente negados ou contrariados no decorrer da trama. Essa ironia trágica está presente em falas como as de D. Santa referindo-se ao seu desejo de ver Neli vestida de noiva, citadas anteriormente, bem como as de Neli quando, no final do segundo ato, em lágrimas de alegria, diz: como serei feliz! O próprio título da peça funciona como uma sombra trágica que paira sobre a peça, plantando uma certa angústia, como um mau pressentimento, no coração da platéia. Outros elementos característicos do melodrama estão claramente presentes na peça. O cínico e a ingênua foram concebidos com construções muito contrastantes – Torre, em sua maldade, não tem dúvidas nem remorsos que interfiram na elaboração de seus planos, assim como Neli, em sua bondade, nunca se desvia de seu comportamento virtuoso. Esse contraste é explorado pelo autor no uso dos confidentes: Torre anuncia seus planos para a platéia por meio dos diálogos com seus parceiros, assim como Neli fala de seus sonhos e desejos com sua avó e Marli. Dessa maneira, Antenor torna a platéia onisciente e intensifica a expectativa pelo desenlace da trama. Os heróis, ligados por um passado trágico que deveria afastá-los, têm em comum a orfandade. A morte ou ausência dos pais do herói é tão freqüente no melodrama como a fragilização do idoso, muito bem representada na construção de D. Santa. A prisão do inocente Fernando e a impotência de Neli diante de calúnias são problemas graves e determinantes para o desenvolvimento da trama e que são solucionados melodramaticamente por meio de cartas reveladoras. Como uma cereja no sorvete do melodrama, se não bastassem as cartas, a viagem do herói para um país distante, o amor impossível na Terra e a morte da heroína por um punhal, Antenor anuncia o destino do cínico - Para punir-te, espera-te a cela fria de um calabouço! - na última cena, usando uma das palavras mais fortes da tradição melodramática, que vem carregada como uma maldição, contrastando com a palavra “prisão”, usada para tratar da situação de Fernando. O impacto causado na platéia deve ser ampliado com a imagem do vilão em um calabouço, mesmo que, na prática, ele fosse para a mesma prisão de onde saía Fernando. 4. Principais Diferenças entre as Versões do Texto As diferenças mais significativas entre o texto original e as duas outras versões encontradas indicam uma tendência para a priorização dos elementos cômicos nas montagens de outras companhias, não só por meio de cortes em diálogos densos como também pela inclusão de cenas cômicas que não existem no original. As diferenças foram apresentadas aos entrevistados, que afirmaram que Antenor seguia seu texto original na montagem do Circo-Teatro Rosário e que outras companhias, seja pela dificuldade em conseguir um bom desempenho dramático de seu elenco, seja por concessão ao gosto do público de algumas cidades, alteravam o delicado equilíbrio do alívio cômico na peça. Assim, apenas no original há as falas do diálogo entre Torre e Francisco, no primeiro ato, que indicam que eles já faziam trapaças juntos, nas quais Francisco diz que é mais velho que Torre e que deseja mudar de vida para que seu neto, também Francisco, não saiba que ele é um ladrão. Na versão original, existe um brinde ao noivado de Alberto e Adélia como fechamento do terceiro ato. Nesta cena, Alberto se mostra desgostoso e apenas conformado com a situação, declarando para si próprio: para mim, morreu a felicidade. Nas outras versões, a cena não existe e o terceiro ato termina em uma cena anterior, com uma tirada cômica de Adélia. Não existe no original uma cena de humor na qual Juca, ao sair com D. Santa para o hospital, pergunta-lhe se ela pode identificar o hospital pela placa e, como ela não pode, Juca brinca dizendo que ela, além de cega, é analfabeta. No original, as últimas falas de Juca antes de sair são densas, referindo-se ao tapa que levou de Neli injustamente. No original, quando Juca entrega o cheque de Torre a D. Santa, diz que o dinheiro pagará um pouco do sofrimento que elas viveram. Nas outras versões, diz todo o sofrimento, deixando a cena bem mais superficial, pois coloca um valor concreto a tantos anos de sofrimento. Não há no original uma fala de Adélia referindo-se a Alberto como brasileiro da coroa (que existe nas versões difundidas), mas há uma fala de Benevides que indica que Adélia teria dito isso. Provavelmente a fala não foi datilografada, mas foi imaginada por Antenor, que considerou que ela estivesse escrita e, páginas depois, colocou uma fala de Benevides na qual se faz referência àquela. A correção deve ter sido feita nos ensaios, pois, particularmente com relação a esta cena, os entrevistados não se recordam da incongruência. Afora essas diferenças, claramente perceptíveis, há muitas outras em praticamente todo o texto. São mudanças que vão desde o excessivo uso de reticências nos finais de frases a alterações no vocabulário e ordem das sentenças nos diálogos, o que pode indicar a transmissão oral do texto, até o deslocamento de rubricas, que indicam uma direção de cena diferente da proposta por Antenor no original. Essa diferença na condução do espetáculo leva, geralmente, ao exagero melodramático, como, por exemplo, as indicações de choro, colocadas logo no início das falas mais dramáticas das personagens. No original, quando existem, são colocadas como arremate do desenvolvimento emocional crescente da cena, claramente com a intenção manter o espectador atento a todas as palavras do texto, envolvendo-o sem o esvaziamento emocional imediato e o desgaste provocados pela falsa catarse das outras versões. 5. Do Autor sobre o Texto Antenor declarava, em seus últimos anos, que não montaria mais ...E o Céu Uniu Dois Corações se ainda tivesse uma companhia de teatro. Para ele, o texto pertencia a uma outra época e o público dos anos 80 e 90 não o prestigiaria, a não ser como um objeto curioso, um espetáculo pitoresco visto com olhares condescendentes que lhe causariam desgosto. Para Antenor, o lugar de ...E o Céu Uniu Dois Corações estava na televisão, nas telenovelas que prendem a atenção das pessoas com os elementos melodramáticos que esse mesmo público considera ultrapassados para o teatro. Seu texto nunca foi cogitado para uma adaptação televisiva, mas Antenor foi procurado por uma empresa cinematográfica e esteve em negociações dos direitos autorais de ...E o Céu Uniu Dois Corações para sua adaptação para o cinema. O acordo foi desfeito por Antenor, que não concordou com a inclusão de cenas de sexo entre Neli e Alberto no roteiro apresentado pela produção do filme, afirmando que essa alteração demonstrava a ignorância da produção em relação aos fundamentos do gênero e, particularmente, aos fundamentos do próprio texto, que tem as virtudes e a pureza de Neli como premissas para o desfecho celestial, que dá razão ao título da peça. Antenor brincava: ...e com que cara ela ia olhar pra São Pedro, vestidinha de branco, quando chegasse no céu? E agora, para que vocês possam conhecer melhor o trabalho de Antenor, este livro traz o texto integral de ...E o Céu Uniu Dois Corações. Boa leitura! ...E o Céu Uniu Dois Corações Drama em 5 Atos Antenor Pimenta 1942 Personagens Alberto Neli Perdinari Santa Fernando Torre Francisco Juca Velasco Benevides Adélia Marli Inspetor Criado Guardas Primeiro Ato Bar. Balcão a E. sup. Prateleira com garrafas, etc. A E. da porta, uma pequena mesa com rádio. A E. e D. mesas com cadeiras ao redor. Ao abrir a cortina, está atrás do balcão Velasco, dono do bar. Muito surdo. Entra em seguida Torre e Francisco Pereira, que vão sentar-se junto à mesa da D. FRANCISCO (entrando) Afinal, por que me telefonaste que viesse imediatamente para aqui? TORRE Já vais saber. (sentam-se, Velasco vai até eles) Sirva-nos alguma coisa. VELASCO (pondo a mão em concha no ouvido) Hein? TORRE (alto) Dê-nos qualquer coisa para beber! VELASCO (mais alto ainda) Hein? (Torre faz um sinal com o indicador e o polegar, que quer um cálice com qualquer coisa para beber) Ah!... Sim!... (sobe ao balcão) TORRE (a Francisco) Creio que hoje vamos ter um belo serviço. FRANCISCO Se não for igual ao último. TORRE Não, este dará resultado. (Velasco trouxe as bebidas. Alto, a Velasco) Este whisky não é falsificado? VELASCO Hein? TORRE (mais alto) Este whisky não é falsificado? VELASCO Ah!... Sou sim senhor. TORRE (admirado) Hein?!... VELASCO Hein!?... TORRE (a Francisco, irritado) Não há nada pior do que conversar com uma pessoa surda. (une a palavra ao gesto, indicando o ouvido) VELASCO (a Francisco, apontando Torre) Ele é surdo!... Ah, bom! (volta ao balcão) TORRE Como eu ia dizendo... FRANCISCO Fale baixo. TORRE O homem é surdo. FRANCISCO Bem, mas eu não sou. E pode entrar alguém e ouvir e então estaremos em maus lençóes. TORRE Não haverá perigo. Ninguém terá a ousadia de nos acusar. E depois, as autoridades não acreditarão que nós, Manoel De La Torre e Francisco Pereira, dois cidadãos de bem, conceituados, sejamos ladrões. FRANCISCO De La Torre, vou falar-te com franqueza. Tu ainda és moço, cheio de vigor, mas eu já estou perdendo a minha coragem. Depois, bem sabes, minha única filha morreu, deixando-me um menino que, por sinal, tem o mesmo nome meu, Francisco. Preciso agora mudar de vida. Tenho medo de cair nas mãos da polícia e de o meu neto vir a saber mais tarde que eu, seu avô, fui um ladrão. TORRE Ora... ora... Desde quando adquiristes estes honestos sentimentos? Deixa de bobagens. Olha, meu caro, eu tenho uma idéia, e tenho certeza de que ela vai receber a tua aprovação. FRANCISCO Qual é? TORRE Antes de tudo, devo dizer-lhe que será um servicinho no qual não arriscaremos cousa nenhuma. FRANCISCO Onde? TORRE Aqui mesmo. FRANCISCO Aqui?! Como? TORRE Ouça. Bem sabes que amanhã será o pagamento do pessoal da fábrica do italiano José Perdinari. FRANCISCO Sim, sei. TORRE Mas o que não sabes é que ele amanhã embarca para o Rio a fim de internar o filho num colégio e realizar vultoso negócio de compra. FRANCISCO Bem. TORRE Ora, como o Banco aqui, onde ele tem todo o seu dinheiro depositado, não tem agência no Rio, ele teria hoje que retirar a quantia necessária para fazer o negócio e para fazer os pagamentos da fábrica. FRANCISCO Ah... percebo... mas como soubeste disso? TORRE Eu não vivo dormindo. E tanto assim, que hoje, desde cedo, segui-lhes os passos. Agora à tarde, ele retirou do banco vultosa quantia e, em seguida, foi receber o aluguel de uma a uma de suas casas. FRANCISCO E daí? TORRE Aí então foi que telefonei que viesses aqui para encontrarmos o nosso homem. Pois esta casa também é sua e ele virá receber o aluguel. FRANCISCO Bem, mas ele poderá deixar o dinheiro em casa para depois vir. TORRE Ora, bem sabes que aquele desconfia da própria sombra. O seu dinheiro só fica no Banco ou no bolso. Pois ele nem siquer confia que um empregado receba o aluguel de suas casas, com medo que fuja com os cobres. E o pagamento de seus operários, ele mesmo é quem faz. FRANCISCO Mas teremos que assaltá-lo logo aqui? E disseste que era um servicinho sem perigo. TORRE Se as coisas não correrem como eu espero, nós vamos assaltá-lo esta noite em sua casa. Mas se forem como eu desejo, dentro em pouco estaremos com o cobre do italiano. FRANCISCO Explica-me logo o que temos a fazer. TORRE Não conheces o chofer da fábrica do Sr. Perdinari, que há pouco tempo atirou o automóvel contra um poste, ocasionando aquele terrível desastre? FRANCISCO Como não? Chama-se Fernando. TORRE Esse mesmo. Ora, como sabes, nesse desastre Fernando perdeu a mulher, sua mãe ficou cega, só escapando ilesos ele e a sua filhinha. Devido a este acidente, foi despedido da fábrica, ficando desempregado e está agora na maior miséria. Por isso, odeia de morte ao ex-patrão. Toda a cidade sabe disso. De maneira que, se amanhã o italiano aparecer assassinado e roubado, ninguém duvidará que foi o seu ex-empregado. E além de tudo, vamos instigar os dois a fim de que discutam; dessa discussão surgirá um crime, não achas? FRANCISCO Às vezes não. TORRE Estando eu perto, forçosamente o italiano morrerá. E na confusão, nós limparemos o cadáver. FRANCISCO E depois? TORRE Acusaremos Fernando como assassino. FRANCISCO Mas onde fazer os dois se encontrarem? TORRE Aqui mesmo. Fernando também virá aqui hoje. Não tardará. Virá com a mãe e a filhinha. Todos os dias vêem almoçar e jantar aqui. O homem do bar, o surdo, segundo eu soube, ficou com pena devido à miséria por que estão passando e lhes tem fornecido comida gratuitamente. O essencial é que Fernando venha antes do italiano, para termos tempo de baratiná-lo. (entram Fernando, D. Santa e Neli (menina). FERNANDO Boa tarde. D. SANTA (quasi a um tempo) Boa tarde. TORRE Aí está o nosso homem. VELASCO (que esteve distraído) Olá, Fernando! Então sentem-se. (leva D. Santa para a mesa da E. Sentam-se) Daqui a pouco o empregado deverá chegar e mandarei servir-lhes o jantar. (Fernando agradece com um aceno de cabeça) SANTA Que nobre coração! FERNANDO Se não fosse a generosidade desse homem, talvez passássemos fome. Nunca poderemos pagar tamanha caridade. SANTA Nem siquer com palavras podemos agradecer-lhe, pois é um infeliz como eu. A mim, falta-me a luz dos olhos e não posso ver. A ele, falta-lhe a audição e não pode ouvir. FERNANDO Parece incrível! Um homem são, forte, ter que implorar a um surdo, por caridade, um prato de comida para matar a fome de minha mãe e de minha filhinha! Tudo por causa daquele maldito homem! SANTA É preciso compreender, meu filho, que ele tinha as suas razões. Cassada a tua carta de chofer, serias para ele um empregado inútil. FERNANDO Mas não devia deixar-me desamparado, sabendo que eu tinha mãe e filha para sustentar. Fui sempre um empregado cumpridor dos meus deveres. (noutro tom) Não posso compreender por que ele fez isso. Parecia um bom homem. SANTA Depois da tempestade, por certo virá a bonança. FERNANDO E enquanto esperamos essa bonança, temos que implorar um prato de comida, se não quisermos morrer de fome. SANTA Escuta, meu filho. Por que não fazes como eu já te falei? Bem sei que será para nós muito cruel essa resolução, mas infelizmente é a única. FERNANDO Mamãe, peço que não fale mais nisso. NELI O que é, hein vovó? FERNANDO A fim de que eu possa trabalhar, tua avó, Neli, quer que eu a interne num asilo de cegos e te entregue a alguma família bondosa para cuidar de ti. NELI Não, vovó! Eu ficar longe de minha avozinha e de meu pai? Não. Então a senhora não gosta mais de nós? SANTA Se gosto? Adoro-os! NELI Então? SANTA Mas, minha filha, assim, cuidando de nós, seu pai não poderá trabalhar. TORRE (a Francisco) Vamos agir. (a Fernando) Senhor Fernando! Faça um favor. Faça o obséquio de sentar-se. (Fernando senta-se junto a eles) Creio que me conhece. FERNANDO Sim, Sr. De La Torre. TORRE Eu e meu amigo, Francisco Pereira, ouvimos o que conversavam e creia que ficamos profundamente penalizados. Parece incrível o que fez o seu ex-patrão. Despedi-lo de sua fábrica, assim... FRANCISCO Mas ele tinha motivos para fazer isso? FERNANDO Vou contar-lhe o que se passou. Como sabem, eu era chofer do Sr. Perdinari. Era um domingo. Eu estava em casa, conversando alegremente com minha esposa e minha mãe, quando, de repente, vimos Neli, minha filhinha, caminhando em nossa direção, cambaleando, com as duas mãozinhas na garganta, respirando com grande dificuldade. Estava sufocada. Parecia que sua garganta queria fechar-se. Ficamos como loucos. Precisava levá-la imediatamente a um médico. Eu morava perto da fábrica e como tinha comigo a chave da garage, corri e trouxe um carro para levar minha filha. Fomos todos. Corri a toda velocidade à casa do Dr. Gouveia. Ele ministrou à menina uma injeção e ela logo melhorou. Voltávamos então satisfeitos porque Neli estava fora de perigo. Conversávamos a respeito quando, de repente, o auto bateu num poste. Foi um choque tremendo. O poste caiu sobre nós, no lado onde estava minha infeliz esposa, que perdeu a vida instantaneamente. Minha mãe, com o abalo, perdeu as duas vistas. Eu e minha filhinha escapamos milagrosamente. Foi aberto inquérito pelas autoridades policiais. E então foi cassada a minha carta de chofer e fui condenado a pagar à Empresa de Luz os estragos causados pelo desastre. Recorri ao meu patrão. Mas como eu havia ocupado o auto sem sua ordem e sem ser a serviço da fábrica, ele recusou-se a auxiliar-me. O pouco dinheiro que eu tinha economizado, gastei-o com os funerais de minha pobre mulher. Meu patrão, não se importando com a desgraça que já me pesava, despediu-me da fábrica. FRANCISCO Não resta dúvida, foi um ato desleal de um patrão para com um bom operário. Esse homem não deveria ficar impune. FERNANDO Ainda não pude arranjar um emprego. Desde rapazote sou chofer. Não aprendi outra coisa. Agora, cassaram-me a carta, de maneira que se me tornou difícil uma colocação. TORRE Meu amigo, a sua narração cortou-me o coração. FERNANDO (consigo, revoltado) Mas esta situação não pode continuar. Não é possível! Um homem como eu mendigar! TORRE Tem razão. Eu vou dar-lhe um emprego, com um ordenado bastante para viver comodamente. (Velasco sai) FERNANDO (numa explosão de alegria) Oh! Senhor, agradecer-lhe-ei imensamente. Creia que serei seu escravo. Graças, meu Deus! Encontrei finalmente um coração generoso que vem desafogar a minha situação. TORRE Bem, então começará amanhã. Sabe onde moro? FERNANDO Sim, senhor. TORRE Procure-me então às 11 horas. Creia, vai gostar do serviço. FERNANDO Pois bem. Amanhã estarei lá às 11 horas em ponto! (corre à mãe numa alegria indizível) Mamãe! Ouviu, mamãe? O senhor De La Torre arranjou-me um emprego! (beija-a) A senhora não precisa ir para o asilo, mamãe. (beijando-a e abraçando Neli) Minha filhinha não precisa ir para casa de estranhos! SANTA Vê, meu filho, eu não disse que depois da tempestade viria a bonança? FERNANDO É verdade, mamãe. FRANCISCO (A Torre) O que vais fazer agora? TORRE Veja. (tira dois revólveres) Este está com uma bala deflagrada. E não precisarei mais do que uma. (guarda-os) FRANCISCO Para que isso? TORRE Verás. SANTA Deus nunca esquece os que Dele se lembram, meu filho. TORRE Fernando! (Fernando vai a ele) Daqui eu vou com meu amigo a uma reunião. Tenho comigo um revólver e como não quero ir armado, peço-lhe que o guarde e o leve amanhã à minha casa. FERNANDO Pois não, senhor. (guarda o revólver) Agradeço-lhe a confiança. (entra Perdinari) PERDINARI (italiano que se esforça para falar em português, está com uma pasta) Boas tardes, senhores. TORRE E FRANCISCO Boa tarde. TORRE Aí está o italiano. PERDINARI O Sr. De La Torre e o Sr. Francisco por aqui?! TORRE Passamos por acaso e entramos para tomar qualquer coisa. Está servido? PERDINARI Obrigado. Eu não bebo. Mas, onde está essa gente do bar? FRANCISCO O surdo está lá dentro. PERDINARI Eh!... Vamos mal... Se o empregado não está, o seu Velasco vai dar muito trabalho para compreender que eu vim buscar o dinheiro do aluguel da casa. TORRE Por que, Sr. Perdinari? PERDINARI O homem é mais surdo do que uma porta! Dão licença. Eu vou sentar aqui porque estou com as pernas moídas. TORRE Andou muito? PERDINARI Muito! Tenho que deixar tudo arrumado, porque amanhã embarco para o Rio. TORRE Perdoe a minha indiscrição, mas que vai fazer ao Rio? PERDINARI Vou levar meu filho para um colégio. Podia estudar aqui. Mas lá tenho um amigo que tem uma porção de filhos. Lá ele terá companheiros. Aqui... coitadinho... Se tivesse mãe viva ou se tivesse irmão, vá lá... TORRE Tem razão. PERDINARI Sim!... Ele precisa estudar porque tudo o que eu tenho já passei para o seu nome. Ele precisa saber dirigir os negócios. FRANCISCO Então passou toda a sua fortuna para o filho? PERDINARI Sim, passei. Mas com uma condição. Ele só poderá tomar posse de tudo, no dia em que casar. TORRE Por que essa condição? PERDINARI Sim, porque uma fortuna dessa na mão de um solteiro é um perigo. Esbanja tudo. Não tem responsabilidade. (fala baixo) SANTA (a Fernando) Quem está aí? FERNANDO O Sr. Perdinari. SANTA (apreensiva) Então vamos sair daqui, Fernando. FERNANDO Não, mamãe. PERDINARI (os três riem com o que acabara de dizer) Agora mesmo fui ao cartório para fazer o documento. (abre a pasta para retirá-lo, aparece muito dinheiro) Aqui dentro deste envelope lacrado estão os papéis que declaram meu filho Alberto dono de tudo quanto tenho no dia do seu casamento. TORRE Dizem que o senhor vai realizar no Rio importante negócio, é verdade? PERDINARI Sim! Vou gastar uns dez milhões de cruzeiros em máquinas modernas para a fábrica. TORRE (intrigante, a meia voz) Pena é que muitas vezes um industrial gasta uma fortuna em uma máquina, para entregá-la a operários sem a mínima noção de responsabilidade. PERDINARI É verdade. TORRE (indicando Fernando ) Haja visto esse que está, Fernando. PERDINARI Quem? Fernando? Não, não!... Esse não!... (confidencial) Se todos os operários fossem cumpridores dos seus deveres como o Fernando, nós, industriais, estaríamos bem servidos. FRANCISCO E TORRE Como?! PERDINARI Sim!... Bom homem está ali. TORRE E por que o senhor o despediu? PERDINARI Porque desrespeitou os regulamentos da fábrica. Tirou o automóvel da garagem sem ordem. Não podia ficar sem punição. Mas já estou satisfeito, foi boa lição. E sabem que eu estou satisfeito por encontrá-lo aqui? Vou convidá-lo a voltar para a fábrica. Estava mesmo à sua procura. TORRE Mas como? Ele perdeu a carta de chofer! PERDINARI Ele não será mais chofer. Será agora chefe de uma das seções da fábrica. E tenho certeza que estarei bem servido. TORRE (venenoso) Dizem por aí que ele jurou matá-lo. PERDINARI Quem? O Fernando? Aquele ali não mata nem mosca com Detefon. E depois da lição que teve, estou certo que nunca mais cometerá falta alguma. (Entra Velasco.) VELASCO Oh! Sr. Perdinari!... Boa tarde. PERDINARI Boa tarde. Senhor Velasco... Bem, primeiro dá um copo d’água. VELASCO (com a mão em concha, junto ao ouvido) Hein? PERDINARI Ai, ai, ai!... (grita-lhe ao ouvido) Um copo d’água!... VELASCO Ah!... O dinheiro? Já está prontinho. (sai) PERDINARI Bonito!... (a Torre) Se eu pedisse o dinheiro era capaz de trazer água. Bem, foi melhor assim. (Velasco traz o dinheiro, que Perdinari vai contando enquanto fala) Vejam que cara farabuto! Eu o conheço desde que vim para o Brasil. Era pequeno assim. Jogávamos biroca juntos. Lembra? (voltando-se para Torre) Ele não lembra, é surdo. (riem os três, acaba de contar) Eh! Faltam cem cruzeiros! VELASCO (pondo a mão em concha) Hein? PERDINARI Ai, ai, ai, ai, ai!... (grita) Faltam cem cruzeiros! VELASCO Ah! Sim! (sai) PERDINARI Per la Madonna! Toda vez que venho aqui e o empregado não está, é assim. Me deixa quasi louco! (entra Velasco, trazendo água) Eh!... não estou falando?... (apanha o copo, põe sobre a mesa e, quasi desesperado) Faltam cem cruzeiros! (pausa) Cem fiorins!! (pausa) Cem massones!!! (corta. Rápido para Torre) Que é que eu vou falar mais? TORRE Fala-lhe por sinais. PERDINARI (abrindo as duas mãos) Faltam cem cruzeiros! Não foi isso que eu pedi. Faltam cem cruzeiros. VELASCO Ah! Dez copos d’água? (vai a sair e Perdinari segura-o) PERDINARI Não! (explica a frase mais com gestos do que com palavras) Aqui faltam cem cruzeiros! VELASCO Ah, faltam cem cruzeiros? Eu vou buscar. Por que não falou antes? (sai) PERDINARI (colérico ainda) Má varda, varda que bruta bestia! (imitando-o) Por que não falou antes? Vá, vá que estou quasi rouco de tanto gritar! (noutro tom) Puxa, que agora estou com mais sede ainda. (apanhando o copo) Estão servidos? (bebe um gole) mas que água ruim!... Oh, seu Velasco! (vai ao balcão) Que água suja é essa?! TORRE (a Francisco) Alerta. (saca o revólver e atira em Perdinari) FERNANDO (correndo para De La Torre, num gesto instintivo de defesa, pondo-se à sua frente para impedir outros tiros) Que é isso? (D. Santa ergue-se, assustada. Neli está agarrada à avó, escondendo o rosto de medo) PERDINARI (sentindo o ferimento, volta-se como a querer saber quem é o seu agressor e depara com Fernando) Fernando, não me devias ter matado... (cai morto) SANTA (quase que num grito de horror) Hein?! FERNANDO (a Torre) Por que o matou? TORRE Esta arma é dele próprio. Estava examinando-a e disparou por acaso. (corre a Perdinari) Mas ele não está morto! (a Fernando) Vá correndo chamar um médico! (Fernando sai correndo. Francisco está afobado, junto à porta do F.) VELASCO (entrando com uma nota na mão) Que é isso? (examina Perdinari rapidamente) Morto? Vou chamar a polícia! (sai. Santa senta-se. Neli continua agarrada a ela, escondendo o rosto) FRANCISCO (enquanto Torre rouba o que traz Perdinari) Depressa, antes que entre alguém! TORRE Leva tudo isso. Leva o revólver também. E este documento vai ficar comigo. (Francisco põe tudo nos bolsos) Serei tutor do menino e toda a sua fortuna cairá em nossas mãos. (Francisco sai) SANTA Neli, onde está seu pai? NELI (depois de verificar) Não está aqui, vovó, acho que saiu. (entram Inspetor, guarda, Velasco e em seguida curiosos) INSPETOR O que foi? TORRE Esse homem acaba de ser assassinado. INSPETOR Quem o assassinou? TORRE Fernando Siqueira. SANTA (levanta rápida) É mentira! INSPETOR (ao guarda) Põe essa gente para fora. GUARDA (obedecendo, à comparsaria) Vão para fora. Não entra ninguém aqui. (a Velasco, que sai sob protestos) Você também, vai para fora. INSPETOR (A Torre) Então foi Fernando Siqueira? TORRE Eu sou testemunha de vista, Senhor Inspetor. SANTA Não creia, Senhor Inspetor! Eu ouvi quando esse homem disse que a arma disparou na sua própria mão! TORRE Essa mulher mente para defender o filho. Mas todos sabem que Fernando queria matar o Sr. Perdinari. SANTA (chorando) É mentira! É mentira! TORRE É inútil querer negar. Seu filho matou o Sr. Perdinari. E a prova é que fugiu. (guarda sai, a toda pressa) SANTA (FORTE) Mentira, meu filho não matou ninguém! INSPETOR (reparando em D. Santa) Esta senhora é cega? SANTA Sim, senhor. INSPETOR Escute, minha filha... (Neli chega-se a ele) Conte-me o que você viu. NELI Nós estávamos sentados. A vovó, eu e papai. Ali estava esse homem e mais um outro... INSPETOR Ah! Sim? (desconfiado e intencional, para De La Torre) Então havia outro homem aqui? TORRE (meio confuso) S...sim... INSPETOR (a Neli) E depois? NELI De repente papai levantou-se e ouvi um tiro. Então esse homem disse: Fernando não me devias ter matado. SANTA (Percebendo a inocente acusação) Neli!... TORRE Ouviu, Senhor Inspetor? INSPETOR Onde está o homem que conversava com o senhor? Quem é ele? TORRE (mais senhor da situação) É o senhor Francisco Pereira. Homem de caráter reto e de conduta fora de qualquer dúvida. INSPETOR Bem, mas por que não está ele aqui? TORRE Foi chamar um médico. INSPETOR Como? TORRE Para melhor clareza vou contar-lhe o que se passou. Fernando e o Sr. Perdinari puseram-se a discutir. Em seguida Fernando puxa um revólver, atira e foge. SANTA Esse homem está caluniando meu filho. Juro, senhor, ele é inocente. TORRE Íamos ao seu alcanço, mas como Perdinari estava ainda vivo, achei melhor socorrê-lo. Foi então que o senhor Francisco saiu à procura de um médico. E é esta a razão porque não está ele aqui. (noutro tom) Antes de morrer, o Sr. Perdinari implorou-me que fosse eu o tutor de seu filho Alberto. E entregando-me este envelope lacrado, disse-me estar nele o documento que passa toda a fortuna para o filho e que só poderá entrar na posse no dia do seu casamento. INSPETOR Tem testemunha de que a vítima lhe entregou esse envelope? TORRE Tenho o Sr. Francisco. Mas mesmo que não tivesse, bem vê que o envelope está lacrado, e só pela boca do Sr. Perdinari poderia eu conhecer o seu conteúdo. (entra guarda, conduzindo Fernando) FERNANDO (logo ao entrar, vendo inerte Perdinari) Morto! GUARDA (empurrando, para a frente) Aqui está o homem. Consegui alcançá-lo. FERNANDO (vendo o cadáver) Morto! Mas, Sr. Inspetor, o guarda prendeu-me acusando-me de um crime?! Estou inocente! INSPETOR Se está inocente, por que fugiu? GUARDA Estava correndo. Custou-me alcançá-lo. FERNANDO Fui chamar um médico, enquanto o Sr. De La Torre socorria o moribundo. TORRE É verdade que o socorri. Foi quando ele pediu-me que cuidasse de seu filho e entregou-me o envelope. FERNANDO Ouvem? Tenho como testemunha de minha inocência o Sr. De La Torre. TORRE Como?!... Não consinto que diga semelhante cousa! Pois eu, Manoel De La Torre, homem de dignidade conhecida em toda a cidade, nunca poderei acobertar um crime do qual sou testemunha de vista. FERNANDO (com desespero) Parece incrível o que estou ouvindo!...O senhor me acusa? (revoltado) Tenha coragem! Confesse que foi o senhor quem por acaso deixou disparar a arma. TORRE (calmo) Eu!? (risinho) INSPETOR Com licença. (revista o Sr. De La Torre, nada encontrando) TORRE (enquanto o inspetor revista) O senhor não só o matou, mas roubou também o dinheiro que o pobre trazia consigo. FERNANDO Infame! (vai avançar e é impedido pelo guarda) Reviste-me Sr. Inspetor, e verá se tenho algum dinheiro comigo. TORRE Com certeza já o escondeu em alguma parte. INSPETOR (revistando Fernando e encontrando o revólver) Um revólver!... (examina) Falta justamente uma bala. TORRE Vê... É inútil querer fugir à justiça. As provas são esmagadoras. FERNANDO Esse revólver foi o senhor mesmo quem mo deu. TORRE Eu?!... (risadinha cínica) Sr. Inspetor, creio serem desnecessárias mais provas! INSPETOR Vamos conduzir este homem para a cadeia. NELI (num desespero) Vovó, vão levar o papai!... (correndo e agarrando-se a ele) Não... não levem o papai! SANTA Oh! Senhores, não levem o meu filho! Ele é inocente, Sr. Inspetor! INSPETOR Cumpro a lei, minha senhora. NELI Não! Pelo amor de Deus, não levem meu pai! Não o levem! SANTA Sim. Deixem-no, senhores. Tenha dó desta cega! Salve o meu filho! TORRE Basta de lamentações. Seu filho que sofra as conseqüências de seu crime. FERNANDO Miserável! (tenta avançar e é impedido pelo guarda) SANTA Mas meu filho não é criminoso. O Sr. bem sabe. FERNANDO É inútil, mamãe. Agora compreendo. Caí numa cilada. Todas as provas são contra mim. SANTA Mas meu filho, sem você, o que será desta cega e desta infeliz criança? FERNANDO (com lágrimas a correr dos olhos) Não sei, mamãe... só Deus saberá... INSPETOR Leve-o. (guarda sai, conduzindo Fernando. A De La Torre) O senhor está arrolado como testemunha. TORRE Nem podia deixar de estar, visto que sou testemunha ocular desse monstruoso delito e portanto preciso auxiliar a justiça a elucidar um crime, punindo esse bárbaro assassino. INSPETOR Muito obrigado. Preciso providenciar um carro para a remoção do cadáver. (sai) SANTA Foi o senhor quem matou Perdinari. E não lhe dói a consciência, ao ver preso um inocente, ficando desamparadas estas duas infelizes?... TORRE (risadinha cínica. Baixo, junto a D. Santa) Eu não matei só, não... roubei tudo quanto ele trazia consigo. E serei eu o tutor de seu filho. Mais tarde toda a sua fortuna cairá nas minhas mãos. SANTA Ouviu, Sr. Inspetor? Meu filho é inocente! (pausa, durante a qual Torre ri, baixo, cinicamente) Não ouviu, senhor? Este homem acaba de confessar! É ele o assassino! TORRE A polícia já não está aqui. Ah! Ah! Ah!... Agora vai, vai à justiça e diga que eu confessei o meu crime... Ela não te acreditará... (muito cinicamente) Porque faltam provas!... (sai) SANTA O que será de nós, minha netinha, o que será de nós?! Segundo Ato Casa pobre. Mesa e cadeiras toscas a D., a E., um banco. Ao abrir a cortina, D. Santa e Marli estão sentadas junto à mesa. D. Santa enxuga uma lágrima. São passados 11 anos. MARLI E depois, D. Santa? SANTA Depois, meu Fernando foi preso. Todas as provas eram contra ele. Apareceram testemunhas afirmando que meu filho jurara matar o Sr. Perdinari. MARLI Infelizes! SANTA Eram testemunhas falsas, arranjadas por De La Torre. Tudo condenava meu filho. Foi condenado a 20 anos de prisão. A fábrica foi obrigada a paralisar os serviços, ficando desempregados centenas de operários, que se revoltaram contra nós. Ameaçaram arrancar meu filho das mãos da justiça para linchá-lo. Pobre filho!... Mártir inocente!... MARLI E aos dois verdadeiros criminosos, a justiça nada fez? SANTA Nada, minha filha. Francisco Pereira, segundo me disseram, embarcou logo depois para a sua terra natal, Portugal. A De La Torre, a justiça fez justamente o que ele desejava: nomeou-o tutor do menino Alberto. MARLI E o pobre moço estima-o como se fora seu pai? SANTA Você conhece o Alberto? MARLI (atrapalhada) Não... eu... quero dizer, ouvi dizer que estima muito o Sr. de La Torre... continue a narração, D. Santa. SANTA Ah! Marli... Depois que fiquei sem meu filho, tenho sofrido muito... A princípio não foi tanto, porque o Sr. Velasco, que Deus o tenha em bom lugar, continuou como até ali, a nos fornecer comida. Todos os dias íamos matar a fome naquele bar. Mas um dia encontramos a porta fechada. Disseram-nos que o Sr. Velasco havia falecido, vítima de uma síncope. Saí a mendigar, tendo Neli como guia. É nessa situação, minha filha, que se conhece o quanto é perversa a humanidade. Quanto fui escarnecida... Quando, na rua, eu ouvia os passos de alguém que se aproximava e pedia que tivesse piedade de nós, matasse-nos a fome, as mais das vezes, respondiam-me: Vai-te embora! Por causa de teu filho, fechou-se a fábrica, muitos operários estão na miséria, sofra o castigo que bem mereces!... E outros então chegavam a dizer que era a Justiça de Deus que pesava sobre nós, fazendo-nos sofrer: Aí está como Deus é justo. O assassino e ladrão na cadeia, e tu sofrendo o castigo merecido, pois soubeste instigá-lo para que matasse e roubasse! Desapareça deste lugar, miserável. Estas e outras coisas eu e Neli ouvíamos constantemente. Pouquíssimos eram os que nos davam esmolas. Todos odiavam-nos. (desalento) Como é mau este mundo!... MARLI É verdade. SANTA E quantas vezes ficamos sem comer! A mim já não fazia falta a comida... Habituei-me... mas a minha pobre netinha pedia-me um pedacinho de pão e... eu não tinha... Nesses dias então, minha filha, o nosso único alimento eram as lágrimas. MARLI Não chore, D. Santa. Pois sofrem assim só os escolhidos por Deus. Jesus também sofreu muito, por todos nós. SANTA Coitadinha da minha neta... agora para ganhar um pouco de dinheiro, que mal dá para comprar alimentos, vai para o trabalho ainda de madrugada, e só volta já noite. MARLI Pobre Neli! ...E todo esse sacrifício, ela faz sem uma queixa. SANTA Marli, você que tem, como a maioria dos mortais, a felicidade de ver, diga-me, sinceramente: minha neta está forte, alegre? MARLI De uns tempos para cá lhe tenho notado certa alegria. Não sei por que, há momentos que Neli parece sentir-se tão feliz, como se a vida para ela fosse um mar de ventura. Depois, cai num profundo abatimento e tristeza. Perguntei-lhe a razão daquela tristeza repentina, disse-me que era a lembrança do pai. SANTA Coitadinha... Nem o direito de se sentir alegre ela tem. Aparece logo a visão de seu infeliz pai condenado. Essa visão, como um véu negro, cobre aquela alma ávida de felicidade. JUCA (entrando) Boa... boa... boa noite. MARLI E SANTA Boa noite. SANTA Já é noite?! JUCA Já... já... SANTA Ah, já? JUCA Não. SANTA Não? JUCA Já... já... MARLI Mas o que é isso, Juca? Uma hora você diz que já é noite, outra hora você diz que não? JUCA Pois... num... num... num deixa eu... acabá de falá! Já... já... já são mais de 6 horas... MARLI Então! Já é noite! JUCA (irritado) Mas... mas deixa eu acabá de falá! MARLI Então, fala logo, Juca. JUCA Já... já... são mais de seis horas... MARLI Mas você já falou isso, Juca! JUCA (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente nervoso, se despenteando todo) Mais deixa eu falá! (Marli mostra-se irritada, D. Santa sorri) Já... já... já são mais de 6 horas e.. e... e... a... mamãe manda dizer que... que... que... logo que... que... que... a Neli chegá é para você ir para casa. MARLI Sim. Logo que a Neli chegar eu vou. JUCA Eu... eu vou esperá... pra ir com você. SANTA Se você quiser, pode ir, Marli. A Neli não deve demorar. MARLI Oh! Não, D. Santa, eu esperarei. JUCA Nós... esperaremos. MARLI O jantar está pronto, a casa arrumada, de modo que, assim que a Neli chegar nós iremos. SANTA Escute-me, Marli. Há pouco você disse-me que Neli, às vezes, fica muito alegre, tão feliz como se a vida fosse um mar de venturas... Estive pensando por que seria?... Ela sempre foi tão triste... JUCA Ah... a s... a s... a senhora não sabia? (Marli leva-o para o canto) É por... que... ela... ela... MARLI (a meia voz) Cale-se! JUCA Por... por quê? MARLI (baixo) Não quero que lhe diga. JUCA (idem) O quê?... Vo...Você num sabe o que eu ia falá! MARLI (idem ) Ia dizer-lhe que Neli está namorando o Sr. Alberto, filho do Sr. De La Torre. JUCA (idem) Taí! A...Agora você acertou. MARLI (idem) Pois bem, não lhe diga. JUCA (idem) Por... quê? MARLI (idem) Porque Neli não quer. Ela mesma é que lhe quer dizer. JUCA (idem) Tá... bom. En...tão eu num falo. Mais que... eles tão namorando, tão mesmo. SANTA Perdoe-me a pergunta, Marli. Mas por que estão vocês conversando baixinho? MARLI É o Juca que está me contando umas coisas, mas sem importância. SANTA Marli, por que seria que Neli, às vezes, sente-se tão alegre? Ela nunca disse a você o motivo? MARLI (mentindo) Não... D. Santa. Eu não sei por quê. SANTA Oh, se soubesse como tenho vontade de ver Neli, e como sofro por não poder. Eu daria minha vida em troca de um momento apenas dessa felicidade imensa. Eu tenho necessidade de vê-la. A sua idade é perigosa, eu precisava ver-lhe o rosto para adivinhar no seu semblante de moça, o que se passa no seu coração, e que os seus lábios procuram cuidadosamente ocultar-me. Oh! Quanto anseio por sua felicidade, e eu serei ainda mais desgraçada se ela não for feliz... (chorando) Oh! Marli, a Neli merece, precisa ser feliz... Já tem sofrido tanto... tanto... MARLI Então, D. Santa, não chore. Está na hora de Neli chegar. SANTA É verdade, não quero que ela me surpreenda chorando. Leve-me para o quarto. (saem, Marli conduzindo D. Santa) NELI (aparece com Alberto à porta. Entra com uma caixa, sem ver Juca) Pode entrar, Alberto. Vovó está lá dentro. Não há ninguém aqui. (Alberto entra) JUCA Num... num... num tem ninguém aqui uma ova! En...tão eu n...num sô ninguém? NELI Oh! Desculpe, Juca. Não tinha visto você. JUCA É a...assim mesmo. Por...que tá namorando o... seu Alberto, já... já nem enxerga os amigos. NELI Desculpe, Juca. (a Alberto) Alberto, apresento-te aqui o meu amiguinho Juca, a quem estimo como se fora um irmão. Juca, este é o Alberto, o meu namorado. Creio que já o conhece de vista. ALBERTO (apertando a mão de Juca) Muito prazer. JUCA O... o... ALBERTO O mesmo? JUCA O... o... o... NELI Já sei. O prazer é todo seu. JUCA Não. NELI Não? JUCA N... num é isso... que eu quero falá! ALBERTO (sorrindo) Fale. JUCA O s... o s... NELI O senhor! JUCA (muito irritado) Ma...ma...ma... (num repente, nervoso, mexendo outra vez todo o cabelo) Mais deixa eu cabá de falá! O s... o seu nome é A...Aberto mesmo? ALBERTO Ah, sim! Meu nome é Alberto Perdinari. JUCA Mu...mu... ALBERTO Muito prazer? JUCA Taí! A...a...gora acertou. NELI Vovó está lá dentro, Juca? JUCA Tá. NELI Escuta...Eu queria... JUCA Já sei. É... é... (apontando os dois, dá uma risadinha maliciosa) É pra mim dá o fora. Eu vô... n...um... é preciso mandá. (sai rindo discretamente) NELI Estou curiosa para ver o presente que me deste. (muito alegre, vai a abrir) ALBERTO (impedindo) Não abras agora. Deixa para depois que eu sair. NELI Então dize-me o que é! MARLI Boa noite, Sr. Alberto... NELI A vovó está lá dentro? MARLI Está. NELI Procure distraí-la. Não lhe diga que eu já cheguei. Quando eu der um assobio, pode vir. MARLI (séria) Então não demore. E conversem baixo, porque sua avó pode ouvir. Com licença. NELI (a Alberto) Eu ia contar um sonho que tive esta noite, mas agora não conto. ALBERTO Por que, Neli? NELI Porque não me queres deixar ver o que há aqui dentro. ALBERTO Conta, Neli... NELI Eu conto, mas com uma condição. ALBERTO Qual é ela? NELI Deixar eu abrir a caixa. ALBERTO Pois bem. Podes abri-la. (Neli vai abrir. Impedindo) Mas primeiro conta o sonho. NELI Então, vamos sentar. ALBERTO Vamos. (vai sentar junto à mesa) NELI Não aí. Vamos sentar no banco para ficarmos mais longe dos ouvidos da vovó. ALBERTO Como quiseres. (sentam-se no banco) NELI Ouve. (pequena pausa) Sonhei que estávamos sentados à sombra de uma frondosa árvore. Falavas aos meus ouvidos lindas palavras de amor. Por fim, levantamo-nos e pusemo-nos a correr, brincando, por uma estrada atapetada de flores. Essa estrada conduzia a um grande portão que se via ao longe e que, segundo supúnhamos, era o Reino da Felicidade. Dirigimo-nos para lá. Encontramos no caminho um viandante a quem perguntamos se aquele portão era a estrada para o Reino. Sim, respondeu-nos o homem, mas aquele não é o Reino da Felicidade, como todos supõem. É o Reino da Ilusão. Mas como? – disse eu – Ali não há felicidade? – Há, mas uma felicidade ilusória. O Reino da Felicidade é aquele, mais ao longe. Lá ela é verdadeira e eterna. Tomem aquele outro caminho, é abrupto, cheio de abismos, mas é o único que conduz àquela porta. O viandante disse isso e foi-se embora. Ficamos por uns instantes indecisos, sem saber qual caminho seguir, quando num momento desabou uma tremenda tempestade. O vento, fortíssimo, impeliu-me para a outra estrada. E vi então com grande mágoa, que já tinhas outra moça ao teu lado e com ela seguias o caminho cheio de flores. ALBERTO Que estranho sonho! NELI Eu, chorando, segui sozinha aquela horrível estrada. Por fim, cheguei à frente de um portão enorme, de cor azul celeste. Comecei, nesse momento, a ouvir uma música linda, muito linda, que cada vez mais chegava aos meus ouvidos. Percebi então que estava vestida de noiva. O portão abriu-se lentamente. Lá dentro, ao fundo, estava escrito, em letras de ouro: Reino da Felicidade Completa e Eterna. Eu não quis entrar, porque já não estavas ao meu lado. Fiquei vagando ali, por alguns instantes, à tua espera, quando, de repente, ouvi a tua voz chamar-me. Voltei-me e vi que vinhas cansado. Ao ver-me, teus olhos tiveram um brilho estranho de alegria, teus lábios esboçaram um lindo sorriso e então eu disse baixinho, com medo que, com o som da minha voz, se fechasse aquele portão: Vem, Alberto, vem... Eu vou... eu vou, disseste. Estendi a mão, que pegaste com ansiedade, pela ponta dos dedos, ouviu-se o tocar de clarins, e assim entramos para o Reino da Felicidade Completa e Eterna. ALBERTO Que sonho comprido! NELI Bem. Agora posso abrir a caixa? ALBERTO Pode. NELI (abre a caixa. Alegre, muito alegre, ao ver o vestido) Um vestido de noiva?!... (olha-o) Que lindo!!! Vê se fica bem para mim. ALBERTO Ficas ainda mais bonita. Neli, estás satisfeita com o presente? NELI Se estou?! Que pergunta, Alberto! ALBERTO Neli, como estou ansioso que passem depressa esses cinco meses para a minha formatura. Nesse dia, eu comunicarei ao papai a minha resolução de casar contigo. (Neli fica triste) Depois virei pedir a tua mão a D. Santa. Ficaste triste, Neli? Por quê? NELI Porque tenho quase certeza de que o Sr. De La Torre não consentirá o nosso casamento. E eu não poderei viver sem ti. ALBERTO Ele nunca poderá fazer isso. Porque esse amor é infinito. Não existem forças no mundo capazes de extingui-lo. Amo-te, Neli! Amo-te muito, muito, e ainda que meu pai se oponha à nossa união, eu casarei contigo!... NELI Oh! Como me fazem bem as tuas palavras. (noutro tom) Desculpa-me, Alberto, mas eu tenho motivos para os meus receios. Nunca pude contar-te a verdade sobre o crime de que meu pai é acusado e cuja vítima foi o teu verdadeiro pai. Mas juro-te, ele é inocente. O criminoso é... ALBERTO (atalhando) Não digas. Já pedi por diversas vezes que não torne a falar no assunto. Acredito, sinceramente, ser o teu pai inocente. Mas não posso deixar que acuse ao Sr. De La Torre, a quem devo a gratidão de ter olhado por mim, desde que me faltou meu pai. E depois, Neli, bem sabes que não há uma prova contra ele. NELI E se houvesse? ALBERTO Se houvesse, toda a minha dedicação se transformaria em ódio. Isto é, não seria propriamente uma transformação, porque sempre odiei o assassino de meu pai, embora não saiba quem seja. NELI Infelizmente esta prova não existe. Está bem, nunca mais falarei nisso. (fica triste) ALBERTO Não fique triste, Neli. Hoje mesmo vou falar com as autoridades. Hei de trabalhar até conseguir o indulto para teu pai. NELI (grande alegria) Alberto! ALBERTO Ele já cumpriu mais da metade da pena. Hei de fazer-te feliz, se Deus quiser. Restituirei teu pai e dar-te-ei a minha mão de esposo! NELI E visto que estás estudando medicina especializando-se em doenças de olhos, poderás também restituir vista a minha avozinha. ALBERTO Empregarei toda a ciência possível. NELI Alberto, como serei feliz!... Completamente feliz!... ALBERTO Bem, agora vou-me embora. A tua avó deve estar impaciente com a tua demora, e Marli deve estar furiosa à espera do assobio. JUCA (entra) Vo...vocês desculpa. Ma...mais estão demorando, e...eu n...um posso ficá no sereno. NELI Por que, Juca? Você está doente? JUCA Eu tô c...om o calo doendo. (riem) Vocês estão rindo, ma...mais tá do...endo no duro. ALBERTO Eu já vou. Até amanhã, minha vida!... NELI Até amanhã, meu amor!... ALBERTO (da porta) Neli, guarde bem o meu primeiro presente. NELI Hei de guardá-lo sempre... sempre. Até a morte. (Alberto sai. Neli vai até a porta e desce, alegre, coloca o vestido na caixa. A Juca) Eu vou assobiar, se a vovó perguntar quem assobiou, diga que foi você. Eu vou lá fora e depois entro como se estivesse chegando agora. JUCA Tá... bom. (Neli dá um assobio e sai) SANTA (entra conduzida por Marli) Quem foi que assobiou? JUCA Fui eu. SANTA Pensei que fosse a Neli. JUCA Bem... mas ela m...mandou dizer que fui eu. (Neli entra e faz uma careta para Juca) SANTA Sempre marota... Mas onde está ela? NELI (alegre, descendo) Aqui estou, vovozinha. (abraçando-a e beijando-a) Boa noite. SANTA Boa noite. NELI (dando uma piscadela) Boa noite, Marli. MARLI (sorrindo) Boa noite. NELI Como passou a boa vovozinha? SANTA Bem, minha filha. Passa-se o dia satisfeita, quando se tem em companhia uma menina como a Marli. MARLI Obrigada, D. Santa, isso é bondade sua. SANTA E tu, Neli, Não te sentes cansada? E como passaste o dia? Pois parece que chegaste tão alegre. NELI Passei muito bem, vovozinha. JUCA Ma...Marli, vamos pra c...casa, que... que... a mamãe tá esperando. MARLI Vamos. Até amanhã. JUCA (ao mesmo tempo) A...a...a... NELI E SANTA Até amanhã. (Marli sai) JUCA A...a...até. (sai correndo) SANTA Escuta, Neli. Disseste que passaste bem, mas isso não é justificativa para a tua alegria. Deve haver outro motivo que tu procuras ocultar-me. (pausa) Conta, conta à tua avozinha. NELI Tens razão, vovó. Tenho um segredo que até hoje lhe ocultei, mas agora vou revelar. Porém, antes, quero dar à senhora uma notícia que vai alegrá-la imensamente. SANTA Ah, Neli, minha alma está tão habituada à tristeza, que dificilmente se alegrará. NELI Mas com a notícia que lhe vou dar, tenho certeza de que a senhora ficará alegre. SANTA Diz. NELI Há uma pessoa que está trabalhando para que papai seja indultado. SANTA (alegre) Que dizes, Neli? É verdade? Não está dizendo isso somente para alegrar à tua vovó? NELI Não, vovó. É verdade. SANTA E quem é essa pessoa, essa nobre alma, que assim se compadeceu de nós? NELI A senhora nem pode calcular. SANTA Quem é, Neli? NELI É o Sr. Alberto. SANTA (grande espanto) Alberto, o filho do assassinado? NELI Ele mesmo. SANTA Mas como? NELI Ele sabe que o papai é inocente. SANTA (alegre) Mas quem te deu tão auspiciosa notícia? NELI Ele mesmo. Disse-me também que vai tentar restituir-lhe a vista! SANTA (num crescendo de alegria) A mim? Mas como? NELI Ele é estudante de medicina. Está se especializando em doenças de olhos e dentro de poucos meses receberá diploma. SANTA Oh! Meu Deus! Parece incrível tudo quanto estou ouvindo. NELI Ouviu, vovó, ele, esse anjo querido, vai nos restituir toda a felicidade. SANTA Anjo querido?... Tu o amas? NELI Adoro-o, vovó! Adoro-o. SANTA E és correspondida, minha filha? NELI (muito alegre) Se sou!?... Oh! Vovó, ele me quer muito, muito!... A senhora não pode calcular qual foi o primeiro presente que ele me fez. SANTA O que foi, Neli? NELI Vamos ver se a senhora adivinha. (abre a caixa e põe o vestido no colo de D. Santa) Adivinha, vovó. SANTA Um vestido. NELI Sim, vovozinha, mas um vestido de noiva!... SANTA (com um sorriso que deve expressar imensa alegria) Um vestido de noiva!... (há pequenina pausa) Te sentes feliz? Não é assim, Neli? NELI Muito, vovó! Muito! SANTA Oh! Que ânsia tenho de te ver assim alegre, minha filha. Queria ver esse semblante radiante de alegria... Como hás de ficar linda com esse vestido! Como desejaria ver-te no dia em que for usá-lo... Mas não poderei... não poderei... (ajoelhando-se) Oh! Deus onipotente, criador de todas as coisas, dê-me a ventura de poder ver a minha querida neta vestida de noiva, ainda que por alguns instantes. Tira-me a vida depois, se acha que devo descansar, ou faça-me viver mais e sofrer maiores padecimentos, mas conceda-me essa suprema ventura! NELI (erguendo-a) Oh! Vovó, estou certa de que Deus atenderá sua oração. Ele já nos enviou Alberto, o anjo salvador! SANTA É verdade, é o anjo que traz para nós toda felicidade! NELI Ele virá pedir a minha mão. Tenho certeza de que a senhora não lhe negará. SANTA Oh! Não, minha filha... NELI Nem poderia, não é assim vovó? A ele que vai restituir a liberdade ao papai, a vista à senhora e vai fazer de mim a esposa mais venturosa! Não é vovó? Não é assim?... (chora de alegria debruçada ao colo de D. Santa que está sentada) SANTA Então, minha filha!... Choras de alegria... NELI (com muita alegria e lágrimas a correr) Como serei feliz, vovó!... Como serei feliz!... Terceiro Ato Casa rica. A E. sofá e poltronas. A D. mesa com cadeiras. Ao F. mesinha com rádio. Porta. Vasos e flores, etc. Ao abrir a cortina, estão todos em cena. BENEVIDES (português) Sr. De La Torre. A festa está esplêndida! TORRE Desejei dar à festa de hoje, que é de formatura de meu querido Alberto, um cunho excepcional! Ele bem o merece! ADÉLIA (portuguesa) (intencional) Sem dúvida! Bem o merece! E ele tem dispensado aos convidados uma atenção distintíssima, digna de nota! ALBERTO Obrigado pelo elogio, senhorita. Mas creiam que a convidados tão ilustres como os que brilham nesta festa, todas as atenções são poucas. ADÉLIA Sempre gentil!... (música) COMPARSA Vamos dançar? Vamos para o salão. TODOS Vamos. (exceto Francisco e De La Torre, destacando-se a voz espalhafatosa de Adélia) Vamos! Vamos! (saem) TORRE Parece que tudo vai maravilhosamente bem! FRANCISCO A mim também me parece. TORRE Tal qual eu desejava, oh pah!, esse português bronco, possui uma fortuna imensa e uma ignorância ainda maior. Já lhe falei do empréstimo. Ele dispôs-se a atender-me logo mais. FRANCISCO O que ele quer é casar a filha com Alberto. Coitado. Com um quê de moderna, essa pequena é muito leviana. É uma menina endiabrada. Há poucos dias que está no Brasil e já conhece todo o palavreado da nossa gíria. TORRE Meio caminho já está andado. Farei com que Alberto case com Adélia e com isso obterei o empréstimo. FRANCISCO E mais tarde irá pagar essa dívida? TORRE Não!... E o português não me irá apertar por isso. Eu, o pai de seu genro!... Não achas? FRANCISCO Muito bem, o senhor faz tudo calculadamente. (noutro tom) Mas se não se casarem? TORRE Ora, tanta certeza tenho deste casamento, que já escrevi ao teu avô, avisando-lhe que Alberto embarcará para lá a fim de casar com Adélia. FRANCISCO Mas vão casar em Portugal, por quê? TORRE Pois não sabe que o Sr. Benevides e a filha embarcam amanhã mesmo para a Europa? FRANCISCO Pois é um perigo. Bem sabe que o meu avô, por causa dos seus remorsos, precisou afastar-se do Brasil. Não vá ele lá, agora, confessar tudo ao Alberto. TORRE Não há perigo! Já lhe escrevi uma carta prevenindo-o! Aqui está: (tira do bolso e lê) Meu amigo Francisco Pereira, etc. Alberto deverá seguir para aí, a fim de casar com a filha do Sr. Benevides Barbosa. Faço esse casamento com o fim de obter um empréstimo. Para isso, vou dizer a Alberto que estou arruinado e que tu és o meu credor. Portanto, caso ele te perguntar, confirma. Tenha prudência. Não vais, com teus remorsos, confessar ao Alberto o assassínio de seu pai, porque eu serei preso, mas caluniarei ao teu neto e ele irá comigo. FRANCISCO Por que o ameaça dessa maneira? TORRE Porque eu sei o quanto ele te estima, e por tua causa ele me obedecerá. FRANCISCO Mas é uma imprudência escrever isto numa carta. TORRE Com teu avô é preciso que seja assim. Mas tem razão... esta carta poderá ser interceptada e... Não, não devo mandá-la. (Põe sobre a mesa) FRANCISCO Está tudo muito bem. Mas eu duvido que Alberto aceite este casamento. TORRE Pois verás. Contudo, se não o conseguir, perderei o empréstimo, mas hei de convencê-lo a dar-me a sua herança para pagar a minha suposta dívida. FRANCISCO E ficará ele entre dois fogos. Ou casa-se com Adélia, ou entrega a herança deixada pelo pai. TORRE Mas eu prefiro que ele se case com a filha do português, porque ficarei com duas fortunas à minha disposição, e saberei agir de maneira que mais tarde venha para tudo em minhas mãos. (saem rindo, esquecendo a carta sobre o móvel) ADÉLIA (entra com Benevides) O senhor fale com o Albertinho hoje, impreterivelmente. Quero casar com ele e acabou. BENEVIDES Eu também quero, minha filha. ADÉLIA Hein? BENEVIDES Também quero que cases. Mas veja se te portas direito. Estavas numa algazarra com aqueles rapazes. ADÉLIA Eles estavam me ensinando termos usados na gíria brasileira. Ora, uma jovem inteligente como eu, tem de aprender a conversar com os moços brasileiros. BENEVIDES Bem, eu te peço que tenhas muito juízo. Já hoje durante o almoço tu estavas a tagarelar demais. ADÉLIA Não adianta! O senhor não entende mesmo nada. Vamos mudar de assunto. Então, e o negócio do casamento? BENEVIDES Mas, minha filha, esse negócio pode não dar certo. ADÉLIA Dá certo, sim. BENEVIDES Esse negócio de filha é o diabo! Escuta, minha filha, esse rapaz pode vir a saber do teu passado, cheio de leviandade e sabes como é. ADÉLIA Ninguém terá a ousadia de lhe dizer. De mais a mais, eu quero de qualquer maneira casar com ele, pronto. (sai, passando por De La Torre que acaba de entrar) TORRE A sua filha é um raio de luz! BENEVIDES (aparte) É o raio que a parta! (alto) O seu filho, sim, é um moço muito distinto, inteligente. TORRE E que breve será seu genro. BENEVIDES (numa alegria) Ai, ai, ai! A minha Adelita quando souber, vai ficar muito alegre! TORRE E a respeito do empréstimo que lhe pedi, Sr. Benevides? BENEVIDES Hoje mesmo, depois de anunciado o noivado, vou providenciar isso. Não poderei deixar de servir ao futuro sogro de minha filha. CRIADO (entra) O Sr. Francisco manda pedir ao Sr. De La Torre que faça o obséquio de chegar até o salão. (sai) TORRE Com licença. (sai) BENEVIDES (só) Não faz mal. Eu ainda vou ganhar no negócio. Empresto o dinheiro, mas caso minha filha. ADÉLIA (entra) Oh! Ainda nesta sala, papai? Então, como vai a coisa? BENEVIDES Que coisa? ADÉLIA Quero dizer, o senhor, como vai? Está bom? BENEVIDES Ah!... A coisa então sou eu?... Vou indo assim, assim. ADÉLIA Vai temperando, não é assim? BENEVIDES Eu não estou temperando nada não, minha filha. (aparte) Esta menina está ficando maluca! ADÉLIA Oh, papai! Mas isto aqui é bom! Eu quisera não voltar mais para Portugal. A coisa aqui é boa! É do balaco-baco!... BENEVIDES É do quê? ADÉLIA É do balaco-baco. Aqui é cocoreco e pronto. BENEVIDES (aparte) Ela está ficando maluca! (alto) O que é coroquéco? ADÉLIA Cocoreco é bico de pato. Quer dizer que aqui não tem conversa mole pra boi dormir, não! BENEVIDES Escuta; o que é que tem o bico do pato com a conversa do boi? ADÉLIA (depois de rir) Qual! O senhor não manja mesmo nada. Para falar com o senhor só mesmo à portuguesa. BENEVIDES É lógico! Tu vens falar em baco-baco, em coroquéco, em bico de boi, conversa de pato quando está dormindo! Vou lá entender esse negócio?... ADÉLIA (depois de rir) O senhor não emboca uma! O senhor não pode mesmo entender. No Brasil o lero-lero é diferente. (pausa) Então, já cuidou do casamento? BENEVIDES Jé falei ao Sr. De La Torre. Ele consente e disse que o filho gosta de ti. ADÉLIA Eu bem o sabia! Não há homem que resista a uma bela cachopa portuguesa!... BENEVIDES Escuta aqui, minha filha, mas fala direito. Não enrola a língua, não. Tu amas esse rapaz? ADÉLIA Eu gosto dele, mas amar não! Amor hoje em dia é manga de culete. BENEVIDES Manga de culete? Taí. É por isso que eu não gosto de modernismo. Nos meus culetes, eu não deixo por manga! ADÉLIA Creio que desta vez acertei a mão! BENEVIDES Acertou a mão aonde? ADÉLIA Causarei inveja a todas as minhas patrícias. Mulher de um médico! Qual, papai, vou casar com ele! É o meu pedaço! BENEVIDES (espantado) Quê?! Falta um pedaço ao rapaz? Pois olha, eu não sabia. ADÉLIA Fique sabendo agora. Mas com ele, papai, a conversa é outra. O Albertinho gosta de romantismo. E nessa matéria eu sou mestra. ALBERTO (entra) Oh! Por aqui! ADÉLIA Como vês. BENEVIDES (aparte) Pronto. Lá vai besteira. (alto) Com licença. (sai) ADÉLIA (olhando para o sofá, intencionalmente) Estou tão cansada!... ALBERTO (indicando o sofá) Pois então sente-se. ADÉLIA Só se tu me fizeres companhia. ALBERTO Perfeitamente, senhorita. ADÉLIA Eu e papai falávamos a teu respeito. Falávamos de teus dotes de inteligência. ALBERTO São bondades de vossa parte todos esses elogios. O que sei não é produto da minha inteligência. Devo aos anos que passei nas escolas, aos meus mestres. ADÉLIA Eu te aprecio imensamente. Perdoa-me a franqueza feminina: tu és o tipo sonhado pela maioria das mulheres modernas. Inteligente, simpático e com uma posição privilegiada na sociedade. ALBERTO (rindo) Interessante! A luz bela e fulgurante de um sol, fazer a apologia da insignificante luz de uma vela de cera. (entra Benevides e pára na porta) ADÉLIA Pois eu desejava ser uma vela de cera. BENEVIDES (aparte, pondo a mão na cabeça) Pronto! Agora quer virar vela de sebo. Ficou maluca de uma vez. (sai) ADÉLIA Sim. Este sol fulgurante preferiria mil vezes ser uma pequenina vela de cera, para derreter-se ao lado de uma sua companheira, confundindo a minha luz com a sua luz, e ao fim, após derretidas, fundirem-se numa só. ALBERTO Muito bem! Inteligente! Bela declaração do amor! Admirável! ADÉLIA (vaidosa) Gostou? ALBERTO (seco) Não. Admirei. ADÉLIA E achou-me inteligente. (com superioridade) Pois fique sabendo que esse pequeno vislumbre de inteligência não adquiri nas escolas. ALBERTO (sorridente e mordaz) Pequeno?!... Oh! Quanta modéstia! (Adélia levanta-se indignada e encontra-se com Benevides) ADÉLIA (na porta) Papai, quero casar com este rapaz de qualquer jeito, porque eu o odeio e ele não gosta de mim. (sai) BENEVIDES (consigo) Mas, raio me parta se estou entendendo alguma coisa! (alto) Senhor Alberto... faz favor... (entram rapazes em algazarra, atrás de Adélia: todos querem dançar com ela) ADÉLIA (sempre espalhafatosa) Esperem! Peço desculpa, mas já estou comprometida. FRANCISCO Com quem? ADÉLIA Com o Alberto. (Alberto, contrariado, oferece-lhe o braço e saem seguidos da comparsaria) TORRE (entrando, para Benevides) Então, como vai o lindo par? BENEVIDES A minha filha está maluca. TORRE Que diz?! BENEVIDES Não sei. Ela fala umas coisas que eu não entendo. FRANCISCO O que diz ela? BENEVIDES Disse-me que aqui no Brasil o lero-lero é diferente. TORRE Hein?! BENEVIDES É, ela está maluca mesmo. Falou-me que não gosta de conversa mole! Como que se pode amolecer uma conversa? TORRE Mas... BENEVIDES Não!... Não há dúvida não! Ela está maluca mesmo! Pois ela está pensando que o seu filho é príncipe! TORRE (sério) O quê?! BENEVIDES Sim, ela disse-me que vai falar com um brasileiro da coroa. (Torre e Francisco rindo. A Torre) O senhor está rindo? Olhe aqui, ela disse mais... disse-me que... eu até tenho vergonha de dizer. TORRE Pode dizer. BENEVIDES Ela disse que seu filho não é completo, não! TORRE (espantado) O quê?! BENEVIDES Disse-me, há pouco, que ele é um pedaço só! TORRE (irritado, a Francisco) Esse português está louco! Com licença! BENEVIDES Coitada de minha filha! Ficar maluca em plena e ridente juventude! FRANCISCO Acalme-se, Sr. Benevides. Quem sabe se o senhor não compreendeu bem. BENEVIDES Como é que não compreendeu? Pois olhe, escute, e se a Adelita não está maluca. Ela estava aqui a falar com o Alberto. Entrei para ouvir o que falavam, e calcula o que ela disse! FRANCISCO O que foi? BENEVIDES Ela quer virar vela de sebo. FRANCISCO Não estou entendendo. BENEVIDES Nem eu. É como lhe digo: minha filha está maluca. FRANCISCO Ou então o senhor está ficando caduco! BENEVIDES Caduco!? Caduco, eu?! FRANCISCO Não, o senhor não está caduco. Está louco. (vai saindo) BENEVIDES Louco é o raio que o parta! (pausa) Coitada de minha filha! Querer virar vela de sebo!... Como é que pode? Não é possível! (vai atravessando a cena Adélia e Alberto) Ó Adelita! Vem aqui. Explica-me esse negócio de vela de sebo. Já estou com a vela atravessada na garganta. ADÉLIA Que vela de sebo, papai?! BENEVIDES Tu não disseste que quer virar vela de sebo? ADÉLIA Eu?! O senhor enlouqueceu? BENEVIDES (levando Alberto para um canto, a meia voz) O senhor não acha que ela está maluca? ALBERTO Não! BENEVIDES Então o maluco sou eu!... (Adélia e Alberto saem) Ai, ai, que estou maluco mesmo! (Francisco e Torre entram) BENEVIDES (vendo-os) Senhor De La Torre, amanhã mesmo vou internar-me num hospício. TORRE Por quê? BENEVIDES (voz chorosa) Acabo de saber que estou sofrendo das faculdades mentais. TORRE Acalme-se. O senhor não tem nada. Está de perfeito juízo. BENEVIDES Então é minha filha que está maluca! TORRE Deixe disso, senhor Benevides. BENEVIDES Qual, eu creio que... creio... qual! Creio que já nem sei mais o que creio!... Creio que estou ficando maluco mesmo! Logo que minha filha casar vou passar para o seu nome toda a minha fortuna, para que meu genro dirija os meus negócios. (Torre olha com um sorriso, significativamente, para Francisco) FRANCISCO Toda a sua fortuna?! TORRE Pois, senhor Benevides, garanto-lhe que em breve meu filho será seu genro. BENEVIDES Ele gosta de minha filha? TORRE Se gosta!... Está loucamente apaixonado por ela! BENEVIDES Mas, raio me parta se eu entendo alguma coisa! Foi Adelita mesma quem me disse que ele não gosta dela! TORRE Impossível! Ele não diria isso! BENEVIDES Então não resta dúvida. Eu estou mesmo maluco! (voz chorosa, saindo) Volto amanhã para Portugal e vou internar-me num hospício. (sai) FRANCISCO (rindo) Coitado!... (entra criado com uma carta) CRIADO Uma carta para o Sr. Alberto. TORRE (lê o subscrito) Quem lhe entregou esta carta? CRIADO Um rapaz. TORRE Não disse o nome? CRIADO Não, senhor. Só sei informar que é gago. TORRE Está bem. Não diga ao Alberto que veio esta carta. CRIADO Sim, senhor. (sai) FRANCISCO É com certeza carta da namorada de Alberto. TORRE Parece-me. (lê num correr de olhos. Fala) Ora, aqui está o que vai decidir Alberto a deixar esta menina. Ouve (lê) Meu querido... Há 2 dias que não te vejo. Estou como louca a pensar que não vens porque já... Oh! não quero nem pensar. Espero-te ansiosa. Serei tua, sempre tua. Beijos. Neli. (Fala) Magnífico! Magnífico! A última etapa está vencida. FRANCISCO Como? TORRE (Mostrando a carta) Nota que ela escreveu apenas meu querido, omitiu o nome. FRANCISCO Bem, mas a carta é dirigida a Alberto. TORRE Isso é fora de dúvida! (cínico) Mas colocando aqui o teu nome, deixará de o ser. FRANCISCO O meu nome?! TORRE E aqui onde ela escreveu 2, cabe perfeitamente o número um. Ficará doze... E aqui onde ela diz chego a pensar que não vens, porque já... FRANCISCO Naturalmente essa reticência quer dizer: porque já... não me amas. TORRE (sempre cinicamente) Sim, mas aqui nós concluiremos a frase de outra maneira. (tirando do bolso uma caneta tinteiro) Mãos à obra. (vai à mesa) FRANCISCO Cuidado. TORRE (com um sorriso) Não tenha receio. Para imitar letras, eu sou perito. (escreve Francisco) Que tal? FRANCISCO Repare que há diferença de caligrafia. TORRE Bem, mas são poucas palavras acrescentadas. Demais, Alberto não dará por isso, tenho certeza. FRANCISCO E agora? TORRE Fique com esta carta, vá para o salão e apareça só quando eu te mandar chamar. FRANCISCO Está bem. (sai) TORRE Vai tudo maravilhosamente bem!... (entra Alberto) Oh! Meu filho, foi bom vires até aqui neste momento. Preciso falar-te de assunto muito sério. ALBERTO Estou às suas ordens. TORRE Vou fazer-te uma revelação que, se até agora não fiz, foi unicamente para não te causar um desgaste e não perturbar os teus estudos. Estou arruinado. Devo muito mais do que possuo. ALBERTO (depois de pequena pausa de tristeza) A quem? TORRE Tenho um único credor, o Sr. Francisco Pereira , que ora reside em Portugal. ALBERTO Mas como foi isto? TORRE Negócios, meu filho. Nunca te disse, para não te desgastar. Bem sabes que a fortuna deixada por teu pai até hoje de nada te valeu, visto que está nas mãos da justiça e só te será entregue quando casares. Eu cheguei até à situação de ver-me obrigado a parar os teus estudos. Então, para que isso não sucedesse, fiz um empréstimo. Outros negócios fracassaram, outros empréstimos, e hoje estou arruinado. (pausa) Pois bem. Até hoje eu me sacrificaria por ti e nada te pedi. Espero que não negues o primeiro favor que te peço. TORRE Pedi ao Sr. Benevides um vultuoso empréstimo. Com ele desafogarei a minha situação. Ao mesmo tempo dizia-me ele que o seu maior desejo era ver a filha casada contigo. Pois bem. Hoje, depois de anunciado o noivado, ele me fará o empréstimo. ALBERTO Como? Então o senhor, para salvar-se da ruína, está vendendo a minha felicidade?! TORRE (numa tristeza fingida) Oh! meu filho!... Como dói uma ingratidão! ALBERTO Perdoa-me. Peça-me outra coisa qualquer, menos isso! TORRE Por que, meu filho? Achas que ela não é uma moça digna? ALBERTO Não, não é isso. É que amo outra. E nada há neste mundo capaz de impedir que eu case com ela! TORRE (fingindo ignorar) Ah!... bem... não é preciso desesperar, meu filho. Julguei que ainda não tivesse pensado no casamento e queria proporcionar-te um matrimônio à altura e com isso salvar-me da miséria que me espera... (noutro tom) Mas a minha situação, para mim, é coisa secundária. Eu quero é ver feliz o meu querido filho. ALBERTO Quanto o Sr. é bom! TORRE (sorridente) Dize-me, quem é a deusa? ALBERTO É a Srta. Neli, filha do Sr. Fernando Siqueira. TORRE (fingindo surpresa) O assassino?!... Tu casares com a filha do assassino do teu pai? ALBERTO Perdão, mas eu não acredito que seja ele o assassino! TORRE Eu fui testemunha de vista. Teu pai, antes de morrer, pediu-me que te dissesse que vingasse a sua morte. E a tua vingança é essa! ALBERTO Mas, ainda que o pai de Neli seja o assassino, ela não é culpada! TORRE Será uma loucura o que estás tentando fazer! ALBERTO Não posso, de maneira alguma, retroceder. Amo-a acima de tudo no mundo, e ela adora-me. Nunca cometerei a monstruosidade de abandoná-la. Portanto, nada me fará demover. Com licença. (vai sair) TORRE Alberto! Ouve... (Alberto desce) Meu filho... sei que amas muito essa menina. Por isso lutei de todas as maneiras a fim de poupar-te um grande desgosto. Mas foste irredutível. Alberto, juro-te: preferia ser ferido por qualquer desgraça, por maior que fosse, a revelar-te este segredo. ALBERTO (surpreso) O que há? TORRE (pondo as mãos sobre os ombros de Alberto, abanando a cabeça, fingindo grande tristeza) Meu filho!... Meu pobre filho! ALBERTO O que há? Pode dizer. TORRE Essa moça, por quem estás apaixonado, é uma perdida. ALBERTO (retirando violentamente dos ombros as mãos de De La Torre) Mentira! (num grande ódio) Eu deveria matar-te, canalha! Bem sei o quanto tu és miserável! Até hoje, sem poder falar, tenho visto as tuas torpezas, trapaceando nos negócios, roubando. Contive-me sempre pela gratidão que te devo por ter olhando por mim desde que morreu meu pai. Porém, agora, que procuras caluniar infamemente aquela que adoro, digo-te: se tornares a repetir o que acabas de dizer, esquecerei tudo e saberei como punir-te! TORRE Meu filho... ALBERTO (atalhando) Eu não sou o teu filho! TORRE (humildemente) Pois bem. Ouve-me. Não sabes avaliar o meu amor por ti. É verdade, tenho conseguido dinheiro de maneiras incorretas, reconheço. Mas, se o fiz, foi unicamente para garantir seus estudos, pois eu me via arruinado. Eu cometeria todas as loucuras, contanto que fosse para a tua felicidade. É por ti que tenho feito tudo isso... Perdôo, Alberto, tudo quanto me disseste. Um pai perdoa tudo a um filho, e eu, embora não seja teu pai, amo-te como se fora meu filho. ALBERTO Perdoa-me. Mas repare que o senhor avançou demais na sua oposição ao meu casamento com a Neli. TORRE O que te disse foi apenas para teu bem. E nunca te diria se não tivesse prova. ALBERTO Prova?! O Sr. tem prova?! TORRE Sim. (toca a campainha) Há quantos dias não vês essa menina? ALBERTO Há dois dias. (Entra o criado ) TORRE (frisando) Há dois dias... (ao criado) Diga ao Sr. Francisco que faça o obséquio de vir até aqui. (criado sai. A Alberto) Pois bem, hoje ela mandou uma carta a um nosso amigo. ALBERTO (já desvairado) Uma carta? TORRE Sim. A uma pessoa que tu deves considerar o teu melhor amigo, pois apressou-se em avisar-me o ocorrido para que eu te prevenisse. ALBERTO A quem foi dirigida esta carta? Onde está ela? Quero lê-la! TORRE A carta foi dirigida a Francisco e está em seu poder. ALBERTO (consigo) Oh! Mas custa-me a crer!... Não é possível!... (entra Francisco) TORRE Francisco. Mandei chamar-te para que mostres a carta que recebeste hoje e que me mostraste há pouco, aqui. FRANCISCO Não sei se deva. ALBERTO (abatido) Pode mostrá-la, Francisco. Eu ficarei agradecido. FRANCISCO (tirando-a do bolso e entregando-a) Ei-la. ALBERTO (olha-a) É sua letra, não há dúvida. Então é verdade! (Torre e Francisco trocam um olhar de satisfação. Lê.) Meu querido Francisco. Há 12 dias que não te vejo. Estou como louca. Chego a pensar que não vens por que já... aproveitaste da minha inocência. (gesto fisionômico de abatimento de Alberto) Oh! Não quero nem pensar. Espero-te ansiosa. Serei tua, sempre tua. Beijo-te. Neli. (amarrota a carta, deixando-a cair ao chão num grande abatimento) TORRE Este era o desgosto que te queria poupar, meu filho. Ela perdeu-se antes de tu a conheceres, não é verdade, Francisco? FRANCISCO (a medo) Sim... pois agora eu não faria isso. TORRE Preciso guiar-te, meu filho. Este mundo é cheio de desenganos. Esquece essa ingrata que não merece o teu amor. Casa com Adélia. Compreende que tudo que te digo é para a tua felicidade. ALBERTO É verdade. O único amor sincero por mim é o seu, meu pai. Peço perdão por ter duvidado. Arrependo-me de lhe haver falado naquele tom. TORRE Não há nada. Eu quero que sejas feliz, o mais não importa. ALBERTO Pois bem. Eu me casarei com Adélia. Porém, imponho uma condição. Todo o dinheiro da minha herança deixarei para si. Dispenso também o dote de minha noiva. Partirei amanhã mesmo para Portugal em companhia do Sr. Benevides e Adélia, mas só me casarei daqui a seis meses, quando tiver meios. TORRE Está bem. Agora volta para o salão, conversa, dança... ALBERTO Não posso... Vou recolher-me ao meu gabinete. O Sr. apresentará desculpas por mim. TORRE Nada disso. Bem sabes que não ficaria bem. E demais, agora tu precisas distrair-te. Vai, vai para o salão, meu filho e esquece este fato, indigno que estar na tua memória. ALBERTO (depois de curta hesitação) Com licença. (sai para o salão) TORRE (a Francisco) Vai tudo maravilhosamente bem. Vamos procurar o Sr. Benevides para comunicar-lhe. (saem) BENEVIDES (entra do lado oposto) Não é possível!... Como pode ser!... Não pode!... (passeia, tenso) Não pode, não é possível!... (passa um casal de comparsas) Por favor. Os senhores acham que uma mulher pode virar vela de sebo? COMPARSA O senhor está louco! (saem) BENEVIDES (irritado) Mas ela falou isto! (passeia) Ela está maluca. (Entra um comparsa) Faça-me o favor. O senhor acha que uma mulher pode virar vela de sebo? COMPARSA O senhor está louco! (sai rindo) BENEVIDES (mais irritado ainda) Mas ela falou isto! Será que estou louco mesmo? (vai passando um criado) Faça-me o favor. Tu achas... bem, não é preciso! CRIADO O que é? BENEVIDES Já sei... tu vais dizer que estou louco. CRIADO Em absoluto. BENEVIDES Então escuta. Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo? CRIADO O senhor está maluco! BENEVIDES Não falei? (criado sai) Não resta dúvida. O maluco sou eu mesmo. (passeia, pára) Só se no Brasil o lero-lero é diferente. CRIADO Não pode entrar! Não pode entrar! (entra com Juca, procurando impedir-lhe a entrada) JUCA (sempre gaguejando) Como é que não pode? CRIADO Tenha a bondade! JUCA Que bondade o que , sô! BENEVIDES (a Juca) Faça-me o favor. Tu achas que eu estou maluco? JUCA O sinhor tá louco nada, sô! Quem tá louco é esse camarada aí (aponta o criado) BENEVIDES Graças a Deus! (abraça Juca) Achei um que diga que eu não estou maluco! CRIADO (enérgico) Tenha a bondade de retirar-se! BENEVIDES Deixe-o . Ele é meu amigo. CRIADO Se você for lá para o salão, eu o esmago... (sai) BENEVIDES (apontando o sofá) Sente-se ali. (Sentam-se) Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo? JUCA (aparte) Uai, o homem tá maluco mesmo! BENEVIDES Faça-me o favor. Tu achas que eu estou maluco? JUCA Não... O senhor tá co intestino da cabeça estragado. BENEVIDES Isto sim, mas maluco não estou! Tu és meu amigo! JUCA Eu...eu... BENEVIDES Não diga nada. Um abraço!... (Abraça-o) JUCA Eu...eu... BENEVIDES Outro abraço! (torna a abraçá-lo) JUCA Eu...eu... BENEVIDES Outro mais! (abraça mais uma vez) JUCA (levanta-se e afasta-se, aparte) O homem é louco feróis! BENEVIDES Olhe, meu amigo, disponha de mim no que quiseres. JUCA Eu...eu... venho buscar a resposta da carta que eu trouxe pro senhor A...A...Aberto. BENEVIDES Prá quem?! JUCA Senhor Al...Alberto. BENEVIDES Ah! Bem. Ele está lá pro salão. Vamos lá. JUCA Não. Lá eu não vô. BENEVIDES Por quê? JUCA Porque o criado me esmagaria. BENEVIDES Quem sabe se a resposta está por aqui mesmo? (vai à mesa) Ora aqui está uma. (pega a carta que De La Torre deixou sobre a mesa) Deve ser esta. Veja se não é. Leia. (Juca pega a carta, olha, vira-a de diversas maneiras) Tu não sabes ler, homem? JUCA Eu num leio porque está escrito a tinta. Eu sei lê a lápis. BENEVIDES Tu não tens vergonha de não saber ler? JUCA Então lê você, seu portugueis. (entrega a carta) BENEVIDES (pega a carta, olha, vira-a de diversas maneiras) Eu não leio, compreendeu, porque eu só sei ler em português. JUCA Pois brasileiro e portugueis é a mesma coisa. BENEVIDES Não é não senhor! JUCA Por quê? BENEVIDES Porque no Brasil o lero- lero é diferente! JUCA Sai daí, purtugueis, você também num sabe lê! Mais num tem nada. Eu num saio daqui sem levá a resposta do seu A...Aberto. CRIADO Você ainda aqui?... Vou chamar o Sr. De La Torre! BENEVIDES A resposta deve estar por aqui mesmo, sabes. (apanha a carta de Neli no chão) Olha aqui, outra carta. Uma delas é a resposta, mas para evitar enganos, tu levarás as duas. JUCA É isso mesmo. (guarda-as) BENEVIDES Mas faça-me o favor. (vão para o meio da cena) Vamos falar como dois homens sérios. Como dois homens de juízo. Tu achas que uma mulher pode virar vela de sebo? JUCA Ó, seu portugueis. Esse negócio tá me enchendo as medidas. Você tá pensando que eu sô trôxa? BENEVIDES Faz o favor. Eu estou falando sério. Tu achas ... JUCA Olha aqui, portugueis, você tá maluco!... BENEVIDES Viu? Eu sabia que no fim tu acabarias também dizendo isso! (consigo) Não resta dúvida eu estou louco mesmo. Amanhã embarco para Portugal e vou internar-me num hospício. (vai saindo) JUCA (chamando) Ô portugueis! BENEVIDES O que há? JUCA Eu vou estudá o seu caso. BENEVIDES Vá estudar o raio que te parta! (sai. Entra De La Torre e criado) CRIADO (apontando Juca) É aquele ali. TORRE Que faz o senhor aqui? JUCA Vim buscá a resposta da carta que eu troxe pro seu Alberto. TORRE Ponha esse sujeito para fora. JUCA Sujeito é a tua avó! (sai, empurrado pelo criado) FRANCISCO E então? TORRE Vê tu que vou ficar com todo o dinheiro da herança! FRANCISCO Graças à minha patife colaboração. Basta que vá tudo bem até o fim. É preciso não esquecer de queimar aquela carta ao meu avô. TORRE (procurando nos bolsos, com certo sorriso cínico) É verdade. (assustado) Mas, não está comigo! FRANCISCO (assustado) Parece-me que o senhor esqueceu-a em cima daquele móvel. TORRE (revistando a mesa) E não está aqui! FRANCISCO E a carta da Neli? Lembro que Alberto deixou-a cair no chão! TORRE Alguém roubou-as! (procuram, entra Benevides) BENEVIDES (entra e puxa De La Torre pelo braço) Senhor De La Torre, faça o favor. O senhor acha... bem, não é preciso, eu já sei que estou louco. (senta-se no sofá) TORRE Senhor Benevides, não viu por acaso, duas cartas naquela mesa? BENEVIDES O gago levou-as consigo. (fica pensativo, com a cabeça apoiada nas duas mãos) TORRE (toca a campainha, passeia agitado, entra criado) Vá procurar o gago, e tire-lhe duas cartas que ele levou daqui. CRIADO E se for preciso usar de violência? TORRE Faça o que quiser, contanto que traga as cartas. CRIADO (arregaçando as mangas) Pois aquele gago vai me pagar direitinho!... (sai) FRANCISCO (baixo a Torre) Será um desastre! Se Neli vir a sua carta alterada e a que o senhor escreveu ao meu avô, nos poderá perder. TORRE Bem, felizmente, a minha carta ainda não está assinada. (pausa) Mas não há perigo, o criado as trará. (entram Adélia e Alberto) Ora, o lindo par por aqui, ao invés de ir dançar? FRANCISCO Os apaixonados preferem a solidão. ADÉLIA Muito bem!... Por certo, o senhor já esteve apaixonado. FRANCISCO Não. Eu li isso num livro. ADÉLIA Eu não gosto de frases feitas. Prefiro as que surgem da própria inteligência, inspirada nessa fonte inesgotável que é o amor, e ditada pelo coração! BENEVIDES (levanta-se e vai até ela) Escuta, minha filha. Aquela frase é sua mesmo? ADÉLIA (cheia de si) Qual é, papai? BENEVIDES Aquela em que tu queres virar vela de sebo? ADÉLIA Ó papai, o senhor está louco! BENEVIDES Isto eu já sei, não é preciso dizer. (sai) ALBERTO Com licença. (sai) ADÉLIA Os senhores não acham que o Alberto está muito esquisito? TORRE É muito natural que esteja! No dia de hoje!... Sabes que ele incumbiu-me de pedir para ele a sua mão? ADÉLIA (com espalhafato) Não diga?! Mas como é que ele não me disse nada? TORRE O Alberto é muito tímido. ADÉLIA Eu vou procurar o papai para dizer-lhe. Com licença. (Sai correndo) TORRE Vai tudo maravilhosamente bem! (entra criado, em desalinho, cansado, com um lenço amarrado na cabeça. Está ferido) TORRE Trouxe as cartas? CRIADO Não. Ao sair daqui avistei o gago ainda na esquina. Ele correu. Corri também. Ele entrou por uma rua escura. Entrei também. Virou uma esquina. FRANCISCO Já sei. Você virou também. CRIADO Não. Não cheguei a virar. Recebi uma cacetada e um soco no olho. O gago sumiu, e eu voltei. FRANCISCO Se Neli vier aqui e revelar tudo ao Alberto, estamos perdidos. TORRE (ao criado) Não deixe ninguém entrar nesta casa. E desligue todos os telefones. CRIADO Mas eu vou apanhar outra vez. (sai) FRANCISCO O que faremos agora? TORRE (num riso cínico) Ora, o programa ainda não se modificou. Alberto embarcará amanhã para Portugal e nunca virá a saber. (entra a comparsaria) COMPARSA (a Torre) Adélia disse-nos que passássemos para esta sala a fim de conhecermos a grande novidade do dia. COMPARSA O que será? TORRE Dentro em pouco a conhecerão. ADÉLIA (entrando com Benevides) Onde está o Alberto? TORRE Pediu-me que apresentasse a todos as suas desculpas pela sua ausência. Está com forte dor de cabeça. Está no gabinete. ADÉLIA Oh! Papai!... Vá buscá-lo. Quando estou longe de Albertinho, eu fico tão sem graça!... BENEVIDES É. E quando estás perto, quem fica sem graça é ele... ( sai ) ADÉLIA Senhor De La Torre, é interessante o Albertinho. Ele conversa pouco e deixa-me falar à vontade. TORRE O Alberto sempre foi assim, quieto. ADÉLIA (falando depressa) Pois eu acho que uma pessoa inteligente deve conversar bastante, porque é pelas palavras que se mede o saber dos indivíduos! As palavras são as asas do pensamento! Por isso eu gostaria de falar bastante, bastante, bastante... Mas infelizmente eu falo tão pouco!... FRANCISCO (aparte) Safa!... ADÉLIA (Alberto e Benevides entram) Estás melhor?... ALBERTO Estou, obrigado. TORRE Muito bem, senhores, tenho a honra de comunicar-lhes a esperada novidade. Assinala-se hoje, no calendário de minha família, a mais importante data para mim e para meu filho. Registra-se no dia de hoje a festa de formatura de Alberto e o seu feliz noivado com a prendada filha do muito ilustre capitalista, senhor Benevides Barbosa de Moura. (durante essa fala Alberto, no princípio mostra-se surpreso, no fim deixa pender a cabeça, vencido) COMPARSA Oh! (palmas) FRANCISCO (aperto de mão) Felicidades, meu amigo! Muitas felicidades! ALBERTO Para mim, morreu a felicidade! (os comparsas vão dando os parabéns a Alberto e Adélia) (Vai-se fechando a cortina) Quarto Ato Cinco meses depois à porta de uma pequena igreja. Ao abrir a cortina, Torre passeia agitado. Em seguida entra Francisco. TORRE (vendo entrar Francisco) Então? Não as encontrou? FRANCISCO Não. TORRE Nem eu. Mas precisamos encontrá-las hoje mesmo. Se não rehouvermos aquelas cartas, estaremos perdidos. O Alberto deverá chegar por estes dias. Assim me afirmou na última carta. FRANCISCO E se Neli mostrar aquelas malditas cartas, só nos espera a cadeia. TORRE (num ódio) Descanse . Hoje elas nos entregarão nem que seja preciso matá-las. E se de tudo, não conseguirmos, fugiremos amanhã mesmo, antes que Alberto chegue imprevistamente. FRANCISCO É aqui que elas costumam vir. TORRE Afastemo-nos e voltaremos logo mais. (saem. Passam alguns comparsas e entram na igreja) NELI (entram maltrapilhas) Chegamos, vovó. SANTA Graças a Deus... Estava tão cansada... NELI Vamos sentar ali no banco. SANTA Sim, vamos. (sentam-se) NELI Creio que já começou a missa. SANTA Não faz mal. À saída talvez conseguiremos alguma coisa. NELI Quanto me envergonho de pedir esmola, vovó. SANTA Se não pedirmos, morreremos à mingua. NELI Eu o faço unicamente pela senhora. Por mim não importaria. SANTA Bem sei que é vergonhoso pedir esmolas, mas é o único meio de vivermos nesta cidade e eu não quero afastar-me daqui, onde se encontra preso meu filho. Bem sabes, Neli, que o único consolo de seu pobre pai é a visita que lhe fazemos duas vezes por semana. Mas, se Deus quiser, logo Fernando receberá o indulto e então iremos os três para longe daqui. NELI É verdade, vovó. E então eu e papai trabalharemos. Iremos para um lugar onde ninguém nos conheça. SANTA E Deus queira que De La Torre não nos persiga até lá. NELI Esse homem tem sido a nossa sombra. Há 12 anos que sofremos tantas desgraças todas causadas por ele. SANTA Infame! Ter a coragem de difamar a minha boa netinha como ladra. NELI E de tal maneira ele me infamou, que além de ter perdido a colocação, ninguém mais quis empregar-me. SANTA Tudo por não quereres entregar aquelas cartas. NELI E não as entregarei. Uma prova a minha inocência. Se um dia Alberto voltar, hei de mostrar-lhe como foi alterada. A outra, se perante a justiça não tem valor porque falta a assinatura, perante os olhos de Alberto será o bastante para provar que De La Torre é o verdadeiro assassino de seu pai. SANTA Talvez Alberto já se tenha esquecido de ti. NELI Oh! Impossível, vovó. Tenho certeza de que Alberto não se casou e que nunca se esquecerá de mim. Ele dizia-me sempre que o seu amor era infinito, eterno. SANTA E no entanto deixou-te. Foi para tão longe. NELI É verdade que ele foi para longe, mas não se esqueceu de mim. Tenho certeza, vovó. Ele ama-me ainda, ama-me muito, amar-me-á sempre... sempre... (chora) SANTA Não chore, Neli, não chore. NELI Vovó, eu vou à igreja e voltarei logo. SANTA Vai, minha filha. (Neli sai, entra na igreja) (só) Pobre Neli... Anseia por uma felicidade que nunca terá. Infeliz netinha... nasceste para a desventura. Alberto nunca voltará... (entra Alberto. Vai atravessar a cena, Santa ouve os passos) Uma esmola à pobre cega... ALBERTO (dá-lhe uma esmola) Aqui tem, minha senhora. SANTA Deus lhe pague, meu senhor. ALBERTO Desculpe-me perguntar-lhe, mas a senhora não tem uma neta que se chama Neli? SANTA Tenho sim, senhor. Ela agora está na igreja. ALBERTO Porque vivem a pedir esmolas? Sua neta não pode trabalhar? SANTA Pode sim, meu senhor, mas ninguém lhe quer dar trabalho. ALBERTO Por quê? SANTA Por que o Sr. De La Torre, homem muito perverso, espalhou pela cidade inteira que ela é ladra. Mas é uma calúnia, meu senhor! Minha netinha é boa, muito boa. ALBERTO Mas como poderia ele dizer isso? SANTA Ela estava empregada em uma casa comercial, há muito tempo. Um dia foi substituído o gerente. Substituiu-o Sr. Francisco Pereira. ALBERTO Francisco Pereira? SANTA Sim, um rapaz muito amigo de De La Torre. Depois de uns dias, esse homem acusou-a, dizendo que ela havia roubado objetos e dinheiro. A minha netinha foi conduzida à cadeia, onde ficou presa por dois meses. Ninguém mais quis dar-lhe emprego. Daí então veio a nossa completa penúria. Eu nada posso fazer, sou cega, meu senhor. ALBERTO A senhora me dá licença que lhe examine os olhos? SANTA Pois não. (Alberto está examinando) O senhor é médico? ALBERTO Sim, minha senhora. (termina de examinar) A senhora quer tentar uma operação? Talvez lhe seja restituída a vista. SANTA Oh! Doutor, bem que eu queria, mas sou tão pobre. ALBERTO Pois bem. Então vá ao hospital São Paulo. Porém, a sua neta não deverá ir com a senhora. SANTA Por quê?! ALBERTO (atrapalhado) Porque... poderá ela impressionar-se com a operação e perturbá-la. E a senhora precisará estar muito calma para que tudo seja bem sucedido. SANTA Está bem, doutor. Ela não irá. ALBERTO Então, até amanhã, minha senhora. SANTA Até amanhã, bom doutor. Que Deus o acompanhe. (Alberto sai) (intensa alegria) Meu Deus! Será possível? Que surpresa para Neli! NELI (entra) Aqui estou, vovó. (senta-se) SANTA Oh! Minha filha, se soubesses como estou contente! NELI Por que, vovó? SANTA Esteve aqui agora um médico que examinou os meus olhos e prontificou-se operá-los. Disse que talvez me seja restituída a vista. NELI Restituir-lhe a vista, meu Deus! Ó vovó, parece impossível que alguém se tenha compadecido de nós. Quem é essa boa alma? Como se chama esse médico? SANTA Com a alegria, esqueci-me de perguntar-lhe o nome. Sei porém que é para eu ir ao Hospital São Paulo. (levantando-se) Minha filha, leve-me à igreja. Quero rogar a Santa Luzia que guie a mão daquele bom médico, para que me volte a luz dos olhos. NELI Sim, vovó, vamos rogar à Santa. ALBERTO (entra) Já não está aqui. Esqueci-me de dizer-lhe que fosse hoje mesmo. (vão passando Juca e Marli. Juca pára e fica olhando Alberto) MARLI (da porta da igreja) Vamos, Juca, a missa já começou. (entra) JUCA (sempre gaguejando) O senhor é o seu Alberto? ALBERTO Sim. JUCA O senhor não tá me conhecendo, mas eu conheço o senhor. ALBERTO Conhece-me? JUCA O senhor não tá me conhecendo porque me viu só uma vez. ALBERTO Como se chama? JUCA Não adianta eu dizê o meu nome. ALBERTO Diga. JUCA Mas não adianta. ALBERTO Mas fale. JUCA Tá bom. Eu vô falá. Mas que não adianta, não adianta. Eu me chamo José Brederodes da Silveira Machado Lins. ALBERTO É. Não me lembro desse nome! JUCA Puis num falei que num adiantava? ALBERTO Mas, afinal, o que o senhor deseja? JUCA Eu tenho umas cartas guardadas pro senhor. ALBERTO Com licença, eu tenho o que fazer. MARLI (entrando) Juca! Sr. Alberto!... ALBERTO Marli?... MARLI O senhor por aqui!? ALBERTO Acabo de chegar de Portugal. Diga-me, como está a Neli? MARLI Pobre Neli!... ALBERTO Ela vive a esmolar com sua avó, é verdade? MARLI É verdade. JUCA É verdade. MARLI Vou contar-lhe o que se passou. JUCA Você não sabe nada. Dexa que eu conto. ALBERTO Por favor, deixe que ela mesma conte. MARLI Na véspera do senhor partir, Neli escreveu-lhe uma carta e mandou Juca entregá-la. Ele trouxe então a mesma carta completamente alterada, e uma outra. JUCA Aqui estão elas. (Alberto abre a de Neli) MARLI Repare, Sr. Alberto. Como a Neli esqueceu de citar o seu nome, escreveram aqui o de Francisco. Repare como estão diferentes estas letras. Este 1 também foi acrescentado. Estas palavras também. ALBERTO É verdade. Vê-se perfeitamente! Eu, louco, não percebi! MARLI A outra é uma carta que De La Torre escreveu para enviar a seu amigo Francisco Pereira, e na qual ele confessa ser o assassino de senhor Perdinari. ALBERTO Miserável! MARLI Apesar dessa prova, nada pudemos fazer, porque falta assinatura. ALBERTO Mas a letra é dele, bem a conheço! MARLI Neli, quando soube de sua partida, ficou desesperada. ALBERTO Pobrezinha. Eu fui um ingrato. Fui um infame em duvidar de seu amor. MARLI De La Torre, para reaver as cartas, usou de todas as perseguições. A infeliz perdeu o emprego, foi caluniada de ladra. Por fim, com medo de ser assaltada, entregou as cartas ao meu irmão para que as guardasse. Ela estava reservando-as para mostrá-las ao senhor quando voltasse. ALBERTO O canalha pagará tudo. Todas essas infâmias. Possuo documento que o condena irremediavelmente. Antes da minha partida para aqui, faleceu o Sr. Francisco Pereira. Antes de morrer, cheio de remorsos, confessou ser ele e De La Torre os assassinos de meu pai. Para melhor documentar-me, escrevi a sua confissão e fi-lo assinar, assim como também as testemunhas presentes. Cheio de ódio, embarquei imediatamente para aqui. MARLI Traz o documento consigo? ALBERTO Não. Foi entregue às autoridades portuguesas para a tramitação legal. Dentro de dois dias estará aqui. MARLI Diga-me, o senhor casou? ALBERTO Não. MARLI Não?! ALBERTO Durante a viagem, me desiludi completamente da noiva que me destinaram e desisti do casamento. Chegando a Portugal, estudei muito. Procurei no estudo o lenitivo para minha dor. Tentei a todo custo esquecer a Neli. Mas nunca pude esquecê-la. Via-a a todo momento. A sua visão acompanhou-me sempre e por toda parte. MARLI A Neli também nunca o esqueceu. ALBERTO Mas agora a minha satisfação será dupla. Pois além de salvar o senhor Fernando, castigando o verdadeiro assassino de meu pai, vou apertar novamente em meus braços, na certeza de que está inocente, a minha adorada Neli. Parece um sonho esta ventura. JUCA De La Torre sabe que o senhor está aqui? ALBERTO Não. Porém, ele sabe que eu chegaria de um momento para outro. Escrevi-lhe, há um mês, que regressaria logo que fosse possível. JUCA Então ele tá pra fugí. ALBERTO Como?! MARLI Sim, pois olhe, seu medo era que o senhor voltasse e nós mostrássemos as cartas. ALBERTO É preciso impedir a sua fuga! E não sei como fazer, pois o documento preciso para sua prisão só chegará depois de amanhã. JUCA Prende ele assim mesmo. ALBERTO Como? Se não temos prova suficiente para justificar a sua prisão? JUCA Si quisé eu pego ele. MARLI Não diga bobagens. JUCA Tive uma idéia. O senhor sabe onde nós moramos? ALBERTO Sei. JUCA Pois então leva a polícia lá amanhã às 10 horas que pega ele em fragante roubando. ALBERTO Como? MARLI Que vai fazer? JUCA Vô procurá o home e vô dizê que as carta estão na minha casa, pra ele ir lá as 10 horas que eu entrego. Ele vai e eu num tô. Ele vai procurá nas gavetas, o senhor entra, e pronto. ALBERTO Bela idéia! Ótimo! (noutro tom) Você me vai fazer um favor. JUCA Pode falá. ALBERTO Leve a D. Santa hoje mesmo ao Hospital São Paulo. Quero operá-la ainda hoje. MARLI O quê? O senhor vai operá-la?! ALBERTO Sim. Já falei com ela. Será uma surpresa que amanhã vou fazer a Neli. Restituir a vista à sua avó. MARLI Surpresa? Então não devemos dizer-lhe nada? ALBERTO Não. Não lhe digam nem que eu estou aqui. Amanhã vou fazer-lhe a surpresa e pedir-lhe perdão. MARLI Como a Neli se sentirá feliz!... ALBERTO (a Juca) Então não se esqueça. Leve D. Santa ao hospital hoje mesmo e amanhã às 10 horas, estarei com a polícia em sua casa. Finalmente, raiou o dia da nossa felicidade! Neli será muito feliz e eu também! Todos seremos felizes! Até amanhã. MARLI Até amanhã. (Alberto sai, Marli entra na igreja) JUCA (que começou a falar juntamente com Marli) A...a...até... a...a...am... (vendo que Alberto saiu) Uai, já foi?... (vai entrar na igreja, encontra Neli e D. Santa) NELI E SANTA Bom dia, Juca. JUCA Bo...bom. NELI Juca, as cartas estão bem guardadas? JUCA Eu já... já, dei... NELI Você deu? A quem? JUCA Quer dizê... mais você num dexa eu acabá de falá! Eu de...dei...xei em casa. NELI Ah! Bem. JUCA Com licença. SANTA Minha filha, orei tão fervorosamente... No meu pensamento, eu vi a Santa sorrindo para mim. Tenho certeza que a minha oração foi ouvida. NELI Quando é para a senhora ir ao hospital, vovó? SANTA Não sei, Neli. O médico não disse e eu me esqueci de perguntar. Quem sabe ele voltará aqui para me dizer? Vamos esperar. TORRE (ao fundo) Toda cautela é pouca. Mãos à obra. (descem. Francisco vai por trás de D. Santa apontando-lhe o revólver na cabeça. Torre encobre o rosto com a capa ou o chapéu e faz um sinal a Neli que inocentemente vai a ele) NELI (ao reconhecer De La Torre, num susto, em voz abafada) De La Torre!... TORRE Psiu! Se gritar, sua avó morrerá. SANTA Neli! (pausa) Neli! NELI Estou aqui, vovó. SANTA Não te afastes muito. TORRE (a meia voz) Entregue-me as cartas! NELI Não estão comigo. TORRE Onde estão? Vamos, entregue as cartas! NELI Não estão comigo! TORRE Vamos, eu tenho pressa! Vou contar até três. Se não entregá-las, tua avó morrerá. NELI Mas senhor, as cartas não estão comigo. TORRE Com quem estão? Um... dois... NELI Espera. (chorando) As cartas estão com o Juca. TORRE Com o gago? NELI Sim. TORRE Onde está ele? NELI Na igreja. TORRE Pois bem. Poupamos tua avó. Esperaremos. Mas se não for verdade o que disse, tua avó morrerá, (toque de sino) cuidado, hein! Vai sair o povo da igreja. Não faças alarde e nem dês com a língua nos dentes, porque nós estamos espreitando. (sobem, cada um fica de um lado, no 2º plano. Saem os comparsas. Saem, entre eles, Juca e Marli, que descem) MARLI Bom dia. Bom dia, D. Santa. NELI E SANTA Bom dia. SANTA Então, Marli, como tem passado? MARLI Regularmente, D. Santa. E a senhora? SANTA Passei como sempre. Mas tenho uma boa notícia. Um médico do Hospital São Paulo se prontificou a operar-me os olhos. MARLI Que bom se lhe for restituída a vista, D. Santa! NELI (baixo a Juca) Não entregues as cartas. JUCA Por quê? NELI Psiu!... MARLI Bem eu vou indo. Até logo, D. Santa. Pedirei a Santa Luzia para que a senhora seja feliz na operação. SANTA Que a Santa a ouça, minha filha. Mas diga até amanhã, pois creio que não nos encontraremos mais hoje. MARLI Como não! Vou à casa de uma amiguinha e na volta passarei por aqui. Conversaremos mais um pouquinho. SANTA Ah! Bem!... Então, até logo. MARLI Até logo, Neli. NELI Até logo. MARLI Vamos, Juca? JUCA Não. Eu fico. MARLI Até logo. JUCA Até. (Marli sai) NELI (a meia voz) Pelo amor de Deus, não entregue as cartas! Eles estão aí. JUCA Como é que não entrego. (espanto de Neli) Entrego sim, eu quero é dinheiro!... tô cansado de lero-lero. E, se eles me pagá, eu dô as carta, pronto. (Torre e Francisco, sorrindo significativamente, trocam um olhar de satisfação. Descem. Francisco vai apontar a arma para a cabeça de D. Santa, por trás. Torre vai para Neli) TORRE Se gritar, já sabe! Vamos, as cartas! JUCA Por favor!... TORRE Não tem favor! As cartas, depressa! JUCA Vira esse canhão pra lá! TORRE Então entregue as cartas! JUCA Qué vê? (vira os bolsos, mostrando que não tem nada) Ó, viu? Num tá aqui. Tá em casa. Se o senhor pagá bem, eu dô as carta. TORRE Dar-te-ei 100 cruzeiros. JUCA Não. Eu quero é 10 conto. TORRE 10 mil cruzeiros?! JUCA Num sei se é 10 cruzeiro. Eu quero 10 conto. TORRE (enérgico) E se eu não tos der? JUCA Num dô as carta. TORRE E eu te mato! JUCA E eu vou chorá! TORRE Eu não tenho aqui a quantia que você quer. Vou assinar um cheque, serve? JUCA Tá bom. NELI (enquanto Torre assina o cheque, abraçando D. Santa) Oh! Vovó, como sou desgraçada!... (chora) SANTA (acariciando-a) Que é isso, Neli?... JUCA Faiz direito, sinão num dô as carta. TORRE (entregando o cheque) Pronto. Agora vamos à tua casa buscar as cartas! JUCA (depois de guardar, com grande pose, o cheque) Agora eu num posso. Só amanhã. TORRE Miserável! Eu não sei porque não te mato! Pois bem nós iremos amanhã à tua casa. JUCA Vai às 10 horas, sinão eu num dô!... TORRE Amanhã às 10 horas em ponto estaremos lá, e se não entregares as cartas, nós te liquidaremos. (a Francisco) Vamos. (saem) NELI (numa grande explosão) Infame! Estás satisfeito? Vendeste a prova da minha inocência! A minha felicidade! Infame! Infame! Acabas de desgraçar a vida de uma pobre moça a troco de um punhado de dinheiro! Covarde! Covarde! Toma! (dá-lhe um tapa) (dos olhos de Juca caem duas lágrimas. Não tem qualquer movimento de revolta) SANTA (levantando-se) Neli! O que é isso?! NELI Não respondes? Não podes responder porque não tens força moral! Não tens vergonha! Não tens coração! Não tens alma! Tão despido és de sentimentos bons, que tendo dinheiro contigo não te importas seres esbofeteado. (Juca, com lágrima a correr sem dizer palavra, estende o cheque a Neli) Julgas que eu aceitaria esse dinheiro? Guarda-o para ti! Faz com ele a tua felicidade! (sentimento) Lembra-te sempre que ele representa a infelicidade desta que o amou como a um irmão... (chora. Juca vai a D. Santa e diz-lhe qualquer coisa ao ouvido. Esta acena a cabeça, como quem compreende) SANTA (chamando) Neli! (pausa) Neli! NELI (indo a ela) Aqui estou, vovó. SANTA Vai arranjar-me um pouco d’água. Estou com sede. (Neli sai) Neli já foi? JUCA (que subiu também) Já. (desce) SANTA Queria falar a sós comigo. Que é, Juca? JUCA D. Santa, o seu Alberto já voltou. SANTA (surpresa, alegre) Que diz?! JUCA ...E é ele que vai operá o seu zóio. SANTA (crescendo de alegria) Então ele é o bom médico que prometeu operar-me?! JUCA É. E eu já dei as carta pra ele. SANTA (curiosa) E que ele disse? JUCA Disse que vai pô o seu Torre na cadeia; vai tirá o seu filho da cadeia e vai casá co’a senhora. Não, não. Vai casá co’a Neli. SANTA (muita alegria) E por que você não disse a Neli? JUCA Porque ele pediu pra num falá. Ele qué fazê surpresa pra ela. SANTA (muito alegre) Como minha netinha vai ficar contente! JUCA Mais a senhora num fala nada pra ela não, hein! SANTA Não falarei... mas não sei se poderei esconder a minha alegria. JUCA D. Santa, eu recebi um cheque de seu Torre, pra dá as carta pra ele. Mas foi tapiação. Toma. (vai dar o cheque) SANTA Não, Juca, eu não devo aceitar esse dinheiro. JUCA Como não!? Ele pagô cum esse dinhêro, sem querê, um pouco do sofrimento que a senhora e a Neli teve por causa dele. Pode ficá!... Esse dinhêro é de vocêis. SANTA Obrigada, Juca. (pega o cheque) JUCA O seu Alberto disse que é pra eu levá a senhora no Hospital São Paulo, hoje mesmo. SANTA Então iremos daqui a pouco. JUCA E a Neli? SANTA O Dr. Alberto pediu-me que a não levasse. Contudo, vamos esperá-la. Quero falar-lhe. JUCA Então eu volto daqui a pouco. SANTA Sim. Venha para levar-me ao hospital. (Juca sai. Neli entra com uma caneca d’água) NELI Aqui está a água, vovó. SANTA (bebe) Obrigada, Neli. (Neli guarda a caneca num embornal, de onde havia tirado) Minha querida neta, não posso conter-me! Que felicidade te espera! NELI Que felicidade posso eu esperar, vovó? Agora, que morreu a minha esperança, que desapareceu a única prova de minha inocência aos olhos de Alberto? SANTA Neli... NELI (um momento sem compreender) Ah!... Já sei, a senhora se refere ao médico que prometeu curá-la. SANTA Sim... é... isso mesmo. NELI Sim, vovó, será para mim uma grande felicidade. Mas creia que nunca mais serei completamente feliz. SANTA Bem, minha filha, vou pedir-te um favor. Vai para a casa de Marli. Juca me vai levar ao hospital. Vou ser operada hoje mesmo. NELI Hoje, mesmo?! SANTA Sim. Enquanto foste buscar água o médico esteve aqui e disse ao Juca que me levasse ao hospital. NELI Não, vovó. Eu mesma a levarei. Depois do que o Juca acaba de fazer, já não merece a nossa confiança. SANTA Ele não é um infame, um ambicioso, minha filha. Mais tarde saberás. Aqui está o cheque que ele recebeu de De La Torre. NELI O quê? Minha avozinha teve coragem de aceitar esse dinheiro? SANTA Neli, procura compreender... Escuta... não te posso dizer, mas creia-me, Neli, agora seremos completamente felizes. NELI Seremos sim, vovó... (falando consigo, afastando-se de D. Santa) Até minha avó!... Até minha avó pouco importa que tenha sido vendida a minha honra, contanto que tenhamos agora 10 mil cruzeiros. Agora se sente feliz... Oh! Meu Deus, até minha avó... Só me resta morrer. (como que tomada de uma idéia) Sim, só me resta morrer!... (entra Juca) Vovó disse-me que vais acompanhá-la ao hospital. Podes ir. JUCA Neli, eu num tô com raiva de você não. O tapa que você me deu num dueu... mais depois ele vai doê ni você. (indo a D. Santa) Vamos, D. Santa? SANTA Neli. NELI Que é, vovó? SANTA (abraça-a) Minha querida netinha. Vá para a casa de Marli e ora. Ora bastante para que seja bem sucedida a operação. NELI Sim, vovó. Vá, que Deus há de guiar a mão do bondoso médico. SANTA Bondoso! Oh! Sim, ele é muito bom, e tu o deves querer muito, sempre... sempre... é ele quem nos vai restituir toda a felicidade perdida. Vamos, Juca. (saem) NELI (só) Parece incrível! Minha avó, que parecia adorar-me, que parecia sofrer tanto com meu infortúnio, já se sente completamente feliz porque talvez lhe seja restituída a vista. E porque tem em suas mãos bastante dinheiro, embora tenha ele vindo das mãos do causador das desgraças que nos acompanham há 12 anos; embora esse dinheiro represente a venda da minha inocência, o desaparecimento irremediável das minhas esperanças, a minha perda... Oh! Meu Deus, depois de tanto sofrimento por que me reservou esse golpe horrível? Que me adianta viver mais?... (entra De La Torre e Francisco. De La Torre faz-lhe um sinal para se afastar dali, Francisco sai) Até a minha avó... ninguém se importa com a infelicidade alheia! TORRE Nem todos. NELI O senhor ainda aqui?! Não está satisfeito? TORRE Não se altere... Vou provar que sei ser reconhecido. Agora que vou reaver as cartas, quero dar-te dinheiro para ires com tua avó embora desta cidade. NELI (revolta) Prefiro morrer à fome, do que receber dessas mãos imundas um níquel siquer! TORRE Pois sim... Já que não queres atender-me por bem, previno-te que, se até amanhã, ao meio dia, estiverem nesta cidade, será o teu último dia de vida! NELI Matar-me? Que me importa morrer? TORRE E será o último de tua avó, compreendeu? De tua avó! (pausa) O bom senso te aconselha que aceites o dinheiro que te ofereço e desapareça. NELI Por piedade, senhor, não obrigue minha avó a ir embora desta cidade. Ela não resistiria à dor de afastar-se daqui, onde está seu filho, onde está meu pai. Eu prefiro morrer a vê-la sofrer este golpe. TORRE Morrer? NELI (tomando uma resolução) Escute, senhor. Poupe esse desgosto à minha avó e até amanhã eu deixarei de existir. TORRE Ah! Bem!... Sendo assim, chegaremos a um acordo. NELI Peço-lhe unicamente uma coisa; se um dia Alberto voltar, diga-lhe que morri com todo o meu pensamento voltado para ele. TORRE Estás então decidida a suicidar? NELI Sim. Tenho vivido para justificar-me perante aquele que adoro mas, visto que estou condenada a não fazê-lo, prefiro morrer. (vai a sair) TORRE Onde vai? NELI Por aí... Procurar a morte... TORRE Peço permissão para fazer-te um presente. (dá-lhe um revólver. Muito cínico) Se quiseres, podes fazer uso dele. Está carregado. NELI Obrigada. (vai a sair) Faça-me o favor. Diga-me. Por que o senhor faz tanta questão que eu vá embora daqui ou morra? TORRE Em absoluto, não faço questão. É para o teu próprio bem. Pois aqui nunca te poderás reabilitar. És, aos olhos de todos, uma ladra. E como Alberto deverá regressar nesses poucos dias... NELI (atalhando) Alberto aqui?!... Compreendo então! Está com medo que eu conte a ele todas as suas infâmias, que eu o desmascare! TORRE Seria inútil, ele não acreditaria. NELI Mas se eu mostrasse as cartas, Alberto não duvidaria. TORRE Sim, mas as cartas... NELI As cartas não lhe serão entregues! TORRE Não esqueças do que te preveni!... NELI Já não temo ameaças! Agora que tenho a certeza de que Alberto voltará, nada temo! Correrei à casa de Juca e impedirei que lhe sejam entregues as cartas! (Torre vai se aproximar para tirar-lhe o revólver. Apontando-lhe a arma) Afaste-se! TORRE (covarde) Dê-me esse revólver. NELI Poderia agora matar-te para vingar-me do que me tens feito! TORRE Mas... Srta. Neli... NELI Senhorita Neli!... Que medo, hein?... Desconheces o brio, a honra, a dignidade, o caráter, o amor ao próximo e além de tudo, és covarde!... Infame! Não te vou matar... (entra Francisco, por trás de Neli) mas não deixarei que te entreguem as cartas! Hei de mostrá-las ao Alberto para que ele saiba que tu és o assassino do seu pai e que, com o teu cúmplice, Francisco, caluniaram-me, fazendo-lhe casar com uma mulher que ele não ama! (Francisco tira um punhal) Infame! Tu e o teu cúmplice irão pagar os seus crimes! Covarde! (Francisco ergue o punhal. Vai se aproximando de Neli) Covarde! Covar... (Francisco crava-lhe o punhal. Neli cai) FRANCISCO (afobado) Fujamos agora mesmo daqui. TORRE E as cartas? FRANCISCO Deixe as cartas! TORRE (cínico, depois de uma risadinha) Bem se vê que não tens experiência. A fuga levantaria suspeitas. Amanhã, às 10 horas, fingindo ignorar tudo, iremos à casa do gago buscar as cartas. A nossa situação melhorou 100%. Esta morta, e as cartas em nossas mãos, estaremos livres da acusação que nos podia atirar à cadeia. Alberto nunca saberá que fui eu quem matou e roubou seu pai. Vamos. MARLI (entra. Ao ver Neli corre a ela, assustada) Neli! (pega-a) Neli! (esta volta a si) Que foi isto?! Quem foi? NELI (com dificuldade) Francisco... eu ouvi a sua voz. MARLI Francisco?! Por quê? NELI As cartas. MARLI Juca as entregou a Alberto. Ele já regressou. Sabe de tudo. NELI Então já sabe que estou inocente? MARLI Sim. NELI Graças, meu Deus!... MARLI Quando encontramos com vocês, o Juca já havia dado as cartas. NELI (surpresa) Já?! MARLI Sim. Eu e Juca não dissemos nada a você, porque Alberto pediu-nos que nada disséssemos. NELI Ah! Sim... e como foi nobre o gesto de seu irmão!... Agora compreendo as suas palavras... o tapa que eu lhe dei, não doeu nele, mas agora dói em mim. Marli, diga-lhe que antes de morrer eu lhe pedi perdão. O Juca me perdoará, porque ele é bom, é muito bom. MARLI Escute, Neli, Alberto não casou. Disse-nos que a ama muito, que nunca esqueceu você! NELI (com um sorriso) Sim?... Como me sinto feliz, muito feliz... Marli, quero ser enterrada com o vestido que Alberto me deu. O meu vestido de noiva. Não pudemos unir-nos no mundo, mas eu o esperarei lá no céu. Lá, junto a Deus, seremos todos felizes... Lá existe a felicidade completa, diga-lhe que eu o esperarei, que o amor é eterno, que o esperarei lá no céu... lá no ... cé...u... (morre) Quinto Ato Casa pobre. A E. uma cama com 4 velas. Neli está morta, coberta com filó. A E. uma pequena mesa e duas cadeiras. Só. Ao abrir a cortina, estão em cena Marli e Juca. MARLI Pobre moça... sofreu tanto... Ela sorri. Parece sentir-se feliz... Agora que está descansando na paz de Deus. SANTA (entra Alberto e D. Santa que está com os olhos vendados com gaze. Alberto, ao chegar à porta, vendo o cadáver de Neli, pára, extático, fitando-o . Ainda fora) Neli! Neli! (entram) Neli, já estou boa! (grande alegria) Vou ver-te! Vou ver-te, minha netinha. ALBERTO (consigo, sem alarde, sofrimento íntimo) Morta!... MARLI (que já deve estar perto de Alberto) Coragem... SANTA Mas, Neli não está aqui?! ALBERTO (a Marli) Não lhe contem. Não deixem que ela perceba, leve-a para o quarto. (vai ao cadáver) MARLI D. Santa. SANTA Ah! É você Marli! (sempre alegre) Já fui operada. Tenho fé que já estou boa! MARLI Sim, sim, D. Santa, mas a luz poderá fazer-lhe mal. O Juca a levará para o quarto. SANTA E Neli, onde está? MARLI A Neli?... Saiu um pouco, mas voltará. SANTA (numa grande alegria) Quando ela vier, deixem que seja eu a primeira a revelar-lhe toda a nossa felicidade, agora, em recompensa dos 12 anos de sofrimento. Dizer-lhe que me foi restituída a vista, que foi restituída a liberdade a seu pai. E toda essa felicidade a devemos ao seu querido Alberto! Dizer-lhe que ele esta aqui para fazer dela a esposa mais venturosa! Oh! Como ela se sentirá feliz, meu Deus! Marli, perdoe-me a minha expansão, mas sinto-me tão feliz! E estou pouco habituada à felicidade!... Avise-me logo que ela voltar. (sai com Juca ) ALBERTO (consigo) Não voltará, não voltará nunca mais!... MARLI Coragem, Sr. Alberto. ALBERTO Sinto-me estrangulado, sem forças para expandir a minha dor... estão mortas em mim todas as forças sensitivas. (calmo) Como foi? MARLI Francisco matou-a. ALBERTO (revolta íntima, entre dentes, com ódio) Infame!... MARLI Antes de morrer, ela disse-me que se sentia feliz porque o senhor a amava e ela também o amava muito. Disse-me também que não puderam unir-se no mundo mas que ela o esperaria no céu. ALBERTO (a Marli) Vá para o quarto. É preciso impedir que D. Santa saiba o que se passa. Pode-lhe ser fatal. (Marli sai) Juca, são quase 10 horas e dentro de alguns minutos a polícia estará aqui, conforme combinamos. Com eles virá também o pai da Neli, que o espera. (Juca sai. Indo a Neli e descobrindo-lhe o rosto. Fala-lhe.) Neli! Neli! (pausa) Não me respondes... Teus lábios não se movem, mas estou bem certo, tua alma está me ouvindo... Sinto que tua alma estará sempre voltada para mim, não é Neli? Morreu sorrindo... É feliz, porque já pertence a um mundo melhor, porque já não sofrerá mais... Foi melhor assim. Sofreste, meu amor, padeceste tanto, que a recompensa de tanto sofrimento só Deus poderia proporcionar, lá no céu, onde tu te achas... Não é assim, Neli, meu amor?... Agora és feliz, completamente feliz. Neli, vem um dia, vem buscar-me. Juntos gozaremos essa felicidade eterna. Espero-te, Neli... (pausa, entra Juca e fala-lhe ao ouvido) ALBERTO Diga à polícia que fique nas imediações aguardando os acontecimentos e manda o Sr. Fernando entrar. Porém, antes, previna-lhe o que se passa. (Juca sai, entra D. Santa, conduzida por Marli) SANTA (chamando) Sr. Alberto!... ALBERTO Aqui estou, D. Santa. SANTA Marli disse-me que De La Torre deverá chegar daqui a pouco! Quero estar aqui. Quero dizer-lhe: Veja, senhor, como Deus não nos abandonou. As suas infâmias já estão descobertas, não o tememos. Agora somos felizes. A vista me vai ser restituída, meu filho sai hoje da cadeia, minha netinha vai casar-se com o Sr. Alberto. Vê, senhor, veja como Deus não esquece os que Dele se lembram, dando-nos hoje uma felicidade completa! (noutro tom mais calma) Tudo isto quero dizer ao Sr. De La Torre! ALBERTO D. Santa, seu filho já saiu da cadeia. Está aí fora. SANTA (a um grito de alegria) Meu filho?! Meu filho aqui?!... Quero abraçá-lo! (Fernando entra e pára, na porta, contemplando o cadáver da filha. As lágrimas caem-lhe, vai dando mostras de gritar) MARLI (indo a ele, a meia voz) Cuidado. Sua mãe nada sabe. Não a deixe perceber. SANTA Vamos, digam a meu filho que entre, diga-lhe que sua mãe está aqui. FERNANDO Minha mãe!... (abraçam-se) SANTA Meu querido filho! Como ansiava por este dia. Que saudades tinha de apertar-te nos meus braços. Parece um sonho! Pensei que não chegaria a ver-te livre da prisão, que nunca mais te abraçaria, meu filho. Mas agora tenho-te bem junto de mim. Deus atendeu as minhas orações. Atendeu as orações da Neli. Agora seremos todos felizes... FERNANDO (chorando) Felizes?... Pobre mãe... SANTA Que é isso, meu filho?! Choras?!... (pausa) Ah! Sim, meu filho, as tuas lágrimas são de alegria!... Derrama-as , meu filho. Ate agora teus olhos verteram lágrimas de dor e de desespero. Deixa que deles, neste momento tão feliz, caiam, em profusão, lágrimas, muitas lágrimas de contentamento. Chora, chora, meu filho, esgota todo o pranto que tens dentro de ti para não mais chorares, porque agora seremos felizes, completamente felizes... eu , tu e a nossa querida Neli. FERNANDO (numa explosão de dor) Oh! Não! Não posso ocultar a minha dor! (correndo para o cadáver da filha) Minha filha! Minha filha! (abraçando-a) Minha pobre filha!... (abraça-a e beija-a chorando) SANTA Mas, o que há!? Por que esse desespero? Neli está aqui? Não me respondem? (num crescendo de desespero) Quero saber o que há! Que se passa? Quero ver a minha neta! (procura tirar a venda, como louca) Quero ver!... Tirem-me a venda! Alguma coisa se passa que não me querem dizer!... MARLI Cuidado, D.Santa. ALBERTO Se a senhora fizer assim, a vista não lhe voltará. SANTA Quem sabe, talvez já esteja boa. Quero ver, quero ver o que se passa! (tenta novamente tirar a venda) ALBERTO Pois bem, eu vou tirar-lhe a venda, D. Santa. Mas devo preveni-la de que isto deveria ser feito só daqui a 15 dias, e que portanto, vai ficar inutilizada a operação. Mas, se a vista lhe voltou, tenha coragem, muita coragem, porque se os olhos nos mostram as belezas da vida, também nos mostram as suas desgraças. SANTA (passa a mão pelos olhos, vira-se vagarosamente e dá com o cadáver de Neli) Que é isto?! Seria ilusão? É um cadáver que estou vendo ali? Digam-me! Digam-me! Não pode ser!... É ilusão! ALBERTO É a realidade!... Ali está o cadáver de Neli. SANTA Minha neta!... (vai a ela) Meu Deus!... Que fatalidade... Depois de 12 anos de trevas, o que primeiro deparo é o cadáver de minha netinha. (fala-lhe) Neli! Neli! Minha netinha!... Como é linda!... É como eu a via na minha imaginação. Pediste tanto a Deus que a vista fosse restituída à tua avozinha que Ele atendeu... Como é lindo o seu vestido de noiva! Eu já o conhecia, tantas vezes me falou dele.. Minha pobre Neli... E como eu ansiava por vê-la assim vestida... Que fatalidade!... Eu que supunha ser hoje o dia mais feliz da nossa vida (t) Mas, não devo lastimar... Deus chamou-te para si. Agora és feliz, completamente feliz, no céu. E eu devo agradecer ao bom Pai que me fez voltar a vista a tempo de ver a minha netinha, antes de levá-la deste mundo... Deus é bom, é sempre bom... (dirigindo-se a todos) Não devemos chorar, porque agora ela é feliz. Só o céu poderia proporcionar-lhe uma felicidade pura como ela merecia, tão pura como eram os seus sentimentos, como era o seu amor. FERNANDO (ódio) Juca não quis me dizer quem foi o assassino de minha filha. Peço-lhes que me digam para que eu vingue a sua morte. MARLI Foi... ALBERTO (atalhando) Não, não lhe diga. (a Fernando) Não cometas loucura. (depois de consultar o relógio) Peço-lhes, por favor, me deixem só nesta sala por uns instantes. Logo eu os chamarei. (saem D. A. Alberto vai até Neli, olha-a um momento e sai E. A.) TORRE (entra com Francisco) Justamente o que esperávamos encontrar. FRANCISCO Não posso ver esse cadáver, sinto arrepios! TORRE Espera-me lá fora. Se houver necessidade, eu chamarei. (De La Torre acompanha Francisco até a porta, F. D., ficando de costa para a E., de onde surge Alberto) (Ao virar-se dá com Alberto. Susto) Alberto! ALBERTO Está satisfeito? Contempla este quadro fúnebre, e deixa a tua alma deleitar-se ao ver coroada de êxito a tua tarefa. TORRE (covarde) Juro por Deus. Não foi eu quem a matou. ALBERTO Não jures! O nome de Deus não deve passar pela boca de um miserável, assassino e ladrão. TORRE (forte) Alberto! ALBERTO Assassino e ladrão, repito! Mataste e roubaste ao meu pai. E na ânsia de aumentar a tua fortuna, pretendeu fazer-me casar com quem não amava, lançando mão para isso da calúnia contra esta infeliz, vítima da tua ambição desmedida. E agora esse miserável que tem a alma tão negra como a tua, matou esse corpo já semi-morto pelos sofrimentos infligidos por ti. TORRE Cala-te!!! ALBERTO Eu poderia matar-te, miserável! Só não o faço para não tornar-me um teu igual, um criminoso! TORRE (ódio) Alberto! (vem entrando pela D. D.Santa, Fernando e Marli, atraídos pelas vozes) ALBERTO Para punir-te, espera-te a cela fria de um calabouço! TORRE Fernando!!! FERNANDO (A D. Santa) Este é o miserável que causou toda a nossa desgraça! (ameaça avançar) TORRE (apontando o revólver, a todos) Não se aproxime! A mim ninguém prenderá. A cadeia não foi feita para homens da minha marca! (entram, agarrando-o, Juca e dois policiais) POLICIAL (depois de subjugar De La Torre) E o outro? (Francisco aparece na janela) ALBERTO O outro não apareceu, mas eu me incumbo de procurá-lo e entregá-lo à justiça! (Francisco atira pela janela e foge. Um policial e Juca saem correndo) SANTA (a Alberto) Está ferido?!... ALBERTO (calmo) Não. Não estou. (entram Juca e policial segurando Francisco) POLICIAL Aqui está o outro. ALBERTO Podem levá-los. (saem policiais, Torre, Francisco e Juca. Alberto cambaleia, ferido) SANTA Ele está ferido sim, chamem um médico depressa. ALBERTO Não, não chamem médico, não é preciso, Neli chama-me... E eu vou... (andando amparado por Fernando, até onde está Neli) Eu vou, Neli. Agora seremos felizes, completamente felizes. (faz um gesto de quem sentiu dor no ferimento, nos rins, erguendo a cabeça, num gesto natural, vê o imaginário espírito de Neli) Neli! Neli!!! Vejam, é a Neli! Vem buscar-me... (t) Não estão vendo? Está à porta do Reino da Felicidade Completa e Eterna. (t) Vem buscar-me, Neli, e eu vou... eu vou contigo... eu... (morre) FERNANDO Morto!... MARLI Amor tão belo e tão puro, nem a morte poderá destruir. SANTA E continuarão as suas almas a amarem-se eternamente... sempre... sempre... (vão então até onde está Alberto e ajoelham-se, encobrindo-o, para a sua saída. Apagam-se as luzes, apenas um instante, o suficiente para a saída de Alberto) APOTEOSE Cenário: Céu. Uma escada de nuvens. No topo está Neli, vestida de noiva. Desce vagarosamente a escada e vai à coxia, estendendo a mão e trazendo Alberto. O par sobe a escada e uma porta no céu, em forma de coração vai se abrindo. Entram, olham-se e a porta se fecha. FIM Este livro tem como base a pesquisa desenvolvida para a dissertação Antenor Pimenta e o Circo-Teatro Rosário – Uma História do Circo-Teatro no Brasil, escrita por Daniele Pimenta para o Programa de Mestrado em Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, realizado sob orientação da Dra. Silvana Garcia e concluído em abril de 2003. AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente à querida Neyde Veneziano pelo carinho, amizade e estímulo inestimáveis e, mais do que tudo, pelo extraordinário exemplo de dedicação em seu esforço contínuo para abrir portas (e mentes!) para que o teatro popular e seus artistas sejam reconhecidos e respeitados. Ao meu mais que marido, parceiro na vida, Edu. Pelo amor intenso, por participar, por dividir, por acrescentar. E à pequena Beatriz, pelo carinho e tantas alegrias. Aos meus queridos pais, Gê e Tabajara, e aos meus irmãos, Pat e Tabinha, por uma vida inteira de amor, pelo apoio incondicional em todas as minhas escolhas e pelas pessoas maravilhosas que trouxeram à minha vida. A Silvana Garcia, pela confiança e pela orientação cuidadosa durante meu mestrado, e a Ubirajara Reis Pimenta, Yara Rocha Ferraz, Cecília Beraldo Rosa, Alípio Gomes Miguel, Helton Pimenta, Antônio Santoro Jr., Tabajara e Gê Pimenta, pela enorme contribuição em suas entrevistas para minhas pesquisas, em particular a Marly Pimenta Vecchi, filha de Antenor Pimenta, que me confiou as preciosidades deixadas por seu pai. Todas as fotografias deste volume pertencem ao acervo da família Pimenta. Capa: ilustração a partir de cena da peça Os Dois Garotos Imprensa Oficial