Carlos Reichenbach O Cinema Como Razão de Viver Edição especial para a Secretaria de Estado de Educação Governo do Estado de São Paulo São Paulo, 2007 Carlos Reichenbach O Cinema Como Razão de Viver Marcelo Lyra Imprensa Oficial 2a edição Governador José Serra Secretária da Educação Maria Helena Guimarães de Castro Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Diretor-presidente Hubert Alquéres Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Coordenador Geral Rubens Ewald Filho Apresentação A relação de São Paulo com as artes cênicas é muito antiga. Afinal, Anchieta, um dos fundadores da capital, além de ser sacerdote e de exercer os ofícios de professor, médico e sapateiro, era também dramaturgo. As doze peças teatrais de sua autoria – que seguiam a forma dos autos medievais – foram escritas em português e também em tupi, pois tinham a finalidade de catequizar os indígenas e convertê-los ao cristianismo. Mesmo assim, a atividade teatral só foi se desenvolver em território paulista muito lentamente, em que pese o Marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa no século XVIII, ter procurado estimular o teatro em todo o império luso, por considerá-lo muito importante para a educação e a formação das pessoas. O grande salto foi dado somente no século XX, com a criação, em 1948, do TBC –Teatro Brasileiro de Comédia, a primeira companhia profissional paulista. Em 1949, por sua vez, era inaugurada a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que marcou época no cinema brasileiro, e, no ano seguinte, entrava no ar a primeira emissora de televisão do Brasil e da América Latina: a TV Tupi. Estava criado o ambiente propício para que o teatro, o cinema e a televisão prosperassem entre nós, ampliando o campo de trabalho para atores, dramaturgos, roteiristas, músicos e técnicos; multiplicando a cultura, a informação e o entretenimento para a população. A Coleção Aplauso reúne depoimentos de gente que ajudou a escrever essa história. E que continua a escrevê-la, no presente. Homens e mulheres que, contando a sua vida, contam também a trajetória de atividades da maior relevância para a cultura brasileira. Pessoas que, numa linguagem simples e direta, como que dialogando com os leitores, revelam a sua experiência, o seu talento, a sua criatividade. Daí, certamente, uma das razões do sucesso, dessa Coleção, junto ao público. Daí, também, um dos motivos para o lançamento desta edição especial, voltada aos alunos da rede pública de ensino de São Paulo. Formado, inicialmente, por um conjunto de 20 títulos, ela será encaminhada a 4 mil escolas estaduais com classes de 5a a 8a série, do Ensino Fundamental, e do Ensino Médio, estimulando o gosto pela leitura para milhares de jovens, enriquecendo sua cultura e visão de mundo. José Serra Governador do Estado de São Paulo “O que lembro, tenho.” Guimarães Rosa A Coleção Aplauso, concebida pela Imprensa Oficial, visa resgatar a memória da cultura nacional, biografando atores, atrizes e diretores que compõem a cena brasileira nas áreas de cinema, teatro e televisão. Foram selecionados escritores com largo currículo em jornalismo cultural, para esse trabalho em que a história cênica e audiovisual brasileiras vem sendo reconstituída de maneira singular. Em entrevistas e encontros sucessivos estreita-se o contato entre biógrafos e biografados, arquivos de documentos e imagens são pesquisados, e o universo que se reconstitui a partir do cotidiano e do fazer dessas personalidades permite reconstruir suas trajetórias. A decisão sobre o depoimento de cada um para a primeira pessoa mantém o aspecto de tradição oral dos relatos, tornando o texto coloquial, como se o biografado falasse diretamente ao leitor. Um aspecto importante da Coleção, é que os resultados obtidos ultrapassam simples registros biográficos, revelando ao leitor facetas que também caracterizam o artista e seu ofício. Biógrafo e o biografado se colocaram em reflexões que se estenderam sobre a formação intelectual e ideológica do artista, contextualizada naquilo que caracteriza e situa também a história brasileira, no tempo e espaço da narrativa de cada biografado. São inúmeros os artistas a apontarem o importante papel que tiveram os livros e a leitura em suas vidas, deixando transparecer a firmeza do pensamento crítico, ou denunciando preconceitos seculares que atrasaram e continuam atrasando nosso País. Muitos mostraram a importância para a sua formação terem atuado tanto no teatro, cinema e televisão, portanto, linguagens diferenciadas – analisando-as e suas particularidades. Muitos títulos extrapolam os simples relatos biográficos, explorando – quando o artista permite – seu universo íntimo e psicológico, revelando sua autodeterminação e quase nunca a casualidade por ter se tornado artista – como se carregasse consigo, desde sempre, seus princípios, sua vocação, a complexidade dos personagens que abrigou ao longo de sua carreira. São livros que além de atrair o grande público, interessarão igualmente nossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foi discutido o intrincado processo de criação que concerne ao teatro, ao cinema e à televisão. Foram desenvolvidos temas como a construção dos personagens interpretados, bem como a análise, a história, a importância e a atualidade de alguns dos personagens vividos pelos biografados. Foram examinados o relacionamento dos artistas com seus pares e diretores, os processos e as possibilidades de correção de erros no exercício do teatro e do cinema, a diferença entre esses veículos e a expressão de suas linguagens. Gostaria de ressaltar o projeto gráfico da Coleção e a opção por seu formato de bolso, a facilidade para se ler esses livros em qualquer parte, a clareza e o corpo de suas fontes, a iconografia farta, o registro cronológico completo de cada biografado. Se algum fator específico conduziu ao sucesso da Coleção Aplauso – e merece ser destacado – é o interesse do leitor brasileiro em conhecer o percurso cultural de seu país. À Imprensa Oficial e sua equipe, coube reunir um bom time de jornalistas, organizar com eficácia a pesquisa documental e iconográfica, e contar com a disposição, entusiasmo e empenho de nossos artistas, diretores, dramaturgos e roteiristas. Com a Coleção em curso, configurada e com identidade consolidada, constatamos que os sortilégios que envolvem palco, cenas, coxias, sets de filmagens, cenários, câmeras, textos, imagens e palavras conjugados, e todos esses seres especiais – que nesse universo transitam, transmutam e vivem – também nos tomaram e sensibilizaram. É esse material cultural e de reflexão que pode ser agora compartilhado com os leitores de todo o Brasil. Hubert Alquéres Diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Aos meus pais, Diney e Irene, e para uma criança linda e inteligente chamada Beatriz. Que por sinal é minha filha. Marcelo Lyra Introdução O Cinema como Razão de Viver Este livro começou a surgir em meados de 2001, quando Hermes Leal, editor da Revista de Cinema convidou-me para participar de uma coleção de biografias de dez dos principais diretores brasileiros, escritas por críticos de cinema. Você é o segundo convidado, pode escolher qualquer um dos nove que ainda restam!, disse-me então. Ele foi enumerando a lista um por um. O terceiro era Carlos Reichenbach. Assim que ouvi seu nome, interrompi o relato: Pode parar, nem quero saber quem são os outros. O Carlão é uma pessoa com quem me identifico, e um diretor cuja obra me interessa conhecer com mais profundidade. Na época, tinha assistido apenas a A Ilha dos Prazeres Proibidos, Anjos do Arrabalde, Alma Corsária, Dois Córregos e Filme Demência. Desses, Alma Corsária era o que mais me fascinava. Como Carlão, tenho especial interesse pela história do Brasil de 1964 a 1985, conhecido como Anos de Chumbo, o período da ditadura militar, que tomou o poder num golpe de Estado e iniciou uma fase de repressão, censura e prisões políticas. Alma Corsária é um interessantíssimo balanço desse período. Com seu estilo anárquico, retrata pequenos detalhes, como o lado patético dos revolucionários e ideólogos maoístas, a vida na clandestinidade, a maneira como muitos inocentes acabavam envolvidos e, eventualmente, presos, o controle que a ditadura exercia sobre a população civil, e que se estendia até mesmo às portarias dos condomínios etc. Me chama a atenção a maneira sutil como o filme muda de gênero, passando da chanchada ao drama sociopolítico, ao romance e à comédia de costumes. Desde esse filme, passei a acompanhar Carlão um pouco mais de perto, indo sempre que possível a debates e palestras. Nestes, destaca-se pelo modo apaixonado de falar sobre cinema, seja de seus filmes ou de outros. Em todas, invariavelmente excede em muito o horário limite. Apaixonado e passional, se o tema o desagrada, é capaz de rompantes de fúria, traço de sua personalidade que eu iria conhecer melhor mais adiante, numa entrevista quase fulminante. Mais de uma vez o vi sair da sala conversando com o público, fazendo o debate prolongar-se na porta dos locais. Segundo ex-alunos do curso de cinema da Escola de Comunicação e Artes da USP, o mesmo acontecia depois das aulas, que costumavam ser acompanhadas por alunos de outros cursos. Nelas procurava se expor ao máximo, tentando contaminar seus alunos com esse prazer do fazer cinematográfico que o impulsiona e, no fundo, é sua razão de viver. Como repórter do Caderno 2 do Estadão, o surgimento da amizade com Reichenbach foi apenas uma questão de surgir a oportunidade para alguma entrevista. E foram várias. Nelas, seu estilo era o mesmo dos debates e aulas, inclusive nos rompantes de fúria. Mesmo que fosse apenas para ouvir sua opinião sobre um ou outro assunto em pauta, as conversas nunca duravam menos de uma hora, entremeadas por trocadilhos, relatos bem-humorados, comentários sobre filmes e o que fosse. Mais tarde, quando passei a freqüentar sua casa, para as entrevistas gravadas ao longo de mais de um ano, e que resultaram nesse livro, fui descobrir que isso não era privilégio meu. Generoso, entusiasmado e paciente, Carlão atende com a mesma atenção qualquer interlocutor que o procure, seja o editor de um jornal de grande circulação, seja o estagiário de jornal universitário. Claro que, se percebe que se trata de um cinéfilo, a atenção é redobrada. Por tudo isso, Reichenbach é uma das personalidades mais queridas do meio cinematográfico. Não por outro motivo, foi tão simples minha opção quando a Revista de Cinema me ofereceu os nomes de diretores que integrariam a coleção. Assim, comecei uma longa pesquisa sobre sua obra. Inicialmente nos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo, onde trabalhei como repórter de 1998 a 2001. Depois na internet, que se revelou uma ferramenta indispensável. Imagino a dificuldade que tinham os pesquisadores antes da descoberta desse universo virtual, que nem tem um inventor a quem reverenciar. Benjamin Franklin inventou a eletricidade, Thomas Edison a lâmpada e Graham Bell o telefone. Mas um invento tão recente e importante como a internet não tem pai. Se houvesse, seria o santo padroeiro de jornalistas e pesquisadores. Na era da globalização, tudo é tão rápido que não dá para saber quem foi o pai da criança, coisa que, até pouco tempo, era privilégio de moças mais afoitas. Paralelamente comecei uma trabalhosa tarefa de ver ou rever seus filmes. Trabalhosa porque alguns são quase inacessíveis. Carlão tem ao todo 14 longas-metragens inteiramente dirigidos por ele, mais os episódios dos longas Alice, As Libertinas, As Safadas e City Life. Se os mais recentes foram fáceis de rever, o mesmo não se pode dizer em relação aos mais antigos. Alguns como Extremos do Prazer e Amor, Palavra Prostituta só me foi possível assistir em VHS, com som e imagem esmaecidos pelo tempo. A Cinemateca de São Paulo possui cópias deles, mas não consegui, a despeito dos diversos pedidos que fiz, assistir nada lá. Só permitiram assistir aos filmes telecinados em VHS, formato no qual Carlão também dispunha dos filmes, ainda assim ao custo de R$ 10,00 por hora. Comentei o assunto com outros jornalistas e pesquisadores. Vários reclamaram da mesma dificuldade de acesso nessa casa que deveria se prestar à pesquisa, mas que na prática acaba funcionando mais como um armazém. Em todo caso, não vou desmerecer o primoroso trabalho de preservação e restauração que acontece na Cinemateca paulistana, cujos técnicos estão entre os melhores do mundo. A bem da verdade, com a evolução do digital, é uma instituição que tem os dias contados (no atual formato), a exemplo do que aconteceu com as máquinas de escrever, as vitrolas e, em breve, com os videocassetes. Com a lenta, mas inevitável substituição dos projetores de cinema convencionais por digitais (e seu conseqüente barateamento), logo vai valer a pena telecinar todos os filmes e arquivá-los nesse formato, bem mais prático, durável e barato. Todo acervo da Cinemateca poderá caber, quem sabe, numa pasta 007. E, o melhor, poderá ser exibido em cineclubes de qualquer lugar do Brasil por transmissão via Internet. Como sempre acontece nesses casos, a ajuda mais importante surge de onde menos se espera. O Canal Brasil, por intermédio de sua assessoria de imprensa, colocou à disposição os filmes que possui em seu acervo. Mas a maior surpresa veio só na última hora, dois dias antes de entregar os originais para a editora. O primeiro longa de Carlão, Corrida em Busca do Amor, um filme juvenil sobre corrida de automóveis com todos os elementos do chamado cinema marginal, era tido como irremediavelmente perdido. Na Cinemateca, consegui descobrir que havia apenas o negativo, mas sem um rolo de som. Já estava conformado. Uma conversa informal via internet (santa ferramenta) com o vice-presidente do Clube dos Colecionadores de Filmes em 16 mm, Antônio Leão, bastou para que ele começasse uma consulta com seus membros. Pois foi justamente o presidente do Clube, Archimedes Lombardi, quem descobriu que possuía uma cópia 16 mm em perfeito estado de Corrida Em Busca do Amor, sem saber de sua raridade. Arquimedes conta que comprou por acaso, há cerca de oito anos, na tradicional feira de antiguidades do bairro do Bexiga, região central de São Paulo. Os dois rolos do filme estavam à venda por R$ 80,00. Comprei porque sabia que o diretor era importante, mas nunca imaginei que fosse a única cópia completa disponível. Nem o vendedor sabia, senão teria pedido muito mais, contou Archimedes. Só agora, com essa história do livro, é que o Antônio Leão comentou sobre o Reichenbach e eu disse-lhe que tinha um filme dele perdido em algum canto do meu acervo de 800 filmes. Fomos olhar e Leão ficou pasmo quando viu que era justamente o primeiro filme. O Clube dos Colecionadores de Filmes em 16 mm me ofereceu uma sessão exclusiva de Corrida em Busca do Amor. O próprio Carlão vibrou de alegria ao saber da descoberta. Não vejo esse filme há 25 anos. É fantástico que um colecionador o tenha preservado, afirmou. Ao Clube dos Colecionadores de Filmes em 16 mm, fica meu sincero agradecimento, bem como o reconhecimento por esse inestimável serviço de preservação e divulgação da memória do nosso cinema. Antônio Leão, por sinal, é autor de vários livros sobre cinema brasileiro, sendo o principal deles Dicionário de Filmes Brasileiros, um primoroso levantamento sobre todos os filmes feitos no Brasil (mais de quatro mil), com sinopse, ficha técnica completa e comentários. É sem dúvida o mais importante trabalho de preservação da memória do cinema já impresso no Brasil, indispensável a estudantes, pesquisadores e profissionais de cinema. Só por ele, reivindico desde já uma vaga para o Leão na Academia Brasileira de Letras. Infelizmente para a Revista de Cinema, o patrocinador que iria bancar a realização da coleção de biografias desistiu na última hora e o projeto foi arquivado. Como já estava com meio caminho andado, resolvi continuar por conta própria, apenas nas horas vagas. Os intervalos entre as entrevistas passaram a ser maiores, de seis em seis meses e sua publicação, um sonho distante. Mas o Festival de Gramado sempre me reserva surpresas. O crítico Rubens Ewald Filho me procurou no Festival de 2003, explicando que estava coordenando uma coleção de livros de bolso sobre atores e diretores paulistas. Ele soubera de minha pesquisa sobre Reichenbach e queria que eu escrevesse um dos livros. A idéia era fazer relatos em primeira pessoa, praticamente com o autor falando sobre si. Gostei da idéia, embora minha pesquisa tivesse também entrevistas com pessoas que trabalharam com Reichenbach ao longo de sua vida, de modo a fazer também um panorama do universo cinematográfico das diferentes épocas em que atuou. Ainda planejo concluir essa versão maior, mesmo sem editora e trabalhando por conta própria. Gosto muito da obra do Carlão, de seus personagens humanos, tristes, parte deles autobiográficos, alguns coadjuvantes meio naif, enfim, um universo muito pessoal de referências. Uma última curiosidade. Ao final da conversa com Rubens Ewald, já estava indo embora, começando a escrever mentalmente o livro, quando ele me chamou, como que divertindo-se com minha distração: Mas você não vai perguntar quanto vai receber? Pois é, não perguntei. Estava tão contente em saber que o livro seria publica-do que tinha esquecido. A verdade é que nesses trabalhos que fazemos com o coração, dinheiro é a última das preocupações. Num rasgo de sinceridade, admiti: Olha, tinha esquecido, mas para ser sincero, esse livro eu seria capaz de fazer de graça! E não era mentira. O convívio com Carlão valeu quase que por uma faculdade de cinema. Foi uma fantástica desculpa para fazer com que me descrevesse seus filmes, sua gênese, os problemas de filmagem etc. Pude entender melhor o nascimento do Cinema Marginal, da Boca do Lixo e do Ciclo da Pornochanchada, três momentos fundamentais do cinema paulista, dos quais Reichenbach participou ativamente desde sua gênese. Espero ter conseguido partilhar essa experiência e esse aprendizado nesse livro, de modo a que mais pessoas tirem proveito da vivência de Reichenbach, de seu jeito apaixonado de fazer cinema e da sua capacidade de fazer filmes nas mais adversas condições. Ao longo dessas quase 30 horas de conversas, divididas em oito ou nove tardes, espalhadas no intervalo de um ano, confesso que algumas vezes me senti pequeno diante da tarefa. Carlão é um personagem extremamente complexo. Herdeiro da vasta biblioteca que pertencia ao pai, desde cedo foi um grande devorador de livros. Aos 15 anos já havia lido quase todos os clássicos e antes dos 20 já freqüentava a difícil prateleira dos filósofos. Sua formação cultural sólida transforma qualquer repórter num caçador tentando abater um elefante com um estilingue. Procurei me preparar ao máximo. Na tentativa de compreender melhor meu interlocutor, li algumas de suas referências literárias, especialmente anarquistas como Bakunin e Proudhon (Toda Propriedade É um Roubo). Poemas de Jorge de Lima, escritos de Kierkegaard, Goethe etc., também entraram para meu cardápio. Mesmo assim, a sensação era apenas a de ter obtido um estilingue maior. Justiça seja feita, Carlão em momento algum diminui o repórter. Ao contrário, está sempre oferecendo livros, apontando fontes. Conduzir uma entrevista com objetividade é sempre um desafio para qualquer repórter. Com Carlão, por conta de sua cultura, disposição e criatividade, o trabalho é dobrado. A maior dificuldade nas entrevistas sempre foi manter a conversa na direção que eu queria, ou seja, norteada pela pauta resultante das pesquisas e seguidas revisões de seus filmes. A cada tópico, Carlão inicia uma série de digressões. Embora sempre volte ao tema, elas podem demorar mais de meia hora, pois cada referência (cenas de filmes, livros, pessoas) lembrada abria novas encruzilhadas, novos desvios de rota. Justiça seja feita, todas muito interessantes, a ponto de me fazer embarcar. Mas no momento de passar para o papel, a coisa não rendia em termos relevantes para o assunto do livro. Mas não chegou a ser exatamente um problema. Ao contrário, essas entrevistas e conseqüentes digressões, quase uma odisséia, me foram bastante valiosas, não apenas em lições de vida, como em termos de evolução cultural. Por fim, vale um esclarecimento quanto à estrutura do livro. Procurei um formato que facilitasse o leitor moderno, sem tempo para nada, que lê nos intervalos do trabalho, ou aos poucos, em casa. Dividi o livro em três partes e um epílogo. A primeira parte consiste numa introdução inteiramente de minha autoria, baseada nas pesquisas. A segunda é uma longa entrevista com Reichenbach, em tom mais geral, onde ele fala sobre o cinema, a gênese de seus filmes, o universo da Boca do Lixo etc. Na terceira parte está a análise filme a filme. Ela ocupa dois terços do livro, e os filmes são divididos em quatro partes: ficha técnica resumida; uma pequena sinopse; um comentário de minha autoria e informações do diretor; e finalmente uma parte intitulada impressões, onde o diretor fala sobre o filme, da mesma forma que na segunda parte. O tamanho desses capítulos varia muito de filme para filme. O critério é unicamente meu. Preferi conversar mais sobre os que me fascinam. Não por acaso, Filme Demência e Alma Corsária ocupam maior número de páginas. Os dois mais recentes, Garotas do ABC e Bens Confiscados, também renderam muito, por estarem mais frescos na memória. Mas mesmo os que são renegados pelo próprio diretor, como Essa Rua Tão Augusta, e os episódios dos primeiros longas, Alice, As Libertinas e Sede de Amar – Capuzes Negros, foram razoavelmente bem discutidos. Alguma coisa da entrevista da segunda parte eventualmente aparece de novo, de forma mais aprofundada na terceira parte, quando Reichenbach se refere especificamente a cada filme. Optei por manter assim para que a segunda entrevista não ficasse muito truncada e sem sentido. Por fim há um epílogo, onde Carlão fala de seu enfarte e de seus (muitos) projetos de filmes que pretende realizar nos próximos anos. Um último agradecimento a colaborações espontâneas que me foram de grande valia. À jornalista Maria do Rosário Caetano, que desde que soube do projeto sugeriu nomes de possíveis entrevistados e deu dicas muito úteis; ao crítico Inácio Araújo, ex-parceiro de Reichenbach em vários filmes, que também forneceu informações importantes, permitindo-me, entre outras coisas, conhecer melhor o ambiente da Boca; e à jornalista Maria Altberg, pela leitura atenta dos originais e pelas sugestões oportunas. Marcelo Lyra Para o Marcelo, por seu empenho na prospecção de uma obra ainda em processo e por sua paciência com os meus ânimos de cada dia. Em memória de Luiz Sérgio Person, Oswaldo Sampaio e Roberto Santos, os mestres nativos que me ensinaram a relevância do cinema e me infectaram com o vírus da sinceridade e seu amor pelos personagens brasileiros. Carlos Reichenbach Primeira Parte A Carreira Carlos Oscar Reichenbach Filho nasceu em Porto Alegre (RS), em 1945, mas aos dois anos de idade sua família mudou-se para São Paulo. Filho de um rico empresário do ramo editorial, foi preparado para herdar os negócios do pai, até que a morte prematura deste fez com que seus planos mudassem. Um acaso do destino contaminou-o com a paixão pelo cinema. Seu pai era muito amigo do cineasta Osvaldo Sampaio, que chegou a fazer leituras de roteiros em sua casa, quando ele tinha cerca de dez anos. Aos 21 resolveu estudar cinema na extinta Escola Superior de Cinema São Luís, onde ficou por dois anos e conheceu inúmeros colegas que seriam seus parceiros no futuro, como João Calegaro. Lá, foi aluno de Luis Sérgio Person, que o influenciou definitivamente. Há elementos de São Paulo S.A. em quase toda a sua obra, especialmente Filme Demência. A descoberta da revista Cahiers du Cinéma também exerce grande influência em sua formação cinematográfica. Com recursos próprios e empréstimos bancários, filma com Calegaro e Antônio Lima o longa em episódios Alice, totalmente de forma amadora, mas já com elementos do que viria a ser sua obra, ou seja, citações de filósofos e clássicos e toques de humor. A seguir, aproxima-se de um núcleo de produção que começava a se formar na região da Rua do Triunfo, no centro de São Paulo, especializado em produções rápidas e baratas, com cenas de nudez, o qual mais tarde seria conhecido como Boca do Lixo. Lá dirige fitas de sucesso e consegue comprar uma produtora de comerciais, que o impulsiona a fazer Lilian M, seu primeiro filme na linha que considera Cinema da Alma, e que teria continuidade em Amor, Palavra Prostituta. De volta à Boca do Lixo, dirige um dos maiores sucessos da pornochanchada, Ilha dos Prazeres Proibidos, com forte influência libertária. Com Filme Demência, primeira e única produção de Reichenbach com a extinta Embrafilme, amarga o maior fracasso, mas faz seu filme mais pessoal e mais repleto de citações. A consagração definitiva no Brasil viria em 1986 com Anjos do Arrabalde, o grande vencedor do festival de Gramado como melhor filme, atriz (Betty Faria) e atriz coadjuvante (Irene Stefânia). Em 1993, outra consagração, desta vez no festival de Brasília, quando Alma Corsária venceu os prêmios de melhor filme (do júri e da crítica), direção, roteiro e montagem. Paralelamente ao trabalho de direção, Reichenbach sempre foi um diretor de fotografia respeitado e, na Boca do Lixo, atuou como fotógrafo em mais de 30 filmes de terceiros. Já em Filme Demência e Anjos do Arrabalde, tinha resolvido parar de fotografar, entregando a câmera para Zé Bob, no primeiro e Conrado Sanches, no segundo. Mas o minguado orçamento de Alma Corsária fez com que ele voltasse a fotografar pela última vez. Dentre os mais importantes, destacam-se Orgia, o Homem que deu Cria (1970, direção de João Calegaro) e Mulher, Mulher (1977, direção de Jean Garret).Recebeu prêmios de melhor fotografia por Excitação, A Força do Desejo (ambos de Garret) e Doce Delírio, de Manoel Paiva. Algumas vezes acontecia de Reichenbach não gostar do resultado final da fotografia de certos filmes, seja porque não dispunha de orçamento para um bom trabalho, seja por discordância com o diretor. Nesses casos, assinava a direção de fotografia com o pseudônimo de Alfred Stin. Dois de seus filmes, Império do Desejo e Paraíso Proibido, têm esse nome nos créditos. Isso gerou situações engraçadas. Um pesquisador notou a presença de Alfred nos dois filmes e foi perguntar a Carlão o motivo de nunca mais ter trabalhado com Stin. Não consegui explicar sem antes dar uma gargalhada, disse Reichenbach. Rever várias vezes sua obra também foi muito proveitoso. Permitiu-me perceber como ela é entrelaçada. Desde os episódios despretensiosos da fase da Boca do Lixo até a elegância poética de Dois Córregos e Bens Confiscados, encontramos personagens que ressurgem, aqui e ali, com outros nomes, mas reconhecíveis pela alma corsária. Apesar do parentesco, apresentam sempre numa linha de evolução. Por exemplo, em Ilha dos Prazeres Proibidos, há um profeta maluco, que mata boçais às bordoadas, citando poemas de Fernando Pessoa. A idéia reaparece mais adiante, em Filme Demência, quando um aluno mata o professor declamando citações. O personagem de Jonas Bloch em Paraíso Proibido, que larga tudo e sai numa busca de si mesmo praticamente retorna em uma outra busca, no Fausto de Filme Demência. Há paralelos entre o personagem de Ricelli, em Dois Córregos e o de Bertrand Duarte em Alma Corsária, não só pelo evidente ativismo político, mas pela perda do amor, pela esperança, pela busca por uma paixão. Essas obsessões retornam ciclicamente. Estão na professora feita por Beth Faria em Anjos do Arrabalde, na operária de Garotas do ABC. Apesar de ter dirigido alguns dos maiores sucessos de bilheteria da Boca do Lixo, Carlão garante que nunca se preocupou em fazer filmes para o grande público. Uma frase que o ouvi repetir algumas vezes, diz que não está preocupado com a quantidade de espectadores e sim com a qualidade do que deseja mostrar. Se eu for pensar nisso, em trazer público, não faço nada. Como seus personagens são alter-egos, vários deles disseram essa frase. Em Anjos do Arrabalde, a personagem de Betty Faria diz ao amigo que seu livro não vai dar dinheiro e ele responde Não escrevi para dar dinheiro! Em Alma Corsária, o protagonista diz algo semelhante, bem como o radialista de Paraíso Proibido. Quando confrontei essas afirmações semelhantes de seus personagens e pedi que definisse essa tipo de postura deles (propositadamente omitindo o fato de que no fundo eles são o próprio Carlão), ouvi essa resposta que, na prática define ele mesmo: São pessoas que estão tão envolvidas com seu trabalho que fazem daquilo um motivo de vida, o único motivo para a própria existência. Um Coração Proporcional ao Tamanho Uma das características de Carlão é seu enorme coração, que só falhou mesmo foi com o dono, nos três enfartes que o acometeram. Para os amigos, alunos e cineastas que admira, ele não decepciona. Não há um ex-aluno que não tenha uma palavra de elogio. Mesmo fora de aula, não se furta à leitura de roteiros, dando sugestões e conversando horas a fio. O carinho para com os alunos é quase vitalício. Mais de uma vez, em festivais Brasil afora, fui convidado por ele a assistir mostras de curtas em 16 mm, porque havia algum trabalho de um ex-aluno. Os atos de generosidade de Carlão precisariam ser inventariados, mas isso seria assunto para outro livro. Há um sem-número de diretores que ajudou no começo da carreira, bem como diversos filmes que não existiriam sem ele. Quando comprou a J. Filmes, no início dos anos 70, sua intenção final era se tornar uma espécie de Roger Corman brasileiro, ou seja, ajudar a produzir filmes de colegas, sempre no esquema rápido e barato. Vale lembrar que a J. Filmes era a produtora de publicidade mais importante de seu tempo, dispondo de estúdio e equipamento de qualidade. A J. faliu, mas incansável e obstinado, nunca desistiu da idéia. Ainda hoje, planeja uma produtora com a filha Eleonora, a qual já existe no papel, onde irá produzir filmes de amigos, roteiros que lhe agradem, sempre no esquema rápido e barato, à maneira de Roger Corman, talentoso produtor de filmes B americanos, famoso por dar chance a novatos, revelando nomes como Francis Ford Coppola, Peter Bogdanovich e Dennis Hopper. Um bom exemplo dessa generosidade ocorreu no ano 2000, quando o então ministro da Cultura, Francisco Weffort criou um programa de incentivo à produção de filmes de baixo orçamento, ou seja, filmes rápidos e baratos (para o padrão brasileiro), que não poderiam custar mais de R$ 1 milhão. Pelo projeto, o ministério, por intermédio da secretaria do Audiovisual, iria financiar dez filmes. Mas na comissão de seleção de projetos estava Carlos Reichenbach, que se apaixonou pelo projeto de um filme pernambucano, que ficara em 11º lugar, entre os selecionados. Incansável, atormentou o pessoal da secretaria do Audiovisual, para que criassem mais uma vaga. Esse projeto é muito bom, repetia o tempo todo. Seu apelo chegou até o ministro Weffort, que acabou cedendo. Esse 11º filme foi Amarelo Manga, um dos filmes mais importantes de 2002, vencedor da maioria dos prêmios em todos os festivais que disputou. Por último, vale registrar a longevidade do trabalho desse autor, sua relação com diversos movimentos cinematográficos e sua evolução. Do início de carreira no cinema marginal, em meio ao ambiente da boca do lixo, do qual se aproximou por ser o único lugar onde era possível fazer filmes no final dos anos 60 e de boa parte dos 70, pode-se dizer que da lama brotou a flor. Em um universo onde o que se pretendia era apenas fazer filmes baratos com cenas de mulheres nuas, Carlão foi clandestinamente tentando dar seu recado, acreditando no cinema de autor como formador cultural. Seu talento como contador de histórias, aliado a um humor anárquico, com raízes na chanchada, logo tornou-o garantia de sucesso de público, permitindo-lhe vôos mais ambiciosos, como Lílian M, Relatório Confidencial, um filme que mesmo hoje parece ousado, com sua técnica de mudar constantemente de gênero, na medida em que um novo homem entra na vida da protagonista. No período inicial de sua carreira, Reichenbach parecia achar que faria apenas um único filme em toda a vida, tal a quantidade de citações literárias, filosóficas e existenciais, bem como na diversidade de músicas que inseria em seus filmes, já nos tempos da Boca do Lixo. Era como se quisesse compactar o universo cultural em alguns metros de negativo. No caso da música, herdou do pai uma enorme coleção de discos clássicos em 78 rotações, que ouviu desde a adolescência e influenciou enormemente sua formação cultural. Quando foi fazer cinema, decidiu compartilhar esse universo musical com seu público. Esse furor referencial e cultural atingiu seu ápice em Filme Demência, onde não apenas o Fausto de Goethe é presença constante, mas também uma dúzia de poetas, escritores e filósofos. Esse é sem dúvida seu filme mais complexo e de difícil interpretação, mas que também permite uma leitura mais superficial, apenas com o drama da falência e o desespero de um homem que per-de tudo. Depois desse filme, Reichenbach iria gradativamente deixando as citações literárias, passando a concentrar esforços nas citações a estilos de filmar de seus mestres. Nesta fase, o desafio é descobrir ângulos, enquadramentos e iluminação à maneira de Fritz Lang, Valério Zurlini, Orson Welles, boa parte dos japoneses dos anos 60 e 70 e tantos outros. Anjos do Arrabalde é o primeiro a apontar esse novo rumo. As citações rareiam e o estilo tende para citações visuais de Rosselini, Ymamura e outros. O cuidado com a fotografia seria redobrado, bem como uma leveza e elegância nos movimentos de câmera que o aproximam do cinema mais clássico. Dois Córregos iria consolidar essa nova tendência, que atinge seu auge no recente Bens Confiscados. Nesse sentido, a parceria com o fotógrafo Jacob Solitrenick ganha importância considerável. Ela iniciou-se em Garotas do ABC, repetiu-se no curta Equilíbrio e Graça e novamente em Bens Confiscados. Foi a primeira vez que Reichenbach repetiu um fotógrafo, desde que parou de fotografar seus filmes. Antes havia trabalhado com Zé Bob (Filme Demência), Pedro Farkas (Dois Córregos)e Conrado Sanches (Anjos do Arrabalde). Quando subiu ao palco do Festival de Brasília de 2003 para receber um prêmio especial do júri, fez questão de abraçar Jacob e declarar em público: Eu não trabalho mais com nenhum outro fotógrafo, só com você! Em mais de uma ocasião, disse-me que Jacob consegue entender exatamente o que ele quer, muitas vezes sem nem precisar falar, bastando uma troca de olhares. Em Garotas do ABC e Bens Confiscados, especialmente neste último, praticamente não há citações literárias, nem referência aos anos de ditadura militar. Uma mudança radical quando se lembra que em filmes como Extremos do Prazer ou Ilha dos Prazeres Proibidos, os personagens têm diálogos que são transcrições literais de textos de filósofos. Outro detalhe de sua evolução salta aos olhos na comparação com seus colegas. Rogério Sganzerla, por exemplo, estréia nas telas como um cineasta já formado, dono de uma inquietação e ousadia narrativa que marcaria época em O Bandido da Luz Vermelha (1968). Ozualdo Candeias também explodiria todo seu talento também na estréia, com A Margem (1967), filme ícone e que daria nome ao cinema marginal, esbanjando sua principal característica, o uso criativo da falta de recursos, resultando numa estética própria. A seu favor, Ozualdo tinha 45 anos e uma sólida formação cinéfila quando estreou. Já Sganzerla e Carlão tinham em torno de 21 anos. A diferença é que, enquanto os dois primeiros eram cineastas maduros em sua estréia, Reichenbach revelou-se um diretor em formação. Depois de dois episódios em longas que ele mesmo renega, estreou em um longa solo com Corrida em Busca do Amor (1970), que está longe de seus melhores trabalhos. É um filme que começa de forma convencional e só a partir da segunda metade, quando a produção fica sem dinheiro, passa a incorporar alguns elementos do cinema marginal, ainda sim de forma caótica, exibindo uma corrida de automóveis onde não se sabe quem está na frente, aonde se vai chegar ou o que está acontecendo. O recur-so mais constante é um humor inspirado nas antigas chanchadas, e que estaria presente em praticamente toda a obra do diretor. Só em Lilian M. (1971) começaria a se delinear o cineasta que atingiria seu auge em meados dos anos 80 com dois grandes trabalhos: Filme Demência (1985) e Anjos do Arrabalde (1986). O primeiro é uma abordagem sombria da decadência, da perda dos valores seguida de uma descida aos infernos da própria alma, em clima onírico. Inspirado em Goethe e com elementos de São Paulo S.A., de seu mestre Luiz Sérgio Person, o filme é também uma releitura da sua relação com o pai, morto precocemente. Já Anjos... envereda pelo estilo do italiano Valerio Zurlini, outra constante fonte inspiradora. Um drama humano e intimista, revela um universo da periferia de forma triste, mas com uma ponta de esperança impulsionada pelo sentimento solidário que une o grupo de mulheres. Em seu período no cinema pornô, há dois filmes de estilo, forma narrativa e influências muito semelhantes: A Ilha dos Prazeres Proibidos (1977) e Império do Desejo (1978). O segundo é conseqüência do sucesso de publico do primeiro. Em ambos a trama é ambientada num local paradisíaco (uma ilha e uma casa na praia), sempre com muitas citações e referências a filósofos e literatura clássica, tudo apimentado com muitas cenas de sexo e nudez, e uma dose do tradicional humor do diretor, que se revela em trocadilhos impagáveis e gags inspiradas nas chanchadas. Já Amor Palavra Prostituta (1979) e Extremos do Prazer (1983) são mais próximos entre si tanto na forma narrativa quanto na aproximação com o drama psicológico. No primeiro, temos um professor niilista, completamente descrente da vida, que irá reencontrar-se no drama da mulher que sofre as conseqüências de um aborto malfeito. Já em Extremos..., novamente um professor descrente da vida, desta vez pela perda da mulher, uma ativista política, é influenciado pelas pessoas que vêm visitar sua casa. Nesses quatro filmes, temos a presença do ator Roberto Miranda, parceria mais constante de Reichenbach. Nos dois primeiros ele está em um papel mais sério, ao passo que em Amor... e Extremos..., faz personagens patéticos, ridicularizados por posturas machistas e conservadoras. Presença nos Filmes Ao longo da obra de Reichenbach, o espectador mais atento vai reconhecer sua voz em rápidas aparições, em quase todos os filmes antes da fase do som direto de Dois Córregos. Ele dubla um dos investigadores durante a batida policial em Alma Corsária, outro investigador durante uma batida policial, quando seu amigo é preso, em Filme Demência; um negro que pede para seu irmão ser libertado em Anjos do Arrabalde, o amigo e fundador do Cineclube de Santos, Maurice Legeard, que faz o médico em Amor, Palavra Prostituta e muitos outros. O que poderia ser visto como uma variação sonora das famosas aparições de Alfred Hitchcock, na verdade, segundo Carlão, era uma questão de economia. As diárias dos dubladores eram caras e nesse momento, depois das filmagens, já não tínhamos nenhum dinheiro em caixa. Era comum chamar os amigos para dublar vários personagens. Eu fazia qualquer voz, mas especialmente a de persona-gens que precisassem de uma mais grave. Só não dava para fazer voz de mulher. Ele também costuma aparecer como ator. No primeiro longa, Corrida em Busca do Amor, tem um papel importante, o do cientista Ivan, O Terrível, homenagem ao filme de Eisenstein, tio do protagonista, por sinal o papel mais divertido do filme. Em Filme Demência, vemos outra de suas participações significativas na frente das câmeras. Fausto (Ênio Gonçalves) entra num banheiro público imundo. Lá já está Carlão urinando. Eles se entreolham e Carlão diz a frase chave para o entendimento do filme: Cada um aprende com as vilanias de cada um. Não é possível. E é. Essa é uma frase influenciada pela leitura de Henry Miller. Ainda como ator, ele aparece em Extremos do Prazer, como um ex-aluno e primeiro amante da mulher do professor que enlouqueceu. Seu nome é Carlos Willer, uma homenagem ao amigo e poeta Cláudio Willer. Além de questionar a relação do professor com a mulher, ainda aparece numa cena, vomitando sangue em um livro. Em uma das cenas mais anárquicas, influenciada por Godard, um dos atores está fazendo uma citação em que descreve os personagens do filme. No meio da frase, passa a ser dublado por Reichenbach e, inesperadamente, pega um grande espelho e aponta para a câmera, mostrando o diretor em pleno ato de filmagem. De quebra, dubla um dos bandidos que, no final, assaltam a casa do professor. No recente Garotas do ABC, um imprevisto acabou gerando outra aparição. O músico Ivan Lins estava escalado para o papel do dono da tecelagem, sr. Mazini, que tinha duas rápidas participações. Devido a problemas de saúde, Lins cancelou o trabalho na última hora e o diretor assumiu o papel. Não havia tempo para ensaiar outro ator. Resolvi assumir o papel porque sabia as falas e a entonação exata do papel. Optei por nunca mostrar meu rosto, aparecendo em contraluz ou de costas, criando um personagem inspirado em Dr. Mabuse, de Fritz Lang, conta ele. Boca do Lixo e Cinema Marginal Esse período, que vai de 1977 a 1985, é o de maior aproximação entre Reichenbach e a Boca do Lixo. É também o mais produtivo de sua carreira. Além de dirigir seis longas e um episódio, foi também diretor de fotografia de dezenas de filmes, atividade que garantia seu sustento. A partir de Anjos do Arrabalde, passa a concentrar esforços na atividade de diretor e roteirista, que mantém até hoje. Cabe aqui um rápido histórico dos movimentos que agitaram o meio cinematográfico paulistano nesse período. A chamada Boca do Lixo é uma pequena região do centro velho de São Paulo, nas cercanias da Estação da Luz, a central ferroviária da capital, especialmente a rua do Triunfo. Ali se concentraram primeiramente um sem-número de distribuidoras, em função da praticidade de ficar perto da estação, de onde seguiam os filmes que seriam exibidos no interior do Estado. Com o tempo e o sucesso do ciclo da pornochanchada, diversas produtoras de pequeno porte começaram a surgir. Mas o termo Boca do Lixo não surgiu por causa do cinema, e sim nas páginas policiais do início dos anos 60. Nessa época, iniciou-se uma degradação do centro da cidade. A classe média começou a mudar-se para a região da Av. Paulista e as cercanias da Rua do Triunfo passaram a ser dominadas pela prostituição de segunda classe e tráfico de drogas. Com a sucessão de crimes, os jornais passaram a referir-se à região como Boca do Lixo. O cinema produzido ali acabou sendo chamado de Cinema da Boca ou Boca do Lixo. Curiosamente, no início não havia tanto filme pornô, mas sim filmes populares e o início da produção do chamado Cinema Marginal. Foi na Boca que surgiu também uma segunda corrente, denominada por parte da imprensa como Cinema Marginal Cafajeste, ou simplesmente Cinema Cafajeste, expressão criada por João Calegaro. Esse sim tinha Reichenbach como um dos líderes. Mais adiante ele irá explicar como surgiu o movimento, que tinha suas raízes no cinema cochon. Essa corrente pregava com mais insistência a tese do quanto pior, melhor e do deboche como estilo, ao mesmo tempo em que recorria a cenas de nudez, a exemplo do que ocorria nos Estados Unidos e França. O sucesso do Cinema Marginal Cafajeste é o embrião da pornochanchada, que passaria a ser característico da Boca. A pornochanchada é, ao lado da chanchada, um dos raros momentos em que o cinema brasileiro conseguiu firmar-se como indústria. Nesse período, que vai de 1971 a 1984, estabeleceu-se um ciclo bastante prolífico, chegando a responder por cerca de 60% do total de filmes produzidos no Brasil. Os números variam muito, mas estima-se que a Boca tenha produzido cerca de 650 filmes nesse período, enquanto o restante do Brasil fez cerca de 450. Vale frisar que a Boca sustentava-se por si só, praticamente sem apoio estatal. A maioria dos filmes fazia sucesso de público e pagava-se com a bilheteria. Era um universo próprio, no qual um grupo seleto de musas era garantia de sucesso. Entre elas, destacavam-se Matilde Mastrangi, Helena Ramos, Aldine Muller e Zaira Bueno. A pornochanchada abrigava vários subgêneros, como dramas, westerns, policiais, filmes de terror, de cangaço e principalmente as comédia que parodiavam sucessos americanos. Havia ainda uma pequena corrente de filmes autorais e experimentais, capitaneados por Carlos Reichenbach. Uma das características desse ciclo era a necessidade de colocar ao menos uma palavra de conotação sexual no título dos filmes. Quem se dispuser a fazer um inventario desses 650 títulos, certamente irá se surpreender com a criatividade. Títulos como A Ilha das Cangaceiras Virgens, As Safadas, Internato de Meninas Virgens, Presídio de Mulheres Violentadas, Noite das Taras, Noite das Fêmeas, Noite das Depravadas e por aí vai. Apesar disso, havia um ambiente de camaradagem, que possibilitou a troca de experiências e o surgimento de técnicos especializados. Mas também havia muitos picaretas, e até histórias de produtores que assinavam contratos com atrizes em camas de motel. Em meados dos anos 80, com a invasão dos filmes de sexo explícito americanos nos cinemas, a Boca do Lixo descambou para esse filão, mas não conseguiu competir, pois os pornôs estrangeiros chegavam com preços absurdamente baratos. Assim , a quase totalidade das produtoras foi à falência, a despeito de muitas terem recorrido a apelações do tipo sexo explícito com animais e outros tipos de perversão. Galante Não se pode falar em Boca do Lixo sem abrir um capítulo para um produtor de enorme importância na carreira de Reichenbach: Antônio Polo Galante, um dos maiores e mais prolíficos produtores da Boca do Lixo, principalmente no Ciclo da Pornochanchada (produziu cerca de 50 filmes). Galante por si só mereceria um livro. Menino pobre, nascido em 1934 em Tanabi, interior de São Paulo, sua aproximação com o cinema se deu por acaso. Aos 20 anos começou a trabalhar como faxineiro nos estúdios da extinta Companhia Cinematográfica Maristela. Em pouco tempo, passou a trabalhar como contra-regra e foi progredindo até chegar a assistente de direção. O pulo do gato como produtor surgiu em 1967, quando resolveu comprar, por uma ninharia, um filme inacabado, feito em 1962. Chamou o diretor Ody Fraga (que tinha dirigido a primeira parte) para filmar umas cenas extras e dar sentido à história (acrescentando alguma nudez), e o montador Sylvio Renoldi, para montar o quebra-cabeças de forma minimamente coerente. Nasceu assim Vidas Nuas, um drama sobre um homem casado com uma milionária, que o trai com um gigolô, um dos maiores sucessos da época e o precursor do Ciclo da Pornochanchada. Eles conheceramse ainda em 1967, quando Galante recusou-se a produzir As Libertinas, de Carlão, Calegaro e Antônio Lima. O diretor conta que soube depois, por intermédio da secretária, que Galante assustou-se com aqueles cabeludos que andavam de sandálias. Não deixe esses maconheiros subirem de novo!, teria dito a ela, antes de ficarem amigos. Seu primeiro contato profissional com Carlão foi no filme O Pornógrafo (1970), de João Calegaro, onde Reichenbach fazia uma participação como ator, além de colaborar informalmente. Os dois ensaiaram produzir, em 1975, um filme chamado As Rebeldes, refilmagem disfarçada de Zero de Conduta, o clássico anarquista de Jean Vigo, mas apenas em 1977 produziriam um filme juntos: A Ilha dos Prazeres Proibidos, um dos maiores sucessos da Boca do Lixo. A seguir, fizeram Império do Desejo, Paraíso Proibido, o longa em episódios As Safadas e finalmente Anjos do Arrabalde. No início dos anos 80, Galante viveu sua fase mais produtiva, chegou a produzir seis filmes por ano. Era um produtor eclético. Foi responsável por muitas fitas sem a menor qualidade, feitas apenas para faturar, nas quais não permitia sequer que se filmassem duas vezes a mesma cena, para economizar. Ao mesmo tempo apoiava diretores de talento, como Rogério Sganzerla (A Mulher de Todos, seu segundo filme), Sylvio Back (Guerra dos Pelados) e Walter Hugo Khouri (Convite ao Prazer, O Prisioneiro do Sexo e O Último Êxtase). Para Reichenbach, teve enorme importância pois, apesar dos orçamentos minguados, dava-lhe total liberdade para fazer o que quisesse, desde que colocasse as habituais cenas de nudez e sexo. Mas o diretor faz questão de frisar que Anjos do Arrabalde não teria ficado tão bom se Galante não tivesse ficado apaixonado quando começou a ver os copiões do filme. Depois disso, passou a acompanhar as filmagens, não para dar palpite na realização, mas para melhorar as condições e até ajudando, no trabalho pesado. Reichenbach, conta que, certa feita, queria colocar a câmera na parte externa da janela do terceiro andar de um sobrado. O chefe maquinista estava com problemas para me atender por causa do terreno irregular. Galante começou a juntar todos os praticáveis espalhados pela locação, foi até o dono da casa pedir autorização para cavar o terreno e nivelar a área. Depois pegou pás, picaretas, pregos e martelo e coordenou a equipe técnica para instalar a grua exatamente onde eu havia pedido. Reichenbach no Set Acompanhar Carlão em ação no set de filmagens foi uma experiência única, quase um privilégio. Fui diversas vezes às locações e cenários, em etapas diferentes de Garotas do ABC. Impossível não ser contagiado por seu entusiasmo. Vendo-o dirigir um filme, quem não o conhece certamente pensaria que se trata de um novato, tal sua disposição e bom humor. Sempre que chegava nos cenários da extinta Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que permitiam filmagens mais tranqüilas, Carlão fazia questão de me mostrar cenas feitas nos dias anteriores, na tela do vídeoassistente. Sua vibração quase juvenil diante de um bom desempenho de um dos atores, da qualidade da luz, do ângulo de determinada tomada chegam a ser contagiante. Outra coisa que impressiona é sua minuciosa dedicação aos detalhes. Estuda cuidadosamente os enquadramentos, sabe o que cada um pode acrescentar em termos de força narrativa. Preocupa-se mesmo com pequenos objetos que possam estar na tela. Em uma cena, mostrava-se a família de Aurélia assistindo TV em casa. Mas Carlão não queria que se visse na tela alguma novela da Globo. Fez questão de mostrar a família assistindo a uma entrevista com o amigo Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão. Ao fim das entrevistas, da pesquisa e da revisão de seus filmes, saio como um paciente que deixa seu psicólogo depois de anos de terapia, conhecendo tanto o psicólogo quanto a si mesmo. Não só pela enorme convivência possibilitada pelo livro, mas também pela seguida releitura de sua trajetória cinematográfica. Poucos autores estão tão expostos em sua obra como Carlão. Se me fosse pedida a definição de Carlão em uma frase, diria que sua vida é um filme aberto. Por último, vale citar um lugar-comum que aqui ganha ares de máxima: a análise da obra de Carlão não se encerra aqui. Outro jornalista certamente faria um livro completamente diferente, pois bastava conduzir de outra forma as perguntas e Carlão seguiria outro dos caminhos possíveis. Não é difícil imaginar que um autor tão complexo resultaria pelo menos umas três visões diferentes. Afinal, só Billy Wilder teve duas biografias traduzidas em português. Hitchcock deve ter pelo menos quatro dezenas de biografias, Chaplin e John Ford mais de duas dúzias. Um Enfarte no Caminho Um outro fato pouco conhecido, e que torno público agora, fez com que nossas vidas se cruzassem de forma quase fulminante. Em março de 2001 eu era jornalista do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo e cobria a área de cinema brasileiro. Um dia, pouco antes do almoço, chegou a notícia de que o governo do Estado tinha decidido terminar com o Programa de Integração Cinema e Televisão, conhecido como PIC-TV, uma parceria bem interessante que deveria servir de modelo para as demais emissoras de TV do Brasil, normalmente tão avessas ao cinema brasileiro. Pelo PIC-TV, a TV Cultura entrava com uma pequena quantia em dinheiro e se comprometia a fazer maciça propaganda do filme, quando estreasse no cinema. Ao mesmo tempo, comprometia-se a exibi-lo em sua programação, depois de transcorrido o período padrão, ou seja, depois da exibição nos cinemas e lançamento em VHS e DVD. Além disso, a emissora fornecia uma carta contendo essa garantia aos produtores, que poderiam usá-la para obter apoio de estatais paulistas. Todos os produtores que tiveram filmes no PIC-TV são unânimes em confirmar que o compromisso de propaganda e exibição na TV Cultura facilitava enormemente a captação de recursos. O programa foi um sucesso, permitindo a produção de 48 filmes num período de quatro anos. Carlão era um dos maiores entusiastas. Os critérios de seleção do PIC-TV são um modelo a ser seguido. São absolutamente democráticos, com um sistema de pontuação que privilegia a qualidade da obra, não cansava de repetir. O encerramento do PIC foi mesmo muito triste para o cinema paulista. Como é regra em uma situação como essa, quando soube da extinção do PIC-TV, busquei ouvir cineastas que tivessem feito filmes por esse programa. Carlos Reichenbach era o primeiro nome da lista de qualquer repórter que fosse escrever sobre o assunto. Além de ser defensor do programa, tinha feito Dois Córregos e alavancado a produção de Garotas do ABC por intermédio do programa. Telefoneilhe e fui atendido com a simpatia de sempre. Ao saber que a questão era o fim do PIC-TV, Carlão foi ficando alterado. Você tem de denunciar isso. É uma vergonha. O PIC foi a melhor coisa que aconteceu para o cinema paulista nos últimos 50 anos, exaltou-se, com seu conhecido vozeirão cada vez mais nervoso. Passional em relação a tudo que envolve o cinema, Carlão bradava quase como se o repórter fosse culpado pelo fim do PIC. Tentei acalmá-lo. Pode deixar, Carlão, vamos denunciar sim. Explique porque você é defensor do programa. Ele se acalmou um pouco, mas cada vez que lembrava que estavam acabando com o PIC-TV, voltava a se alterar. Pedia que eu pegasse as informações na sua coluna, num site chamado Cineclick, desconhecendo o fato de que um repórter de um jornal do porte de O Estado de S. Paulo não pode simplesmente copiar notícias de um site. Insisti para que falasse um pouco mais. Com a veemência que lhe é habitual, desancou governo, o descaso para com o cinema e tudo mais. Ao fim da entrevista ele já estava ofegante, mas nunca imaginei que fosse o princípio de um enfarte. Antes de desligar, prometi que faria uma denúncia séria e daria um bom destaque ao assunto. O que aconteceu a seguir eu só soube algumas semanas depois. Depois que desligou o telefone, Carlão foi piorando. No fim da tarde sua mulher levou-o ao hospital e os médicos constataram o enfarte, bem como o princípio de outro, ocorrido semanas antes, que não fora tratado, já que Carlão possui aversão a hospitais e só aceita ser levado a um se estiver à beira da morte. Internado imediatamente, foi submetido uma cirurgia de emergência, na qual foram implantadas três pontes de safena. Ficou mais de uma semana na UTI sob risco de morte. Cinco dias depois da entrevista, sem saber do ocorrido, entrei em férias e fui para Nova York, onde fiquei um mês. Na volta, como todos sabiam da minha amizade com Carlão, ninguém me contou do enfarte. Achavam que eu já estava cansado de saber. Fui rever Carlão apenas em julho, encontrando-o por acaso, numa rua de Gramado, no Rio Grande do Sul, durante o tradicional festival de cinema que fez a fama da cidade. Fomos almoçar num restaurante das cercanias. Ele me perguntou por que eu tinha sumido, se eu estava chateado por que o então famoso site No Ponto Com havia publicado uma entrevista onde dizia que tinha tido o enfarte durante uma entrevista comigo. Foi logo esclarecendo. Pedi para o repórter não colocar seu nome, mas acho que ele não entendeu, explicou Carlão. Fiquei pasmo. Lembrei de sua voz ofegante ao final da entrevista. O susto de quase ter provocado a morte de uma pessoa querida foi tão grande que quase também tive eu um enfarte. Expliquei-lhe resumidamente a história da minha viagem, que fez com que eu não ficasse sabendo de nada. Rimos bastante do episódio. A generosidade desse homem impressiona. Um cineasta consagrado, premiado e reconhecido internacionalmente, preocupado que um simples repórter pudesse estar magoado. Nasceu ali, da minha parte, um respeito enorme, que somou-se à admiração que eu já nutria por aquele grandalhão meio desengonçado, de fala grossa, a quem eu costumava dar carona quando o encontrava na saída de cinemas como o Espaço Unibanco e Cinesesc, dois tradicionais redutos da cinefilia paulistana. Por sinal, deixava meu carro esfumaçado, tantos os cigarros consumidos no curto trajeto. Lygia, a mulher de Carlão, igualmente bem-humorada, ao me encontrar em Gramado, naquela mesma tarde, brincou comigo, colocando as mãos no meu pescoço, fingindo me estran gular: Você quase matou meu marido! E depois, séria, me consolou: O problema foi o cigarro que ele consumia diariamente, não as suas perguntas! Quando me vê entrevistando o marido (e não foram poucas as vezes, ao longo de 2003), eventualmente brinca: Não vá deixá-lo nervoso! Uma amiga deu-me o consolo final, levantando uma tese (com a qual concordo) e que foi considerada plausível por um amigo cardiologista. Fumante compulsivo desde a adolescência, àquela altura da vida as artérias de Carlão já estavam comprometidas pelo excesso de cigarro. O enfarte era só uma questão de tempo. Para ela, talvez tenha sido sorte ter ocorrido durante uma entrevista ao longo da qual o interlocutor tentava acalmá-lo, concordando com suas afirmações. Tivesse acontecido numa briga de trânsito ou numa simples discussão de condomínio, na qual o oponente o irritasse ainda mais, o enfarte poderia ter sido fulminante, a exemplo do que ocorrera 42 anos antes com seu pai. Pode ser, afinal, por uma dessas coincidências que a vida está sempre a aprontar, o pai teve o enfarte com a mesma idade que Carlão, ou seja, aos 56 anos. Os dois fumavam cerca de três maços por dia. Enquanto o pai morreu na mesma hora, o filho teve um enfarte foi mais leve, permitindo ser levado a um hospital e socorrido a tempo. Essa questão da morte prematura do pai, ocorrido quando tinha apenas 13 anos, marcou profundamente a vida de Reichenbach, refletindo em todos os seus filmes, de uma maneira ou de outra. Eu falava alemão fluentemente, pois era a língua de meu pai e meu avô, mas devido ao trauma, desaprendi completamente. Foi uma porta que se fechou, afirma. Em Filme Demência (1986) resolveu escancarar o trauma, exorcizando o fantasma, ao contar a história do herdeiro de uma fábrica de cigarros que perde tudo e desce aos infernos. Ao tornar-se cineasta, quebrou a tradição da família de gráficos e editores, de modo que a empresa não foi adiante. Depois do enfarte, proibido de fumar, e alimentando-se de maneira um pouco mais saudável (sem abrir mão de certos prazeres) em alguns meses já aparentava estar uns dez anos mais jovem. Isso se refletiu em uma incomum disposição para o trabalho. Sua recuperação foi rápida. Em pouco tempo já estava pronto para encarar duas filmagens praticamente seguidas. Garotas do ABC, filmado em meados de setembro de 2002, e Bens Confiscados, co-produção da atriz Betty Faria, filmado em fevereiro e março de 2003, além do curta-metragem Equilíbrio e Graça, feito no mesmo pedido, à convite da Petrobrás. Ao mesmo tempo, já tem prontos os roteiros de mais dois filmes. A produtora Sara Silveira já não dá conta de tanta criatividade. Toda semana ele aparece com um projeto novo!, conta ela. O fato da morte ter passado perto deu novo estímulo de vida ao diretor. Lembro-me de Djin Sganzerla, filha de Rogério, quando ela subiu ao palco no festival de cinema de Brasília, em 2003 para receber o prêmio de melhor diretor concedido a seu pai e fez um discurso emocionante. Segundo ela, pouco antes de começar as filmagens de O Signo do Caos, já bastante debilitado pelo câncer que lhe tiraria a vida em janeiro de 2004, ele disse: Filha, só o que pode me salvar neste momento é uma câmera! Esse amor pela arte, que impulsiona os verdadeiros autores também move Reichenbach e faz crer que ele ainda tem muitos filmes pela frente, antes de ir morar na cidade paulista de Dois Córregos, onde pretende viver quando se aposentar, dedicando-se apenas à literatura. Sara Silveira, vítima maior dessa pulsão criativa pósenfarte, merece um capítulo à parte. Ele mesmo vai falar dela mais adiante, mas vale antecipar que o encontro entre os dois daria a Reichenbach uma inédita e proveitosa tranqüilidade para filmar. A partir de Anjos do Arrabalde, em 1986, os dois não se separariam mais, formando uma das parcerias mais produtivas do cinema brasileiro. Sara é a produtora dos sonhos de qualquer cineasta. Fã incondicional de seu trabalho, faz o possível e o impossível para dar ao diretor a infra-estrutura necessária para a realização do filme. Com igual zelo, procura mantê-lo afastado dos problemas que afligem a produção e a captação de recursos. Com ela na retaguarda, Reichenbach só precisa preocupar-se em escrever roteiros e filmar. Segunda Parte: Com a Palavra, Carlão. Descobrindo o Cinema Boa parte da vida cultural do início dos anos 60 acontecia numa pequena região do centro de São Paulo. O movimento cinéfilo se concentrava na sala de projeção da SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca), que ficava no prédio dos extintos Diários Associados na Rua Sete de Abril, e em frente havia o bar e restaurante Costa do Sol, freqüentado por estudantes, cineastas, artistas e técnicos. Na mesma rua havia o cine Coral e a sede da Sociedade Amigos da Cinemateca, que nessa época era dirigida pelo Paulo Emílio Salles Gomes. Eu era sócio. Havia também o Paribar, a Galeria Metrópole e bar do Clubinho dos Artistas, etc. Tudo ficava muito perto. Você encontrava as pessoas que tinham alguma ligação com o cinema na Rua Sete de Abril, na Marconi, atrás da Biblioteca, nos bares e restaurantes próximos, era engraçado. Muitas idéias de filmes e debates surgiram ali. Fiz cursos de cinema lá no museu, ministrados pelo Paulo Emílio, pelo Francisco Almeida Salles. Toda a produção da Nouvelle Vague e o principal do cinema europeu foi exibida nessa sala. Eles influenciaram boa parte dos cineastas paulistas de então. Depois de 1965, esse eixo mudou para a região da Avenida Paulista, quando surgiu uma sala de cinema no prédio do Belas Artes, na esquina da Consolação com a Paulista e a salinha da Cinemateca passou para lá. Os bares Riviera e Ponto Chic, que ficavam em frente, passaram a ser um ponto de encontro e a extinta Faculdade de Cinema São Luiz, onde estudei, ficava há dois quarteirões dali. Assim, era comum encontrar estudantes de cinema no Riviera ou nas sessões da Cinemateca. A Faculdade de Cinema São Luis era bem democrática e acabava sendo freqüentada até por muitos não-alunos. A primeira sessão séria do filme À Meia-Noite Levarei Sua Alma, do Mojica Marins, foi realizada lá. Foi um impacto muito grande para os estudantes que se defrontaram com aquele filme visceral. Mas minha relação com esse filme ocorreu de forma mais inesperada. Em 64 eu militava no movimento estudantil. Durante uma manifestação, a polícia apareceu, jogando bombas de gás lacrimogêneo para todo lado. Eu corri para um cinema, comprei ingresso e entrei. Estava passando justamente À Meia-Noite.... Nunca vou esquecer da primeira cena que vi. Era aquela do enterro, com o Mojica comendo carne. Na hora pensei, Esse cara é um gênio. Quando fui fazer a São Luis, eu já era um cinéfilo. Na verdade, vivo cinema desde a adolescência. É curioso, pois meu pai e meu avô eram editores. Meu destino era seguir a carreira da família. Imagine que no início do século, meu avô Gustav Reichenbach, veio para o Brasil a convite do governo, para montar a primeira litografia do Brasil. O país não possuía know-how de litografia, que era um sistema de impressão com pedras planas muito usado na época. Ele veio com um sócio e abriu a empresa Hartmann & Reichenbach em São Paulo. Ela cresceu e depois ficou conhecida como Companhia Litográfica Ipiranga, que existe até hoje. Tínhamos uma casa na beira da represa Billings, onde o chão e as escadas eram todas decoradas com pedras litográficas. Quando meu pai morreu, em 1960, eu tinha sido mandado para um colégio interno alemão chamado Ginásio Köelle, em Rio Claro, onde se estuda alemão como você estuda português no Brasil. Eu estava sendo preparado para estudar artes gráficas na Alemanha. Por conta dessa formação, fui editor de todos os jornais em todos os colégios em que estudei. Lembro que o melhor presente que recebi na minha vida foi um mimeógrafo, daqueles antigos a álcool, que nada mais é do que uma pequena impressora. Meu pai me deu quando eu era garoto. Editei muito jornal em casa. Pode-se dizer que eu nasci para ser editor e o cinema foi um desvio de rota. Boa parte da minha geração de diretores, bem como o pessoal do Cinema Novo, veio do jornalismo, do texto escrito. Quando eu entrei na Faculdade de Cinema São Luís, imaginava que existisse o curso de roteirista. Queria escrever para cinema. Eu já gostava de cinema na adolescência, mas não pensava nunca em ser diretor. Aos nove anos de idade, meus pais eram muito amigos do casal Vera e Osvaldo Sampaio. Ele foi o diretor de Sinhá Moça, A Estrada e outros. Meu pai editava uma revista ligada a cultura, chamada Lady. Era uma revista considerada muito adiantada para a época, uma revista para mulheres sem fotonovela, que contratava escritores para fazer os artigos. Nomes como Dinah Silveira de Queirós ou Ernani Donato. Aliás, ele lançou várias revistas importantes no Brasil, como a Casa & Jardim e editou a revista Seleções durante duas décadas. Em 1956, o Osvaldo adaptou uma novela da Dinah, chamado Jovita, que havia sido publicada na revista Lady, que ele pretendia filmar. O filme acabou não saindo, mas lembro que ele fez uma leitura da adaptação para o meu pai e outros amigos, lá na casa da represa Billings. Eu tinha nove anos de idade e aquela leitura me marcou muito. Fiquei absolutamente fascinado com a construção do roteiro cinematográfico; me pareceu uma maneira inovadora de lidar com literatura. Aos 11 anos, resolvi escrever meu primeiro roteiro. Nem lembro direito do que se tratava. Eram uns garotos que viviam uma aventura... Devia ser uma bobagem, mas não importa, foi meu primeiro texto distribuído em vários cadernos escolares e também meu primeiro contato com o cinema escrito. Ao mesmo tempo, meu pai também era ligado à prática amadora do cinema, tinha uma câmera 16 mm e filmava bastante. Ele fez uma volta ao mundo de navio, com a minha mãe, em 1953, e voltou com inúmeros rolos de filme colorido reversível. Usei cenas filmadas por ele em Hong-Kong, Macau e Honolulu no meu longa Alma Corsária. Ampliadas para 35 mm, elas aparecem, por exemplo, naquelas lembranças do chinês, dono da Pastelaria, quando o pianista começa a tocar. Pouco antes de entrar na São Luís eu já sabia manipular a câmera dele e tinha noções de enquadramento e sensibilidade de negativo. Na faculdade eu fotografei muitos filmes de colegas. Tinha o equipamento do meu pai em 16 mm e uma câmera de 8 mm. Os meus primeiros curtametragens em 16 mm (Duas Cigarras e Pierrot Si Fou), nunca finalizados, eu não fotografei. Para a homenagem-deboche à Godard preferi convidar o Carlos Alberto Ebert, que era meu colega na São Luiz. Mas, fotografei vários filmes 8 mm para outros colegas. Por coincidência, fotografei os curta-metragens de Miguel Chaia, também ex-aluno São Luiz, hoje catedrático de sociologia da PUC-SP e pai do meu atual assistente, Daniel Chaia. A São Luís era uma escola paga. Tinha alunos até de Manaus. O problema é que o curso começava com 70 alunos e terminava com 20. Ela teve pouco tempo de existência, pois acabou fechando sem formar uma turma. Os poucos alunos que se formaram, acabaram o curso em Minas Gerais, numa escola de cinema de lá, criado pelo padre Massoti. Eu mesmo fiz só dois anos e saí, pois comecei a trabalhar profissionalmente com cinema. Mas para mim foi um período muito importante, pois os contatos, os amigos que fiz lá foram fundamentais na minha carreira. Quando saí da faculdade, juntei-me com o João Callegaro e um crítico de cinema mineiro chamado Antônio Lima, que na época trabalhava no Jornal da Tarde, para montar uma empresa, chamada Xanadu Produções Cinematográficas (homenagem a Orson Welles), pela qual fiz meus primeiros filmes. Tínhamos 20 anos de idade. Conseguimos um financiamento bancário, um risco que corremos, para fazer nosso primeiro trabalho, As Libertinas, um filme dividido em três episódios, feito em 35 mm, em preto-e-branco. Na época havia bancos mineiros que financiavam filmes. O Banco Mineiro do Oeste, por exemplo, que financiou nosso filme. O meu episódio chama-se Alice. Admito que é muito ruim. Mas é um filme que merece um capítulo à parte. Não tínhamos experiência alguma. A idéia de filmar foi do Callegaro. Um belo dia, depois da aula, ele olhou para mim e disse: Pô, Carlão, nós vamos ficar nessa faculdade estudando até quando? Do jeito que a coisa está indo, nós vamos ficar aqui um tempão, pagando mensalidades e não vamos chegar a lugar nenhum! Ele ficava inconformado porque no primeiro ano do curso, era proibido filmar! Alguém pode imaginar um curso de cinema que não permite que se filme? Nessa época não existia pornochanchada, não existia nada. Num cinema do centro da cidade, estava sendo exibido Sexy Gang um filme idiota, que se passava numa praia, que era o que os franceses chamavam de cinema cochon, um filme bem comercial com várias cenas de nudez feminina. Cochon significa porco. O máximo que se via, no entanto, era uma mulher de calcinha e seios à mostra. A censura era muito rígida. Se houvesse uma cena em que um homem tocasse os seios da mulher, cortavam na hora. É engraçado, pois o que propiciou o ciclo da pornochanchada foi o fato de que, nos anos 70, a censura passou a implicar mais com o teor político dos filmes do que com nudez e sexo. Nos EUA, o gênero exploitation abriu caminho para muitos diretores que depois se tornaram importantes. Francis Ford Coppola, por exemplo, estreou no cinema com um filme nesse estilo, chamado Os Amantes do Nudismo (Tonight For Sure). Cheguei a ver esse filme na época, mas confesso que nunca imaginei que esse mesmo diretor iria fazer alguma coisa que prestasse. Abel Ferrara começou com um filme de sexo explícito, sob o pseudônimo de Jimmy Boy L., em 1976, 9 Lives of a Wet Pussycat. O filme erótico foi uma escola para muitos cineastas. No Brasil não poderia ser diferente. Callegaro e eu estávamos tateando, não sabíamos bem que rumo seguir. Claro que eu queria fazer um filme político. Mas o fato é que, apesar de minha militância, política era assunto proibido nos cinemas. O que nos chamou a atenção foi que Sexy Gang ficou 28 semanas em cartaz. O caminho tinha que ser por ali. Claro, não tínhamos experiência, quase não tínhamos equipamento, mas sobrava vontade de filmar. Uma das palavras de ordem da época: Se não dá para fazer o melhor, vamos fazer o que der. Passamos anos na faculdade querendo fazer filmes de qualidade, mas a realidade com que nos deparamos, na hora de filmar, é que isso seria impossível. Então, o negócio era investir no mau gosto, na baixaria etc. Nós dizíamos: Se não dá para fazer cinema político, vamos fazer cinema cochon. Foi o que norteou a produção de As Libertinas. O filme fez grande sucesso nos cinemas, tanto que nos permitiu fazer, em seguida, Audácia, a Fúria dos Desejos, no mesmo esquema. Meu episódio, desta vez, chamava-se A Badaladíssima dos Trópicos Contra Os Picaretas do Sexo, que conta a história da frustrada produção de um filme. Meu episódio abre com Paula Nelson, a diretora, falando diretamente para a câmera: Olha, o negócio é fazer filmes péssimos! Imagine que depois de um mês que As Libertinas entrou em cartaz, nós já tínhamos conseguido pagar o empréstimo que o bancou. Ele faturou uma fortuna. Foi uma coisa inconcebível para os dias de hoje. O filme custou, em valores atuais, cerca de 30 mil dólares. É o valor atualizado do empréstimo que fizemos na época. Hoje você não faz um curta-metragem com isso. Claro, era um filme em preto-e-branco, sem a parafernália de iluminação nem nada. Mas se fosse fazer esse filme hoje, gastaria no mínimo uns US$ 250 mil. As Libertinas ficou cinco meses em cartaz e vendeu pelo menos um milhão de ingressos. Isso segundo os distribuidores. Mas com certeza eles faturavam muito mais. Não havia controle sobre a bilheteria. Os cinemas nos pagavam 50% do faturamento nas duas primeiras semanas. Depois esse valor caía para 30%. Se você conseguisse ficar mais de 20 semanas, eles pagavam só 20% do que o produtor teria direito. Por isso, era comum que filmes rentáveis ficassem seis meses em cartaz. Havia muito desrespeito por parte das distribuidoras e dos exibidores naquela época. No interior, então, nem se fala. Os filmes eram vendidos a preço fixo e o exibidor podia fazer quantas sessões quisesse, sem pagar um tostão a mais. Um problema que tive em As Libertinas, foi que meu episódio era o último a ser filmado. Quando o Callegaro começou, havia dinheiro, a produção correu bem. No meio do segundo episódio, o dinheiro acabou. Tivemos que pegar o material filmado e exibir para possíveis financiadores. Numa dessas exibições, um deles chamou o Antônio Lima e disse: Pare esse filme. Ele é muito ruim, vocês vão perder dinheiro. Ninguém vai querer ver isso! O Callegaro ficou furioso. Levantou dizendo Vamos embora que essa besta só está falando asneiras! Imagine se tivéssemos dado ouvidos a ele. Claro que acreditávamos em nosso trabalho e continuamos a procurar um produtor. Pergunta daqui, pergunta dali, ouvimos falar de um pequeno produtor da Boca do Lixo, que estava começando, chamado Antonio Polo Galante, que depois seria o principal produtor dos meus filmes futuros. Marcamos uma reunião com ele. Mal começamos a conversar e ele falou: Esse filme não vai dar dinheiro algum. Ninguém sabe o que quer dizer libertinas! Imagine que ele nem quis ver o filme. Anos depois, quando alguém perguntou qual foi a maior burrada da vida dele como produtor de sucesso, a resposta foi Não ter produzido As Libertinas. Mas ele era assim, tinha seu instinto, seguia o que achava certo. Acabamos conhecendo o Renato Grechi, outro pequeno produtor da Boca, que mais adiante iria produzir meu primeiro longa-metragem solo, chamado Corrida em Busca do Amor. Ele era intermediário da distribuidora Franco Brasileira, famosa por distribuir filmes do Godard, Malle, Truffaut e outros. Fomos ao Rio de Janeiro, onde a família Valanci tinha escritório, mostramos o filme e aconteceu o milagre. Eles toparam coproduzir! O patriarca Valanci simpatizou com a gente e nos deu uma pequena soma em dinheiro que permitiu acabar o filme. Durante essa parada nas filmagens, Callegaro montou o episódio dele. Pelo cronograma inicial, cada um seria responsável por 30 minutos de filme. Pouco depois, quando comecei a filmar, o Lima acabou de ordenar o episódio dele, o segundo do filme. Os dois foram verificar e viram que, somados os dois episódios, daria pouco mais de 40 minutos de filme. Eu estava rodando as minhas primeiras locações em Itanhaém quando recebi uma ligação do Callegaro, dizendo que eu deveria espichar meu episódio para 50 minutos. Quase caí de costas. Meu roteiro, mal dava para 30 minutos. Ele simplesmente disse: Se vire. O filme tem que ter 90 minutos, você vai ter de quebrar esse galho. Reclamei bastante e eles concordaram em filmar cenas extras para os episódios deles lá em São Paulo mesmo. Ele desligou e eu fiquei num dilema: O que é que eu vou filmar? Eu que fui estudar cinema na faculdade para ser roteirista, tendo de aprender a esticar uma história na marra. O pesadelo é que não tinha muito o que inventar. A praia lá não é bonita, não havia grandes paisagens. Queria filmar paulistas na praia, inspirado pelo filme Sexy Gang. Era uma história passada numa colônia de férias, onde os protagonistas resolviam assediar as funcionárias da colônia. Tudo seria narrado pelo diário da camareira do hotel, que tinha um romance com um escritor que não conseguia escrever nada. E quanto mais ele se envolvia no caso com a garota, menos inspiração conseguia ter. Há diversos personagens paralelos. O mais engraçado é o do administrador do lugar, casado com uma ninfomaníaca que seduz um japonês. Quando nós três, eu, Callegaro e Lima, resolvemos que iríamos fazer um filme ruim, decidimos filmar tudo da maneira como não se deve filmar habitualmente. Tivemos que desaprender cinema. Lembro que o Callegaro, depois de assistir em primeira mão os copiões dos primeiros dias da minha filmagem, no laboratório em São Paulo, telefonou todo empolgado: Isso aqui está genial, é uma mistura de Zé do Caixão com Ody Fraga e o pior do pior cinema francês! O diretor de fotografia, o Valdemar Lima, o mesmo de Deus e o Diabo na Terra do Sol, passou toda a filmagem assustado com as idéias malucas dos dois moleques (eu e o Callegaro). Lembro que ele não entendia direito o que a gente queria com o filme. Sua idéia era fazer uma imagem bem-feita, caprichada e sensual. E nós em busca dos tons saturados dos filmes de nudismo sueco. Houve uma vez em que ele se ofendeu. Pedi que fizesse uma panorâmica da cidade de Itanhaém. Ele foi se preparando para fazer um belo plano, mas eu pedi: Faça como o Primo Carbonari, dê umas tremidas no meio da panorâmica! Ele ficou bravo. Se quiser fazer merda, faça você! Quando ele movimentou a câmera para a direita, eu meti o pé no tripé e fiz a câmera tremer. Mal ou bem, é o que foi para a tela. Foi muito difícil fazer ele entender que o que a gente queria era avacalhar com o cinema chapa-branca. Censura e Filmes Esticados Ainda havia a agravante da censura, que se intrometia em tudo e às vezes deixava o filme mais engraçado. Para se ter uma idéia do que era o filme, na primeira cena, um personagem saía de um bueiro, de terno e gravata e ia ao cinema. Chegando lá, encontrava uma menina gostosa, de biquíni, tomando um sorvete e perguntava: Posso dar uma chupadinha aí? A censura não gostou. Mandou cortar. Mas conseguimos fazer com que deixassem a cena, mas sem som. Para eliminar as falas, eles raspavam, no negativo, a banda de som da película. Com a raspagem, ouvia-se apenas um ronco. O que eles não imaginavam é que o resultado, nas telas, ficava muito pior, pois dava asas à imaginação do espectador. Então, ouvia-se Posso dar uma brrrrbrrrr, aí? Quem ouvia, imaginava um palavrão muito mais forte. Em outra cena, o personagem dizia a uma mulher: Você é uma vaca! A censura raspou o som de novo. Ficou Você é uma brrrbrrrr! Muitas vezes, a censura implicava com bobagem, coisas que não tinham nada demais, e depois de raspado, tudo parecia baixaria. Havia uma cena em que um jornalista picareta ficava tirando fotos de mulheres nuas na praia. Ele aproximava-se de uma mulher, apontava o dedo diretamente para a câmera, e dizia, como naquele cartaz americano do Tio Sam, A América precisa de você! A censura implicou, achando que seria ofensivo para com os Estados Unidos. Uma bobagem subserviente. Tornaram a raspar o som. Nos cinemas, a gente ouvia o Tio Sam dizendo brrrrbrrrr e parecia que estava dizendo algo como Eu quero trepar com você!! Era gozadíssimo. Pena que as cópias raspadas se perderam. Há uma versão integral na Cinemateca, pois a prefeitura dava um prêmio a todos os filmes filmados em São Paulo, e em troca exigiam uma cópia em 35 mm para o acervo da prefeitura. Então, a primeira cópia que fazíamos, mesmo com marcação de luz ruim, ia para o arquivo da prefeitura. Ela ficava sem censura. O bom disso é que a Cinemateca tem hoje cópias em bom estado de vários filmes produzidos em São Paulo na década de 60. Mas a despeito dessas coisas, o fato é que era difícil lidar com a censura, pois muitas vezes eles queriam cortar cenas inteiras, e não apenas raspar a banda de som. E não havia o menor critério por parte dos censores. Muitas vezes fazíamos uma cena achando que iriam cortar e não cortavam. Outras vezes cortavam uma coisa que você nem imaginava, por que eles implicavam com alguma bobagem, como aquela história do Tio Sam. Muita gente filmava cenas mais fortes, só para dar algo para a censura cortar e, na negociação, deixar passar o principal. E às vezes acabava passando tudo. Era uma coisa de louco. Para prevenir, era preciso filmar os atores falando qualquer coisa. Depois, na hora da dubla gem, fazer uma espécie de montagem sonora, reescrevendo falas na hora mesmo, para dar um sentido à história. O truque que usei nesse meu primeiro filme, para encher lingüiça, foi esticar as caminhadas dos personagens pela praia e pela cidade de Itanhaém. Mas é duro fazer isso render. Assistindo ao filme, você acha que as tais caminhadas não acabam nunca. O Callegaro, por exemplo, filmou um strip-tease de três minutos, sem cortes! Imagine a cena final do longa-metragem: os personagens centrais vão a uma boate para se confraternizar e acabam assistindo a um strip-tease inteiro. O Callegaro fez isso: posicionou a câmera – com uma lente bem aberta – atrás dos dois casais de protagonistas sentados frente a frente numa mesa enquanto, ao fundo, uma competente profissional tira a roupa por exatos três minutos e alguns segundos – o tempo real de um chassi de 120 metros. O fato é que, depois do sucesso desse filme, muita gente passou a imitar esse expediente na Boca do Lixo. As Libertinas foi filmado ao mesmo tempo que O Bandido da Luz Vermelha. Eu apareço numa ponta, dormindo ao lado do Rogério Sganzerla num cinema. A montagem de ambos aconteceu ao mesmo tempo, nas antigas moviolas da extinta Odil-Fono Brasil. Nessa época, havia um filme mítico chamado Superbeldades, dirigido por Konstantin Tkaczenco, conhecido diretor de fotografia. Um fiapo de enredo costurando dez strip-teases filmados em planos únicos, com uma câmera Mitchell, pesadíssima, que não permitia movimentos ousados. Mas a vantagem é que essa câmera usava magazines de negativo de 300 metros; ou seja, a Mitchell possibilitava realizar planos de dez minutos, sem corte. Costumávamos brincar, dizendo que esse filme era o modelo do cinema moderno. Jean-Marie Straub teria adorado Superbeldades. Callegaro e Rogério Sganzerla homenagearam explicitamente esse filme. O primeiro, no plano final de As Libertinas. Em O Bandido da Luz Vermelha, Paulo Vilaça, o bandido, entra num cinema para assistir Superbeldades. Mas, descontado o anedotário cinéfilo da época, a verdade é que todo o cinema paulista dos anos 60/70 foi influenciado por Godard ou pela Nouvelle Vague. Toda a minha geração, ou seja, o pessoal da São Luís, da salinha da SAC do Belas Artes, do Ponto 4 e do Riviera, foi influenciado, de uma forma ou de outra, pela leitura sistemática do Cahiers du Cinema, a famosa revista francesa que revolucionou a crítica de cinema. Foi o período da revista posterior a André Bazin. Ela era nossa grande referência, o que norteava nosso gosto, nossa forma de olhar os filmes. O cinema novo teve influência da Nouvelle Vague também, mas foi muito mais influenciado pelo neo-realismo. Um vínculo importante da minha geração foi a valorização do cinema B americano, Samuel Fuller, Nicholas Ray, Robert Rossen, o cinema japonês, o polonês, alemão, Joseph Losey e todo o cinema político que se fazia na época. Nós vivemos um período muito rico, tanto histórico quanto politicamente. Lembro de uma sessão de cinema fundamental para mim. Havia um cinema vagabundo em São Paulo, chamado Cine Los Angeles. Existe até hoje, mas agora só passa filme pornô e strip-teases. Foi onde estreou um dos melhores filmes do Fuller, chamado Beijo Amargo (Naked Kiss). Na sessão em que fui, estávamos eu, Callegaro, Antônio Lima, Jairo Ferreira e o Hideo Nakayama. Quando o filme acabou, começamos a bater palmas. O cinema estava quase vazio, exceto por uma fileira lá no fundo. Achei engraçado, pois os caras daquela fileira também começaram a aplaudir. Quando fomos olhar quem eram, vimos o Sganzerla, o Carlos Ebert e outros. Ou seja, toda aquela geração da São Luís estava lá. Isso era muito comum naquela época. Em qualquer filme importante ou evento ligado a cinema você encontrava todo mundo. Há um outro filme dele que também me marcou muito, chamado Paixões que Alucinam (Shock Corridor), sobre um jornalista obcecado por ganhar o prêmio Pullitzer. Fuller misturava cenas em preto-e-branco com coloridas, que ele fez em su per 8 e enxertou no filme. Em comparação ao que se fazia na época, era muito ousado. Eram dois filmes baratos, em preto-e-branco, que a gente via que foram feitos com pouco dinheiro, mas um talento descomunal. Ou seja, eram coisas que poderíamos fazer: filmes econômicos, repletos de imaginação e ousadia. Fuller era uma espécie de ícone do cinema independente, um verdadeiro exemplo a ser seguido. Com ele aprendi que não existe limite para a criatividade e a invenção. Depois do sucesso de As Libertinas, fomos fazer outro filme em episódios, chamado Audácia. O meu episódio chamava-se A Badaladíssima dos Trópicos Contra os Picaretas do Sexo, e conta a história de uma diretora de cinema obcecada por fazer seu filme, mas que acaba na Boca do Lixo, enxertando cenas de sexo para poder terminá-lo. O filme não tinha roteiro. Eu e Jairo Ferreira, meu assistente, íamos escrevendo diariamente conforme as condições de filmagem. Parece até contraditório, pois meu sonho, quando entrei na faculdade, era ser roteirista e, no entanto, nesses primeiros filmes em episódios, eu praticamente joguei os roteiros fora. Eram filmes sem roteiro, verdadeiros barcos à deriva. Tudo era escrito na hora, no dia de filmar. Influência Política Uma coisa que sempre me interessou muito, desde a adolescência, foi o pensamento anarquista. Sou filho único e meu pai morreu cedo. Minha mãe é estoniana. Pouca gente sabe disso, mas uma coisa que me marcou muito foi que passei a vida inteira testemunhando ela receber correspondência familiar aberta. A Estônia era um país que fazia parte da União Soviética. As cartas das irmãs e sobrinhas da minha mãe que chegavam em casa eram sempre lidas com antecedência pelos agentes da repressão, tanto na Estônia quanto no Brasil. Certa época da minha vida eu tentei me aproximar do Partido Comunista; minha mãe descobriu e ficou dias sem falar comigo. O curioso é que devido às amizades do meu pai, já falecido, minha mãe sempre era procurada para recepcionar diplomatas soviéticos, já que ela falava russo com muita fluência. Acompanhei de perto as contradições que ela vivenciou nos anos 60. Sua paranóia com a vigilância permanente dos soviéticos de um lado e dos militares de outro. De certa maneira, a minha opção pelo ideário anarquista e libertário facilitou o meu entendimento com a minha mãe nos anos 60. Apesar da preocupação constante com as minhas investidas estudantis e a minha insurreição natural com o regime vigente, nossa convivência foi exemplar. Em meu filme mais político, Império do Desejo, há um embate entre um anarquista e uma maoísta, onde a maoísta fala – entre outras frases emblemáticas – a frase dita por Roosevelt quando entregou a Estônia, Letônia e Lituânia para a União Soviética: Quero beber à saúde da nossa aliança. Esse período é muito intrigante, pois no pós-guerra houve a tentativa americana de fazer aliança com os russos. O general Patton, que sempre foi contra, previu que soviéticos e americanos logo seriam inimigos. Mandaram que ele brindasse com os soviéticos e ele recusouse, dizendo que não bebia com filhos-da-puta. Foi afastado mas a história lhe deu razão. Em resumo, os aliados entregaram o país da minha mãe aos soviéticos. Minha mãe tinha trauma dos russos, mas tinha um desprezo ainda maior pelo imperialismo americano: Quem esses canalhas arrogantes pensam que são para entregar a minha pátria a um invasor, era uma pergunta que ela fazia com freqüência. Foi uma satisfação imensa exorcizar esse carma materno em Império do Desejo, o filme que dediquei a Pierre Proudhon: Toda a propriedade é um roubo! Sara Silveira A maneira como a Sara Silveira entrou em minha vida merece um capítulo à parte. O produtor de Filme Demência era o Eder Mazini, que foi montador de boa parte dos meus filmes. Como diretor de produção, ele havia contratado o Marcos Rossi, que era uma pessoa que eu conhecia bem e tinha total confiança. Só trabalho com gente assim. Mas eletinha problema de pedra nos rins e, pouco antes de começar as filmagens, teve uma crise fortíssima. Foi parar no hospital. O Eder teve que se virar, contratar pessoas temporariamente. Na última hora chamaram umamulherquehavia sido assistente de produção do Luis Carlos Barreto. Era a Sara. Ninguém conhecia, só sabiam que tinha vindo do Rio. Achei que não ia dar certo. Uma pessoa que não era da cidade, que não conhecia a realidade de São Paulo, seus macetes, não tinha contatos para quebrar galhos... Mas resolvemos testar. Havia duas coisas que eram fundamentais nessa filmagem. O luminoso do Diário Popular e a Galeria Metrópole. As duas produções das locações estavam enroscadas, ninguém conseguia resolver. A Sara chegou e deram-lhe logo essas duas pedreiras. Pois bastou meio dia para ela conseguir tudo. Fiquei impressionado. Em dez dias na equipe, tudo que pedimos para ela foi conseguido rapidamente. Pensei: Essa mulher é genial. Lembro que ela vinha logo cedo, com aquele jeitão dela, e perguntava diretamente, sem rodeios: O que é que você quer para hoje? Era pedir uma vez e as coisas apareciam, nem sei como. Mas aí acabou a verba e foi preciso demitir mais da metade da equipe. A Sara inclusive. Foi a primeira vez que vi alguém ser demitido por excesso de competência. Nos abraçamos e prometi que assim que pudesse, nós trabalharíamos juntos de novo. Mas isso só foi acontecer em outro filme. Filme Demência correu o risco de não terminar, tantos foram os percalços. Quando fui fazer Anjos do Arrabalde, o Galante não tinha ninguém para dirigir a produção. Pela segunda vez seguida tentamos chamar o Marcos Rossi, mas ele não podia. Sugeri que fossem atrás daquela assistente eficiente de Filme Demência. Na época, ela estava fazendo assistência de produção para O País dos Tenentes, produção da Assunção Hernandez. Fomos atrás dela e fizemos a proposta. Foi a estréia dela como diretora de produção. A Assunção foi muito legal, pois quando viu que seria bom para a carreira dela, liberou-a imediatamente. A Sara fez um trabalho primoroso em Anjos do Arrabalde. Tempos Difíceis e Desencanto Depois disso, houve aqueles problemas com a Embrafilme, a chegada do Collor ao poder e as dificuldades de produção de cinema que se conhece. No início dos anos Collor, eu e outros cinco cineastas fundamos a Casa de Imagens. Ficamos três anos trabalhando em um projeto de seis filmes de baixo custo, que acabou se tornando modelo, no Brasil e na Europa. Desse projeto foram concretizados posteriormente dois filmes: Perfume de Gardênia, do Guilherme de Almeida Prado e Loucos por Cinema, de André Luis de Oliveira, que eram dois dos sócios da produtora. Os outros sócios eram Julio Calasso Jr, Andréa Tonacci, Inácio Araújo e eu. O projeto de seis filmes da Casa de Imagem foi apresentado para investidores internacionais, para que o financiassem baseados na chamada Lei da conversão da dívida externa. Houve grande interesse e muita conversação. Estávamos prestes a fechar um contrato de financiamento com um banco holandês, o NMB Bank. Um dia antes de assinar o contrato, a lei de conversão da dívida foi derrubada pelo Congresso. Foi muito azar. Já era uma época bem ruim para se fazer cinema no Brasil e ainda acontece isso. Imagine a nossa decepção. Com esse episódio fiquei desencantado em continuar fazendo cinema no Brasil. Decidi que não dava para trabalhar num país onde as regras do jogo mudam a toda hora, onde não se pode fazer um planejamento de produção a médio ou longo prazo. Passei um período inativo, mas descobri que consigo me adaptar rapidamente às constantes mudanças de regras que caracterizam o país. Isso acontece até hoje e de certa forma é uma característica de todo cineasta brasileiro que consegue ter uma carreira regular. Não é à toa que acabei de filmar meu 14° longa-metragem, Bens Confiscados. Isso sem contar os dois episódios nos dois primeiros filmes, As Libertinas e Audácia. Já enfrentei todo tipo de dificuldade para fazer cinema. Pode imaginar a pior coisa que garanto que já aconteceu comigo. Meus filmes foram quase todos realizados sob as condições mais adversas. Acho que nada desculpa o corpo mole, o deixar de produzir. Você deve inventar condições para filmar, seja qual for a situação. É só olhar minha carreira. Quando me ofereceram para trabalhar como diretor contratado, trabalhei. Quando não havia alternativa, fui filmar na Boca do Lixo, fiz filmes para terceiros, fui fotógrafo... Na Casa de Imagens, eu e meus sócios fomos fazer um sofisticadíssimo curso de Administração de Empresas, para tentar levar o negócio da forma mais profissional possível. O ideal seria que eu só precisasse me preocupar com o fazer os filmes, mas a realidade nunca permitiu isso. Hoje, na Dezenove Som e Imagens, eu me permito dedicar tempo integral à criação do futuro filme porque minha sócia, Sara Silveira, cuida da parte administrativa. De qualquer maneira, mantenho uma outra empresa de cinema em atividade, na qual não posso me eximir da administração. Fui produtor (em maior ou menor percentagem) da maioria dos meus filmes. Quando saí da faculdade, juntei-me ao Callegaro e ao Lima para fundarmos a Xanadu Produções Cinematográficas. Fui sócio-gerente de uma produtora de filmes publicitários e lá produzi sozinho Lilian M., Relatório Confidencial. Fui sócio da Embrapi, uma produtora de dez sócios, todos técnicos de cinema: em dois anos realizamos nove longa-metragens de baixíssimo custo. Tive outras sociedades antes da Casa de Imagens e da Dezenove. Só interrompi meu trabalho como cineasta de 1989 a 91. Era o final dos anos Collor. Foi uma das piores épocas para fazer cinema no Brasil. Foi um período em que realmente eu cansei e resolvi voltar a estudar música. Montei um pequeno estúdio de som dentro do meu quarto. Fui estudar música digital com Wilson Sukorski; fiz cursos de música contemporânea, composição, arranjos, música erudita, eletrônica etc. Comprei um equipamento básico. Antes disso, tinha filmado Desordem e Progresso, episódio de vinte minutos para o longa internacional City Life, rodado em São Paulo, que acabou sendo o único filme que a Casa de Imagens produziu durante sua breve existência. Trabalhei com boa parte da equipe de Anjos do Arrabalde, inclusive a Sara Silveira, que foi assistente de direção e continuísta do filme. Quando voltei da Holanda, após a pré-estréia de City Life, no Festival de Rotterdam, eu estava realmente disposto a abandonar cinema e dedicar-me à música. Comprei todo o equipamento básico necessário. Sintetizador, sampler, equipamento de áudio, etc. Estava com tudo encaminhado quando a Sara veio à minha casa ver a cópia em vídeo de Desordem em Progresso. Quando viu meu equipamento, ficou impressionada. Disse que tinha umas economias e que gostaria de ser minha sócia no estúdio. Ela não acreditou quando eu disse que queria fazer música e não cinema. Ela insistiu em que queria ser minha sócia, que tínhamos que seguir fazendo cinema e acabamos fundando essa empresa chamada Dezenove Som e Imagem. A parceria com a Sara está sendo a mais longa da minha carreira. Já fui sócio de mais de oito firmas. Tive empresa com dez sócios (a Embrapi, que em um ano produziu seis filmes, incluindo Extremos do Prazer), tive empresas com seis sócios (Casa de Imagem), com dois sócios, tive empresa sozinho, com família... Na Jota Filmes, trabalhei quatro anos pagando dívidas que nem eram minhas, e quando percebi estava à beira da concordata. Um inferno. Por isso, quando alguém me diz que não tem empresa, que quer usar a minha para produzir um filme, eu recomendo logo que abra a sua própria. Já abri tantas, não é difícil. Não sirvo para ser proxeneta de projetos de terceiros, a não ser que seja por uma causa muito boa. É fácil dizer que é artista, que não coloca a mão na produção. Quando fundamos a Dezenove e resolvemos produzir Alma Corsária, fui muito sincero com a Sara. Disse que se um dia eu me entediasse da sociedade, sairia dela sem traumas. Não tenho a menor vocação para burocrata. Firma, para mim, tem de me dar prazer de trabalhar. Sempre que isso deixou de acontecer em empresas anteriores, eu pulei fora mesmo. Nem espero o barco afundar. Se percebo indícios de que não me sinto mais estimulado, paro logo. Creio que é por isso que tenho uma boa relação com todos os ex-sócios. Não deixamos a coisa ir para o brejo para desfazer. Creio que é por isso que a Dezenove deu certo. Ela foi criada para não ser um carma na nossa vida. Roteiros que se Reciclam Nesse meio tempo, fui chamado para dar um curso de roteiro em Cuiabá, organizado pelo Luiz Borges. Lá, acabei conhecendo a Chapada dos Guimarães. O visual do mirante principal da Chapada é tão impressionante que naquela mesma noite me veio um roteiro inteiro na cabeça. É uma paisagem que, quando você olha, parece que o Brasil inteiro cresce à sua frente. Eu fiquei horas ali, sentado. Na mesma hora escrevi um argumento chamado A Protestante, que narrava a história de uma menina que fica órfã cedo, filha de um militante de esquerda que é dado como morto pela repressão. Criada pelos tios, ela segue uma educação luterana rigorosa. Um dia, descobre estar com um tumor no seio. Uma amiga recomenda um médium extraordinário, que vive na Chapada dos Guimarães e que pode curar o quisto maligno. Ela viaja para Cuiabá e quando é apresentada ao tal médium descobre que é seu pai, que não estava morto. Descobre também que ele vivia com uma garota mais nova que ela. A protestante passa por um processo de revisão de seus conceitos de vida. A operação é feita e ela é curada. Só que o pai também está doente. Ou seja, quando ela tem a chance de reverter o passado, descobre que o tempo é exíguo. Eu achei que aquela imagem da Chapada deveria ser a síntese do filme; o país imenso e contraditório, ateu e profundamente místico. Voltei com um argumento de doze páginas pronto e mostrei para a Sara. Entrei na sala dela, joguei o texto na mesa ao mesmo tempo em que lhe dei a notícia que ela mais queria ouvir: Vou voltar a fazer cinema. Quero filmar essa história. Ela leu tudo de uma tacada e ao final estava aos prantos, dizendo que eu tinha que filmar aquilo de qualquer jeito. Por coincidência, a Prefeitura de São Paulo tinha aberto um concurso para produção de filmes no Brasil, o primeiro após a catástrofe Collor de Mello. Me preparei para viajar a um lugar isolado e ficar uma semana escrevendo o roteiro de A Protestante. Pouco antes de sair, alguém me disse que havia inscrito um roteiro sobre espiritismo num concurso qualquer e que o projeto havia sido rejeitado por unanimidade devido ao tema. Confesso que fiquei intrigado com aquilo. Passei a não ficar tão confiante em minha história. Em cima da hora resolvi mudar de projeto. Encontrei um amigo, o Eduardo Aguilar, que depois trabalharia comigo diversas vezes, e contei-lhe o caso. Ele sugeriu que eu filmasse um roteiro de dez anos atrás, chamado Almas Gêmeas, que ele conhecia, e com o qual eu havia ganho um concurso de roteiros da Secretaria de Cultura do Estado, em 1981. Achava esse roteiro um tanto defasado, mas voltei para casa e fui reler a história, que ficcionava uma amizade entre Cesário Verde e Augusto do Anjos, poetas de países diferentes, de condições sociais diferentes, um rico e um pobre, mas que tinham em comum um vínculo muito grande com suas cidades natais: Cesário com Lisboa e Augusto com Recife. Eram andarilhos noturnos, e pessoas doentes, vítimas da tuberculose. Fiz com que a história se passasse em São Paulo e eles fossem andarilhos da cidade, como eu mesmo era na adolescência. No roteiro, havia uma série de personagens e a história girava em torno do lançamento do livro de um deles. O mais importante eram as mulheres que apareciam na vida desses poetas e se tornavam suas musas. Ao reler essa história, gostei muito, mas achei que precisava mudar um pouco, tornar mais atual. Em quatro dias reescrevi tudo. Começava a nascer a história de Alma Corsária. Resolvi manter os dois poetas, o livro e as mulheres de suas vidas, mas usei como fonte dramatúrgica a minha própria experiência existencial e a de meus amigos mais próximos, de adolescência e de juventude. Inseri muita coisa que aconteceu comigo, incluindo a viagem até Dois Córregos, quando o protagonista se faz passar por noivo dela perante a família. Foi uma coisa que realmente aconteceu comigo. Não por acaso, é a seqüência do filme que eu mais gosto. Tem aquela coisa da família aceitar a farsa da prostituta, que fingia levar uma vida normal na cidade grande. Mas que, no fundo, todos eles sabiam que não era verdade. A Sara Silveira não acreditou que eu tinha mudado de idéia em cima da hora. Na verdade ela só foi descobrir quando me pediu o roteiro para fazer o orçamento que precisava ser anexado ao projeto. Começou a ler e quase caiu de costas. Você é louco de pedra, falava ela. Estávamos com tudo pronto para orçar A Protestante e você vem com outra! Essa seria uma das muitas surpresas que ela teria comigo ao longo desses anos de parceria. Mas no momento seguinte ela entendeu as razões da mudança, até porque esse roteiro era mais fácil de filmar, já que seria todo rodado em São Paulo, com poucos personagens. Dava para fazer com uma equipe bem reduzida. O engraçado é que inscrevemos o roteiro no concurso e ele foi premiado. Aí fomos obrigados a filmar. Era uma época de inflação altíssima, logo depois do fim do Plano Cruzado. O dinheiro mal dava para fazer o filme quando a premiação foi anunciada. Demoraram para liberar e quando o dinheiro chegou nas mãos da produção, só dava para as filmagens. Tivemos que nos desdobrar em várias funções para conseguir finalizar. Tive que suspender todas as encomendas de equipamento de som para o estúdio da Dezenove. Todo o dinheiro que tínhamos foi direcionado à produção do filme. Decidi que, por uma questão de custo, eu mesmo faria a câmera e a fotografia. Tinha parado de fotografar meus próprios filmes, mas nesse caso, a necessidade falou mais alto. Uma coisa que ajudou foi que, por conta de eu estar estudando música, já tinha quase toda a trilha sonora do filme pronta. Ela é de minha autoria, feita em aparelhos no interior do meu quarto. Uma coisa que eu queria deixar consignado nesta história toda é que idéias e projetos não faltam nas minhas gavetas. Sempre falei para meus alunos que nunca se deve jogar uma idéia fora, por mais esdrúxula que ela possa parecer num primeiro momento. Todas as idéias devem ser arquivadas. Amanhã você pega uma idéia velha, junta com outra nova, pega um personagem aqui, outro ali, e tem um roteiro deslumbrante. Meus roteiros sempre são ambientados em São Paulo ou em cidades bem pequenas. Além da questão estética, tenho outro motivo particular. Para mim, dirigir carro é uma fonte de estresse. Posso ser bom para dirigir filmes, mas carro sempre foi um drama. Tenho horror a trânsito. Não suporto ficar preso num engarrafamento. Barbeiragens de terceiros me irritam e, para piorar, sou meio distraído. Se erro um caminho, perco uma entrada para uma rua e me atraso ainda mais, aí o estresse vai lá nas alturas. Numa das últimas vezes que fiquei preso no trânsito, na época em que ainda dava aulas no curso de cinema da ECA-USP, cheguei a abandonar o carro na Praça Pan-Americana e caminhar quase dois quilômetros a pé de volta para casa. Quando me dei conta, me arrependi, voltei e perdi mais duas horas discutindo com um guarda de trânsito. Depois do incidente, tomei a decisão de parar de dirigir. Poucas semanas depois, descobri que minha úlcera havia desaparecido. Talvez por isso tenha tan-to prazer em dirigir filmes em cidades pequenas: em Dois Córregos, Cidreira, Iguape, etc. Por outro lado, não canso de dizer que meu cenário ideal é a cidade de São Paulo, porque tenho pela cidade uma relação esquizofrênica de amor e ódio. Mas filmar nela é uma penitência. É preciso estar sempre preparado para mudar o cronograma na última hora. Por essas e outras, eu não escrevo histórias para serem filmadas em outras cidades grandes. Nesse aspecto eu radicalizo: ou filmo em São Paulo ou em cidades pequenas. Outra coisa em que sou radical é que gosto de trabalhar em equipe, mas exijo que haja uma perfeita sintonia. Por isso trabalho mais ou menos com as mesmas pessoas. Temos um entrosamento perfeito, muitas vezes só no olhar. A coisa que mais me irrita no contato com os colaboradores, sejam técnicos, sejam atores é ter que ficar explicando, encontrar excessiva resistência a alguma idéia. Cinema é arte feita em equipe, mas precisa obrigatoriamente ser norteada por um autor. Não acredito em qualquer cinema sem personalidade. Não há nada mais assustador para o bom técnico de cinema do que se descobrir no vagão de um trem desgovernado. Sempre pensei assim, mesmo nos trinta e tantos filmes que fiz como diretor de fotografia. Como técnico eu sempre me coloquei à disposição do diretor, como um interlocutor atento e um cúmplice. Cheguei a brigar com um produtor para defender a opção do diretor. Imagine que juntei os meus técnicos de fotografia e expulsamos o produtor do local de filmagem. O engraçado é que, diante do resultado final, esse mesmo produtor me contratou como seu fotógrafo. Erotismo É preciso enxergar a sensualidade como sinal de vida. Pode-se mostrar a penetração, os órgãos sexuais, mas se não houver uma fé quase mística no potencial do desejo em quem flagra as cenas, estas imagens estarão mais para uma vitrine de açougue. Até hoje tenho vontade de fazer um filme que vá às últimas conseqüências. Na época do cinema pornô, chegamos a orçar um longa-metragem, escrito e dirigido por mim, a ser produzido pelo produzido pelo Cláudio Cunha, com influência de O Último Tango em Paris.O projeto chamava-se Nus Ficaremos. Era a história de um homem que ia à falência, tinha sua empresa fechada e pirava. Ele chegava na empresa, uma editora decadente, com uma prostituta e quebrava aquele lacre com que a Justiça fecha as portas das empresas falidas. Isso é coisa séria, se alguém viola esse lacre, vai preso. Ele invadia a sua ex-empresa com a prostituta para uma orgia em meio à massa falida. Eles enchiam a cara, tomavam todas as drogas e transavam a noite toda, como num ritual de purificação. Quando a mulher acordava com a luz do dia invadindo a empresa ela descobria o cara morto, afogado no próprio vomito. Ela pegava todo o dinheiro dele e ia embora sem olhar para trás. Esse projeto, de certa forma, é a gênese de Filme Demência. Na época havia muita empresa falindo por conta da inflação e da incompetência econômica dos governos. Ainda na área do filme explícito, eu propus ao Galante uma adaptação personalíssima de Heliogábalo, o Anarquista Coroado, o texto deflagrador do Antonin Artaud. Nós quase fizemos esse filme. Chegamos a procurar atores, homens e mulheres, que fizessem sexo anal, cenas de felação com vários homens, enfim, cenas barrapesada mesmo. Calígula era um depravado assassino, mas Heliogábalo era subversivo; por isso, fascinante. O Galante já tinha estúdios, cenários e tudo. Mas a fase do cinema de sexo explícito foi passando. O Galante já tinha feito coisas como A Filha de Calígula. Lembro de ter dito a ele que queria fazer o Heliogábalo e ele perguntou: Mas o que é isso, de que se trata? Respondi que era muito mais depravado que Calígula. Ele se animou na hora: Então vamos produzir. Mal ele sabia que o que mais me interessava no projeto era o seu viés anarquista e fescenino. Acredito que, mesmo com sexo explícito, seria possível criar uma atmosfera de erotismo. Tudo é uma questão de construção de ambiente, de clima. A sugestão é uma arma fundamental, quando bem utilizada. Em Bens Confiscados, por exemplo, há uma cena muito sensual. Acho que nunca filmei algo com tal teor erótico. São duas mulheres se beijando e é impressionante como é pura construção fílmica. Não se mostra quase nada. Elas se beijam, uma tira o seio da outra para fora da roupa e a relação é interrompida. A seqüência foi toda filmada com uma música neoclássica como playback. Usei Lotus Land, de Cyril Scott, que é um tema muito sugestivo, impressionista, quase oriental. A gênese desta cena está no filme As Corças (Les Biches) de Claude Chabrol, que é um dos filmes mais sensuais que já vi. Ele não mostra nada, apenas sugere. Uma deslumbrante pintora amadora conhece uma bela jovem à beira do Sena e após seduzi-la leva-a para seu apartamento. Uma delas senta-se numa poltrona e fica com o rosto à altura do sexo da outra e de sua calça justa. A mão da pintora desabotoa o primeiro botão da calça Lee da outra que a observa com tesão nos olhos. Detalhe dos dedos da pintora no botão de pressão. Você escuta o plac! do botão abrindo, há um escurecimento suave da cena e o espectador quase vai ao orgasmo. Isso é cinema. Isso se chama atmosfera. Tenho certeza que a cena das duas mulheres à beira da praia de Cidreira, em Bens Confiscados vai provocar a mesma reação de espanto, encantamento e tesão. Acho que atmosfera, clima, você cria com cenário, música, ruído, movimento de câmera, escolha de lente, mas sobretudo com a entrega das atrizes. Claro que um rosto e um corpo bonito sempre ajudam. Mas se você não inventar a atmosfera, o clima, não vai existir sensualidade na tela. Pode existir sim a sexualidade, no sentido mais vulgar do termo. É preciso, antes de mais nada, acreditar no desejo como elemento vital da dramaturgia. Ver seus Filmes Quando As Libertinas entrou em cartaz, pude ter pela primeira vez a sensação de assistir a um filme meu num cinema. Era um filme em episódios, produção da Boca do Lixo. O vazio é inesquecível e se repetiria muitas vezes em filmes seguintes. É como se fosse um pássaro fugindo da minha mão. Não era mais meu, era de todos. Ouvia as pessoas rindo de coisas que não eram para rir e pensava Por que é que estão rindo disso? De repente você não tem mais controle. Dá um ciúmes danado. Aquela coisa que era só minha, que me tomou meses e meses de trabalho, de repente estava ali na tela. É como se pegassem meu diário e começassem a ler em público. Quase como um filho que sai de casa. Na verdade, nem gosto muito de falar desse filme. Admito que é muito ruim. Meus primeiros trabalhos não eram bons. Audácia também é muito ruim, assim como o curta Uma Rua Tão Augusta. Também não gosto de Capuzes Negros, um projeto de outra pessoa, que peguei na última hora, quando o diretor contratado foi demitido. Ter feito filmes ruins no início da carreira me fez aprender a lidar com as críticas negativas. A crítica caiu de pau em todos eles. Na verdade, caíam de pau na maioria dos filmes do cinema chamado marginal. Então, quando lancei Lilian M, Relatório Confidencial e começaram a surgir críticas positivas, isso teve um valor triplicado. Esse filme foi feito em 1974, mas só ganhou o mundo em 1983, quando foi exibido no Festival de Rotterdam. Antes, ficou proibido pela censura, que retalhou tudo. Lá o filme passou em uma sessão lotada, com críticos do mundo todo e ouvi vários indignados pelo fato de um filme como aquele não ter sido exibido antes em nenhum festival como Cannes, Veneza ou Berlim. Eu mesmo me fiz essa pergunta. Desconfio que naquela época, o cinema de São Paulo era meio desprezado. Nós, do cinema independente de São Paulo, tínhamos muita dificuldade de sair do Estado. Tenho o maior apreço pelo Cinema Novo, mas o papado do Cinema Novo prejudicou nossa geração. Como explicar o fato de um filme como O Bandido da Luz Vermelha nunca ter sido enviado a um festival importante no exterior? Ninguém paparicava nossa geração, os cineastas de São Paulo. Pelo contrário, a gente só levava porrada. Mas eu acho que se aprende mais levando pontapé do que tapinha nas costas. Acho ruim o cara ser alçado à condição de gênio logo no primeiro filme. Uma pergunta que sempre me fazem é: Qual o seu filme que você mais gosta? Sempre respondo que é Filme Demência. É o filme pelo qual gostaria de ser lembrado. Formalmente não é um filme bem resolvido, mas é muito visceral, no qual me expus muito. Além de ser um acerto de contas com a memória de meu pai, que era uma coisa mal resolvida na minha vida. Foi um filme que fiz para tentar resolver isso. Muitos filmes me dão prazer em rever. Alma Corsária, por exemplo, que é um filme muito próximo a Lilian M.. Uma pornochanchada que eu adoro é Império do Desejo. É um dos meus filmes mais políticos. Isso em plena ditadura. Por sorte a censura não percebeu, talvez por causa do nome. Foi meu primeiro filme totalmente liberado pelo Conselho Superior de Censura. Uma curiosidade é que, em todos os meus filmes anteriores a Filme Demência, nunca tive a intenção de me projetar na tela, ou seja, de criar personagens baseados na minha experiência de vida. Minha preocupação era sempre o que mostrar na tela e sua relevância diante dos meus conceitos libertários, com personagens ambíguos e/ou insurretos, com a mistura de estilos fílmicos, com uma linguagem subversora capaz de misturar erudição e deboche. No entanto, revendo meus filmes, minha mulher observou um detalhe que eu mesmo nunca tinha percebido. De todos os personagens, o mais parecido comigo era justamente o feito por Jonas Bloch em O Paraíso Proibido. É o tipo da observação que só quem convive muito com o outro pode perceber. Daí para frente, todos os personagens, como o poeta tísico de Alma Corsária, o industrial falido de Filme Demência e outros, passaram a ter, assumidamente, referências da minha vida. Já me disseram que eu nunca imaginei um personagem tão misógino quanto o radialista de O Paraíso Proibido. Aliás, esse filme teve origem em uma citação do Carlos Drummond de Andrade, que fala do direito de todos a não fazer nada. O radialista imagina para si mesmo uma Mira-Celi, local utópico onde tudo lhe é permitido. No fundo, a imagem de Mira-Celi, de uma ilha libertária, de um país sem governo, de um sistema social sem castas, de uma sociedade sem normas e conceitos pre-estabelecidas, é a metáfora que acompanha toda a minha obra. Lilian M tem isso, Ilha dos Prazeres Proibidos também. Alguns de meus melhores filmes possuem uma geografia pró-pria, que nada tem a ver com os locais onde são filmados. Em Ilha, eu criei um país. Os atores atravessam a balsa de Iguape e parece que estão indo para o Chile ou outro país latino. Em O Paraíso Proibido, Itanhaém é uma cidade fictícia. No entanto, todos estes lugares estão impregnados pela metáfora de Mira-Celi. Acho que isso é uma coisa que me acompanha desde o primeiro longa, o mito do paraíso impossível. Há duas citações de poemas Jorge de Lima que inspiraram O Paraíso Proibido e outros filmes meus: Vinde vós da cidade para o campo, onde existe a aventura da malária. Tudo é lícito nesta Sumatra! A verdade é que esses paraísos, com os quais sonhamos, só são perfeitos porque nós os imaginamos assim. O paraíso ideal é uma utopia, mas se nós o imaginamos, ele existe. Por isso a viagem – a odisséia em busca da utopia – não deixa de ser um calvário, mas que se justifica pela beleza da procura. Lembro-me de uma entrevista com o Jacques Rivette. Perguntaram a ele porque fazia filmes longos com mais de três horas de duração; às vezes, com cinco ou seis horas. Ele disse que não sabia responder, mas contou que um dia um amigo agradeceu por fazer filmes longos, dizendo: Quanto mais tempo eu permaneço nos seus filmes, mais eu mergulho numa outra vida e me delicio, esquecendo que tenho de vivenciar a minha própria mediocridade. Rivette ficou impressionado porque sentiu uma enorme sinceridade nas palavras do amigo. Um mês depois, Rivette ficou sabendo que o amigo havia se suicidado. Gostaria de um dia de tentar retratar esse incidente num curta-metragem. Toda grande obra tem origem nos clássicos. Alguém já disse que pelo menos setenta por cento das histórias têm alguma relação com a Odisséia, de Homero, porque narram uma trajetória definida, uma viagem com destino, em busca de outra pessoa, de um lugar, de uma idéia, etc. Os outros trinta por cento se relacionam com a Ilíada: uma esfinge a ser desvendada, uma batalha a ser vencida e inúmeras opções de estratégia até chegar ao objetivo. Garotas do ABC em Brasília Para encerrar esta parte, queria fazer um desabafo em relação ao último Festival de Cinema de Brasília (2003). Sobre a participação do filme, não há muito o que comentar. Na verdade, eu nem queria competir. Já havia decidido não disputar mais os festivais em que algum dos meus filmes tivessem ganho o prêmio principal. Anjos do Arrabalde ganhou Gramado em 1987; Alma Corsária ganhou Brasília, em 1993, e Dois Córregos ganhou o Festival de Natal. Mas a Sara Silveira, minha sócia e produtora do filme, queria muito participar. Insistiu até me convencer. Resolvi topar. No começo foi tudo bem. A recepção do público foi extraordinária; foi um dos filmes mais aplaudidos. Aí veio aquele prêmio especial que o júri inventou, para melhor argumento. No fundo, achei aquilo uma ofensa a mim e ao co-roteirista Fernando Bonassi. Por que ao argumento e não ao roteiro ou mesmo ao filme? Não gostei, mas prêmio é prêmio. Fui lá, recebi mas fiz questão de reclamar, publicamente, ainda que de forma discreta. (Carlão subiu ao palco e perguntou à apresentadora Zezé Mota: Qual foi o prêmio mesmo? Surpresa, ela ficou na dúvida. Olhou o papel que tinha em mãos e respondeu que era um prêmio especial para melhor argumento. Carlão agradeceu e virou-se para o público, comentando para si mesmo, mas em voz alta: Argumento? Cacete! Depois agradeceu o prêmio educadamente, dedicou-o a Jairo Ferreira e voltou ao seu lugar na platéia). Quem me conhece sabe que jogo limpo, não faço média com ninguém e detesto política de bastidores. Fujo da picuinha do meio cinematográfico como o diabo da cruz. Não gostei do que me pareceu pouco caso. No entanto, gostei muito dos prêmios dados à Vera Mancini e ao Ênio Gonçalves. Valeu ir a Brasília por eles. Foi um reconhecimento ao talento deles. Confesso que antes do festival eu estava bastante ansioso. Fiquei muito preocupado com a carga de responsabilidade que foi a insistência da organização do festival em exibir Garotas do ABC no sábado, tradicionalmente o dia de maior público. Insisti para que exibissem na segunda-feira, por não ter tanta gente, o que diminui em parte a nossa responsabilidade. Além disso, foi o dia da exibição de Alma Corsária em Brasília. Acho que segunda-feira é um dia de sorte para mim. No dia anterior à exibição, sexta-feira, bateu uma ansiedade, uma angústia imensa. Estava nervoso quase como se fosse o meu primeiro vestibular; lá na São Francisco, onde tranquei a matrícula no curso de Direito para estudar Cinema na São Luiz. Nem entrevistas eu queria dar antes da exibição. Na verdade, acho que antes da estréia de todo o filme eu me sinto assim, por mais experiência que eu tenha. Talvez esteja ficando pior a cada novo filme que estréia. Em conversa recente, o Carlos Diegues detectou a mesma sensação. Filmografia Comentada 1966 Esta Rua Tão Augusta Curta-Metragem, 8 min, concluído em 1968 Diretor: Carlos Reichenbach Fotografia e Câmera: Sílvio Bastos Diretor de Produção: Enzo Barone. Assistente de direção: Hideo Nakayama. Montagem e edição: Jovita Pereira Dias. Produtora: Lauper Filmes. Narração de Oswaldo Calfat, com Waldomiro de Deus e Lindolf Bell. 35 mm, Preto e Branco. Sinopse: Documentário que registra o cotidiano de uma das ruas mais conhecidas da cidade de São Paulo e centro comercial de classe média alta. O filme enfoca figuras exóticas e populares na época da filmagem, que se chocam frontalmente com o universo do local. Entre eles, o pintor naif Waldomiro de Deus, com suas botinhas e minissaias, expondo sua pintura irreverente pelas calçadas, e o poeta cult Lindolf Bell. Comentário: Renegado pelo diretor, que o considera muito ruim, trata-se de um exercício prático de alunos do 2º ano da Escola Superior de Cinema São Luiz, Esta Rua Tão Augusta foi produzido por Luiz Sérgio Person, seu professor e maior incentivador, responsável pela opção profissional de Reichenbach. Filmado com sobras de negativo, equipamento emprestado e a colaboração de profissionais ligados a Person (Oswaldo de Oliveira e Glauco Mirko Laurelli), o documentário foi concluído dois anos depois graças a um prêmio recebido pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Teve seu certificado de curta-metragem negado pelo Instituto Nacional de Cinema, e assim, nunca foi exibido comercialmente. Impressões: Nunca fui um fã ardoroso do documentário. Fiz este filme porque o Person insistiu. Iniciei o projeto sem nenhum entusiasmo, mas aí conheci Waldomiro de Deus. Foi ele quem me deu material humano para enfrentar o documentário. Percebo hoje, à distância, que a figura irreverente, rebelde e iconoclasta de Waldomiro trouxe o gostinho da ficção para o gênero. Com o material todo filmado (mas ainda insatisfeito), fui me dedicar ao longa Alice, no qual tinha o episódio As Libertinas. Durante dois anos fui cobrado por Person para finalizar o curta-metragem. Quando surgiu o Prêmio Estímulo, Person me intimou a apresentá-lo no concurso. Ganhamos o dinheiro para a finalização e aí resolvi transformar o material bruto num arremedo de filme institucional. Pedi ao sócio e amigo Antonio Lima que escrevesse uma narração leve e irônica, brincando com o tom pomposo e ufanista das locuções do cine-jornal Amplavisão, de Primo Carbonari. Contratei o próprio narrador do cinejornal, Oswaldo Calfat, para colocar a voz e se auto-ironizar. O filme abre com um plano que gosto muito: um carro sobe lentamente a rua Augusta vazia, tendo sobre o capô um árabe vestido a caráter, gesticulando para o vazio. Ao fundo, ouve-se um discurso de Martin Luther King. Esse pastel de ruídos que a abertura propõe dá o tom do filme inteiro. 1968 Alice Episódio de 40 min do longa-metragem As Libertinas Argumento, roteiro e direção de Carlos Reichenbach. Fotografia e câmera de Waldemar Lima, montagem e edição de Glauco Mirko Laurelli, seleção musical: Salatiel Coelho. Produtora Xanadu Produções Cinematográficas. Elenco: Célia de Assis (Célia Maracajá), Terezinha Sodré, José Carlos Cardoso, Eduardo Campos (Eduardo Queiroga), Antônio Manuel, Mady Sand e Benedito Lara. 35mm. Preto-e-branco. Sinopse: Escritor e sua mulher instalam-se em uma colônia de férias de uma tradicional cidade balneária de São Paulo. Para fugir do tédio matrimonial, envolvem-se com vários personagens: uma camareira romântica, um transviado, um repórter picareta, o truculento administrador da colônia e sua mulher ninfomaníaca. No final, o escritor descobre que não há inspiração que resista a tanto hedonismo. Comentário: Alunos da Escola Superior de Cinema São Luis, Reichenbach e João Callegaro uniram-se ao crítico mineiro Antônio Lima e, abandonando os projetos cinematográficos de teor político que tinham quando estudantes, realizaram esse filme debochado, já no estilo que ficaria conhecido como Cinema Marginal Cafajeste, ou seja, segue a máxima do quanto pior, melhor, temperada com cenas de nudez. Impressões: Para lembrar Primo Carbonari, Zé do Caixão, Nilo Machado e Ody Fraga, pedíamos ao fotógrafo Waldemar Lima (o mesmo de Deus e o Diabo Na Terra Do Sol), para tremer o tripé durante as panorâmicas, abolir os filtros, saturar o contraste fotográfico e girar a câmera alucinadamente em volta dos atores. As Libertinas é constituído de um rápido prólogo dirigido por mim, seguido do episódio Alice. Os outros dois episódios, de aproximadamente 20 minutos cada, são Angélica de Antônio Lima e Ana de João Callegaro. O filme se encerra com um longo strip-tease em plano fixo, concebido por João Callegaro como homenagem a Superbeldades, de Konstantin Tkaczenko, um clássico do cinema pornô. Em Alice, inspirei-me em Brigitte Bijou (pseudônimo literário de Silvino Neto) e no prolífico Marcel Kappa, do best-seller pornô Lua-de-Mel a Quatro. A idéia era mostrar detalhes do turismo praiano bandeirante de classe média: estrias, varizes, vandalismo ecológico, cavalos na praia, nisseis tímidos, óleo no mar e a compulsiva disponibilidade sexual dessas pessoas quando exposta ao sol litorâneo. As filmagens foram feitas em Itanhaém, litoral Sul de São Paulo. Com essa opção por uma estética do mau gosto, eu e o Callegaro apontávamos para um vértice extremo do nascente movimento tropicalista. As Libertinas foi feito no mesmo ano que O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla e é também o embrião do que viria a ser, na década de 70, a pornochanchada. Curiosamente, As Libertinas estreou em um tradicional cinema de arte de São Paulo, o Belas-Artes. Fez um extraordinário sucesso de bilheteria, ficando mais de três meses em cartaz no cine Normandie. Estréia em São Paulo: Dia 6 de dezembro de 1968, nos cines Belas-Artes e Coral. 1969 A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo Episódio de 42 min do longa-metragem Audácia! Argumento, fotografia e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro: Jairo Ferreira e Reichenbach. Montagem de Jovita Pereira Dias. Trilha Musical: Ravel, Xavier Cugat, Jimmy Hendrix, Brahms etc. Produtora: Xanadu Produções Cinematográficas. Elenco: Maria Cristina Rocha, Palito, Sabrina, José Carlos Cardoso, Cleo Ventura, Gilberto Sálvio, Francis Cavalcanti, Marco Antônio Lellis, Wanda Rocha e Verônica Krimann. 35 mm, Preto-e-Branco. Sinopse: A cineasta Paula Nelson decide conseguir dinheiro com o namorado, um rico fazendeiro, para fazer seu primeiro longa metragem. Nas filmagens ele se envolve com uma aspirante a atriz, e ela com um amigo ator. A produção acaba interrompida. No dilema de ter que ceder às pressões dos produtores da Boca do Lixo, que querem incluir cenas de sexo em seu filme experimental, a cineasta, seu assistente deslumbrado e uma amiga jornalista atravessam os dias em bebedeiras e perambulações pela cidade. Impulsionada pelo assistente apaixonado, Paula resolve terminar o filme rodando uma interminável panorâmica sobre a cidade de São Paulo. Ensandecido com tanta genialidade, o assistente enlouquece. Comentário: Tributo underground de Reichenbach à fase junkie de sua geração. A maior parte dos diálogos foi improvisada na hora da filmagem, feita com muita câmera na mão. Segundo ele, tudo foi na base do Jimmy Hendrix na cabeça, anarquia total na frente e atrás das câmeras, além de um desprezo absoluto pelas convenções da narrativa cinematográfica. A despeito da fama de porralouca e do fato de ser renegado pelo diretor, este episódio, que mostra o cinema falando de si mesmo, retratando um pouco do ambiente da Boca do Lixo, mereceria uma revisão mais atenta nos dias de hoje. Impressões: Este é um filme de curtição e desbunde, que me parece de difícil assimilação fora de sua época. Referências anárquicas a Fuller, Godard, Chabrol e Jonas Mekas, um tanto antropofagicamente embaralhadas – provavelmente, pelo efeito do álcool e do cânhamo consumidos durante (e fora) as filmagens. O episódio, apesar de tudo, possui seus fãs e também seus detratores. Num dos textos mais duros sobre o filme, o crítico Ely Azeredo acusou-o de provocar risco de deslocamento da retina, por conta de suas trepidantes câmeras na mão. Os dez minutos iniciais de Audácia! flagram o nascente movimento de cinema em São Paulo, que posteriormente ficou conhecido como Boca do Lixo. Candeias, Sganzerla, Mojica Marins e os próprios realizadores aparecem em seu hábitat profissional: a Rua do Triunfo. É o cinema dividindo espaço com a baixa prostituição, as duas principais estações de trem e ônibus da cidade e o núcleo central da marginalidade paulista. Esta introdução se encerra com a documentação das filmagens de O Profeta da Fome, de Maurice Cappovila. A seguir, inicia-se o meu episódio, em cuja abertura Mojica Marins fala sobre cinema e ovelhas. O filme se encerra com o episódio Amor 69 de Antônio Lima, de aproximadamente 30 minutos. A distribuidora Horus Filmes lançou Audácia! comercialmente com o subtítulo de A Fúria dos Desejos. Local das filmagens: São Paulo e cidade de Salto.Estreou em São Paulo no dia 10 de agosto de 1970, nos cines Arcades e Cosmos 70 (rua Augusta). 1971 Corrida em Busca do Amor Direção de Carlos Reichenbach Argumento: Aram Babaeghian e Renato Grecchi. Pré-roteiro e diálogos de J. B. de Souza. Roteiro Final: Reichenbach, Jairo Ferreira e Percival G. Oliveira. Fotografia e câmera: Cláudio Portioli. Músicas Originais: Toni Ricardo, Vic Barone e Dick D’anello. Seleção Musical: Carlos Reichenbach. Montagem: Sílvio Renoldi. Produtores: Renato Grecchi, Nissin Katalan e Aram Babaeghian. Elenco: David Cardoso, Gracinda Fernandes, Vic Barone, Dick D’anello, Toni Ricardo, Luís Carlos Clay, Vitoria Twardowska, Tuska, Celsa Moran, Gibe, Carlos Bucka, Carlão Reichenbach, e Cavagnoli Neto. 35 mm, colorido, 92 minutos. Sinopse: Aventura juvenil. Duas equipes participam anualmente de uma modesta corrida de carros usados. Na realidade, são integrantes de duas oficinas mecânicas concorrentes, uma rica e outra pobre, cujos líderes não só estão interessados no prêmio em dinheiro, como disputam entre si as atenções da jovem filha do patrocinador do evento. A equipe rica não hesita em contratar um profissional para vencer a qualquer custo. A outra é obrigada a solicitar os préstimos de um inventor maluco, que descobre a pílula da velocidade. Durante a competição, funcionários da oficina rica tentam sabotar os carros dos adversários. Acontece de tudo, e o tradicional espírito esportivo cede lugar a uma completa anarquia. Comentário: Primeiro longa-metragem inteiramente dirigido por Reichenbach, a partir de um argumento de encomenda. Ele homenageia o diretor e produtor Roger Corman, especialmente seus chamados filmes da turma da praia, onde brilhavam duplas populares na época, como Sandra Dee – Bobby Darrin e Annette Funicello – Frankie Avalon. O filme retrabalha em tom caricato os clichês do cinema comercial, em especial os filmes para jovens. Celebração da algazarra e da desobediência civil, Corrida em Busca do Amor pode ser dividido em duas partes. Uma um pouco mais convencional, com o roteiro sendo seguido à risca, e uma segunda parte, a corrida propriamente dita, quando o dinheiro acaba e tudo foi quase integralmente improvisado. O roteiro passou a ser reescrito durante as filmagens, nas cidades de Serra Negra e Amparo, conforme as precárias condições de produção de cada dia. Seu estilo anárquico e fragmentado antecipa a personalidade anti-convencional do cinema do diretor: mistura de gêneros, subversão gradativa da sintaxe cinematográfica, a música como personagem integrante da narrativa e a fé na utopia como obsessão temática. O filme marca também a estréia profissional de Inácio Araújo, futuro co-roteirista e montador de Reichenbach, como assistente do montador Sylvio Renoldi. Impressões: Em 1970 fui chamado pelo Renato Grecchi, que nos ajudou na negociação de As Libertinas, para fazer um filme sobre corrida de automóveis. Não tinha nada a ver comigo, sempre achei esse esporte meio idiota, mas acabei topando muito por conta da minha admiração pelo Fuller, que pegava coisas como essa e usava toda sua criatividade para fazer algo exemplar. Eu admirava também os filmes do Roger Corman de juventude transviada e gangues de motocicleta. Para mim virou um desafio, e também a possibilidade de um bom aprendizado. Havia feito dois filmes em episódios e era minha chance de dirigir um longa sozinho. O Brasil atravessava um momento difícil, politicamente falando, por conta da ditadura militar. Havia muita gente desaparecendo, saindo do país, havia perseguição política e tudo o mais. Em meio a esse contexto conturbado, recebi esse convite para um filme juvenil. O Grecchi apareceu com um roteiro incompleto que havia encomendado do simpático J. B. de Souza. Era uma coisa muito óbvia, sobre duas escuderias, uma pobre e outra rica, brigando para ganhar um campeonato, enquanto os dois pilotos disputavam a filha do patrocinador. Mas enfim, finalmente eu tinha um roteiro para filmar – mesmo que incompleto. Resolvi mexer nesse roteiro, deixá-lo com a minha cara. A seguir, o Grecchi disse que queria colocar como ator o cantor Ronnie Von, que na época estava no auge da fama e era considerado uma espécie de intelectual da jovem guarda. Ele tinha estudado na Europa e possuía formação intelectual. Por isso o Grecchi me escolheu. Queria alguém de nível universitário, que pudesse impressionar o Ronnie. Ele apostou na minha fama de garoto maluco que veio da academia direto para a Boca do Lixo. Lembro que, um dia antes de irmos conversar com o Ronnie, ele me intimou: Leva aqueles textos malucos que você escreve; ele vai gostar! O Grecchi acabou confessando que já tinha lhe mostrado o roteiro inacabado do J. de Souza. Acabei mostrando ao Ronnie Von um texto escrito naqueles dias, para o jornal São Paulo Shimbum, da colônia japonesa. Eu tinha dois grandes amigos que escreviam nesse jornal: o Jairo Ferreira e o Orlando Parolini. No tal texto, que estampado na primeira página do jornal, eu citava Bosh, Verlaine, Rimbaud e outros poetas e pintores que o Ronnie conhecia muito bem. Não deu outra, ele adorou o texto. O que ele não sabia é que em jornal japonês, a primeira página é a última, pois eles lêem de trás para diante. Enquanto lia, comentava: Você conhece Bosh? Adoro ele. Foi engraçado, pois assim que acabou de ler, o Ronnie virou para o Grecchi e disse: Eu faço o seu filme mas esse cara aqui é que tem que escrever cena por cena! Foi ótimo. No dia seguinte o Grecchi me chamou, dizendo que eu poderia reescrever o roteiro do jeito que eu quisesse, desde que não fugisse do tema. Chamei o Jairo Ferreira e fomos atrás dos filmes do Roger Corman sobre turmas da praia, corridas de motorcicleta, aventuras de stock-car, e outros de gênero similar, para retrabalhar os clichês dos filmes de juventude. Vimos A Corrida do Século, várias vezes, as comédias medíocres de Sandra Dee, Frankie Avalon, essas coisas. Reescrevemos todo o pré-roteiro usando todo o repertório dos filmes juvenis do período, procurando subverter os clichês básicos. A idéia era seduzir o espectador num primeiro momento e a seguir dar uma porrada, subvertendo minuto a minuto as suas expectativas. No fim, depois de todo o trabalho, aconteceu o inesperado: Ronnie Von não acertou cachê e saiu do filme. A falta de dinheiro geraria muitas dificuldades. Em Corrida em Busca do Amor tínhamos que imaginar cotidianamente alguma coisa para filmar e suprir com invenção o que foi cortado por falta de verba. Naquela época, meus dois amigos e assistentes, Jairo Ferreira e Percival Gomes de Oliveira, dividiam um modesto apartamento alugado no Glicério e vieram juntos trabalhar no filme. Todas as noites, em Amparo e Serra Negra, durante as filmagens de Corrida em Busca do Amor, nós nos reuníamos no quarto do hotel para planejar as filmagens do dia seguinte. Aí eu perguntava: Que carros vamos ter amanhã?, e o Percival Não temos carro nenhum. Imagine isso num filme sobre corridas de automóvel. E quais atores temos?. E o Jairo: Amanhã não tem nenhum ator! Era o caos. Tínhamos que inventar cenas para encaixar no filme e ainda tentar deixar o todo coerente. A solução foi nos colocarmos dentro da história. Inventei um personagem – doutor Ivã, o terrível – para eu mesmo entrar em cena e me divertir. Jairo Ferreira surge do nada no meio da paisagem bucólica de Serra Negra, em busca dos paraísos prometidos por Krishnamutti. Outra estratégia: alguém se vestia de enfermeiro, arrumávamos uma ambulância na prefeitura local e criávamos uma cena de acidente. Era assim. Por sorte o filme contou com um montador genial, o Sílvio Renoldi, o mesmo que montou O Bandido da Luz Vermelha e que estabeleceu uma ordem anárquica, mas musical, nas porralouquice de Corrida em Busca do Amor. As cenas em que o professor Ivan e seu sobrinho têm de terminar correndo a pé foram criadas porque não havia mais dinheiro para alugar o carro. Na verdade, o que tentamos fazer o tempo todo foi propor saídas libertárias para os personagens do filme e para sua realização prática. Com seus erros, acertos, dificuldades e soluções para contornálas, Corrida em Busca do Amor, para mim, valeu por uma faculdade inteira. Local das filmagens : Amparo, Serra Negra e São Paulo. Estreou em São Paulo dia 18 de março de 1972, apenas no cine Olido. 1974 / 75 Lilian M., Relatório Confidencial Escrito, fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Cenografia: Marta Salomão Jardini. Diretor de Produção: Percival Gomes Oliveira. Seleção Musical: Carlos Reichenbach. Montagem e Edição: Inácio Araújo. Produtor: Carlos Reichenbach Elenco: Célia Olga Benvenutti, Benjamin Cattan, Sérgio Hingst, Maracy Mello, Edward Freund, Walter Marins, Caçador Guerreiro, José Julio Spiewak, Thereza Bianchi, Lee Bujyja, Genésio Carvalho, Wilson Ribeiro e Washington Lasmar. Colorido, 120 min (versão integral) e 95 min (versão comercial) Local das filmagens: São Paulo. Estreou em São Paulo dia 28 de julho de 1975, exclusivamente no cine Marabá. Sinopse: Maria abandona o marido lavrador e os dois filhos pequenos, seduzida por um mascate falador. No caminho, sofrem um grave acidente de carro, e ela segue sozinha para tentar a vida na cidade de São Paulo. Perdida na metrópole, é presa por estar sem documentos e uma assistente social arruma-lhe emprego na casa do industrial Braga. O dois tornam-se amantes e Maria adota o nome de Lilian, o mesmo da mãe de Braga. No tortuoso caminho da miséria ao luxo, Lilian vai se envolvendo com tipos excêntricos: o autodestrutivo bailarino filho de Braga; um industrial alemão que financia a repressão (inspirado em personagem real), um grileiro de terras falastrão, um detetive boçal, uma cafetina, um bandido tuberculoso com cara de santo, um submisso funcionário público e sua mórbida irmã. Do campo à cidade, do concubinato à prostituição, da opulência à marginalidade, Lilian retorna às origens para rever a sua família e ensinar algo de novo ao marido. Comentário: Após três anos dedicando-se à publicidade, em sua empresa Jota Filmes, Reichenbach volta ao cinema, realizando uma obra de narrativa ousada, mudando de gênero, estilo e influência diversas vezes ao longo da história. Produzido com sucatas de cenários publicitários da extinta Jota Filmes e usando a infra-estrutura da empresa, da qual o diretor era sócio, o filme já dá mostras do que seria sua visão cinematográfica, levemente esboçada no filme anterior. Todos os elementos que marcariam sua obra estão aqui: preferência por atores menos conhecidos, elementos de comédia, na linha da chanchada, nudez e um certo tom anárquico. Por pressão do distribuidor e sóciominoritário, o filme foi lançado comercialmente com o título de Confissões Amorosas (rejeitado por Reichenbach). A censura federal exigiu cortes na versão final, obrigando o diretor e seu montador a tirar mais de 20 minutos do filme. Curiosamente, todas as insinuações de tortura física de cunho político foram mantidas. Em compensação, a maior parte do episódio protagonizado por Benjamin Cattan, considerado de degradação familiar, foi proibido, incluindo-se o seu desfecho subversivo. As cópias disponíveis no Brasil e na Europa trazem a versão integral. Impressões: Para mim, uma das características marcantes de Lilian M é a maneira como o filme muda de tom, de gênero e de influência de acordo com o homem que entra na vida da Lilian. O desfecho amargo, com ela olhando o marido e indo embora, e também a cena dela indo rever o marido, na estação de trem, lembram muito Zurlini, principalmente A Moça Com a Valise. Mas em certas ambientações, dá para notar elementos de Samuel Fuller, o lado meio anárquico de certos filmes do Godard e um pouco da influência dos japoneses. Mas, a maior influência deste filme são dois diretores japoneses: Shohei Imamura, em especial, Mulher Inseto e Segredo de Uma Esposa. O plano de Lilian estendendo roupa no varal em câmera lenta saiu deste último. Outra referência foi Yasuzo Masumura, que fazia filmes magníficos sobre o universo feminino. Em especial, sobre prostitutas e gueixas. Foi Masumura quem afirmou que Em toda experiência essencial da vida de uma mulher, o sangue está presente. A relação de Lilian com Fausto (o filho bailarino) é toda construída em cima de paradoxos. Mas eu confidencio que ele é o personagem que menos me agrada no filme todo, porque é realmente muito complicado lidar com personagens efeminados sem cair no clichê. Lilian M, Relatório Confidencial foi o primeiro filme que me deu o gostinho de ler críticas favoráveis nos jornais. A bem da verdade, quando terminei a montagem, tinha certeza que havia feito um filme atípico, à frente do seu tempo. Nunca tinha tido essa sensação antes. Isso me deixou satisfeito porque esse filme é todo meu. Fui diretor, produtor, fotógrafo, roteirista, operador de câmera e autor da trilha sonora. Como eu era sócio da produtora Jota Filmes, pude filmar exatamente do jeito que eu quis, usando sucata de estúdio. A montagem do Inácio Araújo é especialmente preciosa, de rara sofisticação. Ele havia sido montador de Aleluia Gretchen, do Sílvio Back, outro trabalho primoroso, e trabalhava na Jota Filmes, onde já mostrava qualidades como criatividade e agilidade. Resolvi apostar em seu talento e o resultado não poderia ter sido melhor. Meu objetivo desde o início era concretizar um filme que, como cinéfilo, me desse prazer em assistir. Esse é um critério que sigo até hoje e sempre ensinei a meus alunos. A primeira pessoa que precisamos agradar, quando fazemos um filme, somos nós mesmos. Tenho sido meu crítico mais implacável. A Jota Filmes havia sido, nas décadas de 50 e 60, um dos mais importantes estúdios de publicidade de São Paulo. Dispunha de bons equipamentos, estúdio e pessoal técnico de alto nível. Nos anos 70 já não estava mais na crista da onda no meio publicitário. Mas eu não entrei na sociedade pela publicidade, mas sim pensando em utilizar sua infra-estrutura para fazer filmes de longa metragem. Lilian M foi realizado em três ou quatro etapas, nos intervalos dos filmes publicitários. A maior dificuldade foi escolher uma protagonista de formação teatral para contracenar com vários atores masculinos, cada um deles de formação diferente. Havia atores de teatro, técnicos de cinema, diretores de cinema, diretores de teatro, cantores, bailarinos e dubladores. Cada um deles interpretando um personagem de perfil diferente. A idéia era essa: cada homem que entrava na vida de Lilian fazia o filme mudar de gênero e estilo, sob influência do novo personagem. Tanto que o filme muda da comédia para o drama, do musical para o filme político, etc. Para que isso desse certo era necessário achar uma atriz excepcional, já que ela era seria a coringa do jogo. Teria de ser alguém convincente nos diversos gêneros dramatúrgicos. A Célia Olga foi uma escolha muito feliz. É uma atriz extraordinária formada pela EAD, a Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo. Ela foi indicada por um amigo, o ator José Carlos Cardoso (também da EAD) e fez vários testes na Jota Filmes antes de ser escolhida. Ela era realmente cinegênica (fotogenia para cinema), com uma intimidade com a lente cinematográfica difícil de encontrar. Antunes Filho a considerava uma das melhores intérpretes de Nelson Rodrigues. O que mais me impressionou nos testes de Célia foi a força de seu olhar. Naquela época ela parecia (física e emocionalmente) uma nova Eva Wilma ou uma Lilian Lemmertz. Infelizmente sua carreira sofreu vários percalços e acabou não acontecendo. Recentemente, eu e o Inácio Araújo revimos a rápida participação dela em O Gosto do Pecado, de Claudio Cunha, e pudemos confirmar sua grandiosidade dramática. Ela aparece em exatos dois minutos, e rouba a atenção do filme inteiro. Outro personagem importante é o de Maracy Mello, a mórbida e misteriosa irmã do burocrata Gonçalves, feito por Sérgio Hingst. Ela fala pouco e interpreta mais com olhares e expressões. A Maracy era muito amiga do Edward Freund, diretor e fotógrafo de cinema que convidamos para interpretar o industrial alemão Hartmann, o nazista refugiado na casa de campo da represa Billings. Foi Freund quem indicou a Maracy. Ele já tinha filmado o longa-metragem A Vida Quis Assim com ela como protagonista. Trata-se de uma das atrizes mais intensas e disciplinadas com quem já trabalhei. Minha mulher, Lygia Reichenbach, faz um pequeno papel, como a chefe do departamento onde o funcionário público Gonçalves trabalha. Mais adiante, ela apareceria também em Amor, Palavra Prostituta, grávida de sete meses, na sala de espera do dr. Xavier; e, em Anjos do Arrabalde, fazendo exatamente aquilo que ela fazia na época: dentista de um colégio do Estado na periferia. No filme, o lavrador José, marido de Lilian, é um dos poucos personagens que não é tratado com ironia. Diante da relação do casal, muita gente me pergunta o porquê deles transarem sem tirar a roupa, numa das cenas iniciais. A idéia tem a ver com a castidade natural do homem rural. Nesse momento, uma coisa fundamental era marcar a ausência de prazer no rosto de Lilian nas cenas de sexo. Quando volta para o campo (refazendo a trajetória oswaldiana campo-cidade-campo), ela ensina José a dar (e descobrir) prazer. Na seqüência seguinte ela vai embora outra vez para experimentar novas aventuras. Outra seqüência importante do filme é a do alemão colecionador de armas, chamado Hartmann. O personagem foi tenuamente inspirado na figura real do industrial alemão Henning Albert Boilesen, que segundo a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), era espião da CIA e patrocinava a Operação Bandeirante, a OBAN, criada pela repressão no final dos anos 60, em São Paulo. Dizia-se que esse cidadão (um suíço) havia sido da SS nazista. Boilesen foi executado pelo Comando Revolucionário Devanir José de Carvalho, após ser julgado como espião da CIA. Isso é discretamente citado no filme. O curioso é que a censura brasileira não entendeu as seqüências do alemão e elas passaram incólumes nos cinemas. Quando o filme foi lançado, encontrei dois ex-ativistas que viram o filme e vieram me perguntar se eu estava me referindo ao Boilesen. No entanto, essas mesmas cenas foram censuradas dez anos depois pela BBC de Londres quando integravam o documentário Cinema Brasileiro: o Sexo e os Generais, de Simon Hartog, famoso pelo documentário censurado sobre Roberto Marinho e a Globo. A seqüência do Hartmann é uma das minhas preferidas em toda a minha obra. Lá exercitei uma atmosfera originalíssima onde os atores interpretaram como se estivessem dançando. A seqüência inteira foi filmada com músicas alemãs dos anos 30 (pré-nazistas). O Jairo Ferreira dizia que eu usava os filmes para me exorcizar dos discos 78 rotações que herdei da família. Um problema que me preocupou muito na época foi a questão da censura. Eles cortaram as cenas mais importantes do Benjamin Cattan e também algumas cenas bobas de nudez. No entanto, deixaram todas as referências metafóricas à tortura no país. Os cortes na seqüência do Cattan tornavam o filme meio incompreensível o que nos obrigou (eu e o montador Inácio Araújo) a voltar para a moviola e extirpar 20 minutos do filme todo. Vendo Lilian M. hoje, ninguém imagina como a produção foi difícil. Usei quase todo o dinheiro que havia ganho com publicidade. Mesmo recorrendo a sobras de negativo e economizando em tudo que era possível, fiquei com uma dívida monstruosa. Para piorar, ainda aparece, na última hora, o problema com a censura. Por causa deste filme, fiquei muitos anos chateado com o Festival de Brasília, pois o inscrevi e ele não foi selecionado. No entanto, dez anos depois, o filme me levou para o mundo inteiro, sendo muito aplaudido no festival de Rotterdam. Mesmo hoje, ele é um filme moderno. 1978 Sede de Amar (Capuzes Negros) Fotografia e direção de Carlos Reichenbach. Argumento, roteiro e música original: Mauro Chaves. Cenografia: Darcio Lima. Montagem e edição: Alain Fresnot. Produtor: Ney Arruda Alves. Elenco: Sandra Bréa, Luiz Gustavo, Roberto Maya, Katia Grumberg, Renato Master, Fernando Benini, Oswaldo Barreto, Wilson Ribeiro, Marcia Fraga, Luís Parreiras, Roberto Miranda, Genésio Carvalho, Dino Arino e João Maria Netto. Colorido, 92 min Local das filmagens: São Paulo e Itapecerica da Serra. Lançado em São Paulo dia 5 de Fevereiro de 1979, nos cines Art-Palácio, Rio Branco, Metrópole, Metro, Gemini, Belas-Artes etc. Sinopse: Confundido com o chefe, presidente da Construtora Paraíso Verde, um homem é seqüestrado juntamente com a mulher desse executivo, durante o coquetel de lançamento de um novo empreendimento. Enclausurados em um minúsculo cubículo e privados de suas roupas pelos seqüestradores, homens encapuzados, os dois acabam descobrindo a tênue distância que separa patrões e empregados. Cenas de sexo são inevitáveis. Na festa a bebida rola solta, até que é descoberto o seqüestro. O delegado local, presente ao evento, mobiliza o seu efetivo para tentar encontrar pistas dos seqüestradores. Comentário: Único filme de Reichenbach totalmente escrito por outra pessoa, no caso, o teatrólogo e jornalista Mauro Chaves. Inicialmente contratado como diretor de fotografia, Reichenbach assumiu a direção devido à desistência do encenador Celso Nunes, e por insistência do amigo e co-produtor Chaves. A crítica da época elogiou os vôos poéticos que permeiam a narrativa e o deboche sutil com que satiriza o novo-riquismo paulista. O filme foi um grande sucesso de bilheteria (mais de dois milhões de espectadores). Foi aqui que o diretor conheceu o ator Roberto Miranda, que seria protagonista dos seus próximos filmes. Impressões: Inicialmente fui atraído pela possibilidade de filmar com um bom orçamento, coisa que desconhecia. Mas no meio das filmagens, novamente o dinheiro acabou, obrigando-me a recorrer ao velho esquema de improvisar e reduzir o período das filmagens. Uma lição definitiva aprendida com a adversidade: jamais deixar para o final as seqüências mais complicadas, e que envolvam o maior número de atores e figurantes. Capuzes Negros (Sede de Amar foi mais um subtítulo exigido pelo distribuidor) foi uma tentativa de fazer uma comédia elegante e cínica, nos moldes de alguns clássicos de Billy Wilder. Tudo acabou sacrificado pelos problemas de produção. Não gosto do filme, mas aprendi muita coisa com ele. 1978 A Ilha dos Prazeres Proibidos Escrito, fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Montagem e edição: Walter Vanni. Seleção musical de Carlos Reichenbach. Produtor: Antônio Polo Galante. Elenco: Neide Ribeiro, Roberto Miranda, Meiry Vieira, Fernando Benini, Carlos Casan, Zilda Mayo, Fátima Porto, Olindo Dias, Teca Klaus e João Maia Neto. 35 mm, Colorido, 90 min. Local das filmagens: Peruibe, Itanhaém, Iguape e São Paulo. Lançado em São Paulo no dia 15 de Janeiro de 1979, nos cines Marrocos, Marabá, Goiás, Amazonas e Aladin. Sinopse: Ana, falsa jornalista, espiã e assassina profissional, é designada pela organização de extrema direita para qual trabalha, para uma missão na Ilha dos Prazeres. Usando como guia o ex-jornalista Sérgio, Ana deverá entrar na ilha e eliminar dois refugiados tidos como subversivos: o teórico reichniano William Solanas e o anarquista Nilo Baleeiro. Em contato direto com o hedonismo do paradisíaco reduto de renegados, a espiã descobre a função revolucionária do prazer. Comentário: Retomando a idéia básica de seu primeiro longa-metragem Corrida Em Busca do Amor, o diretor recicla clichês do cinema erótico comercial, subvertendo-os. Em 1979 o Brasil vivia o auge da pornochanchada e Reichenbach aceita o desafio lançado pelo produtor Antônio Polo Galante de tentar renovar o gênero, a despeito do baixo orçamento. Com poucos rolos de negativo e três semanas de filmagens, realiza o que viria a ser seu maior sucesso de bilheteria. A Ilha dos Prazeres Proibidos foi o filme que motivou a famosa frase do Galante, produtor da Boca do Lixo: Nos filmes do Carlão, os personagens falam coisas esquisitas, mas o público vai ver. Realmente houve uma ótima resposta de público na época. Quatro milhões de espectadores no Brasil e outros três em países da América do Sul. Reichenbach filmou o Pacífico em pleno Atlântico, recriando uma geografia própria. A censura fez alguns cortes, que não chegaram a afetar a trama. O público do cinema pornô, machista e ávido por cenas de nudez convencional, deve ter levado um choque com as menções de sexo tribal, amor livre e lesbianismo, tendo como pano de fundo questionamentos existenciais e ideológicos. Como tempero, as já habituais citações de Fuller, Makavejev, Emma Goldman e Jean Luc Godard. Impressões: Esse foi o primeiro dos meus quatro filmes protagonizados por Roberto Miranda. Em todos, foi meu alter-ego; especialmente nas pornochanchadas A Ilha dos Prazeres Proibidos e Império do Desejo. Miranda, assim como eu, era um anarco-existencialista. Mas, talvez exatamente por se identificar demais com estes personagens, ele não funcionava tão bem. Só anos mais tarde, no curta-metragem Sangue Corsário, descobri que ele se saía melhor fazendo personagens que nada tinham a haver com ele. Suas interpretações mais preciosas são em Amor, Palavra Prostituta (ganhou o prêmio APCA de melhor ator por este filme) e Extremos do Prazer onde interpreta personagens burgueses desprezíveis. O que o tornava mais convincente era o asco que sentia por aqueles personagens. Amoral e libertário, o filme mistura Mata Hari com William Reich; fotonovela com Oswald de Andrade; quadrinhos eróticos com Bakunin; Marie Chantal com Henri Michaux; tudo embalado pelo som da poesia de John Lennon Amor é Toque. A utopia do emblemático casal Yoko-Lennon transposta para o universo de exilados políticos. Diálogos extraídos da subliteratura, envoltos num despojamento intelectual aparente transformam-se num bombardeio subliminar de erudição, catarse e revolta. Apesar do sucesso, a relação comercial era completamente diferente. Naquele tempo, se você não levasse público para as salas, estava acabado. Nessa fase, me dava muito bem com o público e o Galante confiava em mim. Fizemos uma paródia de livros pornôs de sucesso na época. Havia uma escritora com sobrenome francês, que fazia livros de espionagem altamente eróticos. Também havia outro, que escrevia livros para venda em bancas de jornal. É o escritor que mais títulos fez até hoje. Ele escrevia em média três livros por dia. Fazia westerns, guerra, espionagem, valia tudo. E olhe que não havia computador para facilitar, como hoje. Um dos que faziam maior sucesso era o de uma espiã erótica, que transava com meio mundo para obter informações. Quando escrevi o roteiro de A Ilha dos Prazeres Proibidos, reuni esse repertório de apelo popular e incuti muita coisa erudita, além de dar forte conotação política, já que o tema me interessa muito. Era minha maneira de responder ao pessoal da Boca do Lixo, que tinha o costume de subestimar o público. Diziam que o espectador era burro, que não entendia coisas sofisticadas. Então, eu misturava alta erudição com autênticas baixarias. Boa parte dos textos eram citações literais de autores clássicos, poetas etc. Às vezes, parece que os personagens estão lendo livros. O sujeito faz uma pergunta banal e recebe uma resposta erudita que soa estapafúrdia. Numa das cenas mais eróticas do filme, eu recito – em francês – um poema de Henri Michaux, o Rimbaud belga. Quando o Galante me convidou a fazer A Ilha..., eu tinha acabado de lançar o Lilian M.. Ele tinha assistido e foi logo me advertindo: Nada de fazer arte nesse trabalho, hein? Eu quero um filme de sexo! Ele não perdeu por esperar. Como o Galante raramente aparecia nas filmagens – para o pessoal da equipe não ficar pedindo dinheiro o tempo todo – fiz o filme com total liberdade. Quando ele viu o primeiro copião com cenas eróticas, ligou apavorado para Peruíbe, diretamente do laboratório: Carlão, o que é que você fez? Tá louco, tem homem pelado de frente, gente falando coisa de política. A censura vai cortar tudo! Tive de acalmá-lo explicando que os censores não iriam entender nada, pois o filme tinha leitura dupla. Foi exatamente o que aconteceu. E o filme foi um sucesso. Esse viés político foi uma coisa ousada para aqueles tempos de ditadura. Em plenos anos 70 criar a espiã, uma personagem de extrema direita, que trabalha na redação do jornal O Estado de S. Paulo e é enviada para uma ilha, para matar exilados políticos. Aliás, quer coisa mais política do que colocar exilados, um anarquista e um teórico, escondidos numa ilha em um filme pornô? E ainda por cima, essa direitista ser uma mulher insatisfeita, que não consegue atingir o orgasmo. Ela fica irritada em sentir prazer com os subversivos e começa a matá-los. Minha seqüência favorita é da morte do anarquista explodido à dinamite ao som de God, de John Lennon (I don´t believe in Nixon!). O desfecho é a subversão do happy-end. O personagem de Miranda transa com a mulher do teórico reichniano que é baleado pela jornalista reacionária. Todos pensam que ele morreu e que Miranda vai ficar com a mulher do teórico. Surge Miranda beijando a mulher num longo travelling circular de 360 graus. Surge o teórico caminhando na direção deles, saído do hospital, braço na tipóia. Tem-se a impressão de que ele vai sair na porrada com o Miranda. A câmera gira alucinadamente em torno dos três. O teórico avança, abraça o casal apaixonadamente e os três começam a se beijar, tudo isso ao som de Pink Floyd (The Dark Side of the Moon). Um libertário happy-end com cara de ménage à trois. Anarquismo puro. Se você imaginar que o público dos filmes pornôs na época era, antes mais nada, machista e conservador, o filme é uma porrada e tanto. Ou não? 1979 Sonhos de Vida Curta-Metragem, 10 min. Argumento, fotografia e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro e diálogos: Jairo Ferreira e Reichenbach. Montagem e edição de Éder Mazini. Produtor: Roberto Polo Galante. Elenco: Patrícia Scalvi, Misaki Tanaka e Roberto Galante. 35mm, Colorido. Sinopse: Tendo como guia uma matéria turística de um jornal de bairro, duas operárias da periferia de São Paulo empreendem uma viagem ao mais próximo balneário de águas termais. Comentário: A inspiração foi um filme institucional sobre a inauguração do luxuoso hotel Tropical, em Manaus, que acabou virando clássico de tanto ter sido exibido nos vôos da Varig, seu patrocinador. Ele era assinado por Jean Manzon, uma espécie de Galvão Bueno do filme institucional. Como tinha um forte esquema de distribuição em todos os cinemas, os já conformados cinéfilos da década de 70 decoraram os clichês adjetivos e superlativos, emitidos em tom exultante pelo narrador. De certa forma, pode ser considerado a gênese de filmes como Anjos Do Arrabalde e Garotas do ABC, já que contém elementos presentes nessas obras, ou seja, a visão feminina e o universo de operárias têxteis e da periferia. Este despretensioso curtametragem foi rodado em apenas dois dias com uma equipe de quatro pessoas. Impressões: Sonhos de Vida é uma irônica reciclagem dos clichês do filme institucional, mostrando com humor o calvário de duas operárias têxteis, entre trens malconservados, ônibus velhos e caminhadas, tentando passar horas agradáveis em uma das mais próximas e pobres estâncias balneárias de São Paulo. A exemplo de meu primeiro curta, Esta Rua Tão Augusta, novamente aqui tive negado pelo Concine o certificado de curta-metragem, que garantiria a exibição comercial nos cinemas. 1979 Sangue Corsário Curta-Metragem, 10 min. Argumento, fotografia e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro e diálogos: Jairo Ferreira e Reichenbach. Poemas de Orlando Parolini. Música Original: Jairo Ferreira. Montagem e edição de Éder Mazini. Produtor: Roberto Polo Galante. Elenco: Orlando Parolini (O Poeta) e Roberto Miranda (O Bancário). 35 mm, Colorido. Sinopse: Perambulando por São Paulo, durante a hora de almoço, um bancário encontra um amigo da década de 60. Trata-se de um poeta e andarilho urbano com quem viveu intensamente os anos da contracultura. O tempo fez os dois escolherem caminhos existenciais opostos. O filme discute esse confronto entre opções de vida. Ao mesmo tempo, o entrecho é pretexto para o registro da obra poética, urbana e errática de Orlando Parolini. Comentário: Um dos primeiros filmes brasileiros a abordar os anos da contracultura e seus reflexos no comportamento da sua geração. É também uma homenagem ao amigo e poeta Orlando Parolini (morto em 1991). Impressões: A câmera passeia com os dois personagens por locais freqüentados por ambos, no centro de São Paulo. Entre os textos declamados por Parolini, destaco A Perdição, poema premonitório, por vezes blasfemo, com o poeta sendo filmado em primeiro plano, câmera e personagem sobre uma Kombi em movimento, em pleno Elevado Costa e Silva, conhecido como Minhocão, um enorme viaduto em pleno centro da cidade, responsável pela degradação de uma enorme área. O filme recebeu o Certificado de Curta-Metragem do Concine e, como era costume na época, acompanhou o longa O Sentido da Vida de Terry Gilliam, inusitada escolha do distribuidor. 1979 O M da Minha Mão Curta-Metragem, 7 min. Direção: Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira. Fotografia e câmera: Carlos Reichenbach. Música original: Mario Gennari Filho. Montagem e edição: Éder Mazini. Produtor: Roberto Polo Galante. Colorido. Sinopse: Depoimento filmado, homenagem ao compositor e acordeonista Mario Gennari Filho, autor de clássicos populares como Baião Caçula, e O M da Minha Mão. Mario, cego de nascença, aparece em sua casa ao lado da família, e com seu conjunto musical na sua casa noturna. Os tempos de regional e popularidade junto às camadas mais pobres são apenas lembranças. Reichenbach e Ferreira, que crescerem em bairros periféricos ao som de seus chorinhos, valsas e baiões, contrapõem a intimidade do compositor com imagens dos subúrbios operários e de parques de diversão desativados, onde suas músicas eram apreciadas. Comentário: Este filme é um projeto incompleto de Carlos Reichenbach, jamais exibido. Impressões: Minha proposta era investigar uma música marcante de minha infância, no caso O M da Minha Mão, como que buscando algo importante perdido no passado. O projeto só se tornou possível porque o produtor Polo Galante encomendou a mim e ao Jairo quatro curtasmetragens. Assim, aproveitamos para registrar o depoimento do autor Gennari Filho ainda em vida (ele morreu no final dos anos 80). 1980 O Império do Desejo Escrito e dirigido por Carlos Reichenbach. Fotografia e câmera: Alfred Stinn. Cenografia: Conrado Sanchez. Seleção musical: Carlos Reichenbach. Montagem e edição: Gilberto Wagner. Produtor Roberto Polo Galante. Elenco: Roberto Miranda, Benjamin Cattan, Marcia Fraga, Meiry Vieira, Orlando Parolini, José Luiz Franca, Nádia Destro, Misaki Tanaka, Dino Arino, Genésio Carvalho, Felipe Donovan, Maristela Moreno, Cavagnoli Neto, Fafá e as participações de Aldine Müller e Martha Anderson. Colorido, 105 minutos Local das filmagens: Ilha Comprida e Iguape. Lançado em São Paulo dia 30 de março de 1981, nos cines Marabá, Olido e Del Rey. Sinopse: Sandra, viúva de um milionário, vai ao litoral recuperar sua casa de praia tomada por grileiros. Na estrada dá carona a um casal de hippies. Auxiliada por Carvalho, um advogado picareta, Sandra recupera a propriedade e convida o casal de caronas a assumir a função de caseiros. A partir daí o casal vai gradativamente se envolvendo com uma galeria de personagens insólitos, incluindo a própria viúva, seu namorado e o advogado, que se apaixona perdidamente pelos dois. Comentário: Conseqüência do sucesso comercial de A Ilha dos Prazeres Proibidos, a realização de O Império do Desejo (que inicialmente deveria se chamar Anarquia Sensual) poderia ser definido como protótipo do estilo buscado por Reichenbach. Todos os temas que lhe são caros estão aqui: manipulação de clichês narrativos, subversão do repertório do filme erótico comercial, mistura de gêneros, criação de atmosferas distintas a cada gênero, busca de uma geografia própria, música como elemento narrativo, humor na linha da chanchada e elementos do ideário anarco-libertário. O filme foi convidado a participar de festivais de cinema de teor anarquista como os de Melbourne, Portland e Lyon. Impressões: Este é um dos meus filmes preferidos. Sonho um dia voltar a fazer um filme com o mesmo prazer, liberdade e disposição com que realizei este. Quando estou de baixo astral, revejo O Império do Desejo e me coloco novamente em harmonia com o cinema e o universo. Há um personagem interessante nesse filme, uma espécie de profeta, feito pelo Orlando Parolini, que mata os boçais da história a porretadas, enquanto cita passagens de Fernando Pessoa. Por exemplo um casal de turistas babacas, que fala besteiras o tempo todo e só irritam o espectador. Aí aparece o tal profeta e sai distribuindo bordoadas. Ele vai limpando a praia de gente desprezível. O Orlando era um grande amigo, crítico de cinema especializado em filmes japoneses, que funcionava para mim como um alter-ego subversor. Eu e o Inácio Araújo achávamos belíssima a sua catadura rasputinesca (expressão do crítico Rubem Biáfora). Mais tarde, escrevemos Amor, Palavra Prostituta tendo-o como referência para o protagonista. O Império do Desejo é um dos filmes que confirma a frase de Roberto Santos, de que o cinema brasileiro é o único do mundo capaz de transformar a falta de condições em elemento de criação. Foi o primeiro filme nacional liberado sem cortes pelo recém-criado Conselho Superior de Censura, com o rótulo de espetáculo pornográfico. Curiosamente, pouco antes ele havia sido interditado para todo território nacional sob a chancela de subversivo e atentatório à moral e aos bons costumes. 1980 Amor, Palavra Prostituta Fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Argumento e roteiro: Inácio Araújo e Reichenbach. Cenografia: Inácio Araújo. Música: César Franck (excertos da obra). Montagem e edição: Éder Mazini. Produtores: Reichenbach, Mazini, Araújo, Jean Garret, Cláudio Cunha, Alfredo Cohen e Titanus. Elenco: Orlando Parolini, Patrícia Scalvi, Roberto Miranda, Alvamar Taddei, Benjamin Cattan, Liana Duval, Zaira Bueno, Rita Hadich, Wilson Sampson, Vania Buchioni, Maurice Legeard, Luiz Castellini e Isa Kopelman. Colorido, 92 minutos (Versão Integral). Local das Filmagens: São Paulo. Lançado em São Paulo dia 29 de março de 1982, nos cines Marrocos, Barão, Gazetão e circuito Haway. Sinopse: Fernando, professor desempregado, vive à custa de sua companheira, a operária têxtil Rita. Num fim de semana o casal, que mora na região do ABC paulista, se reúne com o técnico em computação Luís Carlos, e sua namorada, a inexperiente Lilita. Luís Carlos, que foi aluno de Fernando, é um reacionário, que usa as mulheres apenas como objetos. Tudo vai bem até que os casais encontram um homem enforcado. Este incidente irá modificar a vida dos quatro. Rita, desiludida com a indiferença de Fernando, envolve-se com um dos diretores da fábrica em que trabalha. Lilita descobre que está grávida, e é pressionada pelo amante a fazer um aborto. Dona Wanda, mãe de Luís Carlos, convence o filho a cortejar Berenice, a rica filha de seu chefe. O aborto ocasiona graves conseqüências na saúde de Lilita, e Luís Carlos pede a ajuda de Fernando. A proximidade da dor e da morte de Lilita traz novo sentido à vida de Fernando. Comentário: Melodrama social que representou uma guinada na carreira de Reichenbach na direção do cinema da alma. Inspirado pela leitura de filósofos preexistencialistas como Sören Kierkegaard (O Tratado do Desespero), este é um drama amargo e pessimista no qual as cenas de sexo e nudez se confundem com dor e amargura. Não existem heróis. Esse mergulho no desespero não faz julgamentos. Busca apenas detectar alguma dignidade em existências medíocres. Sua produção e exibição foram das mais complicadas da carreira do dire-tor. Filmado com negativos vencidos e recursos mínimos, Amor, Palavra Prostituta passou oito meses brigando com a Censura Federal, tendo sido liberado pelo Conselho Superior de Censura com cortes considerados muito graves pelo diretor. Impressões: Todas as cenas em que Fernando cuida de Lilita depois do aborto foram cortadas, sob a alegação oficial de que o cinema não podia mostrar sangue menstrual. Tentei por todas vias conseguir a liberação do filme, mas tive que ceder às pressões dos co-produtores que já haviam marcado a data de lançamento. Desconsidero essa versão mutilada, pois sem as cenas cortadas o filme não tem sentido. Este é o meu filme mais vigoroso e cerebral. Uma surpresa para as pessoas que gostam do estilo anárquico e iconoclasta de meus filmes anteriores. Minha experiência com o cinema dos sentimentos resultou num filme realista, sombrio e desencantado, tal como aprendi vendo o melhor de Valério Zurlini. Exibido na sua versão integral em diversos festivais europeus, Amor, Palavra Prostituta conquistou alguns prêmios, entre eles o prêmio para distribuição, da Cinemateca de Bruxelas e menção especial no júri Francofone. 1981 O Paraíso Proibido Escrito e dirigido por Carlos Reichenbach. Fotografia: Alfred Stinn e Carlos Shintomi. Música Original: Hyldon, Papete, Oswaldinho do Acordeon e Almir Satter. Montagem e edição: Gilberto Wagner. Produtor Roberto Polo Galante. Elenco: Jonas Bloch, Vanessa Alves, Luiz Carlos Braga, Ana Maria Kreisler, Fernando Benini, Carlos Casan, Toni Fernandes, Railda Nonato, Débora Berbert e participações de Selma Egrei e Patrícia Scalvi. Colorido, 95 min. Locais das filmagens: Itanhaém, Santos, Praia Grande e São Vicente. Lançado em São Paulo no dia 19 de Outubro de 1981, nos cines Marabá, Del Rey, Cinemar, Amazonas e circuito. Sinopse: Celso Felix, radialista de sucesso na metrópole, está desiludido com sua rotina de vida. Resolve abandonar mulher e filhos, mudando-se para uma pequena cidade balneária do litoral de São Paulo. Arruma emprego em uma modesta estação de rádio local e passa afogar sua frustração em jornadas etílicas com o amigo Goiaba. Ao mesmo tempo, envolve-se com duas mulheres: uma jovem local e uma intelectual que está ali para concluir sua tese de mestrado. O dono da estação em que Celso trabalha é um empresário do ramo imobiliário, que mantém a emissora por exigência de sua jovem filha Paula. As coisas parecem tranqüilas para Celso, quando surge Rivaldo Menezes, velho amigo e mentor profissional, que tenta novamente envolvê-lo na sedução capitalista, no jogo do poder e da concorrência desleal. Rivaldo é um profissional em fim de carreira, que quer convencer o empresário a vender a rádio para o concorrente, e assim ganhar uma alta comissão. Para alcançar seus objetivos, não hesita em empurrar a própria companheira, a sensual e calculista Ângela, para o amigo. Comentário: Sob a superfície de um melodrama romântico e erótico se esconde outra questão. Não é o conflito que importa ao realizador, mas sim o mergulho no interior de um personagem desagradável, scorcesiano, em permanente questionamento de si mesmo. É também um dos filmes mais lineares do diretor. Em última análise, discute o direito do recomeçar permanentemente. Esse abandono e tentativa de recomeço serão novamente abordados em Filme Demência. Mais uma vez surgem temas recorrentes da obra de Reichenbach: a fuga para um local distante, a impossibilidade do isolamento absoluto e o embate cotidiano do indivíduo culto com os pequenos fascismos cotidianos. Impressões: Misógino e verborrágico, O Paraíso Proibido faz a apologia do individualismo libertário. Como diz o personagem central: É meu direito não fazer porra nenhuma; sobretudo, coisas que não valem a pena. Ele é um inconformado que, ao buscar uma vida provisória, tenta encontrar o seu espaço no universo. O Paraíso Proibido faz referência a O Amigo Americano de Wim Wenders. Ambos narram a história de uma amizade antiga e incômoda. Este filme é o menos valorizado pelos meus amigos, embora minha mulher diga que é a minha cara. Pessoalmente, gosto muito dele, talvez por ser o mais simples de todos. Talvez por seu matiz lilás que me transmite equilíbrio e graça. Mais uma vez, a fonte de inspiração foi o cinema dos sentimentos de Valério Zurlini. Celso Felix tem relação com o personagem de Alain Delon em A Primeira Noite Da Tranqüilidade. Filmei O Paraíso Proibido lendo diariamente os poemas de Jorge de Lima: Vinde vós da cidade para o campo, onde existe a aventura da malária. 1982 A Rainha do Fliperama Episódio de 30 min do longa-metragem As Safadas Escrito, fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Diretor de produção: Eduardo Santos. Montagem e edição Éder Mazini. Produzido por Antônio Polo Galante. Elenco: Zilda Mayo, Wilson Sampson, Carlos Koppa e Jonia Freund. Colorido. Local das Filmagens: São Paulo. Estreou em São Paulo no dia 10 de Maio de 1982, nos cines Marabá, Gazetinha Centro, Amazonas e circuito Sul. Sinopse: Tenório, um bancário medíocre de 30 anos, descobre que seu casamento está em frangalhos. Perambulando pela noite, entra desnorteado em um fliperama no centro de São Paulo. Espectador de uma partida movimentada, com apostas em dinheiro, reconhece Reginéia, sua namorada de infância. Analfabeta, mas linda e cheia de vida, ela agora vive de sua habilidade com as máquinas e é explorada pelo rufião e despachante Giba. Feliz em reencontrar Tenório, Reginéia leva-o para conhecer o sobrado onde vive com o amante. Os dois encontram-se no centro de São Paulo, e passeiam de mãos dadas pela Praça da República, tal como faziam anos atrás. O bancário, para desespero de Giba, convence Reginéia a rever o bairro operário onde cresceram juntos, e visitar a mãe, que a expulsou de casa quando jovem. Os três personagens empreendem uma volta ao passado, mas as pessoas já não são mais as mesmas, da mesma forma que a cidade. Tenório e Reginéia acabam concluindo o relacionamento que deixaram de fazer quando jovens, mas o bancário se revela incapaz de retribuir o carinho e a alegria que ela esbanja. Reginéia volta às máquinas de fliperama, revigorada e dona de si mesma, agora com o passado resolvido. Comentário: Boa idéia que se ressente da produção feita às pressas, com pouca verba. Reichenbach aceitou o convite do produtor Galante e dirigiu um dos episódios em tempo recorde. Do início das filmagens ao lançamento nos cinemas foram três meses. Apesar dos recursos mínimos A Rainha do Fliperama tem seus méritos. É outro trabalho na linha intimista dos filmes femininos do diretor. Reginéia tem relação com a Maria de Lilian M., com a Rita de Amor, Palavra Prostituta, bem como com a manicure Aninha de Anjos do Arrabalde e, de certa forma, com a prostituta Anésia, de Alma Corsária. Na cena final da frustrada tentativa de amor entre Tenório e Reginéia, Reichenbach lê pessoalmente trechos do poema O Marinheiro de Fernando Pessoa. O longa-metragem As Safadas inicia-se com o episódio de Reichenbach. Na seqüência, vem o episódio Aula de Sanfona, que marca a estréia na direção do montador, roteirista e crítico Inácio Araújo. A trilogia se completa com Belinha, A Virgem, de Antônio Melliande. Impressões: O que torna Reginéia fascinante é a sua absoluta falta de angústia. Ela é uma marginal poderosa porque ama a vida e as pessoas que se aproximam dela. O final do episódio, na sua amoralidade, não aponta para a aceitação resignada da prostituição ou da marginalidade. Assim como na última seqüência de Lilian M., o que vinga é a consciência da própria liberdade, que faz com que as duas heroínas voltem para a estrada. O bancário Tenório, com seu baixo astral e egoísmo, é condenado ao pior castigo existencial: continuar vivendo mediocremente, sem compreender a opção de vida dos que o rodeiam. 1983 Extremos do Prazer Argumento, roteiro, fotografia e direção de Carlos Reichenbach. Montagem e edição: Éder Mazini. Produtor Executivo: Jean Garret. Produtores: Embrapi, Helena Filmes e Alfred Cohen. Elenco: Luiz Carlos Braga, Taya Fatoom, Roberto Miranda, Vanessa Alves, Eudes Carvalho, Rubens Pignatari, Rosa Maria Pestana, Marco Rossi, Eduardo Zá, Judith Ferreira Lima, Carlos Reichenbach e a participação de Sandra Gräffi. Colorido, 92 min. Local das filmagens: Jacareí/Cabreúva – São Paulo. Lançado em São Paulo dia 30 de Janeiro de 1984, exclusivamente no cine Windsor. Sinopse: Luís Antônio, professor universitário que teve seus direitos cassados pela ditadura militar, não se conforma com a perda da mulher, uma ativista de esquerda desaparecida. Assim, se auto-exila na casa de campo de sua sobrinha Natércia. Ela e o marido Felipe, burgueses progressistas, trazem a intelectual Marcela e o tecnocrata Ricardo para um fim de semana. Para aproximá-los o casal convence os dois amigos descompromissados a passar o resto da semana no sítio, na companhia de Luís. Marcela, que acaba de sair de um casamento frustrado com um psiquiatra incompetente, inicia uma relação neurótica e ardente com Ricardo. Luís, que vive refugiado na memória e nas visões do fantasma da mulher, acaba tendo despertados seus desejos com o sensualismo latente do casal. É quando surgem de surpresa dois novos persona-gens: Ana Marina, a jovem filha de Luís, e Sérgio Calvino, um jovem dramaturgo. A presença do casal libertário acaba colocando em cheque toda a falsa segurança dos demais personagens. Comentário: Semelhante a Amor Palavra Prostituta, tanto pela ambientação quanto pelos atores principais, Extremos é um drama psicológico na linha do cinema pornô que o diretor fez na Boca do Lixo, com muito sexo e nudez misturados a referências políticas, a exemplo de Ilha dos Prazeres Proibidos. Exílio, utopia, tortura, desejo, marxismo, revolução sexual, desaparecidos políticos, culpa e choque de gerações são ingredientes dessa sua nova investida no cinema da alma. Há uma curiosa participação do diretor à frente das câmeras, como o aluno e ex-amante da desaparecida mulher do professor. Reichenbach considera o roteiro infinitamente superior ao filme realizado. A produção consumiu três semanas de filmagem, vinte latas de trezentos metros de negativo e uma equipe mínima reunida numa única locação. Apesar de considerá-lo um filme menor em sua carreira, admite que Extremos do Prazer tornou sua obra mais conhecida no Brasil, graças aos críticos gaúchos e de outros estados que o assistiram no Festival de Gramado de 1984. O júri presidido por Walter Lima Junior deu a Extremos do Prazer um Prêmio Especial, pela integridade da obra.A produção é da Embrapi, cooperativa que reunia dez técnicos de cinema, entre eles Reichenbach, Mazini e Garret. Em seus dois anos de existência a Embrapi chegou a produzir oito filmes de baixo orçamento. Impressões: Qualquer semelhança com o estilo intimista e existencial, e o formato de produção do cineasta francês Eric Rohmer, não é mera coincidência. Extremos do Prazer foi um desafio que eu mesmo me proponho: reunir meia dúzia de personagens em um único espaço físico e fazer um filme que não ficasse com cara de teatro filmado. É como se estivesse reunindo amigos num sítio de parentes num final de semana e resolvesse filmá-los em Super-8. Este filme repete a idéia de misturar citações eruditas e filosóficas com diálogo coloquial, por vezes grosseiro. Assim como em outros trabalhos, reflito sobre a condição humana. Essa mistura, pouco ortodoxa, conseguiu uma surpreendente relação com o público, atingindo não somente os espectadores do filme erótico e comercial, como também os do cinema de arte, permanecendo várias semanas em cartaz. O expediente de ambientar o filme em poucas locações, já tinha sido a base de A Ilha dos Prazeres Proibidos. Por causa dele, houve quem dissesse que eu era o Eric Rhomer brasileiro, erotizado. Um crítico disse que Extremos do Prazer lembra muito Pauline a la Plage, de Rhomer. A história começa com os personagens chegando de carro na porteira de uma casa de praia. Alguém desce, abre e fecha a porteira, deixando o carro passar e a partir daí a locação passa a ser exclusivamente aquela. Esta é mesma situação inicial de Extremos do Prazer. Até o esqueleto dramático – aparentemente exíguo – é similar aos filmes de Rohmer, inclusive no que se refere à questão da troca dos casais. Há, no entanto, algumas coisas que diferenciam e muito os filmes de um e outro. Em Minha Noite Com Ela (Ma Nuit Chez Maud), um casal fica numa casa de praia, a mulher ardendo de desejo e o homem querendo ler Pascal. No fundo, o cinema de Rohmer é isso: as mulheres querem transar, enquanto os homens, filosofar e jogar conversa fora. Já nos filmes de Reichenbach, como diria o Subcomandante Marcos, todos querem e merecem tudo. 1985 Filme Demência Argumento e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro e diálogos: Inácio Araújo e Reichenbach. Fotografia: José Roberto Eliezer. Cenografia: Campelo Neto. Música original: Manoel Paiva e Luiz Chagas. Montagem e edição: Éder Mazini. Produtores: Éder Mazini, Carlos Reichenbach, Aníbal Massaini Neto. Elenco: Ênio Gonçalves, Emílio di Biasi, Imara Reis, Fernando Benini, Rosa Maria Pestana, Orlando Parolini, Alvamar Taddei, Benjamin Cattan, Vanessa Alves, Renato Master, Roberto Miranda, Claudio Willer e a menina Valeska Canoletti. Colorido, 35 mm. Locações em São Paulo e nas proximidades de Bertioga. Lançado em São Paulo no dia 19 de março de 1987, somente no cine Belas-Artes. Sinopse: Depois da falência de sua pequena indústria de cigarros, o empresário Fausto mergulha no interior de si mesmo. Rompe com a mulher, pega o revólver do zelador do prédio onde mora e sai pela noite de São Paulo em busca de Mira-Celi, seu paraíso imaginário. Em seu trajeto suicida encontra personagens emblemáticos de sua existência obscura: o amigo de infância desonesto, a amante suburbana, o visionário guru, um ex-colega da faculdade que vive de vender carros de segunda mão, o cunhado picareta e seu sócio, que é amante de sua mulher. Nessa viagem, vai topar também com Mefisto, que surge de várias formas, inclusive como uma velhinha. É a eterna busca do conhecimento que o conduz à descoberta de seu próprio espelho. Uma viagem onde o importante não é chegar, mas viajar; um movimento circular permanente que leva Fausto a concluir que nem alma tem para oferecer a Mefisto. Comentário: Uma adaptação personalíssima da lenda de Fausto e sua busca do conhecimento. Goethe, Marlowe, Coleridge, Murnau e as óperas de Mahler e Gounod, são vistas sob sua muito especial ótica urbana. Uma experiência radical que trafega por caminhos pouco usuais no cinema brasileiro. Segundo o crítico Edmar Pereira escreveu na época do lançamento: Uma investigação existencial e filosófica capaz de fascinar ou irritar o espectador. No Festival de Rotterdam de 1986, foi vencedor do prêmio filme inovador do ano. Polêmico, aparentemente desgovernado, carregado de citações literárias, Filme Demência (anagrama de filme de cinema) indica uma nova guinada na obra de Reichenbach. A partir daqui ele passa a se expor em seu cinema. O roteiro é inspirado na sua relação com o pai. Reichenbach, filho e neto de industriais gráficos e editores, perdeu o pai aos 13 anos de idade, e assistiu à perda de todos os bens de família, inclusive a tradicional indústria litográfica que seu avô instalou no início do século. A premiada trilha musical de Manoel Paiva e Luiz Chagas se inspira diretamente na Oitava Sinfonia de Gustav Mahler. Filme Demência é, sem dúvida, seu trabalho mais complexo. É o tipo do filme que deve ser visto mais de uma vez, pois a cada revisão percebemse mais detalhes. A despeito das citações, é um filme no qual a força está nas expressões e gestos. Seria a descida à praia uma espécie de morte onde o protagonista repensa sua vida? Mesmo nos poucos momentos de humor, essa reflexão está presente, como quando ele encontra seus cigarros à venda, ou quando um personagem faz referência à má qualidade deles. Impressões: Filme Demência foi um filme que escrevi pensando num ator, o Ênio Gonçalves e tive que brigar com a Embrafilme, que queria alguém da Globo para o papel. O Ênio é um caso bem atípico. Ele é um dos poucos atores brasileiros que fez curso de realização cinematográfica no Centro Experimentale, em Roma. Eu costumo afirmar que ele é um ator europeu em atividade no Brasil. Ele é econômico, fala baixo e trabalha para a lente 50 mm. Seria perfeito para Bresson, Ozu e Zurlini. A questão é que o Ênio é também um excelente dramaturgo (um discípulo fervoroso de Harold Pinter). Sempre tive a impressão de que ele não se enxerga como galã (aliás, acho que detesta isso). Alguns de seus trabalhos na televisão marcaram época, principalmente quando esteve casado e trabalhava com a atriz Maria Isabel de Lisandra. Eu vi o Ênio pela primeira vez no teatro, fazendo Toda a Nudez Será Castigada, de Nelson Rodrigues, com Cleyde Yaconis e direção do Ziembynski. Ele foi protagonista de Brasil, Ano 2000, de Walter Lima Junior. Como diretor de fotografia trabalhei quatro vezes com o Ênio e desde o primeiro tratamento do roteiro de Filme Demência eu o imaginei como Fausto. Para mim ele é nosso Maurice Ronet (um ator francês genial que foi o protagonista de Trinta Anos Esta Noite, a tragédia existencialista filmada por Louis Malle, filme referência de Demência). Fiquei feliz em voltar a trabalhar com ele em Garotas do ABC. O Ênio é a versão masculina da Vanessa Alves. São atores com quem trabalho num sistema de cumplicidade, sem precisar repetir ad-nauseum o que espero dos personagens. Com o Ênio e a Vanessa a comunicação é feita no olhar. Mesmo achando uma injustiça não vê-lo mais presente no cinema brasileiro acho que, no fundo, o que ele gosta mesmo é de se dedicar exclusivamente a escrever. Eu não o critico porque esse é também o meu futuro projeto de vida. Se não tive problemas para escalar o protagonista de Filme Demência, achar o ator que iria fazer o Mefisto foi uma das tarefas mais árduas que encontrei em termos de elenco. Chegar ao Emílio de Biasi não foi nada simples. Estava procurando um rosto expressivo para fazer o Mefisto. Era uma busca cansativa. Sempre que achava alguém ideal, era muito caro, não tínhamos dinheiro para contratar. Uma das minhas opções era o Ney Matogrosso. Ele começou a carreira como ator, antes de ser músico. Mas ele ficou enrolando o Mazini durante meses antes de recusar o convite. A impressão que eu tinha é que ele estava ou com um pé atrás, sem acreditar muito na produção, ou com medo de representar o diabo em pessoa. No fim, recusou sem discutir preço. Outro que estava nos planos desde o roteiro era Agildo Ribeiro que, apesar de ser mais conhecido como comediante, é um excelente ator dramático. Chegamos a marcar um almoço com ele, para falar sobre o papel. Ele ouviu a história do filme e gostou muito. Queria fazer de qualquer jeito. O Éder Mazini, que era produtor, foi junto e almoçou com o empresário do Agildo. Pior é que o almoço foi no Antonio’s um dos restaurantes mais caros do Rio. Só isso já deu um desfalque no nosso minúsculo orçamento. O Mazini subiu para o andar de cima, onde havia um bar privativo, para conversar com o agente. Eu e o Agildo começamos a festejar nossa parceria. Estávamos radiantes. Aí aparece o Mazini e me chama de lado. Ele esta va branco. Só sussurrou: Vamos embora, vamos embora! Quando saímos à rua, me contou que o salário que o empresário do Agildo pediu era superior ao orçamento que tínhamos para o filme inteiro. Era um valor tão absurdo que não dava nem para oferecer uma contraproposta. O pior é que elenco restante já estava fechado. Só faltava achar o Mefisto. Tínhamos que começar o filme de qualquer jeito porque a inflação estava corroendo nosso orçamento dia a dia. É certo que Mefisto era um personagem complicadíssimo porque o ator teria que fazer seis papéis diferentes. No filme, o Mefisto aparece com várias formas humanas (ou não). Desde assumidamente Mefisto, com a maquiagem característica, até como uma velhinha de setenta anos, a quem Fausto dá carona na estrada. No retorno a São Paulo aconteceu o milagre. No avião, de volta para São Paulo, vi uma foto do Emílio di Biasi no caderno cultural do jornal Folha de S. Paulo, ilustrando uma crítica da peça de teatro que estava sendo encenada no Teatro Paiol. Ao invés do jornal colocar a foto de alguém do elenco, usaram uma do diretor. Na mesma hora pensei, Este é o meu Mefisto. Cutuquei o Éder, mostrei a foto e disse: Mefisto. O Éder me olhou e respondeu: Você está louco, esse cara é diretor! Respondi que sabia que ele também era um ótimo ator. No dia seguinte fomos ao teatro onde a peça estava em cartaz. Explicamos que estávamos procurando um ator para um filme. Os jornais já haviam noticiado que iria ser filmada em São Paulo, uma versão livre do Fausto de Goethe. Quando perguntaram com quem iríamos falar, todos estranharam nosso interesse justamente pelo diretor da peça. O próprio Emílio, quando nos recebeu, não acreditou. Mas por que eu? Mostramos a foto no jornal. Claro que não foi só a foto. O Emílio tinha um currículo respeitável e já tinha trabalhado com o Antonio Bivar. E tinha a fisionomia ideal. Apesar de surpreso, ele gostou muito da idéia. Além de diretor, o Emílio tinha formação de ator na Itália. Por conta disso, acabou tendo um desempenho extraordinário (ganhou o prêmio em Gramado) e passou a ser quase um ator-fetiche, atuando em diversos filmes meus. Só não atuou em outros porque não teve tempo livre. Tenho três roteiros que gostaria de filmar com ele: em especial, O Amigo Católico, em que gostaria que interpretasse um padre, que aos 60 anos se descobre médium e abandona a igreja. Filme Demência é o filme no qual eu mais me expus. Nele revisitei a perda do principal vínculo familiar e, de certa forma, fiz as pazes com meu pai. O filme foi feito não só para refletir o processo de perda de identidade mas, também o fracasso econômico do País com a conseqüente decadência moral que acompanha todas as inflações. O filme trata de herança, da perda de relações e bens familiares. Fausto perde a sua empresa familiar, uma pequena indústria de cigarros, devorado pelo avanço das multinacionais. No auge do governo militar, de 1971 a 1976, isso estava acontecendo em quase todos os setores da economia. Era uma catástrofe. As multinacionais estrangeiras tinham mais apoio do governo para investir no país do que as empresas brasileiras. Pode-se dizer que foi declarada guerra à pequena indústria, ao artesanato, ao que eles chamavam de anarquia econômica do país. E foi justamente nesse período que entrei de sócio na empresa de publicidade Jota Filmes. Senti de perto os efeitos do governo Médici. Essa questão de ser herdeiro sempre me interessou. Já no primeiro roteiro que escrevi com o Jairo Ferreira, assim que saí da Escola Superior de Cinema São Luis (chamado Pecados do Arrabalde), busquei mostrar a decadência de um herdeiro de uma pequena indústria gráfica. Nem preciso dizer que era autobiográfico. Ele acabava ficando com aquele monte de máquinas impressoras dentro de sua casa e as acabava usando para imprimir panfletos políticos e subversivos para terceiros. Depois um amigo picareta alugava as impressoras para imprimir revistas pornográficas. Já nesse roteiro, surgia um personagem inspirado na figura mitológica de Faetonte, o filho de Apolo que perde o carro de fogo paterno. O herdeiro e seu fracasso. Em Filme Demência, optei por uma indústria de cigarros para tirar fora qualquer vínculo cultural da questão da falência. Além disso, vi também muitas pequenas fábricas artesanais de cigarro serem fechadas por pressão das majors do tabaco, já que muitas delas imprimiam suas embalagens na gráfica de meu pai. Também quis fazer uma indústria de cigarros chamada Fênix, para ironizar a tentativa de ressurgir das cinzas. Outro aspecto interessante é que falência significa também quebra de tradição familiar. Fausto vinha de uma linhagem de pequenos industriais do cigarro, da mesma forma que minha família tradicionalmente trabalhou com gráficas. Em meio à perda financeira, Fausto vê seu casamento desmoronar. A cena em que ele tenta manter relações com a mulher que está dormindo é um retrato desse desespero, um homem buscando um tijolo de segurança, tentando salvar resquícios do seu casamento. É uma coisa meio animalesca, você não sabe se ele está torturando ou beijando, amando ou matando a mulher. Ele chega a mordê-la no sexo num ápice antropofágico de desespero. Na mesma seqüência, ele corta o vestido da mulher com uma gilete que carrega na boca. A idéia foi remeter ao surrealismo, mais precisamente à cena do olho cortado em O Cão Andaluz, de Buñuel. O filme se permite um mergulho surrealista. Mas também busco trazer à tona a questão da dor física e da dor da alma com todos os expedientes do realismo mais feroz. Quis deixar claro ao espectador que Fausto não tem mais freios. Quando ele sai de casa para o que seria uma descida aos infernos, ele está se jogando de cabeça no abismo. Tanto que a primeira frase do filme é Eu falhei! Na consciência do fracasso ele conhece o calvário das sombras. Só assim vai poder encontrar o rumo de Mira-Celi e se convencer de que essa ilha fictícia existe. Uma das leituras interessante que ouvi a respeito do filme foi de que o Fausto teria se suicidado e já estaria morto na sua descida ao inferno em busca de Mira-Celi. É uma leitura possível, ou seja, que ele seria um fantasma. Acredito que este seja meu filme mais aberto a interpretações. Ele foi feito com essa intenção. Estou sempre interessado na opinião das pessoas. O que o filme propõe é uma viagem, sem a obrigação de chegar a lugar algum. Isso é dito textualmente no filme. O importante é viajar, e não chegar. Ao mesmo tempo ele fecha com a idéia do eterno retorno, gerando uma coisa cíclica. Quando o filme foi exibido, constantemente vinha alguém dizer que tinha uma leitura diferente da minha. É exatamente isso que o filme propõe. Não quero leituras iguais à minha, não quero o espelho. Quero provocar outras interpretações, talvez muito mais interessantes que a minha. Filme Demência é também um tributo a Luis Sérgio Person. Ele pode ser visto como uma releitura de São Paulo S.A. Pedi ao Manuel Paiva e ao Luis Chagas, compositores da trilha sonora, que fizessem uma variação do tema de abertura de São Paulo S.A. Enquanto no filme do Person, São Paulo é mostrada de cima para baixo, em Filme Demência, quando Fausto vai embora, a cidade é mostrada de baixo para cima. São Paulo S.A. trabalhava também a questão do eterno retorno. Em São Paulo S. A., Person condena o seu personagem a um destino muito pior. Ele dorme no banco de trás do caminhão imaginando chegar a sua nova Mira-Celi, mas quando acorda descobre estar sendo conduzido de volta a São Paulo. Uma coisa que eu só fui descobrir depois que o filme estava pronto é que o início dos dois filmes são idênticos. Tanto Fausto quanto Carlos saem de casa (e de São Paulo) após romperem com a mulher. Em Filme Demência, no entanto, há uma leitura final contraditória quando irrompe a questão do espelho. A filha é o espelho do personagem. É ela quem está acordando do pesadelo. É ela quem está em todos os lugares. No fundo, a filha é ele mesmo, sua única parte inocente que sobrou em meio ao caos. A questão do espelho é uma coisa trabalhada quase que obsessivamente ao longo do filme. E o espelho é um elemento essencial do surrealismo, presente em obras de poetas fundamentais como André Breton e todos os outros que trabalharam a questão do duplo. Acho que o surrealismo foi a grande revolução na arte do mundo moderno, porque representou a ruptura com a tradição e o realismo. O surrealismo trouxe à tona a questão da imaginação na criação, ao eleger o sonho a matéria-prima da invenção. Breton é presença explícita no filme, que não esconde suas origens em nenhum momento. Outra influência forte é o Haroldo de Campos. É por isso que mostro no filme, a capa de seu livro Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. Ele nos revela Goethe como um grande plagiador, o homem que transformou o plágio em obra de arte. Ele fala desse processo de carnavalização, no qual a melhor criação nada mais é do que uma releitura, uma reciclagem das coisas mais importantes que o autor leu, sonhou ou vivenciou na vida, ou seja, suas influências. Recentemente Bertolucci pediu autorização a Godard para usar cenas de um de seus primeiros filmes no longa-metragem que estava concluindo sobre a geração culta dos anos 60. Godard respondeu que depois de 20 anos, nenhum autor tem mais direitos sobre sua obra, só deveres. Godard é outro bom plagiador, que atua criativamente na seara das citações e das referências. Eu também não concordo com a idéia mercantilista de direito autoral. Acho que depois de um período de exploração comercial, ou que o autor da obra (fílmica, musical, literária, etc) morresse, todos os direitos autorais (não físicos) deveriam se tornar públicos depois de quatro anos. É tempo mais que suficiente para que herdeiros, picaretas e urubus constituam um pé-de-meia. Depois disso, a obra de arte deve ficar à disposição dos que realmente a apreciam. Para chegar nesse Fausto, li todos os Faustos da literatura. Eu não conseguiria mais separar qual é qual, mas o filme está impregnado de citações de diferentes Faustos. O Fausto de Fernando Pessoa, por exemplo, ou o de Coleridge. Mas o que me interessa no filme é a sua leitura existencialista, que vem de Kierkegaard, aquela coisa de dividir a experiência existencial em estágios. Você consegue compreender o homem através destes estágios. Há o Fausto, que busca o conhecimento e quase vende a alma; há o Don Juan, que representa a busca da paixão, mas não consegue se entregar a ninguém; há o judeu errante, que simboliza a busca de raiz, de um paradeiro, de uma pátria e de Mira-Celi. Esses personagens sintagmáticos me interessam muito e estão presentes na minha obra desde Amor, Palavra Prostituta. Em Extremos do Prazer, eu cito textualmente o Tratado do Desespero, de Kierkegaard. Na cena final, aparece o caderno em que o protagonista anotava suas observações em vida. Nesta folha, o detalhe do sangue pingando em cima da frase: No desespero, o morrer continuamente se transforma em viver. Quem desespera, não pode morrer. Kierkegaard afirmava que todo ser humano deveria vivenciar os estágios estético, ético e religioso. Meu Fausto estaria, ainda, no estágio estético. Em relação ao filme lidar com a minha questão paterna, uma coisa é certa: se tivesse que culpar meu pai por alguma coisa, seria pelo fato de ele ter morrido muito cedo. Perdi meu pai na véspera de fazer 14 anos. Foi traumático demais. Era uma pessoa muito especial para mim. Um homem obcecado por enciclopédias. Por causa dele, tenho paixão por livros. A maior herança que ele me deixou foi a sua biblioteca. Eu leio compulsivamente desde os oito anos de idade. Aos nove já lia Somerset Maughan e John Steinbeck. Isso acontecia mais pela facilidade de acesso. Os livros estavam lá, nas estantes abarrotadas. Era só pegar e ler. De certa forma, fazer esse filme foi uma maneira de exorcizar essas influências, de trabalhar antropofagicamente minha gulodice literária. Não estou querendo intelectualizar o filme, muito ao contrário; ele trafega conscientemente entre a erudição e a Boca-do-Lixo, a inteligência e a malandragem, a inocência e o cinismo, a transformação e a decadência. Se você for conferir, isso está presente em toda a minha obra, desde Corrida em Busca do Amor. O crítico Jairo Ferreira definiu o estilo de O Império do Desejo da seguinte maneira: Vocês acabaram de ver uma mulher nua deliciosa, ouviram o melhor da música universal; agora tomem uma lição de Proudhon: a propriedade é um roubo! Meu grande desafio, em Filme Demência, foi encontrar um equilíbrio perfeito entre os contrastes, mas sem abdicar de buscar o limite dos excessos. Um sinal dessa dualidade está nos títulos dos filmes que estão sendo exibidos no cinema em que Fausto e Mefisto se cruzam. Lá estão, lado a lado: o clássico O Tigre de Bengala, de Fritz Lang e o pornográfico e canhestro Edifício Treme-Treme, de Nílton Nascimento. O confronto óbvio entre cultura e baixaria que permeiam meu filme. Pensei em terminar com outra citação: Todo excesso conduz à sabedoria. Isso é William Blake, outro poeta tão maldito e fundamental quanto Goethe. O filme está repleto de citações de autores malditos, que sempre me fascinaram. O projeto original, que se chamava O Último no Paraíso, era um filme bem mais pretensioso. Um intelectual que eu gostaria de ter homenageado em Filme Demência era o Maurício Tratenberg, mas devido à sua idade avançada, a própria família me fez mudar de idéia. Na última hora, fui buscar meu amigo pessoal, o poeta Claudio Willer, embora ele fosse muito jovem para o papel imaginado no roteiro. A presença do Cláudio Willer, como ele mesmo, lendo seus poemas, é minha homenagem a esse importante poeta, que introduziu a literatura e a poesia beat no Brasil. Willer foi, inclusive, o tradutor oficial de Allan Ginsberg, seu amigo pessoal. Curioso pensar como, às vezes, as pessoas que menos imaginamos são as que colocam mais empecilhos na concretização de homenagens ou coisas semelhantes. Em Alma Corsária, eu quis homenagear o Cid Franco, que considero o pai do socialismo no Brasil. O pessoal da produção disse que a família não viu a homenagem com simpatia. A idéia era colocar uma foto dele no meio de fotos de ícones que mudaram politicamente o mundo. Diante dela, um personagem perguntaria: Quem é esse cara? O outro responderia Éo Cid Franco, imbecil! Quem, aparentemente, vetou a homenagem foi justamente seu filho, Walter Franco, um criador musical pelo qual sempre tive a mais profunda admiração. Confesso que fiquei chocado. Cresci ouvindo pessoas que respeitavam e falavam coisas belíssimas a respeito de Cid Franco, um utopista da melhor estirpe. Utopistas são seres especiais que considero exemplos de vida. Meu ídolo brasileiro sempre foi o maior dos utopistas: José Oiticica – o pai de Hélio e Sonia – anarquista por convicção e vocação. Ainda sobre Filme Demência, uma informação importante é que a produção do filme foi planejada tendo em vista as limitações financeiras de produção. Foi feito com pouquíssimo dinheiro. Foi o único filme que fiz com a Embrafilme no exato momento em que essa estatal estava passando por sua pior crise econômica. Parei minha vida durante um ano em função deste filme. Nunca tinha acontecido isso antes em toda a minha carreira. Eu e o montador sobrevivemos, naquele período, à custa das nossas mulheres. A gente mal conseguia dormir durante seis meses, obcecados que estávamos, com a necessidade de terminar o filme. Não podíamos falhar com a estatal. Seria nosso suicídio como produtores independentes. Esse filme foi concluído graças à sua necessidade intrínseca de existir. Meu relacionamento com a Embrafilme começou quando inscrevemos o projeto de longa metragem chamado Propriedade Privada, escrito a seis mãos, com o J. C. Ismael e o Inácio Araújo, num concurso aberto para produção de novos filmes, que vencemos. Sua realização previa a participação do Adolfo Celi como ator principal, no papel de um industrial de origem italiana. Nós já o tínhamos contatado e o filme marcaria sua volta ao Brasil, já como ator consagrado internacionalmente. Paralelamente eu trabalhava no roteiro de O Último no Paraíso (para uma produção de pequeno porte de Antonio Polo Galante), misturando o Fausto de Goethe com minhas experiência pessoais. Quando eu decidi misturar minha vivência com o herói de Goethe, a coisa virou uma obsessão para mim. Só conseguia pensar naquela história. Propriedade Privada ganhou o tal concurso da Embrafilme, mas naquela época o dinheiro demorava muito para sair. Eram meses e meses de espera. Na época do concurso, o presidente da Embrafilme era o Roberto Parreiras, mas só fomos ver a cor do dinheiro quando o Carlos Augusto Calil ocupou o cargo. Entre as primeiras páginas de Propriedade Privada serem escritas até o dinheiro da Embrafilme cair na nossa conta, passaram-se mais de oito anos! Nem queria mais filmar aquilo. Eu só pensava na minha história sobre o Fausto. O problema é que Propriedade Privada era um filme a ser realizado em apenas uma locação: à beira de uma represa (tal como em Império do Desejo, Extremos do Prazer e Dois Córregos). Isso barateia muito uma produção. Como tinha alguma amizade com o Calil, resolvi abrir o jogo. Ele leu o primeiro tratamento de Filme Demência (novo nome de O Último no Paraíso) e quase caiu de costas: Mas isso é muito mais difícil de filmar. Vai ser quase impossível fazer esse filme com a verba que vocês têm e, para conseguir mais, vai ser outra novela de seis anos! Respondi que não haveria problema, que nossa produtora se comprometia a realizar o novo projeto com aquela verba. Só com a Embrafilme eu conseguiria filmar meu Fausto. Nenhum produtor da boca-do-lixo iria colocar dinheiro num roteiro como aquele. Calil entendeu minhas razões e resolveu comprar a briga. O duro foi adaptar o roteiro às limitações de orçamento. Tive de cortar muitas seqüências interessantes, mas complicadas de realizar. Meu sonho era fazer a abertura do filme com um plano de helicóptero do alto-mar para a praia, na direção da restinga de Marambaia, mostrando o filete de terra que vai se alargando até o continente, e chegar até o protagonista andando, de terno e gravata, sem rumo, em meio à desértica região. Essa era a essência do filme inteiro. Mas não foi possível filmar. Para piorar, por conta da crise da Embrafilme, as parcelas do dinheiro demoravam muito a chegar. Fui obrigado a interromper as filmagens por três vezes. Chegamos a ficar quatro meses parados esperando o dinheiro cair na nossa conta. Um pesadelo. Quando voltávamos, era preciso refazer toda a equipe. Aquela parte que Fausto encontra o guru Orlando Parolini em meio às ruínas apocalípticas, tinha sido planejada para ser filmada em cenários sofisticadíssimos. O roteiro previa um quarto em que chovia dentro. Era uma leitura dos paraísos artificiais do Baudelaire. Por sorte achamos aquela locação, uma antiga instalação da Fepasa, caindo aos pedaços. O guru originalmente era um casal que habitava o tal cenário baudelairiano, referência explícita a outros casais míticos: John Lennon / Yoko Ono; Salvador Dali / Gala. Acabei condensando tudo no guru chamado Honduras, o visionário fascinante e decadente. Os textos apocalípticos e as citações que seriam proferidas pelo casal emblemático foram todas reaproveitadas nos diálogos do guru. Na verdade o resultado final acabou tornando a idéia muito mais pertinente. Fazer cinema, sem dinheiro, às vezes, tem dessas coisas. Mas esse negócio de parar quatro ou cinco meses, para ver o que acontece, é um calvário que eu não desejo a nenhum diretor. Esse filme só foi concluído graças à dedicação total dos dois atores principais: o Ênio Gonçalves e o Emílio de Biasi. Eles também pararam tudo durante todo o período. Na segunda parada, por exemplo, o diretor de fotografia não pôde voltar, pois já tinha contrato assinado com outra produção. Fotografei eu mesmo apenas as cenas de estrada, porque elas não exigiram iluminação artificial. Nessa etapa nós trabalhamos com uma equipe de 12 pessoas. Começamos com 35. Depois da primeira interrupção, tínhamos 23 e acabamos com 12. Foi heróico. Por sorte, acho que o espectador não percebe isso. Manter a qualidade na adversidade é o grande desafio do cinema brasileiro. Nesse sentido, meu primeiro filme, Corrida em Busca do Amor foi uma escola. Quando você não tem recursos humanos sofisticados e nem dinheiro, mas tem negativo, equipamento básico e uma equipe entusiasmada à disposição, você tem que inventar o que filmar. Minha escola de cinema é a da escassez. O conceito era: quando você não tem o que gostaria de ter, procure fazer o melhor usando a criatividade. Em Filme Demência, a imagem chave, para mim, é a cena em que ele abre um pôster de Mira-Celi e ele se vê dentro da foto. No fundo, todo filme é um jogo de espelhos e essa cena é a chave do enigma. Na parte final, ele vai atropelar um espelho com a imagem da filha, que representa a extensão de si mesmo. Fausto busca destruir o seu reflexo, mas quando acorda e dá de cara com a filha, seu duplo, e descobre que a viagem nem começou. O filme é antes de mais nada a proposta de uma viagem. Para mim isso é a essência do cinema. Por isso ele é meu filme mais aberto. Outra curiosidade é que Filme Demência foi a minha película de menor público. Acontece que este filme é pessimista e mostra as seqüelas de uma indústria falida e o inferno de industriais derrotados. No entanto, foi lançado comercialmente em meio à falsa euforia do Plano Cruzado, quando os preços estavam congelados e as pessoas tinham dinheiro no bolso para consumir. Ninguém queria saber de filmes pessimistas em meio à farra consumista. Lembro de uma sessão no Riocine. Um espectador saiu no meio da sessão, reclamando que não estava lá para ver cinema existencialista. Outros disseram que aquele não era o Brasil de que estavam vivendo, que o filme era antinacionalista. Ironicamente, essa euforia não durou mais que oito meses. Depois desse período, as coisas pioraram e a realidade ficou ainda mais dramática que a retratada em Filme Demência. Para piorar, em São Paulo, o filme foi lançado em meio a uma greve de projecionistas. Aquela foi uma época repleta de greves. O Éder Mazini, produtor do filme, chegou a ficar na bilheteria e eu na catraca recolhendo ingressos, para garantir público pagante com renda mínima para que o exibidor não retirasse o filme de cartaz. Conseguimos ficar três semanas em uma das menores salas do cine Belas-Artes, mas o resultado foi muito ruim, mal chegando a 10 mil espectadores. Em compensação, é o filme que mais me deu retorno no sentido de influenciar para melhor a vida das algumas pessoas. Na época, duas ou três pessoas vieram me cumprimentar dizendo coisas como Parabéns, esse filme mudou minha vida. Depois dele eu resolvi voltar a estudar! Pelo menos umas dez pessoas vieram agradecer o bem que o filme fez à vida deles. Em Vitória, Espírito Santo, um músico veio me dizer, aos prantos, que tinha começado a entender melhor suas limitações como ser humano após ter visto o filme. Anteriormente, em nenhum de meus outros filmes, eu havia percebido tão profundamente a pertinência do meu meio de expressão. Isso para mim, hoje, é a coisa mais importante do cinema. Minha vida mudou após ter visto Dois Destinos de Valério Zurlini e Contos da Lua Vaga de Mizogushi, por exemplo. Engraçado como as pessoas falam impressionadas dos filmes-fenômeno de bilheteria e que fazem três, quatro milhões de espectadores. A mim isso realmente não diz nada. Já tive filmes que fizeram quatro milhões de espectadores e nem estão entre os que mais gosto. Justamente aquele que me deu menos público foi o que me deu mais retorno humano. É esse tipo de retorno que me motiva a fazer cinema. Só importam realmente os filmes que de alguma forma sirvam para o aperfeiçoamento de quem o assiste. Júlio Bressane tem uma frase que eu acho perfeita: A ciência tem a obrigação de aperfeiçoar o mundo. A arte tem a obrigação de aperfeiçoar você. Filme Demência é o meu filme mais repleto de citações e referências a clássicos. Muita gente o acha pretensioso. Não posso fazer nada. Sempre li muito desde menino. Aqui eu escancaro a minha avidez intelectual, mas também me exponho de corpo e alma. Mostro minhas fraquezas, como se estivesse colocando de corpo e alma dentro da obra. Ouvi comentários de críticos que respeito me condenando: O cara agora ficou pedante! O que eu posso fazer? Tentei exorcizar todos os maneirismos e a afetação da minha formação cultural com este filme. Fui instigado – mesmo que espontaneamente – desde a infância a me tornar um intelectual de ponta. Essa sempre foi a expectativa de meus pais e uma questão me incomodou durante muito tempo. Naquele episódio de Audácia – A Fúria dos Desejos, que eu dirigi, chamado A Badaladíssima dos Trópicos, há uma cena em que dois personagens discutem. Um deles chama o outro de intelectual e ele fica furioso. Pega o rival pelo colarinho e grita: Intelectual é a tua mãe. Me xinga de filho-da-puta, mas não me chame de intelectual! A anedota diz tudo. Talvez por isso eu tenha me sentido tão bem na Boca do Lixo. Resumindo, em Filme Demência, exorcizo essa formação intelectual, a relação paterna que não houve e o complexo de Faetonte. Enquanto fizer filmes, quero trabalhar essa busca do conhecimento absoluto. Eu sou Marcos, mas também sou Fausto, aquele que está pronto a vender a alma ao Diabo em busca do conhecimento. Para a fotografia de Filme Demência eu chamei o José Roberto Eliezer, o Zé Bob. Ele possuía uma sensibilidade única para filmar em ambientes noturnos. Eu queria retratar São Paulo à noite exatamente como a enxergava cotidianamente. O Zé Bob tinha essa ousadia de tentar registrar a noite paulistana com sua luz natural. Já tinha visto curtas e documentários dele e achei que era exatamente o que eu precisava. Foi ótimo trabalhar com o Zé, que se tornou um cúmplice durante o processo. O filme tem uma longa seqüência rodada na rua 24 de Maio, que nós filmamos entre 20h e 23h, durante dois dias, exatamente depois que os lojistas apagam as luzes. Assim, a iluminação da cena ficou por conta dos luminosos restantes e pouquíssimos refletores de reforço. A iluminação artificial era usada somente para levantar um rosto ou um detalhe. Queria captar a atmosfera daquele ambiente que Fausto freqüenta, que na verdade era o ambiente que eu e meus amigos freqüentávamos todos os dias. Há uma seqüência que foi rodada em frente à antiga loja Isnard, cujos luminosos noturnos tinham uma cor horrorosa. Depois da meia-noite as lojas vizinhas fechavam e a Isnard deixava as suas luzes internas acesas até três da manhã. Era uma luz esquisita, meio esverdeada – ou furtacor, como dizia um assistente – mas deixava as pessoas que andavam na rua parecendo almas penadas. Acho que só o Zé Bob poderia captar aquilo. Essa também era a luz noturna da Boca do Lixo. Importante lembrar que o resultado nada teve a ver com o neon realismo da década seguinte (que é a denominação referente a uma tendência dos anos 80, de filmar cenas noturnas aproveitando o colorido das luzes neon, como Cidade Oculta e Anjos da Noite, ambos fotografados por Zé Bob). Quando a luz é avermelhada, de mau-gosto, é porque o ambiente é de mau-gosto. O curioso é que, com todos esses cuidados para deixar o filme sujo, ele acabou ficando com uma luz requintadíssima que, para falar a verdade, eu não buscava. Mas acho que se o filme tivesse metade do visual sujo original, a Embrafilme não teria topado produzir. 1986 Anjos do Arrabalde Escrito e dirigido por Carlos Reichenbach. Fotografia: Conrado Sanchez. Cenografia: Sebastião de Souza. Música original de Manoel Paiva e Luiz Chagas. Montagem e edição: Éder Mazini. Produtor Antônio Polo Galante. Elenco: Betty Faria, Clarisse Abujamra, Irene Stefânia, Vanessa Alves, Ênio Gonçalves, Emilio di Biasi, José de Abreu, Ricardo Blat, Carlos Koppa, Chica Burza, Kiko Guerra, Silas Gregório, Elaine Marcondes e Nicole Puzzi. Colorido, 104 minutos Local das Filmagens: São Paulo (Vila Mirante e Pirituba), Itanhaém e Praia Grande. Lançado em São Paulo no dia 19 de fevereiro de 1987, nos cines Ipiranga 1, Art-Palácio, Astor, Center-Iguatemi e Vila Rica. Sinopse: Drama realista sobre três professoras e uma manicure que tentam sobreviver dignamente em confronto com o hostil ambiente de um bairro periférico de São Paulo. Carmo abandonou o ensino por pressão do marido machista, o ex-policial e atual advogado de porta de cadeia Henrique. Dália, eficiente e dedicada na profissão, sustenta um irmão problemático. Apesar do estranho relacionamento afetivo com o rico editor Carmona, é malvista na escola por suas preferências sexuais pouco ortodoxas. Rosa é uma mulher solitária, e dentre as três, a que não nasceu para lecionar. Severa e rude com os alunos, mantém uma relação extraconjugal com o inspetor de ensino Soares. Aninha é a manicure pobre, que vive com o operário João, cuja tragédia pessoal irá transformar estas vidas tão comuns em manchete de jornais sensacionalistas. Comentário: Votado pela crítica brasileira como um dos melhores filmes da década de 80, Anjos do Arrabalde retrata as conseqüências da violência urbana no cotidiano da classe média brasileira. Reichenbach mergulha em seu imaginário a respeito do universo feminino submetido à violência machista que estigmatiza certas regiões em São Paulo. Nelas, observa-se o seguinte fenômeno comum nas cidades de médio e grande porte: a classe média começa a se instalar, empurrando as classes pobres para regiões mais distantes. É esse progresso desordenado, aliado e motivado pela crise e o desemprego que gera a violência latente no cotidiano dos subúrbios. É essa agressividade incontrolável que interessa ao realizador registrar. Como em seus outros filmes tidos como femininos, Reichenbach retrata a sua admiração por mulheres fortes e independentes. Quando Anjos do Arrabalde foi exibido no Festival de Rotterdam de 1987, o diretor foi chamado de Heterossexual de alma feminina. Para alguns críticos Anjos é um filme atípico na carreira do diretor. Mas esse estilo hiperrealista já se esboçava no curta Sonhos de Vida, no longa Amor, Palavra Prostituta e viria a consolidar-se em Garotas do ABC. De certa maneira é seu filme mais influenciado pelo ídolo Valério Zurlini, que o diretor considera o cineasta que melhor filmava sentimentos. O filme marcou a volta de Antônio Polo Galante à produção de cinema, após três anos curiosamente dedicados à suinocultura. Anjos do Arrabalde ganhou vários prêmios de melhor filme do ano, incluindo o do Festival de Gramado. A Cinemateca Real de Bruxelas concedeu-lhe o Prix L’Age D’Or -87. Impressões: Anjos do Arrabalde talvez seja meu filme mais popular. Foi sem dúvida o mais bem recebido pela crítica e o mais facilmente entendido pelo público. Também foi a filmagem mais feliz em termos de realização, já que o orçamento era bem razoável e o dinheiro não atrasou, ou seja, não houve interrupção de filmagem. O produtor era o Antonio Polo Galante e foi a primeira direção de produção da Sara Silveira. Ele teve boa carreira internacional, sendo o único filme brasileiro exibido na mostra The Cutting Edge, nos Estados Unidos, além de ter entrado em cartaz em mais de 30 cidades americanas. Uma coisa que ajudou muito foi que o Galante se apaixonou pelo filme durante as filmagens. Ele começou a ver os copiões e gostou demais do resultado, isso no meio do processo. Aí, começava a querer que o filme ficasse o melhor possível. Era comum ligar de manhã e dizer Amanhã eu te arrumo uma grua... Pior é que eu tinha que recusar, pois não estava precisando nem podia parar tudo e esperar a grua chegar. Eu respondi: Olha, me dá a grua no dia que eu pedir. Não fica me oferecendo o tempo todo! Claro que nem tudo foi perfeito. Lembro de um problema, justamente numa locação maravilhosa: um pequeno prédio do BNH que serviu de cenário para o apartamento da solitária Rosa. Um dia antes de filmar um plano geral do prédio onde se destacava a janela do apartamento de Rosa, com a luz acesa na madrugada (a única janela iluminada), ela no interior corrigindo as provas dos alunos e acentuando a sua solidão imensa, eu e o fotógrafo Conrado Sanches descobrimos que era possível incluir no plano, uma lua cheia imensa e prateada que ocuparia o terço esquerdo do enquadramento. Exultamos, porque uma oportunidade destas só surge muito raramente. A filmagem foi perfeita; o plano ia ficar deslumbrante. Quando mandamos o negativo para a revelação, houve um problema – surgiu areia no banho químico – e o negativo ficou todo riscado. Literalmente, entrou areia. Para refazer aquele plano e toda a seqüência rodada naquela noite, foi uma odisséia. A dona do apartamento nem quis saber de conversa com a produção. Como ela estava se separando do marido, ele ficou uma fera quando descobriu que ela havia alugado o apartamento para uma filmagem. Acho que aquele incidente foi o maior desafio na carreira da Sara Silveira como diretora de produção. Ela discutiu feio com o marido da mulher e acabou conseguindo que o casal fosse passar dois dias no litoral por conta da produção; acho que eles até reataram depois de tudo. O problema é que quando voltamos para refazer a seqüência, obviamente não havia mais lua cheia. A cena ficou bonita, mas sem lua. Nem em trucagem daria para fazer um plano belíssimo como aquele perdido. Mas perto de todos os problemas que tive com Filme Demência, uma lua a menos é fichinha. Acho que o maior mérito desse filme é a sinceridade com que procura retratar o cotidiano das mulheres da periferia. O que me inspirou foi a admiração que tenho por esse tipo de profissão, essas professoras que vivem na periferia, ensinando, tentando levar alguma coisa a crianças que têm pouca chance na vida. Eu convivi com essa realidade quase toda a minha vida. Minha mulher é dentista do Estado e trabalha na periferia. Ela inclusive atua no filme fazendo justamente o papel de dentista. Minha cunhada foi diretora de três escolas, duas delas em favelas. São mulheres que saem de casa e muitas vezes nem sabem se vão voltar. Precisam ter muita coragem. Enfrentam coisas como meninos armados, traficantes que entram nas escolas, precisar reprovar um aluno que pode ser filho de bandido, com risco do pai cismar e ir até lá dar um tiro por nada. É um ambiente complicado, tanto socialmente quanto institucionalmente, um universo violento e machista. Sem falar nos salários baixos. Quase sempre tive faxineiras diaristas que trabalhavam como bedéis nessas escolas e minha mulher trazia para trabalhar porque precisavam de um complemento para sobreviver. Os relatos delas me forneceram muita matéria-prima para o roteiro. Coisas como varrer o chão das escolas de manhã cedo e encontrar seringas hipodérmicas, restos de drogas, topar com gente que tinha entrado lá para dormir e se drogar. Era comum que elas tivessem de tirar essas pessoas de lá para que as crianças pudessem entrar e ter aula. Tanto nesse filme, como em Garotas do ABC, meu maior manancial de informações foi ouvir essas pessoas que moram na periferia. Eu não acredito nesse negócio de mandar uma equipe a campo para pesquisar. Prefiro conviver eu mesmo diretamente. Quando estava escrevendo o roteiro, acordava cedo e ia lá na periferia pegar ônibus, ouvir o que essas pessoas falavam, suas preocupações, tentar entender seu modo de vida. Procurei registrar minha visão da vida feminina e creio que fui bem-sucedido. Na época do lançamento de Anjos do Arrabalde, houve críticos que disseram que eu tinha alma feminina. Pode ser. O que eu digo é que os personagens femininos, aqui, são muito positivos, enquanto os homens estão sempre dando murros em ponta de faca. Eles estão de passagem, num instante de vida provisório dessas mulheres. O filme trabalha no registro dos sentimentos. Eu só pude fazer esse filme porque admiro realmente aquelas mulheres. Eu tenho uma relação quase afetiva com as personagens. É um filme sem pieguice. Se há um rastro de esperança, ele está fundamentado na amizade e na solidariedade entre elas. Comparo com as garças que, na natureza, para sobreviver aos predadores, vivem em grupos. Em Anjos do Arrabalde, o que as faz enfrentar esse universo machista e violento é o entendimento, a amizade entre elas. Os pequenos gestos de solidariedade é que fazem a diferença. Claro que não existe esse negócio de retrato fiel da realidade. É a minha visão. São relatos que eu ouvi e interpretei à minha maneira. Nunca acreditei nessa conversa de cinema-verdade. O cara chega e diz: A realidade é assim. Isso de dizer que não vai interferir me cheira mais a preguiça ou falta de talento. Queira ou não queira, você está sempre interferindo na realidade, para bem ou para mal. Mesmo nos documentários. A grandeza das coisas, o que dá vida à arte, é justamente a forma de olhar, os sentimentos do criador. Se a obra não tiver seu traço, sua leitura e a sua sensibilidade, não vale a pena filmar. Qualquer livro, qualquer pintura que se espelhe no real, passa por alguma interpretação. Os grandes criadores são na verdade grandes espiões que não se eximem de intervir. Quando você manda duas, três pessoas a campo para pesquisar a realidade, você não está conhecendo essa realidade porque, queira ou não, recebe as informações filtradas. Enfim, não sou sociólogo, não estou interessado em pesquisa objetiva e glacial. Busco os assuntos que me seduzam e tento trabalhar isso de acordo com a minha forma de ver o mundo. 1988 / 90 Desordem Em Progresso Episódio de 20 min. do longa-metragem City Life. Escrito, fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Supervisor de diálogos: Inácio Araújo. Diretor de arte: Sebastião de Souza. Música original: André Luiz Oliveira. Som direto Tide Borges e Lia Camargo. Montagem e edição Éder Mazini. Produtor executivo: Júlio Calasso. Produtores: City Life Foundation / Rotterdam Films / Casa de Imagens Cinema e Vídeo. Elenco: Paulo Marrafão, Laurente Caraguá, Luís Ramalho, Sílvio Ferreira, Guilherme Lisboa, Júlio Calasso Jr., Zé da Ilha, Ricardo Homuth, Emilio de Mello, Cristina Rodrigues e Participações especiais de Marlene França e Iara Jamra. 16 mm (negativo de filmagem), 35 mm (cópia final) – Colorido. Sinopse: O episódio abre com um depoimento do urbanista Floyd Cramer, explicando que a maior parte do contingente de jovens que vivem em São Paulo é formado por rapazes e moças que vêm do interior do Estado e do sul de Minas Gerais tentar a vida na cidade grande. Percebe-se em seguida que o urbanista está sendo filmado por uma equipe de cinema, na qual desponta o assistente de produção apelidado de Coringa. Ele é incumbido pelo diretor de cuidar do jipe da produção durante o final da semana. Coringa, motorizado, parte em busca de seus amigos Palhaço, Cubatão e Miliquinho. Os três saem sem destino pelas avenidas marginais da cidade até acabar a gasolina do carro. A aventura destes quatro jovens que vivem de subemprego é entrecortada por depoimentos dos próprios atores, escolhidos pela sua identidade com os personagens. Coringa fala da mãe, uma modesta funcionária pública, e da namorada evangélica. Cubatão tenta convencer o pai operário e doente a abandonar a poluída região onde mora e ir com ele para a metrópole. A vida cigana e despojada de Palhaço afasta-o de seu namorado, um bancário yuppie e ambicioso. Miliquinho explica para um colega de regimento que não pretende seguir a carreira militar. Os quatro personagens centrais encontram o cadáver de um turista assassinado. É o fim da viagem sem rumo. Comentário: O projeto City Life nasceu de uma idéia dos cineastas holandeses Dick Rijneke e Mildred van Leeuwaarden, que desde 1985 buscavam reunir doze realizadores de diferentes países, todos descobertos por Hubert Bals, criador do Festival de Rotterdam. Foram cinco anos de trabalho até a estréia mundial do filme numa versão de quatro horas de duração, na abertura do Festival de Rotterdam de 1990. Entre os realizadores dos demais episódios vale destacar Krzysztof Kieslowski (Polônia), Mrinal Sen (Índia), Alejandro Agresti (Argentina), Clemens Klopfenstein (Suíça/Itália) e Bela Tarr (Hungria). Impressões: O meu episódio foi filmado em São Paulo em 88 e editado na Holanda em 89. Foi coproduzido pela Casa de Imagens Cinema e Vídeo, produtora que reunia seis realizadores independentes: eu, André Luiz Oliveira, Andréa Tonacci, Guilherme de Almeida Prado, Inácio Araújo e Júlio Calasso Jr. A produtora foi desativada em 91. As únicas exibições do filme no Brasil, em sua versão integral e ampliada para 35 mm, aconteceram na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em Outubro de 1990. A característica principal do episódio Desordem Em Progresso é o seu despojamento e a opção que fiz por um realismo quase didático. Quis dar vez à voz dos meus atores/personagens. A ficção existe em razão do que ouvi nos depoimentos deles. Foi uma experiência nova e interessante, e que pretendo usar em um futuro longa-metragem. 1993 Alma Corsária Escrito, fotografado e dirigido por Carlos Reichenbach. Diretor assistente: Eduardo Aguilar. Diretor de arte: Renato Theobaldo. Cenografia: Henrique Lanfranchi. Figurinos: Andréia Camargo. Coreografia: Clarisse Abujamra. Música Original: Carlos Reichenbach. Montagem e edição Cristina Amaral. Produtora: Sara Silveira. Produtores: Dezenove Som e Imagens, Donald Ranvaud, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Moviecenter Cinematográfica e José Eduardo Mendes Camargo. Elenco: Bertrand Duarte, Jandir Ferrari, Andréa Richa, Flor, Mariana de Moraes, Jorge Fernando, Emilio di Biasi, Abrahão Farc, Roberto Miranda, Ricardo Pettine, Paulo Marrafão, David Y Pond, os meninos André Messias e Denis Peres, o maestro e pianista Joaquim Paulo do Espírito Santo. Atores convidados: Walter Forster, Christiane Couto, Bruno de André e Carolina Ferraz. Colorido, 116 minutos Sinopse: Rivaldo Torres (Bertrand Duarte) e Teodoro Xavier (Ferrari), amigos de infância, lançam o livro Sentimento Ocidental, poesia em prosa feita a quatro mãos, na Pastelaria Espiritual. Para espanto de Magalhães, executivo da Editora Epopéia, e de sua noiva Verinha (Flor), os poetas convidam a mais variada fauna humana para o evento, incluindo um suicida em potencial, salvo por Torres no Viaduto do Chá. Enquanto a festa avança, o filme recua até o final da década de 50, mostrando a gênese da amizade dos dois protagonistas. Em 1957, Torres, o garoto pobre e bastardo, introduz o novo e rico amigo Xavier no universo do ascendente do Jabaquara, bairro classe média-baixa. Por sua vez Xavier tenta despertar a curiosidade intelectual do amigo. Em 1959, Torres é obrigado a se mudar para Iguape, litoral sul de São Paulo. Lá, a solidão faz com que ele amadureça com certa amargura. Já adolescente Xavier viaja para Iguape com o conjunto musical do qual é líder, para uma apresentação beneficente. Torres, incentivado pelo outro, tem sua primeira experiência física e sentimental com a jovem e sensual Olga. Dois Córregos, interior do Estado, 1976: Torres viaja com Anésia e se faz passar por seu noivo perante o pai da jovem. Em meio à farsa, os dois acabam descobrindo um sentimento sincero de respeito e amizade, quase amor. Enquanto isso, na pastelaria, a festa se torna um verdadeiro happening. Um desempregado executa um concerto de piano. Todos viajam embalados pela música de Debussy. O encanto é quebrado pela introdução da bateria do grupo musical que irá animar o baile dos poetas. Glicério, 1968/69: o filme retrata o aprendizado político, a viagem lisérgica e contracultural de Torres e Xavier, mais ou menos comum à sua geração. Mostra ainda o reencontro com o esquerdista festivo Oscar e o fugaz romance com a linda ativista Eliana, a musa definitiva de Torres. Uma paixão tão breve quanto traumática. Pastelaria: fim de festa. Verinha, a noiva embriagada, perde a compostura. O suicida tenta tirar sua casquinha. Magalhães, louco de ciúmes, é afastado do local. Xavier, cavalheiro, parte com a noiva do editor. Um anjo em forma de mulher surge à procura de Torres. Sua beleza não é humana, mas é familiar ao poeta. Quando anjo e poeta ameaçam partir, o suicida tenta acompanhá-los, mas é dissuadido. Torres, finalmente, abraça o seu destino. Comentário: Talvez o melhor filme do diretor, ao lado de Filme Demência. Um filme urbano, político, fiel retrato dos anos da ditadura militar, e também uma revisão de sua própria vida. Alguns dos personagens foram diretamente inspirados em seus amigos de infância e juventude, como a própria voz do diretor adverte, em tom solene, logo no início do filme. Mas os dois protagonistas também retratam experiências vividas pelo autor, e ambos possuem características suas (o humor de Bertrand e suas reações diante de determinadas situações, por exemplo). O estilo narrativo, que muda de gênero, da comédia ao drama, da chanchada ao filme político, o torna herdeiro e uma evolução do estilo apresentado em Lilian M.. Nesse sentido, Bertrand Duarte é uma espécie de Célia Olga de calças, já que transita pelos diversos gêneros com a mesma desenvoltura. Alma Corsária é resultado da união de Reichenbach com a diretora de produção Sara Silveira, sua colaboradora desde Filme Demência. O argumento foi premiado em 1993 pela Secretaria de Estado da Cultura do Governo de São Paulo. A época não favorecia a produção de filmes do gênero intimista e o projeto acabou esquecido nas gavetas do diretor. Quando finalizou o roteiro e obteve verba, os problemas continuaram. Por conta da enorme desvalorização da moeda, causada pela inflação, o dinheiro inicialmente disponível se esvaiu e foram necessários mais dois anos de trabalho para a conclusão, que Carlão atribui à dedicação de seus produtores e da montadora Cristina Amaral. A Dezenove Som e Imagens foi obrigada a se desdobrar para obter mais recursos financeiros. Foi uma articulação bem complexa, envolvendo o Pólo de Cinema e Vídeo do Distrito Federal, o Banco de Brasília e a Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual (órgão ligado ao Ministério da Cultura). O produtor inglês Donald Ranvaud, amigo de Reichenbach, interessou-se pelo projeto e pagou a sua sonorização em Dolby Stereo. Em troca, ficou com os direitos de distribuição internacional. Alma Corsária é uma ode à amizade. É talvez o mais afetivo dos filmes de Reichenbach e também a consolidação de uma dramaturgia voltada às pessoas comuns, iniciada em Anjos do Arrabalde e que seria a tônica de filmes posteriores, como Garotas do ABC. Aqui, o que importa não é o que os dois poetas escrevem e sim os motivos que os levam a escrever. Nada de excepcional acontece em suas vidas; mas é o encanto da rotina, os pequenos incidentes, os atos de iniciação de vida e na política e os ritos de passagem que fazem o grande atrativo deste filme. Coisas simples como a primeira decepção amorosa, a perda do pai, o primeiro emprego, a primeira experiência sexual, as visões da morte, a formação política por convivência, a presença da ditadura militar e da repressão no cotidiano de pessoas comuns etc. Impressões: A idéia deste projeto nasceu no início dos anos 80 com o nome de Alma Gêmea. Originalmente, o argumento narrava a história da amizade entre dois poetas urbanos, inspirando-se diretamente na sintonia que une o poeta português Cesário Verde e o brasileiro Augusto dos Anjos. Apesar de viverem em época diferentes e em países distantes, ambos eram apaixonados por sua cidade natal, sofreram as agruras da hemoptise e tinham fixação pela morte. Pouco depois de ter concluído o primeiro tratamento, considerei-o datado e o engavetei. Dez anos depois, Eduardo Aguilar, assistente de direção e continuísta em vários de meus filmes, além de parceiro de cinefilia, convenceu-me a reativar o projeto. Mantive aspectos anteriores, reescrevi o roteiro em 92, mas acrescentei forte influência autobiográfica, aproveitando para refletir sobre as transformações socioeconômicas que ocorreram no país durante três décadas anteriores, através da formação cultural, política e existencial dos personagens. Com o acréscimo de novas situações e novos personagens no roteiro final, fui obrigado a centrar a ação em um dos poetas, o Rivaldo Torres (feito por Bertrand Duarte). A participação do outro (Xavier) foi bastante reduzida na montagem. Foi uma idéia feliz, pois o filme deve muito ao Bertrand. A história de como cheguei ao Bertrand merece um capítulo à parte. Ele é um fenômeno, um ator instintivo e exuberante por natureza que abdicou de seu talento para virar publicitário. A energia de Bertrand lembra em muito o furor emocional de Célia Olga em Lílian M.. Ambos são extremamente corajosos quando abraçam um personagem, pois mergulham de cabeça com muita generosidade. São um prato cheio para qualquer diretor. Infelizmente afastaram-se da profissão de maneiras diferentes e não tiveram o reconhecimento e o sucesso que mereciam. A maneira como conheci o Bertrand foi hilária. Sempre gostei muito dos filmes do baiano Edgar Navarro. Num dos festivais de Gramado sai da sessão de O Superoutro, média-metragem antológico, e fui abraçar o diretor. Tinha um cara de terno e gravata, com cara de burocrata na Embrafilme, ao lado dele. Eu perguntei a Navarro: Onde você descobriu esse porralouca que protagoniza o filme? Navarro apontou o sujeito de terno e disse: É esse cara aqui! Fiquei espantado. Você nunca diria que era o mesmo. Naquele momento descobri que tinha que fazer um filme com ele. Bertrand era quase um camaleão, se transformava completamente em cena. Alma Corsária teve sua primeira cópia exibida no Festival de Brasília de 1993, dois dias após ter saído do laboratório. Acabou ganhando vários prêmios, inclusive o de melhor filme. Recebeu também prêmios como melhor filme lançado comercialmente em 1994, e representou o Brasil no 30º Festival do Novo Cinema de Pésaro, na Itália, onde ganhou o Prêmio dos Trinta Anos. O primeiro filme brasileiro a receber um prêmio em Pésaro, trinta anos antes, foi justamente São Paulo S.A., de Luiz Sérgio Person, meu ex-professor, mentor profissional e primeiro produtor. Alma Corsária é, no fundo, uma grande homenagem ao cinema brasileiro. Por exemplo, homenageia os filmes do José Carlos Burle. Há trechos de chanchadas que são citados literalmente. A caracterização do personagem do Jorge Fernando, por exemplo, é toda calcada em chanchadas do Burle, especificamente nos personagens do Zé Trindade. O personagem da Flor, que faz a namorada do Jorge, é inspirada na Derci Gonçalves quando jovem. Todas as piadas dessa parte do filme foram feitas na linha da chanchada. Pouca gente percebeu isso e, de todas as seqüências do filme, essa é a que mais sofre preconceito. Em todas as sessões que acompanhamos na época, sempre ouvíamos reclamações em relação a essas seqüências. No fundo, me parece que as pessoas têm preconceito contra a chanchada. A Flor era jurada do Sílvio Santos, entre outras atividades, e na época estava no auge da popularidade. Quando filmávamos cenas com ela, chegava a juntar duzentas pessoas para assistir. Era uma multidão barulhenta, mas ela sabia controlar com seu carisma. Na cena em que o maestro toca piano na pastelaria, bastou ela pedir e o público fez o maior silêncio. Em uma das cenas mais delicadas, mas os curiosos começaram assobiar e fazer piadas de mau gosto por causa do halterofilista fazendo evoluções ao lado. Ele havia sido Mister Universo e foi incluído na seqüência para compor um quadro quase surrealista, no contraste com a delicadeza da interpretação do pianista negro; tudo dentro daquela premissa de detectar o sublime no inesperado. Esse é o sentido de o maestro estar vestido como um estivador. Quis com isso subverter o preconceito enrustido de certas pessoas. O maestro Joaquim Paulo do Espírito Santo é um gênio. Ele é negro, forte e meio gordo; lembra bastante o Forest Whitaker. Quando entra em cena, de camiseta rasgada, suando, e se encaminha para o piano de cauda, as pessoas acham que vai levar o piano embora. Aí ele senta e começa a tocar Clair de Lune, de Claude Debussy, com a delicadeza digna de uma Guiomar Novaes. Todos ficaram hipnotizados. Quando ele acabou de tocar, as 200 pessoas – acalmadas anteriormente pela Flor – começaram a aplaudir. Foi comovente. Em boa parte dos meus filmes, uso músicas de Debussy e Maurice Ravel. Acho os compositores impressionistas cinematográficos (leia-se imagéticos) por excelência. O Concerto para Mão Esquerda, de Ravel, eu usei em vários filmes. Cesar Frank, um compositor belga da mesma cepa, eu usei em Amor Palavra Prostituta e também em Dois Córregos. Minha própria formação musical tem muito dos impressionistas. Foi com eles que aprendi a gostar de música clássica Por conta disso, sempre usei a música como parte integrante da linguagem do filme. A música chega a ser personagem. A abertura de Bens Confiscados, que mostra uma mulher se preparando para um suicídio no terraço de um apartamento de cobertura, foi toda construída em cima de Sonho e Saudade, uma composição antológica do genial Tito Madi. É comum nos meus filmes a música ser apresentada como personagem (o elemento mais importante da cena) e gradativamente se tornar diegética (a que algum personagem esteja escutando). Busco fazer isso de modo que a mudança seja quase imperceptível. A exemplo de Lilian M, Relatório Confidencial, a minha voz, em off, logo no início explica o que o filme é baseado na minha própria vivência e na de meus amigos de infância e juventude; entre eles: Jairo Ferreira e Percival Gomes de Oliveira. Os dois fazem uma figuração carinhosa no filme, como os redatores da fictícia revista O Taxidermista Moderno. O porte físico do personagem Rivaldo Torres é calcado no Jairo Ferreira. Numa das passagens mais engraçadas, o Bertrand é assaltado e humilhado num beco do bairro paulistano do Glicério. Poucos dias depois, no mesmo local, é achacado e humilhado numa batida policial. Isso realmente aconteceu com o Percival, na época em que ele e o Jairo dividiam um apartamento no Glicério. Ele foi chamado de vagabundo pelos policiais e pelos bandidos e levou um chute na bunda dos dois. Há coisa mais humilhante do que levar um chute na bunda? Depois o Percival ain da comentou desconsolado: Porra, eu trabalho feito um cachorro e ainda tenho que ouvir isso de um bandido e de um policial! O filme tem elementos que aprecio, fundamentais no campo das relações humanas e de descoberta. A confraternização geral na pastelaria, a amizade que se estabelece entre o suicida e China, o primeiro apartamento do herói que se torna aparelho (que é como se designavam os locais de reuniões e esconderijo dos ativistas de esquerda), a relação impossível com a jovem revolucionária, o aprendizado forçado e irreversível de responsabilidade social, as amizades e suas cobranças naturais. Finalmente, o encontro das almas gêmeas em outras esferas e a morte como bênção e êxtase maior do poeta. As seqüências na cidade de Dois Córregos são minhas preferidas. O entendimento mudo entre o pai, a filha prostituta e o falso noivo; a charrete como símbolo atemporal da graça provinciana estranha ao poeta urbano; o diálogo versejado entre o velho louco, caolho e paraplégico e o herói bastardo; a comunhão familiar que livra a filha prostituta de qualquer cobrança; a viagem provisória que tanta paz transmite ao solitário Torres e que o faz flertar com o anjo da morte; os beijos roubados no interior do trem, a amizade profunda entre dois seres fragilizados transfigurando-se em ternura; e a dança que os aproxima e dá dignidade à solidão são talvez os momentos mais marcantes do filme. 1994 Olhar e Sensação Curta-metragem, 10 min. FilmeemúsicadeCarlosReichenbach.Textoextraído de A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Fotografia de Conrado Sanchez, montagem e edição de Cristina Amaral. Diretor de produção: Eduardo Santos. Produção executiva de Sara Silveira e Sérgio Cotrim. Produtores: Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, Museu da Imagem e do Som, Carlos Reichenbach & Equipe. Colorido, 35 mm. Sinopse: Vôo livre na direção da memória, do instinto, do olhar e das sensações. Busca obsessiva de ângulos inesperados do Vale do Anhangabaú. A cidade incógnita através da pupila do animal enjaulado. Autor e criança mergulham além de suas janelas. Todos os caminhos acabam num túnel. A herança de Ló no olhar de pedra do ser inerte, onde abelhas fizeram sua colméia. Cinema aspirando à pintura e ao traço; rascunhos da relação amor-ódio entre o artista e a sua cidade. Comentário: Realizado por ocasião do evento multimídia Arte/Cidade, justamente por isso o curta foi inicialmente exibido em sua versão muda, projetado na parede suja de um prédio do Vale do Anhangabaú. O menino que aparece nas fotos antigas é o próprio realizador. É emblemático que a fotografia escolhida para encerrar o filme seja justamente uma em que Reichenbach aparece de mãos dadas com o seu pai, precocemente falecido, caminhando por uma estrada vazia. Essa imagem ao som de ondas quebrando é quase uma síntese de sua relação com o pai, presente direta ou indiretamente em vários de seus filmes. Impressões: Olhar e Sensação foi minha investida no cinema conceitual, exibindo aos pedestres que passavam no local, imagens com as quais estivessem familiarizados, mas com um olhar diferenciado, de forma que pareçam inéditas. De certa forma, era como se as imagens projetadas na parede funcionassem à maneira de um espelho deformador, capaz de revelar a alma e o senti-do do cenário urbano. Por insistência de Nélson Brissac Peixoto, curador do evento Arte/Cidade, e a quem o filme é dedicado, resolvi concluir e sonorizar o filme inspirando-me em Auto-Retrato de Dezembro de Jean Luc Godard. Refletir, na hora da montagem, sobre os motivos que me levaram a captar aquelas imagens da cidade foi o que determinou a existência de Olhar e Sensação como filme sonoro. A própria trilha musical foi composta por mim, norteando-me por estes conceitos. Mas para mim, a leitura de A Consciência de Zeno foi fundamental, pois encontrei ali a tradução literal do inconsciente em imagens filmadas. A presença da estátua O Semeador, do escultor veronês Gaetano Fraccaroli, cuja obra buscava a expressão capaz de traduzir a vida a cada instante, pretende remeter ao mito de Ulysses, numa alusão a um dos meus filmes preferidos, Le Mépris de Godard. A música composta para essa cena se inspira no Tema de Ana Magdalena de Johann Sebastian Bach, referência básica da trilha musical de George Deleure para o clássico de Godard. Uma coisa que lamentei muito foi não ter podido filmar um close de um water-bruck, animal de origem australiana, para mim o mais belo ser vivo do planeta. O único casal existente no Brasil desta raça de cervos, não estava disponível no Zoológico de São Paulo, no dia das filmagens. Gostaria de ter encerrado Olhar e Sensação com uma fusão dos olhos do animal, dono de uma beleza quase prosaica, sobre a fotografia de pai e filho. A primeira exibição pública da versão sonora aconteceu no Museu da Imagem e do Som (MIS), em 21 de Outubro de 1994. 1999 Dois Córregos Argumento, roteiro e direção de Carlos Reichenbach. Fotografia: Pedro Farkas. Montagem e edição: Cristina Amaral; Diretor de Arte: Luís Rossi; Música de Ivan Lins; Arranjos: Nélson Ayres. Produtora Executiva: Maria Ionescu. Produtor: Sara Silveira. Elenco: Carlos Alberto Ricelli, Beth Goulart, Ingra Liberato, Vanessa Goulart, Luciana Brasil, Kaio Cézar, Luiz Damasceno, Thomas Jorge, Sérgio Ferrara, Cristina Cavalcanti e Lina Agifu. Colorido, 112 min. Local das filmagens: Dois Córregos (São Paulo) e Cidreira (Rio Grande do Sul) Sinopse: 1997 – Ana Paula, 46 anos, vai ao interior de São Paulo recuperar a casa de campo que herdou dos pais, falecidos recentemente, e que está ocupada por grileiros. Constrangida com a indiferença de seu advogado, e com a rispidez da ação policial, afasta-se deles e vai para um canto isolado onde começa a relembrar a última vez que ali esteve, quase trinta anos atrás. 1969 – A adolescente Ana Paula traz a colega de escola Lydia, precoce e exímia pianista, para conhecer o seu reduto no Encontro dos Rios. Elas passam quatro dias na companhia de Tereza, empregada de confiança, meio pajem e irmã de criação de Ana, e Hermes, o tio que sempre viveu no Rio Grande do Sul e que Ana Paula vê pela primeira vez. Aos poucos ela descobre que o tio tem problemas com a polícia da ditadura militar e que passou dois anos em países sul-americanos envolvido com grupos ativistas de extrema esquerda. Ele está escondido na casa de campo da irmã mais velha tentando oficializar sua volta ao país. Por isso não pode visitar a mulher e dois filhos pequenos. Jovem e imatura, alienada do que está acontecendo no país, Ana não entende as razões que fizeram o tio separar-se da família. Com Lydia o entendimento ainda é mais difícil; ela é filha de militar de alta patente, tendo assimilado os preconceitos paternos com relação aos ativistas. No entanto, seus olhos tristes e sua beleza lembram a mulher de Hermes quando jovem. A sintonia através da música clássica, que Hermes conhece e admira profundamente, acaba encurtando a distância entre eles. A efêmera convivência das adolescentes com o angustiado clandestino, transforma aquele feriado em um momento fundamental de suas existências, uma espécie de rito de passagem. Enquanto descobrem o que está realmente acontecendo no país, despertam para sensações como sensualidade, afeto e melancolia. Uma lição de vida também para Tereza, aos 26 anos, e a fugaz descoberta da possibilidade da afeição íntegra, do prazer físico, da entrega absoluta e do amor sem cobranças. Um incidente envolvendo um quinto personagem, o tenente Percival, namorado de Tereza, encerra a curta temporada no local paradisíaco, e ocasiona o súbito e desconcertante desaparecimento de Hermes. Vinte e oito anos depois, de volta a esse cenário, Ana Paula soluciona o mistério que envolveu a primeira paixão platônica de sua vida. Comentário: Um filme intimista, talvez o que mais se aproxima da narrativa clássica, entre todos os filmes do diretor. Baseado na sua própria experiência de juventude, quando também teve um parente refugiado em casa, Dois Córregos,a exemplo de outros filmes de Reichenbach, também procura exorcizar fantasmas dos tempos do regime militar. Da mesma forma, mostra amores impossíveis (outra de suas obsessões) e aborda a história com o mesmo tom triste, depositário da influência do cineasta italiano Valerio Zurlini. A personagem de Beth Goulart, que volta ao local da adolescência para exorcizar seus fantasmas, assemelha-se ao próprio diretor (e de certa forma é um alter-ego), que freqüentemente lança mão do cinema para fazer as pazes com seu passado, como em Alma Corsária e Filme Demência, entre outros. Impressões: Este filme surgiu da minha necessidade de rever uma experiência que tive nos anos 60, quando meu padrinho de batismo, um militante de esquerda, ficou escondido na casa da minha mãe, nas proximidades da represa Bilings, uma das que abastecem a grande São Paulo. Esse período foi muito marcante para mim. Testemunhar a dor cotidiana de um clandestino em seu próprio país foi uma lição de vida. Coloco isso no filme quando o Ricelli diz O exílio talvez seja o mais cruel dos castigos entre os homens. Mudei o cenário para a cidade de Dois Córregos, no interior paulista por dois motivos. Primeiro por que a região da Bilings já está muito degradada, não tem mais nada a ver com os cenários que ficaram na minha lembrança. Depois porque, quando conheci a cidade, apaixonei-me imediatamente. Passei uma temporada lá assim que meu pai morreu, no início dos anos 60 e desde então, dois cenários ficaram na minha memória: a estação de trens (cuja arquitetura é uma reprodução fiel da estação de Marsellha) e o chamado encontro dos rios, onde o rio Tietê encontra o rio Piracicaba e rio Turvo. Quando comecei a fazer cinema, aquela imagem simbólica dos rios seguindo paralelamente sempre vinha na minha cabeça. Queria muito fazer um filme lá. A primeira tentativa foi com Alma Corsária, que teve cerca de 30% das cenas rodadas na cidade. Quando comecei a escrever a história, inspirada na de meu padrinho, decidi que o filme todo seria ambientado lá, e se chamaria Dois Córregos. Esse tema da relação impossível, do paradoxo, me agrada muito e está presente em praticamente toda a minha obra, especialmente nos três últimos filmes. Aqui, há a paixão da filha de um militar de alta patente por um ativista de esquerda no tempo da ditadura. Em Garotas do ABC, há o romance entre uma operária negra e um neonazista. Em Bens Confiscados eu discuto a relação entre uma mulher de 50 anos e um rapaz de 17. Gosto de lidar com relações impossíveis. Esse filme, como a maioria dos que fiz, tem uma relação especial com a música. A trilha do Ivan Lins é fantástica e age como um personagem. Os arranjos do maestro Nélson Aires são deslumbrantes. Eu sou contra o uso da trilha sonora para tapar buracos na trama, ou simplesmente como enfeite. Ela tem de ser atuante. A cena da relação entre Ricelli e Ingra Liberato simplesmente não existiria sem a música. Por isso escolhi Luciana Brasil, uma pianista de verdade, para o papel de Lídia, a virtuose que é filha de militar. As músicas de César Frank, Ferrucio Busoni e, sobretudo, os enigmáticos temas e prelúdios de Alexander Skriabin, atuam na ação dialogando com as imagens. A atmosfera da seqüência em que Lídia executa Flammes Sombres, de Skriabin, toda construída ao cair da noite, é um dos pontos altos do filme. 2002 Equilíbrio e Graça Roteiro e direção de Carlos Reichenbach. Fotografia: Jacob Solitrenick. Montagem e edição: Cristina Amaral. Coreografia: Luciana Brites. Produtor: Sara Silveira. Elenco: Plínio Soares (Thomas Merton), Masamitsu Adache (T.D. Suzuki), a bailarina Luciana Brites, Adriana Holtz (Violoncelo), Roberta Marcinkowski (Viola), Soraya Landin (Violino) e Kátia Spássova (Violino). Colorido, 10 minutos. Sinopse: Um encontro para a cerimônia íntima do chá verde entre um notável pensador católico da ordem trapista, Thomas Merton (50 anos) e o célebre teórico e introdutor do Zen no ocidente, T.D. Suzuki, (90 anos), celebrou em 1964 a possibilidade de sintonia entre filosofias do oriente e ocidente, quando fundamentadas na busca da harmonia e na chamada metafísica do silêncio. O filme busca detectar conceitualmente uma representação pessoal da harmonia. Comentário: Outro curta-metragem conceitual que Reichenbach dirigiu, desta feita a convite da Petrobras. A estatal anualmente patrocina dez curtas, sendo nove de diretores estreantes, escolhidos em concurso público, e um de diretor renomado, especialmente convidado. A atmosfera do filme é construída em cima de uma composição musical clássica, o Quarteto Número 2 em D – Noturno, de Alexander Borodin. Ela foi executada por um quarteto de cordas feminino, especialmente reunido para a ocasião. O ponto de partida é o fictício encontro de um pensador católico e monge trapista com o pai do zen budismo, por intermédio do qual o filme propõe uma viagem ao universo das sensações. Oriente e ocidente revelam identidades filosóficas nessa espécie de culto do silêncio. Finalmente aqui o diretor pôde filmar a elegância e delicadeza do que ele considera o animal mais belo do planeta, o antílope australiano Waterbuck, que ele já havia tentado anos antes no curta Olhar e Sensação. Impressões: Queria usar o cinema como forma de alterar os sentidos. Por isso aceitei fazer esse curta-metragem. Gosto de enxergá-lo como um tríptico conceitual que iniciei com Olhar e Sensação e que gostaria de terminar com um projeto que tenho pronto, chamado Arquitetura e Fineza. Três pequenos filmes que buscam estimular sensações inéditas no espectador. O cinema tem essa capacidade, assim como a música, a pintura etc. A harmonia como paradoxo da utopia; música da luz. Há quem diga que é um trabalho pretensioso. E daí? Não estou em idade de fazer curta com historinhas, piadas. Curta é para experimentar mesmo. Você tem que tentar, tem que ousar. Como diz John Cage: Em arte, tudo é válido. Entretanto, nem tudo é tentado. São cenas de enorme sutiliza. A cadência das folhas de uma plantação que se movem impulsionadas pelo vento, as ondas de um mar permanentemente revolto, o céu de três arco-íris, o corpo nu e indevassável da bailarina, o sol que se refugia na copa das árvores filmadas em movimento... Em tudo, observa-se a busca obsessiva da música da luz. Gosto de trabalhar com estados alterados. Acho que Godard conseguiu isso em alguns filmes. Esse curta é minha forma de mostrar que é possível lidar com os sentidos. 2003 / 04 Garotas do ABC – Aurélia Schwarzenega Argumento e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro de Reichenbach e Fernando Bonassi. Fotografia: Jacob Solitrenick. Diretor de Arte: Luís Rossi; Montagem e edição: Cristina Amaral; Trilha Sonora e arranjos: Nelson Ayres; Produtor: Sara Silveira. Elenco: Michelle Valle, Natália Lorda, Vanessa Alves, Luciele di Camargo, Vanessa Goulart, Fernanda Carvalho Leite, Márcia de Oliveira, Viviane Porto, Lina Agifu, Kelly di Bertolli, Fernando Pavão, Ênio Gonçalves, Rocco Pitanga, Dionísio Neto, Milhem Cortaz, Eduardo Sofiatti, Fábio Ferreira Dias, Paulo Bordhin, Alessandro Azevedo, Neide de Deus, Mariana Loureiro e Marcelo Bortotto. Atores Convidados: Selton Mello, Antônio Pitanga e Adriano Stuart. Atrizes Convidadas: Vera Mancini, Ângela Corrêa e Ana Cecília Costa. Participações Especiais: Fafá de Belém e Zé Ricardo. Colorido,125 min. Locações: São Bernardo do Campo, Diadema e Rudge Ramos Sinopse: Em São Bernardo, cidade do ABC paulista, região de fábricas têxteis e metalúrgicas, um grupo de operárias vive seu cotidiano de sonhos e ilusões. A principal delas, Aurélia, é fã do ator Arnold Schwarzeneger e adora homens fortes e musculosos. Seus problemas começam quando ela se apaixona por Fábio, um musculoso neonazista, membro de uma gangue que vive praticando atentados contra negros e nordestinos. Entre as demais personagens femininas estão a operária Paula Nélson, que é assediada por um líder sindical, ao mesmo tempo em que tenta manter a harmonia entre as meninas da fábrica; Antuérpia, que aos 38 anos tenta iniciar-se na profissão de tecelã; e a casta Suzana, apaixonada pelo patrão. Ela parece sentir prazer com os pequenos acidentes de trabalho que sofre e que vão deixando marcas em seu corpo, além de garantir um bom dinheiro a título de indenização. Entre os protagonistas masculinos está Salesiano de Carvalho, o líder dos neonazistas e mentor intelectual da série de atentados que eles praticam. Comentário: Este filme faz parte de um projeto maior, cuja gênese eram dois roteiros que o dire-tor tinha, sobre o universo da mulher operária da indústria têxtil, que ele planejava realizar simultaneamente: Sonhos de Vida e Vida de Sonhos. O primeiro enfocava o universo do trabalho das tecelãs e o outro, o tempo livre. Era uma proposta com o habitual teor libertário, marcando o tempo livre como o verdadeiro espaço de liberdade das operárias. Ele apaixonou-se pela idéia e continuou trabalhando nos roteiros, a ponto de ter que desmembrá-los. Quando o projeto foi inscrito na Bolsa Vitae, em 1993, já tinha crescido para seis longas metragens, tendo como protagonista cada uma das operária principais. O projeto, o mais ambicioso do diretor, foi rebatizado de ABC – Clube Democrático, nome do clube que as meninas freqüentam. O diretor resolveu propor escrever quatro roteiros para a Bolsa Vitae: Aurélia Schwarzenega, Anjo Frágil Antuérpia, Lucineide Falsa Loura e A Fiel Operária Lady Di. Assim ainda restam dois filmes para roteirizar no futuro: Mistério Paula Nélson e Arlete Doce Porralouca. Este último é o único que traz uma protagonista nova, que não aparece nos outros filmes do projeto. Tratava-se de uma menina que sai da Febem e vai trabalhar na Tecelagem Mazini, por indicação de Paula Nelson. Com essa personagem, Reichenbach pretende subverter o conceito de que a mulher se masculiniza no trabalho. Arlete sai da Febem masculinizada e vai se tornando feminina à medida que se enraíza na fábrica e se envolve com um anarco-sindicalista. Garotas do ABC é o primeiro fruto do projeto a chegar Às telas. É uma ousada tentativa de fazer um filme sem protagonistas, no qual a maioria das operárias tem papel de importância. O roteiro foi resultado de uma pesquisa de campo que o diretor fez na região do ABC, o que lhe confere interesse social. Lá detectou a presença de ativos grupos neonazistas e resolveu incluí-los na trama. Por coincidência, no final de 2003, um desses grupos fez um atentado contra dois rapazes no interior de um trem na região, causando a morte de um deles e a amputação do braço de outro. O incidente acabou por dar grande atualidade ao filme, gerando grande discussão sobre o assunto. Impressões: A história desse filme é engraçada. A idéia de inscrever ABC-Clube Democrático nas Bolsas Vitae surgiu quase por acaso. Faltavam poucos dias para o encerramento das inscrições quando o falecido crítico e cineasta Jairo Ferreira apareceu em casa insistindo para que eu tentasse a bolsa. Inicialmente, ele veio pegar uma carta de apresentação minha para um projeto dele, um livro sobre cinema nos moldes do já clássico Cinema de Invenção, que iria chamar-se Anarquismo no Cinema Brasileiro. Enquanto conversávamos ele sugeriu que eu inscrevesse o projeto dos filmes sobre operárias, que ele já conhecia. Para ele, a bolsa me daria o estímulo e a tranqüilidade necessária para escrever os roteiros. De tanto ele insistir, acabei gostando da idéia e corri com a papelada. Por ironia do destino, acabei ganhando e ele não. Foi fantástico. Fiquei um ano com o orçamento doméstico essencial garantido. Ao mesmo tempo em que lançava Alma Corsária nos cinemas, dediquei-me integralmente aos roteiros. A Bolsa Vitae era um apoio logístico fantástico, que contribuiu muito para a cultura brasileira. Acho triste que tenha acabado. Se ganhar algum festival, vou dedicar o prêmio ao Jairo. Se hoje tenho todos os roteiros escritos, devo isso à Fundação Vitae. (esta entrevista foi feita cinco meses antes do Festival de Brasília, realizado em novembro de 2003, quando o filme ganhou o Prêmio Especial do Júri pela originalidade do argumento, que Reichenbach dedicou a Jairo Ferreira). Garotas do ABC é um filme feito em blocos. Há o da família de Aurélia, dos racistas, das operárias na fábrica, o clube Democrático e as situações se intercalam. Em Lílian M. eu também lancei mão desse recurso, só que nele os blocos aconteciam à medida que um novo homem entrava na vida de Lílian. Se você comparar com Anjos do Arrabalde, por exemplo, verá que a estrutura é completamente diferente. Em Anjos, um personagem mostra a sua história e passa o bastão a outro, que segue apresentando a sua. Muita gente compara Garotas com Anjos. Concordo que há pontos em comum, por exemplo na solidariedade entre as mulheres, no carinho com que são mostradas as pessoas da periferia. Mas Garotas tem uma estrutura narrativa e dramática muito mais complexa. Anjos é um filme quase linear. Nesse sentido, estruturalmente, Garotas do ABC está mais próximo de Lilian M. e Império do Desejo, que também era constituído por blocos independentes, embora em menor número, o que o tornava mais fácil de assimilar. Além disso, havia um cenário personagem, a casa de praia, que norteava a atenção do espectador. Em Garotas, o prumo da narrativa se fragmenta em quatro ambientes, todos fundamentais às variadas tramas: a casa de Aurélia, a tecelagem, o bilhar dos neonazistas e o clube Democrático. Isso, acrescido ao número anormal de protagonistas, trouxe um imenso desafio para mim e também para a montadora Cristina Amaral. Ela estava habituada com isso pelo menos desde a complexa montagem de Alma Corsária. Mas desta vez o quebra-cabeças que propus foi quase um desafio. Assim que consideramos o filme fechado, o tempo de projeção excedia três horas. E o pior é que havíamos cortado seqüências inteiras. Para poder chegar aos 128 minutos da montagem atual tivemos que sacrificar muita coisa boa, optando por reforçar os personagens femininos. Nós decidimos também diminuir a importância da personagem principal; livrar o peso das costas de Aurélia. Acho que foi aí que surgiu um filme sobre o coletivo e não sobre o individual; um filme sobre o grupo de operárias e não sobre uma protagonista apenas. De certa maneira, nós recuperamos na montagem a idéia central da gênese do projeto, que estava nos dois primeiros roteiros, Sonhos de Vida e Vida de Sonhos. Um dos destaques desse corte final é a sensualidade de Aurélia. Logo na cena que abre o filme, há uma espécie de strip-tease invertido, ou seja, a atriz começa nua e vai se vestindo para sair. Essa cena é absolutamente necessária, por mostrar o ritual cotidiano da transformação da mulher em peça do tear, engrenagem da fábrica. A sexualidade natural de Aurélia é despersonalizada pelo uniforme de trabalho. Era fundamental recriar a sensualidade instintiva da personagem. Para isso, foi fundamental a colaboração da coreógrafa Luciana Brittes (que fez a bailarina nua de Equilíbrio e Graça). Ela aproveitou todos as nuanças da música composta por Ayres e Levy. Michele Valle tinha uma sensualidade própria, mas na hora de colocar isso na tela, a timidez atrapalhava, endurecia os seus movimentos. Mesmo quando a naturalidade aflorava, o resultado visualmente, ficava vulgar e não convencia. Todo o gestual teve de ser retrabalhado com a coreógrafa. Isso foi um desafio. Há várias formas de se mostrar sensualidade e pequenas coisas podem estragar o erotismo de uma seqüência. Tentar construir climas é como caminhar num fio de navalha. Lidar com a sexualidade é sempre uma coisa muito complicada. Para valorizar ainda mais a personagem de Aurélia nos decidimos, na hora da montagem final, cortar todas as cenas de nudez das demais tecelãs. Por exemplo, a personagem Suzana que é apaixonada pelo patrão. Ela se machuca no trabalho por amor. Na mesma seqüência que aparecem as cicatrizes em suas costas sendo tocadas pelo patrão, era mostrada as mãos dele, em detalhe, tocando os seios da personagem. O teor sensual daquela cena ficou concentrado nas cicatrizes, no toque da mão do homem com aliança no dedo anular e, sobretudo, na atmosfera criada pela cenografia, música e iluminação. Um detalhe importante nesse filme é o cuidado com a fotografia. Conversei muito com o Jacob Solitrenick e a idéia era não glamourizar os ambientes femininos, mas sem deixar de trazer cor, dar vida. Aquele ambiente da fábrica não propicia muito isso, mas nós estávamos lidando com a confecção de tecidos e o diretor de arte Luís Rossi optou por trabalhar com tecidos azuis e cores tênues. Eu não queria que as cenas da fábrica ficassem com cara de documentário. A luz naquelas cenas, para mim, é uma das coisas mais preciosas do filme. Além disso, aquelas meninas trazem vida à fábrica. Assim, no filme, na parte feminina, houve essa preocupação de criar uma beleza visual discreta. Já nas seqüências masculinas, a preocupação foi oposta. Procuramos enfear mesmo. Nas cenas no bilhar a idéia era essa, puxando os matizes para o verde ou para o marrom. O Jacob é um grande parceiro. Ele é um artífice de atmosfera. Trabalhou comigo também em Bens Confiscados e deitou e rolou nos matizes de azul. É um cúmplice do mesmo quilate da Cristina Amaral na montagem, do Luís Rossi na direção de arte e do maestro Nélson Ayres na concepção da trilha musical. Temos uma sintonia perfeita, não preciso perder tempo justificando as minhas opções – e obsessões – estéticas ou artísticas. Uma das grandes curiosidades ocorridas no processo de pesquisa no ABC, durante o período das Bolsas Vitae, que obrigou a mim e ao maestro Nelson Ayres a encontrar uma solução ardilosa e brasileira, foi descobrir em Marvin Gaye (o falecido ídolo americano da musica soul) o caminho para entender o universo de sonhos, ambições profissionais e amores do grupo social que desejava retratar: a operária negra. Tentamos, durante todo o período de pré-produção, comprar os direitos de dois de seus sucessos da gravadora Motown. Eles não se dignaram nem a estipular valores. Mais uma vez tivemos que elaborar uma solução emergencial. Liguei para o Nelson Ayres e pedi que criasse um músico que seria o papa do soul. Ayres chamou Marcos Levy, o Xuxa, o tecladista e arranjador de Paula Lima, que é fã de Marvin Gaye, e ambos criaram Sam Ray, ídolo de Aurélia e das operárias negras do ABC. Sam só aparece em cartazes e capas de disco na casa de Aurélia e de suas colegas de fábrica. Seu rosto é o do diretor de produção Rui Pires, fotografado de todos os ângulos possíveis ao lado de um belo teclado Hammond. O nome Sam Ray é uma homenagem a dois de meus diretores favoritos, Samuel Fuller e Nicholas Ray. Parte das cenas deste filme foi feita nos estúdios da antiga Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, que hoje pertencem ao governo do Estado de São Paulo, e são administrados pela Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura. Filmar em locação, para mim, não representa mais um mistério. Não gosto muito de estúdio, mas é fantástico você poder tirar fora uma parede, filmar, colocar um trilho, mover a câmera, recolocar a parede, tirar outra e fazer o plano seguinte de outro ângulo. Trabalhei com trilhos o tempo inteiro. Na locação, as paredes fixas limitam muito o trabalho de câmera. Não dá para recuar. Queria que a câmera tivesse um comportamento de filme japonês. Os japoneses raramente filmam em locação, pois as casas lá são muito pequenas. Assim, sempre que precisam filmar em casas, têm de recorrer ao estúdio. Também queria mover a câmera como nos clássicos e usar somente as lentes normais. Uma das coisas que mais gosto em Garotas do ABC é que nele usei essencialmente as lentes normais (50 mm), o que aproxima o enquadramento da perspectiva do olho humano. (com o negativo 35 mm, as lentes menores que 35 mm são chamadas de grandes-angulares e abrem muito a perspectiva. As mais radicais, como a 12 mm, assemelham-se ao visual do olho mágico de uma porta). Se eu tenho três ou quatro pessoas em cena e uso uma lente 50 mm não há deformação alguma, mas é preciso afastar bem a câmera para caber todos em cena. Em locação, para conseguir enquadrar tanta gente, eu precisaria no mínimo uma lente 28 mm, que distorce a imagem. Hoje, sempre que possível, trabalho com as lentes 40 ou 50 mm, que se aproximam mais do olhar humano. Howard Hawks dizia que essas lentes são o cinema por excelência. Mestres absolutos como Bresson e Ozu só trabalhavam com a 50 mm. Em Garotas do ABC, quase não há planos filmados com grandes angulares. Nas pouquíssimas vezes que usei foi como recurso dramático. Para o cenário da fábrica, houve nova dificuldade. Reproduzir uma antiga tecelagem em estúdio ficaria muito caro. Depois de muita procura, a produção localizou a tradicional fábrica de cobertores Tognato, que estava desativada e, por acaso, ficava há duas quadras da Vera Cruz. Era o local perfeito. Só tivemos que consertar algumas máquinas, pois muitas não funcionavam mais. Mas creio que a maior dificuldade dessa filmagem foi ter de ir de São Paulo para São Bernardo todos os dias. Para quem olha no mapa, as cidades são vizinhas. Não parece difícil. Mas só quem mora na cidade sabe o que é atravessar São Paulo nas horas do rush. Perde-se um tempo enorme e nunca se sabe a hora certa em que se vai chegar no destino. Era comum atrasarmos o trabalho uma hora ou mais. Assim, para começar o dia de trabalho sem estresse, algumas vezes preferia dormir num hotel em São Bernardo. Depois de tudo pronto, os noticiários deixaram o filme mais atual. Primeiro foi o fato de Arnold Schwarzeneger ter se tornado governador, o que dá ao filme uma carga extra de ironia. Há um diálogo que tinha outro sentido quando escrevi o roteiro, mas hoje é uma informação errada, já que ele está no partido Republicano. Num determinado momento Aurélia pergunta ao namorado se ele é neo-nazista. O namorado retruca, possesso: Você sabe o que é um neo-nazista, Aurélia? Um nazista ia namorar você? Nazista é aquele cara que você é fã, que tem nome ariano! Aurélia fica revoltada: Mentira. Ele é um democrata. Eu li numa revista! Mantivemos a cena tal como foi imaginada no roteiro e ela acabou ficando mais irônica do que o previsto. Depois houve aquele lamentável episódio com a gangue de neonazistas que jogou dois adolescentes para fora do trem em movimento. Um morreu e outro perdeu o braço. Muita gente veio comentar: Puxa, que coincidência! Coincidência coisa nenhuma. Andei muito por aquela região, Aurélia e os ídolos Sam Ray e Schwarzeneger quando estava escrevendo o roteiro, e detectei pessoalmente a presença desses grupos racistas em atividade. 2004 Bens Confiscados Argumento e direção de Carlos Reichenbach. Roteiro: Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Fotografia e Câmera: Jacob Solitrenick. Montagem e edição: Cristina Amaral; Direção de Arte: Luís Rossi. Música Original: Ivan Lins. Direção musical: Nélson Ayres. Produtora Executiva: Maria Ionescu. Produtores: Sara Silveira e Betty Faria. Produtores associados: Dezenove Som e Imagem, Supernova, Casa de Cinema de Porto Alegre, e Riofilme. Elenco: Betty Faria, Renan Augusto, Werner Schünemann, Antônio Grassi, Eduardo Dusek, Márcia de Oliveira, Marina Person, Fernanda Carvalho Leite, Sissi Venturin, Marcelo Bortotto e as participações de Beth Goulart e André Abujamra. Colorido, 110 min. Filmado em Cidreira (Rio Grande do Sul) com algumas seqüências rodadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Sinopse: Américo Baldini, poderoso e corrupto senador, é denunciado pela mulher, que torna públicas suas falcatruas. Quando sua amante se suicida, ele manda seqüestrar seu filho bastardo, um adolescente de 17 anos, e o esconde numa cidade balneária no extremo sul do País. Para cuidar dele e manter sua identidade em sigilo, ele escolhe uma antiga amante sobre quem deposita inteira confiança, a enfermeira Serena (Betty Faria), de mais de 50 anos. Isolados nesse fim de mundo, o envolvimento entre os dois é quase inevitável. Comentário: O roteiro possui realmente uma proposta original. A história política é vista de outro ângulo, num processo semelhante a Dois Córregos, que é uma história sobre o passado, e com um protagonista que não aparece. Reichenbach resolveu retomar a estratégia dramática do homem que precisa ser escondido, mas desta vez concentrando a ação nos dias de hoje. Bens Confiscados é a história de um amor quase impossível, entre personagens separados pela idade, mas unidos e fragilizados pela perversão do poder. Um drama intimista que tem a corrupção como pano de fundo. É o ponto de vista de suas vítimas, o universo do poder visto pelo ângulo do filho do político. Reichenbach tenta mostrar quais seriam as seqüelas dos atos paternos na vida de alguém muito próximo, mas que nada tem a ver com tudo aquilo. O filme tem muito da atmosfera de Anjos do Arrabalde, aliado à melancolia de Dois Córregos. Se neste a opressão vinha da onipresença da ditadura militar, em Bens, ela vem do político poderoso. Esse político, pai do rapaz, é um personagem interessante, uma espécie de protagonista invisível. O desafio do roteiro é dar credibilidade ao onipresente senador Baldami. Fala-se nele o tempo todo, mas ele nunca aparece, nem mesmo em fotografias. Segundo o diretor, a idéia foi inspirada em Rebecca, a Mulher Inesquecível, uma das obras primas de Alfred Hitchcock, de 1940, talvez a primeira vez no cinema em que surge um protagonista oculto, que aparece apenas em fotografias. Reichenbach já havia testado a idéia em Dois Córregos. A personagem de Isolda, a mãe da protagonista Ana Paula, também era muito citada, mas não aparecia. Um dos destaques do filme é a surpreendente atuação de Marina Person, famosa como VJ da MTV e filha de Sérgio Person, ex-professor e grande incentivador de Carlão. Ela protagoniza uma das cenas mais polêmicas do filme, quando tenta seduzir o filho do senador junto com uma amiga. Na verdade está interessada na própria amiga, beijando-a na boca. A cena, noturna, é muito bonita, também por conta da ambientação num cais. Impressões: Desde o bem-sucedido Anjos do Arrabalde que eu, Betty Faria e Sara Silveira queríamos trabalhar juntos novamente. Sara sempre me cobrava um roteiro inédito para filmar com a atriz carioca. Inicialmente cheguei a imaginar uma história toda passada no Rio de Janeiro, pensando no sotaque da atriz, que subverti com muita paciência em Anjos do Arrabalde, num dedicado trabalho de dublagem. O tempo foi passando e o projeto, ainda em forma de sinopse, foi parar na gaveta. De repente, acompanhando nos jornais os escândalos políticos com os senadores Antônio Carlos Magalhães, Jáder Barbalho e aquela história em São Paulo, da mulher do exprefeito Pitta denunciando-o publicamente, fui percebendo que aquilo tudo poderia render um substancioso material dramático, capaz de refletir o momento histórico do Brasil pós-abertura. Escrevi um argumento de dez páginas num final de semana e fui mostrá-lo para Sara e Betty. Elas se entusiasmaram de imediato e Betty foi atrás de recursos para a escritura do roteiro. Convidei Daniel Chaia, meu ex-aluno na ECA e assistente de direção em Dois Córregos para desenvolver o roteiro de Bens Confiscados comigo. Eu fumava três maços e meio de cigarros por dia e exagerava, cotidianamente, nas carnes gordurosas e nos ovos fritos. Já havia tido os primeiros sintomas de fraqueza cardiológica. Tive o primeiro infarto (na verdade já havia tido um outro, cinco anos antes) no meio do trabalho. Lygia, minha mulher, quis me internar na hora. Mas estava obcecado. Precisava acabar o roteiro. Me dei o direito de acabá-lo antes de ir ao hospital. As dores no peito passaram. Só depois descobri que esse foi o meu erro: deixar a dor passar, pois o enfarte é um aviso. O coração falhou, mas consegui entregar o roteiro. No final, conto a história completa. Foram meses de convalescença, mas pelo menos já tinha entregue o roteiro e elas, Sara e Betty, minhas sócias, puderam ir atrás de orçamento e recursos. Foi um processo de captação muito rápido. Conseguiram o dinheiro em menos de um ano e meio e já começamos a filmar. Quando você escreve o roteiro, imagina uma coisa, acha que o filme tem tais e tais influências. Depois de filmado, aparecem as surpresas. Descobri que era credor de Fritz Lang apenas durante a montagem de Garotas do ABC. No caso de Bens Confiscados, a mesma coisa. Durante todo o processo de roteiro e filmagem eu julgava estar influenciado por Douglas Sirk e, seu discípulo assumido, Rainer Werner Fassbinder. Vendo o filme nas telas eu percebi que ele talvez tenha muito mais a ver com Rosselini. Há uma cena em que o personagem da Betty Faria tenta dar um dinheiro para que a submissa mulher do caseiro truculento possa ir embora. Mas ela, conformada, diz que não pode fugir do que considera seu destino. Parece alguém fadado ao fatalismo. Ela fala olhando para um céu imenso de nuvens brancas, como se estivesse reclamando com Deus: Está escrito, dona. Essa cena remete a uma antológica de Stromboli, do Rosselini, onde Ingrid Bergman cai de joelhos no terreno vulcânico do Vesúvio e olhando para o céu briga com Deus. Aliás, Stromboli, ao retratar a relação amorosa quase impossível entre uma aristocrata burguesa e um humilde pescador, mostra uma situação freqüente em quase toda minha obra. Em Amor, Palavra Prostituta, Império do Desejo, O Paraíso Proibido, Extremos do Prazer, Dois Córregos e Garotas do ABC, também existem paixões quase inconcebíveis. No tratamento do roteiro, resolvi novamente usar o recurso de isolar os personagens num fim de mundo, como em Dois Córregos ou A Ilha dos Prazeres Proibidos e Império do Desejo. Aliás, dessa vez levei para os extremos do país mesmo. As locações foram feitas na praia de Cidreira, no Rio Grande do Sul, quase no Uruguai. A cumplicidade do fotógrafo Jacob Solitrenick em Bens Confiscados foi crucial, pois a iluminação é personagem do filme; assim como a música em Alma Corsária e Dois Córregos ou a montagem e a direção de arte em Garotas do ABC e Anjos do Arrabalde. Existem inúmeros matizes de azul experimentados por Solitrenick na exploração das latitudes do negativo Fuji. A cor nesse filme é um elemento dos mais dramáticos. Trabalhamos o tempo todo com elementos que são mostrados parcialmente ou apenas sugeridos. Antes de começar as filmagens eu mostrei dois filmes ao Jacob que deveriam ser referência: Palavras ao Vento (Written on the Wind, 1956), de Douglas Sirk, numa cópia em DVD que preservou o deslumbrante Technicolor do mestre Russell Metty, e Martha (Idem, 1974), de Rainer Fassbinder. Este numa cópia em vídeo que não fazia justiça à excelência cromática experimentada pelo genial Michael Ballhaus. Outra referência foram os matizes cianos de Odilon Redon, o pai do simbolismo nas artes plásticas. Por sinal, ele já havia sido nossa principal referência no curta-metragem Equilíbrio e Graça. A casa de Lobo e Penha (respectivamente, Werner Schünemann e Márcia de Oliveira), cenário principal de Bens Confiscados, foi construída especialmente para o filme. A principal referência era a casa do filme Johnny Guitar (1954), de Nicholas Ray. Era preciso uma locação que não tivesse vizinhança, já que eles deveriam estar isolados. No filme, o rapaz é escondido da mídia e da polícia. Ele é seqüestrado na própria casa e levado àquele fim de mundo. A casa foi construída ali no meio do nada, sem nenhuma construção por perto. O que mais me comove nesse filme é a atuação da Betty Faria como a enfermeira. A figura dela lembra muito a da atriz americana Barbara Stanwick, símbolo da mulher resolvida e independente, que impõe seus princípios éticos. No entanto, ela se entrega totalmente à destruição de seu personagem no final do filme. O filme conclui com um close implacável e juro que nem eu nem a montadora Cristina Amaral tivemos a menor compaixão em fazer o plano demorar o tempo necessário para obrigar o espectador a mergulhar na alma dilacerada da protagonista. É uma cena que só mesmo a Betty Faria poderia fazer. Uma coisa que faço questão de destacar é que o clima das filmagem no Rio Grande do Sul foi dos melhores e o astral de Bens Confiscados, desde o início, foi dos melhores que já encontrei na minha carreira. Havia uma sintonia, um desejo fazer cinema, muito grande na equipe. Um bom exemplo desse ambiente foi uma cena em que a prostituta do bordel precisava escancarar seu desejo por Werner Shünemman. Ao chantageá-lo, dizendo que só contaria o que sabia se ele estivesse na cama, teria que lamber seu torso, que aparecia por entre a camisa aberta. Eles fizeram um primeiro ensaio e eu achei que o gesto, o desejo represado, não havia ficado nítido. Resolvi sair detrás da câmera dizendo que ia mostrar pessoalmente como queria a cena. O Werner me olhou assustado: Peraí, você vai fazer exatamente como é a cena? Se for eu quero o cachê dobrado! Todo mundo caiu na gargalhada. Acho que o resultado final de Bens Confiscados, apesar do teor melancólico de sua trama, espelha o altíssimo astral das filmagens. Foi uma delícia trabalhar com uma equipe afinadíssima, que uniu gaúchos e paulistas. Estes últimos eram praticamente os mesmos que trabalharam em Garotas do ABC. Para mim, ter filmado um mês e meio no Sul foi como voltar às origens. Nasci lá, embora tenha vindo para São Paulo com quatro meses de idade e só visitado o Rio Grande do Sul esporadicamente. Há poucos lugares no mundo dos quais eu posso dizer que me sinto em casa. Fico à vontade e motivado para a criação na loucura de São Paulo, em Dois Córregos e no litoral do Rio Grande do Sul. O engraçado disso é que, quando me perdi nas ruas de Olinda, ou na Chapada dos Guimarães e em São Luís do Maranhão eu também me sinto em casa, familiarizado. Parece coisa de vidas passadas, sei lá! Epílogo Enfarte em Meio ao Roteiro Bens Confiscados foi um filme que correu o risco de ficar pelo caminho, só no roteiro. Um dia depois de entregar o roteiro, tive o segundo (ou melhor, terceiro) enfarte. Lembro que foi numa quinta-feira. Estava dando uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo (ao autor deste livro), possesso com os meus colegas de profissão que deixaram acabar a parceria da TV Cultura com o cinema paulista, quando comecei a sentir uma dor violenta no lado esquerdo do peito. Depois que desliguei, a dor foi piorando e caí em cima da mesinha de telefone. Minha cunhada Fátima me socorreu fazendo-me ingerir remédios que minha mulher havia indicado. No dia seguinte fui levado por meus amigos Cristina Amaral e Andréa Tonacci a um médico chinês que aplicou agulhas de acupuntura pelo corpo todo. Saí do tratamento bem melhor. Cheguei em casa e tive uma discussão séria com meu querido amigo Jairo Ferreira. As dores voltaram e, pior, desta vez passei a ter dificuldades em respirar. No sábado as dores no peito pioraram e da noite de sábado para domingo eu não consegui dormir. Não conseguia nem encostar o pulmão no colchão da cama que vinha uma dor lancinante. Domingo, seis horas da manhã, a dor ficou insuportável. Acordei minha mulher dizendo: Você ganhou. Me leva para o hospital que eu estou morrendo! Fui internado no Incor (graças à rapidez de raciocínio de minha mulher) com seis horas para morrer. Fui salvo em cima do laço e operado para a implantação das três pontes de safena e uma mamária. Tive uma longa convalescença mas o pior já passou. O problema são esses remédios que vou ter de tomar por toda a vida, dos quais um deles me prejudica um pouco a memória. Próximos Filmes Como já foi dito anteriormente, depois que se recuperou do enfarte, Carlão passou a trabalhar com disposição redobrada. A produtora Sara Silveira conta que toda semana ele chega falando de um novo roteiro. Dentre seus projetos mais imediatos estão roteiros que integram o projeto ABC-Clube Democrático. Três já estão prontos, graças à Fundação Vitae: Anjo Frágil Antuérpia, Lucineide Falsa Loura e A Fiel Operária Lady Di. Outros dois serão roteirizados no futuro: Mistério Paula Nélson e Arlete Doce Porralouca. Lucineide... já está com orçamento pronto e deve ter a captação iniciada este ano. Ele tem ainda um projeto de filme de baixo orçamento ambientado em São Paulo: O Sol Vai Explodir, fruto de suas caminhadas pelo centro da cidade, que também pode sair ainda este ano. Para 2005, há dois projetos que ele pretende rodar na cidade de Dois Córregos: O Amigo Católico, um projeto que surgiu há mais de 20 anos; e Oriente, uma versão feminina do calvário de Cristo. Um terceiro roteiro ambientado em Dois Córregos ainda não está pronto, mas já tem argumento: chama-se 112 Fenômenos, que deve ser estrelado por Ênio Gonçalves, no papel de um cineasta que começa a fazer um filme institucional e entra em crise, abandonando as filmagens. Nesta etapa, os filmes femininos serão os do Clube Democrático e em Oriente. Ele tinha ainda um projeto de criação coletiva, Empédocle, O Deus das Sandálias de Bronze, escrito ao longo de uma oficina de roteiros, o qual ele entregou para seu assistente, Daniel Chaia, que deverá ser o diretor. O primeiro a ser filmado, por ser de concepção mais simples, é Lucineide Falsa Loura, estrelado por Fernanda Carvalho Leite, a gaúcha que briga no refeitório e sai com um corte na cabeça, em Garotas do ABC, e que recebe um beijo de Marina Person, em Bens Confiscados. Ela faz uma operária que é a rainha do Clube. Apesar da beleza, vive situação difícil com o pai, que é suspeito de crimes pela polícia. Ao mesmo tempo, namora um músico brega que dá shows no Clube. Ela se considera segura e dominadora, mas na verdade é usada como objeto pelos homens. Aos poucos ela começa a aproximar-se perigosamente da prostituição. Muitas cenas internas da fábrica já estão filmadas, pois Carlão pretende aproveitar o material que sobrou de Garotas do ABC. As atrizes serão praticamente as mesmas desse filme. Apenas os homens serão novos, embora cerca de 20% dos antigos permaneçam. Segundo o diretor, este será o filme mais amargo dos seis que compõem o projeto. O Sol Vai Explodir tem boas chances de sair ainda este ano. Vai depender do ritmo da captação de Lucineide. Se demorar muito posso fazer este primeiro, já que é um projeto de baixo orçamento, explica ele. O filme custará cerca de um milhão e terá uma equipe bem reduzida. A idéia surgiu por conta das caminhadas que Carlão faz diariamente pelo centro da cidade. Depois do enfarte, o médico me obrigou a fazer caminhadas diárias. Inventei o hobbie de passear pelos sebos do centro, procurando filmes raros em fitas de VHS que as locadoras estão desovando ao substituir seu acervo por DVDs, pois não tenho paciência para caminhadas repetitivas e obrigatórias, conta ele. Assim, ele caminha diariamente cerca de quatro quilômetros. Ao longo do trajeto, vem observando o centro mais detalhadamente e fazendo anotações para o roteiro. O centro de São Paulo está mais vazio e bem mais interessante em termos cinematográficos. Ao mesmo tempo ele se aborrece ao ver a praça João Mendes repleta de prostitutas menores de idade. A cada caminhada que faço, imagino um plano diferente, vou visualizando o filme todo em minha mente. A idéia é mostrar um homem caminhando pelo centro, que repentinamente tem um surto e começa a pirar. Essa caminhada vira uma fantasia que se confunde com a realidade. Quero fazer um filme sobre neurose, mas com algum humor, ao contrário de Filme Demência. Boa parte será filmado em câmera na mão. Por isso, ele usará uma câmera leve, super-16 mm. Como sempre, Carlão vai alternando filmes masculinos e femininos. Já 112 Fenômenos, outra abordagem masculina, é um argumento inspirado no livro Ofício de Viver, de Cesare Pavese, famoso porque o escritor suicidouse assim que escreveu a última linha. O cineasta feito por Ênio Gonçalves vai largar tudo e sair numa viagem levando apenas as roupas e um revólver carregado. Instala-se num hotel do interior e tudo indica que irá suicidar-se. O problema é que várias pessoas o procuram, com o objetivo de fazer com que mude de idéia. Primeiro aparece o produtor, um tarado, levando duas menores deslumbrantes, para tentá-lo. A seguir surge um jornalista mal informado, um crítico ressentido e estudantes de cinema pretensiosos. O Amigo Católico é um projeto de mais de 20 anos, já descrito na parte anterior desse livro. O roteiro fala de dois amigos. Um é ateu, mas larga tudo para tornar-se pai de santo, mas acaba adoecendo. O outro é um cineasta israelita, que resolve visitar o amigo quando sabe da doença. Chega tarde demais. No entanto, o amigo deixou um último pedido: que ele localize um padre que foi uma espécie de mentor intelectual. Para os papéis principais já estão escalados o trio de amigos Ênio Gonçalves, Emílio de Biasi e Jonas Bloch. O último projeto engatilhado possui viés feminino e também será ambientado em Dois Córregos. É intitulado Oriente e narra a história de uma cineasta que pretende filmar uma versão feminina do calvário de Cristo. Enquanto procura locações, luta para enfrentar seu próprio calvário: acaba de perder um filho de dois meses de idade e seu casamento foi desfeito. Aos poucos, sua vida vai se misturando com a trama do filme. Segundo Carlão, a idéia do roteiro surgiu durante as filmagens do curta Equilíbrio e Graça, também em Dois Córregos. Filmografia Diretor de curtas-metragens ou episódios 2002 Equilíbrio e Graça (10 minutos) 1994 Olhar e Sensação (10 min) 1989 Desordem em Progresso (episódio de City Life) 1982 Rainha do Flipper (1º episódio de As Safadas) 1979 O M da Minha Mão Sangue Corsário Sonhos de Vida 1969 Prólogo (co-direção com Antônio Lima) e A Badaladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo (1º episódio de Audácia! – A Fúria dos Desejos) 1967 Alice (1o episódio de As Libertinas) 1966/68 Esta Rua Tão Augusta 1965 Duas Cigarras Diretor de longas-metragens 2003/04 Bens Confiscados 2002/03 Garotas do ABC (Aurélia Schwarzenega) 1999 Dois Córregos 1994 Alma Corsária 1987 Anjos do Arrabalde, as Professoras 1986 Filme Demência 1984 Extremos do Prazer 1981 Amor, Palavra Prostituta O Paraíso Proibido 1980 Império do Desejo 1979 Sede de Amar (Capuzes Negros) A Ilha dos Prazeres Proibidos 1975 Lilian M., Relatório Confidencial 1972 A Corrida em Busca do Amor Diretor de fotografia e operador de câmera 1991 Sua Excelência, o Candidato, de Ricardo Pinto e Silva 1985 Gozo Alucinante, de Jean Garret 1984 Extremos do Prazer Elite Devassa, de Luiz Castillini 1983 Doce Delírio, de Manoel Paiva 1982 As Prostitutas do Dr. Alberto, de Alfredo Sternheim Rainha do Flipper (1º episódio de As Safadas) Instinto Devasso, de Luiz Castillini 1981 Amor, Palavra Prostituta 1980 A Mulher que Inventou o Amor, de Jean Garret Viúvas Precisam de Consolo, de Ewerton de Castro O Gosto do Pecado, de Cláudio Cunha 1979 Mulher, Mulher, de Jean Garret J.J.J., O Amigo do Super-Homem, de Denoy de Oliveira A Força dos Sentidos, de Jean Garret A Ilha dos Prazeres Proibidos A Dama da Zona (Hoje tem Gafieira), de Ody Fraga 1978 Meus Homens, Meus Amores, de José Miziara 1977 Excitação, de Jean Garret 1975 Lilian M., relatório confidencial 1970 Os Amores de Um Cafona, de Penna Filho e Osiris de Figueiroa 1969 Audácia! – A Fúria dos Desejos Orgia ou O Homem que Deu Cria, de João Silvério Trevisan Diretor de fotografia de curtas e médias metragens 1998 A Voz e Vazio: a Vez de Vassourinha, de Carlos Adriano Hamlet, de Ricardo Elias Amor, Aventura e Transporte Público, de Bruno de André 1995 Glaura, de Guilherme de Almeida Prado 1979 Nem Verdade, Nem Mentira, de Jairo Ferreira 1974 O Guru e os Guris, de Jairo Ferreira 1968 Odisséia, de Miguel Chaia (16 mm inacabado) 1965 Via Sacra, de Orlando Parolini (16 mm inacabado) Diretor de Fotografia (com o pseudônimo de Alfred Stinn) 1981 O Paraíso Proibido 1980 Império do Desejo Roteirista de outros diretores 1978 Noite em Chamas, de Jean Garret 1977 Vítimas do Prazer, de Cláudio Cunha (argumento e roteiro) Compositor/Intérprete Trilha Sonora Original 1994 Alma Corsária / Olhar e Sensação Autor de Seleção Musical 1980 A Mulher que Inventou o Amor, de Jean Garret 1978 Snuff, Vítimas do Prazer, de Cláudio Cunha Belas e Corrompidas, de Fauzi Mansur 1974 Até A Última Bala, de Luigi Picchi Participações como Ator 1986 Filme Demência 1980 A Mulher que Inventou o Amor, de Jean Garret 1978 Belas e Corrompidas, de Fauzi Mansur Noite em Chamas, de Jean Garret 1977 O Vampiro da Cinemateca, de Jairo Ferreira 1976 A Casa das Tentações, de Rubem Biáfora 1975 Ainda Agarro este Machão, de Edward Freund 1972 Gringo, o Último Matador, de Edward Freund 1971 Finis Hominis, de José Mojica Marins No Rancho Fundo, de Oswaldo Oliveira 1970 Ritual de Sádicos (O Despertar da Besta), de José Mojica Marins O Pornógrafo, de João Callegaro Sertão em Festa, de Osvaldo Oliveira 1968 O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla Índice Apresentação – Hubert Alquéres 5 Introdução – Marcelo Lyra 13 Primeira Parte – A Carreira 27 Um Coração Proporcional ao Tamanho 33 Presença nos Filmes 41 Boca do Lixo e Cinema Marginal 45 Galante 49 Reichenbach no Set 53 Um Enfarte no Caminho 55 Segunda Parte: Descobrindo o Cinema 63 Censura e Filmes Esticados 79 Filmografia Comentada 117 Epílogo 271 Próximos Filmes 273 Filmografia 279 Créditos das fotografias Todas as fotos são do acervo de Carlos Reichenbach. Coleção Aplauso Série Cinema Brasil Alain Fresnot – Um Cineasta sem Alma Alain Fresnot Anselmo Duarte – O Homem da Palma de Ouro Luiz Carlos Merten Ary Fernandes – Sua Fascinante História Antônio Leão da Silva Neto Bens Confiscados Roteiro comentado pelos seus autores Daniel Chaia e Carlos Reichenbach Braz Chediak – Fragmentos de uma Vida Sérgio Rodrigo Reis Cabra-Cega Roteiro de Di Moretti, comentado por Toni Venturi e Ricardo Kauffman O Caçador de Diamantes Roteiro de Vittorio Capellaro, comentado por Máximo Barro Carlos Coimbra – Um Homem Raro Luiz Carlos Merten A Cartomante Roteiro comentado por seu autor Wagner de Assis Casa de Meninas Romance original e roteiro de Inácio Araújo O Caso dos Irmãos Naves Roteiro de Jean-Claude Bernardet e Luis Sérgio Person Como Fazer um Filme de Amor Roteiro escrito e comentado por Luiz Moura e José Roberto Torero Críticas de Edmar Pereira – Razão e Sensibilidade Org. Luiz Carlos Merten Críticas de Jairo Ferreira – Críticas de invenção: Os Anos do São Paulo Shimbun Org. Alessandro Gamo Críticas de Luiz Geraldo de Miranda Leão – Analisando Cinema: Críticas de LG Org. Aurora Miranda Leão Críticas de Ruben Biáfora – A Coragem de Ser Org. Carlos M. Motta e José Júlio Spiewak De Passagem Roteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo Elias Desmundo Roteiro de Alain Fresnot, Anna Muylaert e Sabina Anzuategui Djalma Limongi Batista – Livre Pensador Marcel Nadale Dogma Feijoada: O Cinema Negro Brasileiro Jeferson De Dois Córregos Roteiro de Carlos Reichenbach A Dona da História Roteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel Filho Fernando Meirelles – Biografia Prematura Maria do Rosário Caetano Fome de Bola – Cinema e Futebol no Brasil Luiz Zanin Oricchio Guilherme de Almeida Prado – Um Cineasta Cinéfilo Luiz Zanin Oricchio Helvécio Ratton – O Cinema Além das Montanhas Pablo Villaça O Homem que Virou Suco Roteiro de João Batista de Andrade, organização de Ariane Abdallah e Newton Cannito João Batista de Andrade – Alguma Solidão e Muitas Histórias Maria do Rosário Caetano Jorge Bodanzky – O Homem com a Câmera Carlos Alberto Mattos José Carlos Burle – Drama na Chanchada Máximo Barro Luiz Carlos Lacerda – Prazer & Cinema Alfredo Sternheim Maurice Capovilla – A Imagem Crítica Carlos Alberto Mattos Narradores de Javé Roteiro de Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu Pedro Jorge de Castro – O Calor da Tela Rogério Menezes Ricardo Pinto e Silva – Rir ou Chorar Rodrigo Capella Rodolfo Nanni – Um Realizador Persistente Neusa Barbosa Ugo Giorgetti – O Sonho Intacto Rosane Pavam Viva-Voz Roteiro de Márcio Alemão Zuzu Angel Roteiro de Marcos Bernstein e Sergio Rezende Série Crônicas Crônicas de Maria Lúcia Dahl – O Quebra-cabeças Maria Lúcia Dahl Série Cinema Bastidores – Um Outro Lado do Cinema Elaine Guerini Série Ciência & Tecnologia Cinema Digital – Um Novo Começo? Luiz Gonzaga Assis de Luca Série Teatro Brasil Alcides Nogueira – Alma de Cetim Tuna Dwek Antenor Pimenta – Circo e Poesia Danielle Pimenta Cia de Teatro Os Satyros – Um Palco Visceral Alberto Guzik Críticas de Clóvis Garcia – A Crítica Como Oficio Org. Carmelinda Guimarães Críticas de Maria Lucia Candeias – Duas Tábuas e Uma Paixão Org. José Simões de Almeida Júnior João Bethencourt – O Locatário da Comédia Rodrigo Murat Leilah Assumpção – A Consciência da Mulher Eliana Pace Luís Alberto de Abreu – Até a Última Sílaba Adélia Nicolete Maurice Vaneau – Artista Múltiplo Leila Corrêa Renata Palottini – Cumprimenta e Pede Passagem Rita Ribeiro Guimarães Teatro Brasileiro de Comédia – Eu Vivi o TBC Nydia Licia O Teatro de Alcides Nogueira – Trilogia: Ópera Joyce – Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso – Pólvora e Poesia Alcides Nogueira O Teatro de Ivam Cabral – Quatro textos para um teatro veloz: Faz de Conta que tem Sol lá Fora – Os Cantos de Maldoror – De Profundis – A Herança do Teatro Ivam Cabral O Teatro de Noemi Marinho: Fulaninha e Dona Coisa, Homeless, Cor de Chá, Plantonista Vilma Noemi Marinho Teatro de Revista em São Paulo – De Pernas para o Ar Neyde Veneziano O Teatro de Samir Yazbek: A Entrevista – O Fingidor – A Terra Prometida Samir Yazbek Teresa Aguiar e o Grupo Rotunda – Quatro Décadas em Cena Ariane Porto Série Perfil Aracy Balabanian – Nunca Fui Anjo Tania Carvalho Ary Fontoura – Entre Rios e Janeiros Rogério Menezes Bete Mendes – O Cão e a Rosa Rogério Menezes Betty Faria – Rebelde por Natureza Tania Carvalho Carla Camurati – Luz Natural Carlos Alberto Mattos Cleyde Yaconis – Dama Discreta Vilmar Ledesma David Cardoso – Persistência e Paixão Alfredo Sternheim Emiliano Queiroz – Na Sobremesa da Vida Maria Leticia Etty Fraser – Virada Pra Lua Vilmar Ledesma Gianfrancesco Guarnieri – Um Grito Solto no Ar Sérgio Roveri Glauco Mirko Laurelli – Um Artesão do Cinema Maria Angela de Jesus Ilka Soares – A Bela da Tela Wagner de Assis Irene Ravache – Caçadora de Emoções Tania Carvalho Irene Stefania – Arte e Psicoterapia Germano Pereira John Herbert – Um Gentleman no Palco e na Vida Neusa Barbosa José Dumont – Do Cordel às Telas Klecius Henrique Leonardo Villar – Garra e Paixão Nydia Licia Lília Cabral – Descobrindo Lília Cabral Analu Ribeiro Marcos Caruso – Um Obstinado Eliana Rocha Maria Adelaide Amaral – A Emoção Libertária Tuna Dwek Marisa Prado – A Estrela, O Mistério Luiz Carlos Lisboa Miriam Mehler – Sensibilidade e Paixão Vilmar Ledesma Nicette Bruno e Paulo Goulart – Tudo em Família Elaine Guerrini Niza de Castro Tank – Niza, Apesar das Outras Sara Lopes Paulo Betti – Na Carreira de um Sonhador Teté Ribeiro Paulo José – Memórias Substantivas Tania Carvalho Pedro Paulo Rangel – O Samba e o Fado Tania Carvalho Reginaldo Faria – O Solo de Um Inquieto Wagner de Assis Renata Fronzi – Chorar de Rir Wagner de Assis Renato Consorte – Contestador por Índole Eliana Pace Rolando Boldrin – Palco Brasil Ieda de Abreu Rosamaria Murtinho – Simples Magia Tania Carvalho Rubens de Falco – Um Internacional Ator Brasileiro Nydia Licia Ruth de Souza – Estrela Negra Maria Ângela de Jesus Sérgio Hingst – Um Ator de Cinema Máximo Barro Sérgio Viotti – O Cavalheiro das Artes Nilu Lebert Silvio de Abreu – Um Homem de Sorte Vilmar Ledesma Sonia Oiticica – Uma Atriz Rodrigueana? Maria Thereza Vargas Suely Franco – A Alegria de Representar Alfredo Sternheim Tatiana Belinky – ... E Quem Quiser Que Conte Outra Sérgio Roveri Tony Ramos – No Tempo da Delicadeza Tania Carvalho Vera Holtz – O Gosto da Vera Analu Ribeiro Walderez de Barros – Voz e Silêncios Rogério Menezes Zezé Motta – Muito Prazer Rodrigo Murat Especial Agildo Ribeiro – O Capitão do Riso Wagner de Assis Beatriz Segall – Além das Aparências Nilu Lebert Carlos Zara – Paixão em Quatro Atos Tania Carvalho Cinema da Boca – Dicionário de Diretores Alfredo Sternheim Dina Sfat – Retratos de uma Guerreira Antonio Gilberto Eva Todor – O Teatro de Minha Vida Maria Angela de Jesus Eva Wilma – Arte e Vida Edla van Steen Gloria in Excelsior – Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira Álvaro Moya Lembranças de Hollywood Dulce Damasceno de Britto, organizado por Alfredo Sternheim Maria Della Costa – Seu Teatro, Sua Vida Warde Marx Ney Latorraca – Uma Celebração Tania Carvalho Raul Cortez – Sem Medo de se Expor Nydia Licia Sérgio Cardoso – Imagens de Sua Arte Nydia Licia Formato: 12 x 18 cm Tipologia: Frutiger Papel miolo: Offset LD 90 g/m2 Papel capa: Triplex 250 g/m2 Número de páginas: 304 Tiragem: 4.000 Editoração, CTP, impressão e acabamento: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo © 2007 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Lyra, Marcelo Carlos Reichenbach: o cinema como razão de viver/ Marcelo Lyra. – 2.ed. – São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. 304 p.: il. – (Coleção Aplauso Cinema Brasil) 1. Cinema – Brasil 2. Produtores cinematográficos – Brasil 3. Reichenbach, Carlos – Biografia I. Título. II. Série. CDD 791.430 981 Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004) Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98 Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921 Mooca 03103-902 São Paulo SP www.imprensaoficial.com.br/livraria livros@imprensaoficial.com.br Grande São Paulo SAC 11 5013 5108 | 5109 Demais localidades 0800 0123 401 Coleção Aplauso | em todas as livrarias e no site www.imprensaoficial.com.br/livraria