Walderez de Barros Voz e Silêncios Governador Geraldo Alckmin Secretário Chefe da Casa Civil Arnaldo Madeira Imprensa Oficial do Estado de São Paulo   Diretor-presidente Hubert Alquéres Diretor Vice-presidente Luiz Carlos Frigerio Diretor Industrial Teiji Tomioka Diretor Financeiro e Administrativo Alexandre Alves Schneider   Núcleo de Projetos Institucionais Vera Lucia Wey Cultura Fundação Padre Anchieta Presidente Marcos Mendonça Projetos Especiais Adélia Lombardi Diretor de Programação Rita Okamura Coleção Aplauso Perfil   Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Coordenador Operacional e Pesquisa Iconográfica Marcelo Pestana Revisão Andressa Veronesi Projeto Gráfico  e Editoração Carlos Cirne Walderez de Barros Voz e Silêncios Por Rogério Menezes Cultura Fundação Padre Anchieta Imprensa Oficial São Paulo - 2004 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Menezes, Rogério. Walderez de Barros : voz e silêncios / por Rogério Menezes. – São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São Paulo : Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2004. – 272p. : il. - (Coleção aplauso. Série perfil / coordenador geral Rubens Ewald Filho). ISBN 85-7060-233-2 (obra completa) (Imprensa Oficial) ISBN 85-7060-285-5 (Imprensa Oficial) 1. Atores e atrizes de teatro – Brasil – Crítica e interpretação 2. Barros, Walderez de 3. Teatro brasileiro 4. Teatro brasileiro – Crítica e interpretação I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série. 04-5409 CDD – 791.092 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 1.825, de 20/12/1907). Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 - Mooca 03103-902 - São Paulo - SP - Brasil Tel.: (0xx11) 6099-9800 Fax: (0xx11) 6099-9674 www.imprensaoficial.com.br e-mail: livros@imprensaoficial.com.br SAC 0800-123401 À Guisa de Epígrafe Pedi a Walderez de Barros que fizesse dedicatória que abrisse este livro. Depois de pensar por algum tempo, enviou-me e-mail em que afirmava que, na verdade, preferiria abrir este livro com, à guisa de epígrafe, poema de Cecília Meireles e frase de Eleonora Duse. Eis o poema de Cecília Meireles, incluído no livro Cânticos: “Não sejas o de hoje. Não suspires por ontens... Não queiras ser o de amanhã. Faze-te sem limites no tempo. Vê a tua vida em todas as origens. Em todas as existências. Em todas as mortes. E sabe que serás assim para sempre. Não queiras marcar a tua passagem. Ela prossegue: É a passagem que se continua. É a tua eternidade... É a eternidade. És tu.” Eis a frase de Eleonora Duse: “Na arte, jamais busquei o sucesso, mas apenas o refúgio.”   Sobre esta frase e sobre Eleonora Duse, Walderez de Barros enviou-me posteriormente o seguinte e-mail: Tenho esta frase sempre no meu camarim, escrita numa foto de Duse, que é meu ‘santinho de camarim’. Não sei se você sabe, ela foi uma atriz italiana contemporânea de Sarah Bernhardt, rivais em certo sentido, mas completamente diferentes em tudo. Sarah era uma estrela; a Duse era uma atriz, uma artista. Enquanto a outra, como, aliás todas as atrizes da época - fins do século XIX - se vestia luxuosamente, se cobria de jóias, usava maquiagem pesada, Duse entrava em cena de cara lavada, sem nenhum artifício. E magnetizava o público. Ambas tinham como trunfo A Dama das Camélias. Pelos relatos de personalidades e críticos da época, eram interpretações eletrizantes, mas radicalmente opostas. Duse foi a primeira a compor personagens usando um pouco de psicologia, interiorizava suas personagens, se dilacerava em cena. E fora de cena também. Teve um romance com a besta do D’ Annunzzio - será que é assim que se escreve? - insistia em encenar seus textos literários e nada teatrais, perdeu dinheiro mantendo as peças dele no repertório, mesmo quando ele a abandonou. Magnânima. Li várias biografias dela e, com muito deleite, suas numerosas cartas, nas quais ela se expõe de peito aberto. Essa frase dela foi um tesouro que achei numa dessas cartas. Há uma outra que também uso de vez em quando e que ela deu como resposta malcriada, quando questionada sobre seu modo de se apresentar: ‘Sou bonita quando quero.’ Ela era filha de artistas itinerantes, nasceu no meio de uma excursão, começou a representar por acaso e por necessidade financeira. Durante muito tempo também não sabia o que ia ser quando crescesse, até que se convenceu que não podia viver sem o teatro. Ou não sabia fazer outra coisa. Enfim, ela me fascina. A frase dela me ajudou a entender melhor minha relação tumultuada e passional com o teatro. Eu me acalmei, de certa forma fiz as pazes com os deuses do teatro. Walderez de Barros Apresentação A primeira vez que vi aquela morena mignon com olhos de ressaca tinha 14 anos, era 1968 – e chovia. Não lá fora. Mas na tela da TV preto e branco de segunda mão em que tentava assistir mais um emocionante capítulo de Beto Rockfeller, exibido pela TV Tupi. Não sei se você, caro leitor, é dessa época, mas as imagens televisivas de antanho costumavam, pelo menos nos altos grotões do interior da Bahia onde então morava, ser, para dizer o mínimo, de duvidosíssima qualidade. Entre chuvisco e outro, entre imagens que subitamente desapareciam e outras em que seres humanos adquiriam espectrais aspectos de fantasmas, tentava acompanhar, com vivo interesse, as aventuras de vendedor de sapatos que tentava, de todas as maneiras, se dar bem entre as garotas da alta (e da baixa) sociedade paulistana. Uma dessas garotas era exatamente aquela morena mignon, a espevitada Mercedes, que namorava Vitório (Plínio Marcos) que era o melhor amigo de Beto (Luiz Gustavo). Senti imediata simpatia por aquela atriz que a representava, da qual não tinha a mais remota idéia de quem fosse. Ao ler a revista Intervalo, a bíblia das celebridades da TV daquela época, algum tempo depois, matei a charada: aquela morena mignon com olhos de ressaca chamava-se Walderez de Barros. Mais: em prova cabal de que a arte sempre que pode imita a vida, era casada com Plínio Marcos, exatamente o ator (e depois grande dramaturgo, um dos mais importantes do país) que interpretava o namorado dela na novela. Saber que era casada, não arrefeceu o meu ânimo de querer vê-la diariamente. Submeti-me àqueles chuviscos e àqueles fantasmas durante todo o ano seguinte (Beto Rockfeller foi ao ar entre 4 de novembro de 1968 e 30 de novembro de 1969). Não me arrependi: havia algo naquela morena mignon que me fascinava. Talvez as olheiras, algo existencialistas, algo machadianas, que marcam o rosto da atriz até hoje. Talvez. Foi bom enquanto durou. Ao final da novela, mudei de cidade (troquei a pacata Jequié pela já efervescente Salvador), de amigos, e de interesses. Telenovelas passaram a me interessar tanto quanto decifrar equações matemáticas de qualquer grau. Vez em quando, já em televisões menos chuvosas e menos fantasmagóricas, acho que a revi em João Juca Junior (1970), Simplesmente Maria (1971) e O Machão (1974). Mas sempre assim de passagem, de relance. Até que, bombardeado por mil e uma novas informações e novas vivências, aquela morena virou remota batucada. Remota, mas recorrente. Muito tempo depois, em viagens profissionais-culturais a São Paulo, tentei conhecê-la pessoalmente assistindo espetáculos em que a agora-grande-atriz-de teatro atuava. Reencontrei-a em Mocinhos e Bandidos, de Fauzi Arap (1979), Madame Blavatsky, de Plínio Marcos (1985) e Solness, O Construtor, de Henrik Ibsen (1989). As marcas do tempo já começavam a vincar o rosto da atriz, mas os olhos de ressaca e, claro, o talento dramático continuavam intactos. Cheguei até a pensar em procurá-la nos camarins para cumprimentá-la. Mas a timidez sempre falou mais alto – e a vida continuou. Em 1996, morando em São Paulo e mais velho, já não tinha mais nenhum preconceito contra telenovelas (desde que fossem boas telenovelas; e era o caso), flagrei-me novamente hipnotizado pela TV (agora, claro, sem chuviscos e sem fantasmas). A culpada: O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa e direção (soberba) de Luiz Fernando Carvalho. Lá pelas tantas, eis que entrava em cena aquela morena de antanho, o rosto ainda mais vincado pelo tempo, mas com os olhos de ressaca e o talento dramático absolutamente os mesmos. Grudei ainda mais os olhos na TV, e constatei: era Walderez de Barros dando corpo e alma à personagem chamada Judite, espécie de sombra de Jeremias Berdinazzi, personagem interpretado por Raul Cortez. Ambos grandes atores, faziam fascinante jogo de luz e sombra, em que ora um era luz e o outro, sombra; ora um era sombra e o outro, luz. A bordo de maturidade dramática notável, materializava-se ali o diamante que começara a se lapidar desde os tempos de Beto Rockfeller. Não pude impedir que certa de sensação de felicidade, até mesmo de euforia, me tomasse. Era como flagrar a trajetória profissional vitoriosa de alguém muito íntimo e, pura projeção, a minha também. Resultado: não perdi um capítulo sequer daquela emocionante novela. A vida continuou outra vez. Em dezembro de 2003, já em outra cidade, agora em Brasília, surge a inesperada, e bem-vinda, possibilidade de escrever para esta Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado. Entre vários nomes sugeridos a Rubens Ewald Filho, coordenador deste projeto editorial, fiz questão de, pelas questões reveladas nos parágrafos anteriores, incluir o nome de Walderez de Barros. Sugestão aceita, perco a timidez, e inicio o processo de sondagem e de agendamento dos encontros gravados que possibilitariam a realização deste livro. Rápido no gatilho, descubro o e-mail e o número do telefone da atriz. Timidez não totalmente perdida, prefiro iniciar a abordagem por e-mail. Escrevo-lhe longo bilhete. Menos de duas horas depois, recebo resposta: “Rogério, Sinto-me honrada com a lembrança do meu nome para fazer parte desse projeto. Podemos conversar a respeito. Aguardo seu telefonema. Abraços, Walderez”. Exatamente 36 anos depois daquele primeiro contato virtual, a vontade de este agora- jornalista-escritor ter contato real com esta agora-uma-das-grandes-atrizes-brasileiras enfim se materializava. Problemas de ambas as partes (ela, às voltas com a estréia de Fausto Zero, com direção de Gabriel Villela) fazem com que as entrevistas que compõem este livro não pudessem ser imediatamente agendadas. Enfim, a 18 de abril, jornalista-escritor e atriz, entrevistador e entrevistada, se encontram. No meio de tarde de calor infernal, toco a campainha de apartamento de prédio (daqueles supercharmosos construídos nos anos 50, com lobby de pé-direito altíssimo) da Rua Prof. Picarollo, a poucos metros da Avenida Paulista, na região central de São Paulo. Atende-me à porta simpática senhora, no fulgor e no esplendor dos seus 63 anos, que me recebe como se havia muito me conhecesse. (Era Walderez de Barros, que continua morena mignon com os olhos de ressaca de sempre e, confirmando a suspeita de muitas décadas, gentilíssima e sensibilíssima dama). Também me senti em casa, também me senti como se conhecesse aquela mulher havia muito tempo – e, no meu caso, de fato conhecia. Quatro dias depois, horas e horas de conversas que tentaram virar a vida e a carreira da atriz pelo avesso gravadas, missão cumprida, volto para Brasília. Na cabeça duas sensações: a) de que havia (afinal) conhecido mulher formidável, sincera, corajosa, firme e, basicamente, rica de histórias e de reflexões que, justíssimamente, são aqui registradas para a posteridade; b) de que esse encontro deveria ter acontecido há muito mais tempo. Mas, como diz Walderez de Barros no epílogo deste livro, as coisas só acontecem quando têm de acontecer. Bom espetáculo! Digo, boa leitura! Rogério Menezes Prólogo Meus avós são mistura de espanhóis com italianos. Minha família paterna é da Espanha. De Málaga, na Andaluzia. A família da minha mãe era italiana. Minha avó era de Nápoles. O meu avô, da Calábria. O avô espanhol se chamava Dom Carlos Martinez Rodriguez, que, ao chegar ao Brasil, virou Martins. Os espanhóis, como você sabe, assumem o sobrenome materno. Então os que nasceram no Brasil já tiveram o sobrenome Martins. Dos bisavós, não tenho notícia. A história do meu avô espanhol é interessante. Isso soube por narrativas, não cheguei a conhecê-lo. Essas narrativas viraram um pouco folclore familiar e, desde criança, ouvia algumas histórias vividas por Dom Carlos. Era metido em política na Espanha, e, pelas histórias que contam, era um pouco aventureiro. A minha avó era de família muito rica. A família de minha avó proibiu o namoro dos dois, e eles fugiram. Meu avô raptou a minha avó, e se casaram escondido, à revelia da família. Ficaram lá na Espanha por mais um tempo, tiveram alguns filhos lá. Ele também era muito rico, mas se envolveu com alguma trapaça, algum rolo, acho que tinha alguma coisa de política envolvida no meio. Então passou a mão na minha avó e nos filhos e fugiu da Espanha, assim de uma hora para outra, assim da noite para o dia. Isso foi no começo do século XX. Ele veio pra São Paulo e foi parar numa fazenda de café, imagina, como colono, no interior de São Paulo, na região de Ribeirão Preto, onde eu nasci. Minha avó foi riquíssima também. Criada com todos os mimos e confortos, nunca trabalhou. De repente, se viu com o marido e os filhos numa fazenda de um lugar que não conhecia, numa casinha de colonos. Acho que foi a partir daí que começou a esclerosar, começou a enlouquecer. Ela se chamava Maria Palma Garcia. Quando a conheci, menina ainda, já estava esclerosada. Só lembrava dos acontecimentos da Espanha na infância, falava das jóias, das rendas, das coisas que não tinha mais. Foi um baque muito grande que ela sofreu. Eram muito ricos, e vieram para cá sem absolutamente nada. Ele deixou o resto da família, cuidando das coisas. Chegou a voltar pra lá algumas vezes. Cada vez que ia e que voltava, falava que tinha vendido umas terras e comprado outras. Quando morreu, os filhos tentaram manter contato com parentes espanhóis, para descobrir as terras que pertenceriam ao meu avô, mas ninguém achou nada. Eram os tempos da Guerra Civil Espanhola. As notícias que chegavam de lá eram muito ruins, davam conta de que estava todo mundo vendendo as terras que possuíam. Só sei que a nossa família nunca mais teve notícia de terra nenhuma. Meu irmão ainda chegou a ir lá, tentou localizar as terras que teriam pertencido ao meu avô. Não no sentido de recuperar herança, mas no sentido de conhecer as origens da família. Mas não achou mais nada. Meu pai, o caçula da família, já nasceu no Brasil. Era Odon Martins Palma. Meu avô, o pai dele, viveu na fazenda um tempo, depois mudou para Ribeirão Preto, onde morou em casa humilde de bairro pobre. Continuou lidando com a terra, plantando e vendendo verduras. Mas vivia mudando de ramo de negócios. Não parava nunca. Até morrer, sonhava em voltar para a Espanha e ter as suas terras de volta. Sempre repetia que ia pegar a família, que ia voltar pra lá. Nunca conseguiu voltar. As coisas pioraram ainda mais porque começou a beber. Nos últimos anos de vida já bebia muito. Acabou morrendo de tanto beber com pouco mais de 60 anos. Quando nasci, já tinha morrido. Meus avós italianos, os avós maternos, vieram para o Brasil como imigrantes. Ou melhor, minha avó, Teresa, veio como imigrante, mas meu avô Nicola não, já era de família melhor situada que se mudara para cá. A família de ambos foi para Ribeirão Preto, e meus avós se conheceram lá. Mas meu avô morreu logo depois de chegar ao Brasil, de gripe espanhola. Eles tiveram apenas minha mãe como filha, e ela era bem novinha quando ele morreu, tinha uns três anos. Minha avó teve que se virar para sustentar minha mãe sozinha. Ela era ótima costureira, trabalhava em casas de famílias tradicionais de Ribeirão Preto. Ia a fazendas, ficava a semana toda lá costurando para a família inteira. Era costureira fina, requisitada. Minha mãe, pequenininha ainda, a acompanhava, aonde ela fosse. Mas, viúva ainda jovem, Dona Teresa casou outra vez, com o homem que considero o meu avô de fato, apesar de não termos ligação de sangue. Era português, e se chamava Antonio Pedro Gouveia. ‘Seu’ Gouveia, como todos o chamavam. Acabou se tornando um dos personagens mais importantes da minha infância, e de minha vida inteira. Era sapateiro. Era também poeta, autodidata, lia muito. Na sapataria dele, que ficava em quartinho nos fundos da casa grande onde morava com minha avó, tinha parede inteira cheia de livros, dois tipos de livros, espíritas, e de poesias. Lembro que, pequena ainda, sentava em caixote de madeira na sapataria dele. Então ele parava tudo, pegava livro de poesia, e lia pra mim. Foi assim que conheci os poetas Guerra Junqueiro, Castro Alves, Fagundes Varela. Ele odiava padre, odiava a igreja, queria ver o diabo, mas não queria ver um padre. Ele era muito especial o Seu Gouveia. Engraçado, o avô de quem não tenho ligação de sangue acabou sendo o avô com quem tive maior ligação. Gostava muito dele, tinha com ele uma ligação muito forte. Capítulo I Carmélia, Carmelita, Lita, Carmem Na minha família as mulheres duram mais. Conheci minhas duas avós: a italiana e a espanhola. Convivi um tempo com minha avó espanhola, mas já estava esclerosada, e acabou morrendo com 90 e tantos anos. A minha avó italiana casou outra vez, com o português, com o ‘Seu’ Gouveia, e tiveram mais quatro filhos. Meu pai conheceu minha mãe em Ribeirão Preto. O nome mesmo da minha mãe era Carmélia. Mas não gostava do nome dela e, na família, todo mundo a chamava de Carmelita. Depois esse nome, que já era um apelido, acabou reduzido para Lita. Então, na família, todos a conheciam como Lita. Mas minha mãe dizia pra todo mundo que se chamava Carmem. Então era uma confusão danada. Minha mãe e meu pai tiveram apenas dois filhos, eu e um irmão mais velho, Carlos, que morreu no ano passado, em 2003. Minha mãe morreu muito cedo, com 44 anos, de câncer. Meu pai morreu com 77 anos. Não tenho ninguém na minha família que tenha feito qualquer coisa artística antes, como profissão, ou mesmo amadoristicamente. O vovô Gouveia foi o mais artista de todos, era o protótipo do sapateiro-poeta-sonhador. Minha avó italiana era muito prática. Analfabeta, foi alfabetizada já idosa. Lembro que foi a minha tia que alfabetizou a minha avó. A cartilha dela era aquela revista Grande Hotel. Lembra das fotonovelas publicadas na revista Grande Hotel? A grande felicidade de minha avó italiana foi a primeira vez que conseguiu ler uma história inteira da revista Grande Hotel. Mas a minha avó italiana, mesmo antes de ler e escrever, sabia fazer conta muito bem. Era ela quem controlava as finanças da casa. O Vô Gouveia era daqueles que fazia o conserto do sapato e dizia para o cliente: ‘Não é nada não, pode levar!’ Era minha avó que cercava a pessoa na saída, cobrava, e fazia a pessoa pagar. Sempre havia briga, porque ela controlava mesmo. Ele não tinha noção nenhuma de dinheiro, o que gostava mesmo era de conversar. Quando passava alguém na sapataria, parava tudo pra conversar. Pegava um livro, mostrava, resumia a história para a pessoa. Era um sonhador. Lia muito bem, escrevia muito bem, tinha toda essa ilustração que vinha dos livros. Pegava um poema, não tinha essa leitura que normalmente se faz, verso a verso, ia lendo até quando acabasse o fôlego. Quando não tinha mais fôlego, parava, respirava, e continuava. Ou seja, dava uma leitura hoje moderna do jeito de dizer poesia. Sempre fiquei fascinada por isso, porque desde pequena ficava olhando fascinada pra ver até onde ele ia conseguir ler sem parar pra respirar. Não lia poesia como as outras pessoas liam, verso a verso, que dá aquela cantilena, tipo ‘batatinha-quando-nasce-se-esparrama-pelo-chão’. Não, ele ia lendo até acabar o fôlego. Não lia poesias para a família porque ninguém se interessava. Só eu. Desde garotinha chegava lá, pedia, e ele lia. Lembro minha alegria quando consegui ler pra ele alguma coisa, e ele vibrava com a minha evolução. Foi uma pessoa que me influenciou muito no amor aos livros e nesse meu lado meio sonhador e, também, nessa coisa de um pouco desligada da realidade que tenho. Sobre meu pai e minha mãe? Eles eram tão unidos, os dois. Pareciam uma coisa só. Sempre tive a recordação de um amor muito grande dos dois, a maneira como minha mãe se ligava a meu pai, e meu pai a ela, de um não fazer nada sem o outro. O meu pai era mais reservado, mais tímido. Minha mãe não, minha mãe já era muito alegre, fazia amizade com facilidade, nossa casa sempre foi assim meio um ponto para as pessoas irem. Minha mãe também herdou da minha avó a coisa de ser costureira. Ela era muito famosa porque fazia vestido de noiva. Então muitas pessoas a procuravam. Por causa da facilidade de se comunicar, as pessoas iam até ela pedir conselhos, e conversar, e falar com ela. Pediam conselhos em relação à vida. Todo mundo gostava muito de conversar com ela, era pessoa muito querida. Ela não se negava a dar conselhos, ela adorava, ela agregava pessoas em torno, ela cativava todo o mundo. Capítulo II Primeiro Ato Durante toda a minha primeira infância, dos dois aos sete anos, meu pai trabalhou como chefe de estação de trem. Nesse período, moramos em duas estações da Estrada Mogiana. Primeiro em uma que chamava Anil, entre Uberaba e Uberlândia, em Minas Gerais. Depois a gente mudou para outro lugar chamado Tatuca, já bem perto de Ribeirão Preto, em São Paulo. O lugar chamava Tatuca por causa do fazendeiro de mesmo nome, que tinha a maior fazenda da região. Criança ainda, ouvia histórias que davam conta de que esse fazendeiro, o Coronel Tatuca, acoitava um bandido famoso na época, um tal Dioguinho. Quem me contava essas histórias eram o meu pai, as pessoas que freqüentavam a estação, e o maquinista, o ‘Seu’ Domingos. A única casa que tinha naquele lugar, além da nossa, era a dele, do ‘Seu’ Domingos. Meu pai, além de chefe da estação, era telegrafista. Nessa época, 1945, talvez 1946, o lugar já enfrentava certa decadência, o ciclo do café já tinha passado, não era mais a estação importante que fora muitos anos antes. Era então estação de pouco movimento, só passavam um trem de manhã e um outro trem à noite. Às vezes passava algum trem de carga, que raramente transportava carga, só passava. Havia também um armazém imenso, que, diziam, no apogeu da cultura do café, vivia abarrotado de café até o teto. As histórias que ouvia sobre esse tal Dioguinho o comparavam a Lampião. Era bandido, mas justiceiro. Matava as pessoas a mando do Coronel Tatuca, mas, contavam, sempre era pra vingar alguma coisa. Comentavam também que era pessoa culta, também filho de fazendeiros, mas teria acontecido alguma desgraça com a família dele, e passou a fazer a justiça com as próprias mãos. As lembranças de Anil, onde morei antes, ainda são mais vagas, mais remotas. Vivemos dois ou três anos em Anil, e dois anos mais ou menos em Tatuca. Nesse lugar a estação era a nossa casa, a gente morava na própria estação. Em Anil era um pouco diferente. A estação era casa de madeira, e a casinha do chefe da estação, a nossa casa, ficava bem ao lado. Morava sozinha, muito sozinha, porque meu irmão já estava em idade escolar, e tinha ido estudar em Ribeirão Preto e morar na casa da nossa avó italiana. Ficava sozinha, completamente sozinha. Tive infância muito solitária. Vivia no meio do mato. Em Tatuca a solidão era pouquinho menor. Lá, meio afastado, tinha sítio, e lá morava boiadeiro que levava boiada de uma fazenda para outra. Cavalos também. Era pequena, mas fiquei amiga dele. Então, garotinha ainda, ia lá, pegava cavalo, montava, e saía pelas estradas. Era assim que me divertia. Subia em árvores. Montava a cavalo. Às vezes ajudava o boiadeiro a levar boiada de um lugar pro outro. Meu pai deixava, na época quase não existiam perigos. Não tinha muita noção de que tinha infância solitária. Não tinha essa percepção de tristeza. Ou de não-tristeza. Só viria a entender isso bem mais tarde. A lembrança dessa época não é de tristeza. Mesmo porquê, não tinha elemento de comparação, não conhecia nada do mundo que não fosse aquilo, que não fosse aquele lugar. Então gostava muito de ficar sozinha. Capítulo III Lembranças de Festanças Colossais Até hoje gosto muito de ficar sozinha. Não sei se esse gostar de hoje é fruto dessa vivência da minha infância. Ou não. Talvez já tenha nascido assim. Só nas férias de meu irmão e dos meus tios que tinham quase a mesma idade do meu irmão, eram filhos do segundo casamento de minha avó italiana com ‘Seu’ Gouveia, ganhava companhia: eles passavam um tempo lá em Tatuca. Mas eu, a menorzinha, me tornava um estorvo para eles. Queria me enfiar nas brincadeiras deles, mas ninguém me aceitava. De Anil, onde morei ainda menor, lembro mais de algumas sensações. É estranha a memória. Tenho algumas fotos dessa época e quando as olho lembro apenas de sensações, sensação de alegria, por exemplo, quase nunca de fatos. Acho que Anil era um pouco mais alegre que Tatuca. Lá, como não tinha prefeito, o chefe da estação, que era o meu pai, tinha importância muito grande na região, era considerado autoridade. Afinal, ele resolvia muitas questões, ajudava as pessoas, mandava encomendas. Então os moradores da região eram muito gratos a meu pai por esses favores e, por isso, era sempre convidado, convidado de honra, para todas as festas que aconteciam por lá. Lembro vagamente dessas festas, acho que eram folclóricas, mas as lembranças são muito vagas, na verdade são apenas sensações. Depois que fui estudar em Ribeirão Preto e me interessei por folclore, aquilo tudo que aprendia e via me parecia extremamente familiar. Dessa época também tenho a remota lembrança de um casamento, do qual, acho, minha mãe fez o vestido de noiva. Fomos todos, toda a família. Mistura de lembrança e de histórias que me contaram depois, sei que essa festa durou uma semana, que não deixaram a gente vir embora, que foi comilança dos diabos, que mataram não sei quantos bois, que em cada prato era colocado frangos inteiros, que foi festança colossal. Lembro... - ou me contaram? - que meu pai teve que ir embora logo, porque sempre que saía ficava o telegrafista no lugar dele, por isso não podia se afastar por muito tempo. Lembro então - ou me contaram? - que a gente ficou nessa festa não sei quantos dias, que foi farra interminável repleta de danças e de cantorias. Já as lembranças de Tatuca parecem mais tristes, lá não havia tanta festa como em Anil. De Tatuca lembro dos japoneses que começavam a ocupar a região, das fazendas, dos japoneses que iam para a estação tomar o trem, que eles não falavam português, e sim uma língua muito confusa. Então, não sei como, uma moça lá, japonesa, ficou sabendo que minha mãe costurava, que fazia vestido de noiva. Então a moça japonesa e a mãe foram conversar com a minha mãe. Levaram revista com o vestido de noiva que queriam que minha mãe costurasse. Minha mãe não falava uma palavra em japonês, e elas, uma palavra em português. Mas, milagrosamente, conseguiram explicar que o que queriam era aquele vestido da tal revista, aí trouxeram o pano e tal. Resumo da história: minha mãe acabou fazendo o vestido de noiva para a japonesa. Disso tudo também tenho vaga memória, porque a gente acabou indo também nessa festa. Era a primeira vez que tivemos contato com comida japonesa. Ninguém, nem meus pais, nem eu, comeu nada, imagine se a gente ia comer aquela comida estranha, alguma coisa que a gente não sabia o que era enrolada com casca de cobra, comida crua, nenhum de nós tinha conhecimento desse tipo de comida, não comemos nada. E isto também virou folclore familiar, repetia-se em casa,: ‘Imagine comer comida japonesa, como é que se podia comer aquilo? Que horror!’. Enquanto minha mãe ia visitar suas clientes que queriam encomendar vestidos novos, o meu divertimento era o trem. Tinha dois trens de passageiros. Um que vinha de Ribeirão de manhã. E, à noite, chegava o que voltava. O meu grande divertimento era ver o trem passar. O trem parava na estação mesmo que não houvesse passageiro para subir ou para descer. Tinha de parar, era obrigatório. Em Anil lembro que uma época a gente tinha mangueiras no quintal e minha mãe fazia muito bem doce de manga. Uma vez houve excesso de manga, então minha mãe começou a fazer doce para vender quando o trem parasse na estação. Isso era mais nas férias, quando estava toda a molecada lá, meu irmão e meus tios mais jovens, e aquilo tudo virava grande farra. Era diversão, mas a gente também fazia algum dinheirinho com as vendas. Minha outra diversão era brincar sozinha no meio do mato. Nunca brinquei de boneca, não tinha boneca. Também tinha esse sitiante que morava perto, que tinha filhos também pequenos, então eu ia muito na casa deles brincar. De Tatuca, lembro de outro personagem de minha infância. Era um maquinista, que morava meio afastado, o ‘Seu’ Domingos, um negro muito interessante. Não lembro muito do rosto dele, mas sei que era um grande contador de ‘causos’. Então depois que o trem passava, acho que era oito horas da noite, ou seja, o serviço tinha acabado, trem só amanhã, a gente ficava sentada na plataforma da estação, meu pai, minha mãe, ‘Seu’ Domingos e, às vezes, a mulher do boiadeiro, porque o boiadeiro viajava muito também e a mulher do boiadeiro ficava muito sozinha. Aí ‘Seu’ Domingos ficava contando histórias, tanto da região, quanto de outros lugares. Gostava muito das histórias de bicho que contava, principalmente de onças, na região tinha muita onça àquela época. Não lembro das histórias, lembro apenas das sensações que aquelas histórias me causavam, e eram sensações muito boas, de alegria. O Vô Gouveia continuava morando em Ribeirão Preto, mas, de vez em quando, vinha na nossa casa. Ele gostava muito de plantar também, então ele ia muito lá em Tatuca, era perto da casa dele, era fácil pra ele ir. Pegava o trem da manhã, e voltava no trem da noite. Ia e voltava no mesmo dia. Então, para minha alegria, ia com muita freqüência para Tatuca, plantava horta lá, legumes, essas coisas todas, porque meu pai não tinha a menor habilidade pra isso. Minha família não era católica, era uma mistura de crenças. O Vô Gouveia era espírita. A minha avó italiana Teresa, muito católica. Eles quase não se casaram por conta disso. Ela queria casar na igreja, mas o Vô odiava padres. Finalmente eles se casaram, mas só no civil, não se casaram na igreja. Mas minha avó sempre lamentava isso. Achava que estava vivendo em pecado com o Vô, aquela história toda. E o Vô absolutamente irredutível, não queria casar na igreja de jeito nenhum. Dizia que jamais casaria, que odiava a igreja. Capítulo IV O Avô Português que Odiava Padres Tem duas histórias muito bonitas sobre meu avô português, que aconteceram nessa época de minha infância. Primeiro, uma tia minha, filha do casamento dos dois, resolveu entrar para o convento, quis ser freira. Foi aquele rebuliço, um rebuliço terrível na família. Todos se perguntavam: ‘Como dizer pro Vô que a filha dele queria entrar para o convento?’. Só sei que a minha avó acabou contando a história para o Vô, que falou que não queria saber da filha, que então ele não tinha mais filha. Isso eu lembro muito bem. Era assim, ia todo mundo pra casa da Vó, e a Vó, claro, fazendo o enxoval da minha tia ir pro convento, aquela coisa toda. Para o Vô entrar na sapataria dele, tinha de passar, quisesse ou não, pela grande sala da casa, onde havia mesa imensa, onde, ao redor dela, tudo acontecia. Pro Vô passar para a sapataria, tinha que passar nessa sala, sempre lotada de tias e parentes, e onde a Vó costurava todo o enxoval da filha que queria ser freira. Meu avô simplesmente não olhava para os lados, seguia direto para a sapataria, e continuava levando a vida dele como se nada tivesse acontecendo. Aí chegou finalmente o dia que Osméquia, esse era o nome dela, ia ter que pegar as malas, pra sair de casa, e ir pro convento. Nesse dia ficou desde de manhã todo o mundo chorando pelos cantos. Tia Osméquia chorava, ela queria a bênção do pai, e o Vô continuava na sapataria trabalhando, ignorando tudo. Era aquela agonia terrível. Afinal chegou o momento da minha tia ir embora, e ela falou: ‘Vou lá me despedir dele!’ Correu todo o mundo, fiquei escondida atrás da porta, chorando, porque achava que ia ter briga colossal, que ia haver o maior bate-boca. Mas não aconteceu nada. O que aconteceu foi que o Vô começou a chorar, abraçou tia Osméquia, e falou: ‘Minha filha, eu te abençôo. Vai com Deus, faça o que você quiser. Eu odeio padres, mas se você quiser, você vai!’. Isso do meu avô é que me encantava. Porque bancava o durão, coisa e tal, era daqueles que as pessoas diziam ter medo, que era teimoso, teimoso, teimoso, uma mula de tão teimoso, mas que tinha um coração de ouro, se derretia com as coisas. Ele abençoou minha tia, ela foi pro convento, e é freira até hoje. Outra história maravilhosa do Vô Gouveia: tempos depois, minha avó tinha um problema de coração, aí eu já estava na adolescência, devia ter uns 14 anos, e já morava em Ribeirão Preto, a minha avó ficou muito mal. Acho que teve um enfarte, algo assim. Só sei que ficou mal, ficou no hospital um tempo, depois foi para casa, mas continuou de cama. Aí ela pediu pro meu avô, ela achava que ia morrer, e não queria morrer em pecado, e pediu pra ele se casar com ela em cerimônia religiosa. O Vô resistiu inicialmente, mas acabou fazendo a vontade de minha avó, e, disso lembro muito bem: no quarto da casa grande, minha avó, deitada na cama, muito mal, o Vô sentado numa cadeira assim do lado segurando a mão dela, todos os filhos, netos e parentes em volta, e ao pé da cama um padre fazendo o casamento dos dois. Ou seja, eles se casaram no religioso, como minha avó queria, e o Vô de cabeça baixa, e a avó na maior felicidade. Só que depois disso ela começou a melhorar, alguns dias depois levantou da cama, firme e forte. Resultado: toda a família resolveu tirar sarro. Dizíamos: ‘A avó aplicou o golpe no senhor!’ Ele ficava puto, e esbravejava: ‘Vocês não entendem nada disso, vocês calem a boca!’ Ela durou mais uns dois anos, e morreu. Aí também foi lindo. Naquela época os velórios geralmente eram em casa, então foi velada na sala da frente. Todos murmuravam que era preciso chamar o padre para encomendar o corpo, mas tinham medo de como o Vô reagiria. A minha tia freira, mais corajosa, chamou o padre, e ele veio benzer o caixão, rezar pela alma de minha avó, e o Vô firme lá do lado do caixão, quieto, impassível, sem dizer palavra. Uma semana depois houve a missa de sétimo dia, na Catedral de Ribeirão Preto, e então todas as tias avisaram ao Vô da missa, mas todas sabiam que ele não iria, ele dizia que não entrava em igreja de jeito nenhum. Mas aí, lembro, como se fosse hoje, cheguei um pouco atrasada, saí correndo da escola pra ir à missa. Quando entrei na catedral, no último banco da igreja, estava o Vô, ajoelhado, com a cabeça abaixada, debruçado sobre os braços, soluçando, chorando, ele assistiu à missa de minha avó inteira. Acabou a missa, ele saiu, tão silenciosamente como havia chegado. Fui uma das poucas pessoas que o viram lá. Contei pra todo o mundo, que ele estava lá, que ele entrara na igreja, mas quase ninguém acreditou. Foi um enorme gesto de amor. Teve duas grandes histórias de amor na minha vida: a de meu avô e minha avó; e a de meu pai e minha mãe. Meu avô, com toda aquela aparente rudeza que tinha, era um sentimental, um amoroso, capaz desse tipo de gesto. Todo mundo sabia que odiava padre, igreja católica, não queria saber de nada ligado à igreja católica, mas, pela minha avó, foi capaz de casar, foi capaz de ir à igreja que não se sabe havia não sei quantos anos ele tinha entrado. Contra a igreja católica ele falava duas coisas, que eu me lembro. Uma das coisas era o interesse da igreja por dinheiro; e a outra, a intolerância da igreja em relação ao pensamento, a censura ao pensamento mais liberal. O Vô era um liberal, ele chamava os padres de ‘os urubus’, dizia: ‘os urubus, aqueles urubus só querem saber de dinheiro...’, ele tinha uma noção exata do que a igreja havia feito de ruim ao longo do tempo. Mas, ao mesmo tempo, era capaz de humanamente se ligar a qualquer pessoa. Mesmo depois que minha tia entrou pro convento, às vezes ela voltava pra Ribeirão Preto com as amigas freiras, e o Vô sempre tratava todas elas muito bem. Ele nunca foi católico. Antes era ateu. Depois se tornou espírita. Uma vez ele falou: ‘Tentei viver sem Deus, mas não consegui’. Ele nunca teve envolvimento político, mas certamente tinha um pensamento de esquerda. Era antes de tudo um liberal. Sempre brigou muito pelas idéias dele. Quando achava uma coisa ninguém o demovia. Minha família nunca teve envolvimento maior com a política, mesmo em época de eleição e tal. Capítulo V Benzeduras, Rezas e Procissões Minha mãe até uma certa época, seguiu os passos de minha avó, e era católica. Meu pai não era nada, porque do lado espanhol, que eu saiba, o Vô espanhol também não tinha religião nenhuma. A avó espanhola era católica na Espanha, mas, com a vinda para o Brasil, bagunçou tudo também. Nem o ramo paterno nem o materno tiveram tradição religiosa muito forte. Minha mãe, católica, mas não muito convicta, ficou muito doente uma certa ocasião, e aí passou a freqüentar sessão espírita, e virou espírita, e levou o meu pai para o espiritismo também. Tornaram-se então espíritas para o resto da vida. Do ponto de vista religioso fui criada de um jeito um pouco selvagem. Gostava de ir à missa, levada por minha avó, mas ia sem ter nenhuma consciência religiosa. O que adorava mesmo era ir com a minha avó às procissões. Era lindo, era um belo passeio. A procissão da Sexta-Feira da Paixão então, eu adorava. A ‘Verônica’, cantando aquelas coisas todas, era muito bonito. Mas não tinha sentimento religioso algum. Era meio como minha mãe. Antes de se tornar espírita, tinha uma coisa que ela fazia, e isso ela também herdou de minha avó italiana que, ao mesmo tempo que era católica, era benzedeira. Então minha mãe aprendeu com minha avó uma reza para tirar quebranto, usando arruda. Ela benzia a pessoa com o galho de arruda e se a pessoa tivesse com dor de cabeça passava, melhorava. Funcionava. Ela fazia comigo e funcionava. Lembro de outra coisa que minha avó fazia, e que minha mãe passou a fazer depois. Ela tirava cinzas do fogão a lenha e espalhava no chão da cozinha. Quando você tinha alguma dor muscular, ou qualquer outro tipo de dor, ela pedia para você subir naquela cinza, pedia para você pisar com força, marcava o pé na cinza, fazia o contorno do pé, depois, com uma faca, rezava sobre aquela cinza e fazia algumas cruzes. Isso também curou muita gente. Mas, mesmo com toda essa bagunça, fui batizada e crismada. Primeira comunhão, só fiz quando tinha uns 14 pra 15 anos. Fiz porque quis. Resolvi. A minha vida religiosa era uma bagunça. Às vezes ia à igreja com minha avó, às vezes ia à sessão espírita com meus pais. Mas não achava o meu caminho. Nessa época, todas as minhas amigas eram católicas, tinham feito primeira comunhão, iam à missa todos os domingos. Então cismei que queria me converter. Então fiz curso de Catecismo e depois fiz a primeira comunhão. Virei católica. Ia à missa de domingo às seis da manhã, com todas as beatas da cidade. Durou um ano mais ou menos o meu catolicismo. Mas continuei acreditando em Deus. Até então nunca tinha colocado em dúvida essa noção de Deus, para mim era um dado meio inquestionável. Sempre tive surtos religiosos. Na minha busca de uma religião, sempre achava um caminho, seguia e, de repente, via que não era aquele. Foi sempre assim nessa época. Se tivesse sido criada numa tradição católica poderia querer me rebelar contra isso, mas não fui. Nunca fui obrigada a nada. Podia fazer o que quisesse, e se não quisesse ser católica ou espírita, quisesse ser qualquer outra coisa eu podia, ninguém me obrigava a nada. Mas crer em Deus não era uma questão que colocava em dúvida. Pelo menos nessa época. Os espíritas diziam que minha mãe era médium, coisa e tal, que tinha que se ‘desenvolver’. Agora o que ela tinha mesmo era esse dom, essa coisa que eu falei de conversar muito com as pessoas, de ouvi-las, e de ajudá-las. Ela possuía essa energia boa de poder aliviar a dor dos outros, mas não entendia isso muito bem não. Era, como todos da minha família, pessoa simples, sem nenhuma formação intelectual, sem noção mais profunda de nada. Sempre encarei tudo isso, todas essas magias, com muita naturalidade. Naquela época e naquele lugar, cartomante era muito comum. Era tão comum se consultar com uma cartomante como hoje é consultar um psicólogo. Não havia o poder do diabo em cima de mim, nunca me disseram: ‘se você fizer isso ou aquilo, você vai ser castigada’. Nunca ouvi esse tipo de coisa. Essa noção do diabo só surgiu em minha vida muito tempo depois. Agora o pensamento mágico, não sei se porque vivi na minha infância muito no meio do mato, onde a magia estava sempre presente, me acompanhou desde sempre, nas coisas, nos elementos, nas histórias que ‘Seu’ Domingos contava. Com certeza eu devia me assustar, mas não lembro de ter tido nenhum pânico, sabe, tipo aqueles de se ficar traumatizada pro resto da vida. Certamente ficava com medo depois de ouvir essas histórias, porque em Tatuca e em Anil não havia ainda energia elétrica, era tudo lampião. Aquela luz de lampião, ele contando histórias de mula-sem-cabeça, de onça-feroz-que-fazia-não-sei-o-quê, provavelmente ficava com medo. Mas era aquele medo bom, que excita. Eu, desde pequena, e isso foi a minha mãe que me contou depois, tinha umas coisas estranhas, sentia umas coisas estranhas, dizia ouvir coisas estranhas, e que aí gritava, entrava em pânico. Tive primeira infância sem animais domésticos. Os animais mais próximos eram os cavalos nos quais costumava montar. Até hoje gosto muito de cavalos. Mas nunca tive animal doméstico como um cachorro. Tinha uns vira-latas perto de casa, mas não era o meu cachorro. Capítulo VI Segundo Ato Já estava em idade escolar, meu irmão Carlos já morando na casa de minha avó italiana, aí mudamos para Ribeirão Preto. Foi muito difícil me adaptar lá. No início, fiquei espantada com a quantidade de crianças de minha idade, não tinha contato com crianças de minha idade, mesmo as da família eram mais velhas. Era quase como se não soubesse que existiam no mundo tantas crianças da mesma idade que eu. Até chegar a Ribeirão Preto nunca tinha tido uma amiga, acho que nem sabia o que era uma amiga. Mas até que acho que me saí bem. Logo no primeiro ano já tinha arrumado amigos. Mesmo assim me sentia muito deslocada. No começo não tinha noção de nada, mas, aos poucos, fui percebendo as diferenças entre as crianças. Principalmente em relação à situação financeira. Eu era muito pobre. Mas, até então, não tinha muito essa noção, do que era pobreza e do que não era pobreza. Na verdade, achava que lá em Anil e Tatuca, a gente vivia na fartura. Lá na roça a gente tinha galinha, tinha a horta, todo o mundo levava frutas pra gente, nunca faltou comida em casa. Como não ia passear, não ia pra lugar nenhum, minha mãe era costureira, fazia minha roupa, nem precisava sair pra comprar, então não tinha muita noção assim do que era ter dinheiro, e do que era não ter dinheiro. Não havia ainda essa tradição consumista de Natal, de dar presente no dia de aniversário, não havia nada disso. Logo, não tinha muita idéia de que era ser pobre. Só fui ter essa idéia, essa consciência quando a gente se mudou para Ribeirão, e entrei em contato com as outras crianças. Essa consciência foi ainda mais cruel pra mim na adolescência, quando você começa a querer ter uma roupa melhor e percebe que não tem dinheiro pra comprar. Foi cruel, muito cruel. Quando a gente mudou pra Ribeirão, meu pai foi trabalhar no escritório, lá mesmo na Estação de Ribeirão. O salário do meu pai continuou o mesmo, mas antes, em Tatuca e Anil, a gente morava na estação e não pagava aluguel e havia uma série de vantagens. Agora o salário era o mesmo e não dava pra bancar todas as despesas. Então, por um tempo, a gente ficou morando na casa da minha avó italiana. Depois a gente foi morar com a avó espanhola que, viúva, morava sozinha numa casa muito grande. Mas aí teve uma briga, ela já estava ficando esclerosada, ela não aceitava muito a minha mãe, porque como o meu pai era o caçula, e ela tinha adoração pelo meu pai, tinha um pouco essa coisa: ‘Casou com uma italiana, não casou com uma espanhola, deu nisso’. Resultado: tinha implicância muito grande com minha mãe, rolava muito bate-boca, muita discussão. Um dia minha mãe disse ‘Não agüento mais’ e a gente foi embora de lá. Mas ir embora pra onde? Pra onde? Capítulo VII Os Duros Tempos do Porão Foi quando entrou em cena uma tia da minha mãe, era a irmã do pai da minha mãe, do meu avô. Era muito rica, morava num bairro muito bom, num casarão imenso, com o filho, a nora. Essa casa tinha um porão muito grande, um porão habitável, mas era um porão. E a gente foi morar lá. Mas como essa casa em que a gente morava no porão era num bairro chique, comecei a perceber realmente as diferenças sociais. Lembro que foi aí que percebi que morava num porão de uma casa rica, não morava em uma casa rica. E pior, morávamos de favor. Estudava no Primeiro Grupo Escolar de Ribeirão Preto, escola pública, mas que era o melhor que havia em termos de educação na época. Então muitas meninas que estudavam lá eram ricas, estudavam lá porque o ensino era o melhor. Passei a conviver com garotas milionárias. Como sempre fui primeira aluna, sempre fui brilhante, então automaticamente ficava amiga dessas meninas que eram as mais ricas de Ribeirão, e eu era das mais pobres. As queridinhas dos professores são sempre ou as mais bonitinhas ou as mais inteligentes, e as bonitinhas no geral são as mais ricas. E eu era a mais inteligente. Por causa disso as meninas ricas queriam estudar comigo, porque eu sempre estava com todo o assunto visto em aula em dia, sabia as coisas. Acabei fazendo amizade com elas, apesar da diferença social imensa que havia entre nós. Era um tipo de vivência que hoje você não pode nem imaginar, é como se hoje em dia uma pessoa da periferia de São Paulo estudasse ao lado de alguém que morasse no aristocrático Morumbi. Só passei a ter alguma consciência política maior, muito tempo depois. Nessa época achava que era pobre por fatalidade do destino, porque Deus me havia feito pobre e elas, ricas. Não sentia revolta, não, nem sabia o que era isso. Constatava apenas que aquela era a minha realidade, e pronto. Se isso me entristecia, se sentia tristeza? Tristeza, não sei bem se era a palavra certa, sabe, ficava mesmo era constrangida, porque tinha muitas coisas que queria ter e não podia ter. Por exemplo, livros. Capítulo VIII A Descoberta da Literatura Adorava ler. Desde que havia sido alfabetizada, lia tudo que caía nas minhas mãos. Lembro uma vez, acho que no segundo ano do Grupo Escolar, ou terceiro não sei, passei de ano em primeiro lugar e ganhei A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato, de presente da professora. Li, adorei, e fiquei louca pra ler todo o Monteiro Lobato. Tinha uma colega rica que tinha a coleção inteira. Fiquei fissurada, porque queria ler tudo dele. Ela falou que ia me emprestar, só que a mãe dela não deixou porque era coleção muito luxuosa e não sei o que lá, e tal, e coisa. Penalizada, a mãe de minha colega disse afinal que, caso quisesse ler os livros, teria que ir lá na casa dela, que podia ler lá, mas não podia levar para casa. Não pensei duas vezes: ia, ficava na casa da colega, pegava um livro de Monteiro Lobato e ficava lendo, lendo, lendo. Até que a mãe da minha colega rica viu que realmente meu interesse era tão grande, que resolveu me emprestar. Foi assim que li toda a coleção de Monteiro Lobato, levava para casa, devorava o livro, aí ia lá, devolvia para a mãe da menina, a mãe da menina me dava outro volume, levava pra casa e lia, lia, lia. Assim foi com todos os outros volumes. Acho que tinha 10, talvez 11 anos. Não é que ler me deixasse triste, mas puxa, o sonho da minha vida era ter aquela coleção inteira na minha casa. Às vezes, na hora do recreio, ia para a biblioteca e ficava lendo livros que, sabia, nunca poderia comprar. Às vezes em pleno sábado ia pra Biblioteca Municipal de Ribeirão. Enquanto minhas amigas passeavam, eu lia. O que eu buscava nesses livros? Tudo, conhecimento, informação, tudo. Como minha família não era culta ou bem-informada, não obtinha informações desse tipo no meu ambiente familiar. Aprendi com os livros. Buscava nos livros a fantasia também, o imaginário, descobria, encantada, que o livro podia funcionar como instrumento para ativar o imaginário. O primeiro livro que li de Machado de Assis foi Helena. Adorei. Tinha amiga que tinha pai que era poeta, um intelectual. A casa deles era forrada de livros. Gostava muito de conversar com ele, que me ensinou muito, que me orientou em muitas novas leituras. Ele dizia agora você vai ler isso, agora você ler aquilo. Foi fantástico, era um mundo novo que se abria para mim. Capítulo IX A Pobreza e os Talheres de Prata Lembro que a gente era realmente era muito pobre. Mas com uma exceção aqui e outra ali, nunca fui discriminada por ser pobre. Era uma outra época. Sentia a diferença social, mas as famílias tradicionais de Ribeirão não se importavam com isso. Eu me acostumei a ir à casa de colegas, cujas famílias só usavam talher de prata no dia-a-dia, e eu mal tinha talher em casa. Mas os realmente ricos, ricos mesmo, não se importavam com o fato de eu ser pobre e não ter talher de prata em casa. Mas em algumas casas acontecia de a mãe de uma colega vir me perguntar: ‘De que família você é?’. Nessa época, já estava numa fase rebelde, rebelde o suficiente, para dizer: ‘Sou neta do Seu Gouveia, o sapateiro’. Aí a mulher arregalava os olhos e saía assustada. Claro que ainda tinha muita vergonha de ser pobre. Quando morava no porão da casa de minha tia tinha muita vergonha de receber amigas em casa, não convidava ninguém para ir lá. Sempre me reunia com minhas colegas na casa de alguém que morava numa casa grande, imensa, com conforto, e onde a gente podia ficar mais à vontade. Claro que isso me incomodava. Se não conhecesse bem a pessoa, não falava onde morava. Lembro a primeira vez, isso ainda no Grupo Escolar, que levei colega à minha casa, ou seja, ao meu porão. Ela falou pra mim: ‘Mas você não mora lá em cima?’. Falei: ‘Não, moro aqui, lá em cima mora a minha tia’. Percebi que aquilo foi um choque pra ela. Foi um choque, a reação dela, pra mim também. O engraçado é que as meninas pareciam não acreditar muito que eu era de fato pobre. Porque eu passava uma coisa pra elas, assim de muito metida, sempre fui tida como meio metida. Na verdade era muito tímida, muito fechada e, ao mesmo tempo, muito inteligente, e andava com as meninas ricas. Então achavam que era rica também. Quando descobriam que era pobre, elas se chocavam no início, mas depois não se afastavam de mim não. Sempre convivi bem com meninas muito ricas, algumas são minhas amigas até hoje. Agora sei: o problema era mais de minha parte do que da parte delas. O meu problema era que queria coisas que não podia ter. Então minha única saída, minha única maneira de fugir de tudo, era ler, ler, e ler. E lia, lia, e lia. Lia de tudo. Fotonovelas da Grande Hotel, que todo o mundo lá em casa adorava. Lia também os romances açucarados que minha mãe lia. O que caía nas minhas mãos eu lia. Sou assim até hoje. Lia muita porcaria, mas, aos poucos, começava a diferenciar, saber quem era um grande autor e quem não era, o que era grande literatura e o que não passava apenas de passatempo. Tinha também rádio, não havia TV ainda nessa época lá em Ribeirão. Sempre digo o seguinte: para mim, naquela época, era mais próxima a idéia de Hollywood do que de teatro. Não havia escolas de teatro. Aliás, só muito tempo depois, soube que havia grupinho amador em Ribeirão nessa época. Nunca passou pela minha cabeça ser atriz de teatro. Nunca fui disso, de sonhar em ser alguma coisa, em seguir determinada carreira. A verdade é que até hoje não sei o que vou ser quando crescer. Capítulo X Mangas, Goiabas e a Casa da Dorinha Dava aulas em Ribeirão Preto, faturava uns trocados: ajudava alunos em português, matemática, o que fosse. Não era nada sistemático, às vezes conseguia alguma aula particular, às vezes não. Mas ganhava algum dinheirinho com isso, e gastava isso com bobagens, coisa de necessidade, mesmo. O dinheiro que ganhava era mais para poder sair, fazer alguma coisa. Mas não precisava muito. Nunca fui muito vaidosa, nunca fui assim muito interessada em me embonecar, não. Claro, como todo adolescente, como toda jovem, queria ter a roupa adequada para alguma festa. Mas me acostumei, desde pequena, a ter pouca roupa. Tinha a facilidade de que minha mãe era costureira e era ela quem fazia a minha roupa. Mas, às vezes, até comprar o tecido era difícil, não era assim tão fácil. Meu pai continuava ganhando pouco, a gente morava num bairro pobre, que na época chamava República. Nessa época ainda havia a linha do trem que passava em direção à estação central de Ribeirão Preto. Sempre dizia que morava no outro lado da linha do trem. Esse bairro era também onde ficava a casa de minha avó espanhola, a avó italiana morava mais no centro, perto da Catedral, então ali era um pouco a região onde meu pai nasceu, cresceu, havia duas irmãs dele que moravam naquela rua, havia várias pessoas da família que moravam por ali, por perto. Nessa época a gente já morava em uma casa até grande, tinha um quintal enorme, no fundo do quintal passava um riozinho, a casa era muito simples e tudo, mas o quintal era maravilhoso, tinha mangueiras, goiabeiras, um monte de árvores frutíferas. Até certa época fui menina de subir em árvores, para comer manga e goiaba. Estranhei muito quando mudei para São Paulo e tinha que comprar essas frutas. Até hoje não consigo comprar goiabas e mangas. Pra mim manga e goiaba não são compráveis, senão não têm o mesmo sabor da infância. Além disso, a mãe do Vô Gouveia, tinha chácara em Jardinópolis, no interior de São Paulo, e a gente ia muito lá, sempre aos domingos. Lá havia plantação de manga, goiaba, uva. Era uma chácara pequena, mas muito cultivada, ou seja, desde menina, também estava acostumada a escolher manga e comer no pé até se fartar. Fui criança criada em contato com a natureza. Televisão? Televisão só conheci muito depois, quando me mudei para São Paulo. Na minha infância em Ribeirão, só existia rádio, rádio era o grande divertimento. Meus pais acompanhavam novelas no rádio. Eu também, de vez em quando. Às vezes acompanhava, mas depois me cansava, achava chato. Lembro de O Direito de Nascer, radionovela que parou a cidade nos últimos capítulos. Em frente à casa de minha avó, na época em que as prostitutas ainda não estavam confinadas e tal, numa rua central de Ribeirão, a Florêncio de Abreu... Era uma rua residencial que na época começava a ter algum comércio, mas era uma rua residencial, uma boa rua. Pois bem, em frente à casa de minha avó, tinha a casa da Dorinha, que era a prostituta mais famosa da cidade. Eram três casas conjugadas. Um delas era sobrado imenso. Com o trabalho que fazia, Dorinha sustentava a família, que morava perto dela e que sabia exatamente o trabalho que ela fazia para sustentá-los. Dorinha devia ter uns quarenta anos, mas, pra mim, pros meus olhos de criança, era uma mulher velha. Mas era muito bonita, muito vistosa. Sempre soube que ali era a casa da Dorinha, não sabia o que era, mas sabia que era a casa da Dorinha. Desde pequena me acostumei a ver o bispo de Ribeirão Preto, Dom Jaime, entrando na casa da Dorinha, aquele diretor do grupo escolar entrando na casa da Dorinha, o pai de uma amiga minha entrando na casa da Dorinha. Aos poucos, fui sabendo o que era a casa da Dorinha. Ela era superquerida porque ajudava todo o mundo. A criançada a adorava. Quando chegava o Natal, ela, da janela do sobrado, jogava coisas pra molecada. Ficava todo mundo esperando ela aparecer na janela para fazer a festa. Aí nos últimos capítulos da radionovela, com a cidade inteira acompanhando, não me pergunte porquê, não vou lembrar, só sei que faltou energia elétrica em toda a região. Lembro que minha mãe costumava ir à casa da minha avó para ouvirem a novela juntas. Recordo que chegava às vezes do colégio para almoçar com minha avó e estavam as duas escutando a novela, emocionadíssimas. Pois bem, quando faltou energia elétrica no bairro, uma das prostitutas alugou um táxi, o que já era assim uma coisa extraordinária, e a gente ficou dentro desse táxi, um monte de gente em volta, todo mundo ouvindo o último capítulo de O Direito de Nascer no rádio do carro. É uma cena que nunca esqueci. A Dorinha não deixava as prostitutas que trabalhavam com ela irem pra rua, quase nunca. Então foi uma coisa excepcional aquele acontecimento, assim no meio da rua, mas afinal de contas era o último capítulo de uma novela que todo mundo acompanhava. Aí elas convidaram a todos e de repente estávamos lá todos nós em volta do táxi ouvindo a novela. Até onde posso lembrar, não havia preconceito de minha família, nem do pessoal da rua, contra Dorinha, inclusive minha avó costurava pra elas. Era uma casa luxuosa, sabe? Entrei lá só uma vez, era criança ainda. Pois é, minha avó era costureira e costurava para algumas mulheres que trabalhavam na casa de Dorinha, mas Dorinha, como já disse, quase não as deixava saírem à rua, ou ficarem à porta, ou qualquer coisa assim. Então pra alguma delas ir à casa de minha avó encomendar alguma roupa, tinha de esperar a Dorinha abrir a porta, olhar para ver se não tinha ninguém vigiando, atravessar correndo a rua, e entrar apressadamente na casa de minha avó, que fazia as roupas delas meio escondido de todo o mundo. Era criança, não entendia muito bem, mas só sabia que quando entrava alguma dessas mulheres minha avó as levava pro quarto, ficavam trancadas no quarto, ninguém podia entrar lá e tal. Uma dessas mulheres tinha uma filha, e aí a filha teve problemas, não tinha onde ficar, e aí ela perguntou se minha avó não podia ficar com a menina um período, até ajeitar a situação dela, e essa menina foi então morar com minha avó por um tempo. Essas mulheres tinham um comportamento assim exemplar. A Dorinha dizia que só aceitava na casa dela moças de fino trato, então era assim como um pensionato mesmo, só que um pouquinho diferente. E nenhuma das mulheres que trabalhavam com Dorinha saía à rua fantasiada de puta, vamos dizer assim. Nunca houve movimento de moradores para tirá-las de lá, só muito depois, pouco antes de eu sair de Ribeirão Preto, foi que um delegado resolveu confinar as prostitutas. Engraçado, saber que ali funcionava um bordel não me deixou espantada não. Sempre encarei com naturalidade. O que me chocava mesmo era a hipocrisia, aqueles homens todos, aquelas autoridades todas, entrando escondidos na casa de Dorinha, essas coisas. Sempre fui meio independente, sabe? Brigava muito com meu pai e minha mãe por causa do horário certo pra chegar em casa. Tinha que chegar sempre às oito. Mas eu dizia pra eles: ‘Quem me garante se eu não tiver uma coisa errada eu não vou fazer antes?. Qual a diferença de chegar oito ou nove ou dez?’. Quer dizer, sempre fui meio rebelde em relação a certas convenções morais, assim. Não lembro de ter ficado chocada com a presença das prostitutas na rua, pelo contrário, tinha certo fascínio em relação à vida delas, em relação ao que se passava na cabeça delas. Não era exatamente o visual que me fascinava nelas, na verdade elas se vestiam até que discretamente. Quando iam na casa da minha avó eram mais discretas do que uma tia minha qualquer que fosse visitá-la. Recordo uma vez que entrei lá. Uma delas ficou doente e, com o consentimento da Dorinha, a minha avó foi levar remédio ou benzer, não sei, só sei que fui lá junto com a minha avó. Entrei lá e era um lar normal, uma casa como as outras. Até ouvia histórias de que Dorinha dava aulas de como as moças que trabalhavam com ela deviam se comportar à mesa. Enfim, era chiquérrimo. Capítulo XI Circo, Catapora, Caxias e Seu Álvaro O teatro que via na época era circo-teatro, que minha família adorava. Quando chegava circo em Ribeirão Preto, íamos todos. As primeiras coisas que vi em teatro foram os dramalhões de circo: O Ébrio; Sansão e Dalila; A Paixão de Cristo - esse então era imperdível. Toda Semana Santa estávamos lá assistindo de novo. Até hoje, tenho uma influência do melodrama muito forte em mim, adoro melodrama. Mas acho que tudo começou mesmo, sem que na época eu desse conta disso, claro, ainda no Grupo Escolar, acho que no segundo ano, uma coisa assim. Lembro, disso eu lembro muito bem, que a professora mandou que eu decorasse uma poesia do Duque de Caxias. Decorei, e declamei na classe. A professora ficou encantada, adorou. Gostou tanto que me escalou para declamar esse mesmo poema em público, para toda a escola. Essa seria a minha primeira aparição em público. Seria. Só que no dia de declamar a poesia acordei com catapora. Tive que ficar de cama, na casa de minha avó, porque estava mal, muito mal. Recordo que minha avó pôs cama pra mim no quarto dela e nessa cama eu chorava muito. Não tanto por estar de catapora, mas porque não pude ir à festa e declamar a poesia. Sou péssima para datas, mas acho que deveria ter nessa época 9 ou 10 anos. Algum tempo depois, se não me engano no meu último ano no Grupo Escolar, me convidaram de novo para dizer uma poesia. Era poema em homenagem ao Dia das Mães, chamava-se Mãe, e o autor, acho, se chamava Mário de Alencar. Nessa vez deu tudo certo, decorei a poesia e declamei direitinho. Foi aquele sucesso. Acho que não lembro mais ela inteira, mas acho que ainda lembro um pedaço: “Mãe, a primeira palavra que meus lábios murmuraram foi essa, mãe Teu nome, não somente instintiva voz de fome Mas terna voz, também balbuciante de coração infante...”. Foi um sucesso. As mães choraram, os filhos choraram, os colegas aplaudiram. No início fiquei muito nervosa, mas depois que comecei a declamar e percebi aquele povo todo me aplaudindo no final, tive sensação muito esquisita, mas, também, muito boa. Era como se estivesse lá, mas não estivesse, ao mesmo tempo era eu e não era eu. Era algo assim que senti. Isso poderia se resumir a uma palavra: timidez. Era muito tímida e foi quase inexplicável que tivesse conseguido dizer a poesia até o final. Aliás, sou tímida até hoje. Depois de um tempo a gente cria truques, para tentar se safar, mas uma vez tímida, sempre tímida. Esta é, portanto, a data histórica da minha estréia perante o público. Oh!  Eu tinha 11 anos incompletos, faço aniversário em 31 de outubro. Já no ginásio, continuei sendo chamada pra declamar, e tal. O diretor da escola, o Seu Álvaro... Não consigo lembrar o sobrenome dele... Era uma figura excepcional, e ele sempre me chamava para declamar. Tem até tem um fato fundamental de minha vida, ligado ao Seu Álvaro. Quando terminei o grupo escolar, as mulheres da minha família não tinham tradição de estudar, então o destino a mim reservado seria seguir a carreira da minha avó, da minha mãe, ser costureira, ganhar algum dinheiro, arrumar marido, casar, e fim, não encher mais o saco de ninguém. Mas aí, como tinha sido aquela aluna brilhante até então e como estava terminando o curso primário, contei pras minhas amigas que não ia pro ginásio, que não ia estudar porque era pobre, não podia, não sei o quê. Só sei que depois que soube disso, o Seu Álvaro... Lembrei, lembrei o sobrenome dele, Álvaro Cardoso! Pois bem, Seu Álvaro Cardoso foi até minha casa falar com meu pai. Falou que eu não podia parar de estudar, disse que me ajudaria financeiramente se fosse preciso, mas que eu não poderia parar de estudar de jeito nenhum. Meu pai refletiu, concluiu que a gente era ‘pobre, mas não miserável’, e deixou que eu cursasse o ginasial com, claro, o Seu Álvaro Cardoso sempre me apadrinhando. Preocupado comigo, sempre acompanhando minha vida escolar, sabia dessa história de eu ter declamado no Dias das Mães e em outras solenidades escolares. Resultado: acabou me arrumando professora de declamação. Alegou que tinha que cuidar do meu talento. Cheguei a ter algumas aulas com essa professora. Mas não deu muito certo. Ela era muito ruim, era mais maluca do que eu. Um dia essa minha primeira professora de interpretação promoveu recital de poesia na casa dela, acompanhada de um pianista. Foi a primeira vez que constatei como se podia ser ridículo num palco, era aquela coisa exagerada, gestos largos que derrubavam o microfone, choro, enfim, exagero, exagero, exagero. Depois disso me dei conta, e decidi: não queria aprender nada com aquela mulher, não queria fazer nada daquilo. Tudo nela era tão exagerado que não queria copiar. Deixei o curso com ela, mas continuei sendo convidada para declamar poesias. Capítulo XII Sangue na Neve de Monte Castelo Mas história inesquecível mesmo aconteceu pouco depois. Não sei se você conhece Ribeirão Preto, mas no centro da cidade, na Praça 15 de Novembro, existe o Teatro Pedro II e, em frente do Teatro Pedro II há uma estátua - um homem que atira uma granada - erigida em homenagem aos expedicionários brasileiros que lutaram na II Guerra Mundial. Ali, ao pé daquela estátua, sempre aconteciam solenidades em homenagem àqueles soldados que morreram em combate, aquelas coisas. Nessa época eu tinha 14, 15 anos, e já estava começando a me interessar por namoradinhos. Fui convidada para declamar um poema num desses eventos, ocorrido às 8 horas da manhã. Além de mim, estavam lá Seu Álvaro, o prefeito, o bispo, outras altas autoridades locais, e os rapazes do Tiro de Guerra, todos muito bem apessoados no fulgor dos seus 18 anos, por quem estava começando a me interessar; logo devia declamar da melhor forma que pudesse. Depois de muitos discursos, os rapazes já com cara de entediados, comecei declamar a minha poesia. Chamava-se Sangue na Neve, não me lembrava mais do nome da autora, mas vasculhando uns cadernos velhos – tenho a mania de guardar velharias – achei a poesia e a autora é Maria Sabina, pelo menos assim estava escrito. A poesia era quilométrica, com estrofes imensas, todas começando com a frase: ‘Saaaaangue na neve!’. O poema falava da odisséia dos expedicionários brasileiros mortos na neve em Monte Castelo, na Itália, e parecia não acabar nunca. Quando os soldados, cada vez mais entediados, pensavam que a poesia ia acabar eu retomava: ‘Saaaaangue na neve, saaaaangue na neve...’ Bom, resumo da história: nos dias seguintes andava pelas ruas de Ribeirão e ouvia alguém gritar: ‘Saaaaaangue na neve, saaaaangue na neve...’. Queria morrer. Vivia em pânico, não ia mais em lugar nenhum. Entrava no cinema, o pessoal gritava: ‘Saaaaangue na neve, saaaaangue na neve!’. Era uma tortura, uma tortura. Os rapazes do Tiro de Guerra resolveram pegar no meu pé e não perdoavam a chatice de minha declamação. Apesar disso, já tinha descoberto o prazer de fazer teatro, gostava de fazer. Capítulo XIII Lição de Vida em Francês Teve outro episódio que também foi engraçado. Era o dia pan-americano, e minha professora de francês pediu pra eu declamar em francês. Não me lembro mais que poesia era. Acho que fiz questão de tirar de minha cabeça, mas acho que falava da liberdade e coisa e tal. E lá fui eu declamar em festa para a escola. Já fazia o curso Clássico. Nos dias seguintes, o pessoal da escola não me deixou em paz. Deixavam bilhetes debochados na minha gaveta. Tinha um deles que escreveu algo assim: ‘Você não tem vergonha? Como é que você vai dizer uma poesia em francês no Dia Pan-Americano, que não tem nada a ver? Você quis mostrar erudição, mas foi ridícula’. O cara acabava comigo. Fiquei chateada, mas depois pensei: ‘Puxa vida, eu preciso antes pensar naquilo que faço, não posso fazer tudo aquilo que me mandam, ou que pedem para eu fazer, então, se vou falar em público, eu tenho que ter consciência daquilo que eu estou falando, você já está com 17 anos, está fazendo último ano do Clássico, se você vai fazer alguma coisa em público você tem que ser responsável por aquilo que você está fazendo, você tem que saber o que você está fazendo, e assinar, ou não assinar embaixo’. Aí aprendi algo que me é útil até hoje. Se, de repente, leio alguma coisa que é um papel maravilhoso, decido que quero fazer esse papel, porque acho que vou fazer muito bem, porque é ótimo e não sei o quê, mas aí percebo que a peça é meio nazista. Aí não faço. Porque se eu fizer estarei passando um aval pra aquele texto. Estou dando um exemplo extremo. Ok, não precisa ser peça nazista, mas pode ser peça que esteja veiculando idéia com a qual eu não concorde, então pode ser papel maravilhoso, deslumbrante, mas eu não vou fazer. Isso que aconteceu comigo aos 17 anos e esse cara que me deixou os bilhetinhos... Bem, foram muito úteis, me fizeram adquirir a consciência da importância das coisas que a gente faz. Por mais que me defendesse naquela época, sabia que o cara que me enviava os bilhetinhos estava certo, não tinha nada que falar poesia em francês num Dia Pan-americano. Podia ter declamado um autor brasileiro, ia lá e declamava Castro Alves, e pronto. Isso me ensinou a pensar melhor nos meus atos. Capítulo XIV Pavores de Uma Mente em Pânico Recordo que as pessoas diziam que isso eu curaria freqüentando centros espíritas, que eu era médium, coisa e tal, que eu tinha problemas espirituais. A fase mais aguda dessa síndrome do pânico foi aos 15, 16 anos. Na época ainda não havia essa vulgarização de psicólogos que há hoje. Quer dizer, tive que resolver esse problema na raça. Às vezes estava andando na rua e, subitamente, tinha sensações de tontura, falta de ar, parecia que o chão ia sumir. A vontade que tinha era de sair correndo e gritando. Tinha que me controlar pra não gritar. Mas eu saia correndo muitas vezes , correndo pra voltar pra casa e pra não gritar no meio da rua. Parecia que ia sufocar, sentia muita falta de ar, tinha a sensação de que podia parar de respirar a qualquer momento, aquela vontade sufocada, muita falta de ar, parecia que não ia conseguir respirar. Qualquer situação de pressão, por exemplo, andar sozinha na rua, sabendo que estava sendo observada era uma situação de pressão, isso fazia me sentir muito mal e achar que ia enlouquecer. Isso acontecia assim de uma hora para outra, sem aviso prévio, era isso que me apavorava, que causava mais pânico ainda, porque você não sabe quando a crise podia vir, podia vir a qualquer momento. Então houve uma fase em que eu fiquei sem sair mais de casa. Eu não saía mais à noite com as minhas amigas, porque eu tinha medo. Porque, a qualquer momento, podia me sentir mal, e seria aquele vexame de ter que voltar pra casa correndo. Às vezes acontecia no meio de uma aula, então tinha que sair da aula e ir embora pra casa. Passei mais de um ano assim, de fase aguda mesmo. Meus pais começaram a achar que a solução estava no espiritismo. Aí passei a ir a algumas sessões espíritas. Às vezes ia com o Vô Gouveia. Às vezes ia com meus pais que freqüentavam um outro lugar, aliás, a casa dessa tia lá onde eu morei no porão. O filho dela havia se tornado médium muito famoso de Ribeirão Preto. Diziam que fazia muitas curas. Uma vez ele me levou pro centro espírita que dirigia e falou que queria que eu ficasse lá com ele, aí passei uma semana com ele, morando com ele lá e tal. Ele me ajudou muito, porque era pessoa muito sensata. Depois desse período, continuei indo às sessões, mas sempre achando que nada daquilo resolveria o meu problema, que nada daquilo era o que eu queria. Um dia ele chamou meu pai e minha mãe, num dia que eu passei mal, e aí meus pais chamaram ele pra ir lá em casa, e ele chegou e me viu naquele estado, e deu uma bronca em meu pai e minha mãe. Falou: ‘Essa menina não tem nada, ela pode até ser médium, ela tem sensibilidade pra isso, mas ela só pode exercer isso se quiser, e, no momento, não está querendo, não adianta vocês ficarem forçando, o que ela está precisando é de carinho, de conversar com as pessoas, ela não tem nada, vocês é que têm de entender’. Aí ele me levou de novo pra casa dele, fiquei uma semana lá com ele, muito mal, me sentindo constrangida pra caramba. Mas ele era muito sensato e não aplicou nenhum golpe, de querer me curar pelo espiritismo, querer dar uns passes pra ver se me curava. Pelo contrário, o tempo que fiquei lá, ele não me deixava descer para o porão, aquele porão onde morei e onde agora se realizava a sessão espírita. Ele não me deixava descer para a sessão espírita, ele dizia: ‘Você não precisa disso’. E eu ficava com minha outra prima lá bordando, na janela, adorava, era a coisa que mais me relaxava, ficar bordando o enxoval dela, bordo muito bem, gosto de bordar até hoje, e ele falou: ‘Você não tem nada, você, se quiser, pode ser médium, desenvolver, mas não adianta você ficar vindo pra achar algum tipo de cura, porque não é nada disso, você não tem nada, você não é doente’. Ele me deu essa força, me fortaleceu de alguma maneira, me fez saber que não era doente, não era maluca, porque o meu pânico maior meu era de estar ficando maluca, de estar ficando louca, porque de repente, do nada, pensava em sair gritando pelo meio da rua, de perder a consciência, de perder a lucidez. Capítulo XV Pausa Para Respirar um Pouco Era o medo da loucura, da perda do controle. À medida que não controlava mais as minhas reações, estive muito próximo da loucura, porque não me sentia mais dona de minhas emoções. Tive que aprender a me dominar, a me controlar. Conversava pouco, quase nada, sobre isso, com minhas amigas. Tinha muita vergonha de me sentir assim. Primeiro porque não sabia explicar o que era. Só dizia que eu estava passando mal, mas não dizia do quê. Não lembro de ter tido nenhuma conversa mais íntima com alguma amiga a respeito disso. Mas tinha uma vizinha, Delfina, que virou grande amiga minha e é grande amiga minha até hoje. Era mais velha do que eu, e se tornou uma pessoa muito querida. Com ela sim, eu falei tudo, ela ficou sabendo de tudo que estava acontecendo comigo. E, escondida do meu pai e da minha mãe, me levou num médico, médico normal, clínico geral, algo assim, porque aliada a essa minha loucura tinha toda aquela coisa do ciclo menstrual, não sei o quê e tal, e que podia estar relacionado com meu estado mental. Quando meus pais ficaram sabendo que Delfina me levou ao médico, ficaram putos, mas fazer o quê? Eles não tinham alcance para entender aquilo que estava se passando comigo. Foi época terrível, adolescência, pobreza, necessidade de me afirmar, tudo misturado. Era muita pressão em cima de mim. Tinha sede de conhecimento imensa, não tinha acesso a isso. Era pobre, vivia no meio de milionárias. Não sabia direito o que queria ser da vida. Sofria muita pressão, a pressão era minha mesmo, mas dos outros também. Quando concluí o ginásio, toda a minha família achava que meu caminho normal era ser professora primária. Para eles o lógico era eu fazer o curso Normal por mais três anos, começar a trabalhar, e não encher mais o saco de ninguém. Na época o primeiro ano Clássico era equivalente, servia também para o curso Normal. Então quando terminei o primeiro ano do Clássico, deveria passar para o curso Normal, cursar mais dois anos, me formar, e acabou. Só que eu não queria, queria continuar fazendo o curso Clássico. Então, o que eu fiz? Consegui bolsa de estudos à noite, numa escola lá assim não muito boa, não tão boa quanto o curso Normal do Colégio Estadual de Ribeirão Preto, que era ainda do estado, também. Porque na época, os melhores colégios eram estaduais, pra você vê como que o ensino decaiu. Era uma época em que as milionárias estudavam no colégio estadual porque o ensino era o melhor que havia. Então? Aí passei a fazer o curso Clássico durante o dia e o Normal, à noite. Era tentativa de encontrar maneira de satisfazer os meus pais, quer dizer, faria o curso Normal, me formaria, mas não abandonaria o Clássico. Vivia muito tensa nesse período, e muito cansada. E foi exatamente aí que minha síndrome de pânico atingiu os maiores picos, que a coisa apertou mesmo. Não via saída, me sentia encurralada. Tanto o médico que consultei, quanto esse meu primo espírita falaram que tinha de parar, que tinha que escolher uma coisa ou outra, porque toda a situação que estava passando era causada por esse dilema. Mas não conseguia sair do buraco. No início achei que podia fazer o curso Normal na flauta, sem estudar, sem me preocupar, sem levar a sério, ir enrolando e coisa e tal, só pra passar de ano. Só que não conseguia agir assim. Levava tudo a sério, estudava até de madrugada, fazia todos os trabalhos da melhor maneira possível. Então a pressão foi aumentando, e eu explodi. Só no último ano, aconselhada por algumas poucas pessoas que sabiam do meu dilema, é que conversei seriamente com meus pais. Falei: ‘Olha, quero continuar a estudar, mas não adianta insistirem porque não vou ser professora primária, o que quero mesmo é ir fazer faculdade em São Paulo, vou juntar dinheiro como meu irmão Carlinhos fez e trabalhar e estudar em São Paulo’. Durante toda essa crise, lia muito. Nunca parei de ler. A literatura me ajudou muito, porque sempre qualquer leitura pra mim é um relaxamento e sempre traz algum ensinamento, mesmo que seja apenas o prazer estético, de estar lendo um bom autor, de estar em contato com boa literatura. Então os livros sempre funcionaram para mim como calmante. Até hoje, pressionada por algum motivo, pego um bom livro, e pronto, relaxo. Não sou de tomar tranqüilizante, o máximo de tranqüilizante que tomo é chá de erva-cidreira. Mas um bom livro é melhor. Pego um bom livro, me isolo do mundo, e acabou. Nessa época de crise foi que descobri a Filosofia. Comecei a me interessar porque, como falei, estava naquela fase de muitas buscas inclusive religiosas, inclusive existenciais. Fui lendo livro de Filosofia que encontrava na Biblioteca de Ribeirão Preto, por conta própria, sem nenhum tipo de orientação. Foi aí que descobri Schopenhauer, e me identifiquei totalmente com aquele niilismo, com aquele pessimismo dele. Percebi que eu não era a única a pensar aquelas coisas estranhas sobre a vida e a morte. E, por meio dele, fui descobrindo a possibilidade de se explicar o mundo pelo pensamento. Aí passei a ler Platão, Descartes. Essas leituras me revelaram novas possibilidades, que me levaram a cursar Filosofia algum tempo depois na Universidade de São Paulo. Apesar dessa crise de pânico que tive na adolescência, não era pessoa triste, isolada. Lembro que uma época a gente formou um grupinho, umas oito meninas, é éramos muito unidas, e muito brilhantes. Brilhantes assim no sentido de tomarmos iniciativas. Uma delas foi organizar aos domingos pela manhã uma espécie de parlamento, um lugar de discussões e de debates de idéias. Rapazes e moças juntos, a maioria queria fazer Direito, era ótima maneira de exercitar a nossa oratória. Fizemos também algumas campanhas sociais, como a que promovemos em favor do menor abandonado. Criamos um jornal na escola. Enfim, agitávamos. Mas afora isso desenvolvíamos muitas atividades fora do colégio, passeios, bailes, quase todo final de semana tinha festa na casa de alguém. Não fui adolescente festeira, mas sempre saía com os amigos nos finais de semana. Acho que aquela menina solitária de Tatuca e Anil existe em mim até hoje, nunca deixou de existir dentro de mim, sempre olho o mundo com olhos um pouco espantados. Mas acho que acabei me adaptando às novas circunstâncias, e sempre procurei ter vida normal de toda adolescente, de todo jovem, enfim. Ribeirão Preto tinha (e tem) importantes faculdades de Medicina e Odontologia. Então havia sempre muitos rapazes bonitos que vinham de fora e da própria cidade. Os bailes da Faculdade de Medicina eram sempre muito animados, e eu sempre ia. Acho que tive meu primeiro namoradinho aos 13 anos. Quando tive essa crise de pânico estava tendo um namorado, mas terminei o namoro logo nas minhas primeiras crises, porque o que queria mesmo nessa época era me isolar, não queria me envolver profundamente com ninguém. Senti que estava melhorando daquela crise de pânico que agitou minha adolescência quando descobri, não sei como, um jeito de exercer um controle sobre as minhas emoções. Quando começava a sentir alguma coisa estranha, disparava um mecanismo qualquer para não dar nenhuma importância a essas coisas estranhas, aprender a me controlar, sabe, porque se você deixa o pânico tomar conta de você, a coisa vai aumentando até você perder o controle. Então, quando surgia algum sinal de pânico iminente, começava a pensar assim, bom, o que é que pode acontecer? O máximo que podia acontecer era eu morrer, e morreu, acabou. Ah, vou desmaiar, pensava. Bom, se eu desmaiar, alguém me socorre, alguém me leva para um hospital e tudo se resolve. Mas não era fácil. Não era assim tão fácil como eu estou falando agora. Mas, percebi, o caminho era esse: quando você começa a perceber o sintoma, você fala assim ‘está chegando’, ‘vamos ver até onde isso vai’. Aí eu me observava, me via, ficava medindo a pulsação, porque dava a impressão de que o coração ia parar de bater, de que não haveria mais pulsação nenhuma, que não haveria mais nada. Mas aí, com o tempo, começou a diminuir. Ainda assim essa sensação de pânico perdurou durante minha vida inteira, e de vez em quando volta. De leve, mas volta. A adolescência é período da vida da gente em que tudo acontece. Comigo foi assim, aconteceu tudo ao mesmo tempo naquela época. Essa coisa de envolvimento político também. Eu lembro com clareza o exato momento que minha consciência social começou a despertar: foi quando li O Cavaleiro da Esperança, o livro do Jorge Amado sobre Luiz Carlos Prestes. Esse livro pirou minha cabeça, e foi uma ponte de conversa que eu achei com meu pai. Eu nem suspeitava, mas quando li o livro e comecei a conversar com meu pai sobre Prestes, descobri que meu pai adorava Prestes, que o admirava profundamente. Não, ele não era pessoa politizada, mas adorava Prestes. Além do livro, tinha o pai de uma colega minha que era muito politizado. Foi ele quem me falou em marxismo pela primeira vez. Teve também o Vô Gouveia, sempre ele, que tinha O Capital escondido entre aqueles livros de poesia que povoaram a minha infância. Um dia, já adolescente, fuçando as coisas dele, achei empoeirado exemplar do livro de Karl Marx, e aí o li inteiro, interessadíssima. Ou seja, foi também na adolescência que essa consciência de querer o mundo se formou claramente na minha cabeça. Capítulo XVI Terceiro Ato Cheguei a São Paulo no começo de 1959. Até então o teatro era uma coisa muito distante para mim. Algo tão distante quanto Hollywood. Eu não conhecia os meios de se chegar até o teatro. Não podia dizer sequer que sonhava em ser atriz. Era mais a coisa da fantasia, mesmo. Não era realidade, não era uma realidade possível. Lembro que foi quando cheguei em São Paulo que fiquei sabendo da existência de uma escola de arte dramática – a Escola de Arte Dramática, ligada à Universidade de São Paulo, que funciona até hoje. Não sabia que existia escola assim. Uma amiga me falou a respeito e fiquei louca pra ir lá ver como é que era. Mas, primeiro, a escola era paga e, segundo, não podia vir fazer Filosofia e de repente mudar de idéia. A bem da verdade, nessa época não sabia bem o que queria da vida. Tinha o interesse do saber, do conhecimento, querer descobrir coisas e tal, então me parecia que o caminho mais adequado era a Filosofia, que, sabia, buscava o conhecimento total das coisas. Mas não era claro pra mim a idéia do que faria com aquele conhecimento, se aquilo teria alguma utilidade prática na minha vida, ou não. Era pobre e pensava que tinha logo de fazer dinheiro, conseguir trabalho, me virar. Para conseguir me mudar de Ribeirão Preto para São Paulo foi complicado. Meus pais não queriam deixar. Estava com 18 anos, curso Clássico concluído, e meu irmão mais velho estava vindo para São Paulo nessa época. Ele trabalhou, juntou algum dinheiro, ele e um tio meu tinham comprado um terreno em Ribeirão, venderam esse terreno e meu irmão conseguiu o dinheiro para vir para São Paulo e pagar moradia numa pensão. Ele passou no vestibular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Mas não dava para eu vir também logo, como eu queria. Meus pais não tinham condição de me financiar aqui. Não tinha como eu vir. Então, conversando com meu irmão, a gente se entendeu. Ele falou: ‘Olha, este ano eu vou agora, então você tenha paciência, espera um ano, no ano que vem você faz vestibular e vai também’. Tive que me conformar. Minhas amigas todas vieram para São Paulo para fazerem vestibular e tal, e eu fiquei. Foi um período difícil, já não tinha mais o colégio, minha turma toda já estava em São Paulo. Minha única saída era continuar lendo muito, virei ‘rato’ de biblioteca mesmo. Lembro que, acho que foi na Páscoa, meu irmão foi pra Ribeirão Preto e sei que a gente conversou, ele e meus pais, e meus pais falaram que não tinham condições de me mandar para São Paulo. Mas eu bati o pé, falei: ‘Olha, quero ir, posso ficar na casa de alguém, vou, trabalhar, arrumo um emprego’. Mas meus pais continuaram firmes: diziam que não tinha como eu vir para São Paulo, e meus pais se recusavam terminantemente a permitir que eu viesse sozinha, mesmo com meu irmão já morando aqui, e tudo. Mas ele morava numa pensão fuleira qualquer, dava aula num cursinho, estava se sustentando, mas não tinha condições também de me bancar, mas eu não queria que ele me bancasse. Eu repetia: ‘Quero arrumar um emprego, trabalhar e fazer vestibular’. Mas meus pais não queriam deixar de jeito nenhum. Sei que foi a maior discussão. Eu insistia, eu dizia: ‘Eu quero, mas eu quero ir de qualquer maneira, eu quero ir de qualquer maneira.’ Aí meu irmão tentava me consolar e dizia: ‘Então espera, espera mais um mês, não sei o quê, a gente vai achar uma solução’, e eu vi que eles estavam me enrolando. Aí logo depois mandei uma carta pro meu irmão, e escrevi: ‘Bom olha, eu só estou te comunicando a minha decisão, eu vou para São Paulo, eu vou para São Paulo, vou sair de casa. Meu pai deixando ou não deixando, eu vou embora. Então você pode me ajudar ou eu faço sem ajuda de ninguém, e vou sozinha’. Na semana seguinte ele foi pra Ribeirão Preto, porque meu irmão, meus pais confiavam muito nele, ele era meu protetor mesmo, aquele irmãozão. Capítulo XVII Uma Casinha às Margens do Ipiranga Bom, resumo da história: meu pai já estava aposentado, levando aquela vidinha sossegada na rua em que nasceu, onde foi criado, onde sempre morou, onde conhecia todo o mundo, vivendo ali bem, dentro das limitações, mas uma vida sossegada, tranqüila, não sei o que lá. Pois bem, mesmo assim, a única solução que meus pais acharam foi botar as malas nas costas e mudar para São Paulo. Eles tinham dois filhos, os dois estavam querendo vir para São Paulo e a única maneira de realizar isso era eles virem também. Então mudamos pra cá. Fomos morar no Alto do Ipiranga, numa casinha perto de um tio meu que já morava lá. Quer dizer, foi um imenso gesto de amor da parte deles, hoje entendo assim. Não havia a menor necessidade de fazerem isso, mas fizeram isso porque sabiam que meu irmão estava levando uma vida também bem miserável aqui em São Paulo, não estava vivendo bem. Lá em Ribeirão a gente tinha casa alugada, a gente nunca teve casa própria. Aí nos mudamos, e eu consegui um cursinho, onde fazia apenas algumas aulas de história da Filosofia, era cursinho preparatório para o vestibular. A gente foi morar numa vila que pertencia a um médico que morava numa casa em frente, e, para tirar um dinheirinho para ajudar nas despesas, comecei dar aula particular pros filhos desse médico. E continuei batalhando um emprego, qualquer coisa servia. Minha mãe continuava trabalhando de costureira, mas, quando chegou aqui, não tinha freguesia nenhuma. A aposentadoria do meu pai não aumentou e a nossa única fonte de renda era a aposentadoria dele. Aí minha mãe conseguiu através da minha tia, a mulher do meu tio, um trabalho numa fábrica lá perto, e começou a trabalhar para essa confecção. Às vezes ela levava roupa pra costurar em casa na máquina Singer que a gente tinha em casa. A vida seguia assim quando fiz o vestibular e, imagine, entrei em primeiro lugar na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo. A Faculdade de Filosofia funcionava nessa época na Rua Maria Antonia. Eu me matriculei no curso noturno, porque queria arrumar emprego durante o dia. Meu pai tinha um medo desgraçado que eu estudasse de noite. Ele achava que tinha um bandido em cada esquina de São Paulo. Mas naquela época São Paulo ainda não era assim. Ele dizia: ‘Imagine, fazer curso noturno, chegar tarde da noite em casa... De jeito nenhum’. Mas eu insisti: ‘Nada disso, vou estudar à noite e trabalhar durante o dia’. Meu pai teve que aceitar, e logo arrumei emprego de auxiliar de escritório na Sanbra, Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro, empresa que fabricava óleo de cozinha. Era duro. Entrava no trabalho às sete da manhã, então tinha que acordar às cinco para pegar o ônibus e chegar no horário. Trabalhava o dia todo e depois ia a pé até a Faculdade de Filosofia, na Rua Maria Antonia, onde as aulas começavam às sete da noite. Depois mudei de emprego, fui ser secretária de um curso por correspondência, mas a dureza continuou. A época mais fascinante foi exatamente quando cheguei a São Paulo. Como não tinha livro, nem, muito menos, dinheiro para comprar, ia para a Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, e passava horas lá lendo e estudando. Às vezes chegava ao meio-dia e só ia embora quando a biblioteca fechava, à noite. Além de ler e estudar, conheci muita gente interessante porque a biblioteca era ponto de encontro de jovens intelectuais. Tinha a turma dos malditos, formado por um pessoal que era considerado meio barra-pesada, da qual fazia parte o Vladimir Escobar, que depois virou marido da atriz Ruth Escobar, e mais alguns poetas desconhecidos. Havia outro grupo também, formado por pessoas que também iam cursar Filosofia, que se tornaram meus grandes amigos. A maioria estudava no Roosevelt, que era o melhor colégio estadual de São Paulo àquela época, com professores maravilhosos, que acabou resultando numa série de brilhantes intelectuais. Em contato com esse pessoal, percebi como estava muito desinformada, apesar de ter lido, descontroladamente tudo que me caía às mãos lá em Ribeirão. Para mim era como se tudo fosse novidade, era a descoberta de um mundo novo, eram filmes que nunca havia visto, livros que nunca tinha lido, então essa época me abriu a cabeça em todos os sentidos. Era a época em que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir estavam na crista da onda e a gente andava pela biblioteca como se andássemos pela Sorbonne, na França. Havia então acirrada polêmica entre existencialistas e marxistas. Essa polêmica, essa briga, também ocorria na minha cabeça. Nos tempos da biblioteca estava mais para o existencialismo. Mas, quando entrei na faculdade, pendi mais para o marxismo. Essa foi uma época de deslumbramento para mim, de abrir a minha cabeça para o novo, para o desconhecido. Comecei a aprender a andar sozinha em São Paulo, a conhecer os encantos da grande metrópole, era uma menina deslumbrada do interior que caía de num mundo totalmente novo. Capítulo XVIII Entre a Filosofia e o Bar do Zé Costumo ser honesta e dizer que fui muito mais ao Bar do Zé do que à Faculdade de Filosofia. O Bar do Zé é um bar que existe até hoje na Rua Maria Antonia, bem ali na esquina com a Dr. Vilanova, no centro de São Paulo. Hoje é um bar meio modernoso, mas na época era um bar bem fuleiro, bem “pé-sujo”. A gente se reunia lá, o pessoal da Universidade Mackenzie, o pessoal da Filosofia da Maria Antonia, aquilo ali fervia de tanta gente todas as noites. No primeiro ano ainda cheguei a freqüentar as aulas, mas logo me decepcionei. Fantasiava muito com a idéia de faculdade, achava que lá seria formidável fonte de saber e de conhecimento, que lá decifraria as coisas, as pessoas e, principalmente, a mim mesma. Mas aí, de repente, vi que aquilo lá era apenas escola como outra qualquer, que havia uma aula, que você anotava umas coisas e depois tinha uma prova. Era a mesma coisa que no colégio, não era nada do que tinha pensado antes. Então foi uma decepção muito grande. Acho que estudei mais Filosofia me preparando para o vestibular do que na faculdade. Não lembro de nenhum assunto, nenhuma matéria, que pudesse dizer, aquilo estava me interessando. Mas fora da sala de aula, era lá que tudo acontecia naquela época. Entrei na faculdade em 1960, quando a Faculdade de Filosofia da Maria Antonia era palco dos grandes acontecimentos políticos de então. Ir para o Bar do Zé significava estar o tempo todo discutindo política, o tempo todo discutindo o nada, que era a coisa, o assunto mais interessante, mais fascinante para se discutir. Eram discussões intermináveis sobre o nada, enquanto se bebia muita pinga, porque a gente não tinha dinheiro para pagar cerveja. Saía de casa com o dinheiro contado para o ônibus, um copo de leite, e um sanduíche de mortadela, que era o lanche que faria à tarde. Só que já tinha começado a fumar nessa época, então comprava cigarro, pinga e sanduíche de mortadela, o leite caía fora. Não tinha dinheiro, mas foi época maravilhosa de minha vida. Foi um dos períodos mais férteis e enriquecedores de minha vida, tudo era novo e absolutamente fascinante. Era tanta coisa ao mesmo tempo, que a faculdade não bastava, e, aos poucos, por volta de 1961, fui abandonando o curso e começando a me envolver perigosamente com o teatro. A culpada foi amiga minha que conhecia o pessoal do Teatro Oficina. Resultado: ia com ela a todos os espetáculos do grupo. Foi quando conheci Fauzi Arap, que era do núcleo do Centro Popular de Cultura, o CPC, da Filosofia, e me convidou para participar do grupo. Acabei participando de uma criação coletiva que se chamava O Balanço e foi apresentada em faculdades e sindicatos, sempre para o público popular, sempre de graça. Fomos então convidados para participar do Festival de Teatro Universitário que Paschoal Carlos Magno promovia em Campinas. Foi lá que conheci Plínio Marcos, com quem acabei me casando algum tempo depois. Nessa época já estava completamente envolvida com política. Mais especificamente com o Partido Comunista Brasileiro. Fui apenas simpatizante, não fui aceita como militante, não consegui a carteirinha do Partido porque o partido era um convento, um convento. Capítulo XIX A Primeira Desilusão com a Esquerda Nessa época já trabalhava num escritório de pesquisa de mercado, eram uns três ou quatro sócios, ligado a Ciências Sociais que estavam abrindo um negócio. Então fui trabalhar com eles, como secretária. Só que ninguém tinha grana, acabaram não me pagando, e tive de sair. Mas era um lugar fascinante, porque então, também no ambiente de trabalho, podia conviver com intelectuais de esquerda que me apontavam novos caminhos, não era mais aquela caretice da Sanbra e do curso por correspondência. Um dos sócios dessa empresa era um cara que tinha sido profissional do Partido, que tinha viajado o mundo inteiro pelo Partido, mas que tinha acabado de ser expulso por causa de algumas divergências ideológicas. Eu me afeiçoei muito a ele, ficamos muito íntimos. Foi ele quem na verdade me deu toda uma orientação política, de marxismo mesmo, quem me orientava nas assembléias da faculdade sobre que linha deveria apoiar. Ele apoiava incondicionalmente toda a linha do Partido, tinha sido expulso meio que injustamente, tinha feito isso durante a vida inteira e não sabia fazer outra coisa na vida, e sofria muito com a situação que estava vivendo. Bom, só sei que sempre me aconselhava pra eu entrar pro Partido, pra sempre votar nas decisões do Partido, e aí comecei a conhecer, comecei a andar junto com o pessoal do Partido. No início era designada para fazer aquelas tarefas mais básicas. Era ‘tarefeira’, como se dizia naquela época, era aquela pessoa que imprimia panfleto em mimeógrafo a álcool, ficava rodando aquela manivela, e saía distribuindo esses panfletos pelas ruas. Mas queria ir mais longe. Passei a freqüentar umas reuniões mais sigilosas, meio clandestinas, e soube que eu estava em observação para ver se seria aceita ou não no Partido. Aí lembro que soube que haveria um daqueles bailinhos para recolher fundos para o Partido e que o Luiz Carlos Prestes estaria presente. Não pensei duas vezes. Fui para o baile assim babando, quando cheguei perto do homem, quando vi o ‘Cavaleiro da Esperança’ na minha frente, quase morri de felicidade. Se me mandassem fazer o que fosse naquele momento, saía e fazia. Mas, nesse mesmo baile, dois dirigentes da nossa célula vieram conversar comigo, e tinham uma conversa meio estranha. Diziam: ‘Ah você conhece fulano, não sei o que lá, coisa e tal’. Respondi: ‘Sim, trabalho junto com ele, por quê?’. Depois disso rolou uma conversa mole, diziam: ‘Mas ele é casado’, tipo assim, ‘Você tá namorando ele, com um cara casado’, mas não perguntavam diretamente, mas era o que estavam querendo insinuar. Comecei a estranhar. Pensei ‘Caramba, isso nem em Ribeirão Preto, nem em Ribeirão Preto, eu passei por uma situação dessa, não acredito que isso esteja acontecendo’. E eram duas pessoas intelectuais, muito politizadas, muito conceituadas, que para mim eram assim meio deuses, sabe? Então pensei ‘Não acredito que esses caras estejam me sondando para saber que estou namorando um homem casado ou não’. Mas eles continuaram a insinuar coisas, e aí, sabe, botei o pé atrás, fiquei meio malcriada, passei a responder mal, a dizer: ‘Saio com ele sim, qual é o problema?’. E os caras insistiam: ‘Mas vocês conversam muito?’. Resultado: fui proibida de continuar freqüentando as reuniões porque andava com alguém que tinha sido expulso do Partido. Achavam que estava namorando o cara e o cara era casado, então não podia e coisa e tal. Fiquei puta da vida! Essa foi a minha última experiência de querer pertencer a qualquer partido político, falei: ‘Não vou agüentar viver com gente assim, tinha 21 anos, mas já percebia que não ia agüentar aquela coisa muito rígida, muito careta deles’. Até entendo que se deve ter uma certa disciplina num partido de esquerda, mas aquilo que era um evidente exagero. Decidi: ‘Vou sair do Partido, não vou ter condições de ficar; porra, o Prestes taí, o meu ídolo, esses dois caras que considero assim intelectuais, sábios, pessoas que conhecem tudo do marxismo, conhecem toda a dialética da história, nossa, esses dois caras são tão moralistas que não querem me aceitar porque acham que estou namorando cara casado, e não estou, e se estivesse eles não tinham nada com isso, e mais, acham que esse cara está me usando para se infiltrar no partido, coisa e tal, aí vi que não dava mesmo’. Então caí fora. Continuei votando com o partido, fazia algumas tarefas, mas não fui mais nenhuma líder, e nunca tive a carteirinha do partido. Capítulo XX A Raposa, o Teatro, a Revolução e as Uvas Foi também nessa época que comecei a freqüentar teatro. Não tinha dinheiro para comprar ingresso, mas o Teatro de Arena sempre fazia temporada a preços populares e, às vezes dava pra assistir. Antes de me mudar para São Paulo, vim passear com uma prima minha, e fomos assistir o espetáculo A Raposa e as Uvas, de Guilherme Figueiredo, com o Sérgio Cardoso e a Nydia Licia. Fiquei fascinada. Para entrar nas peças que a gente não podia pagar, eu e um amigo meu usávamos um truque que nem sempre funcionava. Íamos para o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, e ficávamos esperando o público entrar. Depois que todo o público entrava e tal, a gente ia até a bilheteria e contávamos o nosso drama: ‘Não temos dinheiro, deixa a gente entrar, não sei o quê, somos muito pobres, deixa a gente entrar’. De vez em quando liberavam a nossa entrada e, claro, ficávamos muito felizes. Assistindo peças e freqüentando teatros, acabei me aproximando de algumas pessoas de teatro. Mas me aproximava por me aproximar, não tinha aquela idéia fixa de ser atriz nem nada. Até hoje não sei muito bem o que fazer da vida, imagina então naquela época! Mas era um caminho novo que não tinha imaginado antes, e ia em frente para ver no que é que ia dar, meio sem parar para planejar nada, apenas indo. Mas na verdade já tinha descoberto, desde Ribeirão Preto, que me sentia muito bem representando, que, em todos os sentidos, me sentia muito bem no palco. Além do mais, acreditava na finalidade política do teatro, achava que era meio muito adequado de se fazer política. Em vez do discurso, tentar transformar o mundo por meio da arte, podia ser aquilo que queria. Aos 21, 22, anos, mesmo desencantada com o moralismo do Partido, queria fazer a revolução socialista, com certeza, com ditadura do proletariado inclusive. Tudo bem quando isso era apenas um fervor idealista. O problema era quando se discutia os meios para se chegar a esses fins, e quase sempre para se chegar a esses fins tínhamos que sujar as mãos. Aí me desencantava. Já era assim naquela época, nas menores reuniões, nas menores assembléias, para que nossa posição prevalecesse, a gente tinha que fazer um monte de coisas com as quais nem sempre concordava. Então a política nunca me interessou para seguir, como carreira, ou como opção de vida. Não tenho essa habilidade, nunca tive, continuo não tendo, para fazer conchavos, para sujar as mãos se precisar sujar. Por isso, sempre preferi ficar mais à margem, apoiando aquilo que considerava correto e não apoiando aquilo que não considerava correto. Sempre defendi idéias, a questão, o grande nó, sempre foi como colocar essas idéias em prática, isso nunca soube fazer, nunca tive vocação para fazer. A política é arte necessária, maravilhosa e fascinante; a articulação de várias tendências dentro de uma sociedade para se alcançar determinados objetivos; conseguir lutar por um bem comum para a sociedade; articular essas tendências todas. Isso é uma arte, só que essa arte não é feita como deveria, logo, prefiro continuar atuando apenas no plano das idéias. Capítulo XXI Plínio, a Coelhinha e a Árvore que Andava Conheci Plínio Marcos nesse festival de teatro universitário de Campinas. Quando o conheci já tinha escrito Barrela, que também já havia sido proibida. Ou seja, ele já tinha certa experiência com censura e sempre foi muito independente, nunca quis se filiar a nenhum partido político, a nenhuma posição política, a nada. Tinha cinco anos a mais que eu, e nessa época ainda morava em Santos, mas já estava se mudando para São Paulo. Já tinha umas coisas que ele fazia aqui em São Paulo, dirigia umas peças na faculdade, coisa e tal. Mas estava na pior. Eu, pior ainda. Então resolvemos montar peça infantil e ele dirigiu. A peça chamava A Árvore que Andava, era de Oscar Von Pfuhll, um autor santista, e o Plínio me escalou para fazer o papel de uma coelhinha. Com a entrada do Plínio na minha vida, a coisa do teatro ficou mais próxima, mais real. E nessas alturas, já era 62, 63, já estava muito afastada da faculdade, na verdade já estava mais ligada a esses grupos mais periféricos. A partir do segundo semestre de 62, nem ia mais à aula, já tinha abandonado a faculdade de vez. Foi então que Plínio conheceu Cacilda Becker, ficaram muito amigos, coisa e tal. Dessa amizade surgiu o convite para fazermos o espetáculo infantil no Teatro Cacilda Becker, na Av. Brigadeiro Luís Antonio. Sérgio Cardoso protagonizava Calígula, de Albert Camus, à noite, e nós fazíamos o infantil à tarde. Nessa época já trabalhava em emprego mais razoável. Fazia tradução e revisão numa editora. Adorava fazer revisão. Até hoje sou boa revisora, porque tenho muito interesse pela linguagem, e isso vem de meu grande interesse pela literatura. Esse é um filão que eu trouxe para o teatro, sabe? Gosto muito da palavra, gosto de como se diz as palavras, de perceber as diferenças de estilo de um autor pro outro, a maneira como você diz uma palavra ou outra, de acordo com um estilo de cada autor, eu curto muito isso. Nessa editora, a Fulgor, trabalhei um certo tempo, acho que uns dois anos. Os donos, os irmãos Fanelli, eram também ligados ao Partido. Publicavam livros de esquerda, uma coleção chamada Universidade do Povo, textos de Francisco Julião, aquelas coisas todas que depois seriam apreendidas pela Ditadura Militar. Era um emprego legal porque tinha tudo a ver com minha formação. Mas ainda continuava morando com a minha família, lá no Alto do Ipiranga, e tinha um novo sonho: conseguir bolsa para estudar na Universidade de Sorbonne, em Paris. Aí minha mãe adoeceu, de câncer, e tive desistir da idéia. Desisti também por causa do Plínio, com quem começava a me envolver intensamente. Como morava muito longe do centro, estava querendo, juntamente com umas amigas, alugar apartamento mais central, mas com a doença da minha mãe, não deu pra fazer nada disso, eu tive que continuar morando lá, a minha mãe, doente, precisava muito de mim. Então era aquela história, as assembléias duravam até tarde, a gente não tinha telefone, naquele tempo pouca gente tinha telefone, então tinha que voltar correndo, porque, se não voltasse para dormir em casa, meu pai e minha mãe morriam. Um dia as coisas deram errado e só consegui chegar em casa muito tarde. Estava todo o mundo enlouquecido. Aí falei: ‘Pai, mãe, a situação é a seguinte, estou me envolvendo com política, e vou entrar para o Partido Comunista.’ Não acreditei, ele me deu a chave de casa na hora, e, alegre, ria e dizia: ‘Então chegue a hora que quiser’. E chorava de alegria e de contentamento. Fiquei muito surpresa. Pensava que meu pai se chatearia, que esbravejaria, nunca pensara que meu pai acharia essa idéia tão maravilhosa. Aí acrescentei: ‘Não estou chegando tarde em casa por sacanagem, não estou em nenhuma farra, nenhuma orgia, nem nada. Teve uma assembléia na faculdade, eu estava lá discutindo política, junto com o pessoal do Partido Comunista’. A partir daí fiz trato com eles, falei: ‘Não se preocupem. Quando tiver que ficar realmente até muito mais tarde, durmo na casa de alguma amiga, mas antes ligo pra casa do médico que é nosso vizinho e peço para ele avisar vocês.’ Percebi que tinham plena confiança em mim. Isso me deu uma responsabilidade muito grande, porque aí entendi claramente a noção de responsabilidade, de você nunca trair compromisso que você tem com outra pessoa. Achei tão linda a atitude de meu pai, de acreditar em mim, de dizer pra mim: ‘Chegue a hora que quiser, se não quiser vir dormir em casa não venha’. Depois disso me tornei muito rigorosa comigo mesma, no meu comportamento, porque tinha esse compromisso com meu pai, não podia trair a confiança dele. Esse episódio, com certeza, foi fundamental para a formação do meu caráter. Capítulo XXII Casamento na Casa de Cacilda Becker Não demorei a casar com Plínio, que já trabalhava na Companhia de Cacilda Becker, que começava os ensaios do musical Onde Canta o Sabiá, de Gastão Tojeiro, com direção do Hermilo Borba Filho. Walmor Chagas e a Cacilda Becker, então casados, me convidaram para fazer um papel na peça, o que acabou sendo minha estréia profissional. Foi durante a temporada desse espetáculo que me casei com Plínio. Casamos apenas no cartório. Não íamos nos casar, queríamos simplesmente morar junto, mas minha mãe estava mal de saúde, e a gente sabia que ela queria muito nos ver casados legalmente, para poder dizer para todo o mundo que a filha dela havia casado de acordo com os ditames da lei. Mas a alegria de costurar o meu vestido de noiva, essa alegria não dei pra minha mãe. Sei que ela queria que me casasse na igreja usando véu e grinalda, mas aí eu conversei com ela, o Plínio também, nós conversamos, e dissemos para ela que não dava. Era minha fase atéia, não acreditava em Deus, não acreditava em nada disso, então eu disse então para minha mãe: ‘Não vou fazer isso, não vou casar na igreja porque é só uma convenção casar na igreja, vai ser um desrespeito com a religião se for lá fazer esse papel, já que nem eu nem Plínio acreditamos nisso. Então não podemos fazer isso, vamos casar, mas não vai ser na igreja, vai ser apenas no cartório’. Casamos numa segunda-feira de manhã, único dia de folga da Companhia, naquela época se fazia espetáculo nos teatros de terça a domingo, com vesperal de quinta e duas sessões aos domingos. Quando a gente foi marcar o casamento no cartório, o juiz falou: ‘Mas ninguém casa numa segunda-feira pela manhã!’. Mas explicamos a situação e ele falou: ‘Então estejam aqui às nove da manhã porque tenho uma pescaria depois. Se vocês se atrasarem eu vou embora!’. Então, nove horas da manhã estávamos lá, família, todo o mundo. Como minha mãe queria festa de casamento, então fizemos pequena concessão e promovemos almoço. A família de Plínio foi inteira. Como ninguém da família acreditava que Plínio fosse casar um dia, a família inteira estava lá. Vieram todos, tias, tios, primos, todo o mundo, como se tivessem ido para conferir que ele havia casado mesmo. Cacilda Becker gostava demais de Plínio, eram muito amigos. Então quando a gente falou que ia casar, esperava que a gente os convidasse, ela e Walmor Chagas, para serem os nossos padrinhos. Acontece que Plínio tem vários irmãos, mas apenas uma irmã. E eu só tinha esse irmão único, e minha mãe não se conformava se não convidasse o meu irmão para ser o meu padrinho. Aí falamos com Cacilda, explicamos a situação, dissemos que, para nós, ela seria a nossa madrinha, mas que tinha essa situação familiar. Então ela disse que seria nossa madrinha de qualquer jeito. No domingo seguinte ao casamento civil, depois do espetáculo - ela morava em cobertura na Av. Paulista, ao lado do Museu de Arte de São Paulo, o Masp - fez uma cerimônia especialmente para nós lá. Tinha padre, era um ator amigo nosso, tudo à luz de velas, eu e Plínio entramos como se fosse na igreja. O elenco todo da peça estava lá. Logo que a gente se casou, como minha mãe continuava doente e meu irmão também ia casar, a gente foi morar na casa de uma irmã de Plínio que morava perto lá da minha casa. A idéia era aguardar meu irmão casar para nós então irmos morar com os meus pais, já prevendo que eu teria que tomar conta de minha mãe, já que ela continuava mal de saúde. Queríamos muito dar de presente um neto para minha mãe. Conseguimos dar esse presente. Minha mãe conseguiu viver até quinze dias depois do nascimento de Leonardo, o nosso primogênito, e sei que esse um ano de vida ela viveu mais por causa do neto. Depois que minha mãe morreu, alugamos apartamento na R. Gal. Jardim, na região central de São Paulo, coincidentemente no mesmo prédio que o ator Paulo José. Capítulo XXIII A Vida Difícil nos Anos de Chumbo Plínio era personagem fascinante. A gente não tinha idéias pré-concebidas em relação a nada. Cada fato novo era um fato novo que se analisava e diante do qual se tomava um partido, uma posição. Essa independência de pensamento dele era uma coisa que eu também tinha, não querer ser censurado, pensar livremente a respeito das coisas, essas eram coisas que a gente tinha em comum. Afora isso, tínhamos um comportamento ético muito semelhante, e certos valores comuns. Plínio poderia ser definido por palavra muito em moda na época: autêntico, que era jeito de que nós, intelectuais metidos a besta, descobrimos para definir alguém que era um pouco selvagem assim como Plínio. Eu, por mais que pensasse livremente, tinha toda uma formação intelectual que embasava o meu pensamento, entendeu? Plínio não tinha essa formação intelectual, tinha um pensamento muito mais limpo, mais puro, a opinião dele era fresca, instigante. Era, de fato, um autêntico. Ele me trouxe uma coisa que eu não tinha, que era a vivência, uma riqueza de vida que ele teve e que eu só conhecia através da literatura. Ele tinha um temperamento forte, ele se exaltava quando queria defender uma idéia dele. Também nunca foi de reverenciar por reverenciar, só reverenciava pessoas que de fato admirava, só respeitava as pessoas que achava que realmente mereciam respeito. Respeitava, respeitávamos, por exemplo, Cacilda Becker, grande mulher, ser humano maravilhoso que batalhou, venceu, lutou, quebrou a cara várias vezes, mas que sempre foi corajosa pra caramba. A partir dessa primeira peça, passamos a sobreviver, ou tentar sobreviver, basicamente de teatro. No apartamento onde a gente morava na Gal. Jardim, a mesa da sala era um caixote, a gente não tinha nem móveis na sala, nem nada, era tudo muito simples. Depois que as peças do Plínio começaram a fazer sucesso, a gente comprou apartamento no bairro da Aclimação, onde a gente morou durante dez anos. Plínio trabalhava também na Tupi como técnico, e começou a escrever coisas para televisão e também a atuar como ator em novelas como Beto Rockfeller, em que também trabalhei. Mas nessa época trabalhava meio esporadicamente, porque na verdade foram muito tumultuados esses anos todos. Casei em 63, em 64 foi o golpe militar, em 68 assinaram o AI -5, que marcou o recrudescimento da censura, então a minha vida pessoal e minha vida profissional se misturaram bastante nesse período. Não podia muito pensar em mim, nas coisas que queria fazer, ficava muito ligada na coisa da censura, nas peças censuradas do Plínio, então sempre foi tudo muito junto. Ficava mais na retaguarda. Quer dizer, quem ia para o campo de batalha era Plínio. Foi ele quem foi censurado, preso, o diabo. Tentaram ligar o nome de Plínio a tudo quanto foi partido de esquerda. Mas nunca acharam nenhuma ligação porque realmente nunca houve. Tínhamos amigos em muitas facções políticas, mas nós não tínhamos militância, éramos muito independentes. Em 1965 a gente montou, ou melhor, tentou montar, Reportagem de Um Tempo Mau, peça do Plínio que, na verdade, era colagem de jornais com texto dele alinhavando tudo. O grupo era formado por pessoas muito próximas, o Cláudio Mamberti, o Ney Latorraca, era a estréia dele em teatro. A gente meio que sabia que esse espetáculo seria proibido, porque a gente tinha mandado o texto para a censura, e não tinha chegado resposta. Marcamos a estréia e convidamos os críticos, para fazer uma apresentação fechada, quando chegou o certificado da censura proibindo. Na verdade aquilo tudo era estratégia que usávamos na época, de deixar as pessoas verem, e então recolher assinaturas para tentar liberar a peça. Tivemos ensaio geral que durou até de madrugada, e quando fui para casa soube que minha mãe tinha morrido. Foi um tremendo dilema, porque era importante fazer aquele espetáculo, era a única forma que a gente tinha de lutar, de resistir, era uma estratégia para mostrar o trabalho para as pessoas. Acabei fazendo. Foi experiência difícil, porque saí do cemitério, do enterro da minha mãe, e fui direto pro teatro, e fiz a estréia à noite. Tirei desse episódio duas conclusões: primeira, que faria de novo, porque o trabalho é bom para nós atores num momento como esses. Segunda: aprendi que a emoção pessoal que o ator vai usar no espetáculo tem que ser filtrada, muito filtrada, para poder servir ao personagem. Lembro que tinha uma cena muito emocionante, em que eu chorava desbragadamente. Por causa da morte de minha mãe, chorei mais desbragadamente ainda. Ao final do espetáculo me dei conta que minha atuação tinha sido muito ruim. Quer dizer, aparentemente tinha sido boa, porque, já que tinha de chorar, estava usando uma emoção minha em função do personagem. Não era o personagem que estava chorando, quem estava chorando era eu. Hoje acho assim, se alguém tem que chorar no teatro é o público, não a atriz. Se tiver de chorar, não é a atriz que tem de chorar é o personagem que tem de chorar. Isso eu aprendi desde aquele dia. Naquelas alturas, tinha feito aulas com o Eugenio Kusnet, eram aulas do método do Stanislawski, e eu, nos exercícios, quando não conseguia emoção para determinada cena, ficava me perguntando como é que conseguiria, de onde poderia tirar aquela emoção. E, nesse dia da morte de minha mãe, quando a emoção estava tão intensa, pensei: ‘Essa emoção não é necessária, não é necessária nesse nível, porque esse não é o nível da personagem em cena, esse é o meu nível, então eu não estou representando e, no palco, eu, a atriz, tem que re-pre-sen-tar!’. Às vezes o ator pega e põe a mão num nervo lá, fica doendo muito, para isso dar um pique maior e a gente poder fazer melhor a cena. Acho que é preciso muito cuidado com isso, não pode, um dia você está muito triste, deprimida, não sei o quê, e você vai fazer o espetáculo, sei que é difícil pra caramba, mas você não pode permitir que isso invada o espetáculo, mesmo que seja uma tragédia, um drama, o que for, você não pode misturar as coisas. Esse período em que fiz pouco ou nenhum teatro não foi um período perdido, acho que fiz o que tinha de ser feito. Nunca planejei a minha vida, até hoje tenho essa dificuldade, inclusive de planejar o dia seguinte, estou fazendo uma peça, mas não tenho a menor idéia de qual vai ser o meu próximo trabalho. Acho maravilhoso quem tem agenda pro ano que vem, sabe como é que é? Mas nunca tenho. Às vezes tentei planejar. Mas sempre surgia outra coisa no meio do caminho mais interessante, que acabava derrubando aquela coisa e indo aquela outra coisa pro lugar. Então nunca me planejei muito. Quer dizer, sempre tinha consciência de que precisava fazer alguma coisa por mim mesma, mas, ao mesmo tempo, os filhos foram uma novidade também tão grande na minha vida. Também nunca tinha planejado ter filhos, sempre achei, na verdade, que nem ia casar, nem ter filhos, nem ter família. Nada disso foi planejado, e no fim aconteceu, e quando aconteceu foi muito bom. Acompanhar o crescimento dos filhos, ter filhos, foi experiência fascinante. Ao mesmo tempo em que me sentia frustrada por não estar fazendo nada profissionalmente, tinha compensação muito grande. Sempre foi muito, ia dizer prazeroso, mas não era só isso, era mais do que isso, na verdade ser mãe ajudou muitíssimo na minha realização pessoal. Não tenho religião formal. Não sigo nenhuma religião. Tenho afinidade com o pensamento da tradição Sufi, então sigo mais ou menos a orientação de uma ordem, a da Tradição Sufi. Acredito em um Deus que é uno, que é uma unidade, que é o ponto, que é o centro, não é o deus da religião católica, não é esse Deus, mas é uma unidade que me dá um centro. Tem uma frase que acho que define bem tudo: Estar no mundo, mas não ser do mundo. É a noção de que você está vivendo aqui porque teve que ser colocado aqui, então é para viver aqui, e ‘não encha mais o saco’, não é pra você ir para o alto de uma montanha e ficar lá isolado do mundo, e meditando ou fazendo o que quer que seja. Você tem que viver, você tem que viver neste mundo, com suas circunstâncias, com as suas origens, com a vida que lhe foi dada pra viver, e quanto mais inserida neste mundo se estiver, eu estiver, mais vou estar me entendendo e cumprindo meu destino com grandeza. Mas sempre tendo a consciência de que eu não sou daqui, de que a minha casa não é essa, de que aspiro ir para uma outra morada. Esse mundo visível, esse mundo concreto, não sou escrava dele, vivo nele porque meu destino está aqui, mas sempre tendo a consciência de que eu sou de outro lugar, que eu espero que seja mais interessante. Capítulo XXIV No Fundo do Fundo do Poço A gente está num processo de decadência visível, a gente está no fundo do poço. Não é só pelas guerras, guerra sempre houve, acho que é pelo afastamento das pessoas de uma noção de espiritualidade. Não vou falar de religiosidade que é outra coisa, mas da noção de se ter uma transcendência qualquer, de que você não está só, de que você faz parte de uma realidade concreta e sensível, maior e mais cósmica. A gente perdeu essa ligação com o divino. Tenho plena consciência de que o teatro que faço é profano, não é mais um teatro religioso nesse sentido, enquanto função não é mais elemento de ligação com a transcendência. Mas, ao mesmo tempo, acho que é o lugar onde você pode provocar nas pessoas uma transformação. O teatro é um instrumento que pode servir como elemento instigador para as pessoas se transformarem, se modificarem. Principalmente por ser uma arte que promove o contato direto do ser humano com o ser humano. Acho essa ligação ser humano com ser humano algo muito forte. Então o que estou fazendo no palco pode provocar uma transformação profunda nas pessoas. Por que faço teatro? No meu caso faço teatro por mim mesma. Não sei se em primeiro lugar, mas acho que sim, é por mim mesma. Faço televisão, por exemplo, tenho muito prazer em fazer, me divirto muito fazendo, ganho um bom salário, acho ótimo, maravilhoso e tal, mas não me alimento da televisão. Então realmente preciso estar no palco. É a mesma sensação desde a primeira vez que pisei no palco, é uma sensação de plenitude mesmo. Ainda tenho um pouco de pânico de palco, de vez em quando o pânico, aquele velho pânico da adolescência, volta, essas coisas, mas, mesmo com tudo isso, estar ali é a melhor coisa do mundo. Não tem nada mais prazeroso. Estou falando de porquê faço teatro, de porquê continuo fazendo teatro, de porquê sofro com teatro, porque sei que não dá dinheiro, que o público não vai, então faço teatro por prazer pessoal mesmo, por satisfação pessoal. Também porque acredito que mesmo que apenas uma pessoa saia de um espetáculo em que atuo instigada já terá valido a pena - Teatro tem uma coisa assim, teatro quando é bom provoca uma emoção mesmo, emoção forte, inesquecível, vai ser um elemento transformador pra sua vida durante muito tempo. Também, quando é ruim, você fica dez anos sem querer voltar ao teatro, porque o que você sente no teatro é muito intenso, sabe? - Por isso, por essa força, é que ainda acredito no teatro. Agora estou atuando em Fausto Zero, exatamente por acreditar no teatro. Acredito que o teatro é ainda uma arte que tem uma força e que pode durar. É a única arte que considero eterna, porque você pode prescindir de toda a parafernália técnica e ainda fazer teatro, em suas várias formas. O aprimoramento de quem faz teatro e de quem está vendo teatro eu acho essencial, fundamental para ambas as partes. O teatro quer sempre comunicar alguma coisa. O quê? Depende daquilo que você estiver fazendo. Mesmo quando se trata de teatro de entretenimento, contra o qual não tenho nada contra, algo é comunicado. Mesmo o teatro feito para o sujeito ir lá se divertir, você está sempre passando alguma coisa, está comunicando algo, uma alegria, um devaneio qualquer, estimulando a fantasia, o que for, e acho também que o bom teatro de entretenimento pode ser útil para as pessoas. Agora quando você coloca no palco a complexidade de qualquer problema humano, dos seres humanos em geral, você está mostrando, está revelando alguma coisa pro público, não necessariamente para que esse público se identifique, chore, mas para que ele pense a respeito daquele problema. Ou dele mesmo ou do meio em que vive, da sociedade em que vive, do mundo em que vive. E se isso tiver a força que o teatro tem, se a gente conseguir o objetivo, se a gente consegue fazer bem-feito, isso tem uma força que é inigualável, então é por isso que faço teatro. Sou mais atriz dramática do que cômica por circunstâncias, eu diria. Diria também que gosto mais da tragédia e da comédia, e menos do drama. Existem alguns personagens que ainda não fiz e que gostaria de fazer sim, também tem autores que nunca freqüentei e que gostaria de freqüentar. Por exemplo? Nelson Rodrigues. Federico Garcia Lorca também. Quanto a personagens, tem Équba, de Eurípides, que ainda não fiz e que adoraria fazer. Acho que ainda posso fazer... Capítulo XXV Quando a Burrice é Necessária Sempre tive muita sorte, com raríssimas exceções, em relação aos meus diretores. É a primeira pessoa que vai criticar o meu trabalho, tenho que confiar nessa pessoa cegamente, porque se não confiar não consigo fazer. Se não confiar na palavra do diretor, se estiver achando que aquilo que está dizendo não é bom, nada mais vai adiantar. Se um diretor assiste ao ensaio, ou ao espetáculo, e diz que meu desempenho está bom e eu achar que ainda não está bom, vou querer saber porque ele está achando bom e eu não, vou querer afinar minha sensibilidade com a dele. Muitas vezes ocorre de o diretor achar que estou ótima e eu achar que ainda não está no ponto. O diretor está tendo uma visão geral de tudo, do espetáculo, e em geral você, o ator, tem a visão apenas do seu trabalho. A atriz está dentro do espetáculo, não está sabendo como é que está o conjunto, então muitas coisas que eu posso estar querendo fazer, ou fazendo de uma determinada maneira, podem não ser boas para o espetáculo como um todo, e essa correção de curso é o diretor que poderá me dar. Não me arrependo de nada, absolutamente de nada, do que fiz na minha carreira. Algo pode não ter sido bom em determinado momento, mas, com certeza, algum aprendizado certamente me trouxe. Faria tudo igual, não que não tenha errado, errei pra caramba, mas não mudaria nada, não me arrependo de nada que fiz em teatro. Na verdade não fiquei muito tempo sem fazer televisão, sempre fiz, é que quase nunca saía de São Paulo. Fiz muitas novelas na Tupi, até praticamente quando a Tupi acabou. Também teve época em que a TV Cultura de São Paulo apresentava um teleteatro, dirigido por grandes diretores, no qual atuei muitas vezes. Quando a Globo gravava alguma coisa em São Paulo, acabava fazendo alguma participação. Talvez pudesse ter feito mais TV, mas acho que foi meio uma opção de não querer sair muito de São Paulo, era meio difícil aquela coisa de gravar sempre no Rio, então acabava ficando aqui mesmo. Mas nunca tive preconceito contra a televisão, em relação a trabalhar na televisão. Adoro representar, inclusive na TV. Mas acho o seguinte: você tem que ir pra televisão sabendo pra onde você está indo, sabe? Então eu não sofro quando vou fazer qualquer trabalho na TV, qualquer bobagem na televisão porque sei os limites do veículo onde estou trabalhando. O que quero dizer é o seguinte: se você faz só televisão, você estará trabalhando sempre só na superfície, porque é próprio da TV trabalhar na superfície. Então não adianta ir fazer uma novela, e querer atingir aquela complexidade da alma humana que a gente está falando que o teatro pode atingir. Logo, se fico fazendo televisão durante muito tempo, vou ficar frustrada porque vou ficar querendo achar lá aquilo que a TV não pode me dar. Na TV é quase raridade fazer personagem menos superficial, é muito mais difícil. Ultimamente tenho feito melhores papéis na TV, estou com essa sabedoria de procurar saber exatamente aquilo que farei. Acho que sentia mais essa frustração quando misturava as coisas, ainda nos tempos da TV Tupi. A bem da verdade, estreei na TV numa novela excepcional que foi Beto Rockfeller, uma experiência memorável na TV brasileira, na qual todos os personagens eram muito elaborados e a narrativa e a linguagem eram absolutamente revolucionárias. Agora, bem mais recentemente, fiz papel maravilhoso, a Judite, de O Rei do Gado. Capítulo XXVI Sem Vocação para Superstar Sou mesmo muito discreta, não é charme, é algo muito sincero. Realmente acho que não tenho perfil para aparecer em revistas de celebridades, tipo Caras, por exemplo. Não tenho talento pra isso, mas isso não significa que tenha nada contra a revista ou contra quem tenha talento para aparecer nesse tipo de revista. Não acho que a minha vida, aquilo que faço, aquilo que penso, possa interessar aos leitores dessas revistas. Agora, se quiserem me entrevistar, e por meio dessa entrevista possa levar mais pessoas para assistir ao espetáculo em que atuo, tudo bem. Isso não vai ferir nenhum princípio meu, quer dizer, não tenho nada contra a existência de revistas assim. O que penso é o seguinte: o sonho da minha vida não é esse, não vou batalhar, nunca batalhei, muito menos agora, para aparecer em revistas de celebridades. Tenho vergonha até de tirar fotografia, é uma coisa que me constrange, com a qual não me sinto à vontade. Sou atriz por outras razões. Nunca serei uma estrela, não tenho vocação nem talento para ser estrela. Claro que no palco, como atriz, faria coisas que na vida pessoal jamais faria. Isso é ser atriz. Não preciso ser prostituta para representar prostituta. Na verdade, acho assim: a gente tem tudo dentro da gente. Posso não estar exercitando, porque não quero exercitar, por escolha minha, o mau-caratismo, ou qualquer outra característica negativa do ser humano, mas conheço isso, isso está dentro de mim. Então quando subo no palco, vou buscar dentro de mim, porque eu tenho isso dentro de mim. Alguém disse que nada que nos é humano nos é estranho, não disse? Enfim, sou um ser humano e, como ser humano, sou igual a um assassino, a um ladrão, a uma prostituta. Tem aquela atriz que, quando vai representar uma prostituta, vai conversar com as prostitutas, conviver com as prostitutas. Nada contra, mas não ajo assim. Geralmente descubro essa personagem na minha memória e na minha persona, em mim mesmo. Quando preciso de um comportamento exterior, faço pesquisa interna mesmo, ou porque já conheço através da literatura, ou do cinema. Não sou muito de começar a criação de um papel, de um personagem, a partir de características exteriores. Geralmente a coisa vai surgindo, e como a gente tem um registro de gestos, de posturas, de comportamentos de determinados tipos, a coisa vai surgindo durante o trabalho. E se é alguma coisa específica que realmente não tenho a técnica para realizar, vou pedir a ajuda de uma pessoa que possa me ajudar a fazer isso, a compor o tipo. Mas nunca fiz esse trabalho de campo. Na minha interpretação eventualmente uso ensinamento de grandes mestres, como Brecht, Stanislawski, Grotowski. Tudo depende do tipo de trabalho para que eu recorra a um ou a outro. Depende também do diretor com quem estou trabalhando. Mas acho que hoje em dia pego um pouco de cada um nos trabalhos que faço. Acho que não podemos mais dizer que vamos fazer determinado espetáculo no estilo de Brecht ou no estilo de Grotowski, podemos usá-los, ambos, numa mesma montagem, sem problemas. No começo, quando a gente não tem muita experiência, muita técnica, você pode ter uma emoção verdadeira em cena, pode chorar, pode se descabelar, e não comover nem a primeira fila do teatro, porque esquece uma coisa básica que é a comunicação. Tudo bem, se é para se emocionar você tem que se emocionar, mas você tem que pensar que tem que levar lá, ao público, aquela emoção, não ficar aqui dentro. Se você está com uma emoção sua, pessoal, da atriz, vai ficar aqui apenas aqui dentro, você não vai comunicar essa emoção ao público. A gente percebe claramente a reação da platéia, a diferença da platéia de um dia para o outro é brutal. Neste espetáculo em que atuo atualmente, eu falo, eu me dirijo diretamente à platéia algumas vezes, então obrigatoriamente vejo a reação das pessoas. Mas nem é preciso isso, mesmo aquele espetáculo que tem uma quarta parede muito definida, que você fica fechado ali dentro, você não precisa olhar para a cara do público, você sente, tem um fio invisível de comunicação, e você sabe perfeitamente se eles estão acompanhando ou não. É impressionante. O espetáculo, o teatro, só existe obviamente com palco e platéia juntos. Quando estou ensaiando, não estou fazendo teatro ainda, é só ensaio. Então quando essa união ocorre, claro que a platéia vai interferir no espetáculo. Mesmo não sendo na comédia. Na comédia isso é mais óbvio, é rir ou não rir, o feedback é mais visível. Mas mesmo se é um espetáculo em que a platéia não precisa reagir com barulho, de uma maneira perceptível, você sente se alguma coisa está acontecendo ou não. Isso interfere no resultado do espetáculo, porque o ator pode perceber que não está atuando muito bem e se esforçar para fazer de outra maneira. Às vezes é como se o espetáculo escorregasse da mão da gente, não que esteja ruim, mas você percebe que algo não está acontecendo, que a comunicação palco-platéia não está ocorrendo. Mas o fascinante é que o ator pode virar um espetáculo. Às vezes o ator sente que começou a peça e não estava suficientemente ligado, e aí muda tudo, o ritmo, tudo. É o que falo, a pior palavra para ser usada por um ator, a pior palavra é o esforço, sabe: ‘Vou me esforçar pra fazer bem’. Isso é um erro, porque quanto mais relaxado você estiver mais consciente você estará da ação cênica, para se voltar para o objetivo da cena, estar atento às coisas da cena. O esforço pressupõe alguma coisa meio racional, o esforço é espécie de contração, e o ator não tem que contrair nada. Tem que descontrair. Tem que dizer: ‘Ok, não está dando certo, você errou, mas vamos lá, vamos mudar o jogo’. O ator tem de ser burro às vezes, pelo seguinte: se me guio pelo entendimento racional, pela inteligência da coisa, é que não estou realizando bem o meu trabalho. Às vezes eu tenho que cortar a cabeça fora, não pensar, simplesmente fazer, simplesmente agir em cena. Se não, fica aquela interpretação muito racional, muito certinha. Entendo a ‘burrice’ do ator nesse sentido. Isso é uma coisa que eu me cobro, e me digo: ‘Seja burra, não pense, o que tinha pra pensar já pensou na leitura de mesa, agora vai lá e faz, sem pensar, sem se guiar apenas pelo intelecto’. Sou muito disciplinada, muito, acato qualquer coisa que o diretor me mande fazer. Mas tem um detalhe: escolho meus diretores quase sempre, e, claro, só escolho diretores em que posso confiar, logo só sou burra nas mãos de diretores que posso confiar. Capítulo XXVII Turbulência e Sombra Teve época em que ser mulher de Plínio Marcos pesava mais para as outras pessoas do que pra mim mesma, afinal de contas eu era mesmo mulher do Plínio Marcos, era mesmo, então, reclamar do quê? Se não quisesse deixava de ser, fazia parte da minha realidade, não podia reclamar. Mas acho que muitas pessoas, e isso me deixava irritada e triste, não me enxergavam, enxergavam só a mulher do Plínio Marcos. Como fazia muita peça dele e tudo, então as pessoas tinham o preconceito de achar que eu não era atriz e estava lá trabalhando apenas porque era peça do Plínio Marcos e ele me botava lá. Por causa disso, muita gente nem conferia meu trabalho, o que era mais grave ainda. Então acho que durante um tempo, as pessoas achavam que eu era só mulher do Plínio Marcos, embora eu sempre soube que era também a mulher do Plínio Marcos, mas não apenas. Mas, honestamente, isso nunca me abalou, nunca tive nenhum problema em relação a isso. Sempre tive uma individualidade, uma marca pessoal muito forte. Sempre fui muito segura, e entendia perfeitamente que era casada com um autor que era muito mais importante do que eu pelo menos naquele momento. Ou seja, tinha plena noção da coisa, nunca pirei com isso, sabe, sabia que era também a mulher do Plínio Marcos. Fui durante 21 anos. Não era uma realidade que quisesse ou pudesse apagar. Também sempre tive muita consciência, quer dizer, com períodos de maior ou menor angústia em relação à minha realização pessoal, sempre tive muita consciência do momento histórico em que a gente vivia. A gente não vivia período exatamente calmo da vida política e cultural do país, a gente vivia época extremamente turbulenta. Num momento era uma peça de Plínio que havia sido proibida. Em outro, ele tinha sido preso. Ou ele não tinha trabalho. Ou eu não tinha trabalho. As circunstâncias eram muito difíceis, tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Às vezes, claro, ficava triste. Mas sempre fui pessoa paciente que sabia esperar o momento certo das coisas. Capítulo XXVIII Quarto Ato O teatro nunca foi uma determinação, uma escolha. Admiro as pessoas que têm essa determinação. Mas não sou assim. Comigo não funciona assim. Nunca planejei nada, simplesmente as coisas foram acontecendo. Nunca disse: ‘vou ser atriz, quero ser atriz’. Não me dispus a fazer determinadas coisas que me levassem ao sucesso. Não sei até que ponto o casamento com Plínio foi determinante para que me tornasse atriz, ou não. Antes de me casar, já estava me encaminhando para o teatro, claro assim do meu jeito, sem decidir: ‘esse é o meu caminho, e é isso o que vou fazer’. As coisas aconteceram. Acho que ninguém foge ao seu destino. Não tenho dúvida que não fui eu que escolhi o teatro, foi o teatro que me escolheu. A minha primeira peça profissional, aquela que fiz na Companhia de Cacilda Becker, surgiu assim de repente, sem que me esforçasse muito para conseguir. Quando percebi, já estava trabalhando com Cacilda Becker, a quem admirava profundamente, e ficava meio espantada de estar naquele lugar, trabalhando com aquelas pessoas. Fiz essa peça, adorei fazer, mas não foi assim de decidir: ‘agora vou fazer outra, mais outra e ainda uma outra mais’. Não tinha muito essa consciência de fazer carreira no teatro. Como disse, as coisas foram acontecendo simplesmente, e pronto. Então até hoje não tenho muito essa consciência de ‘minha carreira, de minha trajetória teatral, essas coisas’. Por isso tenho certa dificuldade de listar os ‘marcos de minha carreira’. Mas, acho que posso dizer: a montagem de Mocinhos e Bandidos, texto e direção de Fauzi Arap, teve papel determinante na minha vida profissional. Aliás, Fauzi Arap teve papel determinante na minha vida profissional. Nesse espetáculo fazia vários papéis, talvez uns dez, e exercitava coisas que nunca havia exercitado antes. Principalmente o meu lado cômico, porque até então tinha fama de ser atriz basicamente dramática. Então foi muito bom, porque descobri que era capaz não apenas de fazer comédia ou drama, mas de ser atriz que podia mudar rapidamente de um papel para o outro, de uma situação para a outra. E mais: que já tinha técnica suficiente para fazer essas mudanças. Evidentemente pude contar com a ajuda preciosa de Fauzi Arap, que tem habilidade fantástica de arrancar coisas dos atores que dirige. Ele faz o ator descobrir coisas que nem suspeita existir dentro dele. Foi importante também porque fugia completamente da imagem de atriz que mantinha até então, de atriz sempre de textos de Plínio Marcos, de atriz sempre de papéis dramáticos. Então, nesse sentido, Mocinhos e Bandidos me integrou mais ao teatro, ao ato de fazer teatro, e ao meio teatral como um todo. A partir daí, acho que foi mais fácil me aceitar e me ver como profissional de teatro. Até então, com exceção dos trabalhos que havia feito na TV Tupi, via o teatro como algo meio doméstico, meio familiar, até porque quase sempre atuava em peças escritas por meu marido. Mas não posso dizer que mudei muito nisso. Até hoje gosto desse lado doméstico, desse lado familiar, do teatro. Tanto que sempre prefiro trabalhar com pessoas amigas, com pessoas que pensam como eu, nunca fui atriz de atuar em produções grandiosas, coisa e tal. Prova evidente da importância das ‘pessoas amigas’ em minha vida é que, geralmente, relaciono esses ‘marcos’ da minha carreira com essas ‘pessoas amigas’ e determinantes. Outro momento decisivo da minha trajetória profissional foi o encontro com Jorge Takla. Nosso primeiro trabalho juntos foi O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov, e isso marcou o início de grande parceria entre nós, fizemos sete ou oito espetáculos juntos. Tínhamos muito em comum, o mesmo tipo de sensibilidade, o mesmo interesse por determinados textos e autores. Além do quê, Jorge Takla havia morado muito tempo fora do Brasil, e viajava sempre. Nesse sentido, esse encontro profissional me foi muito útil, pois Jorge me trouxe muita informação sobre o teatro que se fazia no exterior. Até então nunca havia saído do país, conhecia tudo apenas por livros, revistas. Atuar sob a direção dele acabou sendo para mim enorme aprendizado. Com o Jorge fiz espetáculos que considero dos melhores e dos mais importantes de minha carreira e, também, os que me deram o maior prazer em fazer. Fiz com ele outro trabalho que resultou num espetáculo primoroso, o Lago 21. Na época, o Jorge Takla era o dono do Teatro Procópio Ferreira, exatamente naquela época em que estava em cartaz O Mistério de Irma Vap, aquele espetáculo com Ney Latorraca e Marco Nanini que fez o maior sucesso. Pois é, o palco do Procópio Ferreira é imenso, atrás do cenário de Irma Vap, existia grande espaço não-utilizado. Jorge Takla resolveu então criar teatrinho ali, com 45, 50, lugares, e nele a gente montou esse espetáculo, organizado a partir de trechos de A Gaivota, de Tchekhov, e de Hamlet, de Shakespeare. Então ele fez esse roteiro, e ficou assim um espetáculo primoroso, um espetáculo que virou cult em São Paulo. A peça era apresentada em dias e horários alternativos e as 45 pessoas inicialmente previstas na platéia viraram 70, 100, aí virou uma loucura, com gente sentada no chão e coisa e tal. Considero esse espetáculo assim tão importante por toda essa estrutura experimental, por essa proximidade com a platéia, pela ruptura com o esquema de palco convencional. É esse o teatro que gosto de fazer, que de alguma maneira provoca rupturas ou com a linguagem cênica ou com o público tradicional, esse tipo de trabalho acho fascinante. Tive também experiência que considero fascinante, bem antes, no período crítico da ditadura, quando a gente apresentou Quando as Máquinas Param, texto do Plínio, no Sindicatos do Têxteis, no Brás, aqui em São Paulo. Era uma coisa meio clandestina, experiência completamente diferente no sentido de ruptura com o público normal de teatro, e que a gente apresentava a preços popularíssimos. Outra experiência parecida e, também, inesquecível, foi apresentar Balbina de Iansã, também do Plínio, na sede da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, também aqui em São Paulo. As apresentações eram quase no meio do público, a integração palco-platéia era total, e era um delírio fazer espetáculo em locais assim que fugiam do convencional. Voltando ao Jorge Takla, tive com ele mais duas experiências muito marcantes: Madame Blavatsky, outra peça do Plínio, que era um espetáculo belíssimo, e Medéia, em que fazia um dos papéis que mais ambicionava fazer. Aí chegou num ponto que percebi, que estava adquirindo total controle de minha capacidade técnica como atriz, conhecia todos os macetes da profissão, da arte de representar, mas tinha algo que me incomodava. Estava tudo meio fácil demais, sem muitos desafios. Constatei também que tinha pouco conhecimento de exercícios corporais, de dança. Havia começado muitos trabalhos nessa área, sempre muito empenhada, mas logo enjoava e parava. Sou muito preguiçosa, meu grande defeito é a preguiça. Resolvi então mandar a preguiça pra longe e decidi: precisava desenvolver trabalho corporal, sob pena de ficar viciada no mesmo jeito de fazer teatro de sempre, e sobre o qual já tinha total controle. Foi exatamente aí que entrou Val Folly na história. Era um grande amigo e, também, um grande bailarino e grande coreógrafo que havia morado durante muito tempo em Nova York. Quando nos encontramos, na volta dele para o Brasil, comentei que estava querendo muito fazer algum trabalho corporal e perguntei se ele não queria me dar aula, se não queria fazer comigo alguma parceria no teatro. Foi ótimo porque naquele momento eu queria fazer alguma coisa mais voltada para a dança e ele estava querendo se voltar um pouco mais para o teatro. Então a gente começou a se reunir três vezes por semana, sem nenhum compromisso, apenas com a idéia de trocar experiências. Ficamos meses trabalhando juntos. Nesses encontros falava pra ele: ‘Val, quero que o meu corpo fale, quero falar com o dedinho do pé, quero saber como faço pra mandar energia para um determinado ponto do meu corpo, e que aquilo seja tão forte ou tão claro quanto a palavra. Porque a palavra já estou sabendo usar, já tenho o domínio da palavra, mas não tenho o mesmo domínio do meu corpo’. Então foi uma experiência maravilhosa. Mas aí chegou num ponto que a gente falou: ‘Bom, agora a gente precisa canalizar isso num trabalho específico’. Nessa época o Jorge Takla tinha me trazido um texto, o monólogo Max, de um autor alemão chamado Manfred Karge, que ele achava que eu podia fazer. Então começamos a trabalhar nesse texto, que resultou em espetáculo que considero momento de ruptura importantíssimo na minha trajetória teatral. Nessa montagem a gente estabeleceu que haveria sempre uma narrativa sobreposta a outra e que utilizaríamos gestos não-realistas, que funcionassem isoladamente, que tivessem uma força tão importante, tão vital, quanto a palavra. Esse espetáculo foi para mim notável exercício de narrar com o corpo, com o gesto e com a ação, não só com a palavra, e, ao mesmo tempo, de fazer uso de todas as possibilidades que a palavra nos proporciona. Capítulo XXIX Os Pequenos Pactos com o Diabo Sobrevivi basicamente do teatro nesses 40 anos. Claro, não fiquei rica. O teatro, principalmente o teatro que tenho feito, com algumas exceções, não é um teatro comercial. Na verdade, não tenho muita noção do que pode ser sucesso e do que pode não ser. Sempre começo a ensaiar peça achando que vai ser o maior sucesso. Que vai lotar, que todo o mundo vai ver e coisa e tal. Nunca começo a ensaiar já com a consciência de que é um texto difícil. Sempre acho que vai ser um sucesso, mas nunca é um sucesso. Não, nunca é palavra muito forte. Tenho consciência de que o teatro que faço é para um público reduzido mesmo. Claro, houve alguns espetáculos em que atuei, que foram bem-recebidos, que ganhei algum dinheiro, mas essa nunca foi a minha maior preocupação. Nunca descartei um texto ou um projeto porque achei que aquilo não ia interessar a ninguém. Quando quero fazer, quando gosto, quando acho bom, faço, não me interessa se possa dar dinheiro ou não. Juntando aqui e ali, juntando também as finanças do Plínio, compramos este apartamento em que hoje moro. É o único resultado financeiro visível de 40 anos de carreira. Não que tenha, ou tivesse, nada contra espetáculos que atraiam grande público. Como já disse, o teatro de entretenimento é tão útil quanto qualquer outro. Só que, não sei se por carma, quase nunca sou procurada pra fazer esse tipo de teatro. Não acho que isso, que fazer teatro mais comercial, seja vender a alma pro diabo. O que não consigo abrir mão é de alguns valores, de alguns princípios éticos que tenho na vida e que transfiro para tudo aquilo que faço, inclusive para o meu trabalho. Agora mesmo fui convidada para fazer determinado filme. Recusei porque não acho esse tipo de filme legal. Não concordo, digamos, com a intenção do filme. Acho até que seria um bom papel, a produção do filme tem muito dinheiro e coisa e tal, estou, no momento, dura, não estou ganhando muito dinheiro, estou precisando de dinheiro, estou sempre precisando de dinheiro, trabalho porque não tenho dinheiro, preciso trabalhar pra viver, então seria ótimo fazer esse filme. Mas não aceitei fazer, entende? Por mais que estivesse precisando de dinheiro. Esse tipo de comportamento não está muito na moda hoje em dia. As pessoas perderam o hábito de pensar, de saber aquilo que estão fazendo. As pessoas estão vivendo assim, na superfície, sem aprofundar nada. São poucas as pessoas que conservam alguns valores. Em função até da peça Fausto Zero, em que atuo atualmente, costumo dizer que as pessoas já pularam a fase do pacto do diabo, parece que o pacto com o diabo é algo que já foi feito antes, é apenas um dado da realidade. Já se parte direto para a próxima etapa, que é cair no mundo, viver, se divertir, conseguir muita grana, muito poder, muito sucesso. As pessoas não estão parando para pensar se isso é pacto com o diabo, já fizeram suas opções, já estão bem mais adiante. Isso não é só no meio artístico, não. No meio jornalístico é a mesma coisa. Em qualquer profissão é assim, em qualquer lugar é assim. As pessoas não estão parando para pensar se isso é bom, não só pra sociedade, mas pra si mesmo, se isso faz bem ou mal. Mas também não sou muito de ficar patrulhando ninguém, de ficar julgando, dizendo ‘fulano fez isso, beltrano fez aquilo’, porque a situação está difícil mesmo, não está fácil sobreviver hoje em dia. Posso ter recusado participar desse filme, estou numa situação difícil, mas não estou passando fome. Quem me garante que, se estivesse passando fome teria condições de dizer não? Quem me garante que preferiria continuar passando fome a fazer filme com o qual não simpatize? Não sei. Então, não julgo ninguém. Mas acho também que certas pessoas ainda não estão passando fome, ainda não estão nessa situação tão desesperadora, e topam qualquer coisa porque simplesmente não pensam antes de decidir. São raras as pessoas hoje em dia que pensam antes de aceitar um trabalho, ou de fazer uma determinada coisa. O critério primeiro, e único, é a possibilidade de esse trabalho dar dinheiro, poder, sucesso, riqueza, popularidade, fama. O mundo está perdido há muito tempo. O mundo já acabou, e ninguém sabe. Não acho que seja uma questão de década, dessa década ou daquela. Ok, nos anos 60, até 70, período da ditadura mais cruel, as pessoas eram obrigadas a pensar em determinadas coisas. Havia linha divisória mais clara. Nos períodos de guerra se identifica melhor os inimigos. Então, de alguma maneira as pessoas tinham que pensar no porquê de estarem fazendo determinada coisa. Hoje não existe mais isso, não existe mais essa necessidade de justificar ou de argumentar ou de dizer porque se gosta de determinada coisa. Há muito que a gente perdeu uma noção ética de comportamento, há muito tempo. Capítulo XXX Em Nome dos Filhos, e do Marido Fui casada com Plínio por 21 anos, e depois nunca mais casei de novo. Se ainda acredito no casamento? Não que não acredite, mas não acho necessário uma união formalizada. Não acredito em casamento como instituição social necessária. Ainda assim, continuo achando que dividir a vida com outra pessoa, com a pessoa de quem se goste, por quem você esteja apaixonado, a quem você ame, ainda é ótima idéia. Acho que o fardo da vida é pesado demais, se pudermos dividir esse fardo com alguém é tão bom, não é? Talvez tenha ainda visão meio romântica, meio hollywoodiana, do casamento, aquela história de ‘serem felizes para sempre e tal’. Mas acredito piamente ainda nessa possibilidade. Fico assustada em ver a geração, por exemplo, dos meus netos, já havia na geração dos meus filhos, mas agora está ficando mais forte ainda, achar que tudo é descartável, não só as coisas, mas as pessoas também. Vejo pessoas que se casam, vão morar juntos, e qualquer espirro será capaz de separá-los. Acredita-se que seja mais fácil separar do que investir realmente numa relação, em preservar uma relação. Continuo achando o casamento uma coisa completamente viável. Por que então me separei do Plínio? Nesse caso quem quis se separar fui eu, a iniciativa de separar foi minha. Mas aí foram várias coisas, vários motivos. Não gosto de falar de minha vida pessoal e não vou falar, com certeza. Mas acho que, em qualquer relação, a gente tem que tentar manter. Tem que tentar fazer essa relação funcionar, de todas as maneiras. Claro, às vezes há algum erro de base, de desde o início, que se vai empurrando com a barriga, e que chega num ponto, após muitas tentativas, que se chega à conclusão de que realmente não dá, ou deu o que tinha que dar. Aí não tem jeito mesmo, tem de separar, mas antes tem que esgotar todas as possibilidades de acertar. Não me casei de novo, porque... Não aconteceu, simplesmente não aconteceu. Na verdade, nunca pensei em me casar de novo. Digamos que o que me aconteceu num primeiro casamento não me levou a um novo casamento. Mas não tenho nenhum trauma, como disse, acho o casamento uma ótima idéia. Engraçado, quando muito jovem, achava que nunca me casaria, que nunca teria família, com marido e filhos. À época, meio envolvida com os pensamentos de esquerda, qualquer referência a uma família burguesa, a uma organização burguesa de casamento, de família, me horrorizava. Mas, depois de casada e com o nascimento dos filhos, descobri o lado meio animal da família, de laços sangüíneos, e percebi que isso era algo muito forte. Mas, pelo meu jeito de ser e pelo jeito do Plínio de ser, acabou que a gente não teve exatamente uma família burguesa, os nossos padrões não eram muito convencionais. Mas éramos uma família constituída sim, e isso muito pela força dos filhos. Descobri em mim essa coisa da leoa mesmo, da leoa que protege os seus filhotes. Por meus filhos e, agora, netos, acho que faria qualquer negócio. Até venderia minha alma ao diabo, claro, se fosse pra salvar a vida deles. Acho que em alguns momentos da minha vida, priorizei os filhos, e não a carreira. Decorrência de vontade pessoal e, também, das circunstâncias, inclusive das circunstâncias financeiras. Às vezes tive que dar apoio ao Plínio, ficar do lado dele e dos filhos, aí não dava, por exemplo, para sair de São Paulo e trabalhar no Rio. A gente não tinha nenhuma estrutura que nos amparasse nesse sentido, a minha mãe já tinha morrido e a mãe do Plínio morava em Santos. A minha sogra, dona Hermínia, ressalte-se, foi para mim uma segunda mãe, era mulher maravilhosa com quem pude contar sempre que precisei, era mulher fantástica, ela me adorava e eu a adorava também. Mas não podia contar com ela aqui em São Paulo sempre. Então era extremamente complicado trabalhar fora. Então abri mão disso. Mas sempre procurando acreditar que aquilo era um período da minha vida, no qual tinha que abrir mão de algumas coisas, pessoais, minhas, em função dos meus filhos. Mas nunca me senti vítima dessas circunstâncias. Fazia porque queria fazer, porque achava importante fazer naquele momento. Nunca me senti infeliz por isso, principalmente porque sabia que aquela não seria situação permanente, seria temporária. Se não tivesse essa consciência de que aquela seria passageira, acho que não teria conseguido suportar, acho que teria enlouquecido. Mas também me envolvia com montagens de peças do Plínio e essas experiências eram nessa época muito frustrantes. O Abajur Lilás, escrita por Plínio, por exemplo, teve carreira acidentadíssima. No início a peça seria dirigida pelo Paulo Goulart e protagonizada por Nicette Bruno. Quando começavam as leituras e os ensaios, o texto foi proibido, e parou tudo. Naquela época uma peça era proibida por um tempo e, depois, submetida a novo julgamento, e liberada ou não. Então quando estava se aproximando o fim do período da proibição, a gente novamente começou a ensaiar, agora com direção de Antonio Abujamra. Quando o espetáculo já estava quase pronto para estrear, soubemos que a peça havia sido proibida de novo. Só cinco anos depois, O Abajur Lilás foi enfim liberado, e conseguimos, enfim, onze anos depois da primeira tentativa, montá-la com direção de Fauzi Arap e comigo no papel principal, que acabou me dando meu primeiro Prêmio Molière de melhor atriz. Capítulo XXXI Revoluções Individuais e Fim de Mundo Podem me achar pessimista, mas não sou. Sou otimista em relação ao futuro, porque sempre acho que haverá uma saída, uma possibilidade de sairmos dessa crise, dessa situação difícil que estamos vivendo. Às vezes penso, meu Deus que espécie de mundo os meus netos estarão herdando? Mas a gente está no período de fim de alguma coisa, de final de um processo, o que automaticamente significa o começo de um processo novo. Acho que a gente ainda não chegou nesse final, nesse fundo do poço. Sem querer ser alarmista, acho que coisas piores ainda virão. Quer dizer, talvez precisemos que algo extremamente grave aconteça para retomar o nosso rumo. Crise é a mesma raiz da palavra crescer. Sem crise não conseguimos crescer. O mundo não acabou, nem vai acabar, o mundo vai se transformar. Essa transformação passa por uma revolução individual. Se não houver essa revolução individual, essa transformação social, então a gente volta àquilo que estava falando antes, do pacto com o diabo, dessa falta de ética no comportamento. Isso não se impõe, isso tem que ser cultivado a partir de pequenos núcleos familiares, a partir de pequenos gestos do cotidiano. Esses pequenos gestos de gentileza do cotidiano são fundamentais. Qualquer atitude de boa-vontade com o outro, qualquer atitude respeitosa que se mantém com o outro, estabelece relação de harmonia, e acredito que isso vá aumentando, que isso possa progredir, que isso possa se alastrar. Quando se fala em pacto com o diabo se imagina aquela grande cena, o diabo aparece e oferece não sei o quê, aí se tira um pouco de sangue, faz o pacto, sempre se você imagina o grande pacto com o diabo. Não é assim, o diabo é muito mais esperto, também aprendeu algumas lições, então oferece pequenos pactos no cotidiano de todos nós. Esses pequenos pactos é que são difíceis de se recusar. Vamos pegar o exemplo do trânsito: posso cortar o fulano da frente, manobrar perigosamente, porque preciso chegar primeiro. Isso é um pequeno pacto com o diabo porque você está pondo em risco a vida de uma outra pessoa, de um pedestre, você pode estar matando alguém. Tem uma palavra árabe, adab, que poderia ser traduzida como esse comportamento de gerar harmonia, de viver em harmonia. Então se comportar com adab significa respeitar o outro, querer resolver qualquer antagonismo ou divergência de opinião através do consenso, através da discussão de idéias. Então acho que nos falta muito esse jeito adab de viver. Psicanálise? Nunca cheguei a fazer psicanálise. Acho que o teatro me ajudou muito a enfrentar as minhas eventuais loucuras. Enlouquecer é o medo de se perder a consciência e a lucidez, perder o controle, enfim. Então durante a minha vida inteira sempre fui interessada em me entender mais, em entender a alma humana mais. Acabei tendo muitos amigos psicólogos e terapeutas, principalmente terapeutas junguianos, com os quais sempre conversava de vez em quando, mas não era exatamente análise, psicanálise. Era um período em que precisei falar com alguém para clarear minhas idéias. Durante muito tempo, aquela síndrome de pânico da adolescência teve reflexos no meu comportamento. Sempre tive uma insegurança muito grande, muito medo de perder o controle, de perder minha consciência, minha lucidez e tal. Hoje já estou velha, talvez pudesse dizer que esteja curada. Mas, de alguma maneira, ainda estou marcada por esse medo, por esse pânico surgido na adolescência. Quando falo, por exemplo, que tendo a viver no mundo da fantasia, nesse escapismo em que tendo a mergulhar, é forma de me trazer constantemente para a realidade concreta, para eu ficar aqui bem esperta, para eu estar atenta, acordada. Sempre disse, e repito, que teatro não é terapia nem centro espírita, onde você possa curar doenças físicas ou psíquicas. Mas essa coisa meio esquizofrênica que o teatro permite, de representar um papel, de ser você, mas não ser você, me ajudou muito. Ajudou no sentido de perceber que temos vários níveis de consciência atuando nas nossas mentes, e achar que isso é normal, não é loucura, não é desvario. Interpretar nos ajuda a ter compreensão maior do ser humano, da complexidade do ser humano. Existe palavra que gosto muito, compaixão. Compaixão significa passar junto, é ir junto com os sentimentos da outra pessoa. O ator tem que ter absoluta compaixão pelo personagem que interpreta, e, ato contínuo, compaixão pelos outros seres humanos. Nós atores aprendemos a mudar nossos critérios de julgamento e de entendimento das pessoas, e de nós mesmos. Principalmente de nós, principalmente de mim, e perceber que tudo que está fora de mim também está dentro de mim. Capítulo XXXII Nossa Senhora da Boa Morte e Ela Não, não tenho medo de envelhecer. Tenho 63 anos. Gosto demais da minha idade. Cada ano que passo eu gosto mais ainda. Sou pessoa que fica muito confortável com a idade que tenho. Quando era criança, a minha avó rezava para uma santinha que tinha ao lado da cama, no criado-mudo, para Nossa Senhora da Boa Morte. Na época pensava: ‘Toda a morte é ruim’. E perguntava: ‘Como é que pode existir boa morte, como é que pode existir uma Nossa Senhora da Boa Morte?’. Hoje entendo perfeitamente. Hoje estou querendo uma santinha igual àquela, porque não tenho medo da morte, tenho medo da má morte, tenho medo de alguma doença que me provoque muito sofrimento, não só para mim, mas para minha família. Não quero causar sofrimento para ninguém, então gostaria de ter uma boa morte, uma boníssima morte. Que seja uma morte sem sofrimento para ninguém. Venho pensando muito nisso, não que ache que vá morrer logo, não sei se vou ou não vou, ninguém sabe, mas no sentido de encarar a morte como algo natural, como a única certeza que a gente tem na vida. Só quero ter uma boa morte. Não sei se é isso por isso ou não, não sou, nem nunca fui, aquela pessoa paranóica com saúde, que toma todo o tipo de remédio que aparece, pelo contrário. Devia parar de fumar, e não paro. Tenho consciência de que fumar não me traz vantagem alguma. Mas, não nego, sinto grande prazer em fumar. É um vício. É um dos piores vícios que existem, um dos mais difíceis, comprovadamente, de você abandonar. Já parei algumas vezes. Consigo às vezes diminuir. Tenho fases de fumar meia dúzia de cigarros por dia, de controlar numa boa. Mas agora estou numa fase negra, de fumar muito. Sei que daqui a pouco vou diminuir, mas não esquento muito a cabeça com isso. Agora essa campanha antitabagista me irrita, sim, me irrita muito. Mas, ao mesmo tempo, gostaria que fizesse efeito entre os muito jovens. Seria bom que os jovens nem começassem a fumar, que houvesse campanha específica, não para quem está fumando, mas para quem ainda não começou a fumar. Não adianta botarem essas cenas antitabagistas nos maços de cigarro, você acha que eu olho? Nunca. Nem olho. É dinheiro jogado fora. A campanha tinha que ser específica para os jovens, para não começarem a fumar, porque o difícil é parar. Tenho plena consciência do mal que fumar faz, enfim, de todas essas coisas, mas isso não me faz parar de fumar. Concordo que o cigarro faz mal, mas se quisesse argumentar a favor do cigarro, então veja bem: a minha mãe morreu com 44 anos, de câncer, nunca fumou na vida. Meu pai fumava desde os dez, onze, anos de idade. Morreu de câncer, mas com 77 anos! Paulo Autran tem 81 anos, duas pontes de safena, e fuma até hoje. Quando faço o meu check-up anual com o meu cardiologista, que, claro, faz campanha brutal para eu parar de fumar, ele olha a radiografia do meu pulmão e diz: ‘Pois é, o seu pulmão está ótimo, é inacreditável‘. Capítulo XXXIII Desafiando os Espíritos do Além Nunca tive experiências espirituais ou sobrenaturais. Não que seja cética em relação a essas coisas, talvez não permita que elas aconteçam. Lembro que, ainda em Ribeirão Preto, meus pais eram espíritas como já falei, e estava naquela fase da síndrome do pânico, lembro que um dia comecei a me rebelar com aquela história de quererem me levar para sessão espírita. Disse para eles que ‘Não queria ir mais pra sessão espírita nenhuma, que aquilo não estava resolvendo nada’. Aí eles me deixaram em paz, e fiquei sozinha em casa. Fechei todas as portas, apaguei todas as luzes. Sentei na sala, e falei em voz alta: ‘Então? Não dizem que sou médium? Muito bem, que apareça então alguma coisa! Um espírito, um som, um sinal, qualquer coisa!’. Continuei xingando, provocando, falando alto, chorando. Gritei: ‘E aí? Não vai aparecer nada?’. E não houve nada, não aconteceu nada, não apareceu porra nenhuma. Mas, mesmo assim, encontro pessoas que dizem que sou médium. Até pelo caminho que acabei tomando, sei que tenho uma sensibilidade mais depurada, mais aguçada, enfim sou atriz, lido com isso, com uma intuição muito forte, sei disso, sinto isso, e isso pode ser chamado de mediunidade no espiritismo. Todo mundo vivia me dizendo: ‘Não, você tem que desenvolver sua espiritualidade, tem que desenvolver!’. Mas desenvolver como? Tinha que acontecer alguma coisa paranormal comigo, e nunca aconteceu. Então não acredito nisso. Hoje, com tranqüilidade, posso dizer que não acredito nisso, nessa comunicação com mortos e coisa e tal. Acho que não é por aí. O caminho do meu autoconhecimento não tem a ver com isso. Nem representar a personagem espírita Madame Blavatsky no teatro me fez mudar de idéia. Mas creio sim nas minhas intuições. Acredito que a gente acabe sempre atraindo o que nos é semelhante, aquela história de o semelhante atrair o semelhante. Então, consigo às vezes intuir algumas coisas, e coisas que eu acabo atraindo para mim de alguma maneira. Falo que não escolhi caminho, mas, talvez, de alguma maneira, internamente, acho que aquele foi o caminho que escolhi, logo, acabo atraindo acontecimentos que me levem para aquele caminho. Mas também não exercito isso, não acho que seja útil pra mim. Mas até hoje não aprendi a técnica de distinguir o que é uma intuição genuína e o que é apenas um desejo. Ou seja, às vezes posso estar desejando uma coisa e achar que estou tendo uma intuição. Então quando não acontece, embora deseje muito, sempre acho que não era para acontecer. De qualquer forma, confio no meu anjo da guarda, que me protege de muita cilada. Chamo anjo da guarda seja lá o quer for. Oráculos? Tarô? Teve época de minha vida que estava em busca de caminhos, de um caminho espiritual qualquer, de um entendimento maior de mim mesma, essas coisas. Aí comecei a ler todos os livros de auto-ajuda que encontrei, e comecei realmente a estudar vários desses segmentos. Li muito sobre I-Ching, por exemplo, também sobre Tarô. Mas foi na astrologia que mergulhei mais profundamente. Cheguei inclusive a fazer mapa astral. Teve até mesmo uma época que atendia pessoas em casa. Um casal de analistas junguianos amigos meus me enviava muitos pacientes que estavam em terapia, e fazia o mapa astral deles. Não me interessava saber se a pessoa ia casar ou não, o que me interessava era lidar com características psicológicas que o mapa astral ajudava a desvendar. Fiz isso durante bastante tempo, adorava fazer e ainda ganhava bom dinheirinho. Juntando o pouco que o teatro me dava com o pouco que a astrologia me dava acabando fazendo um poucão. Capítulo XXXIV Gatos, Morcegos e Público Indócil Cada espetáculo acaba criando um ritual próprio, então não tem nada que faça no geral, sempre. Teve época em que antes de entrar em cena batia na madeira três vezes, porque era o que todo mundo com que contracenava fazia. Com o tempo, fui percebendo que, a partir da coxia de cada espetáculo, os rituais dos atores acabam se organizando de alguma maneira. Agora, por exemplo, em Fausto Zero, nós entramos, somos três atores, juntos na abertura do espetáculo. Então no segundo sinal para entrada em cena, já estamos parados no palco, enfileirados. Exatamente quando toca o terceiro sinal, nos olhamos um para o outro e dizemos ‘Merda, merda, merda, merda’, e entramos em cena. Então todo dia a gente tem que repetir o mesmo ritual e só depois disso entramos em cena. Tenho também ritual muito particular. Tenho que, invariavelmente, me recolher, por um segundo que seja, me recolher comigo mesma, e mentalizar boas energias para o espetáculo que vai começar. É um segundo de recolhimento. No geral, nós atores somos muito supersticiosos. Não sou assim supersticiosa, mas mantenho algumas repetições. Tenho mania, por exemplo, de conferir contra-regragem. Em todo espetáculo por melhor que seja o contra-regra, faço questão de checar pessoalmente se todas as coisas estão no lugar certo. Se der tempo, confiro tudo mais de uma vez. Tenho também a mania de chegar muito cedo no teatro. Gosto de chegar umas duas horas antes de o espetáculo começar, e ir pegando aos poucos o clima do teatro e esquecendo as outras coisas que ficaram do lado de fora. Essa coisa de conferir a contra-regragem é quase uma coisa neurótica de minha parte, tenho que ter certeza absoluta de que está tudo exatamente no lugar. É neurose e superstição ao mesmo tempo. Não consigo me imaginar fazendo o espetáculo se eu não conferir todas essas coisas, porque isso me dá uma segurança e uma tranqüilidade fundamentais para entrar bem em cena. Mas nada disso adianta se acontece algo errado em cena. Como o que aconteceu comigo ontem. Tenho pânico de bicho. Aí ontem no Espaço Promon, aqui em São Paulo, que é um teatro chique, limpíssimo, acabou de ser detetizado, enfim um teatro que tem as condições ideais tanto para o público quanto para os atores, e, de repente logo no início do espetáculo, apareceu o que achava que era morcego, e no fim descobriu-se que era o que se chama bruxa, espécie de borboleta feia e grande. Mas eu o tempo inteiro achando que era morcego, e, logo no início do espetáculo, vejo aquele bicho fazendo vôo rasante pelo palco. Fiquei em pânico, pensei em parar o espetáculo, e tudo. Num momento de troca de roupa, nos bastidores falei com Vera Zimmerman, atriz com quem contraceno : ’’Você viu o morcego? O que é que vou fazer? Vou ter de parar o espetáculo’’. E Vera tentou me tranqüilizar: ’’Não é morcego, é borboleta, se acalme!’’. Passei o espetáculo inteiro em pânico. Foi um horror. Aí o público começou a ficar desconcentrado, porque fica vendo aquela cena ridícula, o público viu, todo mundo viu, e quase parei o espetáculo. Foi assim até o final. Então ontem foi um espetáculo em que precisei de todo o meu poder de concentração para poder fazer a cena, porque todo momento olhava para o que achava ser um morcego, e, ao mesmo tempo em que representava, não parava de pensar: ‘Esse morcego vem pra cima de mim, vou sair correndo, não vou agüentar’. Ontem não precisei interromper o espetáculo, mas já houve casos em que precisei parar por causa da presença de elementos externos em cena. Uma época, durante apresentação da peça Agnes de Deus, com a Cleyde Yaconis e a Clarice Abujamra, no Teatro Municipal de São Paulo, uma gata subiu no palco. Estávamos eu e Cleyde em cena e percebemos que o público começou a rir. Quando olhamos para o centro do palco, a gata estava lá, como uma primadona, completamente à vontade. Óbvio, tivemos que parar a cena. O público morria de rir. Aí fomos lá, imploramos: ‘Sai gatinha, vamos sair, e tal’. Mas a gata não queria sair de jeito nenhum, estava adorando ser o centro das atenções. Até que alguém conseguiu tirar a gata de cena e o espetáculo pôde continuar. Mas também já parei espetáculo também por causa de público desrespeitoso. Quando isso acontece, perco a cabeça, perco as estribeiras. Lembro uma vez que estávamos encenando Quando as Máquinas Param, para um público popular em teatro da periferia de São Paulo. Tinha cena na cozinha de casa muito pobre, em que entrava em cena com balde com pouco de água dentro na mão. Assim que entrei em cena, rapaz lá do fundo da platéia gritou: Ô gostosa! Vou aí te comer, gostosa! Ficou tudo vermelho na minha frente, e joguei balde em cima da platéia, com água e tudo. Aos berros, provoquei: Por que você não vem aqui pro palco, seu herói do escuro? Então fez aquele silêncio mortal. Disse mais: Você fica gritando aí no escuro. Por que não vem aqui no palco com os refletores acesos e repete aqui, na minha cara, o que você gritou aí no escuro? Por quê? Fiz o maior sermão, e antes de prosseguir a peça falei: ‘Vou sair de cena e voltar a entrar. Aí quero ver se alguém vai me desrespeitar de novo.’ O espetáculo então correu bem até o final. Em outra vez, fazendo Querô, do Plínio, em montagem do Grupo Tapa, voltei a ter problema com o público. Era apresentação especial para grupo de estudantes. O teatro estava lotado e tinha logo na primeira fila um casalzinho que não parava de conversar e de rir. Mesmo numa cena comovente em que o ator que interpretava Querô se debulhava em lágrimas, com a platéia inteira também emocionada, continuavam rindo. Estava para entrar em cena e não pude deixar de notar o casalzinho rindo e conversando. Aí quando entrei em cena olhei pra eles, encarei, aquela nuvem vermelha baixou de novo, e bradei: ‘Vocês vão sair daqui agora. Eu me recuso a continuar a peça com vocês aqui. Vocês são muito burros. Vocês só têm cabeça para assistir a filmes de Rambo. Vocês não têm sensibilidade pra ver um espetáculo como esse. Vocês são uns idiotas’. Os dois calaram, constrangidos, e prossegui: Vocês continuam sentado aí por quê? Levantem, vão embora! Não quiseram sair, tive que chamar o segurança para tirá-los de lá. O resto da platéia aplaudiu. Prossegui: Vocês estão achando o quê, que é televisão, que é a única coisa que vocês conseguem ver? Não, vamos saindo, vocês vão sair sim, vocês vão se lembrar disso para o resto da vida. Vão aprender a se comportar num teatro. Fui aplaudida, eles foram retirados pelo segurança, e o espetáculo pôde continuar. Capítulo XXXV A Bibi Ferreira com Carinho A minha grande ‘ídala’ é Bibi Ferreira. Já a admirava profundamente quando contracenei com ela em Piaf. Foi uma experiência tão maravilhosa, ela foi tão generosa comigo, aprendi tanto com ela, que a minha admiração por ela só aumentou. É uma atriz que realmente sabe tudo sobre dirigir e interpretar. Entrei no espetáculo apenas na excursão pelo interior de São Paulo, ou seja, a peça já estava em cartaz havia muito tempo. Mas quando entrei, constatei que Bibi tinha entusiasmo de começo de temporada. Lembro que havia ensaiado antes apenas com a assistente. Na véspera da viagem Bibi passou as cenas comigo e tal, e a gente estreou no dia seguinte. Fiz a minha cena consciente de que estava contracenando com Bibi Ferreira, que era dona Bibi Ferreira que estava em cena, o espetáculo era dela, era apenas uma coadjuvante, e fiz a cena como coadjuvante. Quando terminou o espetáculo, ela me chamou e falou: ‘É o seguinte, sou protagonista do espetáculo, você é protagonista daquela cena, naquela cena sou a coadjuvante. Você tem que entrar em cena como protagonista, se não a cena não acontece’. Achei isso de extrema generosidade. Depois disso, quando sou protagonista de alguma peça procuro sempre ter essa generosidade que Bibi Ferreira teve comigo. Epílogo Acho que as coisas acontecem no momento em que têm de acontecer. Lembro de uma época que tomei consciência de que sentia muito prazer em representar, e que tendo esse prazer em representar me perguntava se continuaria representando, se algum dia perceberiam que era uma atriz e se, de fato, algum dia me tornaria mesmo uma atriz. Agora não tenho mais dúvidas, acho que sou uma atriz. O Trabalho e as muitas faces de uma Atriz Teatro 1961 Estréia amadora no teatro universitário. Participa das atividades do CPC (Centro Popular de Cultura) da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde cursa Filosofia. Atua em O Balanço, criação coletiva do grupo supervisionada por Fauzi Arap. O espetáculo é premiado no Festival de Estudantes de Pascoal Carlos Magno, em Campinas (SP). Com essa peça, se apresenta para operários e estudantes, em fábricas, sindicatos e escolas. Também participa do núcleo de Teatro Estudantil do Teatro de Arena e começa a freqüentar o curso de Interpretação Teatral de Eugênio Kusnet, no Teatro Oficina. 1962 Estréia no teatro infantil com a peça A Árvore Que Andava, de Oscar von Pfuhl, direção de Plínio Marcos. Também participa do projeto Teatro Universitário do Teatro de Arena, com o espetáculo Enquanto os Navios Atracam, primeira versão da peça Quando as Máquinas Param, de Plínio Marcos, sob direção do autor. 1963 Estréia profissionalmente na Companhia Cacilda Becker, com a peça Onde Canta o Sabiá, de Gastão Tojeiro, direção de Hermilo Borba Filho. 1965 Ensaia Reportagem de Um Tempo Mau, de Plínio Marcos, proibida pela censura federal no dia da estréia. Também ensaia Jornada de um Imbecil Até o Entendimento, do mesmo autor, tam bém impedida de estrear pela censura federal. 1967 Torna-se sócia-fundadora do Grupo União, cuja montagem de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, é proibida pela censura federal. Participa da campanha nacional pela liberação da peça e, em seguida, trabalha na produção e administração do espetáculo durante os dois anos em que a peça esteve em cartaz em São Paulo, e em excursão pelo país. 1968 Homens de Papel, de Plínio Marcos, direção de Jairo Arco e Flexa, com a Companhia de Maria Della Costa. O espetáculo, depois de estrear em São Paulo, se exibe no Rio de Janeiro e excursiona pelas principais capitais do país. 1969 O Cinto Acusador, de Martins Pena, com direção de Benedito Corsi. Nesse mesmo ano, começa a ensaiar O Abajur Lilás, de Plínio Marcos, sob a direção de Paulo Goulart, mas o texto é proibido pela censura federal. 1970 Protagoniza Balbina de Iansã, texto e direção de Plínio Marcos. Esse espetáculo inicia projeto de popularização do teatro, que prosseguiu nos anos seguintes. A peça faz temporada no Teatro São Pedro (SP) e, depois, na sede da Escola de Samba Camisa Verde e Branco. 1971 / 1972 Prosseguindo no projeto anterior, trabalha na peça Quando as Máquinas Param, de Plínio Marcos, direção de Jonas Bloch contracenando com Tony Ramos). A peça é encenada no Teatro do Sindicato dos Têxteis, no Brás (SP), para público composto na maioria por operários, estudantes de cursos de alfabetização para adultos e de escolas da periferia de São Paulo. 1975 Participa de nova tentativa de montar O Abajur Lilás, dessa vez sob direção de Antônio Abujamra, mas o espetáculo é novamente proibido pela censura federal às vésperas da estréia. Com o mesmo diretor e o mesmo elenco, monta então Bye, Bye, Pororoca, de Timochenko Webi e Mahluly. 1977 / 1978 Trabalha no Teatro Popular do Sesi, atuando na peça O Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos, direção de Osmar Rodrigues Cruz. O espetáculo inaugura a sala na Avenida Paulista, em São Paulo. 1979 Mocinhos e Bandidos, texto e direção de Fauzi Arap. 1980 Finalmente consegue estrear O Abajur Lilás, com direção de Fauzi Arap. 1981 O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchekhov, com direção de Jorge Takla. 1982 Agnes de Deus, de John Pielmeier, direção de Jorge Takla. 1983 Quase 84, de Fauzi Arap, com direção de Márcio Aurélio. 1984 Um Tiro no Coração, de Oswaldo Mendes, direção de Plínio Rigon. 1985 Piaf, de Pam Gems, direção de Flávio Rangel, protagonizada por Bibi Ferreira. Protagoniza Madame Blavatsky, de Plínio Marcos, com direção de Jorge Takla. 1986 Balada de Um Palhaço, de Plínio Marcos, direção de Odavlas Peti. 1987 Interpreta Clitemnestra em Electra, de Sófocles, tradução de Maria Adelaide Amaral e direção de Jorge Takla. 1988 Tudo no Escuro, de Peter Shaffer, direção de Silnei Siqueira. Participa de projeto alternativo no Teatro Procópio Ferreira, que resultou no Lago 21, roteiro e direção de Jorge Takla, a partir de trechos de Hamlet, de Shakespeare, e A Gaivota, de Tchekhov. 1989 Ao lado de Paulo Autran, atua na peça Solness, o Construtor, de Henrik Ibsen, com direção de Eduardo Tolentino, viajando por várias capitais do país. Participa do projeto Arte em Cena, patrocinado pela Caixa Econômica do Estado de São Paulo, e percorre quase quarenta cidades do interior do Estado com a peça Nossa Cidade, de Thorton Wilder, também com direção de Eduardo Tolentino. 1990 Produz e interpreta o monólogo Max, texto do alemão Manfred Karge, tradução Van Steen, com direção de Val Folly. 1991 Participa da leitura dramática de Inez Corrêa, encenada no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo. 1992 Com Noemi Marinho e Eduardo Tolentino, organiza roteiro com textos e músicas de Jacques Prévert para o espetáculo teatral As Portas da Noite, realizado com o público instalado em mesas no palco do Teatro Aliança Francesa, de São Paulo, como nas caves francesas da década de 50. Produção do Grupo Tapa, teve direção de Eduardo Tolentino, direção musical do maestro Luís Gustavo Petri. 1993 Querô, Uma Reportagem Maldita, de Plínio Marcos, com direção de Eduardo Tolentino. 1994 A Gaivota, de Anton Tchekhov, com direção de Francisco Medeiros. Também protagoniza As Traças da Paixão, de Alcides Nogueira, com direção de Márcio Aurélio. Participa ainda do espetáculo Fragmentos do Teatro Brasileiro, direção de Eduardo Tolentino. 1995 Como atriz e produtora, participa da montagem da peça de Léo Lama (filho da atriz com Plínio Marcos) Bang-Bang, Quando os Revólveres Não Matam, com direção de Oswaldo Mendes. 1996 Participa de nova montagem da peça A Gaivota, de Anton Tchekhov, agora com direção de Jorge Takla. Estrela o Projeto Sarau, do SESC de Pinheiros, recitando poemas de Rumi. 1997 Medéia, adaptação de Jorge Takla para os textos das tragédias grega e latina de Eurípides e Sêneca, respectivamente. Direção de Jorge Takla. 1998 Participa do Projeto Mundão, que inaugura a unidade do SESC de Santo Amaro, com espetáculo-solo de poemas do poeta Rumi. 1999 Tu e Eu, com textos da obra poética de Rumi, um dos maiores poetas místicos de todos os tempos. O espetáculo, com roteiro e direção de Jorge Takla, estreou no Festival de Teatro de Curitiba. 1999 A Rainha da Beleza de Leenane, do autor irlandês Martin McDonnagh, com direção de Carla Camurati. 2001 Inaugura o Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, com o espetáculo As Cidades Invisíveis, adaptação de Renata Pallotini e Márcia Abujamra do livro de Ítalo Calvino. Direção de Márcia Abujamra. Também atua em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, adaptação do romance de José Saramago feita por Maria Adelaide Amaral, comdireção de José Possi Neto. 2002 Protagoniza A Ponte e a Água de Pisicna, de Alcides Nogueira, com direção de Gabriel Villela. 2003 Faz participação especial no show beneficente Elas Cantam Chico. 2004 Protagoniza Urfaust – Fausto Zero, de Göethe, com direção de Gabriel Villela.   Televisão - Novelas 1967 / 1968 Beto Rockfeller 1969 João Juca Júnior 1970 / 1971 Simplesmente Maria 1974 O Machão 1976 Canção Para Isabel 1976 / 1977 Papai Coração 1978 / 1979 Salário Mínimo 1980 Brasileiros e Brasileiras 1995 Cara e Coroa 1996 O Rei do Gado 2000 / 2001 Laços de Família 2001 O Clone 2001 / 2002 Desejos de Mulher 2003 Mulheres Apaixonadas Minisséries 1988 Sampa 1997 Dona Flor e Seus Dois Maridos 1998 Hilda Furacão 1998 Luna Caliente Cinema 1993 Opressão, curta-metragem de Mirella Martinelli 1994 Amor Materno, curta-metragem de Fernando Bonassi 1995 Os Três Zuretas, de A. S. Cecílio Neto 1996 Tônica Dominante, de Lina Chamie 1997 Os Nomes do Rosa - Adaptação de contos do livro Primeiras Histórias, de Guimarães Rosa, dirigido por Pedro Bial 2000 Copacabana, de Carla Camurati Premiações Teatro 1980 Molière de Melhor Atriz por O Abajur Lilás Mambembe de Melhor Atriz por O Abajur Lilás 1985 Molière de Melhor Atriz por Madame Blavatsky Mambembe de Melhor Atriz por Madame Blavatsky 1990 Molière de Melhor Atriz por Max Mambembe de Melhor Atriz por Max 1999 Prêmio de Teatro Cultura Inglesa – Melhor Atriz por Rainha da Beleza de Leenane Televisão 1996 Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de Melhor Atriz Coadju- vante por O Rei do Gado, TV Globo Imprensa Oficial